v.19 n.53, abr./jun. 2015

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa.

EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP EDITORA SENIOR/SENIOR EDITOR/EDITORA SENIOR Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Denise Martin Covielo, Unifesp Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Claudio Bertolli Filho, Unesp Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Janine Miranda Cardoso, FioCruz Maria Antônia Ramos Azevedo, Unesp Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Silvio Yasui, Unesp Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ Editora de Resenhas/ Reviews Editor /Editora de Reseñas Francini Lube Guizardi, Fiocruz

PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistent/Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Auxiliar administrativo/Administrative assistant/ Ayudante administrativo Nieli de Lima Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Luciene Pizzani Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) David Elliff (Inglês/English/Inglés) María Carbajal (Espanhol/Spanish/Español) Web design IDETEC Manutenção do website/Website support/ Manutención del sitio Nieli de Lima

Editora de Criação/Creation Editor/Editora de Creación Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Paula Carpinetti Aversa, USP Renata Monteiro Buelau, USP

Capa/Cover/Portada: Apresentação da Oficina de Dança e Expressão Corporal do Projeto Cidadãos Cantantes. Registro fotográfico e produção da imagem: Renata Monteiro Buelau e Isabela Umbuzeiro Valent, 2014.


ISSN 1807-5762

comunicação

Saúde e educação

Ideologia

Análise do discurso

Intersetori ali

dade

educação

Saúde Mídia

grafia Carto

Gestão Ética Educação médica

Tutoria

Saúde da Família

Narrativa

Vulnerabilidade

Saúde Mental

Planejamento Estratégico.

Inovação

ção Educa da a Continu

Violência

Intervenção artística do Grupo Caixa de Imagem. Registro fotográfico e produção da imagem: Renata Monteiro Buelau e Isabela Umbuzeiro Valent, 2014

Atenção Básica à Saúde

Arte

Formação em saúde

o açã Educ úde a em S COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2015; 19(53)


Interface - comunicação, saúde, educação/ Unesp, 2014; 19(53) Botucatu, SP: Unesp Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I Unesp Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

2015; 19(53)

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editorial artigos

237 O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial

Natasha Ventura da Cunha; Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti; Maria Lúcia Freitas dos Santos; Vanusa de Lemos Andrade Araújo; Débora Medeiros de Oliveira e Cruz; Gabriela Fonte Pessanha; Pauline Lorena Kale; Antonio José Leal Costa

ISSN 1807-5762

337 Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE): elementos para avaliação de projetos sociais em Juazeiro, Bahia, Brasil Marcelo Silva de Souza Ribeiro; Carla Valois Ribeiro

349 Residência Multiprofissional em Saúde da Família: concepção de profissionais de saúde sobre a atuação do nutricionista Irani Gomes dos Santos; Nildo Alves Batista; Macarena Urrestarazu Devincenzi

Rafael Antônio Malagón Oviedo; Dina Czeresnia

251 Estrutura, organização e processos de trabalho no controle da tuberculose em municípios do estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil

educação

361 Novos espaços de reorientação para formação em saúde: vivências de estudantes Juliana Alves Leite Leal; Cristina Maria Meira de Melo; Rafaela Braga Pereira Veloso; Iraildes Andrade Juliano

373 Paradigmas e tendências do ensino universitário: a metodologia da pesquisa-ação como estratégia de formação docente Erica Toledo de Mendonça; Rosângela Minardi Mitre Cotta; Vicente de Paula Lelis; Paulo Marcondes Carvalho Junior

265 Planejamento Estratégico como exigência ética para a equipe e a gestão local da Atenção Básica em Saúde José Roque Junges; Rosangela Barbiani; Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli

275 A violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil Anderson da Silva Rosa; Ana Cristina Passarella Brêtas

espaço aberto 387 Educação, cinema e infância: um olhar sobre práticas de cinema em hospital universitário Fernanda Omelczuk; Adriana Fresquet; Angela Medieros Santi

287 Atuação do psicólogo em situações de desastre: reflexões a partir da práxis Ana Cecília Andrade de Moraes Weintraub; Débora da Silva Noal; Letícia Nolasco Vicente; Felícia Knobloch

299 Comunicação e saúde nos manuais dos organismos internacionais para situações de emergência e desastre: intervenção e hegemonia

395 Capacitação em álcool e outras drogas para profissionais da saúde e assistência social: relato de experiência Pedro Henrique Antunes da Costa; Daniela Cristina Belchior Mota; Erica Cruvinel; Fernando Santana de Paiva; Henrique Pinto Gomide; Isabel Cristina Weiss de Souza; Leonardo Fernandes Martins; Pollyanna Santos da Silveira; Telmo Mota Ronzani

Luciana Lindenmeyer; Carla Macedo Martins

311 Comunicação entre trabalhadores de saúde e usuários no cuidado à criança menor de dois anos no contexto de uma unidade de saúde da família Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus; Rebecca Soares de Andrade; Lidia Ruiz-Moreno; Luciane Soares de Lima

325 Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira Clarice Rios; Francisco Ortega; Rafaela Zorzanelli; Leonardo Fernandes Nascimento

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teses notas breves

407 Encontro Arte, Saúde e Cultura: compartilhando saberes e experiências em interface Isabel Cristina Lopes; Isabela Umbuzeiro Valent; Renata Monteiro Buelau


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editorial articles

237 The concept of vulnerability and its biosocial nature

Natasha Ventura da Cunha; Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti; Maria Lúcia Freitas dos Santos; Vanusa de Lemos Andrade Araújo; Débora Medeiros de Oliveira e Cruz; Gabriela Fonte Pessanha; Pauline Lorena Kale; Antonio José Leal Costa

Marcelo Silva de Souza Ribeiro; Carla Valois Ribeiro

349 Multiprofessional residency in family health: the conceptions of healthcare professionals regarding nutritionists’ performance Irani Gomes dos Santos; Nildo Alves Batista; Macarena Urrestarazu Devincenzi

361 New reorientation spaces for healthcare education: students’ experiences Juliana Alves Leite Leal; Cristina Maria Meira de Melo; Rafaela Braga Pereira Veloso; Iraildes Andrade Juliano

373 Paradigms and trends in higher education: the action research methodology as a teacher education strategy Erica Toledo de Mendonça; Rosângela Minardi Mitre Cotta; Vicente de Paula Lelis; Paulo Marcondes Carvalho Junior

265 Strategic planning as an ethical requirement for primary healthcare teams and local management José Roque Junges; Rosangela Barbiani; Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli

275 Violence in the lives of homeless women in the city of São Paulo, Brazil Anderson da Silva Rosa; Ana Cristina Passarella Brêtas

287 Psychologists’ actions in disaster situations: reflections based on practice Ana Cecília Andrade de Moraes Weintraub; Débora da Silva Noal; Letícia Nolasco Vicente; Felícia Knobloch

299 Communication and health in international organizations’ manuals for emergency and disaster situations: intervention and hegemony

open space 387 Education, cinema and childhood: a look at cinema practices in a university hospital Fernanda Omelczuk; Adriana Fresquet; Angela Medieros Santi

395 Training on alcohol and other drugs for health and social care professionals: report on experience Pedro Henrique Antunes da Costa; Daniela Cristina Belchior Mota; Erica Cruvinel; Fernando Santana de Paiva; Henrique Pinto Gomide; Isabel Cristina Weiss de Souza; Leonardo Fernandes Martins; Pollyanna Santos da Silveira; Telmo Mota Ronzani

Luciana Lindenmeyer; Carla Macedo Martins

311 Communication of healthcare workers and users in caring for children under two years old in the context of a family health unit Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus; Rebecca Soares de Andrade; Lidia Ruiz-Moreno; Luciane Soares de Lima

325 From invisibility to epidemic: the narrative construction of autism in the Brazilian press Clarice Rios; Francisco Ortega; Rafaela Zorzanelli; Leonardo Fernandes Nascimento

ISSN 1807-5762

337 Health and prevention at schools: elements for evaluating social projects in Juazeiro, Bahia, Brazil

Rafael Antônio Malagón Oviedo; Dina Czeresnia

251 Structure, organization and working processes within tuberculosis control in municipalities in the state of Rio de Janeiro, RJ, Brazil

educação

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theses brief notes

407 Meeting Art, Health and Culture: sharing knowledge and experiences in interface Isabel Cristina Lopes; Isabela Umbuzeiro Valent; Renata Monteiro Buelau


DOI: 10.1590/1807-57622015.0194

editorial

Por um campo específico de estudos sobre processos migratórios e de saúde na Saúde Coletiva A construção de uma abordagem para a compreensão do fenômeno das migrações ao longo da história humana, com foco exclusivo nos fluxos internacionais, conduz-nos a defini-los, em sua forma de manifestação atual, como consequência da chamada globalização, concebida como o atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista mundial1. Os fluxos migratórios internacionais constituem mudanças sociopolíticas e econômicas, com repercussões globais e locais, constantemente acionadas e aprofundadas sob o domínio do processo da globalização. De forma contrária aos processos de migração transatlânticos ocorridos durante o século XIX e início do século XX, para o Brasil, Argentina, Austrália, Canadá e Estados Unidos, entre outros países – de caráter “definitivo” e conectados às políticas de povoamento e às exigências específicas dos mercados locais de trabalho –, as imigrações internacionais respondem, cada vez mais, às demandas “temporárias” por força de trabalho e aos deslocamentos de grupos de pessoas expulsas de suas comunidades e/ou de seus países devido a fatores ambientais, guerras e outras consequências geradas pela hegemonia mundial neoliberal. Dentro do sistema atual de imigração no Cone Sul, a partir da década de 1980, o Brasil e a Argentina passaram a constituir países de atração e recepção de imigrantes dos países que compõem suas linhas de fronteira: Bolívia, Paraguai e Peru. Mais recentemente, imigrantes e refugiados de países africanos, juntamente com os sul-asiáticos, passaram a compor o conjunto de grupos de imigrantes em trânsito pelo Cone Sul, alterando as rotas anteriormente dirigidas aos Estados Unidos e ao continente Europeu2-4. Observa-se certa tendência de que grande parte destes grupos de imigrantes desloca-se de seus países de origem e passa a fazer parte de uma economia informal nos países receptores, estabelecendo-se e concentrando-se em áreas precárias, ou em condições de moradias insatisfatórias nas cidades de São Paulo e de Buenos Aires, respectivamente. Esta dinâmica de inserção laboral e territorial tem sido determinada, sobretudo, pela escassez de recursos materiais e de ação política de que dispõem estes grupos; e configura, portanto, parte das desigualdades estruturais que caracterizam as sociedades de destino desses imigrantes. Consideramos necessário abordar os processos de violência estrutural existentes em centros urbanos receptores de imigrantes, como os identificados em nível regional, e sua relação com diferentes processos de adoecimento sofridos por indivíduos pertencentes a esses grupos socioculturais subordinados, cujos estilos de vida, trabalho e moradia têm se desenvolvido em contextos particulares marcados pela vulnerabilidade social e por situações concretas de riscos à saúde5-7. Do ponto de vista da Saúde Coletiva, as cidades de São Paulo e de Buenos Aires e suas conexões metropolitanas, enquanto unidades de análise, têm sido privilegiadas em nossas observações. Nestas regiões são encontrados perfis etnoepidemiológicos específicos entre os variados grupos de imigrantes. Assim, podem ser observados: diversos indicadores de saúde que apontam COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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o incremento de iniquidades como consequência das desigualdades e modos de vida e de trabalho precários; a prevalência de doenças infecciosas, como a tuberculose; a transposição, pelas fronteiras, de doenças endêmicas, como a doença de Chagas; ou, mesmo, barreiras no acesso aos cuidados de saúde, para listar alguns dos problemas já identificados. Além disso, resultados preliminares de investigações têm evidenciado que, de maneira geral, os imigrantes vêm mantendo, ressignificando ou mudando suas concepções e práticas sobre o processo saúde-doença-cuidados desde suas origens em relação às concepções e práticas vivenciadas no contexto sociossanitário de destino, com o agravante de que utilizam, com menor frequência, os serviços públicos de saúde quando comparados aos “nativos”4-10. Constatamos uma relativa escassez de pesquisas sobre o assunto produzidas pelas disciplinas que formam o campo da Saúde Coletiva. É necessário produzir contribuições inovadoras que se debrucem sobre aspectos empíricos, conceituais e metodológicos das investigações sobre processos migratórios internacionais contemporâneos e da saúde destes grupos, reconhecendo suas especificidades e as particularidades dos contextos históricos, sociais e geográficos em que se desenvolvem. As hipóteses em nossas investigações, concluídas ou em andamento, dizem respeito a casos de imigrantes e refugiados sul-americanos e africanos nas regiões metropolitanas de São Paulo e Buenos Aires. Parte dos processos de adoecimento que sofrem os grupos mencionados constituem complexos resultados de seus modos de vida e trabalho em contextos de vulnerabilidade social dessas duas áreas urbanas que, com frequência, envolvem situações de risco concreto à saúde, inerentes a sua inserção como imigrantes nessas sociedades. Outra hipótese é a de que os processos de atenção aos padecimentos e sofrimentos decorrentes desse processo são interdependentes à situação descrita anteriormente, sendo, também, influenciados pela situação de imigração e suas consequências administrativas, que resultam na oscilante capacidade de exercício de direitos e de condições de acesso aos serviços públicos de saúde para imigrantes e/ou refugiados em cada uma dessas cidades; bem como no âmbito das relações entre profissionais de saúde e pacientes, e da qualidade dos cuidados oferecidos pelos sistemas de saúde. Propomos que análises sobre o contexto sociocultural dos problemas de saúde desta população (os imigrantes e refugiados das Américas Central e do Sul, da África, do Sul da Ásia e, mais recentemente, pessoas oriundas de áreas de guerra no Oriente Médio) não podem constituir, simplesmente, mais uma variável a ser incorporada aos estudos sobre processos migratórios e de saúde, encerrando, dessa maneira, um modelo interpretativo reducionista desses processos. Pelo contrário, geralmente, estas variáveis que indicam processos de adoecimento e patologias específicas ​​podem identificar importantes situações de vulnerabilidade e ​​de risco para a saúde desses grupos específicos. As desigualdades sociais, que resultam em desigualdades na saúde, não devem se estabelecer apenas como indicadores unicamente em relação a determinados processos de adoecimento e/ou patologias específicas, mas, fundamentalmente, em relação a acesso aos serviços públicos, diagnóstico e tratamento a que se submetem os imigrantes. O objetivo de somar contribuições às abordagens sobre os processos migratórios internacionais e a saúde teria de ser dirigido não somente ao

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conhecimento das experiências de vida desses sujeitos (com evidentes episódios de violação de seus direitos fundamentais; submissão a processos de exploração, discriminação, estereótipos e criação de estigmas) e dos problemas específicos (desconhecidos e, em muitos casos, invisíveis). Deve, também, permitir o desenvolvimento de ferramentas conceituais e enfoques metodológicos que inovem por meio de abordagens transnacionais e interdisciplinares na problemática da saúde dos imigrantes, a partir das perspectivas do campo da Saúde Coletiva e do recurso do método comparativo nos estudos regionais no Cone Sul. Os esforços deveriam ter por objetivo caracterizar aspectos clínicos e socioculturais de grupos de imigrantes, viabilizando a geração de informações qualitativas e quantitativas que, de forma articulada, possam ser transferidas para as políticas de saúde e para a reorganização dos serviços de saúde, com a reformulação de ações mais específicas de proteção e promoção nas intervenções de saúde pública. Como objetivo em médio prazo, contribuir para a construção de uma política de saúde pública com uma abordagem regional, baseada na prevenção, e que reconheça o pluralismo de cuidados existentes na sociedade e as diversas experiências culturais dos imigrantes, para que não sejam considerados grupos homogêneos, e para garantir a acessibilidade a uma saúde universal de qualidade. Convidamos os pesquisadores do campo da Saúde Coletiva ao desafio da produção de investigações sobre as complexas tramas evidenciadas nas relações entre os processos migratórios e de saúde. Alejandro Goldberg Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Católica de Santos. Santos, SP, Brasil. Denise Martin Cátedra Sergio Vieira de Mello, Universidade Católica de Santos. Santos, SP, Brasil. Cássio Silveira Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.

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Referências 1. Goldberg A. Tú Sudaca: las dimensiones histórico-geográficas, sociopolíticas y culturales alrededor del significado de ser inmigrante (y argentino) en España. Buenos Aires: Prometeo Libros; 2007. 2. Goldberg A, Sow P. Las migraciones de africanos hacia Brasil y Argentina: nuevas dinámicas y espacios territoriales en transformación. In: Pineau M, editor. Huellas y legados de la esclavitud en las Américas. Sáenz Peña: Editorial de la Universidad Nacional de Tres de Febrero; 2012. p. 149-64. (Proyecto Unesco La Ruta del Esclavo) 3. Rizek C, Georges I, Freire C. Trabalho e imigração: uma comparação Brasil/Argentina. Lua Nova. 2010; 79(6):111-43. 4. Goldberg A, Silveira C. Desigualdad social, condiciones de acceso a la salud pública y procesos de atención en inmigrantes bolivianos de Buenos Aires y São Paulo: una indagación comparativa. Saude Soc. 2013; 2(22):283-97. 5. Farmer P. An Anthropology of structural violence. Curr Anthrop. 2004; 3(45):305-25. 6. Fassin D. When bodies remember: experiences and politics of Aids in South Africa. California: University of California Press; 2007. 7. Goldberg A. Contextos de vulnerabilidad social y situaciones de riesgo para la salud: tuberculosis en inmigrantes bolivianos que trabajan y viven en talleres textiles clandestinos de Buenos Aires. Cuad Antrop Soc. 2014; 39:91-114. 8. Goldberg A. Análisis de la relevancia de los factores socioculturales en el proceso asistencial de pacientes con tuberculosis, usuarios del Instituto Vaccarezza-Hospital Muñiz: un abordaje etnográfico desde la Antropología Médica. Rev Argentina Salud Publica. 2010; 1(5):13-21. 9. Goldberg A. Situaciones de riesgo y procesos destructivos/deteriorantes para la salud de los trabajadores inmigrantes: una aproximación etnográfica-comparativa. Quaderns-E, monográfico “Cuerpos en riesgo”. 2013; 18(2):176-89. 10. Silveira C, Carneiro Junior N, Ribeiro MCSA, Barradas RCB. Living conditions and access to health services by Bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Cad Saude Publica. 2013; 29(10):2017-27.

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Towards a specific field of studies on migratory and health processes within Public Health Construction of an approach for comprehending the phenomenon of migrations over the course of human history, focusing exclusively on international flows, leads us to define them, in the way in which they are manifested today, as a consequence of so-called globalization, thought of as the current stage of development of the worldwide capitalist system.1 International migratory flows constitute sociopolitical and economic changes with local and global consequences that are constantly brought into action and deepened under the sway of the globalization process. Unlike the transatlantic migratory processes that occurred during the nineteenth century and at the beginning of the twentieth century, to Brazil, Argentina, Australia, Canada and the United States, among other countries, which were of “definitive” nature and took place in connection with population growth policies and the specific requirements of the local employment markets, international migration today occurs increasingly as a response to “temporary” demands for a labor force and to displacement of groups of people who are expelled from their communities and/or countries due to environmental factors, wars and other consequences generated through the worldwide neoliberal hegemony. Since the 1980s, within the current migratory system in the “southern cone” of South America, Brazil and Argentina have become countries that attract and receive immigrants from countries along their borders, i.e. from Bolivia, Paraguay and Peru. More recently, immigrants and refugees from African countries, along with people from southern Asia, have come to form part of the immigrant groups in transit in the southern cone, thereby altering the routes that previously had been directed towards the United States and the European continent2-4. A certain trend can be seen among these groups of immigrants who have been displaced from their counties of origin, in which a large proportion of these people become part of the informal economy of the receiving countries. They have become established and concentrated in precarious areas, under unsatisfactory housing conditions, in the cities of São Paulo (Brazil) and Buenos Aires (Argentina). This dynamic of inclusion in the labor market and in their physical setting has been determined especially by the shortage a material resources and political clout that these groups have. It therefore forms part of the structural inequalities that characterize the societies that these immigrants end up in. We consider that it is necessary to address the processes of structural violence that exist in the urban centers that receive immigrants, along with those identified at regional level. Moreover, the relationship of these processes with different illness processes suffered by individuals belonging to these socioculturally subordinated groups need to be examined. These individuals’ lifestyle, work and housing have developed in particular contexts marked by social vulnerability and by concrete situations of risks to health5-7 . From a public health point of view, the cities of São Paulo and Buenos Aires and their metropolitan connections have a prominent place in our observations, as analysis units. These regions present specific ethno-epidemiological profiles COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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for the various immigrant groups. Thus, different health indicators show that the consequence of the inequalities and the precarious ways of life and work has been greater inequity, with high prevalence of infectious diseases such as tuberculosis, transposition of endemic diseases like Chagas disease across borders and even barriers against access to healthcare, to list just some of the problems already identified. In addition, preliminary results from investigations have shown that in a general manner, the immigrants have maintained or resignified or changed their conceptualizations and practices relating to the health-disease-care process from their origins, with regard to those experienced within the social and healthcare context of their new location. However, the complicating factor within this is that they use public healthcare services less often that the “natives” do4-10. We have observed that there is a relative scarcity of research on this subject, produced within the disciplines that form the field of public health. There is a need to make innovatory contributions that address the empirical, conceptual and methodological aspects of investigations on contemporary international migratory processes and on the health of these groups. The specific nature and the particular features of the historical, social and geographic contexts within which these groups develop need to be recognized. The hypotheses in our investigations that have been concluded or that are still in progress relate to cases of South American and African immigrants and refugees in the metropolitan regions of Sao Paulo and Buenos Aires. Part of the process of becoming ill among these groups consists of complex results from these individuals’ ways of life and work, within the contexts of social vulnerability in these two urban areas. Their ways of life and work frequently involve situations of material risk to health that are inherent to the way in which they have been included as immigrants in these societies. Another hypothesis is that the processes of attending to the suffering and distress resulting from this are interdependent on the situation described previously. They are also influenced by the immigration situation and its administrative consequences, which has the result that immigrants and/or refugees in each of these cities experience varying capacity to exercise rights and have access to public healthcare services. The scope of relationships between healthcare professionals and patients and of the quality of care provided by the healthcare system is also a variable. We propose that analyses on the sociocultural context of the health problems of this population (immigrants and refugees from Central and South America, Africa and southern Asia and, most recently, people coming from war areas in the Middle East) cannot simply constitute an additional variable to be incorporated into studies on migratory and health processes, thereby ending up as a reductionist interpretative model of these processes. On the contrary, these variables that indicate processes of becoming ill and specific pathological conditions are generally able to identify important situations of vulnerability and risk to health in these specific groups. Social inequalities that result in health inequalities should not be established just as indicators that relate solely to certain processes of becoming ill and/or specific pathological conditions. Rather, they should fundamentally be determined in relation to the access to public services, diagnoses and treatments that immigrants are subjected to. The objective of adding contributions to the approaches towards international

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migratory processes and health has to be directed not only towards finding out about these individuals’ experiences of life (with evident episodes of violation of their fundamental rights and submission to processes of exploitation, discrimination, stereotyping and stigmatization) and specific problems (which will be unknown and, in many cases, invisible). Such contributions also need to make it possible to develop conceptual tools and methodological foci that innovate through transnational and interdisciplinary approaches towards the problem of immigrants’ health, starting from the perspectives of the field of public health and the resource of comparative methods in regional studies within the southern cone. These efforts should have the aim of characterizing the clinical and sociocultural aspects of immigrant groups, thus making it possible to generate qualitative and quantitative information that, when joined together, can be transferred to healthcare policies and used for reorganizing the healthcare services, with reformulation of actions so as to provide more specific protection and to promote public healthcare interventions. The medium-term objective should be to contribute towards construction public healthcare policies with a regional approach based on prevention. The pluralism of care existing within society and the immigrants’ diverse cultural experiences should be recognized, so that these individuals are not considered to be a homogenous group, and so as to ensure accessibility to quality universal healthcare. We invite researchers within the field of public health to take on the challenge of producing investigations on the complex processes observed in the relationships between migratory processes and health. Alejandro Goldberg Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Católica de Santos. Santos, SP, Brasil. Denise Martin Cátedra Sergio Vieira de Mello, Universidade Católica de Santos. Santos, SP, Brasil. Cássio Silveira Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.

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Referências 1. Goldberg A. Tú Sudaca: las dimensiones histórico-geográficas, sociopolíticas y culturales alrededor del significado de ser inmigrante (y argentino) en España. Buenos Aires: Prometeo Libros; 2007. 2. Goldberg A, Sow P. Las migraciones de africanos hacia Brasil y Argentina: nuevas dinámicas y espacios territoriales en transformación. In: Pineau M, editor. Huellas y legados de la esclavitud en las Américas. Sáenz Peña: Editorial de la Universidad Nacional de Tres de Febrero; 2012. p. 149-64. (Proyecto Unesco La Ruta del Esclavo) 3. Rizek C, Georges I, Freire C. Trabalho e imigração: uma comparação Brasil/Argentina. Lua Nova. 2010; 79(6):111-43. 4. Goldberg A, Silveira C. Desigualdad social, condiciones de acceso a la salud pública y procesos de atención en inmigrantes bolivianos de Buenos Aires y São Paulo: una indagación comparativa. Saude Soc. 2013; 2(22):283-97. 5. Farmer P. An Anthropology of structural violence. Curr Anthrop. 2004; 3(45):305-25. 6. Fassin D. When bodies remember: experiences and politics of Aids in South Africa. California: University of California Press; 2007. 7. Goldberg A. Contextos de vulnerabilidad social y situaciones de riesgo para la salud: tuberculosis en inmigrantes bolivianos que trabajan y viven en talleres textiles clandestinos de Buenos Aires. Cuad Antrop Soc. 2014; 39:91-114. 8. Goldberg A. Análisis de la relevancia de los factores socioculturales en el proceso asistencial de pacientes con tuberculosis, usuarios del Instituto Vaccarezza-Hospital Muñiz: un abordaje etnográfico desde la Antropología Médica. Rev Argentina Salud Publica. 2010; 1(5):13-21. 9. Goldberg A. Situaciones de riesgo y procesos destructivos/deteriorantes para la salud de los trabajadores inmigrantes: una aproximación etnográfica-comparativa. Quaderns-E, monográfico “Cuerpos en riesgo”. 2013; 18(2):176-89. 10. Silveira C, Carneiro Junior N, Ribeiro MCSA, Barradas RCB. Living conditions and access to health services by Bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Cad Saude Publica. 2013; 29(10):2017-27.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0436

artigos

O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial

Rafael Antônio Malagón Oviedo(a) Dina Czeresnia(b)

Malagón-Oviedo RA, Czeresnia D. The concept of vulnerability and its biosocial nature. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):237-49.

One of the theoretical exercises relating to public health comprises the necessary and continuing task of discussing the concepts that underlie its practices. A critical analysis on the uses of the concept of vulnerability in relation to health, based on a systematic review, provides the underpinning for a discussion on its content, scope and boundaries, with the aim of strengthening the theoretical and practical potential of the concept and the implied dialogue between the different fields of knowledge. This concept has high heuristic capacity and can be applied in different fields. In this article, it is characterized based on the complex processes of biosocial fragility that inextricably express biological, existential and social values. This perspective considers vulnerability to be an ontological dimension constitutive of human life that necessitates a diversity of complex security systems.

Keywords: Health-related vulnerability. Theoretical aspects of vulnerability. Vulnerability studies.

Um dos exercícios teóricos da Saúde Pública diz respeito à necessária e contínua tarefa de se discutirem os conceitos nos quais se ancoram suas práticas. Uma análise crítica sobre os usos do conceito de vulnerabilidade em saúde, com base em uma revisão sistemática, serve de suporte para uma discussão sobre seu conteúdo, alcances e limites, no sentido de fortalecer a potencialidade teórica e prática do conceito e o diálogo entre as distintas áreas de conhecimento implicadas. O conceito de vulnerabilidade apresenta alta capacidade heurística e aplicação diferenciada. Neste artigo, ele é caracterizado com base em complexos processos de fragilização biossocial que exprimem, de maneira inextrincável, valores biológicos, existenciais e sociais. Esta perspectiva considera vulnerabilidade como dimensão ontológica constitutiva e constituinte da vida humana, que reclama distintos e complexos sistemas de segurança.

Palavras-chave: Vulnerabilidade em saúde. Aspectos teóricos da vulnerabilidade. Estudos sobre vulnerabilidade.

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(a) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Odontologia, Universidade Nacional de Colômbia. Cidade Universitária. Bogotá, Colômbia, FOUN. Bolsista Capes. ramalagono@ unal.edu.co (b) Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. dina@ensp.fiocruz.br

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Introdução Há mais de duas décadas, o conceito de vulnerabilidade goza de prestígio no campo da saúde pública. Sua incorporação foi apresentada como alternativa analítica e como abertura promissora frente à indiscutida hegemonia alcançada pelo conceito de risco, originário da abordagem epidemiológica. Com vista a uma leitura mais compreensiva dos complexos processos de saúde e enfermidade e, portanto, auxiliadora de respostas sociais mais efetivas e integrais, a preocupação com a vulnerabilidade encontrou plena vigência. O estudo da vulnerabilidade esteve associado à história da epidemia de HIV/ AIDS, na década de 19901, quando foram realizados desenhos de intervenção norteados por enfoques da atenção integral e processos de mobilização social fundamentados nos Direitos Humanos. Essa foi a porta de entrada do conceito na área da Saúde Pública. Ancorada em uma expectativa renovada das práticas preventivas e de promoção da saúde, e abrindo importantes possibilidades para a discussão epistemológica e ético-jurídica em relação ao cuidado em saúde, a vulnerabilidade se apresenta como fecunda elaboração conceitual capaz de alcançar um vasto e heterogêneo universo de reflexões e práticas. Porém, o uso estendido do conceito – inserido na construção de problemas vinculados a múltiplas áreas, como saúde ambiental, saúde mental, envelhecimento e saúde, doenças infecciosas e crônicas, estágios críticos de fragilidade clínica, reflexões sobre a bioética etc. – aponta diversos caminhos e perspectivas onde a sua aplicação apareceria carregada de ambiguidades e contradições. Qual é o objeto que se designa quando estudos recentes no âmbito clínico apoiam-se nesse conceito para nomear um estado clínico particular de fragilidade? Qual era o objeto, quando os clássicos estudos da vulnerabilidade em HIV/Aids pretendiam – mediante a pesquisa sistemática e a rigorosa observação empírica – descrever as situações que melhor explicavam comportamentos sociais que aumentam o perigo de transmissão? Para além dessa circunstância, dado seu reconhecido valor heurístico(c), o conceito é usado, há mais tempo, em outros campos afastados da área da saúde, o que aumenta sua polissemia. As ciências jurídicas, a informática, as ciências econômicas, a geografia, a geologia etc. empregam o conceito de vulnerabilidade para designar objetos e situações diversas. No contexto da economia, por exemplo, vulnerabilidade significa instabilidade financeira, crises, volatilidade de preços etc., ou seja, situações que perturbam um curso desejado de eventos antes existentes. Analisar e discutir criticamente o conceito de vulnerabilidade no campo da saúde é o objetivo do presente artigo. Para atingi-lo, na primeira parte, são apresentados alguns dos usos mais relevantes da vulnerabilidade no campo sanitário. Essa parte está baseada em uma pesquisa sistemática de artigos que fazem referência expressa ao conceito. Foram incluídos 24 artigos de livre acesso, correspondentes ao período de 2005 a 2012. Na segunda parte, examinam-se abordagens teóricas que inspiraram estudos empíricos sobre o tema. Por fim, na última parte, com o propósito de fundamentar uma crítica geral sobre o conceito e explorar outros possíveis desenvolvimentos, apresenta-se uma discussão sobre a vulnerabilidade como dimensão ontológica constitutiva e constituinte da vida humana, apoiada em reflexões de: Hanna Arendt, Hans Jonas, George Canguilhem, Paul Ricoeur e Norbert Elias.

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(c) O valor heurístico de um conceito refere-se à sua capacidade de iluminar campos, a seu valor “descobridor” e inovador. A palavra “heurístico” deriva da expressão grega “εὑρίσκειν”, a mesma raiz do vocábulo “eureka”, que tem por significado “encontrar”, “descobrir”.


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Vulnerabilidade em saúde: além da heurística do conceito Respondendo a considerações pragmáticas, os termos científicos podem ser questionados pelos seus usos2, na tentativa de se reconhecerem as lógicas em que são inseridos nos discursos e práticas. O uso exprime o conteúdo semântico dos termos científicos, e define, por consequência, a capacidade de determinação sintética dos objetos que referem. Apesar dos avanços conceituais apontados a partir da década de 1990, o termo vulnerabilidade, no campo sanitário, não foi utilizado segundo uma linha de análise definida, como se observou em pesquisa sistemática realizada para este artigo, nas bases PUBMED e SciELO, usando como expressõeschave: vulnerability concept; vulnerabilidade conceito; vulnerabilidad concepto e vulnerabilidade e risco. Algumas publicações estudadas tomaram por referência determinantes muito globais, como gênero, etnia, classe, com suporte na hipótese da distribuição desigual da vulnerabilidade na interseção de tais variáveis. Esses estudos partem de prescrições ancoradas em determinismos históricos ou causalistas, e fixam sua atenção nos pontos de convergência entre variáveis, visando descrições mecanicistas ancoradas no dualismo indivíduo/estrutura. Por exemplo, as mulheres jovens, negras, que moram em favelas, são mais vulneráveis às DST/Aids3. A praticidade dessa perspectiva tem contribuído para uma rápida instrumentalização, auxiliando políticas públicas interessadas na focalização e racionalização de investimentos. Na mesma linha, estudos inspirados no conceito de “exposição cumulativa” consideram convergências de várias ameaças (sociais, econômicas, políticas etc.), simultaneamente por diferentes mecanismos e ao longo do tempo. Esses fatores podem exacerbar a experiência de vulnerabilidade em certos lugares e populações. Ver Huang e London4, Buscail et al.5 e Alves6. Outros tipos de estudos, interessados em descrever variáveis relativas às condições de vida – tais como renda, qualidade da moradia, nível educativo, iniquidade de gênero etc. – que incidem na ocorrência de eventos adversos, são intitulados com alguma frequência como relativos à vulnerabilidade. Nesses casos, considera-se que as variáveis ocupam um lugar na cadeia causal. A hipótese implícita nessa conjetura pode ser formalizada segundo a seguinte equação: pobreza = vulnerabilidade = perigo = risco7. Esses estudos pressupõem, por convenção, que déficits de capacidades sociais são imediatamente referidos a um quadro de vulnerabilidade. Ver, entre outros: Xavier et al.8, Aguilar et al.9, Bendo et al.10, Imbiriba et al.11 e Varela et al.12. Nessa mesma linha, apresentam-se estudos sobre saúde e velhice nos quais características cognitivas, redes sociais de suporte, fragilidade física etc. são associados a níveis de vulnerabilidade13-15. Por fim, na literatura interessada em equidade e saúde, existe a tendência de se equiparar iniquidade a vulnerabilidade. Mesmo sendo aceito que existem relações entre vulnerabilidade e iniquidade, tomar uma pela outra pode ser enganoso. Sob uma perspectiva pragmática, nem sempre uma situação de vulnerabilidade corresponde a uma estrutura de iniquidade. Por exemplo, perfis característicos de saúde associados à idade ou situações de vulnerabilidade relacionadas a redes sociais de apoio muito fracas não podem ser imputadas, em qualquer caso, a uma iniquidade. Aliás, vulnerabilidade e iniquidade são categorias de origem diferente, a primeira empírico/analítica, a segunda, de fundamento moral. Esses estudos não desvendam nem as configurações (inter-relações entre variáveis em diferentes níveis), nem os processos que conduzem a uma situação de vulnerabilidade. Nesse contexto analítico, a pergunta pelos dispositivos de produção e reprodução dessas situações fica ofuscada. Além disso, foge do escopo desses trabalhos a análise sobre as formas de os indivíduos e grupos enfrentarem situações de vulnerabilidade (resiliência). Essa crítica não diminui a importância desses estudos; pelo contrário, esclarece seu âmbito de intervenção e o recorte da realidade que assumem, ao privilegiar a lógica do risco como o eixo estruturante. Apesar disso, um uso pouco cauteloso do conceito pode levar a confusões que restringem sua força teórica. Não há como negar que, no contexto descrito, os estudos assinalados apenas fazem uso da vulnerabilidade como uma simples noção.

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A abordagem mais característica da vulnerabilidade procura desvendar como dinâmicas sociais e culturais mais abrangentes, em conexão com aspectos individuais, criam condições que acrescentam a possibilidade de certos perigos e ameaças concretizarem-se. Essa é a perspectiva assumida pela maior parte dos estudos sobre vulnerabilidade e HIV/AIDS, na tentativa de dar luz sobre as causas profundas da pandemia16. Estudos sobre violência, doenças crônicas etc. também desenvolvem essa perspectiva17-20.

Vulnerabilidade: aproximação ao conceito e desafios A vulnerabilidade como categoria política e social ganhou presença desde finais da década de 1970. Crises contemporâneas do mundo do trabalho, com mobilidade, trajetórias laborais de percurso descontínuo e enfrentamento individual das contingências, constituem traços firmes das sociedades atuais, produzidos pela erosão dos sistemas de proteção social. A inseguridade social ou vulnerabilidade aparece como uma dimensão consubstancial à coexistência dos indivíduos na sociedade moderna, como um horizonte insuperável da condição do homem moderno21. Contudo, o desenvolvimento conceitual da vulnerabilidade no campo da saúde pública tem uma história muito particular. Movimentos contestatórios ligados a agentes e agências científicas tiveram protagonismo, na década de 1980, na luta contra a discriminação e rejeição generalizada a que eram submetidos os portadores de HIV16,22-24. A epidemia era relacionada a identidades sociais muito específicas, e isso criava condições para outros grupos populacionais desconsiderarem perigos. Nesse contexto, a vulnerabilidade, inicialmente ligada às lutas civis e ao discurso jurídico, tornou-se uma preocupação científica no campo sanitário. O enfoque da vulnerabilidade chamou atenção para a necessidade de se atuar sobre os determinantes políticos, econômicos, sociais e culturais envolvidos no HIV/Aids, melhor entendidos sob os princípios universais dos Direitos Humanos16,25, visando estratégias de intervenção mais amplas, em consonância com o caráter indivisível e sinérgico dos direitos. A incorporação da vulnerabilidade como objeto de reflexão sistemática no campo da saúde pública foi influenciada por esse contexto social, ainda que a chamada Epidemiologia Social tivesse desenvolvido conceitos afins desde a década de 1950. Nessa época, Cassel26 propôs o conceito de susceptibilidade, relacionado com a condição nutricional, fadiga, sobrecarga laboral, cuja lógica produz um deslocamento da preocupação com a etiologia específica para o estudo de uma predisposição generalizada. Enxergar os fenômenos estruturantes que medeiam processos específicos de saúdedoença, levando em conta condições e capacidades de agência dos próprios indivíduos e grupos, é a especificidade dos estudos sobre vulnerabilidade. Modelos de análise marcantes no princípio da década passada estruturaram-se articulando “aspectos micro” com “dimensões macroambientais”. A hipótese subjacente é de que os comportamentos, práticas de risco ou condições adversas são condicionados pela interação ou interferência de variáveis localizadas em dimensões mais envolventes, que aparecem entrelaçadas, mesmo que não se procure revelar uma associação empírica direta (ver, por exemplo, Delor, Hubert24). Essa característica pode ser considerada a maior contribuição conceitual frente às análises de risco da epidemiologia clássica, basicamente por três considerações: a primeira, porque inclui categorias gerais e abstratas, possíveis de serem associadas a eventos ou situações específicas; por exemplo, articulações entre regras morais, estigma, discriminação e eventos infectocontagiosos; segundo, por estudar a copresença e interferência entre configurações em distintos tempos e espaços, na tentativa de uma leitura sintética, contrária à visão analítica do risco, e, por fim, por procurar certa universalidade a partir de estudos particulares norteados por métodos qualitativos e quantitativos23. Os aportes desenvolvidos por Ayres e colaboradores contribuíram substancialmente para a elaboração teórica da vulnerabilidade, ao longo da última década, no contexto latino-americano (ver, entre outros: Ayres et al.22, Ayres et al.23, Ayres et al.27 e Guerreiro et al.28). Esse desenvolvimento foi inspirado, sobretudo, nas preocupações sobre a compreensão da vulnerabilidade relativa aos determinantes envolvidos na pandemia de HIV/Aids, e em reflexões sobre cuidado, prevenção e promoção da saúde baseadas no enfoque dos Direitos Humanos.

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A perspectiva analítica elaborada propõe superar, sem negar, práticas preventivas ancoradas no conceito do risco, e captar as interferências entre as múltiplas dimensões (aspectos individuais, coletivos e contextuais) envolvidas no processo saúde/doença. As distintas situações de vulnerabilidade podem ser particularizadas levando-se em conta três componentes interligados: Individual - referido a conhecimentos e informações sobre problemas específicos e a atitudes para se assumirem condutas ou práticas protetoras, dando destaque ao viés comportamental e racional, ancorado em relacionamentos intersubjetivos; Social ou coletivo - diz respeito ao repertório de temas vinculados a aspectos contextuais, tais como: relações econômicas, de gênero, étnico/raciais, crenças religiosas, exclusão social etc.; Programático ou Institucional - relacionado aos serviços de saúde e à forma como estes lidam para reduzir contextos de vulnerabilidade, dando destaque ao saber acumulado nas políticas e nas instituições para interatuar com outros setores/atores, como: a educação, justiça, cultura, bem-estar social etc.23. A originalidade desse quadro analítico é a tentativa de considerar como unidade a dimensão indivíduo-coletivo ou indivíduo-âmbito social, levando em conta como interferências em diferentes níveis acrescentam tanto a exposição quanto a susceptibilidade ao contágio ou agravo. Os níveis se apresentam desde uma lógica pragmática, e a sua avaliação é conduzida no sentido da síntese hermenêutica23. Desenvolvimentos das ciências sociais também contribuíram para o enriquecimento do conceito. Segundo Parker e Aggleton29, o deslocamento dos estudos comportamentais para análises de fatores socioculturais e estudos norteados pelas dimensões estruturais envolvidas (políticas, culturais, econômicas, de gênero etc.) possibilitou uma compreensão crescente de fenômenos: “[...] interativos e sinérgicos, como pobreza, opressão sexual, racismo, a exclusão social, genericamente descritos como formas de violência estrutural” (p. 24), mas comprometidos com o curso da epidemia. A gradativa mudança de perspectiva, ainda que não linear, resultou na construção paradigmática da vulnerabilidade, na tentativa não só de “superar” a leitura proposta pela epidemiologia do risco, mas, também, na possibilidade de contar com uma base conceitual com capacidade de articular agências públicas e privadas no cuidado integral e na prevenção do HIV/Aids, e fornecer um marco programático para as militâncias relacionadas com os Direitos Humanos das pessoas que vivem com HIV/Aids. Referências indicativas desses desenvolvimentos podem ser encontradas em Parker e Aggleton29 e Delor e Hubert24. Estes últimos autores apresentam, também, uma matriz sobre a vulnerabilidade usada em pesquisa com pessoas que vivem com HIV/AIDS. Descrevem, de outro modo, três níveis analíticos, combinando dimensões socioestruturais e simbólico-estruturais: 1) trajetórias dos indivíduos; 2) interações e cenários problemáticos e, por fim, 3) aspectos contextuais relativos a formas de discriminação, iniquidade, tipos de relações sociais etc. Os aportes tanto das ciências sociais quanto da saúde pública foram construídos no contexto da epidemia do HIV/Aids e estão imbricados na construção paradigmática da vulnerabilidade. Ambos entendem que comportamentos e condutas interagem com aspectos individuais, contextuais e situacionais, inclusive, os serviços de saúde. Os avanços conseguidos foram significativos, e foge ao escopo deste artigo pretender elaborar uma concepção alternativa sobre a vulnerabilidade. Contudo, é possível formular algumas questões ainda em aberto nas conceituações mencionadas: 1. Para além dos comportamentos, como a posição relativa dos indivíduos nos grupos sociais e entre os próprios grupos – identidades, configuração de vínculos, estratégias de ação – interfere na conformação de situações de vulnerabilidade? 2. Resiliências são elementos coexistentes nas dinâmicas que constituem situações de vulnerabilidade. É possível construir um olhar processual capaz de apreender a complexidade das formas de agir envolvidas no enfrentamento das contingências? 3. Considerando a diversidade, e complexidade dos processos que conduzem à vulnerabilidade, como relativizar diretrizes programáticas e explorar outros possíveis desenvolvimentos para lidar com situações singulares?

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A elaboração conceitual da vulnerabilidade é uma tarefa ainda em aberto. As importantes elaborações já realizadas ancoram-se em uma reflexão de ordem epistemológica/metodológica, e vale a pena retomar o caminho da reflexão filosófica para um olhar ontológico sobre ela.

A questão da vulnerabilidade A crescente exigência de operacionalização dos conceitos científicos faz com que estes sejam propostos como desenho de intervenção. Demandas de efetividade e eficiência tendem a criar um distanciamento entre ciência e filosofia. Apesar disso, o campo científico não tem como evitar a “visita” recorrente do saber filosófico para revisar criticamente seus conceitos. O conceito de vulnerabilidade pode ser aprofundado considerando-se sua dimensão ontológica, ligada à vida. Em que sentido se afirma que a vulnerabilidade constitui uma dimensão inextricavelmente vinculada à vida? Os seres humanos têm a marca da existência, materializada no fato de uma vida individual, com uma história de nascimento e morte30; uma história, ademais, em que contingências e “injúrias” do entorno desvelam uma fragilidade originária e mais fundamental: a constatação primordial de uma vida finita. A finitude é condição da vida experimentada por cada um. Nas palavras de Hans Jonas31: “[a] vida é mortal, mais precisamente porque é vida segundo sua mais primitiva constituição, pois a relação de forma e matéria em que ela se baseia é desta espécie revogável e inafiançável” (p. 15). Vida e morte são uma realidade paradoxal, uma reafirmação permanentemente negada. Essa constante contradição expressa o caráter vulnerável da existência. A vulnerabilidadeé uma marca fundamental que não pode ser superada; uma realidade manifesta e atualizada permanentemente em toda ordem biológica e simbólica da vida humana, que se exprime como uma inquietação permanente na existência, por vezes mais sutil, por vezes mais evidente e incontestável, que notifica nossa finitude. Explorar a experiência de vulnerabilidade diz respeito a “algo” que desafia a capacidade de o vivente afirmar-se no mundo. Essa é a linha de reflexão que se desenvolve a seguir.

Vulnerabilidade e normatividade vital No livro “O normal e o patológico” (1943), Georges Canguilhem considera o exercício de uma normatividade biológica como característica peculiar dos seres vivos, desde os mais elementares aos mais complexos. Segundo o autor, a vida é polaridade e, portanto, uma posição inconsciente de valor. Afirma Canguilhem32: “É característico dos seres viventes responderem espontaneamente [...] de lutar contra aquilo que apresenta um obstáculo para a sua persistência e para os seus desenvolvimentos considerados como normas” (p. 92). A capacidade normativa é um atributo irredutível, próprio aos seres vivos, e que lhes permite realizar operações seletivas entre o que é favorável e adverso. Por conseguinte, não existe uma indiferença biológica. Normatividade vital diz respeito a uma característica peculiar do vivente no que concerne ao estabelecimento de normas que asseguram a persistência e desenvolvimento da vida. Essa polaridade da vida é movimento ou ação intencionada, e o é em referência ao seu meio. Aqui se funda, ainda que instável, um “compromisso”, uma deferência mútua, em contínua mudança, entre vivente e meio: “O meio ambiente é normal pelo fato que o ser vivo desenvolve nele melhor sua vida, mantém nele melhor sua própria norma”32,33 (p. 106). O meio e o vivente estabelecem uma relação mutuamente constituída, portanto, ativa em dupla mão, mas, também, constituinte. Meio e vivente são uma unidade dinâmica e inseparável. A relação expressa nesse “compromisso” habilitaria a possibilidade de os organismos estabelecerem orientação ou propósito para suas ações de regulação, modulação, distinção, seleção, mas, também, para a capacidade de constituir estratégias e mecanismos de permanência, mudança, integração etc., tanto nos organismos quanto nas espécies, ou empreender ações de implicação-afastamento com relação ao meio. Todos esses mecanismos, dispositivos e normas revelam que o acontecer do vivente mergulha entre situações de certeza-incerteza. Em termos gerais, o “compromisso” com o meio 242

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imprimiria as características de recursividade e de “emoção” ou “entusiasmo”(d), no vivente. Manifestações impossíveis se as relações entre vivente e meio fossem, por princípio, de oposição e luta. Acrescenta Canguilhem (apud Ricoeur34), falando dessa relação: “Esta relação não consiste essencialmente como se poderia pensar, em uma luta, em uma oposição, isso diz respeito de um estado patológico”34 (p. 174). Por conseguinte, toda fonte de vulnerabilidade vital funda-se como infração desse princípio relacional de “compromisso” entre meio e vivente. A vulnerabilidade emerge não simplesmente como desequilíbrio ou inadequação entre uma “potência” do vivente e um “desafio” do meio, mas, sim, como uma configuração particular do vínculo entre eles. O exemplo da hemofilia, citado em “O normal e o patológico”, é muito revelador nesse sentido. Essa anomalia, entendida como um estado de fragilidade determinado por uma alteração na cascata da coagulação, deve seu eventual caráter patológico às relações habituais do hemofílico com o meio ambiente32. Uma eventualidade pode conduzir a um fato catastrófico, mas a ameaça eficiente de sofrer um dano (a vulnerabilidade) é permanente na vida do hemofílico, tanto que modela, em diferentes graus, o curso da existência. Uma capacidade reduzida para administrar ameaças, perigos ou exigências do ambiente refere-se a aspectos relativos da vulnerabilidade vital sempre que se entenda que aquela capacidade não é um atributo em si mesmo do vivente, mas, sim, uma qualidade relacional. A capacidade seria, usando uma linguagem econômica, a oportunidade efetiva e exercida de manter o “compromisso” entre o vivente e o meio. Em cada situação de vulnerabilidade, o organismo, em referência a seu meio, experimenta as consequências da transgressão do preceito relacional. Mas não qualquer tipo de transgressão, senão aquela que signifique possibilidade de dano. A vulnerabilidade vital evoca, por vezes mais sutil ou, ainda, mais definida, o evento da morte. A vulnerabilidade vital demanda do vivente flexibilidade, recursividade e, até, engenho para superar as circunstâncias de insegurança criadas. As palavras ‘recursividade’ e ‘engenho’ parecem aqui apropriadas, mas com advertências, primeiramente, porque, qualquer que seja a resposta do vivente ou sua inventiva, ela se dá no marco de possibilidades oferecido pela sua atividade normativa; qualquer resposta está condicionada às suas circunstâncias. E, em segundo, porque está sempre mediada por uma ‘atitude prática ou vontade de ação do vivente’. De outra parte, o meio é sempre relativo à condição do vivente. Por exemplo, um doente, um velho ou uma pessoa com uma deficiência etc. apresenta, em sua relação com o meio, uma nova norma; em muitos casos, uma característica relação com um ‘meio reduzido’. Mas essa nova situação pode guardar um equilíbrio, ainda que débil e instável, e se prolongar no tempo, até mesmo, dar curso para uma vida renovada. É postura comum relacionar a priori doença, velhice, deficiência etc. com seres vulneráveis. Apenas quando declina a capacidade normativa do vivente, como uma constante, pode-se falar em instituir ou acrescentar uma situação de vulnerabilidade e, por conseguinte, um processo de fragilização biológica, existencial e social. O termo ‘fragilização biológica’, ainda que metafórico, pode mostrar-se mais definido. Corresponde à diminuição da capacidade relacional para lidar com ameaças, perigos ou com a própria doença. Na clínica, se fala, por exemplo, de estado frágil, para descrever uma situação em que o paciente registra a perda de recursos em vários domínios de funcionamento, com efeito na capacidade COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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De fato, expressões como “emoção” ou “entusiasmo” vêm de um léxico metafórico para descrever a característica própria dos seres vivos de serem impulsionados para a ação. (d)

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de lidar com estressores35. Corresponde ao que Canguilhem chama de desgaste do asseguramento biológico inicial32. A insegurança biológica significa vulnerabilidade. Contudo, uma análise da vulnerabilidade no nível existencial e social exige especificações. A expressão “fragilização” é uma metáfora tomada da física e da metalurgia(e), mas guardada aqui certa analogia com o nível biológico; pode-se afirmar que perdas nas seguranças existenciais e/ou sociais podem ser entendidas como processos de fragilização. A segurança existencial ou ontológica refere-se, sobretudo, a uma condição psicobiológica manifesta em um sentimento de certeza e confiança de que os mundos sociais são tais como parecem ser, incluindo os parâmetros existenciais básicos do próprio ser e da sua identidade social (memória, autoestima, pertencimento, certeza sobre o mundo etc.). Essas ancoragens psicoafetivas, cognitivas etc., podem ser afetadas, criando insegurança existencial, trazendo angústias, desconfianças e fragilização dos vínculos bioemocionais. Para Giddens36, as sociedades contemporâneas atravessam processos de distanciamento gerados pelas novas formas de intercomunicação social, acrescentando expressões de incerteza existencial. Por sua vez, seguranças sociais dizem respeito ao mundo das instituições sociais que intermedeiam relações protetoras e de agenciamento das pessoas37. Por exemplo, nos níveis de sociabilidade primária, operam relações familiares e comunitárias. Por contraponto, as instituições sociais impessoais representam o mundo das relações contratuais, tais como as relações de trabalho ou dos sistemas de proteção social e de saúde etc. Fragilidades na ordem existencial ou social se referem tanto aos aspectos que questionam as certezas sobre o curso da vida no dia a dia (as trajetórias críticas de um doente, por exemplo) quanto às inter-relações sociais que limitam o potencial de atuação(f) dos indivíduos. Desenhos institucionais e formas de organização social que impedem o asseguramento presente e futuro da existência e da filiação social também limitam o exercício de poder e sustentam situações de vulnerabilidade. É evidente que tanto a vulnerabilidade biológica quanto a existencial e social se apresentam como uma constelação de eventos que ameaçam conduzir a uma precipitação catastrófica, que se apresenta de duas formas: como a situação originária de uma limitação normativa vital (isso no nível biológico) ou como a impossibilidade de afirmação e exercício da liberdade e autonomia relativa (nos níveis existencial e social). Se acreditarmos que essas dimensões são inextricáveis, então, a vulnerabilidade é multidimensional e inespecífica, porque seus efeitos e desenlaces perturbam o indivíduo como um todo. De acordo com Jonas, todo ser vivo apresenta-se constitutivamente frágil, porque é finito. É possível acrescentar a essa ideia que a vida humana está imersa em ameaças de fragilização, resultantes das inevitáveis redes de poder que constituem a sua existência. Vulnerabilidade e resiliência Uma situação de vulnerabilidade inscreve a possibilidade de trajetórias individuais ou grupais conduzirem a desenlaces indesejados. Mas não existe relação causal e mecânica entre uma situação de vulnerabilidade e processos de fragilização. No curso de uma doença, nem sempre é possível predizer o desenlace ou as consequências de uma deficiência física. Ante tais eventos, cabe esperar o que seja plausível ou razoável. A experiência dita prudência e os ‘epílogos’ são sempre variados. 244

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(e) O termo designa materiais atacados, em suas propriedades físicas, por causa da ação do hidrogênio, por exemplo, mas em sua configuração estrutural. Conduz a uma perda da segurança do material. Em português, tem a significação de se tornar fisicamente fraco e pouco resistente ou emocionalmente abalado e vulnerável. O uso metafórico, porém, apresenta a dificuldade de falar de uma mudança do estado, e não propriamente de um processo que pode até se reverter.

A atuação social não se refere aqui aos desempenhos sociais das pessoas (atos prescritivos), mas, sim, à ação humana, entendida desde um plano antropológicoexistencial.

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(g) A capacidade de agência diz respeito à expansão das liberdades das pessoas para fazerem realizações valoradas como significativas.

artigos

Uma doença considerada simples, como a gripe comum, pode causar, anualmente, um número alto de mortes em todo o mundo; ao mesmo tempo, uma pessoa com uma deficiência física pode construir parâmetros, novas normas, para se movimentar. O que é experimentado como dúvida ou perplexidade no plano da vida social encerra um paradoxo que comporta a condição do ser humano. Fragilidade e capacidade resiliente coexistem. É o mesmo ser humano quem as experimenta. Uma opera como condição de possibilidade da outra; as duas pertencem ao mesmo nível de realidade. A resiliência implica persistir, provar variantes, afirmarse, sem deixar de reconhecer a fragilidade que é inerente à condição do ser vivo. Ela só pode se explicar pela característica normatividade do vivente; por contraponto, fragilização significa decréscimo dessa característica. Na literatura, o termo ‘resiliência’ tem diferentes acepções. Apresenta-se conceituado como: suportes sociais, fatores protetores, estresse, adaptação, superação, ajuste, capacidade de resistência etc38. Essas expressões são usadas como equivalentes da resiliência, mas evidenciam perspectivas analíticas, campos de aplicação e até posturas epistemológicas divergentes (ver Reppold et al.39), fato que pode exprimir deficiências teóricas. Talvez uma abordagem que considere o paradoxo existente entre fragilização e resiliência como unidade conceitual e metodológica possa resultar em um caminho promissor para superar essa limitação. O que é específico da resiliência é a capacidade afirmativa do ser vivo com assistência de um percurso criativo ou inovador, dentro dos limites que as circunstâncias permitem. Ser saudável é ter capacidade resiliente em qualquer nível. Canguilhem escreve: “O homem saudável não se escamoteia frente aos problemas... até mesmo falando fisiologicamente a sua saúde é medida pela capacidade de superar as crises orgânicas a fim de estabelecer uma nova ordem”32 (p. 152). A capacidade de afirmação do vivente humano expressa, no plano existencial, múltiplos domínios de intervenção, tais como: poder dizer, poder atuar, poder intervir no curso da própria existência, ou poder influir em outros protagonistas da ação34. No plano social, essa capacidade de afirmação emerge como uma condição de possibilidade que diz respeito à ordem material e simbólica (expressa em normas culturais, desenhos institucionais e relações de poder), que garante segurança aos indivíduos e coletivos, incluída a própria capacidade de agência(g). Vulnerabilidade, indivíduos e interdependência Para os humanos, a relação com o meio inclui formas de organização, sociais e institucionais, historicamente estabelecidas. Esse mundo social é possível porque existe uma dependência originária no convívio com outras pessoas. Norbert Elias40 afirma: [e]sta inclinação emocional profunda pelos membros da mesma espécie obedece a impulsos biologicamente prefigurados, mas extraordinariamente modificáveis através da aprendizagem, da experiência e os processos de sublimação. (p. 162)

Valores afetivos unem os seres humanos uns aos outros e formam parte constitutiva de seu mundo, inclusive do seu corpo. Uma perda afetiva ou a morte de um ser querido, por exemplo, produz experiências anímicas e psicossomáticas evidentes na existência dos indivíduos. Então, uma parte do corpo morre COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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em sentido simbólico e as fronteiras entre corpo físico e corpo emocional revelam-se inexistentes. Os seres humanos vivem na urdidura de relações de interdependência afetiva que denunciam, ao mesmo tempo, a dinâmica de relações de poder, na qual a existência humana está imersa. Relações contratuais também ocupam lugar importante na vida humana. Estas aparecem como uma exigência; são inevitáveis do ponto de vista de um eu, em contraponto com os relacionamentos afetivos. Como condição da existência, os humanos estabelecem relacionamentos de poder em equilíbrios mais ou menos instáveis de tipo variado, como os estabelecidos nas instituições (famílias, escolas, cidades etc)40. Relações de poder não podem ser entendidas unicamente por meio de atuações contratuais ou da ação de um domínio sem restrições. O uso da força e a violência não podem explicar tais adesões. A função primária da união entre os indivíduos na configuração de instituições é a proteção41. As instituições exprimem demandas psicossociais de segurança ancoradas em realidades biológico/existenciais profundas(h); nelas podem se gerar relações de interdependência recíproca em posições sociais hierárquicas de poder e submetimento. Por consequência, o poder de atuação (capacidade de ser e fazer) institui-se de modo não equitativo, o que possibilita a configuração de situações que conduzem ao estigma, à exclusão e à invisibilidade42; ou, em palavras de Ricouer, que conduzem à intimidação, manipulação e instrumentalização35; fatos estes que estabelecem relações empíricas, causais, com situações de insegurança e vulnerabilidade. Portanto, a vulnerabilidade no plano social se refere à existência de relações que limitam a capacidade de atuação das pessoas e que retiram os suportes institucionais de segurança social, ou seja, situações que negam o exercício efetivo de direitos e, portanto, insegurança presente e evanescência de projetos futuros.

Em síntese... A última década evidenciou um crescente interesse pelos estudos sobre vulnerabilidade em saúde e avanços significativos na sua conceituação com inegáveis aportes para as práticas sanitárias nela baseadas. Aliás, a análise da dimensão ontológica da vulnerabilidade pode iluminar o debate sobre os usos do conceito e contribuir para esclarecer questões ainda em aberto. Sob esse olhar, a vulnerabilidade se configura em uma dinâmica de interdependências recíprocas que exprimem valores multidimensionais – biológicos, existenciais e sociais. Uma situação de vulnerabilidade restringe as capacidades relacionais de afirmação no mundo, incluídas as formas de agência social, gerando fragilização. De outra parte, a existência humana é frágil porque é finita, mas, além disso, está imersa em permanentes processos de enfraquecimento consubstanciais às ordens de poder. Captar esta complexidade é um desafio tanto pelas implicações práticas no âmbito clínico ou da saúde pública quanto pelos desafios em torno da crítica geral das instituições sociais contemporâneas, ancoradas em um projeto biopolítico norteado pelo controle, que conduz a formas de exclusão, segregação e negação de direitos.

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Esta afirmação não autoriza desconhecer o processo histórico e social das instituições, mas essa história será sempre limitada quando se fazem apagamentos das dimensões bioexistenciais que lhe dão suporte.

(h)


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artigos

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Malagón-Oviedo RA, Czeresnia D. El concepto de vulnerabilidad y su carácter bio-social. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):237-49. Uno de los ejercicios teóricos de la Salud Pública se refiere a la necesaria y continua tarea de discutir los conceptos en los que se basan sus prácticas. Un análisis crítico sobre los usos del concepto de vulnerabilidad en salud, con base en una revisión sistemática, sirve de soporte para una discusión sobre su contenido, alcances y límites, en el sentido de fortalecer la potencialidad teórica y práctica del concepto y el diálogo entre las distintas áreas de conocimiento envueltas. El concepto de vulnerabilidad presenta alta capacidad heurística y aplicación diferenciada. En este artículo, se caracteriza con base en complejos procesos de fragilidad bio-social que muestran, de forma inextricable, valores biológicos, existenciales y sociales. Esta perspectiva considera la vulnerabilidad como dimensión ontológica constitutiva y constituyente de la vida humana que reclama distintos y complejos sistemas de seguridad.

Palabras clave: Vulnerabilidad en salud. Aspectos teóricos de la vulnerabilidad. Estudios sobre vulnerabilidad. Recebido em 03/07/14. Aprovado em 29/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0083

artigos

Estrutura, organização e processos de trabalho no controle da tuberculose em municípios do estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil* Natasha Ventura da Cunha(a) Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti(b) Maria Lúcia Freitas dos Santos(c) Vanusa de Lemos Andrade Araújo(d) Débora Medeiros de Oliveira e Cruz(e) Gabriela Fonte Pessanha(f) Pauline Lorena Kale(g) Antonio José Leal Costa(h) Cunha NV, Cavalcanti MLT, Santos MLF, Araújo VLA, Oliveira e Cruz DM, Pessanha GF, et al. Structure, organization and working processes within tuberculosis control in municipalities in the state of Rio de Janeiro, RJ, Brazil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):251-63. In 2011, the state of Rio de Janeiro presented the highest tuberculosis incidence rate nationwide. We conducted a qualitative study on the structure, organization and working processes within the tuberculosis control program (TCP), by means of thematic analysis on interviews with the TCP coordinators of 13 municipalities in this state. Decentralization of the TCP, through incorporation of its guidelines by the family health strategy (FHS) teams, demands reorganization of the working processes within the TCP. Continuous substitution of FHS professionals and the insufficient structure of the TCP impair tuberculosis control. In order to go beyond a control model based on specialized tuberculosis treatment services, the TCP needs to be integrated with all levels of the Brazilian National Health System and autonomy needs to be given to the coordinators, regarding decision-making.

Keywords: Tuberculosis. Public health. Health services administration. Qualitative research.

Em 2011, o estado do Rio de Janeiro (ERJ) apresentou a mais alta taxa de incidência de tuberculose do país. Realizamos uma pesquisa qualitativa sobre a estrutura, a organização e os processos de trabalho no Programa de Controle da Tuberculose (PCT), por meio de uma análise temática de entrevistas com coordenadores do PCT em 13 municípios do ERJ. A descentralização do controle da tuberculose – por intermédio da incorporação de suas normas pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) – exige a reorganização dos processos de trabalho do Programa. A substituição contínua de profissionais da ESF e a estrutura insuficiente do PCT prejudicam o controle da tuberculose. A superação do modelo baseado em um serviço de tratamento especializado requer a integração do PCT a todos os níveis do Sistema Único de Saúde, e atribuição de autonomia aos coordenadores, para tomarem decisões.

Palavras-chave: Tuberculose. Saúde Pública. Administração de Serviços de Saúde. Pesquisa qualitativa.

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* Elaborado com apoio do Projeto Fundo Global Tuberculose Brasil. (a,b,d,e,f,g,h) Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Av. Horácio Macedo, s/n, Próximo à Prefeitura Universitária da UFRJ, Ilha do Fundão, Cidade Universitária. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21941-598. natasha_ventura2@ hotmail.com; lourdes@iesc.ufrj. br; vanusalemos@ ig.com.br; debora. sanitarista@gmail. com; gfonte@uol.com. br; pkale@iesc.ufrj.br; ajcosta@iesc.ufrj.br (c) Curso de Graduação em Enfermagem e Obstetrícia, UFRJMacaé. Macaé, RJ, Brasil. marialf.santos@ gmail.com

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Introdução A tuberculose (TB) é, ainda hoje, um dos principais agravos à saúde a ser enfrentado em âmbito global. Em 2009, o Brasil ocupava a 18a posição entre as 22 nações responsáveis por 80% dos casos de tuberculose no mundo¹. Em 2011, o estado do Rio de Janeiro (ERJ) apresentou uma taxa de incidência de tuberculose de 72,3 casos por 100.000 habitantes, a maior do país, correspondendo praticamente ao dobro da média nacional². A maioria dos casos de tuberculose no ERJ concentra-se em treze municípios da Região Metropolitana, considerados prioritários pelo Fundo Global Tuberculose (FGTB) Brasil. A atuação do Programa Nacional de Controle da Tuberculose envolve estratégias que visam estender as ações de controle da doença, privilegiando a descentralização para a atenção básica, bem como a articulação com outros programas governamentais. Desta forma, amplia o acesso da população em geral e dos grupos populacionais mais vulneráveis às medidas de controle³. Na esfera municipal, o Programa de Controle da Tuberculose (PCT) possui uma coordenação responsável por: monitorar os indicadores epidemiológicos e o cumprimento de metas propostas nos pactos; coordenar e supervisionar a busca ativa de sintomáticos respiratórios e o controle de contatos; notificar os casos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), e acompanhá-los por meio do sistema de informação, gerando boletins de acompanhamento mensal; assegurar o diagnóstico; participar da operacionalização do tratamento supervisionado; da provisão de medicamentos; da articulação com as unidades de saúde, a fim de aperfeiçoar as ações de controle da doença; organizar a rede de laboratórios e capacitar as unidades básicas com ações de controle da TB e unidades de referência secundárias e terciárias³. Sendo assim, é necessário que os serviços de saúde municipais possuam estrutura organizacional adequada e suficiente para desenvolver a contento as atividades de controle da doença, decorrentes do trabalho coordenado entre pessoas, tecnologias e recursos4. Este artigo apresenta uma análise de aspectos estruturais e organizacionais relacionados às ações de controle da tuberculose nos treze municípios do ERJ considerados prioritários segundo o FGTB Brasil, complementando trabalho sobre sistemas de informação concernentes à tuberculose nos mesmos municípios5. Ambos resultam da pesquisa “Avaliação do sistema de informação da tuberculose nos 13 municípios de abrangência do Fundo Global Tuberculose Brasil no estado do Rio de Janeiro” (Edital Fundo Global Tuberculose Brasil/FGTB – Núcleo Fiotec/Ensp/Fiocruz/MS Nº 1/2009), aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IESC/UFRJ e da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro.

Metodologia Utilizou-se a metodologia qualitativa, baseada em entrevistas semiestruturadas, para apreender a visão dos coordenadores dos PCTs a respeito de aspectos estruturais, organizacionais, e dos processos de trabalho concernentes ao controle da TB nos serviços de saúde dos treze municípios de abrangência do FGTB no ERJ: Belford Roxo, Duque de Caxias, Itaboraí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Queimados, Rio de Janeiro, São Gonçalo e São João de Meriti. Foi elaborado um roteiro de entrevista voltado para o sistema de informação de tuberculose, cuja primeira pergunta “Como está organizado o Programa de Controle da Tuberculose neste município?” visava conhecer a organização do programa na esfera municipal, as atividades do PCT realizadas pelas diversas unidades de saúde, e a relação entre a coordenação do PCT e essas unidades. O roteiro continha, ainda, perguntas relativas à estrutura e à organização da coordenação do PCT no nível central, à análise e divulgação das informações sobre tuberculose, bem como ao treinamento e à capacitação dos profissionais para realização das ações previstas no programa. O último bloco de perguntas versava sobre a percepção do coordenador a respeito dos entraves existentes no PCT, em especial, as dificuldades relacionadas à coleta, ao registro e ao fluxo das informações.

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artigos

Foram entrevistados os coordenadores ou responsáveis pelo PCT nos 13 municípios e, no Rio de Janeiro, também a coordenadora do SINAN. As entrevistas foram realizadas no local de trabalho dos entrevistados, entre dezembro de 2009 e agosto de 2010, tendo sido gravadas e transcritas mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Desenvolveu-se um estudo exploratório utilizando-se a análise temática, modalidade da análise de conteúdo em que, a partir da leitura sistemática do material de campo (transcrições das entrevistas), se procede à identificação dos núcleos de sentido e categorias empíricas norteadoras da análise6. Neste artigo são apresentados os resultados referentes à estrutura e organização das ações de controle da TB nos serviços de saúde dos municípios; treinamento e capacitação para o desenvolvimento das atividades do PCT; e percepção e avaliação dos coordenadores sobre o PCT. Com base nas informações do censo de 2010, os municípios foram classificados segundo o porte populacional (Tabela 1), em três grupos: menor porte, com menos de duzentos e vinte mil habitantes; porte intermediário, com população entre duzentos e vinte mil e quinhentos mil habitantes; e maior porte, com mais de quinhentos mil habitantes. Visando preservar a confidencialidade, esta terminologia foi adotada na apresentação dos resultados, e o Rio de Janeiro foi incluído entre os municípios de maior porte5.

Tabela 1. População residente nos municípios prioritários para o controle da tuberculose no estado do Rio de Janeiro, 2010 Porte* Menor

Intermediário Maior

Município Japeri Queimados Nilópolis Mesquita Itaboraí Magé São João de Meriti Niterói Belford Roxo Nova Iguaçu Duque de Caxias São Gonçalo Rio de Janeiro

População** 91.933 131.163 154.232 159.685 210.780 218.307 439.210 441.078 455.598 767.505 818.432 945.752 5.946.224

Menor porte: menos de 220 mil habitantes; porte intermediário: entre 220 mil e 500 mil habitantes; maior porte: mais de 500 mil habitantes. ** Disponível em: http:// www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/RJ2010.pdf

*

Resultados Estrutura e organização das ações de controle da tuberculose Entre os municípios investigados, o profissional de enfermagem (seis) é o mais frequente na coordenação do PCT, seguido pelos médicos (três) e assistentes sociais (dois). Dois municípios não possuem um coordenador exclusivo do PCT. Em Belford Roxo, a Chefe da Divisão de Doenças Transmissíveis, e, em Duque de Caxias, a Chefe da Divisão de Programas, respectivamente uma geógrafa e uma médica, respondem pela coordenação do PCT. Quatro coordenadores são especialistas em pneumologia sanitária, quatro possuem formação em saúde pública (especialização, residência ou mestrado) e dois fizeram curso de gestão em saúde (Tabela 2).

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Tabela 2. Categoria profissional, tempo de permanência na coordenação e titulação dos coordenadores do Programa de Controle da Tuberculose (PCT) nos municípios prioritários para o controle da tuberculose no estado do Rio de Janeiro Categoria profissional do coordenador ou responsável pelo PCT

Tempo de permanência na coordenação do PCT (anos)

Enfermagem

Medicina

Serviço Social Geografia

14 10 4 2 1 1 8 8 1* Sem gerência formal 9 2 Sem gerência formal

Titulação dos coordenadores Sem informação Sem informação Especialização em Promoção da Saúde/ Especialização em Gestão em Saúde Especialização em Pneumologia Sanitária Especialização em Saúde Pública Especialização em Pneumologia Sanitária Especialização em Saúde Pública Curso de Gestão em Saúde Mestrado em Saúde Pública Residência em Saúde Pública Especialização em Pneumologia Sanitária Residência em Saúde Pública/ Especialização em Pneumologia Sanitária Curso de Informática

Município Nova Iguaçu Nilópolis Magé Queimados São João de Meriti Mesquita São Gonçalo Itaboraí Rio de Janeiro Duque de Caxias** Japeri Niterói Belford Roxo**

Antes de assumir a coordenação, foi substituta da gerente anterior por 11 anos. ** Responsável pelo PCT sem exercer, formalmente, a coordenação do programa.

*

Constata-se a qualificação dos coordenadores do programa na formação especializada por meio de pós-graduação. O tempo mediano de permanência na coordenação do PCT, nestes municípios, é de quatro anos. Cinco coordenadores exerciam a função há, no máximo, dois anos, e outros cinco há, pelo menos, oito anos, um dos quais há mais de 14 anos. Esses aspectos reforçam uma observação que se deu no decorrer do trabalho de campo: por um lado, o comprometimento dos profissionais envolvidos com as ações de controle da TB nos municípios, mas, por outro, a ausência de uma equipe com a qual compartilhar e dividir responsabilidades e atribuições. Em relação aos demais membros das equipes do PCT, os municípios de maior porte ou melhor organização incluíam outros médicos e enfermeiros, bem como técnicos de enfermagem, administrativos (digitadores) e de laboratório. O coordenador do PCT nos municípios de menor porte, ou com restrita estrutura organizacional, é um “faz tudo” do programa, responsável por todas as atividades que compõem o processo de atenção e controle da tuberculose. É ele(a) quem responde, em última instância, pelo provimento dos insumos (às vezes, até mesmo laboratoriais), pelo encaminhamento de material para o laboratório e pela devolução dos resultados nas unidades de saúde. A essas tarefas somam-se as funções relativas à análise da qualidade e consolidação das notificações, ao monitoramento e envio das informações para o nível estadual, e à produção de relatórios. “Atendo, eu faço consulta, eu faço a mesma coisa que todo mundo. Quando a técnica de enfermagem tá de férias eu assumo, eu venho pra segunda-feira e eu que assumo o papel dela, eu que lanço no livro, eu faço tudo. Então eu sou mais assistência do que coordenação”. (município de porte menor) “A gente liga pro celular da enfermagem pra saber se tem escarro, isso seria para o laboratório fazer, passar nas unidades e recolher, mas isso ainda não acontece, nós aqui do programa estamos assumindo mais essa tarefa”. (município de porte intermediário)

Ao comentar suas atribuições, a responsável pelas atividades do programa em um município de porte intermediário refere:

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artigos

“Você não tem nem noção... Tudo, tudo! Ver se não está faltando azul de metileno no laboratório, e eu sei que isso não é minha parte, [...] Se o paciente ficou sem medicação, isso não é problema meu... Isso é problema da farmácia”. (município de porte intermediário)

Deve-se sublinhar que, no Rio de Janeiro, a estrutura de coordenação do programa praticamente não difere da encontrada nos demais municípios, especialmente em relação à equipe, o que é insuficiente em uma cidade com mais de sete mil casos notificados de tuberculose anualmente, e mais de seis milhões de habitantes distribuídos em um território extenso, com longas distâncias entre o nível central e os serviços. De modo geral, a infraestrutura para a realização das atividades do PCT é bastante frágil. A escassez de insumos se estende a todas as atividades do programa, os coordenadores aludiram à falta de corante para pesquisa de bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR), falta de pote para coleta de escarro, e, até mesmo, à falta d’água como acontecimentos não tão inusitados quanto o esperado. Telefone, acesso à internet e carro são equipamentos compartilhados com outras coordenações e setores das secretarias municipais de saúde. É comum o uso de celulares pessoais dos profissionais das unidades para comunicação com a coordenação do PCT. Alguns utilizam computador, internet e e-mail pessoais, para enviar e receber, de casa, informações relativas ao programa; e, pelo menos, um técnico relatou a utilização de lan houses para enviar informações à Secretaria Estadual de Saúde: “Nós temos bastante impressora, não tem é tinta. Nós temos uma base de umas 10 impressoras, tudo sem tinta”. (município de porte intermediário) “A gente não tem estrutura nenhuma. Não tem água, não tem papel, não tem nada. Em relação à informação também, essas máquinas capengas, ele trouxe o HD da casa dele pra consertar pra gente poder ter, não tem memória, não aguentam gerar...”. (município de porte menor)

Em um município em que não há computador conectado à internet na sala do PCT, a coordenadora comenta: “Eu abro e-mail em casa [...] Quando eu quero responder alguma coisa, antigamente eu liberava o e-mail lá da saúde coletiva, mas todo mundo liberava o mesmo e-mail, então na hora de você abrir tinha e-mail de todo mundo, aí você perdia um tempo imenso para procurar o que era seu”. (município de porte menor)

Quanto à organização e funcionamento do PCT, é comum entre os coordenadores considerar, como descentralização do programa, a realização de tratamento diretamente observado (DOTS) nas unidades de saúde da família, e, em menor proporção, também em outros serviços de atenção básica (postos, unidades, ou centros municipais de saúde, a nomenclatura varia entre os municípios), não necessariamente acompanhada da descentralização dos instrumentos de registro, tais como o Livro de Registro de Sintomáticos Respiratórios, Ficha de Notificação/Investigação, Livro de Registro e Acompanhamento de Pacientes, ficha de contatos e quimioprofilaxia, entre outros. Assim, a descentralização do PCT está, em parte, vinculada à expansão da estratégia de saúde da família (ESF) nos municípios. Japeri é o único município em que o PCT permanece totalmente centralizado e, significativamente, também é o único em que não há unidades vinculadas à ESF. O PCT funciona em uma unidade mista distante do centro, o espaço físico é partilhado com a equipe do programa de hanseníase e há somente um turno semanal de atendimento por médico pneumologista. Nos municípios restantes, se encontra em andamento o processo de descentralização do tratamento supervisionado da tuberculose para as unidades de saúde da família e outras unidades de atenção básica, variando o número de serviços que assistem pacientes com tuberculose. A Tabela 3 apresenta as unidades de saúde com ações de controle da TB implantadas por município, segundo a informação dos entrevistados. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Tabela 3. Unidades de saúde e laboratórios com ações de controle da tuberculose implantadas nos municípios prioritários para o controle da tuberculose no estado do Rio de Janeiro*. Unidades de Saúde Município

Belford Roxo Duque de Caxias Itaboraí Japeri Magé Mesquita Nilópolis Niterói Nova Iguaçu Queimados Rio de Janeiro São Gonçalo São João de Meriti

Unidade de Saúde da Família 5 5 44 --62 10 1 36 3 7 54 179¥ 11

Unidade Básica de Saúde ----------6 9 4 9 3 90 -----

Laboratórios Unidade de Referência 2 1 1 1+ 1 1 1 2 1 1 1 2 1

Laboratório para baciloscopia

Laboratório para cultura£

1 1 1 1§ 1 1 1 6 2 1§ 14 2 1

--------------3 ----3 -----

Informações referentes a agosto de 2010 para o RJ e janeiro de 2010 para os demais municípios. + Tratamento centralizado. § Unidade terceirizada. ¥ Nem todas as unidades atendem pacientes com tuberculose. £ Os municípios que não possuem laboratório para realização de cultura o fazem no Laboratório Central de Saúde Pública Noel Nutels - LACEN/ERJ. *

Também há atendimento a pacientes com tuberculose nos hospitais (especializados, federais, estaduais, militares e universitários) situados no Rio de Janeiro e em Niterói, bem como no sanatório penal, no Rio de Janeiro. Em Niterói, o Hospital Getúlio Vargas Filho e o Hospital Ary Parreiras são referência, respectivamente, da Região Metropolitana II para tratamento de crianças e do ERJ para adultos. E o Centro de Referência Prof. Hélio Fraga, pertencente à FIOCRUZ/RJ, é referência nacional para tratamento de Tuberculose Droga-Resistente (TBDR). Todos os municípios possuem, pelo menos, um centro de referência secundária para atenção à tuberculose com presença de pneumologista. Essas unidades, além de assistirem aos casos de maior complexidade, recidivantes e infantis (quando há profissional especializado), também tratam pacientes que poderiam ser absorvidos pela rede de atenção básica. No Rio de Janeiro, os Centros Municipais de Saúde (CMS) e as policlínicas constituem a referência para os pacientes em retratamento por abandono ou recidiva, enquanto as unidades de saúde da família e os postos de saúde são responsáveis pelo tratamento dos casos novos. Todos os municípios possuem laboratório para realização de baciloscopia. Em Japeri e Queimados, a baciloscopia é realizada em laboratório terceirizado, dificultando o controle das atividades por parte do programa: “O laboratório é tão bom que eles não colhem amostra lá, fica de responsabilidade do PCT, então todo mundo que tiver pedido de escarro, tem que ir lá no PCT levar até 8:30h”. (município de porte menor ) “O que a gente queria? Colocar a coleta em cada PSF, só que como a gente tá com o laboratório terceirizado, só colhe uma vez por semana, por que demora um tempão pra chegar o resultado e a gente não tem veículo pra ir lá buscar o escarro [...]. Então o que acontece? Eles detectam o sintomático, anotam no livro de registro e mandam vir”. (município de porte menor)

Em Niterói, a baciloscopia é realizada em dois laboratórios ambulatoriais e quatro hospitalares, dos quais três fazem exame de cultura para o bacilo de Koch (BK), mas, se positiva, a mesma é

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encaminhada ao Laboratório Central de Saúde Pública Noel Nutels (LACEN/SESRJ), para realização do teste de sensibilidade. Apenas Rio de Janeiro e Niterói realizam cultura para BK em laboratórios próprios, nos outros municípios, a cultura para BK é realizada no LACEN/SESRJ (Tabela 3). Observou-se que a busca de sintomáticos respiratórios ainda não foi plenamente incorporada como uma atividade essencial para o controle da TB. Não faz parte da rotina dos serviços a solicitação de baciloscopia de escarro para todos os sintomáticos respiratórios, mas apenas para aqueles que apresentem história clínica e/ou outros sinais e sintomas compatíveis com TB. “Lá a gente faz tudo porque é a referência, [...] a gente só não consegue fazer busca ativa, só detecção ali no local, a gente vê alguém que tá tossindo ou alguma coisa, a gente aborda, conversa, mas não faz busca ativa”. (município de porte menor) “Esses cinco PSFs são capacitados pra isso, pra fazer a busca dos sintomáticos, então [...] quando [...] não tá tendo escarro durante uma semana, é por que eles não estão fazendo [...]. Mas essa dificuldade maior é nos PSFs”. (município de porte intermediário)

Vários fatores são alegados na tentativa de justificar o descaso em relação à busca de sintomáticos respiratórios: “O que é dificuldade, [...] a questão do 1% em cima da população deles [...], aí eles até falaram ‘ah, vamos produzir tuberculose’. Não é questão de produzir tuberculose, mas você tem uma população estimada que você tem que examinar pra você saber os possíveis, não é que você vai achar tuberculose naqueles ali, […] mas você tem que examinar uma quantidade maior”. (município de porte menor) “Por quê? Porque não se dá a devida atenção ao tossidor, embora na maioria das nossas unidades nós tenhamos uma faixa lá indicando ‘se você tem tosse há mais de três semanas...’ aquela coisa toda, mas nós sabemos que isto é bastante falho”. (município de porte maior)

Somente em um município foi relatada a implementação de estratégias para aumentar a busca de sintomáticos respiratórios: “Ano passado a gente fez uma grande campanha de sintomáticos. Porque campanha não é uma coisa boa, mas quando a coisa está meio morna a gente faz uma campanha, porque dá uma levantada no astral do pessoal. A gente fez uma campanha com busca a cada casa, a gente entregava um panfleto de casa em casa (os agentes comunitários)”. (município de porte menor)

Se a busca de sintomáticos respiratórios está em segundo plano em meio às diversas atribuições dos profissionais de saúde, o recolhimento de material para baciloscopia constitui uma atividade bastante irregular, sem uma normatização precisa quanto ao fluxo de coleta e envio de escarro para o laboratório. A falta de um fluxo definido de coleta e envio de escarro para realização de baciloscopia, bem como a demora na devolução dos resultados para a unidade, expressa a baixa prioridade desta atividade pelos gestores municipais. Com relação às culturas encaminhadas ao LACEN/SESRJ, os resultados demoram cerca de um a três meses para retornar, via e-mail. A dispensação de medicamentos é responsabilidade da coordenação do PCT e varia entre os municípios. Em Niterói e São Gonçalo, a liberação da medicação para as unidades de saúde está vinculada à notificação. O tempo transcorrido entre o encerramento dos casos acompanhados nas unidades e a chegada da informação no nível central, responsável pelo registro dos dados no SINAN, varia entre um mês (em Nova Iguaçu), seis meses (Duque de Caxias) a até um ano (Rio de Janeiro).

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Treinamento e capacitação para o desenvolvimento das atividades do PCT Com relação à capacitação de profissionais da rede, ao se descentralizar o programa, são realizados treinamentos, geralmente divididos entre profissionais de nível superior e de nível médio, auxiliares e agentes comunitários de saúde, abrangendo as diversas atividades do PCT. No entanto, os coordenadores referem que os treinamentos costumam ser condensados, com uma quantidade muito grande de informações novas transmitidas em curto espaço de tempo. Também foi enfatizado que a substituição contínua dos profissionais, especialmente da ESF, traz sérios prejuízos ao programa, pois só é possível manter o PCT nas unidades em que os profissionais foram treinados, inclusive médicos. Desse modo, por mais que sejam realizadas capacitações, nunca são suficientes, e se perpetua a necessidade de treinamento para os profissionais de saúde. No município do Rio de Janeiro, a coordenação refere, como uma das principais atividades da equipe do PCT, a organização e implementação de treinamentos.

Percepção e avaliação dos coordenadores sobre o PCT A deficiência de profissionais, tanto na esfera local quanto no nível central, foi o aspecto mais mencionado entre os entrevistados como um entrave ao PCT: “O mais difícil é você conseguir comprometer as pessoas, conseguir alguém que diga: ‘não, eu vou assumir isso dentro da unidade’; ‘eu vou tomar conta’ […] acho que esse é um dos maiores problemas. A unidade não se responsabilizar nem por seus próprios pacientes que estão abandonando”. (município de porte médio) “O nosso RH tá muito deficitário [...]. Ainda mais com os recursos humanos precários que nós estamos aqui vivendo. Nesse momento ainda tá havendo contratação, mas isso aí é um processo muito lento, e o programa não espera, a doença não tá esperando ‘ah, vou esperar primeiro a secretaria se estruturar’, não acontece isso, então a gente fica doidinho mesmo”. (município de porte médio)

O envolvimento dos profissionais foi recorrente na fala dos coordenadores, explicando tanto as dificuldades quanto os aspectos positivos do programa. Em Itaboraí, “a reestruturação dos recursos humanos foi o ponto crucial para o sucesso do programa” (coordenador do PCT). Questões de logística e estrutura precária, tais como equipamentos e insumos, comunicação e transporte, vieram em segundo lugar entre as dificuldades enfrentadas pelos coordenadores do PCT. A intermediação de interesses políticos na indicação de funcionários e na gestão da saúde, a remuneração insuficiente e a substituição contínua dos profissionais, também foram citadas como fragilidades: “Tem entraves nas três esferas. Entrave em nível de município, que se reflete no país todo, é essa instabilidade política. No Brasil cada um que senta na cadeira tem um processo criador que vai solucionar todos os problemas, que a gente sabe que não vai solucionar nada. Se mantivesse uma política pelo menos, bem planejada, já estaria ótimo para o povo, mas não é assim, quem senta na cadeira tem uma fórmula maravilhosa e isso não é aqui não, qualquer lugar que você vá. O discurso é dizer que o passado não prestou, todos que tiveram aqui até agora são muito ruins ‘vocês são muito ruins’. Só que ele tem os entraves todos, porque funcionário público não tem o que fazer, ele vai ter que conviver com essa gente toda, isso é em qualquer município [...] Quando você chega ao nível do estado, as indicações não são por competência, o amigo, companheiro de fé, vai ganhar o dinheiro X, raramente são indicações técnicas, um ou outro é indicação técnica. Uma nata de pessoas é de indicações políticas, partidárias e aí acho que isso é no ministério... Fora toda a corrupção, é só ligar a TV, técnico mesmo sobra pouco, os que sobram vão se desmotivando, se olhar hoje, esse grupo aqui é um grupo técnico”. (município de menor porte) 258

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Discussão A substituição contínua e a escassez de recursos humanos, somadas à insuficiência de insumos e equipamentos, destacaram-se entre as principais barreiras ao pleno desenvolvimento da coordenação dos PCT nos municípios prioritários do ERJ, de acordo com os coordenadores entrevistados. A despeito da existência de serviços ambulatoriais de referência e de laboratórios para realização de baciloscopia em todos os municípios prioritários, percebeu-se a necessidade de aprimoramento dos processos de trabalho afins ao controle da tuberculose, em especial no que concerne à busca de sintomáticos respiratórios, e tratamento precoce dos casos bacilíferos. Em curso em todos os municípios, exceto Japeri, a descentralização das ações de controle da TB para a atenção básica torna ainda mais imperativa a necessidade de reorganização dos processos de trabalho, assim como a redefinição de atribuições e responsabilidades em todos os níveis da rede de saúde, com vistas à ampliação do acesso e da adesão ao tratamento, elementos estes essenciais para o sucesso no controle da TB. Limitações e problemas de infraestrutura e organização do PCT também foram verificados em estudos realizados em diferentes regiões do Brasil. A indisponibilidade de viaturas exclusivas para a realização oportuna de visitas domiciliares foi destacada como um entrave à implementação da estratégia DOTS em municípios prioritários do interior paulista7. Dificuldades impostas pela escassez e pela substituição contínua de pessoal qualificado para o desenvolvimento de ações de controle da TB foram descritas no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e Salvador8, e em municípios prioritários de São Paulo7 e da Paraíba4,9. Um aspecto repetidamente mencionado em nosso estudo refere-se à necessidade permanente de treinamentos, devido à ausência de fixação dos profissionais de saúde aos postos de trabalho. A substituição contínua dos profissionais implica a realização recorrente de treinamentos, os quais, entretanto, não preenchem a lacuna decorrente do insuficiente acúmulo de experiência profissional. A qualificação do trabalho na área da saúde requer, além da formação específica, idealmente sob forma de educação continuada, o acúmulo de experiência profissional. Quanto mais amplo o espectro de situações vivenciadas, mais profundo e completo será o exercício e a reflexão por parte dos profissionais na interpretação e na aplicação das normas e recomendações afins ao controle da TB. Deve-se considerar que o comprometimento dos profissionais, referido como um fator crucial para o êxito do PCT, reflete, em certa medida, a atitude dos gestores com relação ao enfrentamento da tuberculose nos respectivos municípios. No estudo de Cunha et al.10, a falta de estrutura organizacional e logística, bem como a substituição contínua de recursos humanos e pouco comprometimento profissional, foram apontados como aspectos que dificultam a operacionalização das ações de controle da TB, assim como o processo de descentralização para a ESF em um bairro de São Gonçalo, RJ. Trigueiro et al.4 analisaram, segundo a perspectiva dos gestores de saúde, as práticas que norteiam as ações de controle da TB em municípios da região metropolitana de João Pessoa, PB. Os resultados apontaram a frequente substituição de profissionais como um agravante no planejamento das ações de controle da TB, além de formas inadequadas de contratação de profissionais de saúde. Apesar de a Constituição Brasileira recomendar a realização de concursos públicos para a contratação de profissionais de saúde, não estabelece isso como norma, deixando, a cargo das prefeituras, o mecanismo de contratação e o salário de seus funcionários, favorecendo, assim, o fisiologismo político e a contratação por conveniência, também observados por Cunha et al.10. A deficiência de recursos humanos no Sistema Único de Saúde (SUS) constitui um desafio cuja superação está vinculada à opção por um determinado modelo assistencial a ser consolidado11. Com relação ao vínculo empregatício dos trabalhadores da saúde, são recentes novas modalidades de contratação cuja efetividade poderá ser avaliada daqui há algum tempo. O controle da TB baseia-se, essencialmente, no diagnóstico oportuno e tratamento imediato dos casos bacilíferos, de forma a evitar a ocorrência de novas infecções. Porém, mesmo promovendo a ampla identificação de sintomáticos respiratórios e o tratamento oportuno dos casos bacilíferos, dada a elevada prevalência de infecção pelo Mycobacterium tuberculosis ainda vigente em regiões endêmicas, esperar-se-ia a ocorrência de grande contingente de casos por décadas à frente. O efetivo controle da TB requer, portanto, a garantia da continuidade do desenvolvimento das ações previstas no PCT COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a médio e longo prazos. A expansão da atenção básica, em curso nos municípios investigados, assim como em todo o país, pode configurar um cenário favorável ao controle da TB – e, também, de outras doenças de natureza crônica, como a hanseníase, o diabetes melito e a hipertensão arterial sistêmica, especialmente mediante a realização dos atributos da longitudinalidade e da integralidade na atenção à saúde, assim como do vínculo entre pacientes e profissionais, equipes e unidades de saúde. Nesse sentido, o estabelecimento de vínculo profissional constitui uma necessidade insubstituível para o controle da TB12,13, tendo em vista a (boa) organização do sistema de saúde, justamente por possibilitar o acúmulo de experiência profissional, em seus aspectos técnico, político e social. O fato de a busca de sintomáticos respiratórios não ter sido incorporada na rotina dos profissionais de saúde dos municípios estudados corrobora o estudo de Cardozo-Gonzales et al.14. Nesse estudo, a prática da busca de sintomáticos respiratórios foi analisada na visão dos profissionais da ESF em um município de médio porte do sul do Brasil. Os autores apontam a falta de envolvimento dos profissionais com esta atividade, além da dificuldade na realização de treinamentos. O estudo ainda ressalta o modo como são gerenciados os processos de trabalho no contexto da atenção básica, o que pode potencializar ou inibir a realização da busca de sintomáticos respiratórios. A simplificação desta atividade também foi questionada pelos autores, pois, na teoria, parece ser simples, mas, na prática, é uma atividade complexa que requer muito mais que conhecimento técnico, e, sim, a sensibilização e humanização dos profissionais que estão lidando diretamente com a população14. A busca de sintomáticos respiratórios é uma atividade-chave para que as equipes de saúde passem a ter o controle da TB incorporado à sua rotina diária de trabalho. Se esta busca não é feita, não há como completar o ciclo de detecção precoce, tratamento e cura. Trata-se de atividade preconizada pelo Ministério da Saúde para que os casos bacilíferos sejam detectados o mais precocemente possível, potencializando, assim, o tratamento e a possibilidade de cura. O controle da TB, sobretudo para interromper a cadeia de transmissão da doença, inclui diagnóstico oportuno e tratamento imediato dos casos bacilíferos. A oportunidade de tratamento e cura efetivas podem acontecer, também, mais tardiamente, mas só com a recomendação da busca de sintomáticos respiratórios é possível instituir, precocemente, o tratamento e reduzir o tempo em que os pacientes atuam como fonte de infecção para os suscetíveis. A inclusão da busca de sintomáticos respiratórios no rol de registros do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) pode constituir um incentivo para a sua realização nas unidades de saúde e, também, nas comunidades a elas vinculadas, corroborando, assim, o caráter ativo, por parte do PCT, na identificação oportuna de novos casos de tuberculose. Vale ressaltar a ausência de menção às ações e iniciativas de caráter intersetorial relacionadas ao controle da TB pelos coordenadores entrevistados. Embora não tenham sido destacadas no roteiro das entrevistas, as ações intersetoriais têm a sua importância reconhecida para o controle da TB, tendo em vista os inúmeros determinantes sociais, econômicos e culturais associados ao risco de infecção e adoecimento, assim como ao prognóstico de indivíduos doentes15. Este achado pode ser indicativo da preponderância ainda vigente do modelo tradicional de controle da TB, centralizado e vertical, em detrimento da concepção do modelo assistencial da vigilância da saúde, calcado no atributo da integralidade da atenção e na descentralização dos serviços de saúde. Novamente, a integração entre as coordenações dos PCT e da ESF pode servir como estímulo ao desenvolvimento e aprimoramento da intersetorialidade no controle da TB. Historicamente, a atenção à tuberculose no Brasil foi estruturada de modo fortemente centralizado e baseado no controle de todas as atividades do programa16. A implantação do SUS tornou premente a descentralização, e a expansão da ESF, apoiada na perspectiva da vigilância da saúde, pode ajudar a superar esse desafio15. A incorporação das ações de controle da TB pelas equipes da ESF encerra um grande potencial de ampliação da sensibilidade do PCT, em especial, para identificação de casos bacilíferos. Entretanto, a descentralização das ações do PCT para as equipes da ESF não resultou em melhoria do acesso ao diagnóstico em municípios das regiões Nordeste e Sudeste17. Por outro lado, a precariedade estrutural e organizacional encontrada em alguns municípios faz pensar no significado da descentralização. Essa situação evidencia duas alternativas de políticas de saúde, com riscos e benefícios peculiares. A descentralização, ao criar novas demandas, pode se apresentar como instrumento de pressão pela qualificação dos serviços e consequente melhoria da 260

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atenção; ou, no pior cenário, resultar na deterioração de uma atividade até então desempenhada em unidades especializadas, ainda que não plenamente. A manutenção do modelo centralizado pode resultar na limitação do SUS a espaços e territórios restritos, inviabilizando, a longo prazo, a concretização do sistema universal e igualitário instituído constitucionalmente. É preciso reconhecer a complexidade desse processo, a fim de identificar o que deve ser preservado, bem como as mudanças necessárias. Nesse contexto, deve ser considerada, como plausível, a alternativa de investimento no gerenciamento e fortalecimento de determinadas unidades com tradição no controle da tuberculose, e a sensibilização para a realização da busca de sintomáticos respiratórios e da estratégia DOTS nas demais.

Considerações finais A partir dos resultados, observa-se que, nos municípios estudados, a infraestrutura precária dos PCT constitui um entrave no enfrentamento da TB. A substituição contínua de profissionais e escassez de recursos humanos são fatores que prejudicam o processo de trabalho em saúde, contribuindo para as falhas encontradas nos PCTs investigados. Além disso, cada município tem o seu contexto e particularidades, que podem favorecer ou prejudicar o andamento de um programa ou atividade. A superação do modelo centralizado e dos processos de trabalho fragmentados passa pela integração do PCT a todas as esferas do SUS, em especial à atenção básica, assim como por uma maior aproximação entre coordenadores e gestores com vistas à ampliação da autonomia nos processos de decisão envolvendo tanto a alocação como o gerenciamento de recursos. Os principais entraves e limitações ao pleno desenvolvimento das ações de controle da TB identificados em nosso estudo apontam para a necessidade de uma atuação mais abrangente dos coordenadores dos PCT, para além das práticas gerenciais de ordem técnico-burocrática, centradas na racionalização e utilização de recursos4. Entretanto, falta, a estes técnicos, autonomia para orientar suas ações em uma perspectiva mais consequente. Pelo contrário, um traço comum às coordenações dos programas que constituem as linhas de ação sanitária em nível municipal, é o respeito aos limites estabelecidos pela contingência de recursos humanos, financeiros e tecnológicos disponíveis para os propósitos da atenção à saúde pública. O processo de construção, organização e consolidação do SUS é permeado por conflitos, disputas de interesse, diversidade de concepções sobre a causalidade do processo saúde-doença e visões divergentes a respeito da melhor forma de organizar e realizar a atenção integral à saúde da população brasileira. Essas diferenças se traduzem, em última instância, no financiamento do SUS, insuficiente para prover atenção universal, igualitária e integral, conforme estabelecido constitucionalmente. Nesse contexto, a tuberculose pode ser considerada expressão síntese da determinação social da doença, e em certa medida, as dificuldades históricas no seu enfrentamento evidenciam o grau de iniquidade presente em nossa sociedade.

Colaboradores Natasha Ventura responsabilizou-se pela revisão bibliográfica, concepção, elaboração e revisão do artigo. Maria de Lourdes Cavalcanti responsabilizou-se pela concepção, elaboração e revisão do texto. Maria Lúcia Santos, Débora Medeiros, Vanusa Lemos, Gabriela Pessanha e Pauline Lorena Kale responsabilizaram-se pela revisão do texto. Antonio José Leal Costa responsabilizou-se pela concepção, elaboração e revisão do texto e dos resumos.

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Agradecimento Ao professor Marcos Fernandes da Silva Moreira (ISC/UFF), pela redação do título e do resumo em espanhol e pela revisão dos títulos e resumos em português e inglês. Referências 1. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Informe Eletrônico da Tuberculose [Internet]. 2009 Jul [acesso 2011 Mar 30]; 9 (2). Disponível em: http://portal. saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/ano09_n02_inf_eletr_tb.pdf 2. Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de Saúde. Programa de Controle de Tuberculose. Inf Epidemiol [Internet]. 2013 [acesso 2013 Dez 26]. Disponível em: https://docs.com/RNI0 3. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): MS; 2010. 4. Trigueiro JVS, Nogueira JA, Sá LD, Palha PF, Villa TCS, Trigueiro DRSG. Controle da tuberculose: descentralização, planejamento local e especificidades gerenciais. Rev Latino-am Enferm. 2011; 19(6):1289-96. 5. Cavalcanti MLT, Carvalho RMG, Santos MLF, Sucupira ED, Pessanha GF, Medeiros DA, et al. Processos de registro e gerenciamento concernentes aos sistemas de informação da tuberculose nos municípios do estado do Rio de Janeiro prioritários segundo o Fundo Global Tuberculose Brasil, 2009/2010. Cad Saude Colet. 2012; 20(2):161-8. 6. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12a ed. São Paulo: Hucitec; 2010. 7. Santos MLSG, Villa TCS, Vendramini SHF, Cardozo-Gonzales RI, Palha PF, Santos NSGM, et al. A gerência das ações de controle da tuberculose em municípios prioritários do interior paulista. Texto Contexto Enferm. 2010; 19(1):64-9. 8. Campos CEA, Fonseca ACF, Pessini ML. Análise dos percursos assistenciais de pacientes com tuberculose por equipes de saúde em três capitais brasileiras. Que lições os profissionais podem tirar? Cad Saude Colet. 2012; 20(2):188-94. 9. Nogueira JA, Sá LD, França UM, Almeida SA, Lima DS, Figueiredo TMRM, et al. O sistema de informação e o controle da tuberculose nos municípios prioritários da Paraíba – Brasil. Rev Esc Enferm USP. 2009; 43(1):125-31. 10. Cunha NV, Cavalcanti MLT, Costa AJL. Diagnóstico situacional da descentralização do controle da tuberculose para a Estratégia Saúde da Família em Jardim Catarina - São Gonçalo (RJ), 2010. Cad Saude Colet. 2012; 20(2):177-87. 11. Fundação Oswaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030: diretrizes para a prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, Ipea, Ministério da Saúde, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; 2012. 12. Brunello MEF, Cerqueira DF, Pinto IC, Arcênio RA, Cardozo-Gonzales RI, Villa TCS, et al. Vínculo doente-profissional de saúde na atenção a pacientes com tuberculose. Acta Paul Enferm. 2009; 22(2):176-82. 13. Gomes ALC, Sá LD. As concepções de vínculo e a relação com o controle da tuberculose. Rev Esc Enferm USP. 2009; 43(2):365-72. 14. Cardozo-Gonzales RI, Costa LM, Pereira CS, Pinho LB, Lima LM, Soares DMD, et al. Ações de busca de sintomáticos respiratórios de tuberculose na visão dos profissionais de uma unidade de saúde da família. Rev Enferm Saude. 2011; 1(1):24-32. 15. Hino P, Santos CB, Villa TCS, Bertolozzi MR, Takahashi RF. O controle da tuberculose na perspectiva da Vigilância da Saúde. Esc Anna Nery. 2011; 15(2):417-21.

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Palabras clave: Tuberculosis. Salud pública. Administración de servicios de salud. Encuesta cualitativa. Recebido em 28/02/14. Aprovado em 10/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0331

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Planejamento Estratégico como exigência ética para a equipe e a gestão local da Atenção Básica em Saúde José Roque Junges(a) Rosangela Barbiani(b) Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli(c)

Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP. Strategic planning as an ethical requirement for primary healthcare teams and local management. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):265-74.

The premises that individuals cannot be cared for without meeting group needs and that attendance and management cannot be separated show that moral deliberations on clinical action regarding individual care cannot be dissociated from strategic planning by local teams and management. This planning needs to be integrated with surveillance, to detect health-related needs within the attendance context. It should be linked to municipal central management so as to make agreements regarding the intersectoral actions necessary for expanding individuals’ and populations’ healthcare. For moral decisions involving clinic deliberation to be made, certain conditions that depend on strategic planning in this field are required. It can be seen that the processes of moral deliberation proposed by Gracia and strategic planning proposed by Matus present cognitive, valuationrelated, operative and evaluative stages that are largely homologous. This paper ends with a complex concrete case of primary care in which these different stages were implicated.

Keywords: Primary healthcare. Ethics. Management. Surveillance. Strategic planning.

As premissas de que não se pode cuidar de indivíduos sem atender seus coletivos e atenção e gestão são indissociáveis, mostram que a deliberação moral da clínica no cuidado individual não pode dissociar-se do planejamento estratégico da equipe e gestão local. Esse planejamento precisa estar integrado com vigilância para detectar necessidades em saúde do contexto de atendimento, articulado com a gestão central do município para pactuar ações intersetoriais necessárias para o cuidado da saúde ampliada dos indivíduos e da população. Decisões morais de deliberação clínica exigem, para sua concretização, de condições e meios, dependentes do planejamento estratégico no território. Consultando o processo de deliberação moral proposto por Gracia e de planejamento estratégico por Matus, descobre-se grande homologia entre suas etapas: cognitivo; valorativo; operativo; avaliativo. Conclui-se com a apresentação de um caso concreto complexo de atenção básica onde estão implicadas essas etapas.

Palavras-chave: Atenção Básica à Saúde. Ética. Gestão. Vigilância. Planejamento Estratégico

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(a) Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS, Brasil. 93022630. roquejunges@ hotmail.com (b) Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Unisinos. Porto Alegre, RS, Brasil. barbiani@unisinos.br (c) Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. elma@usp.br

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Introdução As políticas públicas incentivam e a prática do atendimento demonstra a necessária integração entre clínica e vigilância nos serviços de Atenção Básica à Saúde (ABS), porque o foco é a resolutividade das necessidades em saúde de uma população adscrita. Essas necessidades precisam ser detectadas pela vigilância no âmbito sanitário daquele território e respondidas, individual e coletivamente, pela clínica e por ações intersetoriais sanitaristas. Essa constatação aponta para um primeiro pressuposto da atenção básica: não se consegue atender as pessoas individualmente em suas necessidades de saúde se elas não são cuidadas e acompanhadas no coletivo por meio de ações de prevenção e promoção para aquele território; e, por outro lado, não se protege e promove o coletivo em sua saúde se os indivíduos desse coletivo não são cuidados em suas necessidades individuais1. Esse primeiro pressuposto ancora-se num segundo, que é uma exigência do anterior: a indissociabilidade entre atenção e gestão2, porque, para se integrar o foco no indivíduo e no coletivo da atenção, é indispensável aproximá-la da gestão, já que é necessário integrar atividades de atendimento e de planejamento nos serviços. Contudo, essa integração entre clínica e vigilância na atenção básica e a consequente necessidade da aproximação entre atenção e gestão têm demonstrado dificuldades de execução, pois cada uma delas responde a lógicas diversas. A clínica está focada nas necessidades subjetivas do indivíduo e a vigilância nos riscos à saúde de um coletivo; a primeira obedecendo mais a uma racionalidade clínica de interpretação ampliada de uma queixa subjetiva, e, a segunda, a uma racionalidade epidemiológica e sanitarista de riscos que tem bases objetivas e científicas e, em muitos casos, consequências jurídicas. Por outro lado, a atenção caracteriza-se pela lógica do atendimento individual e coletivo aos usuários, enquanto a gestão está preocupada com uma lógica organizacional de racionalização e distribuição equitativa dos diversos recursos necessários à saúde. A aproximação e integração dessas racionalidades e lógicas diversas interagindo na atenção básica são um desafio, porque se trata de interfaces que necessitam ser construídas por usuários, profissionais e gestores, já que elas não estão dadas. Por isso, elas se tornam desafios éticos que se traduzem em exigências morais. Daí a necessidade de se refletir sobre o papel da bioética nessas interfaces das redes de atenção à saúde. A bioética apresenta-se como um processo de deliberação individual e coletiva, a fim de buscar a melhoria da vida humana individual e, sobretudo, coletiva. Na bioética, já está bem desenvolvida a aplicação do método de deliberação moral para a clínica hospitalar3,4, que pode ser considerada como mais voltada as melhorias individuais. Entretanto, a clínica adequada e ampliada para a atenção básica depende da vigilância, para definir as necessidades em saúde coletivas daquele território, e da gestão, para transitar nas redes de atenção à saúde. Em outras palavras, não basta deliberar moralmente, é necessário planejar estrategicamente, porque a deliberação da resposta depende de condições coletivas, organizacionais e intersetoriais construídas pelo planejamento. Por isso, uma bioética da atenção básica não pode reduzir-se às exigências morais do deliberar clínico, mas precisa incluir o planejar estratégico como exigência moral advinda das suas interfaces com a vigilância e com a gestão. Pode parecer que a questão ética se reduz à deliberação, porque se trata de um sujeito singular que, finalmente, toma a decisão e executa o melhor curso de solução; enquanto o planejar implica uma equipe, um sujeito coletivo, que participa da formulação do plano, das suas estratégias de ação e da sua consecução. As normas de assistência à saúde nos sistemas, como o brasileiro, implicam validez universal, então, estas devem se decidir com a efetiva participação de todos que podem ser afetados por elas, em espaços onde: os expertos são assessores; os políticos, gestores; os usuários, pessoas titulares de direitos humanos5. Tendo presente que a atenção básica não existe sem processos de trabalho em equipe e, portanto, sem um sujeito coletivo de corresponsabilidade, tanto na deliberação quanto no planejamento, pode-se entender que os problemas morais da atenção básica necessitam de uma reflexão ética na perspectiva do sujeito coletivo. O que é esse sujeito coletivo? Trata-se de um coletivo de subjetividades que detém um “idioma” comum, no sentido chomskiano, isto é, a competência social que permite a troca comunicativa entre 266

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indivíduos distintos de uma mesma cultura, e a representação e expressão criativa do pensamento desse contexto de relações6. Esses indivíduos se organizam reflexivamente em vista do alcance de um objetivo comum, e se subjetivam a partir das interações desse coletivo7. A equipe de atenção básica é um exemplo típico de um sujeito organizativo profissional, pois seus membros possuem: competência social comunicativa, organização estratégica para a consecução de um fim, e subjetivação a partir do seu coletivo. Esses elementos são a base para a consciência sanitária, isto é, o reconhecimento e o pertencimento à identidade e à corresponsabilidade nos processos de produção da saúde. Se esses atributos são centrais para a equipe da atenção básica, enquanto sujeito coletivo profissional, sua ética correspondente terá como referência moral os resultados e as consequências das suas ações implementadas, e não a boa intenção, pois se trata de uma ética da responsabilidade8,9. Essa dimensão ética aproxima-se do conceito de “ecologia da ação” de Morin10, isto é, qualquer ação escapa à vontade dos seus autores, porque sofre as retroações do ambiente no qual ela se insere, podendo ser desviada e distorcida do seu sentido original. Por isso, os efeitos de uma ação dependem não apenas da intenção do autor, porém, mais das condições do meio no qual ela acontece. Daí a necessidade de uma estratégia para concretizar os efeitos visados10. Por isso, não basta pura deliberação moral, é necessário complementá-la com planejamento estratégico do ambiente coletivo no qual acontecem e incidem as ações. Considerando esse cenário, o artigo tem o objetivo de discutir, no âmbito da bioética, a necessidade de a atenção básica complementar a deliberação moral da clínica com a exigência ética do planejamento estratégico da gestão local, articulado com as ações da vigilância em saúde e a macrogestão do sistema de saúde.

Deliberação moral na clínica Diego Gracia3,4 desenvolveu uma metodologia adequada e pertinente para a deliberação moral no âmbito da clínica. Parte da constatação de que toda deliberação clínica, exercício essencial para o médico chegar ao juízo clínico, é, ao mesmo tempo e sempre, uma deliberação moral, porque permanentemente estão implicados deveres, bens e valores da profissão, do profissional e do paciente que está sendo atendido. Nesse sentido, pode-se afirmar que toda deliberação clínica é sempre, também, uma deliberação moral. Para formular essa metodologia de deliberação moral na clínica, Gracia inspira-se na tradição aristotélica da fronesis, traduzida, para o latim, como prudentia, mas que seria melhor traduzir, nas línguas modernas, por discernimento ou deliberação. Gracia3,4 propõe três momentos do procedimento deliberativo: momento cognitivo, que aponta e sopesa os fatos que configuram o caso clínico; momento valorativo, que discerne e estima os bens e valores implicados no caso; e o momento da realização, que é o momento propriamente moral, que consulta e pondera os deveres que dizem respeito ao caso. Assim, o procedimento deliberativo, segundo Gracia, engloba uma deliberação sobre fatos a serem esclarecidos, sobre valores a serem identificados, sobre deveres para se encontrar o melhor curso de ação para esse caso concreto, e, por fim, sobre as responsabilidades, submetendo esse melhor curso de ação para o problema, às provas de consistência, viabilidade e legalidade11. Para Gracia3,4, a maior dificuldade para esse procedimento deliberativo encontra-se no terceiro momento, quando é necessário ponderar e deliberar o melhor curso de ação para o problema moral que se apresenta no caso clínico em análise. Na operacionalização do processo, a tendência é dar-lhe uma solução dilemática, fixando-se apenas em dois cursos extremos de ação, que convergem para os dois valores em conflito. Por exemplo, partindo do conflito de valores morais no caso clínico da necessidade de transfusão de sangue num paciente que seja testemunha de Jeová, o dilema estaria entre respeitar a autonomia do paciente, não dando sangue, ou aplicá-lo para salvar a vida do paciente por beneficência11. Para Gracia3,4, essa fixação nos cursos extremos de ação impede de ver e ponderar os cursos intermediários, transformando o que é um problema moral em um dilema moral. A deliberação é justamente uma metodologia que ajuda a não transformar, em dilema conflitivo, o que é um problema moral, exigindo a ponderação dos vários cursos de ação11. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Na atenção básica, esses diversos cursos de ação para resolver um problema dependem, para sua efetividade, de condições coletivas sanitaristas e intersetoriais, e da conectividade e acesso aos diversos pontos da rede de atenção à saúde. Por isso, não basta apenas deliberar para o caso particular, é necessário planejar estrategicamente para criar e dar as condições ambientais e estruturais para que esses cursos de ação possam ser assumidos e trilhados efetivamente por usuários e profissionais na busca da solução de uma necessidade em saúde. Na atenção básica, tanto o deliberar quanto o planejar dependem da cultura organizacional vigente, nos níveis macro e micro de gestão do sistema. A gestão local e central dos processos de trabalho e da organização dos serviços determina, em grande escala, a dinâmica de relacionamento da rede. A gestão participativa – com reuniões semanais, para discutir, planejar e pactuar o atendimento à população, a implementação da metodologia do apoio matricial, a criação de conselhos locais, a participação das equipes na gestão municipal e no controle social – é um curso de ação construtor da indissociabilidade entre atenção e gestão e da interação estratégica de corresponsabilidade necessária às deliberações morais resolutivas.

Planejamento estratégico na gestão Para uma ética da responsabilidade, agir moralmente pela deliberação significa sempre e, ao mesmo tempo, agir estrategicamente pelo planejamento, porque a referência moral se traduz nos resultados da ação visada. Nesse sentido, o planejamento estratégico torna-se uma exigência e um imperativo ético do sujeito coletivo da equipe de atenção básica, considerando a indissociabilidade entre atenção e gestão. Para introduzir o planejamento no âmbito da ética, é necessário definir como se entende a metodologia do planejar. O planejamento pode ser uma pura tecnologia ou ferramenta aplicada e direcionada para a construção de um plano de ação por quem tem expertise técnica, sem a participação de um sujeito coletivo, identificado com a realidade que se quer transformar. A lógica operante nesse modelo é a da razão instrumental. Ou o planejamento pode ser um dispositivo, onde o mais importante não é o produto, isto é, o plano ou projeto de ação, mas o processo, isto é, o caminho de sua produção, possibilitando uma nova subjetivação dos participantes, com suas potencialidades de estabelecer contratos e compromissos na seleção de prioridades em vista da consecução do fim visado. Nesse segundo sentido, o planejamento segue a lógica da razão crítica e propositiva, constituída pela prática contínua da equipe numa perspectiva teleológica de fins a construir, exigindo pensar a permanente interação entre gestão e processos de trabalho7. Só esse modelo de planejamento, pela sua dimensão de reflexividade e subjetivação, pode fazer parte de uma ética da responsabilidade. A discussão sobre o planejamento na área da saúde pública já tem um longo percurso de experiências e análises no Brasil12-16. A tendência que mais se adéqua à compreensão do planejamento como dispositivo para potencializar a participação é a do agir comunicativo, pois a racionalidade do processo gerencial vai além dos fins a alcançar, incluindo “o mundo da vida dos atores envolvidos numa postura dialógica que motive a construção de projetos que possam ser assumidos coletivamente como compromissos”17 (p. 357). Para esse processo, é importante levar em consideração as estruturas mentais da cultura organizacional dos ambientes de trabalho que influenciam as práticas rotineiras, e a possibilidade da construção de novas representações por meio da participação no processo comunicativo e da gestão por compromisso. Para isso, é essencial valorizar a reflexão para não cair numa padronização mecânica das práticas e distribuição fragmentada do poder, apontando para um modelo de gestão negociada. Nesse modelo, é indispensável estratégia de negociação cooperativa e competência para a liderança interativa17. Uma das principais referências dessa tendência para a explicitação da proposta metodológica é a obra clássica de Matus18 sobre planejamento estratégico situacional. Para esse autor, o planejamento depende de uma gestão descentralizada, a definição de objetivos a partir de problemas e a análise da viabilidade e da estratégia de sua solução. Ele prevê quatro momentos em seu planejamento estratégico situacional: explicativo, normativo, estratégico e tático-operacional. O primeiro momento 268

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é a seleção e análise dos problemas relevantes que pedem solução na visão dos atores envolvidos. O segundo momento é a definição da situação-objetivo futura que se quer atingir e quais são as operações necessárias para se obterem resultados, tendo presente os nós críticos dos cenários possíveis. O terceiro momento é a análise da viabilidade desse plano de operações em suas diferentes dimensões: política, econômica, cognitiva e organizativa. O quarto momento é a gestão e o monitoramento operacional da execução do plano16. A deliberação clínica e o planejamento estratégico como exigências éticas complementares da atenção básica A equipe de atenção básica, como porta de entrada do sistema de saúde, está preparada para desenvolver a prática clínica na resposta às necessidades em saúde da população, mas uma clínica ampliada de cunho generalista, que não se identifica com a clínica hospitalar e especializada e, portanto, não utiliza tecnologias duras mais sofisticadas para o diagnóstico e a proposta terapêutica. Por isso, pode parecer que ela não enfrenta conflitos e problemas morais por não usar e aplicar instrumentos tecnológicos e não lidar com situações-limite de início e fim de vida. Ao contrário, a atenção básica, em sua prática clínica, também enfrenta conflitos e problemas morais não caracterizados pela densidade tecnológica, mas pelas complexas interações longitudinais dos processos de saúde-doença, pelos determinantes sociais da saúde e suas expressões no território. Existe menos sensibilidade e consciência para a necessidade de deliberação moral sobre esses últimos problemas do que para os primeiros. O desafio neste contexto de cuidados primários é realizar uma deliberação moral em equipe, enquanto sujeito coletivo do processo de decisão e da corresponsabilidade clínica e sanitária. Quanto aos problemas a enfrentar, é importante ter presente que a atenção básica lida tanto com problemas-fim, que se referem ao estado de saúde dos indivíduos e da população adscrita, quanto com problemas-meio que dizem respeito ao funcionamento e acesso à rede de serviços de saúde e a outras instâncias intersetoriais, necessários para o equacionamento resolutivo das necessidades de saúde da população14,16. Para responder aos problemas-fim, é necessário conhecer as condições de saúde da população por meio da coleta de dados e da produção de informações, investigadas e desenvolvidas pela vigilância em colaboração com a atenção básica. Os problemas-meio precisam ser equacionados pela equipe local nas instâncias de gestão governamental e de controle social, com vistas à construção e pactuação das condições para o cuidado da população. Tanto as respostas aos problemas-fim, referentes às condições de saúde, como as soluções aos problemas-meio, concernentes aos serviços necessários à saúde da população, necessitam de planejamento, porque o seu equacionamento significa criar as condições organizacionais e materiais para um diagnóstico individual e coletivo adequado (vigilância) e para uma proposta de cuidado clínico e sanitarista integral (gestão). Portanto, o planejamento é a base para uma integração da atenção básica com a vigilância e para uma indissociabilidade dessa atenção com a gestão. Considerando as contribuições teórico-metodológicas de Gracia e de Matus, e seus respectivos objetos de estudo (deliberação moral e planejamento estratégico), propõe-se um quadro de referência para a integração dessas dimensões da deliberação e do planejamento nas ações da Atenção Básica e da Vigilância em Saúde, por meio da mediação de quatro momentos/etapas, conforme apresentado no Quadro 1. Em permanente movimento dialético, esses dispositivos constituem processos de construção e de desconstrução de fluxos de ação, cada um deles interferindo com sua especificidade: o cognitivo opera com o levantamento dos fatos e dos problemas implicados no caso que se quer resolver; o valorativo ausculta os valores que estão em conflito, que incidem nas respostas ao caso, e os bens/fins que se querem atingir na resposta; o operativo aponta as operações necessárias para encaminhar a solução do caso, ou seja, os cursos de ação; e o avaliativo acompanha e monitora a execução do plano de operações deliberado ou planejado, para dar conta da responsabilidade ética. Esses processos hão de se guiar por um tipo de racionalidade que permita a participação de todos os implicados no processo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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de deliberação dos problemas práticos, pois passamos da imposição à autogestão, o que requer hábitos deliberativos e de planejamento19. Com isso, se introduz o planejamento na ética e se fomenta a bioética como ética da responsabilidade.

Quadro 1. Homologia entre as etapas da deliberação e do planejamento Momentos/etapas

Deliberação moral (clínica)

Planejamento Estratégico (vigilância e gestão)

Cognitivo: fatos

Fatos relevantes para entender o caso clínico Problemas relevantes que pedem solução

Valorativo: valores

Valores implicados na decisão sobre o caso

Situação-objetivo, que é o fim que se quer atingir

Operativo: operações

Deveres que incidem na solução do caso

Plano de operações, que aponta para a sua viabilidade

Avaliativo: responsabilidades Responsabilidades assumidas na execução

Gestão e monitoramento da execução do plano

Para entender essa interação e implicação mútua entre deliberação e planejamento, nas ações de Atenção Básica e Vigilância à Saúde, toma-se como exemplo um caso concreto de atendimento de uma equipe que atua na atenção primária do SUS. Os nomes das pessoas são fictícios. Essa equipe atende Judite e sua família. Antes de mais nada, é necessário conhecer os fatos implicados no caso. É o momento cognitivo. Judite tem trinta anos, é solteira e sem filhos, e, há dez anos, convive com o diagnóstico de esquizofrenia. Sua mãe, Dona Vera, sofre de problemas de coluna e tem deficiência auditiva, e seu pai sofre de artrite e caminha com dificuldade. Judite tem uma irmã mais jovem, Marta, que não apresenta nenhuma patologia, levando uma vida independente, não se envolvendo com os problemas familiares. Ela formou-se em pedagogia e está procurando trabalho. Junto com a família vive uma tia-avó que sofre de diabete e teve a perna amputada. A família tem sua condição de saúde agravada pela situação de extrema vulnerabilidade social. Ocupa um apartamento cedido pelo Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), do qual receberam uma ordem de despejo por irregularidades, decisão que foi sustada pela justiça, devido à situação da tia-avó em cadeira de rodas e com muita idade, porque não tinham para onde ir. Após dois meses da retomada do apartamento, a tia-avó faleceu e a família estava, novamente, com o direito à moradia ameaçado. No processo de acompanhamento da usuária, outra situação-limite fora desvelada, colocando a equipe diante de diversos problemas morais. A equipe, que apostava no pai como membro cuidador, foi descobrindo, aos poucos, que ele boicotava o tratamento psiquiátrico da filha, porque abusava sexualmente dela. Nesse período e, na sequência de episódios de perda e sofrimento extremo, o pai de Judite veio a óbito. Tendo falecido a tia-avó e o pai, a família nuclear ficou reduzida a três pessoas: a mãe, Sra. Vera, com dificuldades de locomoção e com deficiência auditiva; Judite, com sofrimento mental crônico, e a sua irmã, Marta, professora. Nessa nova configuração familiar, agravada pela privação socioeconômica, a equipe da saúde da família começou a aproximar-se dessa filha mais jovem para tentar encontrar um apoio como cuidadora. O que significa deliberar clinicamente e planejar estrategicamente neste caso? Tendo explicitado os fatos, começa o momento valorativo que aponta para o fim que se quer atingir. Pela complexidade da situação apresentada, fica evidente que uma clínica baseada na avaliação queixa-conduta-prescrição está fadada ao fracasso. Mesmo a deliberação moral não pode reduzir-se ao dilema entre defender a dignidade de Judite e acusar o pai devido aos abusos, nem tampouco à 270

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omissão de ação, porque, na época, o pai era o único sustentáculo e arrimo possível. Com a morte da tia-avó e do pai, a deliberação moral assume novos contornos, porque abre outros cursos de solução cujas condições de realização dependem de planejamento estratégico. Nesses casos, as deliberações interpelam os limites da própria clínica e da moral, convocando a equipe a um olhar ampliado, que requer não só uma leitura atenta da rede-território, mas a compreensão das necessidades em saúde na ótica da esfera pública, isto é, no âmbito dos direitos humanos e de cidadania. Esse pressuposto implica conceber a saúde como direito que vai muito além do acesso aos serviços (esfera individual), para pensá-la em seu espectro mais amplo, de satisfação das necessidades humanas básicas, como: o trabalho, a moradia, a educação, o saneamento, o ambiente, o transporte etc. Isso só é possível com planejamento. A necessidade de uma visão ampliada como valor aponta para a definição de ações do momento operativo. No caso de Judite, os tradicionais encaminhamentos às redes não seriam resolutivos, pois os vínculos socioinstitucionais não estavam construídos. A equipe precisava ser a referência e vínculo para essa família que enfrentava tantas perdas e dificuldades. Por isso, o planejamento foi uma ferramenta potente para guiar a ação da equipe para além do espaço circunscrito da rede de saúde local. Integrando a microrrede da região, a equipe pôde articular uma gama de possibilidades/ dispositivos socioterapêuticos para a família. Em um primeiro momento, analisou-se a precariedade do atendimento prestado pelo CAPS da região, que estava com a equipe incompleta, inviabilizando a oferta adequada de serviços. As condições de saúde de Judite, vontade e impulsos preservados, permitiam que ela pudesse ser incluída em atividades terapêuticas laborais, e essa abordagem estava suspensa há um ano no CAPS. Representantes da equipe de saúde da família e agentes sanitários trouxeram dados atuais sobre o número de pessoas com sofrimento psíquico na região, descobertas pelo atendimento em saúde mental, o que gerou uma reivindicação encaminhada à Conferência Municipal de Saúde, que ocorria naquele semestre, e à Secretaria de Saúde do Município. Nucleouse uma comissão de representantes da microrrede (ONGs e serviços públicos) para monitorar os “itinerários” dessa demanda legítima e necessária à população. O plano terapêutico de Judite incluiu, ainda, a supervisão coletiva do agente de saúde com a equipe do CAPS, no sentido do apoio à adesão ao tratamento e à família. Quanto ao núcleo familiar, a deliberação da microrrede foi a de fortalecer o papel da irmã de Judite, como cuidadora responsável, mas, também, a de resgatar a importância da presença da mãe, no cuidado da família como um todo. Apesar de a deficiência auditiva dela ser severa, a família desenvolveu uma linguagem básica de sinais que permitia uma comunicação fluente entre si. A questão identificada como “situação-objetivo” era o empoderamento de dona Vera para retomar os cuidados com as rotinas domésticas, das quais havia sido afastada por muito tempo, pela iniciativa do marido. Com o passar do tempo e pela forma como a família lidou com suas dificuldades, ela foi se tornando um membro passivo e sem interferência na vida familiar. Avaliando esse histórico, a equipe entendeu que os impeditivos físicos da mãe de Judite, a deficência auditiva e uma hérnia de disco lombar, poderiam receber uma atenção especializada. Consultas com especialistas foram marcadas com o Centro de Referência da cidade. Uma diretora de escola do bairro, participante da microrrede, próxima da residência de dona Vera, abriu a possibilidade de sua participação no grupo de idosos que ocorria semanalmente, especialmente nas oficinas com acompanhamento do educador físico da escola, que tinha conhecimento da linguagem de libras. A assistente social do CRAS ficou de verificar a elegibilidade do caso para o recebimento do Benefício Previdenciário (BPC), o que proporcionaria, à família, uma melhoria de sua situação socioeconômica e, à mãe, uma função de coprovedora do lar. Uma vez definidas as ações planejadas, é necessário apontar responsabilidades que possibilitam o momento avaliativo. Para Marta, irmã de Judite, foi proposta a supervisão dos cuidados de saúde da família, com a precaução de não sobrecarregá-la com a responsabilização por todas as providências e encaminhamentos necessários. Marta estava trabalhando em uma escola municipal, e seu salário era o único meio de sustento da família. A equipe pactuou com Marta a corresponsabilização clínica, proporcionando a criação de um vínculo de confiança indispensável à resolutividade do caso. Além disso, Marta foi estimulada a desenvolver, com a irmã e com a mãe, atitudes educativas de apoio e autonomia, num processo de aprendizagem mútua de superação e resiliência. 271


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Marta, após três meses de contatos regulares com a Unidade de Saúde, mais confiante em relação aos propósitos da equipe e da rede, e com os resultados que já sinalizavam melhoras, se dispõe a participar das reuniões quinzenais da comissão local de saúde e, com isso, passa a ser uma usuária militante de seu território. Ela começa a perceber a dimensão coletiva da saúde e, com ela, que as necessidades abarcam dimensões culturais, epidemiológicas, históricas do território, e, ao mesmo tempo, os “carecimentos” individuais da ordem do adoecimento, do sofrimento e da cura. Nesse processo, traz para a sua escola o debate sobre educação em saúde, saúde e ambiente, e organiza, no final do ano, junto com a microrrede, a primeira Olimpíada da Promoção da Saúde. Motivada pela equipe de referência, ela traz sua família para colaborar na organização, fortalecendo, ainda mais, os vínculos comunitários. Um dos temas tratados foi à inclusão na escola, onde especialistas e educandos com deficiências puderam expor seus trabalhos e conquistas. Judite organiza a vinda dos usuários do CAPS a uma das palestras e, também, a exposição dos trabalhos com couro (bolsas, chaveiros, marcadores de livros) produzidos pelo seu grupo. Os movimentos construídos em um processo de planejamento participativo trouxeram à família a possibilidade de conviver novamente no bairro, não apenas em círculos viciosos de institucionalização, mas em um processo de ocupação do território como espaço social, como contexto dos processos de vulneração e de resiliência. Nesses espaços e relações, se construíram processos coletivos de produção de saúde e de vida. Com essa reflexão, chama a atenção que, apesar de os “problemas-meio” escaparem à capacidade resolutiva individual da rede local, a gestão da produção da saúde no território requer que sejam reconhecidos e tomados como uma responsabilidade sanitária, no sentido de politizá-los e trazê-los ao coletivo, à trama de relações sociais capaz de direcionar sua resolução. Esse foi o caso do CAPS da rede que foi devidamente reestruturado, podendo atender os usuários de forma integral. Nessa experiência, ainda pode ser destacado que, pelo protagonismo dos sujeitos coletivos instituídos, a Vigilância em Saúde da região passou a ter uma presença efetiva nas reuniões de microrrede e em todas as escolas municipais e estaduais do território, tornando-se fonte de elementos e informações para a deliberação e o planejamento rumo ao curso ótimo para solução do caso. O convite de Marta para que as equipes integrassem a Semana de Promoção da saúde em sua escola abriu muitas outras portas à Vigilância, para além do puro registro de eventos de morbidade, porque possibilitou outros acessos ao território. Trabalhar com a comunidade escolar ampliou o raio de ação das equipes, que passaram a ter agendas e demandas no âmbito da educação em saúde. A Atenção Básica e a Vigilância, conduzidas pelo “caso Judite”, com os recursos da deliberação e planejamento estratégico, descobriram outras formas e itinerários de produzir saúde, junto ao território vivo onde as necessidades brotam e demandam atenção e cuidado. Saúde e doença são fatos objetiváveis cientificamente, mas as ideias sobre saúde e doença são construções, individuais e coletivas, que variam segundo o modo de entender e gerir fatos, valores e deveres, implicados no caso concreto20. O processo saúde-doença, portanto, trata de fatos e valores/ fins ao mesmo tempo, que confluem na operacionalização da produção de saúde. É disso que a atenção básica deveria dar conta no território, tendo, as equipes, de lançarem mão de recursos da clínica e da vigilância, do planejamento e da gestão, que permitam plasmar as diferentes dimensões da realidade que possibilitam a decisão e a operação dos cursos de ação.

Considerações finais Essa experiência tornou-se um ícone para a equipe e para a microrrede, pois os processos de trabalho foram se orientando pela aprendizagem do planejamento coletivo realizado em torno das necessidades de uma família, como uma exigência ética da própria deliberação clínica. Apostar no potencial de uma família extremamente vulnerada social e clinicamente, exigiu planejamento estratégico por parte da equipe e da rede e disponibilidade de “querer fazer”, engajando e implicando técnicos, agentes e demais membros da rede para trilharem caminhos virtuosos de sabedoria prática, que foram se abrindo na processualidade do cuidado deliberado e planejado com corresponsabilidade. 272

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Diante dessa experiência, pode-se defender a tese de que a efetividade da deliberação moral da clínica, no âmbito da atenção básica, precisa incorporar, em seus cursos de ação, os processos de planejamento estratégico em interação com a macrogestão e com a vigilância em saúde.

Colaboradores José Roque Junges responsabilizou-se pelo tema, argumentos, discussão e escrita do artigo. Rosangela Barbiani responsabilizou-se pela discussão, elaboração do caso concreto e melhoria da redação do texto. Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli fez a revisão final e aperfeiçoou os argumentos e a redação do manuscrito. Referências 1. Ayres JRCM. Cuidado e humanização das práticas de saúde. In: Deslandes SF, organizadora. Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. p. 49-83. 2. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. A Humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília (DF): MS; 2004. 3. Gracia D. La deliberación moral: el método de la ética clínica. Med Clin (Barc). 2001; 117(1):18-23. 4. Gracia D. Moral deliberation: the role of methodologies in clinical ethics. Med Health Care Philos. 2001; 4(2):223-32. 5. Cortina A. Ética aplicada y democracia radical. Madrid: Tecnos; 1997. 6. Lefèvre F, Lefèvre AMC. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: Educs; 2005. 7. Campos RO. O planejamento no labirinto: uma viagem hermenêutica. São Paulo: Hucitec; 2003. 8. Weber M. A política como vocação. Brasília (DF): UnB; 2003. 9. Junges JR, Schaefer R, Prudente J, Mello REF, Silocchi C, Souza M, et al. A visão moral dos profissionais de uma Unidade Básica de Saúde e a Humanização. Interface (Botucatu). 2011; 15(38):755-62. 10. Morin E. O Método 6; ética. Porto Alegre: Sulina; 2005. 11. Zoboli ELCP. Bioética clínica na diversidade: a contribuição da proposta deliberativa de Diego Gracia. In: Pessini L, Barchifontaine CP, Hossne W, Anjos MF, organizadores. Ética e Bioética clínica no pluralismo e diversidade: teorias, experiências e perspectivas. Aparecida: Ideias & Letras; 2012. p. 149-63. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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planejamento estratégico como exigência ética ...

12. Teixeira C, Sá MC. Planejamento & gestão em saúde: situação atual e perspectivas para a pesquisa, o ensino e a cooperação técnica na área. Cienc Saude Colet. 1996; 1(1):82-103. 13. Schraiber LB, Peduzzi M, Sala A, Nemes MIB, Castanhera ERL, Kon R. Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando problemas. Cienc Saude Colet. 1999; 4(2):221-42. 14. Paim J. Planejamento em saúde para não especialistas. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 767-82. 15. Rivera FJU, Artmann E. Planejamento e gestão em saúde: histórico e tendências com base numa visão comunicativa. Cienc Saude Colet. 2010; 15(5):2265-74. 16. Rivera FJU, Artmann E. Planejamento e gestão em saúde: conceitos, história e propostas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. 17. Rivera FJU, Artmann E. Planejamento e gestão em saúde: flexibilidade metodológica e agir comunicativo. Cienc Saude Colet. 1999; 4(2):355-65. 18. Matus C. Política, planejamento e governo. Brasília (DF): Ipea; 1993. 19. Gracia D. Fundamentaciones de bioética. In: Como arqueros al blanco: estudios de bioética. Madrid: Triacastela; 2004. p. 105-28. 20. Gracia D. Construyendo la salud. In: Construyendo valores. Madrid: Triacastela; 2013. p. 203-10.

Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP. La Planificación Estratégica como exigencia ética para el equipo y la gestión local de la Atención Básica en Salud. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):265-74. Las premisas de que no se puede cuidar de los individuos sin atender a sus colectivos y de que atención y gestión son inseparables muestran que la deliberación moral de la clínica en el cuidado individual no puede separarse de la planificación estratégica del equipo y de la gestión local. Esta planificación precisa estar integrada con la vigilancia para detectar necesidades en salud del contexto de atención, articulada con la gestión central del municipio para pactar acciones intersectoriales necesarias para el cuidado de la salud ampliado de los individuos y de la población. Las decisiones morales de deliberación clínica exigen, para hacerse concretas, condiciones y medios dependientes de la planificación estratégica en el territorio. Al consultar el proceso de deliberación moral propuesto por Gracia y de planificación estratégica propuesto por Matus se descubre una gran homología entre sus etapas: cognitivo, valorativo, operativo, evaluativo. El artículo concluye con un caso concreto complejo de atención básica en donde están implicadas esas etapas.

Palabras clave: Atención Básica de la Salud. Etica. Gestión. Vigilancia. Planificación Estratégica. Recebido em 01/05/14. Aprovado em 09/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0221

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A violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil Anderson da Silva Rosa(a) Ana Cristina Passarella Brêtas(b)

Rosa AS, Brêtas ACP. Violence in the lives of homeless women in the city of São Paulo, Brazil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):275-85.

This survey aimed to bring out reflections regarding situations of violence in the lives of women who were living on the streets in the city of São Paulo, Brazil. During the fieldwork, the researcher interacted with about 100 homeless women and recorded perceptions in a field diary. Subsequently, 22 women were interviewed in a shelter. We gathered from the results that these women’s homeless condition was related to violence suffered within the domestic and family context, insufficient income to ensure their own and their children’s needs and breakdown of social ties. On the streets, they experienced violence in territorial disputes, gender oppression, lack of privacy, drug trafficking and hygienist practices. This study deconstructed the stereotypes of fragility and dependence among homeless women. In the relational process, they too were instigators of disputes over space and power.

Keywords: Women. Homeless people. Violence. Cartography.

Esta cartografia objetivou trazer à reflexão situações de violência na vida de mulheres em condição de rua na cidade de São Paulo, Brasil. Durante o trabalho de campo, o pesquisador interagiu com cerca de cem mulheres em situação de rua, sendo as percepções registradas em diário de campo. Posteriormente, 22 mulheres foram entrevistadas em um albergue. Depreendemos, dos resultados, que a situação de rua para as mulheres foi relacionada a: violências sofridas no contexto doméstico e familiar, a renda insuficiente para garantir o próprio sustento e o dos filhos, e a ruptura dos vínculos sociais. Nas ruas, conheceram a violência nas disputas territoriais, opressões de gênero, falta de privacidade, tráfico de drogas e nas práticas higienistas. O estudo desconstruiu os estereótipos de frágeis e dependentes para as mulheres de rua; no processo relacional, elas também protagonizavam disputas por espaço e poder.

Palavras-chave: Mulheres. Sem-teto. Violência. Cartografia.

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(a,b) Departamento de Administração e Saúde Coletiva, Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo. Rua Napoleão de Barros, 754. São Paulo, SP, Brasil. 04024-002. anderson.rosa@ unifesp.br; acpbretas@ ymail.com

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Introdução No Brasil, ainda é incipiente uma abordagem específica das peculiaridades das mulheres que vivem nas ruas, inclusive, na área acadêmica, na qual encontramos poucas publicações a respeito do tema. Elas estão em menor número nas ruas comparadas aos homens; a porcentagem de mulheres em situação de rua é de, aproximadamente, 18% no cenário nacional1 e de 13% na cidade de São Paulo, sendo 1.885 mulheres em um universo de 14.478 adultos ou idosos em situação de rua2. Em Nova York, uma pesquisa envolvendo 141 mulheres em situação de rua revelou um alto índice de violência física e estupro; 21 mulheres relataram terem sido estupradas; 42 foram estupradas e agredidas; e 62 foram agredidas, mas nunca sofreram abuso sexual. Grande parte das necessidades de assistência à saúde é decorrente desta realidade, seja para cuidar dos traumas físicos, ou dos problemas de saúde mental associados3. Estudo realizado em Los Angeles, com 974 mulheres em situação de rua, revelou que 13% relataram história de estupro no último ano. As mulheres que vivenciaram este tipo de violência apresentaram um pior estado geral da saúde: houve aumento dos sintomas ginecológicos, aumento do uso e abuso de álcool e outras drogas, e acentuado aumento dos casos de depressão4. Já na cidade de Toronto no Canadá, Ambrosio et al.5 verificaram que 43,3% das mulheres da amostra tinham sido vítimas de estupro no último ano, em detrimento a 14,1% dos homens. Estudo de coorte realizado em Toronto, no Canadá, acerca do risco de morte entre mulheres em situação de rua, analisou os dados comparando com outras publicações semelhantes das cidades de Montreal, Copenhagen, Boston, Nova York e Brighton. Os dados revelaram que essas mulheres, entre 18 e 44 anos de idade, têm entre oito e trinta vezes mais chances de morrer do que as mulheres da mesma faixa etária da população em geral. Para as mulheres com mais de 44 anos, este índice cai para, em média, 1,5 vezes mais chances de morrer. Essas mortes estão relacionadas a: doenças mentais, vício em drogas e overdose, infecção por HIV, tuberculose e traumas; e a uma maior dificuldade de acesso a atendimento e tratamento para a saúde de qualidade6. Daisk7, a partir de relatos de mulheres em situação de rua no Canadá, descreveu que, para elas, a saúde e suas necessidades de saúde tinham um sentido holístico. Relataram preocupações com doenças físicas, saúde mental, vícios e estresse. A vida nos albergues promoveu a propagação de doenças e falta de privacidade. A violência era premente em abrigos e nas ruas, levando ao medo constante. Houve sofrimento emocional sobre a exclusão social e despersonalização. Queriam trabalhar e serem alojadas em segurança. Sentiam-se presas em um sistema desumanizante. No Brasil, informações oficiais com relação à violência sofrida por mulheres de uma forma geral são subnotificadas. Temem denunciar o agressor, uma vez que não confiam na segurança que o Estado deveria lhes oferecer. O mesmo acontece com as mulheres em situação de rua, quiçá de forma mais grave, mas ainda não temos a real dimensão desse problema. Empiricamente, observamos que viver na rua, para as mulheres, perpassa pela necessidade de construírem relações que assegurem a viabilidade da sua vida cotidiana, uma vez que sozinhas são mais vulneráveis às violências presentes na rua. Não pretendemos colocar as mulheres na condição de frágeis e dependentes, tampouco como vítimas por estarem em situação de rua. A vida na/e da rua não permite clichê; ela é múltipla, é complexa, é lócus de conflito e contradição social; aliás, viver na/e da rua per si é uma violência e escancara a desigualdade de direitos dentro de uma sociedade. Este artigo é um recorte temático da tese de doutorado “Mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo: um olhar sobre trajetórias de vida”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo8. Foi construído com o objetivo de trazer à reflexão situações de violência na vida de mulheres em condição de rua, quiçá subsidiar a crítica sobre esta questão, que engloba três grandes temas que, quando juntos, evidenciam a desigualdade social: mulheres, sem-teto, violência.

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Percurso metodológico

A pesquisa foi realizada por meio do método da cartografia, que visa acompanhar um processo, mais do que representar um objeto. O cartógrafo quer estudar a vida em movimento, quer analisar o processo de constituição de novas realidades, pois paisagens sociais são cartografáveis. Na esfera micropolítica, valoriza os devires, imprevisíveis e incontroláveis, que transfiguram, imperceptivelmente, a paisagem vigente9. A pesquisa de campo para o cartógrafo requer a habitação de um território que, em princípio, ele não habita. Nesta medida, a cartografia se aproxima da pesquisa etnográfica. O pesquisador cartógrafo participa da vida das pessoas que estuda, modificando e sendo modificado pela experiência10. A cartografia utiliza a análise foucaultiana do discurso, na qual devemos ter o compromisso de considerar duas manifestações do discurso: o enunciável e o visível. O enunciável é composto pela palavra, pela língua e pela escrita. Já o visível é constituído pelas práticas sociais e pelos objetos criados para conduzir o comportamento do sujeito11. Sendo assim, neste estudo, nos atentamos não apenas para os discursos das mulheres com as quais interagimos, mas, sobretudo, para a produção de significados e devires que o próprio território da rua produz ao ser habitado por pessoas. O estudo foi construído em dois cenários. O primeiro foi desenvolvido nos logradouros da região central da cidade de São Paulo no período de maio de 2010 a março de 2011. Foram escolhidos os três distritos com maior quantidade de pessoas em situação de rua: República, Sé e Santa Cecília, todos localizadas na região central da cidade. O segundo, em um Centro de Acolhida que abrigava homens e mulheres em situação de rua, entre abril e julho de 2011. Está localizado nas proximidades do centro da cidade e é denominado Centro de Acolhida tipo II, pela prefeitura de São Paulo, uma vez que funcionava 24 horas. O serviço tinha capacidade de abrigar 172 homens e cinquenta mulheres, divididos em oito dormitórios masculinos, e um dormitório feminino. Pelas anotações do diário de campo, na primeira fase do estudo, houve observações e/ou interação com cerca de cem mulheres. Já no equipamento social, entrevistamos 22 mulheres, de um universo de 49 que estavam abrigadas naquele período. A opção em gravar apenas as entrevistas das mulheres que estavam no albergue se deu pela dificuldade em realizar esta ação nos logradouros da cidade. O barulho, a falta de privacidade, as interferências de pessoas que transitavam e a timidez pela exposição eram fatores que julgamos comprometer a qualidade da coleta de dados. Os únicos critérios de inclusão para realizar as entrevistas foram: ser mulher, ter mais de 18 anos de idade, e estar em situação de rua. Vale salientar que as narrativas gravadas não divergiram das que foram registradas em diário de campo. A habilidade em dialogar com essas mulheres, buscando a imersão no nosso objeto de estudo, foi construída gradualmente. Certamente, sem a observação sistemática de suas vidas nas ruas, não teríamos a sensibilidade para apreender os devires presentes em seus discursos. No que diz respeito aos procedimentos éticos inerentes às pesquisas científicas na área da saúde, bem como a vigilância rigorosa das condições de utilização das técnicas e a sua adequação ao problema posto, informamos que estiveram presentes em todas as etapas do estudo. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo.

Resultados Constatamos que as histórias de vida pregressas à situação de rua, apesar de possuírem fortes pontos de conversão, mantiveram, em si, suas individualidades. São vidas permeadas por: pobreza, experiências de violências, transtornos mentais, dependência de álcool e outras drogas, falta de amor e rupturas dos vínculos familiares e sociais. Cada mulher que conhecemos vivenciou, no mínimo, duas dessas situações.

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A violência figurou, nos discursos, como tema transversal e de grande impacto na deteriorização das relações sociais que contribuíram para o ingresso à vida nas ruas. Muitos foram os relatos de violência praticada pelos próprios parceiros. Essas mulheres adquiriram certa tolerância a formas não físicas de violência. Quando questionadas a respeito das violências que sofreram, nas ruas ou fora delas, relataram, quase sempre, situações de agressão física e/ou sexual. Mas, no decorrer de suas falas, inúmeras outras situações de violências psicológicas, verbais, negligências são relatadas como fatos de menor importância, mesmo sendo responsável por grande sofrimento. “O que aconteceu foi que ele me deu uma facada embaixo do peito, e eu fui para o hospital. No hospital depois que me trataram, que eu estava com os pontos tudo, a assistente social veio conversar comigo e perguntar como tinha acontecido aquilo. E ai eu conversei com ela, e toda hora ela falava – mas essa é a sua escolha, depois que você ficar boa vai voltar para casa? E toda vez que você volta, você volta com um problema. Você vai bem, depois volta porque ele te bateu, ou volta porque ele te botou para fora, ou volta porque ele te esfaqueou. Ai eu falei que não ia mais, e realmente não fui mais. Não fui, converso com a minha família normal pelo telefone, mas não fui mais e estou na rua”. (Paula, 41 anos, dez em situação de rua)

Entender a sujeição, às vezes prolongada, de um relacionamento conjugal pautado pela violência exige uma análise cuidadosa das condições de vida que agem sobre a respectiva família. Apesar da violência e do sofrimento, a maioria das mulheres teve dificuldade de enfrentar e reverter sua própria situação de vida. Apontaram a falta de independência financeira para o seu sustento e para o dos filhos, e a falta de apoio familiar e/ou institucional para enfrentar essa situação. Muitas tiveram dificuldades para trabalhar, seja pela proibição do parceiro ou pela necessidade de cuidar dos filhos. Viviam sob ameaças de violência e até de morte, fato que as imobilizaram e perpetuaram seus sofrimentos ao lado do agressor. Também relataram que o amor que tinham ou que tiveram pelo parceiro nutria a esperança de que a violência era um fato passageiro e que seria superado pelo casal. Para algumas dessas mulheres, a vida na rua foi a saída encontrada para se livrar da violência doméstica. Para outras mulheres, o uso de drogas foi apontado como o principal responsável pela situação de vida nas ruas. Gradualmente, deterioraram seus vínculos familiares; comprometeram sua responsabilidade em relação ao trabalho, estudo, cuidado aos filhos; deixaram-nas mais expostas à violência e a criminalidade; além de mais vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e prostituição. O vício em drogas criava um ciclo que se retroalimentava e, progressivamente, degradava as condições de vida da mulher. O desfecho do consumo de drogas ilícitas, quase sempre, foi a perda da guarda dos filhos, que gerava sofrimento e tristeza, que aumentava o consumo de drogas e a vulnerabilidade social da mulher. “Aí mataram ele [companheiro]. O moço chegou drogado no assalto, ai ele foi tentar acalmar e levou um monte de bala. E ai depois disso eu comecei a passar pelos abrigos. Bom eu estou resumindo porque a história é muito longa e triste e eu não gosto nem de lembrar”. (Vanessa, 34 anos, gestante, dois anos em situação de rua, três filhos)

As mulheres descreveram as principais formas de violência física vividas nas noites em que pernoitaram nas ruas. A primeira foi a violência praticada por pessoas ou grupos intolerantes com a situação de pobreza vivida pelas pessoas em situação de rua; relataram histórias de agressão e morte de forma cruel – a violência pela própria violência. A segunda foi a violência praticada entre as próprias pessoas que se encontravam na rua, e tinham como principais motivações: as dívidas com traficantes, disputas por espaço, pequenos furtos, infidelidade conjugal e desavenças pessoais. A terceira, um tipo de violência planejada, de cunho higienista, praticada por policiais, pessoas contratadas por comerciantes ou moradores que se sentiam prejudicados pela presença das pessoas em situação de

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rua nos arredores dos domicílios, comércios, monumentos e cartões postais da cidade. Por último, a violência sexual, relatada com frequência pelas mulheres que participaram do estudo, quase sempre, praticada por homens, em situação de rua ou não, e com potencial de causar danos físicos e mentais irreparáveis na mulher. “A noite dormia na rua, às vezes nem dormia. Às vezes ficava acordada a noite inteira com medo. Como já passou várias vezes na televisão, gente, mendigo que estava dormindo na calçada e passou as pessoas e botou fogo nele, tudo. Fora outras coisas também que pode, tem homem ou mulher também que pode te abusar, ou matar por nada”. (Vitória, 25 anos, oito em situação de rua) “Já, já fiquei na rua. A noite que eu dormi na rua eu me senti como uma barata. Eu não consegui dormir, eu vi um cara deitar na praça e eu fiquei por ali toda assustada”. (Paula, 41 anos, dez em situação de rua)

O universo das usuárias de crack possuía características próprias. As mulheres relataram ficar concentradas em regiões específicas do centro da cidade, onde o acesso à droga era garantido. Geralmente, todo o dinheiro que conseguiam, seja por trabalho, benefício social, doação e/ou roubo era consumido em drogas. Com o tempo, deixavam de se preocupar com a higiene, alimentação e descanso. Nesta situação, potencializavam-se as situações de violência, uma vez que ocorre entre os próprios usuários da droga, entre os usuários e os traficantes, e entre os usuários e policiais.

(c) Termo derivado da palavra paranoia, comumente utilizado na rua para designar pessoas em estado avançado de dependência de drogas, sobretudo o crack.

“Era para mim não estar nem aqui hoje nesta mesa contando da minha vida, era para mim ter morrido mesmo porque para a gente que mora na rua é mais fraco que papelão, e a gente quando é nóia(c) fica ainda pior. Tem algo na gente que quando você fuma quer sempre mais e mais e mais, ai você não come, você não dorme, você não para, fica para lá e para cá na brisa”. (Madalena, 24 anos, dois em situação de rua)

As limitações impostas pelas regras de cada serviço e as dificuldades de convivência causavam insatisfação em algumas mulheres. Eram obrigadas a adequarem seus hábitos e costumes de cuidado com o corpo, higiene, alimentação, entre outros, em compatibilidade com as condições que os serviços lhes ofereciam e com as regras que tinham. “É triste, é cruel porque você tem que dividir o espaço com as outras mulheres. Elas não te respeitam. Se a luz é para ficar acesa elas querem que apaga. Na hora de dormir elas começam a gritar, a falar palavrão, brigar, discutir. Começam a jogar coisas pela janela. A gente tem que ter privacidade, e aqui você não tem. Para elas tudo é puxar uma faca. Você não pode falar nada que elas já vêm com esse palavreado”. (Beatriz, 42 anos, seis em situação de rua) “Eu tenho essa convicção de que estou em um regime semi aberto prisional. É isso que eu sinto, eu estou presa. Presa por horários, presa por nãos, presa por pedir, pedir eu posso, por favor”. (Daniela, 33 anos, nove meses em situação de rua)

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Também ouvimos relatos de violência física e ameaças praticadas pelos próprios parceiros de relacionamentos que começaram na rua. Por medo e por gostarem do agressor, essas mulheres se sujeitavam a manter este tipo de relação. “Ele me batia ali perto do bagageiro, ali perto da mesa, ali perto da sala de televisão todo mundo via. E os outros falavam pra mim, vai falar pro monitor e eu ficava com medo dele fazer alguma coisa comigo. Então, eu ficava quieta”. (Juliana, 49 anos, mais de dez em situação de rua)

Ao contrário do que imaginávamos encontrar, as mulheres não relataram iniciar um relacionamento no intuito de terem alguém que as protegesse, para isso, cunhavam apenas amizades. Relacionavamse sexualmente quando se sentiam atraídas, quando eram conquistadas ou conquistavam, quando sentiam desejo.

Discussão A partir dos resultados encontrados e dos caminhos teórico-conceituais que percorremos, propusemos, aqui, uma possibilidade, dentre tantas outras, de compreender situações de violência, sentimentos, dificuldades e devires que compartilhamos junto às mulheres que fizeram parte do estudo. Sabemos que todo conhecimento produzido é resultado de um jogo de compromissos, posturas e ideias. Ele aparece como efeito do choque e afrontamento de experiências heterogêneas que, ao lançar feixes de luz sobre horizontes, esclarece certos contornos e, ao mesmo tempo, sombreia outras paisagens. E, neste sentido, todo conhecimento é sempre um desconhecimento12. Este estudo reforçou o desafio de superar a concepção acerca da situação de rua como decorrência direta da falta de moradia e renda. Em consonância com Snow e Anderson13, a análise das trajetórias, percursos e histórias de vida relatadas complexifica e, ao mesmo, tempo, constata que há um conjunto de ações e fatos, componentes estruturais e biográficos, que, conjugados, acabaram conduzindo a mulher à situação de rua. Nas trajetórias de vida das mulheres em situação de rua, destacamos os embates de forças e poderes no contexto familiar. Parentes, companheiro e/ou companheira tentaram exercer funções disciplinadoras sobre suas vidas. Cerceavam suas escolhas e não contribuíam, ou, até mesmo, dificultavam o alcance da autonomia. Colocar a mulher na condição de dependência reiterava e reforçava o poder exercido. Falamos de disputas de poder no âmbito simbólico, mas, também, físico. Muitas das mulheres que conhecemos traziam, na mente e no corpo, as marcas de violências sofridas. Para Foucault14, relações matrimoniais apresentam resquícios de jogos agonísticos entre os envolvidos. Movimentos de disputas de poder em forma de reciprocidade ou de igualdade versus o desejo de manifestar a superioridade sobre o outro. No processo relacional, a mulher também protagonizava a disputa por espaço e poder. Chegava a apoiar-se nos estereótipos de fragilidade para subverter situações a seu favor. Mas, na medida em que expunham suas contrariedades e resistiam à dominação, violentavam e eram violentadas. Estas dinâmicas de vida, permeadas por manifestações descomedidas de força, saturavam-se pelo desgaste dos corpos e mentes. Neste sentido, algumas mulheres que ouvimos chegaram ao limite das violências que conseguiram suportar no contexto doméstico e/ou familiar. Escolheram, por falta de outras opções, abandonar o lar e tentar a vida nas ruas, apontando para a fragilidade da execução da Lei Maria da Penha. Esses dados assemelham-se aos encontrados em outros estudos15,16, em que a situação de rua para a mulher era, frequentemente, o resultado de agressões e violências, dentre elas, a sexual, praticada no contexto doméstico e familiar. A ruptura desses vínculos sociais e a não-existência de outros suficientemente fortes para subsidiar a reorganização da vida, somada à escassez de recursos financeiros e a ausência de instituições que lhe garantissem segurança e proteção, moldaram seu 280

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trajeto de vida até a situação de rua. Desta forma, julgamos necessário transcender a discussão sobre a situação de rua para as mulheres a partir do prisma das vulnerabilidades de renda e habitação. Assim como Frangella17, ouvimos histórias de vida contadas com uma cronologia irregular, mas que denotava os mecanismos de inteligibilidade criados pelas narradoras para significar suas trajetórias. Com o decorrer da conversa, os tempos dos discursos começavam a se sobrepor, possibilitando delinear os eventos e sentimentos presentes nas histórias de vida. Em alguns casos, sobretudo para as mulheres que estavam há mais tempo nas ruas, notamos tendências à construírem uma história adaptativa, resiliente, que valorizava a capacidade de encontrar soluções para situações extremas18. E, com isso, valorizavam um saber feminino de rua. A situação de rua, quase sempre, foi narrada como decorrência de eventos específicos. Houve a valorização dos fatos mais marcantes que antecederam a perda ou abandono do lar, em detrimento a uma sequência progressiva de fragilizações e rupturas sociais. Algumas, desde a infância, careceram de referências familiares, de cuidado e amor. Quase sempre, deram mais relevância às carências subjetivas e sentimentais do que às privações materiais, mesmo que estas também tenham permeado sobremaneira suas condições de vida. Nesta perspectiva, Ralston19 reforça a importância de ouvir, das mulheres em situação de rua, suas próprias necessidades, e entender as marcas que suas trajetórias de vida deixaram no processo. Como ponto de convergência nas trajetórias de vida, as mulheres partilharam da insuficiência no âmbito das capacidades de renda, em manterem seus espaços domésticos, suas casas20. Mesmo que abandonar o lar tenha sido uma opção, não encontraram saídas para reconstrução de outro. Alcançar a liberdade e autonomia sonhada outrora, que encorajava desbravar o mundo da rua, se mostrou mais difícil do que previam. A partir do recorte gênero, depreendemos que homens e mulheres apresentaram diferenças substanciais nas formas que vivem e internalizam a situação de rua8,21. Dentre elas, destacamos que, para o homem, a rua foi o desfecho de uma condição terminal de ruptura e degradação social; neles mantinham-se vivos o desejo de retornar às condições de vida perdidas21. Já para algumas mulheres, representou uma solução inicial para situações de violências e insatisfações com o espaço doméstico. Não nutriam o desejo de voltar para o lar perdido ou abandonado, mas de construir outro. Enfim, a experiência de terem sido vitimizadas permitiu a elas conferir significados a sua experiência e constituir a si mesmas22. Assim como em Frangella17, encontramos a violência como um dos elementos intrínsecos ao universo das moradoras de rua – seja implícita ou explícita. A violência pode ser enfocada nos conflitos territoriais, nas práticas sexuais ou opressões de gênero entre os próprios habitantes de rua, nas intervenções materiais e simbólicas agressivas concretizadas pelos agentes urbanísticos, ou no discurso, no plano da ofensa recorrente dirigida a esse segmento, alimentando o ciclo estigmatizante de sua imagem. A despeito da violência vivida nas ruas por mulheres, encontramos, neste estudo, uma maioria que optou em garantir sua própria segurança – o que contrariou os achados de Tiene23, que apontaram certa vinculação necessária a um ou mais homens na rua para proteção. Subverteram, de certa forma, estereótipos de frágeis e dependentes. Apontaram outra concepção sobre relacionamentos conjugais nas ruas. Escolhiam seus parceiros por atração física, desejos sexuais e de afeto, por afinidade de objetivos de vida, ou por semelhanças nos modos de vida na rua. Reforçaram a ideia de poderem escolher, e até trocar de parceiro com facilidade, pela quantidade superior de homens vivendo nas ruas. Nesta conjuntura, eram menos tolerantes às agressões praticadas pelos companheiros. Não receavam mais a perda do espaço doméstico, como outrora. No entanto, relataram temor e dificuldade para romper com uma relação violenta quando ameaçadas de morte. Dentre os modos de vida adotados pelas mulheres em situação de rua, destacamos as usuárias de crack e habitantes da cracolândia como as mais expostas e vulneráveis às violências. Uma vez que usar crack nas ruas era mais que uma dependência química, era a incorporação de modos de vida específicos24. Encontravam-se inseridas em contextos complexos de: tráfico de drogas, disputas por territórios, estratégias lícitas ou ilícitas para conseguirem dinheiro e manterem a dependência, prostituição, com descuido ao corpo e à saúde. 281


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Este foi o único grupo de mulheres que, de forma substancial, se associou a um ou mais homens para garantir segurança e proteção. Na relação, compartilhavam, com o(s) parceiro(s) ou pessoas do convívio, o dinheiro para consumir o crack. Em geral, tinham pouca afinidade a se associarem a outras mulheres. Cada mulher mantinha certo repertório de estratégias e vínculos sociais que lhe garantia a manutenção do vício e segurança. A vulnerabilidade deste grupo de mulheres não residia, apenas, nas dinâmicas intrínsecas aos modos de vida do crack. Sobretudo, eram alvos da discriminação e intolerância social frente ao uso de drogas e habitação de pontos específicos da cidade. Somam-se a coerção do Estado, ações de grupos de intolerância ou segurança privada que, frequentemente, assassinam as pessoas em situação de rua. É o instante extremo em que representações e práticas levam à exclusão do outro, tido e havido como encarnação da periculosidade e, portanto, passível de ser eliminado25. Desta forma, compreender a situação de rua para mulheres perpassa pela necessidade de se relevarem as dinâmicas de poder e violência nas quais estão inseridas. Sendo que, conforme apregoa Foucault26, os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Sendo que o poder não existe isoladamente, sempre se constitui por uma prática ou relação de poder.

Considerações e caminhos a percorrer Enquanto profissionais que assistimos esta população, devemos estar atentos ao impacto que os modos de vida na rua têm sobre o processo saúde-doença-cuidado para estas pessoas. Este estudo reforçou as nossas crenças quanto à prática de um cuidado ético, ontológico, que tenha a plasticidade de respeitar as vontades e de se adaptar às realidades de cada um. A complexidade da situação de rua para as mulheres demanda a ampliação do próprio conceito de cuidado, incorporando, em sua essência, a interdisciplinaridade e intersetorialidade. A convivência com estas mulheres que estavam em situação de rua ampliou a nossa visão em relação à problemática da violência no espaço urbano. Denunciou que, apesar das peculiaridades do universo feminino relacionadas às suas necessidades, desejos e capacidades, não existe, de maneira consistente, a inclusão dessas diferenças nas políticas e programas de atenção à população em situação de rua. Tampouco há estudos sobre diferentes formas de violência que acometem essas mulheres. Defendemos um maior entendimento do fenômeno para ampliar a discussão junto aos diferentes atores envolvidos no processo de formulação de políticas, estratégias assistenciais e de empoderamento social. A Lei Maria da Penha representou um avanço na tentativa de coibir a violência familiar e doméstica contra as mulheres, entretanto, ainda precisa ser cumprida com mais rigor. Mulheres vítimas de violência precisam de proteção efetiva para sentirem-se encorajadas em denunciar o agressor em meio às ameaças e riscos de serem novamente violentadas e até mortas. Para tal, a resposta do Estado e da justiça precisa ser mais ágil na punição do agressor, e a mulher ter, à disposição, alternativas para se livrar da violência doméstica, na ausência de apoio familiar e autonomia de renda, sem que a vida nas ruas lhe figure como única possibilidade. Precisamos incluir, no cuidado às pessoas em situação de rua, possibilidades de saída desta condição de vida, sempre que elas desejarem. Fato que exige sinergia, no mínimo, entre as políticas e ações das áreas de assistência social e saúde. Bem como, a incorporação de redes formais e informais de assistência oferecidas por outros setores da sociedade civil e estatal, que também englobam: circuitos ligados à religião, arte, cultura, educação, trabalho, esportes, movimentos sociais e políticos, dentre tantos outros. As somatórias dessas ações convergentes podem aumentar as chances de alternativas às ruas para essa população. No que tange à área da saúde, em especial a Atenção Básica, defendemos a ampliação da Estratégia da Saúde da Família (ESF) especial para atendimento da população de rua. Em seus poucos 282

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anos de atuação na cidade de São Paulo, são notáveis os avanços, sobretudo, na garantia do acesso aos serviços de saúde e incorporação dos modos de vida na rua nas práticas de cuidado. Destacamos a necessidade de se flexibilizarem os horários de atendimento das equipes. Ações noturnas, sobretudo nos albergues, ampliariam a cobertura da população e o impacto das ações de promoção à saúde. A nosso ver, o recém-lançado modelo nacional de consultórios de rua, apesar de representar um avanço nas cidades que estão iniciando uma abordagem específica à população de rua, pode representar um retrocesso para São Paulo se não incorporar, em suas estratégias, o cuidado longitudinal. Associado ao trabalho da atenção básica, é preciso ampliar a rede de cuidado específica à saúde mental, direcionando ações aos problemas e contextos sociais mais frequentes nas ruas. Nesta área, o maior desafio é o tratamento da dependência ao álcool e outras drogas, uma vez que essa doença está relacionada ao ingresso e cronificação da situação de rua para muitas pessoas. Cremos que os equipamentos destinados às pessoas em situação de rua devem contribuir com práticas locais de caráter comunitário; serem menores, destinados a um número menor de pessoas no intuito de favorecerem a convivência, troca de experiências e somatória de potencialidades. Grandes instituições possuem o risco de massificar suas ações, tendendo à terceirização e a impessoalidade. Este trabalho demonstrou diferenças substanciais entre as causas do fenômeno “situação de rua”, modos de vida, fontes de sofrimento e cuidados ao corpo entre mulheres e homens. Desta forma, tais diferenças precisam ser consideradas na criação e/ou adequação dos espaços e ações destinados às mulheres em situação de rua.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas da produção do manuscrito. Referências 1. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Meta Instituto de Pesquisa de Opinião. Sumário Executivo. Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua. Brasília (DF): Meta Instituto de Pesquisa de Opinião, SAGI, 2008. 2. Prefeitura do Município de São Paulo. Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Censo e caracterização socioeconômica da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo [Internet] [acesso 2014 Set 29]; 120. Disponível em: http:// www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/cesoecaracteriz.pdf 3. D’ercole A, Struening E. Victimization among homeless women: implications for service delivery. J Com Psychol. 1990; 18(1):141-52. 4. Wenzel SL, Leake BD, Gelberg L. Health of homeless women with recent experience of rape. J Gen Intern Med. 2000; 15(1):265-68.

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a violência na vida de mulheres ...

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Rosa AS, Brêtas ACP. La violencia en la vida de mujeres que viven en la calle en la ciudad de São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):275-85. Esta cartografía tuvo el objetivo de plantear la reflexión sobre situaciones de violencia en la vida de mujeres que viven en la calle en la ciudad de São Paulo, Brasil. El encuestador interactuó con casi cien mujeres que viven en la calle, siendo las percepciones registradas en un diario de campo. Posteriormente, se entrevistó a 22 mujeres en un albergue. La situación de vivir en la calle para las mujeres está relacionada con violencias sufridas en el contexto doméstico y familiar, la renta insuficiente para asegurar el propio sustento y el de los hijos y la ruptura de los vínculos sociales. En las calles, conocieron la violencia en las disputas territoriales, opresiones de género, falta de privacidad, tráfico de drogas y en las prácticas higienistas. El estudio desconstruyó los estereotipos de frágiles y dependientes para las mujeres que viven en la calle; en el proceso de relaciones, ellas también protagonizaban disputas por espacio y poder.

Palabras clave: Mujeres. Vivir en la calle. Violencia. Cartografía.

Recebido em 18/03/14. Aprovado em 07/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0564

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Atuação do psicólogo em situações de desastre: reflexões a partir da práxis

Ana Cecília Andrade de Moraes Weintraub(a) Débora da Silva Noal(b) Letícia Nolasco Vicente(c) Felícia Knobloch(d)

Weintraub ACAM, Noal DS, Vicente LN, Knobloch F. Psychologists’ actions in disaster situations: reflections based on practice. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):287-97.

From a series of work experiences in disaster situations, especially in the mountainous region of the state of Rio de Janeiro, Brazil, in early 2011, this paper aims to present some reflections regarding the actions of psychologists in the context of disasters. It begins with a brief historicalinstitutional summary of this issue in Brazil and then presents some conceptual and practical reflections on mental health in this regard. Lastly, it discusses the principles and guidelines for interventions in disaster situations, with the backdrop of the scenario in the state of Rio de Janeiro in January 2011. The aim is to argue that interventions by psychologists in the context of disasters need to be linked with interventions of other types, contextualized and detached from the notion of trauma as the main operator in the clinical approach.

A partir de uma série de experiências de trabalho em situações de desastre, notadamente na região serrana do Rio de Janeiro, Brasil, no início de 2011, este artigo pretende contribuir com a reflexão a respeito da atuação do psicólogo em um contexto de desastres. Inicia-se por uma breve retomada histórico-institucional da questão no Brasil, para, então, apresentar algumas reflexões conceituais e práticas da saúde mental a esse respeito; e, por fim, discutir princípios e diretrizes de intervenção em situações de desastre, tendo como pano de fundo o cenário fluminense de janeiro de 2011. Pretende-se, com isso, argumentar que a intervenção do psicólogo num contexto de desastres deve ser articulada com outras instâncias, contextualizada e descolada da noção de traumatismo como principal operador da clínica.

Keywords: Disasters. Emergencies. Mental health. Humanitarian action. Health Care.

Palavras-chave: Desastres. Emergências. Saúde Mental. Ação humanitária. Cuidado em Saúde.

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Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, sala 1007. São Paulo, SP, Brasil. 05508-010. ana. cecilia.moraes@usp.br (b) Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, campus Universitário Darcy Ribeiro. Brasília, DF, Brasil. noaldebora@gmail.com (c) Psicóloga. São Paulo, SP, Brasil. nolasco. leticia@gmail.com (d) Departamento de Psicodinâmica, Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. feknobloch@gmail.com (a)

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Introdução Este artigo busca refletir sobre a atuação do psicólogo em situações de desastre. Para tanto, percorre uma breve recapitulação das publicações e análises sobre desastres nos últimos anos, tanto no Brasil quanto no exterior, bem como sobre o papel da saúde mental nesses contextos. Em seguida, apresenta um relato de uma intervenção realizada na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011, como exemplo para um breve debate sobre eixos fundamentais do trabalho dos profissionais de saúde mental – notadamente o psicólogo – neste tipo de situação. Ao fazer esse percurso, este artigo visa contribuir de maneira crítica com o crescente campo de reflexão e prática sobre os diversos momentos que envolvem a atuação em situações de desastre no Brasil, em particular, no campo da saúde mental. Conforme Blanchot1, o desastre é um fenômeno que – do ponto de vista individual e coletivo – nos atravessa, nos arrebata, nos excede: não nos permite alcançá-lo totalmente, dá-se como um algo para além do que é possível pensar e representar naquele momento, exigindo um tempo e uma distância para ser, talvez, compreendido e elaborado. Nomeia-se como desastre aquele tipo de acontecimento trágico que é, por definição, coletivo, que envolve uma comunidade e/ou uma localidade. O que o termo ‘desastre’ circunscreve? Pode-se percorrer essa definição a partir, por exemplo, do histórico jurídico-institucional sobre o tema no Brasil. A preocupação com os chamados socorros públicos a situações de calamidade pode ser encontrada no país desde a sua primeira carta constitucional, de 1824, ainda no período do império2. Essa preocupação irá se repetir em todas as cartas constitucionais subsequentes, porém foi apenas na década de 1940, em meio à Segunda Guerra Mundial e vendo-se tomando partido no conflito, que o governo brasileiro criou um órgão responsável pela proteção civil e pela atuação em situações de emergência e calamidade pública. Desativada ao final da guerra, a Defesa Civil foi reestabelecida institucionalmente em meados de 1960, em decorrência de diversos episódios graves de seca na região nordeste do país e seguidos episódios de enchentes, sobretudo no então estado da Guanabara. Foi na década de 1970 que a Defesa Civil começou a constituir-se como órgão perene, não apenas vinculado a respostas assistenciais a desastres internos. Desde então, envolta em crescente debate nacional e internacional sobre o tema dos desastres, a Defesa Civil no Brasil veio se constituindo nos âmbitos federal, estadual e municipal2. Atualmente vinculada ao Ministério da Integração Nacional, a Defesa Civil é pensada como um sistema que envolve órgãos e entidades: da administração pública federal, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e entidades públicas e privadas de atuação significativa na área de proteção e defesa civil, sob a coordenação da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, órgão do Ministério da Integração Nacional3,4. Pretende-se propor um conjunto de ações de prevenção, resposta e recuperação cujo objetivo é evitar e minimizar desastres, socorrendo a população e retomando a normalidade². Da perspectiva internacional, ainda na década de 1990, passou-se a valorizar a dinâmica da comunidade no sentido de minimizar os desastres e recuperar as perdas e danos, atentando-se para aspectos de vulnerabilidade econômica e social. Investiu-se, por exemplo, em estratégias de ação para a redução das vulnerabilidades, por meio da educação das comunidades. A Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu os anos de 1990 a 1999 como a Década Internacional de Redução dos Desastres5. Na sequência, a conferência de Hyogo, em 2005, consolidou e promoveu estratégias de redução dos riscos e de desastres no âmbito internacional6. Essas estratégias buscam salientar a importância de perceber e atuar em todo o ciclo que envolve o desastre: a prevenção, a mitigação, a preparação, a resposta e a recuperação. Há, então, uma tentativa de refletir sobre os riscos, atuais e futuros, e sobre o papel das instituições e da sociedade em evitar novos desastres, trabalhando articulada e participativamente com as comunidades mais vulneráveis. Tanto as mudanças internas na concepção e institucionalização da Defesa Civil no Brasil quanto os debates internacionais são marcados pela constatação de que, apesar de os desastres não serem novos para a humanidade, é notória a crescente compreensão de que muitos elementos contribuem para a 288

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existência de desastres, entre eles, as mudanças climáticas globais e a crescente vulnerabilidade das comunidades, provocada pela urbanização sem planejamento, pelo aumento da população global, das zonas de risco e das epidemias, além da crescente degradação do meio ambiente7. A modernidade é, então, equiparada ao aumento dos desastres, já que está intrinsecamente relacionada com a produção de riscos8,9. Conforme o órgão específico para desastres nas Nações Unidas, nas últimas duas décadas, mais de 200 milhões de pessoas foram afetadas por desastres, entre eles: enchentes, ciclones, furacões, tufões e deslizamentos de terra10. No caso do Brasil, pode-se observar que, nas últimas duas décadas, houve um aumento da ocorrência de desastres, de 8.671, nos anos 1990, para 23.238, na década seguinte, segundo dados governamentais11. A fim de categorizar um fenômeno por “desastre”, a proposta atual da Defesa Civil é relacionar indicadores, dimensões e magnitude desse fenômeno, para possibilitar a elaboração de planos e estratégias compatíveis com a demanda real. Assim, a nomenclatura ‘desastre’ relaciona-se com a magnitude do impacto e com a capacidade existente no local para lidar com ele2. Valencio et al.12 (p. 5) sintetizam esse conceito: “[...] é, antes de tudo, um fenômeno de constatação pública, de uma vulnerabilidade na relação do estado com a sociedade diante o impacto de um fator de ameaça que não se conseguiu, a contento, impedir ou minorar os danos e prejuízos”. Em outro trabalho, Valencio, Siena e Marchezini8 salientam que o significante ‘desastre’ precisa ser enunciado como crise, como ocorrendo em um tempo e em um contexto social, levando em conta, não menos do que os elementos quantitativos, o ponto de vista dos afetados pelo acontecimento. Já Quarantelli13 afirma que o desastre não é apenas um ‘acidente mais grave’ do que usualmente acontecia em uma dada região: ele é caracterizado por quatro elementos importantes, tanto do ponto de vista individual como social:  numa situação de desastre, mais instituições e grupos sociais são envolvidos no seu manejo, de maneira rápida, se comparado à situação de normalidade;  durante um desastre, a comunidade atingida deve lidar com a perda relativa de sua autonomia e de sua liberdade de ação, ficando sujeita a normas excepcionais no que diz respeito, por exemplo, ao ir e vir e à sua rotina diária;  a resposta a desastres costuma ser medida por indicadores diferentes dos da normalidade, por exemplo, no que diz respeito ao atendimento em saúde, aos prazos dados para a gestão de benefícios sociais e para a concessão de recursos para obras públicas;  um desastre redefine as linhas divisórias entre o público e o privado: o desastre torna público o privado; é preciso, muitas vezes, intensificar e salientar a magnitude do sofrimento privado para legitimar a nomenclatura do evento público enquanto desastre13,14.

A saúde mental enquanto parte integrante da atuação em gestão de riscos e de desastres Apesar do investimento de diversos países nas áreas de monitoramento e acompanhamento de possíveis desastres, é somente no final do século XX, com o amadurecimento da percepção do processo saúde/doença, que equipes internacionais de intervenção emergencial passam a incorporar, em seus trabalhos, o eixo da saúde mental14. No Brasil, sobretudo na última década, começou-se a considerar a saúde mental como ação crucial nas respostas a desastres8. A psicologia brasileira tem reunido esforços para refletir sobre o tema, como, por exemplo: com a realização do 1º e 2o Seminários Nacionais de Psicologia das Emergências e dos Desastres em 2006 e 2012; a criação da Associação Brasileira de Psicologia de Emergências e Desastres (ABRAPED) em 2012, e diferentes encontros organizados pelo sistema Conselhos de Psicologia desde 201015 . De maneira mais ampla, a atuação em emergências e desastres insere-se na lógica da ajuda humanitária14,16. Por mais que não seja o objetivo deste artigo realizar uma genealogia deste campo de forças, é importante, para a compreensão e atuação do profissional de saúde mental em uma situação como essa, conhecer esse contexto. A ajuda humanitária forma-se como campo de intervenção a partir da criação de organismos e legislações internacionais, sobretudo: o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, as Conferências de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Genebra e, mais recentemente, as grandes entidades humanitárias, como a Médicos Sem Fronteiras e a Médicos do Mundo16,17. Essa lógica de intervenção tem como princípios, ao menos em sua base, a atuação imparcial, independente e neutra; no entanto, na prática, observa-se como esses princípios são dificilmente objetivados, até porque é cada vez mais comum o uso desse mesmo discurso humanitário por parte dos interessados nas situações de calamidade e conflito, como, por exemplo, os exércitos e os governos. Para alguns autores, as ações de ajuda humanitária podem ser descritas por meio da existência de contradições inerentes ao seu discurso, tais como: a desigualdade (entre aquele que ajuda e aquele que é ajudado), a compaixão (que, além de servir de pretexto, serve, também, como mecanismo de controle e estratégia de poder a partir da moralidade inerente a ele), e os diferentes valores atribuídos a vidas diferentes16,18. No campo da saúde mental, é o conceito de ‘traumatismo’ que aparece como operador fundamental do cenário de cuidado produzido em desastres, dentro deste contexto humanitário. Constatamos a existência de duas correntes de pensamento e intervenção que valorizam a ideia do traumatismo como principal resultado do desastre, e, assim, direcionam sua intervenção para lidar com ele de maneira individual ou em grupo, excluindo, por consequência, a intervenção nos fatores mais sociais e comunitários19. Encontramos, por outro lado, outras correntes que buscam valorizar justamente estes dois fatores, reservando a noção de ‘trauma’ para situações mais específicas, dadas sua menor incidência, e também – não menos importante – o risco de ele tornar-se a única forma de reação válida, no nível individual e social, para uma situação de desastre14,18,20. É nesta segunda forma de pensar (valorizando o contexto mais amplo) que se inserem as autoras do presente artigo. A partir daí, como pensar a atuação do psicólogo em uma situação de desastre? Concordamos com Bezerra Júnior21, que afirma que há cada vez menos espaço em nossa cultura para significar o sofrimento. Dessa forma, a atuação do psicólogo nestas situações transita a tênue linha divisória entre a normalidade da reação de dor à perda e à crise, e a patologia, frequentemente usada como único mecanismo de legitimação da experiência do desastre. Além disso, como chamaram a atenção Valencio et al.8, esta atuação deve levar em conta não apenas o sofrimento singular da pessoa afetada, mas, também, as políticas públicas que norteiam as ações de todo o ciclo de gestão de riscos e de desastres, procurando, assim, escapar de um olhar individualizante que deixe de lado o contexto sócio-histórico-político em que o ‘traumatismo’ pode se dar. Na medida em que estes pontos elencados acima são considerados, se faz importante ponderar ainda que a saúde mental precisa ser pensada como algo indelegável a um sujeito único, mas pensado de forma múltipla, analisando-se os distintos significados atribuídos de forma singular e coletiva ao evento experienciado. As situações de emergências e desastres, na medida em que geram, muitas vezes, grandes deslocamentos populacionais, também tocam o campo de debates da psiquiatria cultural e da etnopsiquiatria, sobretudo no contexto internacional. Tal corrente de pensamento, representada por autores como Frantz Fanon, Georges Devereux, Tobie Nathan e Marie-Rose Moro, entre outros22, apesar das diferentes nuances que apresenta, procura basear sua compreensão do sofrimento do ‘estrangeiro’ (do ‘desconhecido’) em seus próprios modos de vida e explicações culturais, religiosas e morais. Esta vertente da saúde mental, que tomou força com o final da colonização de vários países africanos no século XX, e do consequente aumento do volume de estrangeiros que buscam nova vida nas metrópoles europeias, tem sido importante para a reflexão sobre a atuação do psicólogo em emergências e desastres: esta ação também precisa se fundamentar nas experiências, nos modos de vida, nos modelos de cura e de elaboração das pessoas a quem ocorre viver uma emergência, e não, simplesmente, de modelos ocidentais previamente impostos ou delimitados internacionalmente. Este debate – que não se restringe, no campo da saúde mental, à área das emergências – sem dúvida mostra-se fundamental quando se pensa que boa parte dos grupos que atuam no momento em emergências de grande porte é constituída por profissionais externos ao local do desastre. Stolkiner23 também apresenta alguns indicadores de saúde mental que podem auxiliar a pensar estratégias de atuação em desastres, tais como: a preocupação em analisar o nível de participação social e de estruturas organizadas para possibilitar essa efetiva participação, a adequada percepção do sentido de 290

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ser protagonista na produção do próprio cuidado, bem como a inserção em redes de solidariedade comunitárias. Foi observando o cenário nacional concernente aos desastres, bem como a necessidade de ampliação dos diálogos e estudos que permeiam esta temática, e fomentado por algumas das produções das autoras20 em diversos âmbitos e instituições em diferentes países, que pensou-se em apresentar uma situação prática de intervenção realizada por duas das autoras (Silva e Vicente) do presente artigo, entre outros profissionais, como dispositivo de análise sobre intervenções em saúde mental em situações de desastre. Para este fim, relatamos, a seguir, uma experiência de intervenção na Região Serrana do Rio de Janeiro.

Contexto da intervenção O acontecimento tratado aqui pode ser explicado por uma conjunção de fatores, como a combinação de chuvas intensas e intermitentes com as características geológicas de um solo instável, as condições precárias de moradia, a falta de planejamento urbano e de prevenção a desastres. Observou-se, na Região Serrana do Rio de Janeiro, no início de 2011, um deslizamento de centenas de milhares de toneladas de terra após fortes chuvas na região, causando, ao menos, 912 óbitos, e deixando mais de 45 mil pessoas desabrigadas e desalojadas11. As áreas mais afetadas se concentraram nas cidades de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, e, embora situação similar já tivesse ocorrido nos anos 1980, quando centenas de deslizamentos ocasionaram a morte de vinte pessoas nas proximidades de Teresópolis, este foi considerado o pior desastre já registrado em território nacional até o momento11. No âmbito de uma organização de ajuda médico-humanitária internacional existente há quatro décadas, presente no Brasil desde 1991 (que se propõe a agir de forma independente, imparcial e neutra), as autoras atuaram na frente de saúde mental como parte de uma equipe que era composta por: uma coordenadora de Saúde Mental, um coordenador médico, um coordenador logístico, duas psicólogas, dois médicos, uma enfermeira e um logístico. Destacamos, abaixo, no relato desta situação prática de intervenção, os principais eixos norteadores usados para a produção do cuidado de saúde mental na cidade de Nova Friburgo, realizado em parceria com: a Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de Nova Friburgo, Universidade Estácio de Sá, Conselho Regional de Psicologia e voluntários municipais, especificamente nos bairros de Alto da Floresta, Amparo, Campo Coelho, Centro, Chácara do Paraíso, Córrego Dantas, Jd. Califórnia, Olaria, Ruy Sanglard, São Geraldo, Stucky e Village:  Tomada de conhecimento do Plano de Contingência Municipal de Saúde e do Plano de Contingência Nacional para Desastres por meio da identificação e diálogo com representantes da Coordenação de Saúde Mental de Nova Fribugo nas primeiras 72h após o desastre e, posteriormente, por meio do contato com o Comitê Operativo de Emergência em Saúde do Ministério da Saúde (COE). Os planos destacavam a medida de direcionamento do “atendimento às pessoas vítimas de trauma e estresse”, porém não se remetiam à preparação das equipes locais para o atendimento de saúde mental em situação de desastre;  A primeira avaliação realizada pela equipe de nossa organização externa que chegou no território e constatou a magnitude do desastre e as demandas de atendimento à saúde correlatas;  Esta equipe também realizou um diagnóstico e avaliação da estrutura existente para resposta ao desastre, levando em conta: organização do sistema de saúde local que havia antes e durante o desastre, estrutura da gestão local, estadual e federal, profissionais disponíveis (voluntários e/ou contratados), qualificação dos profissionais, estrutura física e funcional dos serviços, política pública implantada, acesso da população aos serviços, planejamento geral de resposta no território;  Com base nisso, nossa equipe estabeleceu o modelo da intervenção, com ênfase: 1) Na população (cuidado na perspectiva pragmática e não intrusiva, considerando o nível de participação social e estruturas organizadas, como associações de moradores e instituições religiosas); 2) Nos gestores (auxílio na estruturação da estratégia intersetorial junto ao coordenador de saúde mental do município, adaptada de acordo com resultados do diagnóstico e demais percepções do gestor); 3) Nos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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trabalhadores (suporte técnico às equipes da rede SUS, voluntários e/ou demais cuidadores, por meio de treinamentos e discussão de casos); 4) Na qualificação dos atores de saúde (formação em ato); 5) Na sensibilização à população (informação em saúde mental com uso de panfletos e contato com líderes locais). Partindo do princípio de que a coordenação de uma intervenção em situação de desastre deve ser única e articulada com todos os órgãos, instituições e pessoas que dele fazem parte2, grande parte da intervenção foi baseada no fomento à articulação em torno do Comitê Operativo de Emergência (organizado pela Defesa Civil) e de uma estratégia de saúde mental adaptada às necessidades da população e compatível com a execução pelos atores regionais e nacionais disponíveis. Participamos e articulamos reuniões com os psicólogos locais e regionais, entre outros integrantes de universidades federais e privadas, somados aos trabalhadores do SUS dos municípios afetados e a outros voluntários que se apresentaram na região. Para estabelecer um alinhamento entre conhecimentos técnicos e visão estratégica do projeto, com o intuito de disponibilizar novas ferramentas para operar o trabalho em saúde mental, fomentamos encontros de formação e trocas de experiências entre os psicólogos que já haviam iniciado os atendimentos aos afetados, além de simulações de possíveis cenários para as semanas que se seguiriam. Esses encontros tiveram como principal objetivo refletir sobre princípios básicos acerca de como trabalhar em uma situação de emergência e desastre, e foram nomeados como ‘treinamentos’. Para se compreenderem as demandas oriundas do sofrimento psíquico e as possibilidades de cuidado efetivo, num caráter coletivo, comunitário, familiar e individual, a estratégia proposta e acordada em conjunto com os psicólogos locais foi realizada, no território, por meio da busca ativa conduzida por um grupo de psicólogos voluntários, que tinham, como papel principal, a articulação com atores sociais, dentre eles Agentes Comunitários de Saúde, líderes espirituais e líderes comunitários. Em contato com a Defesa Civil local, Secretaria Municipal de Saúde e tendo participado previamente de um treinamento para um primeiro acolhimento psicológico em situações de desastres, que contribuiu para a adoção de uma escuta diferenciada, esse grupo pôde informar às comunidades sobre o fenômeno do desastre, realizar grupos de escuta e informar sobre os pontos de atendimento em saúde mental da rede SUS. Essa estratégia também funcionou como um dispositivo para se compreenderem: as demandas emergenciais da população local, os meios já disponíveis na cidade, a qualificação técnica dos profissionais e voluntários que ali se encontravam, a rede de saúde pública disponível e operante no terreno, além da compreensão dos instrumentos e mecanismos de enfrentamento utilizados pela população local. Tendo em vista a presença das três instâncias federadas de governo durante a intervenção, essa atividade se deu por meio de encontros sistemáticos com as três esferas, a fim de se compreenderem as linhas de cuidado a serem desenvolvidas para a resposta ao desastre. Como forma de apoiar a intervenção dos atores locais, optou-se por acompanhar os psicólogos do SUS e voluntários durante essas primeiras aproximações pós-desastre com as comunidades, em locais como igrejas e abrigos nos bairros citados. Essa foi uma das maneiras encontradas para apoiar o trabalho das equipes locais. Durante as visitas e nas discussões com os profissionais locais foram utilizadas, na abordagem direta com a população afetada pelo desastre, informações escritas sobre o fenômeno, por exemplo: o que é um deslizamento, como ocorreu, reações físicas e psíquicas esperadas, orientações sobre como se preparar emocionalmente para enfrentar as dificuldades vivenciadas naquele momento e nas semanas que se seguiriam, entre outros conteúdos, sempre em companhia dos profissionais locais e direcionando a população afetada às estruturas comunitárias e municipais existentes. Nossa intervenção durou, no total, cerca de trinta dias; findo este prazo, optou-se por delinear uma estratégia de saída da organização do município afetado, ao ser constatado que: (1) já havia um número suficiente de atores responsáveis pelo cuidado em saúde mental atuantes na região, (2) os atores envolvidos no processo participaram da construção da estratégia de atendimento em saúde mental para a cidade de Nova Friburgo, e conheciam as reações esperadas após um desastre, além, é claro, de já serem profissionais qualificados para atuarem na área, (3) já haviam iniciado os trabalhos de maneira articulada junto às comunidades, e, por fim, (4) os atendimentos dos serviços de saúde 292

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mental da rede do Sistema Único de Saúde já haviam sido reestabelecidos dentro da rotina padrão do município. O acompanhamento técnico virtual (por e-mails) e telefônico (para gestores e/ou voluntários) foi mantido por quatro semanas por nossa equipe após a saída da região. Como atividade de encerramento da estratégia, realizou-se uma apresentação da intervenção desenvolvida para os gestores do Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, para que os responsáveis pela coordenação geral deste processo de cuidado estivessem cientes do que foi feito.

Considerações gerais sobre a intervenção Sobre essa intervenção, quatro pontos específicos merecem maior atenção: o objetivo da intervenção, o tempo de duração, a relevância e o impacto. O objetivo da intervenção citada como exemplo foi apoiar o restabelecimento das redes comunitárias e públicas de saúde mental, atuando com os profissionais e com a gestão da intervenção, mais do que intervindo diretamente com as comunidades afetadas. Avaliou-se, no momento do diagnóstico, que era uma região que contava não só com redes de cuidado em saúde estabelecidas, como com profissionais qualificados e com comunidades relativamente organizadas em seus modos de solidariedade e apoio psicossocial. Quanto ao tempo de intervenção, de cerca de trinta dias, iniciado logo após o acontecimento trágico, considerou-se que, dado o contexto local e o volume de entidades governamentais e não governamentais presentes, o prazo de trinta dias tornava-se adequado para cumprir com o objetivo principal da intervenção. Desenvolver um cuidado a médio e longo prazo poderia se constituir em uma fragilização das estruturas locais; visto que poderia ser criado um ambiente de ‘competição’ pela clientela e, ainda mais, causar uma falsa percepção de ausência de problemas de saúde mental nos municípios, já que atividades realizadas por outras instâncias não passariam por instrumentos de registro e avaliação específicos do sistema de saúde local. Entendeu-se, também, que uma intervenção longa e apenas baseada no ‘atendimento às vítimas’ poderia estimular a dependência de auxilio externo e constituir um desestímulo às equipes locais. De acordo com as considerações das equipes locais sobre a relevância da intervenção, esta foi de importante apoio para os primeiros atendimentos aos afetados, visto que parte dessas equipes locais encontrava-se com dificuldades de compreender as demandas prioritárias das comunidades atingidas nas primeiras 72 horas pós-desastre. Assim, o impacto da intervenção que realizamos pode ser analisado em duas vertentes: a individual e a comunitária. Do ponto de vista do sujeito individual, o impacto de uma estratégia terapêutica pode ser analisado dentro de parâmetros físicos, mentais ou emocionais. Partindo do princípio de que um desastre causa rupturas e/ou perdas abruptas das redes socioafetivas, destruição de bens materiais, adoecimentos, entre outras significações pessoais, espera-se que muitas reações, interpretadas, em situações rotineiras, como bizarras e/ou graves, sejam desencadeadas num curto período após o marco zero do desastre, potencializando, mas não necessariamente acarretando, possíveis transtornos e/ou reações exacerbadas e surpreendentes. As manifestações psicológicas podem se apresentar de forma multifacetada, como, por exemplo, episódios de desorganização psíquica e ansiedade com duração e temporalidade variável. Situações de grandes mudanças inesperadas e abruptas, como as vividas em desastres, em geral, excedem a capacidade de respostas das pessoas e as confrontam com uma grande sensação de angústia, desamparo e desconhecimento18. De acordo com os relatos dos profissionais locais, reações como essas foram encontradas durante a presente intervenção. Frente a situações decorrentes de perdas repentinas de referências, as equipes locais do Sistema Único de Saúde, em colaboração com outros voluntários, foram estimuladas a elaborarem dispositivos de atenção e cuidado para auxiliar no enfrentamento dos desafios de reconstrução da vida física, pessoal, familiar, social e comunitária dos afetados. Neste sentido, os impactos comunitários, assim como os impactos individuais, podem ser significados de distintas formas, a depender do histórico sociocultural, bem como das estruturas que impactam na resiliência de seus integrantes. A perda de muitos membros de uma comunidade, de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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seus símbolos e referências materiais, acarreta impactos que podem dificultar na reconstrução a curto e médio prazo, mas que, também, podem potencializar a capacidade de fortalecimento social, criando novas oportunidades de fortalecimento de laços sociais que despertem o sentimento de pertença e cuidado coletivo. Percebeu-se como fundamental a participação da comunidade no processo de reflexão sobre a reconstrução local, tanto do ponto de vista da garantia de seus direitos quanto como maneira de elaborar suas perdas e necessidades de reorganização emocional naquele coletivo.

Considerações finais Por meio dessa estratégia de intervenção e cuidado, procurou-se salientar a importância de se estruturar uma intervenção de forma contextualizada e articulada com os mecanismos locais (públicos, essencialmente, mas, também, de organizações privadas) de manejo da crise. As sugestões e considerações feitas aqui são baseadas nessa experiência e em outras realizadas pelas autoras, como possibilidade de servir de base para outras intervenções, porém, é claro, de maneira adaptada e contextualizada com cada situação a ser enfrentada. A ação do psicólogo, independentemente de onde ela parta (se profissional do Sistema Único de Saúde; se voluntário; se membro de alguma universidade ou outra instituição de ensino; se como membro de alguma organização não governamental), deve estar articulada de forma integral a uma estratégia que envolva diferentes atores na resposta ao desastre. Em outros termos, é de suma relevância que o/a profissional não aja sozinho, tampouco desconheça a estratégia a priori determinada nos níveis social, de saúde e educação, para mitigar e/ou responder à demanda gerada pelos desastres. Em situações de emergência, as necessidades básicas das pessoas – comida, água, abrigo, um mínimo de conforto físico e emocional – devem estar supridas em primeira instância, assim como não se deve perder de vista o horizonte da garantia de direitos sociais básicos. Essas são, também, ações de saúde mental, ainda que não desempenhadas exclusivamente por psicólogos. A intervenção deve ter, como um de seus pilares fundamentais, propostas de elaboração dos sofrimentos gerados pelo desastre (realizada pelos vários atores, e não só pelo psicólogo) e, também, a construção da autonomia e dos laços sociais (das comunidades, grupos de pessoas e autoridades envolvidos). O papel do profissional da saúde mental é composto por: escutar as demandas, conhecer o local para conhecer a oferta de serviços, articular e pensar formas de sustentabilidade destas ações, levando sempre em consideração os fatores já mencionados da presença – lógica e esperada – do desespero, da tristeza, da dor e do luto. Grande parte da população atingida padecerá de sofrimento intenso, mas encontrará conforto e apoio em suas estratégias comunitárias e cotidianas. Em seguida, haverá casos que poderão ser beneficiados com uma escuta especializada, onde poderá estar o psicólogo, e, em muito menor volume, haverá casos que necessitarão, até mesmo, de uma intervenção médico-farmacológica específica em saúde mental. Vale ressaltar, como mostram Fassin e Rechtman14, que, frequentemente, são aqueles já mais vulneráveis – como os pacientes psiquiátricos, os moradores de rua, os desassistidos antes da catástrofe – que mais sofrem e que são menos percebidos pelas ações humanitárias. A falta de segurança e o medo provocados pela situação emergencial podem ocasionar conflitos de várias espécies: sociais, grupais, familiares. Porém, não cabe ao psicólogo externo o papel de substituto do serviço de saúde existente, e sim o de articulador – especialmente, levando-se em conta os psicólogos voluntários e/ou membros de organizações não governamentais que se apresentam a agir nestas situações –, pois esta ação termina apenas por ‘beneficiar’ ao psicólogo ele próprio, e não à comunidade atingida, uma vez que, ao término da intervenção deste voluntário, a comunidade perderá com o não-fortalecimento de uma rede de apoio local. O psicólogo pode e deve colaborar com as ações de prevenção e avaliação da atuação das entidades (governos, ONGs, grupos) em situações de emergência. A emergência exige rapidez de atuação e de resposta, e, por isso, o processo de ensino e aprendizagem precisa ser desencadeado, 294

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preferencialmente, antes da existência de um desastre, visando a preparação e a reflexão sobre a saúde mental e seus mecanismos de intervenção. Nesse sentido, cabe a advertência fundamental de Valencio24: a intervenção do profissional de saúde mental irá depender de sua concepção e compreensão dos diversos discursos que envolvem a conceituação de uma situação como um “desastre”. Dessa forma, é imprescindível atentar para o risco de estigmatização e culpabilização da população afetada pela sua própria condição de “vulnerável”, apostando, ao contrário, em uma abordagem socioparticipativa e de garantia de direitos, a fim de minorar, efetivamente, a existência dos riscos de desastres. Ao considerar o cuidado direto da saúde mental para com a população afetada, o psicólogo conta com uma gama extensa de propostas terapêuticas nas mais diversas linhas teóricas e ideológicas, sobretudo a partir do uso e abuso da noção de traumatismo. A presente intervenção pretendeu estar de acordo com uma perspectiva crítica a esse respeito, buscando se afastar da perspectiva de sujeito “traumatizado” e restrito a um coletivo de sintomas. É fundamental reforçar a posição da importância de se considerarem: o sujeito, o contexto, o drama, a história, as relações, o entorno, as condições e estratégias comunitárias e sanitárias do local. A recuperação das referências, a reorganização social, a colaboração com as equipes, com as estratégias as mais diversas de suporte às instâncias da vida cotidiana, são fatores essenciais para a (re) produção das identidades dos afetados nessas situações e, por conta disso, a ação do psicólogo precisa se inserir nessas estratégias de articulação. Um marco do debate sobre a ação humanitária, em geral, e a ação em emergências, mais especificamente, é o seu caráter multidisciplinar. Quase como um ‘sinal dos tempos’, a discussão sobre a atuação nestas situações não deve se furtar à transversalidade dos saberes, olhares, pontos de vista: deve ir além das disciplinas clássicas e saber ‘ler’ e ‘integrar’ outras formas de pensar. Não é justamente este um dos pontos que se demanda àquele que sofreu uma crise (inesperada, não avisada, violenta, súbita)? Que (re)construa seu olhar sobre o mundo articulando (e não negando, apagando, subtraindo) estas outras vivências? Tem sido este o caminho da construção e desconstrução de vários operadores da ação em emergências, e é fundamental observar a amplitude dos campos de pensamento sobre o assunto para poder promover, enquanto profissional de saúde mental, a elaboração e a construção de uma nova vida para além da crise.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1. Blanchot M. La escritura del desastre. Caracas: Monte Ávila Latinoamericana; 1987. 2. Furtado J, Oliveira M, Dantas MC, Souza PP, Panceri R. Capacitação básica em Defesa Civil. 2a. ed. Florianópolis: UFSC; 2013. 3. Ministério da Integração Nacional [Internet]. Organização. 2014 [acesso 2014 Jun 16]. Disponível em http://www.integracao.gov.br/web/guest/defesacivil/sinpdec/organizacao

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4. Lei no 12.608, de 10 de abril de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil - CONPDEC; autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres; altera as Leis nos 12.340, de 1o de dezembro de 2010, 10.257, de 10 de julho de 2001, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.239, de 4 de outubro de 1991, e 9.394, de 20 de dezembro de 1996; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 10 Abr 2012. 5. Guimarães RB, Guerreiro JAS, Peixoto, JAS. Considerações sobre os riscos ambientais e urbanos no tocante aos desastres e emergências. Revista VeraCidade [Internet]. 2008; 3(3) [acesso 2014 Jun 16]. Disponível em: http://www.ceped.ufsc.br/sites/default/ files/projetos/consideracoes_sobre_os_riscos_ambientais_e_urbanos_no_tocante_aos_ desastres_e_emergencias.pdf 6. United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Implementation of the Hyogo framework for action: summary of reports 2007-2013 [Internet]. Genebra: Organização das Nações Unidas; 2013 [acesso 2013 Out 29]. Disponível em: http://www.unisdr.org/ files/32916_implementationofthehyogoframeworkfo.pdf 7. International Strategy for Disaster Reduction. Hyogo framework for action 2005-2015: building the resilience of nations and communities disasters. Extract from the final report of the World Conference on Disaster Reduction (A/CONF.206/6) [Internet]. Genebra: Organização das Nações Unidas; 2005 [acesso 2013 Out 29]. Disponível em: http:// www.preventionweb.net/files/1037_hyogoframeworkforactionenglish.pdf 8. Valencio N, Siena M, Marchezini V. Abandonados nos desastres: uma análise de dimensões objetivas e simbólicas de afetação de grupos sociais desabrigados e desalojados. Brasília: Conselho Federal de Psicologia; 2011. 9. Beck U. La societé du risque: sur la voie d’une autre modernité. Paris: Flammarion; 2008. 10. United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Disasters in numbers. Bélgica: Université Catholique de Louvain [Internet]. 2012 [acesso 2012 Abr 27]. Disponível em: http://www.unisdr.org/files/31685_factsheet2012.pdf 11. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional da Defesa Civil. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Anuário Brasileiro de desastres naturais, 2011. Brasília (DF): CENAD; 2012. 12. Valencio N, Siena M, Marchezini V, Gonçalves JC. Sociologia dos desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos: Rima; 2009. 13. Quarantelli EL. Emergencies, disasters and catastrophes are different phenomena: preliminary paper #304 [Internet]. Delaware: University of Delaware;. 2000 [acesso 2013 Out 29]. Disponível em: http://swlgema.com/uploads/SWLGEMA/2012_conference/ Scot%20Phelps%20Emergencies%20Disasters%20%20Catastrophes.pdf 14. Fassin D, Rechtman R. L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion; 2007. 15. Weintraub ACAM. Psychological work in humanitarian emergencies: some considerations and reflections based on two work experiences. Saude Soc [Internet]. 2011 [acesso 2013 Out 29]; 20(3):811-20. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902011000300023&lng=en&nrm=iso>.http:// dx.doi.org/10.1590/S0104-12902011000300023 16. Fassin D. La raison humanitaire: une historie morale du temps présent. Paris: Seuil/ Gallimard; 2010.

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Weintraub ACAM, Noal DS, Vicente LN, Knobloch F. Actuación del psicólogo en situaciones de desastre: reflexiones a partir de la praxis. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):287-97. A partir de una serie de experiencias de trabajo en situaciones de desastres, especialmente en la región de la sierra de Río de Janeiro, Brasil, a principios de 2011, este artículo intenta contribuir para la reflexión sobre la actuación de psicólogo en un contexto de desastres. Comienza con una breve reanudación histórico-institucional de la cuestión en Brasil para después presentar algunas reflexiones conceptuales y prácticas de la salud mental en ese sentido y, finalmente, discutir principios y directrices de intervención en situaciones de desastre, teniendo como telón de fondo el escenario en Río de Janeiro en el mes de enero de 2011. Se pretende, de esa forma, argumentar que la intervención del psicólogo en un contexto de desastres debe articularse con otras instancias, contextualizarse y separarse de la noción de traumatismo como principal operador de la clínica.

Palabras clave: Desastres. Emergencias. Salud mental. Acción humanitaria. Cuidado en salud. Recebido em 29/07/14. Aprovado em 10/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0976

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Comunicação e saúde nos manuais dos organismos internacionais para situações de emergência e desastre: intervenção e hegemonia Luciana Lindenmeyer(a) Carla Macedo Martins(b)

Lindenmeyer L, Martins CM. Communication and health in international organizations’ manuals for emergency and disaster situations: intervention and hegemony. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):299-310. The paper analyzes international organizations’ discourse on health communication in emergency and disaster situations, starting from two manuals: one produced by the World Health Organization (WHO) and another by the Pan-American Health Organization (PAHO). The analysis focuses on the actions of these organizations, as determined through the logic of ‘intervention’, which tends to erase the social inequalities that are produced through society’s form of capital, both nationally and globally. This logic is expressed in the manuals through the notions of ‘population’, ‘emergency and disaster’ and ‘communication’. The paper concludes by indicating that the following discursive-ideological effects are produced: disconnection between emergency and disaster and social life; legitimation of inequality between nations; disengagement of the nation state in relation to inhuman social health conditions; and linear and instrumental perspectives on communication.

Keywords: Discourse analysis. Ideology. Hegemony. International organizations. Health manuals.

O artigo analisa o discurso dos organismos internacionais sobre comunicação em saúde na situação de ‘emergência e desastre’, a partir de dois manuais, um produzido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), outro pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS). A análise considera a atuação destes organismos como determinada pela lógica da ‘intervenção’, que tende a apagar as desigualdades sociais produzidas pela forma societária do capital em âmbito nacional e mundial. Tal lógica se expressa, nos manuais, nos sentidos de ‘população’, ‘emergência e desastre’ e ‘comunicação’. O artigo conclui indicando que são produzidos os seguintes efeitos discursivo-ideológicos: uma desconexão entre a emergência e o desastre e a vida social; uma legitimação da desigualdade inter-nações; uma desresponsabilização do Estado nacional em relação às condições sociais de saúde desumanas; e uma perspectiva linear e instrumental da comunicação.

Palavras-chave: Análise do discurso. Ideologia. Hegemonia. Organismos internacionais. Manuais de saúde.

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(a) Serviço de Gestão do Trabalho, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Av. Brasil, 4365, Pavilhão Haity Moussatché, sala 211, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21040-360. luciana.linden@icict. fiocruz.br (b) Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. cmartins@fiocruz.br

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Introdução A dominação de cunho capitalista em um contexto mundializado, expressa na ideia de ‘intervenção’ e sustentada ou legitimada pelos organismos internacionais, tem sido amplamente discutida pela literatura. A lógica da intervenção tem sido problematizada, inclusive, na sua articulação com o discurso da defesa dos direitos humanos, considerado na sua versão acrítica, em que tanto ‘intervenção’ quanto ‘direitos humanos’ tendem a justificar as relações de subordinação entre nações ou blocos de nações1. Em paralelo, a questão da comunicação como espaço scioeconômico de produção de relações de poder, na era da indústria cultural e da política mediatizada, atravessa a literatura crítica sobre a contemporaneidade, que afirma a comunicação como um espaço contraditório, tanto de reprodução das formas hegemônicas do capital2 quanto de disputa e luta na direção de uma sociedade que supere a desigualdade3. O campo da comunicação e saúde4 não se situa à parte deste contexto, sendo também condicionado, inerentemente, pelas características de uma sociedade não igualitária5. O presente artigo se inscreve nesta discussão sobre as formas societárias hodiernas produzidas e reproduzidas pelo campo da comunicação e saúde, tomada em um contexto de formas de dominação amplamente mundializadas. Nesta direção, o artigo tem como objetivo analisar o discurso sobre comunicação e saúde em manuais de emergência e desastres produzidos por dois organismos internacionais de saúde, ou seja, Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização Panamericana de Saúde (Opas). A análise demonstra, em última instância, que a lógica da intervenção dos organismos internacionais de saúde, no campo da comunicação, se constrói a partir de processos discursivosideológicos que buscam, em alguma medida, apagar e legitimar as desigualdades inerentes ao capitalismo. Para tal, o discurso destes organismos internacionais define e (re)significa noções e categorias centrais ao trabalho em comunicação e saúde, como ‘população’ e situações de ‘emergência e desastre’, assim como da própria concepção de comunicação. No primeiro item do artigo, apresentamos o conceito gramsciano de hegemonia, buscando situar os meios de comunicação na sociabilidade do capital. No segundo, discutimos as conquistas e tensões na comunicação e saúde, problematizando a concepção linear e instrumental que atravessa o campo. No terceiro, enfocamos os organismos internacionais no capitalismo contemporâneo, voltando-nos para aqueles atuantes diretamente no campo da saúde (OMS e Opas). No quarto, apresentamos os pressupostos teórico-metodológicos para a análise dos manuais enfocados, estes últimos sendo objeto, por sua vez, do quinto, sexto e sétimo itens. Nas considerações finais, apontamos o conjunto de discussões críticas que a análise abre no que tange à formação do comunicador em saúde.

Comunicação e hegemonia O processo de dominação na sociedade capitalista é tratado, na obra de Antonio Gramsci, com referência no conceito de hegemonia. Para Gramsci, O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações [...].6 (p. 95)

É relevante enfatizar que a perspectiva gramsciana de hegemonia se dá na própria produção da sociabilidade, que tem a comunicação, em inúmeras dimensões, como um espaço crucial na contemporaneidade. É também importante observar, para os fins de nossa análise, que o conceito não se restringe à análise no âmbito dos Estados nacionais, mas constitui, de fato, uma forma de produção social que se dá, inclusive, na relação entre nações ou regiões. Nas palavras do autor, “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de 300

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uma nação, entre diversas forças que compõem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais”7 (p. 399). A área de comunicação, na América Latina e no Brasil, não tem ignorado a tradição gramsciana, reafirmando a perspectiva de que a hegemonia, como um processo contínuo e complexo, se relaciona à capacidade de um determinado bloco em articular um conjunto de fatores que pode levá-lo a dirigir, moral e culturalmente, e de modo sustentado, a sociedade como um todo8. Para a compreensão de tais processos na totalidade da produção da sociabilidade, faz-se necessário, ainda, nos remetermos à articulação entre ‘Estado’ e ‘sociedade civil’. Para Gramsci, [...] podem-se fixar dois grandes ‘planos’ superestruturais: o que pode ser chamado de ‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como ‘privados’) e o da ‘sociedade política ou Estado’, planos que correspondem, respectivamente, à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’.7 (p. 20-1)

Em outras palavras, para Gramsci, o Estado utiliza também, para manutenção do status quo, a partir da sociedade civil, os chamados aparelhos privados de hegemonia9, apontando para a construção de uma concepção de mundo em favor dos segmentos sociais dominantes. Ademais, a perspectiva de Gramsci, inclusive com o desdobramento posterior do conceito de Estado ampliado9, supõe uma forma mais dinâmica e dialética de análise dos movimentos de reprodução e transformação social, em que Estado e a chamada sociedade civil não estão em oposição: nem o Estado é o espaço unicamente da dominação, nem a sociedade civil é o espaço da liberdade. Não é nossa proposta, no âmbito deste artigo, mapear os movimentos atuais em torno do tema comunicação e democracia no âmbito da saúde. Contudo, é inevitável apontar a centralidade do tema no contexto brasileiro, por exemplo, nas recentes discussões sobre o Marco Civil da Internet (sobre a qual o campo da saúde no Brasil tem se posicionado, por exemplo, por intermédio da Associação Brasileira de Saúde Coletiva10) ou, ainda, nas novas formas de organização e participação política a partir da mídia denominada alternativa, em contraponto à oligopolizada11. Em suma, identificamos a comunicação e os meios de comunicação (de massa) como poderosos espaços de produção de hegemonia. Oriundos de processos de natureza contraditória, tais meios são, ao mesmo tempo, também produtores de contra-hegemonia, conforme indicado na dinâmica de movimentos contestatórios atuantes no campo da comunicação e saúde, tratado no item a seguir.

Comunicação e saúde Nossa análise considera a comunicação como estruturante das políticas públicas em saúde, inclusive por sua estreita articulação com a promoção12. Seguindo a definição proposta por Araújo e Cardoso4, o campo “trata da comunicação nos processos de elaboração, implantação e gestão de políticas públicas nos domínios onde se requer uma ação pública, incluído, aí, o da saúde” (p. 22). Por esta razão, fazse necessário discutir as concepções hegemônicas sobre comunicação e suas implicações na produção coletiva e política do conhecimento em saúde. Torres13 indica que o campo da comunicação e saúde no Brasil tem sido palco de disputas de sentido, que se expressam em termos epistemológicos, isto é, na própria concepção de comunicação. Para a autora, a comunicação – na sua interface com a saúde – é ainda fortemente pautada, por sua utilização estratégica, para informar e para persuadir, buscando apenas promover mudanças comportamentais. A autora relaciona tal prática a uma concepção ou um modelo caracterizado como: desenvolvimentista, instrumental, informacional e transferencial. Esta constatação não elide o fato de que, pelo volume de discussões deste campo no contexto brasileiro, a comunicação e saúde tem sido resgatada na sua dimensão dialógica, ou seja, como fato de mediação e de alteridade, contrapondo-se aos modelos positivistas de comunicação nos termos mencionados. Araújo e Cardoso4 seguem esta linha de crítica, ao apontarem que o modelo linear e polarizado, que busca excluir o equívoco como ‘ruído’, influenciou a abordagem específica na área da saúde. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Neste contexto, a escuta e o diálogo tendem a não existir, ficando, somente, o emissor com direito de voz e expressão. Podemos afirmar, concordando com os autores mencionados, que o modelo de dois polos é o predominante no campo da comunicação, com contornos superficiais de incorporação do diálogo. Permanece a ideia fundamental de produção da informação para ser transmitida, de forma linear, de um emissor a um receptor, com desigualdade entre ambos14. Tal crítica ao campo da comunicação e saúde não ignora o conjunto de lutas que marca o setor. Como é amplamente reconhecida, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) é fundamentada nos princípios básicos de universalidade, integralidade e equidade, com ênfase na participação popular e na estruturação da rede de serviços de saúde, de forma descentralizada, regionalizada e hierarquizada. A partir dessa conquista, poderia se compreender a comunicação como forma de aperfeiçoar o sistema de saúde, estimulando a participação popular na efetivação desses princípios. Em particular, após a criação do SUS, destacamos a 12ª Conferência Nacional de Saúde15, que contou com uma importante participação da população e que apresentou, entre seus principais eixos temáticos, a comunicação e informação em saúde. Neste contexto, contudo, deve-se reiterar que persiste a necessidade de se ampliar o debate, apontada por Pitta16, ainda na década passada, em função de uma ausência de definição de políticas governamentais de comunicação, inclusive, na relação com as instituições democráticas na América Latina. Retomando a análise do campo em um contexto mais global e, em particular, latino-americano, referimo-nos ao trabalho de Rojas-Rajs e Soto5. Para os autores, a comunicação em saúde – ou ‘para a saúde’ – constitui um campo ainda em construção, pois seu impulso decisivo se originou a partir da década de 1980, e sua afirmação, como campo acadêmico, ocorreu apenas na década de 1990. O caráter recente do campo justificaria o conjunto de análises e estudos, que se restrigem a indicar a precariedade das estratégias, metodologias e avaliações do campo, assim como a marcar a relevância de considerar as perspectivas e os modos de vida dos destinatários da comunicação5. Na ausência de uma perspectiva que recupere a complexidade dos processos de determinação social, o próprio campo pode reproduzir as desigualdades em saúde, “ao considerar que o simples fato de possuir informações possibilita às pessoas tomar decisões distintas sobre sua saúde e forma de viver”5 (p. 589). Ou seja, articulam-se o paradigma comunicacional hegemônico e as concepções de saúde que elidem as determinações histórico-sociais. Em outras palavras, há uma estreita relação entre formas de dominação e modelo comunicacional, numa sociedade estruturada em termos de desigualdade e de classes sociais, inclusive, entre nações.

Organismos internacionais e saúde Em linhas gerais, a relação entre os países centrais, periféricos e os organismos internacionais é pautada pela perspectiva ideológica de que os países considerados desenvolvidos têm o conhecimento, a intenção e a experiência necessários para elaborar proposições no sentido de que os demais países alcancem, também, o mesmo patamar de desenvolvimento. Apaga-se, neste percurso, que as diferenças históricas, econômicas, políticas, culturais e sociais – produzidas pelas próprias contradições do capitalismo – são entraves estruturantes para as iniciativas de intervenção aplicadas às nações. Além disso, não se colocam em questão os ideais de progresso, desenvolvimento e civilização hegemônicos, que acabam funcionando como legitimação de políticas de dominação sobre estes países, muitas vezes, sob a capa da defesa dos direitos humanos e de um ideal de democracia anistórico e eurocêntrico1,7,17,18. A OMS, criada em 1948, pode ser identificada como uma agência internacional que, para influenciar, monitorar e avaliar as políticas de saúde em todo o mundo, emprega a cooperação técnica e científica como principal estratégia19. Em 1902, foi criada a Opas, por meio da Convenção Sanitária Internacional, sendo reconfigurada no contexto de Guerra Fria pós-Segunda Guerra. Neste sentido, pode-se compreender a atuação da OMS em termos da “saúde global” como parte da perspectiva de que a globalização econômica e as forças de mercado produziriam a homogeneização da riqueza e do desenvolvimento; e estas mudanças econômicas contribuiriam para o desaparecimento dos ‘egoísmos 302

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nacionais’ e para a construção de um governo democrático e global, responsável pela paz dos mercados e dos povos20. Assim, observa-se uma tendência de que trajetórias históricas de dominação e exploração entre nações sejam apagadas, reproduzindo a perspectiva ideológica de que o desenvolvimento homogêneo é possível, desde que sejam aplicadas medidas consideradas eficazes e pontuais. Por fim, voltando ao estudo de Rojas-Rajs e Soto5, é de se observar que, no âmbito da Opas e da OMS, a perspectiva de saúde como uma dimensão individual (e não social) se relaciona com a lógica de enfocar a população como consumidor (de produtos e serviços de saúde) e como receptor (de informações no campo da comunicação e saúde). Portanto, podemos supor que, na atuação dos organismos internacionais, concepções de saúde, modelos de comunicação e formas de relações sociais encontram-se imbricados, reiterando a articulação entre política, modelos comunicacionais e formas de dominação contemporâneas, tratadas no item anterior.

Análise discursiva dos manuais (OMS e Opas) Na área da saúde e, em particular, no âmbito das políticas públicas de comunicação e saúde, guias, cartilhas e manuais podem ser considerados como um dos balisadores da prática profissional. Os textos produzidos e divulgados, provenientes de organismos internacionais, além de organizarem o trabalho, apresentam um objetivo instrucional evidente. Em particular, podemos afirmar que os manuais constituem, hoje, um importante material didático e uma ferramenta de gestão do trabalho, assim como um espaço de produção discursivo-ideológica. Especificamente em relação à comunicação e saúde, estes materiais de saúde podem atuar na afirmação de determinadas formas de comunicação e na legitimação das políticas públicas de saúde em curso21. Compuseram o corpus da pesquisa os dois únicos manuais produzidos pelos organismos internacionais de saúde cujas temáticas tratavam do objeto delineado, por ocasião da configuração e organização do material de análise (2010-2011). O primeiro, intitulado manual ‘Comunicação eficaz com a mídia durante emergências de saúde pública’, foi traduzido e publicado pela Editora do Ministério da Saúde, em 2009, em português, tendo sido publicado, originalmente, pela OMS em 2007. Na página da ficha catalográfica, constam dois autores (Randall N. Hyer e Vincent T. Covelho). São descritos, como público-alvo, o pessoal de campo (escritórios) da OMS, que não estaria familiarizado com a mídia, os agentes de saúde pública e os comunicadores de saúde pública. Este manual é organizado em torno de sete passos para se alcançar o objetivo de comunicação eficaz com a mídia. O texto apresenta, ainda, inúmeros quadros, tabelas e modelos com as indicações a serem seguidas pelos profissionais e conteúdos no treinamento de equipes22. O segundo manual analisado foi ‘Gestión de la Información e Comunicación en emergencias y desastres’, publicado pela Opas, em 2009, somente em inglês e espanhol. Trabalha-se, nesta pesquisa, com a versão em espanhol de autoria da própria Opas. Na página de Agradecimentos, é mencionado que o conteúdo é resultado de intenso processo de participação e consulta regional. Identificou-se, neste, um direcionamento mais específico para o que chamam de “equipes de resposta aos desastres”, “mas também aos profissionais nacionais ou internacionais de comunicação e informação que tenham interesse ou trabalhem em ações de preparação ou de resposta a desastres no setor saúde”23 (p. 8). A análise dos manuais segue a orientação teórico-epistemológica da análise do discurso franco-brasileira24. Tal orientação implica que consideremos estes materiais como espaços políticos contraditórios que legitimam, produzem e fazem emergir sentidos sob a lógica da sociabilidade hegemônica, embora não deixem de ser espaço e objeto de luta social. Assim, enfocamos o discurso como um campo de disputa, no caso, atrelado às políticas de saúde em curso e a outros processos de reprodução e transformação social. O processo de reprodução se expressa, sobretudo, pela noção de ideologia, que, na análise do discurso, se traduz pela ‘evidência de sentido’24 – ou seja, pela produção discursiva da obviedade de significado, remetendo, em última instância, à (suposta) impossibilidade de uma forma de sociabilidade diferente da capitalista. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Ademais, para a AD, por sua inscrição teórica no marxismo e na psicanálise, a evidência de sentido aponta, contraditoriamente, para o não-dito: aquilo que se tenta silenciar, mas cuja emergência se dá exatamente neste processo. Como ruptura e superação – de natureza ontológica e epistemológica – das teorias idealistas e positivistas produzidas pela Linguística, a AD está longe de se limitar ao estabelecimento de procedimentos metodológicos. A rigor, a AD se oporia ao estabelecimento de metodologias fetichizadas, que isentariam o analista do trabalho interpretativo, histórico e ideológico da língua. Em outras palavras, [...] Análise do Discurso é um campo de pesquisa que não possui uma metodologia pronta. Isso significa que ao lançar mão [...] do arcabouço teórico, [...] o analista estará ao mesmo tempo alçando os dispositivos metodológicos. [...] Desse modo, as pesquisas neste viés possuem sempre um caráter qualitativo-interpretativista. Não há análise quantitativa de dados. Buscase, no geral, realizar uma ‘exaustividade vertical’ como dispositivo analítico [...] considerando os objetivos da pesquisa, que podem incluir os efeitos de memória, da história, as ideologias, as heterogeneidades constitutiva e mostrada, os não-ditos. [...] Na AD, a metodologia de análise não consiste em uma leitura horizontal, ou seja, em extensão, do início ao fim do texto, tentando compreender o que o mesmo diz, uma vez que todo texto é incompleto. Mas, realizase uma análise em profundidade, que é possibilitada pelo batimento descrição-interpretação em que se verifica, por exemplo, posições sujeito assumidas, imagens e lugares construídos a partir das regularidades discursivas evidenciadas nas materialidades.25 (p. 62)

Esta matriz epistemológica apontou para a análise do discurso dos manuais em seu papel na (re)produção e consenso social – portanto, nos processos de hegemonia –, enfocando as noções relacionadas à sociedade, saúde e comunicação também como efeitos ideológicos. A ‘exaustividade vertical’ possibilitou, assim, formular a discussão dos manuais em foco a partir dos sentidos de: ‘população’; ‘emergências e desastres’; e ‘comunicação’. As duas primeiras noções constituem a base das próprias ações propugnadas nos manuais, ou seja, que grupos sociais serão considerados ‘em risco’, e o que define uma situação como excepcional. Estas duas categorias se articulam para produzirem um discurso que atua na naturalização e legitimação de determinadas perspectivas sobre a comunicação e saúde e, consequentemente, sobre a própria instituição políticoideológica do campo, o que explica seu destaque na nossa análise.

População Uma primeira categoria de análise é, portanto, ‘população’. Partindo desta categoria, podemos afirmar que se observa um discurso que suscita o controle da informação e participação nos processos da comunicação em saúde. Este aspecto pode ser observado a partir da caracterização e definição da população nos manuais, delineadas com o objetivo de adequar a comunicação e a gestão da informação a públicos-alvo específicos. Assim, em trecho do manual da OMS, as ‘populações especiais’ são apresentadas como uma das limitações com que a mídia pode se deparar no processo da comunicação eficaz: Jornalistas são quase sempre mal preparados para atender às necessidades de informação de populações especiais durante emergências relacionadas à saúde. Eles também podem não ver como o seu trabalho ou papel comunicar diretamente com estes públicos. Populações especiais incluem as pessoas idosas, portadores de deficiências, sem teto, pessoas confinadas em suas casas, minorias raciais e culturais, minorias lingüísticas, analfabetos, populações transitórias (por exemplo, turistas, viajantes a negócios e trabalhadores migratórios) e populações encarceradas. Porque os veículos de comunicação de massa adaptam seus conteúdos para alcançar grupos demográficos particulares, é papel dos órgãos de saúde pública transmitir sua mensagem para as mais variadas audiências pelos mais diferentes canais possíveis. Isto inclui audiências 304

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especiais, que não podem ou não irão receber, entender ou agir de acordo com a mensagem da saúde pública.22 (p. 29)

Conforme se pode constatar, as populações especiais se referem a conjuntos que representam grandes quantidades de grupos sociais, pois, quando se unificam pessoas idosas, sem teto, portadores de deficiência, minorias raciais, as minorias deixam de ser quantitativamente minoritárias na contemporaneidade. Seria o caso, inclusive, de explicitar o não-dito: quem estaria incluído como população ‘não especial’ e a que parcela da sociedade esta categorização se refere? A não-definição destas categorizações das parcelas da sociedade – a partir do rótulo supostamente neutro de ‘população especial’ – recobre conflitos e desigualdades. Não se trata de um equívoco técnico-linguístico, e sim de construção do discurso e da ideologia calcada no não-dito e na evidência de sentido. O que se apaga é que a população especial não constitui uma exceção, mas resulta de uma forma de sociabilidade, em que a vulnerabilidade é, na verdade, massiva. Em outras palavras, o objetivo de buscar controlar o que é divulgado e apresentado para a população não é per se problemático. Na verdade, em situações de epidemia, por exemplo, a divulgação descontrolada das informações pode gerar culpabilização dos doentes pela população; como consequência, os atingidos tendem a não reportar a doença ou a não se dirigir às instituições de saúde responsáveis, agravando o quadro epidêmico. O que está em questão aqui são os sentidos construídos em torno do que subjaz a estas formas de controle, no caso, a própria definição da exceção em termos de ‘população especial’. Tal categoria tende a apagar os processos de produção social da (falta de) saúde e, portanto, legitima o descompromisso com a garantia dos direitos (de saúde). Contraditoriamente, os manuais, em alguma medida, ao buscarem garantir a qualificação dos quadros e o estabelecimento de normas de atuação profissional, promovem, também, a naturalização da desigualdade – e da intervenção pontual como única solução.

Emergências e desastres No que tange às noções de emergência e desastre, observam-se dois movimentos discursivoideológicos: num primeiro plano, a tentativa de silenciar o político; num segundo plano, a legitimação da desobrigação por parte do Estado em cuidar de problemas de saúde pública previsíveis, passíveis de serem alvo de medidas de prevenção, com investimentos e ações permanentes, de forma a minimizar os denominados riscos. No manual da OMS, consta a definição de emergência como “uma situação séria, inesperada e potencialmente perigosa que demanda ação imediata”24 (p. 17). No manual da Opas, não há definição para desastre ou emergência. O da OMS24 apresenta, ainda, um quadro com as causas de emergência em saúde pública, que, em tradução livre, seriam: Ponto de informação – Causas de emergências de saúde pública • Agentes de risco de transmissão respiratória; • Agentes de risco de transmissão por alimentos; • Agentes de risco de transmissão pela água; • Agentes de risco de transmissão por vetores; • Agentes infecciosos desconhecidos; • Agentes de risco químicos; • Materiais tóxicos; • Agentes de risco biológicos; e • Material radioativo. Emergências podem também aparecer rapidamente como resultado de: • Desastres naturais; • Atividades militares; • Atividades terroristas;

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• Revoluções políticas; • Acidentes, incidentes ou explosões em indústrias ou usinas nucleares que causem ferimentos, mortes, dano de propriedade e perdas econômicas; • Investigação de mídia que descobre ações erradas; • Vazamentos oficiais de informações sigilosas; • Brechas de segurança (deliberadas ou acidentais); e • Escândalos.24 (p. 97)

Para iniciarmos nossa análise destas concepções, é necessário recuperar o conceito ampliado de saúde, em sua historicidade, resultante da luta do conjunto de trabalhadores, incluindo os de saúde. Desta forma, hoje, pode-se concordar que: Em sentido amplo, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de organização social, de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida.26 (p. 4)

Todavia, quando um manual voltado para treinar os comunicadores na área da saúde caracteriza inúmeras situações como emergência, pode-se questionar como estas podem ser compatíveis com o primeiro conceito de emergência, definido, no mesmo texto, como ‘situação séria e inesperada’. Um ‘risco químico’ é ‘inesperado’, se considerarmos a atual escalada tecnológica do capitalismo? Uma ‘revolução política’ é para ser tratada como algo a ser combatido, como um ‘desastre’? Ou ainda: ‘atividades militares’ e ‘atividades terroristas’ constituem, hoje, exceção na lógica de um mundo que permanece polarizado? O manual da Opas, mesmo não apresentando uma definição explícita de emergência ou desastre, aponta na mesma direção a respeito das situações que devem sofrer intervenção, como emergências de saúde pública. Ou seja, o que deve ser tratado como prioridade (como emergência) em saúde pública, é definido, em conjunto, pelos organismos internacionais e pelos Estados nacionais. Cabe destacar que, desta forma, uma situação previsível, porém não totalmente evitável, como um desastre natural (terremoto), é colocada no mesmo patamar de uma situação prevenível (como epidemias de dengue). Assim, a produção social da saúde fica apagada nesta formulação. Em última instância, silencia-se a sociabilidade que explica as condições precárias de existência, assim como justifica-se a falência do Estado – e, consequentemente, sua desresponsabilização – em resolver situações correntes de agravos à saúde, na medida em que estariam na ordem do incontrolável e do não-humano. Ou seja, ‘intervenção’ e ‘desresponsabilização do Estado’, neste caso, produzem, também, um efeito ideológico-discursivo que naturaliza a produção histórica das condições precárias de vida. O segundo movimento discursivo – a legitimação da desobrigação, por parte do Estado, em cuidar de problemas de saúde pública previsíveis – se expressa na transferência de responsabilidade para o âmbito da sociedade civil, tratada, no texto da OPAS, no que diz respeito à busca de ajuda externa, cuja tradução livre é: Aos atores humanitários tradicionais – como as agências das Nações Unidas e o Movimento da Cruz Vermelha – se somam cada vez mais organizações não governamentais com uma grande capacidade logística e de mobilização de recursos. Os doadores, quer sejam privados ou públicos, individuais ou corporativos, também tem aumentado e diversificado sua participação.23 (p. 48)

Numa forma social cindida em classes, seguindo a perspectiva gramsciana, podemos afirmar que os aparelhos privados de hegemonia e seus mecanismos de financiamento não são neutros: neste caso, eles tendem a buscar reproduzir a lógica na qual um conjunto de problemas sociais, 306

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incluindo os de ‘saúde’, são tratados como exceções ou emergenciais. O manual contribui para este processo, na medida em que produz os sentidos até aqui analisados e coloca, de forma positiva, tais aparelhos no cenário decisório da gestão da saúde, inclusive, lado a lado das organizações de caráter governamental. Em suma, a concepção de emergências e desastres, nos manuais analisados, apaga o caráter histórico e social da produção da saúde, seja por figurar conflitos sociais, como ‘atividades terroristas’, ‘revoluções políticas’ e ‘atividades militares’, como situações de exceção, seja por naturalizar uma suposta impossibilidade de um tratamento público, pelo Estado, das questões coletivas de saúde.

Comunicação Observa-se, nos manuais analisados, um tratamento da produção e circulação do conhecimento que tende a estabelecer uma sinonímia entre comunicação e ‘emissão de mensagens’, e que aponta para um apagamento da informação como uma relação social. Um primeiro trecho a ser ressaltado, na análise da concepção de comunicação nos manuais em foco, ocorre na introdução do manual da OMS22, como nota de rodapé. Esta esclarece que o termo ‘comunicação’ é entendido como “um meio de enviar ou receber informações. Também – o processo pelo qual informação é trocada entre grupos ou indivíduos por sistemas mutuamente compreendidos de linguagens, símbolos, sinais ou comportamentos” (p. 17). Procura-se, assim, estabelecer uma concepção de comunicação dialógica, que envolve troca. Todavia, a análise sugere que essa definição e concepção de comunicação não se sustenta. Se estabelecermos um diálogo entre os dois manuais, podemos destacar um trecho do manual da OPAS, quando este apresenta que uma das responsabilidades das equipes de resposta é de “coordenar as ações de divulgação e distribuição oportuna e eficiente da informação”23 (p. 17), o que entra em contraponto com o segmento anteriormente destacado no outro manual. Com a multiplicação das formas impulsionadas pelas tecnologias de informação e comunicação, os meios de comunicação têm incorporado algumas estratégias que indicam o ‘diálogo’ com o público; contudo, essas estratégias acabam se resumindo, por exemplo, a pesquisas para votar o que se deseja assistir na programação ou fazer comentário sobre programas com formato preestabelecido pelas corporações midiáticas. Estas estratégias não apontam uma real possibilidade de participação popular, estando tal impossibilidade condicionada por uma desigualdade na produção da informação, da comunicação e do saber. Reiteramos que, neste contexto, a teoria emissor-receptor não desapareceu. Centrando nossa análise no manual da OMS, destacamos uma referência direta à necessidade da aplicação de uma concepção de comunicação como linear, pela referência à teoria do ruído: A preparação de todos os tipos de mensagem acima deve ser guiada por teorias e princípios da comunicação eficaz com a mídia. Por exemplo, ‘a teoria do ruído mental’ é uma das principais construções da literatura de comunicação em emergência. Esta teoria reconhece que quando as pessoas estão preocupadas elas freqüentemente têm dificuldades para compreender e lembrar-se das informações. Este efeito pode reduzir a habilidade da pessoa para processar informações em mais de 80%, e o desafio para a comunicação de risco, desta forma, é: superar as barreiras que o ruído mental cria; produzir mensagens precisas para várias audiências em diversos contextos sociais e culturais; e alcançar o máximo de eficácia da comunicação dentro das restrições impostas pelo ruído mental.22 (p. 78)

Por fim, ainda sobre a concepção de comunicação, destaca-se, já no manual da OPAS, o capítulo que trata dos meios de comunicação. O capítulo é apresentado da seguinte forma23, em tradução livre do original: 4. Como trabalhar com os meios de comunicação? 4.1 Os meios de comunicação durante as emergências e desastres 4.2 Entendendo os meios de comunicação?

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4.3 O que buscam os meios? 4.4 Como chegar aos meios?23 (p. 61)

Os meios de comunicação, neste caso, são apresentados de forma fetichizada, dotados de vida própria e formulados de modo independente da produção social. Inevitável nos remetermos aqui a outro mecanismo discursivo-ideológico que atravessa a sociabilidade capitalista: a personificação do ‘mercado’. Ou seja, neste caso, os grandes oligopólios da comunicação deixam de ter proprietário e passam a existir com uma vida autônoma, independente das relações sociais efetivamente produzidas pelos homens; neste contexto, nada mais evidente do que se adaptar a estes meios. Em suma, um ponto crucial aqui consiste em apontar que a comunicação dialógica requer, dialeticamente, uma mudança estrutural na sociedade, onde quem fala e quem escuta estejam em igualdade social. Esta contradição é apagada nos manuais em foco.

Considerações finais O artigo almejou analisar o discurso sobre comunicação e saúde em manuais de emergência e desastres produzidos por dois organismos internacionais de saúde (OMS e Opas). A partir da análise, podemos afirmar que, nos manuais mencionados, as noções de ‘população’, ‘emergências e desastres’, e ‘comunicação’ são destituídas de seu caráter histórico, social e político e, portanto, também o são as situações de saúde, pelos processos discursivos que têm como efeito ideológico a tentativa de apagamento da realidade social da cisão de classe. Como conclusão, podemos indicar que são produzidos os seguintes efeitos discursivo-ideológicos nos manuais analisados: uma desconexão entre a emergência e o desastre e a vida social; uma legitimação da desigualdade inter-nações; uma desresponsabilização do Estado nacional em relação às condições sociais de saúde desumanas; e uma perspectiva linear e instrumental da comunicação. Em linhas gerais, podemos afirmar, portanto, que os manuais contribuem para a desconexão entre saúde e produção da vida social. As concepções de comunicação desempenham papel relevante neste processo, na medida em que os manuais, embora explicitem uma busca pela reversão do paradigma unilinear e transferencial, reproduzem, em grande medida, nos termos analisados no artigo, tais modelos hegemônicos. Contraditoriamente, ao buscarem aperfeiçoar os vínculos de comunicação com a população, reproduzem e naturalizam as formas de desigualdade social, nas quais se incluem os modelos hegemônicos de comunicação. Em última instância, tais contradições expressam a dinâmica dos processos de dominação em jogo no campo da comunicação e saúde, nos quais a disputa permanece aberta, porém sob a lógica das determinações da sociabilidade capitalista. Neste contexto, em que a população tende a ser reduzida à condição de receptora de informações de saúde esvaziadas de sua dimensão política, apontamos a necessidade de aprofundar a discussão sobre as concepções de qualificação e trabalho reproduzidas e produzidas no material em questão, na medida em que estes são escritos na perspectiva de ocuparem, também, uma função formativa. Uma pesquisa futura deveria analisar, portanto, tais manuais à luz das relações entre capitalismo e as teorias hodiernas de formação profissional, enfocando, em particular, a ideologia das ‘competências’, já que esta aponta para uma perspectiva comportamentalista do humano, em coerência com o modelo comunicacional dominante, discutido no presente artigo.

Colaboradores Luciana Lindenmeyer se responsabilizou pela configuração do corpus. Carla Macedo Martins trabalhou em conjunto nas demais etapas de produção do manuscrito.

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Lindenmeyer L, Martins CM. Comunicación y salud en los manuales de los organismos internacionales para situaciones de emergencia y desastre: intervención y hegemonía. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):299-310. El artículo analiza el discurso de los organismos internacionales sobre comunicación en salud en la situación de ‘emergencia y desastre’ a partir de dos manuales: uno producido por la Organización Mundial de la Salud (OMS), otro por la Organización Panamericana de Salud (OPAS). El análisis considera la actuación de estos organismos como determinada por la lógica de la ‘intervención’ que tiende a apagar las desigualdades sociales producidas por la forma societaria del capital en ámbito nacional y mundial. Tal lógica se expresa en los manuales, en los sentidos de ‘población’, ‘emergencia y desastre’ y ‘comunicación’. El artículo concluye indicando que se producen los siguientes efecto discursivo-ideológicos: una desconexión entre la emergencia y el desastre y la vida social, una legitimación de la desigualdad inter-naciones, una des-responsabilización del Estado nacional en relación a las condiciones sociales de salud deshumanas y una perspectiva lineal e instrumental de la comunicación.

Palabras clave: Análisis del discurso. Ideología. Hegemonía. Organismos internacionales. Manuales de salud. Recebido em 07/02/14. Aprovado em 14/10/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0552

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Comunicação entre trabalhadores de saúde e usuários no cuidado à criança menor de dois anos no contexto de uma unidade de saúde da família* Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus(a) Rebecca Soares de Andrade(b) Lidia Ruiz-Moreno(c) Luciane Soares de Lima(d)

Coriolano-Marinus MWL, Andrade RS, Ruiz-Moreno L, Lima LS. Communication of healthcare workers and users in caring for children under two years old in the context of a family health unit. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):311-23. The study aimed to ascertain the conceptions that health workers and users have regarding communication in caring for children under two years old using the Habermas Communicative Action Theory. This was a qualitative study in which the data-gathering technique consisted of semi-structured interviews with healthcare workers and the caregivers of children under two years old in order to obtain support for studying communication. The data were subjected to thematic content analysis. Two thematic categories were identified an instrumental category, given that its characteristics were geared to the domain and information transfers; and another one called the shared category, since it was understood as communion of knowledge between healthcare workers and users, containing approximations to the assumptions of Communicative Action Theory. It was suggested that changes to the context studied should be made, from the perspective of constructing of communicative dialogue practices.

O estudo teve como objetivo conhecer a concepção que trabalhadores de saúde e usuários possuem sobre a comunicação no cuidado à criança menor de dois anos, adotando a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas. Trata-se de estudo qualitativo que teve como técnica de coleta entrevistas semiestruturadas com trabalhadores de saúde e cuidadoras de crianças menores de dois anos, de modo a obter subsídios para o estudo da comunicação. Os dados foram submetidos à analise de conteúdo temática. Identificaram-se duas categorias temáticas, a partir do referencial teórico proposto: uma instrumental, por suas características voltadas ao domínio e repasse de informações; e outra, denominada compartilhada, por ser entendida como comunhão de saberes entre o trabalhador de saúde e usuário, contendo aproximações aos pressupostos da Teoria da Ação Comunicativa. Sugerem-se mudanças no contexto estudado, na perspectiva de construção de práticas comunicativas dialógicas.

Keywords: Communication. Family health. Child care. Health education.

Palavras-chave: Comunicação. Saúde da Família. Cuidado da criança. Educação em Saúde.

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* Elaborado com base em “Comunicação entre trabalhadores de saúde e usuários no cuidado à criança menor de dois anos no contexto da Estratégia Saúde da Família”, tese de doutorado da primeira autora, com financiamento do Edital Capes Pró-Ensino na Saúde. (a) Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Pernambuco. Av. Moraes do Rego, s/n, campus da UFPE, Cidade Universitária. Recife, PE, Brasil. 50670-420. wandenf@yahoo.com.br (b) Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz. Recife, PE, Brasil. rebecca_soaresandrade@ yahoo.com.br (c) Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. Lidia.ruiz@unifesp.br (d) Programa de PósGraduação em Saúde da Criança e do Adolescente, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE, Brasil. Luciane.lima@globo.com

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Introdução O estudo propõe-se ao estudo da comunicação entre trabalhadores de saúde e cuidadoras de crianças menores de dois anos no contexto da Estratégia Saúde da Família, tendo em vista que a Atenção Primária à Saúde constitui-se em lócus privilegiado para a construção de práticas que devem possuir, no seu cerne, a troca de informações, a humanização do cuidado, com formação de laços solidários entre trabalhadores de saúde e população1,2. Nessa conjuntura, o Ministério da Saúde, em 2004, reforça a necessidade de ampliação do controle social no Sistema Único de Saúde (SUS), enfatizando, dentre os princípios norteadores da Política Nacional de Humanização (2004): a valorização da dimensão subjetiva e social em todas as práticas de atenção e gestão, o fortalecimento do trabalho em equipe, a atuação em rede de forma conectada, a valorização da informação, comunicação e educação permanente, na construção da autonomia e protagonismo de sujeitos e coletivos2. Neste mesmo ano, amplia, também, o escopo de atenção à criança em linhas de cuidado definidas na Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil, com ênfase em ações voltadas à saúde da criança desde o pré-natal, com vistas a garantir um crescimento e desenvolvimento adequados, por meio de várias ações que contemplem o cuidado integral e multiprofissional3. Compreende-se comunicação como todo e qualquer encontro que se efetiva entre os trabalhadores de saúde da ESF e usuários do SUS (cuidadoras e crianças) como momentos em que esta se efetiva. Algumas dificuldades têm sido apontadas como entraves para a comunicação ser conduzida de forma horizontal e multidimensional. Craco4 aponta a impessoalidade na prestação dos cuidados, o mecanicismo e a rotinização. Estes acarretam uma comunicação na qual o trabalhador de saúde controla e conduz o discursar do “outro” (usuário), guiando sua expressão, interrompendo sua fala e buscando apreender dele o que já lhe é familiar, ou seja, demandas conhecidas e reconhecidas cientificamente. No universo estudado, adotou-se, como referencial teórico, a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas para abordar a concepção de comunicação. Essa teoria diferencia dois tipos de racionalidade: a comunicativa, considerada emancipatória, e a estratégica ou instrumental. Enquanto a ação estratégica é orientada a partir de um ponto de vista utilitarista, a ação comunicativa dirige-se para a resolução de conflitos, por meio de um acordo mútuo, no qual os falantes desejam harmonizar seus planos de ação5. Em face das recentes políticas de saúde que preveem a humanização da assistência, o vínculo e acolhimento que devem ser estabelecidos entre trabalhadores de saúde e população, enfatiza-se a necessidade de estudos que possam descrever as relações estabelecidas entre esses atores sociais, para implementação de novas práticas em saúde que promovam o compartilhamento de saberes, com vistas ao cuidado integral. O estudo tem como objetivo conhecer qual a concepção que trabalhadores de saúde e usuários possuem sobre a comunicação no cuidado à criança menor de dois anos no contexto da Estratégia Saúde da Família.

Método Estudo qualitativo, fundamentado nos conceitos da Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas (2012), como referencial teórico. A coleta de dados foi desenvolvida no período de abril a agosto de 2011, em uma Equipe de Saúde da Família no município de Jaboatão dos Guararapes - Pernambuco. A equipe foi escolhida de forma intencional, em virtude de estabelecimento de vínculo entre pesquisadora e membros da equipe, por meio de coleta de dados de uma pesquisa anterior. O município de Jaboatão dos Guararapes está situado no litoral do Estado de Pernambuco. Tem extensão territorial de 256 quilômetros quadrados. Faz parte da Região Metropolitana do Recife (RMR). A população do município, segundo estimativas do ano de 2008, é de 678.346 habitantes6. 312

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A pesquisadora esteve presente na Unidade de Saúde da Família nos dias de segunda a quintafeira, em um dos turnos de trabalho da equipe, alternando-se entre o turno matutino e vespertino. A Equipe de Saúde da Família possuía, no período de coleta, uma população de 1.204 famílias adstritas. O número de crianças de zero a dois anos, no momento da coleta de dados, era de 118, das quais entrevistamos 19 cuidadoras, selecionadas de acordo com a disponibilidade no momento em que aguardavam consultas de puericultura, vacinação; bem como as que se dispuseram a participar mediante a realização de visitas domiciliares pela pesquisadora, conduzida por agentes comunitárias de saúde, compondo uma amostra do tipo intencional. A equipe era composta pelos seguintes trabalhadores de saúde: um médico, uma enfermeira, duas técnicas de enfermagem, seis agentes comunitárias de saúde, uma dentista, uma auxiliar de consultório dentário, dois atendentes e uma auxiliar de serviços gerais. Destes, participaram 11 trabalhadores de saúde, sendo: um médico, uma enfermeira, uma dentista, uma técnica de enfermagem, um atendente e seis agentes comunitárias de saúde. Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, nas quais foram utilizados roteiros específicos para trabalhadores de saúde e cuidadoras, abordando questionamentos de modo a obter subsídios para o estudo da comunicação. A entrevista abordava questões ligadas: à concepção de comunicação, ao relacionamento entre trabalhador de saúde e cuidadora, a pontos facilitadores e dificultadores de uma comunicação efetiva. O critério para limitação da amostra foi a saturação dos dados. As entrevistas foram gravadas e, logo em seguida, transcritas para posterior análise de dados, adotando-se a técnica da Análise de Conteúdo na modalidade temática, com as etapas de: leitura de cada entrevista, leitura comparativa entre as entrevistas, identificação de núcleos de sentido, subcategorização e categorização final7. Para interpretação do material analisado, adotou-se a Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas8,9. A pesquisa obedeceu às normas que regem as pesquisas com seres humanos, adotando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para todos os sujeitos participantes. Os participantes foram identificados por nomes fictícios e por letras: as cuidadoras foram identificadas de C1 a C19; o médico, M1; a Enfermeira, E1; a dentista, D1; as agentes comunitárias de saúde de A1 a A6; a técnica de enfermagem, T1, e o atendente, At1. A pesquisa obteve aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Oswaldo Cruz/Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco.

Resultados e discussão No perfil das cuidadoras, a faixa etária predominante foi a de vinte a trinta anos (13), uma era menor de vinte anos, e cinco possuíam mais de trinta anos. Quanto à renda familiar, a maioria tinha a renda de um salário-mínimo (11), proveniente, sobretudo, do trabalho dos esposos: seis possuíam renda de menos de um salário-mínimo e duas possuíam renda de um a dois salários-mínimos. Tratava-se de uma população de baixo poder aquisitivo, na qual todas as cuidadoras entrevistadas não possuíam atividade remunerada, sendo as atividades ligadas ao cuidado com os filhos e casa. Em relação à escolaridade: uma possuía o Ensino Fundamental incompleto, três possuíam Ensino Fundamental Completo, cinco Ensino Médio Incompleto e dez Ensino Médio Completo. Quanto à idade das crianças cujas cuidadoras participaram do estudo, dez eram menores de um ano e nove tinham idade entre um ano a um ano e 11 meses. O acompanhamento das cuidadoras pela Unidade de Saúde da Família variou de quatro meses a dez anos. Quanto ao perfil dos trabalhadores de saúde, em relação à faixa etária, a maioria possuía quarenta anos ou mais (sete), três possuíam de trinta a quarenta anos, e um era menor de vinte anos. O tempo de trabalho variou de seis meses a 21 anos, a maioria possuía mais de dez anos de experiência (seis). Em relação à escolaridade, três possuíam pós graduação lato sensu; seis, Ensino Médio completo; um, Ensino Médio incompleto, e um, ensino técnico. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A partir da análise dos dados, as falas dos participantes corroboraram as concepções de comunicação exploradas por Habermas, as quais dividimos em duas categorias denominadas: 1) A comunicação no aspecto instrumental: o saber científico como verdadeiro; 2) A comunicação compartilhada: aproximações à ação comunicativa.

Categoria 1: a comunicação no aspecto instrumental: o saber científico como verdadeiro A percepção de comunicação no aspecto instrumental abrangeu, na visão das usuárias, o repasse de informações, dificuldades de escuta às suas demandas e falta de diálogo. A fala da cuidadora 6 exemplifica – na visão do grupo de entrevistadas que entendem a comunicação sob a ótica instrumental – as dificuldades no estabelecimento de uma relação bilateral de troca e escuta às suas demandas durante as consultas. “tem dúvida que eu quero tirar lá e num consigo, quando chega aqui com minhas amiga eu consigo falar tudo da minha vida [...]. Eles {trabalhadores de saúde} num conseguem, tem gente que eles consegue tirar as dúvida diretin, mas tem gente que não, e a gente fica é cum medo de tirar as dúvida”. (C6)

Para C6, a comunicação estabelecida não responde às suas expectativas, pela falta de confiança e dificuldades em estabelecer uma relação de troca, em contraposição ao relacionamento que estabelece com amigas e vizinhas. Este modelo comunicativo representa características do modelo de comunicação unilinear, caracterizado por práticas comunicativas, que se movimentam de um emissor a um receptor10. As falhas encontradas no processo comunicativo do presente estudo se deram no âmbito da escuta e no modo de emissão da fala por parte de alguns trabalhadores de saúde, o que acaba comprometendo a confiança e inviabiliza a abertura de canais comunicativos para que ocorra uma relação dialógica. Esses aspectos terminam reforçando as relações de poder entre os trabalhadores de saúde e a população assistida, a qual se considera apenas demandatária de cuidados, mas não participa de forma proativa na gestão do seu autocuidado. Para a cuidadora 16, o principal entrave para uma comunicação efetiva estava na dificuldade de escuta do profissional médico e na inviabilização do diálogo. “[...] cum a minina da vacina e cum o agente de saúde eu num tenho o que dizer não. Cum o médico, o fato dele se expressar melhor, num é que ele seja agressivo, mas ele num sabe se expressar, ele divia ter mais paciência”. (C16)

Para a comunicação ser considerada satisfatória, a cuidadora 6 aponta a necessidade de algumas mudanças: “Uma pessoa cunversar cum eles {trabalhadores de saúde}, né? Explicar que eles tem que tirar as dúvida dos paciente, que eles tão ali já pra tirar as dúvida da gente, que a gente num sabe, porque eles são profissionais, tá ali pra tirar dúvidas, né? chamar a atenção, né? Explicar o que tá errado, a pessoa fala, eles já tão com ignorância, acha que sabe de tudo, mas num é assim, né?”. (C6)

A precariedade da comunicação é uma problemática que pode resultar em desentendimento, desconfiança, distorção de ideias e situações de dominação11. Numa situação de fala, existe um falante que se comporta como um eu (ego), que faz um proferimento em relação ao mundo, aos outros homens ou a si mesmo, para o qual busca o assentimento de outro eu (alter). Nesse caso, é necessário que alter compreenda o que ego diz, demonstrando conhecimento do sentido dos termos utilizados por ego (que corresponde à dimensão 314

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semântica da linguagem), sendo ainda relevante a dimensão performativa ou pragmática, na qual alter assume uma posição de reação ao proferimento de ego, e na qual a linguagem assume uma dimensão de ação social, por meio do estabelecimento de uma relação entre atores sociais por intermédio da fala12. Contudo, na concepção de alguns sujeitos da pesquisa, a comunicação não tem assumido a função de integração entre os vários atores sociais envolvidos, tendo em vista que, para algumas cuidadoras, existem temores perante o posicionamento dos trabalhadores de saúde que os assistem. Essa realidade gera reflexos na concretude do princípio doutrinário de controle social do SUS, pois, ao passo que os usuários se intimidam perante o serviço de saúde que os assiste, isso dificulta o alcance do direito à saúde de forma plena, universal, integral e equitativa. Quando questionamos os trabalhadores de saúde sobre a comunicação, para muitos deles, esta também se revestiu numa visão instrumental, voltada ao repasse de informações dentro do universo biomédico. Foram apontados, como entraves para a comunicação satisfatória, a falta de êxito às recomendações e orientações que são prestadas à clientela, evidenciados nas falas da Enfermeira e da agente comunitária de saúde 6: “As orientações que a gente dá, elas seguirem, às vezes, o aleitamento materno, a gente fala, quando vê, elas já tão dando outras coisas”. (E1) “Eu acredito que é isso mesmo, o objetivo é esse: trabalhar cum prevenção, vacina, gestante, pra elas se interessarem em vir pro pré-natal, o aleitamento materno, que às vez a vó desvia esse objetivo principal que é amamentar pelo menos seis meses e chega a avó: ‘não, criei meu filho sem isso’ e a gente tenta fazer isso, num sair do objetivo do programa, porque se deixar sai. As palestra já num tem mais, as criança num tem mais tanta prioridade, mas o progama é isso, trabalhar cum orientação, palestra”. (A6)

O posicionamento de E1 demonstra a preocupação com o êxito técnico, enquanto a dimensão relacional poderá estar secundarizada. Em estudo abordando a comunicação entre médicos e pacientes, por meio de entrevistas e observação das consultas, os autores destacam que, quando os pacientes não conseguem resultados bem-sucedidos, eles consideraram como pontos importantes a compreensão, consolo e encorajamento por parte do médico13. Desse modo, é relevante a motivação do trabalhador de saúde e a compreensão do usuário quando um resultado não é bem-sucedido. Destaca-se a importância do processo de formação dos profissionais da área de saúde, tendo em vista que as Diretrizes Curriculares Nacionais14 enfatizam novas competências e papéis a serem desenvolvidos nos graduandos para o futuro exercício profissional. O objetivo principal constitui levar os alunos dos cursos de graduação em saúde a aprender a aprender que engloba aprender a ser, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a conhecer, garantindo a capacitação de profissionais com autonomia e discernimento para assegurar a integralidade da atenção e a qualidade e humanização do atendimento prestado aos indivíduos, famílias e comunidades. Para A6, por sua vez, há menção sobre a relevância da ação educativa em saúde, embora essa receba uma conotação prescritiva e tradicional, mencionada sob a forma de palestra. Além disso, as diretrizes da ESF poderão estar recebendo uma interpretação rígida e normativa, com objetivos e metas a serem rigorosamente cumpridos, o que compromete a criatividade, os aspectos de troca e atenção para com os saberes e crenças da população. Pelos discursos de E1 e A6, representando o grupo de trabalhadores de saúde que enxergam a comunicação de forma instrumental, a relação que é estabelecida junto às cuidadoras visa predominantemente resultados de mudanças de comportamento para adoção de práticas saudáveis, como, por exemplo, a adesão ao aleitamento materno. Na visão das entrevistadas, o modelo de comunicação adotado não se mostra eficaz, por não trazer resultados satisfatórios no que se refere aos aspectos de promoção da saúde da população. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Sob o parâmetro da teoria da ação comunicativa de Habermas, o mundo da vida, em algumas situações, pode ser colonizado, quando ações estratégicas são implementadas em detrimento de atos comunicativos, sendo que, enquanto a comunicação procura o entendimento mútuo, a ação estratégica visa o sucesso, no caso do discurso biomédico, objetiva o diagnóstico e a cura15. Porém, a missão dos trabalhadores de saúde deverá perseguir a busca de um diálogo horizontal para a conquista de um cuidado humanizado e integral. Em trabalho16 sobre concepções de educação em saúde por trabalhadores de ESF, os choques entre culturas que se dão entre trabalhadores de saúde e usuários são fenômenos usuais, já que a consulta ou outros momento de interação, como grupos de educação em saúde e visitas domiciliares, requererem troca de informações. Embora os profissionais encontrem contribuições no conhecimento popular, na maioria das vezes, não estão preparados para lidar com outros saberes, inclusive o popular, sentindo-se pouco reconhecidos e valorizados, quando, na verdade, a não-adesão do usuário ao procedimento explica-se porque o que é proposto não faz sentido ao seu universo de representações. Percebe-se que, mesmo os Agentes Comunitários de Saúde, que pertencem ao cenário de vida das famílias sob sua responsabilidade, acabam incorporando o saber técnico nas suas visitas domiciliares e no processo de educação em saúde, como menciona a agente comunitária de saúde 4: “É assim, sempre a gente andar cum a verdade, é isso que eu faço quando eu vou pra minhas visitas, eu vou, informo, se num souber, pergunto a Beth(e){Enfermeira}, pergunto às colegas {agentes comunitárias de saúde}”. (A4)

Para A4 há uma preocupação com um “saber verdadeiro” a ser conduzido durante suas visitas domiciliares, porém é preciso que não esqueçam que estes saberes precisam fazer sentido à população assistida para a incorporação de uma prática solidária e autônoma. Estes conhecimentos vão ser somados a outras fontes, como mídia, vizinhança e familiares. Reforça-se a importância de uma prática educativa com foco na reflexão crítica sobre a prática exercida, de forma a melhorar as práticas futuras. Desse modo, entendemos a importância da construção do papel crítico do agente comunitário de saúde, de forma a ser o elo entre equipe de saúde e população. Para D1, o discurso é visto sob o aspecto monológico, no qual o papel dos trabalhadores é repassar a orientação às cuidadoras. “[...) como elas {mães} vem e se interessam no que a gente tem pra falar, eu acho que a gente sai ganhando, a maioria faz, higienização, escovação, eu acho interessante, eu acho positivo”. (D1)

É relevante que a ação comunicativa resulte em significado para todos os atores que dela participam. O ato comunicativo não pode ser uma via de condução simples, na qual apenas os trabalhadores tenham algo a transmitir e informar, deve ser uma via de mão dupla, que resulte em significados para todos. Corroborando nossos achados, Araújo e Cardoso18 abordam essa dificuldade em quebrar a natureza linear e unidirecional da comunicação entre trabalhadores de saúde e usuários. Quando a comunicação é interpretada de forma unidirecional, esse aspecto contribui para a manutenção de um processo vertical que não consegue captar as singularidades de cada sujeito, dificultando a experiência de um cuidado integral e participativo. 316

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Nome fictício dado à enfermeira.

(e)


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No discurso de A6, por sua vez, percebe-se que uma outra dificuldade está na comunicação que é estabelecida dentro da equipe, a qual ocorre num processo de hierarquização “daqueles que mais sabem” para “aqueles com conhecimentos inferiores”, e que, posteriormente, pode ser reproduzido pelo ACS no exercício do seu trabalho. “A gente tira logo a dúvida, porque a gente sabe que a turma é ignorante de informação, ou melhor, é humilde de informação, então a gente procura não misturar”. (A6)

Resultados semelhantes foram apontados por outros trabalhos realizados pelos autores19-21, nos quais se constatou que a metodologia de trabalho dos ACS tem privilegiado a prescrição comportamental, sem a problematização com os sujeitos sociais, o que pode ser um dos pontos dificultadores para incorporação dos ensinamentos na prática das famílias. Possíveis causas da unilateralidade da comunicação e educação em saúde são questões externas relacionadas ao modelo biomédico, que possui as características normalizadora, intervencionista, positivista e medicalizadora, que afetam as dimensões cognitiva, moral e afetiva, resultando na nãoutilização da comunicação como dispositivo de troca. Além disso, possíveis causas internas estão nas debilidades teóricas e epistemológicas dos trabalhadores de saúde, os quais ainda não compreendem as potencialidades de um modelo dialógico22. As causas das dificuldades dos trabalhadores de saúde em responder aos desafios e pressupostos do SUS constituem responsabilidade das instituições formadoras em saúde, que ainda reproduzem a lógica fragmentada do cientificismo, deixando de lado o mais rico da educação e da inter-relação: as relações entre professor e aluno, que, mais tarde, vão se refletir nas relações entre profissionais de saúde e seus pacientes23. Desse modo, aponta-se a necessidade de abordagem explícita da comunicação e dos aspectos relacionais durante a formação de todos os profissionais de saúde, seja por meio de disciplina específica ou de forma transversal em várias disciplinas, com vistas a modificar a compreensão da comunicação nas práticas de saúde, além de provocar mudanças nas atividades cotidianas junto aos usuários do SUS. As Diretrizes Curriculares Nacionais14 apontam esse caminho ao elencarem algumas competências gerais a serem desenvolvidas nos graduandos da área de saúde: a comunicação, que envolve acessibilidade e confidencialidade das informações a eles confiadas, na interação com outros profissionais de saúde e o público em geral, por meio de uma adequada comunicação verbal, não verbal, de escrita e leitura. Além dessa, mencionam a Educação Permanente, que pressupõe a capacidade de aprender continuamente, tanto na sua formação, quanto na prática. Destaca-se, ainda, como papel da Educação Permanente em Saúde, a abordagem e presença da comunicação em todos os encontros relacionais que se efetivam entre os trabalhadores de saúde e usuários, com a proposição e discussão de subsídios compatíveis a cada realidade, de forma a construir, de maneira solidária, laços mais horizontais e bidirecionais, com uma comunicação voltada ao entendimento, na tentativa de superação da comunicação sob a racionalidade instrumental, como atividade meio-fim.

Categoria 2: a comunicação compartilhada: aproximações à ação comunicativa A comunicação em saúde tem sido interpretada, para alguns entrevistados, como instrumento que conduz: à escuta, esclarecimento, acolhimento, entendimento, partilhamento, troca de saberes e acesso às subjetividades e singularidades do outro envolvido no ato comunicativo. Os depoimentos das cuidadoras 1 e 15 mencionam a comunicação com a enfermeira e a técnica de enfermagem, respectivamente, como satisfatória, pelo vínculo e acolhimento estabelecidos durante as consultas de enfermagem e as ações de vacinação, o que pode ser considerado como ponto positivo para o relacionamento dentro da proposta da ESF.

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“[...] o que eu pergunto e ela {Enfermeira} me responde, se for uma coisa que ela não sabe, ela me diz. Eu pergunto o que eu quero. Eu pergunto tudo, porque se eu num pergunto fico na dúvida [...]”. (C1) “Comunicação é assim, a pessoa saber conversar com você, você fazer uma pergunta e a pessoa te responder. Você chegar aqui e perguntar: ‘ah, eu gostaria de saber sobre a vacina hoje’ e ela vai lá e diz: ‘ah, peraí fia, eu tenho que ver e a comunicação é assim, perguntar e ter a resposta certa”. (C15)

O enfermeiro, ao estabelecer uma relação social com o usuário, deve, ultrapassando a superficialidade de um atendimento, promover acolhimento em relação ao que é falado pelo cliente, para facilitar a compreensão ampliada de sua história de vida, sendo fundamental algumas características, como a linguagem verbal e não verbal24. Pelas características do trabalho que se efetiva na Estratégia Saúde da Família, o cuidado longitudinal permite, aos atores sociais, o estabelecimento de vínculos concretos no estabelecimento de planos de ação, porém, ressalta-se que este vínculo necessita apresentar uma via de mão dupla, na qual todos contribuam para a ação comunicativa. Walseth, Abildsnes e Scgei13, ao abordarem a relevância da relação médico-paciente e do aconselhamento nas práticas do cuidado em saúde, destacam a teoria da ação comunicativa de Habermas para a abordagem desta questão, tendo em vista que o comportamento do usuário perante o aconselhamento médico é influenciado por uma gama de fatores, dentre os quais se incluem questões psicológicas, sociais, comportamentais, sendo importantes, neste processo: uma boa relação profissional-paciente, o diálogo respeitoso em busca da compreensão mútua, e o envolvimento do usuário no processo de decisões compartilhadas para o exercício da sua autonomia. Corroborando a integração do usuário nas tomadas de decisões, para a cuidadora 18, a comunicação foi definida como entendimento e compreensão das mensagens produzidas pelos interlocutores: “Comunicação é quando as pessoa tão cunversando e uma intende o que a outra dá dizendo, é você perguntar e intende o que elas tão falando” (C18). Habermas8,9, ao estruturar a teoria da ação comunicativa, concebeu que a comunicação estabelecida entre os sujeitos, mediada por atos da fala, diz respeito sempre a três mundos: 1. o mundo objetivo das coisas: que corresponde a pretensões de validade referentes às verdades das afirmações feitas pelos participantes no processo comunicativo; 2. o mundo social: corresponde a pretensões de validade referentes à correção e à adequação das normas; 3. o mundo subjetivo: corresponde às vivências e sentimentos: a pretensões de veracidade, ou seja, que os participantes do diálogo estejam sendo sinceros na expressão dos seus sentimentos. Na relação comunicativa, é imprescindível o entendimento da mensagem produzida pelos interlocutores, os quais precisam realizar afirmações verdadeiras, dentro de um contexto social coerente, além de serem sinceros na manifestação dos seus enunciados. Possíveis falhas em alguma dessas pretensões conduzirão a ruídos que comprometem o entendimento mútuo e a compreensão entre os falantes. A natureza interativa do conhecimento científico e popular que se materializam no universo da ESF permite que conhecimentos originados na cultura popular complementem o saber científico, por meio de um processo de ancoragem e de transferência do universo cultural para o universo científico. Essa complementação demonstra a possibilidade de se integrarem diferentes conhecimentos na prática, promovendo uma assistência resolutiva e comprometida com a realidade da população assistida16. Assim, a comunicação deve ocorrer de forma bidirecional, gerando um compromisso de transformação dos saberes de cada um. Freire17 corrobora esta percepção de comunicação ao realçar o ato de educar como um diálogo horizontal que se nutre de amor, humildade, esperança, fé e confiança. O diálogo é visto como uma exigência existencial, que possibilita a comunicação e permite ultrapassar o conhecimento adquirido, vivido.

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Na visão do nosso outro grupo de participantes, os trabalhadores de saúde, a comunicação também foi percebida como possibilidade para trocas, com escuta do usuário na sua singularidade, para apreensão de demandas nem sempre explícitas, como demonstra a agente comunitária de saúde 3: “A gente aprende muito cum a comunidade, é um aprendizado, é uma troca de conhecimento, eu acho muito importante” (A3). Para A3, o processo educativo em saúde é mediado por trocas na construção de um conhecimento compartilhado, sendo reconhecido que, nessa ação, tanto o educador (trabalhador de saúde) como o educando (usuário) sempre têm algo a oferecer na mediação ensino-aprendizagem. A partir da afirmativa de Freire25 (p. 22), de que “o conhecimento não se estende do que se julga sabedor até aqueles que se julga não saberem”, entendemos a importância de uma educação emancipatória no contexto da Estratégia Saúde da Família. Com essa postura, somos conduzidos ao compartilhamento de saberes, que consiste em respeitar o saber de senso comum e reconhecer a incompletude do saber profissional; o que não significa abdicar do conhecimento científico ou submetê-lo ao senso comum, mas entender que há diferentes saberes, dentre eles, o saber profissional, que também é incompleto e inacabado, pois se mantém em constante construção e necessita ser permanentemente revisto, contextualizado, confrontado e aproximado a outros saberes, sobretudo, o de senso comum, para se transformar em conhecimento útil26. Para a agente comunitária de saúde 6, a comunicação entre o ACS e a comunidade apresenta algumas particularidades, como maior proximidade e vínculo com as famílias por meio das visitas domiciliares, além de uma linguagem mais acessível e de maior apropriação por parte das famílias. “Eu acredito que seja boa {a comunicação}, também cum 13 anos que trabalho, elas escutam, elas confiam, elas acreditam muito na gente, nós é que tamo todo dia, todo dia entre aspa, pelo menos uma vez por mês, então, é uma boa comunicação, falar cum elas duma maneira mais clara, talvez a cunversa do médico seja mais diferente, eles falam mais tecnicamente, a gente fala mais a lingua deles”. (A6)

Para Habermas, a linguagem enquanto veículo de comunicação interessa do ponto de vista da prática social. Tomando os atos de fala enquanto sentenças de um proferimento, o autor considera a existência de três tipos de atos de fala: 1 atos locucionários (o falante, simplesmente, diz algo, expressa um estado-de-coisas), 2 ilocucionários (realiza uma ação enquanto diz algo), e 3 perlocucionários (causa um efeito sobre o ouvinte, produz algo no mundo)8,9,12. Nesse caso, a agente comunitária de saúde menciona a realização de atos ilocucionários e perlocucionários, por pertencer ao universo cultural daquela população e conhecer, com profundidade, a linguagem, os costumes e necessidades, tornando-se um trabalhador de saúde apto a produzir uma comunicação mais efetiva dentro da sua prática profissional. Na compreensão do médico da equipe, entende-se como comunicação efetiva aquela que propicia uma escuta qualificada por parte dos trabalhadores de saúde, tendo em vista as necessidades e carências da população: “Tudo é comunicação [...] até você ouvir o outro é comunicação, agora uma boa comunicação é você esquecer os seus problemas e procurar compreender quem tá precisando de ajuda, embora tenha gente que queira tá aqui todo dia, não importa, tem que tentar ouvir e só o fato de atender bem, já ajuda”. (M1)

No trabalho de Oliveira et al.27, na visão de trabalhadores de saúde e usuários do SUS, a comunicação foi interpretada como habilidade que deveria ser trabalhada entre todos os atores envolvidos nas práticas de saúde, de forma franca e objetiva, visando a criação de vínculo por meio de uma escuta empática, tendo como objeto final um atendimento resolutivo. Bastidas Acevedoa et al.22, considerando a pedagogia de Freire como subsídio para uma prática educativa e comunicativa, que ressignifique a comunhão entre educando e educador, apontam o

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diálogo como fundamental no processo comunicativo, mediante o qual os participantes devem ter a intenção de compreensão mútua. Esta comunhão implica reconhecer o outro como alguém diferente, com conhecimentos e posições distintas. Na visão da técnica de enfermagem, há o reconhecimento das diversidades dos sujeitos e situações na sua prática cotidiana, exigindo, consequentemente, o entendimento dessas peculiaridades existentes no cenário da Estratégia Saúde da Família. A técnica de enfermagem exemplifica uma situação que considerou relevante para demonstrar o papel de uma comunicação bidirecional para práticas em saúde de forma satisfatória. Na situação em que a técnica de enfermagem estava diante de uma condição na qual a cuidadora não queria aceitar a administração de uma vacina a seu filho, o papel da técnica foi o de compreender as angústias e necessidades da mãe, abrindo possibilidades para um consenso entre os interlocutores, que não prejudicasse a promoção da saúde. “Tem mãe que pergunta, tem mãe que não, tem o choro da criança, tinha uma mãe que não queria vacinar a criança, não por causa da vacinadora, mas porque ela morria de pena, aí eu disse: ‘eu vou perder tempo, mas vai valer a pena’, aí eu disse: ‘olhe, a senhora tem pena dele porque? A gente só faz se o responsável autorizar, mas eu garanto que não vai acontecer nada cum ele.’ Aí ela: ‘não mulher, é porque eu tenho pena de duas, três furadas’. Aí eu disse: ‘olhe, pois vamos fazer assim, eu faço uma hoje e outra pra 15 dias’. Aí ela disse: ‘não, marque pra 1 mês’. Aí eu ixplico que a vacina é boa pra isso, quais são as doenças de 6 meses, por exemplo, que a DTP, difteri, tétano, aí a mãe deixou eu fazer, era a DTP e a hepatite, e ela veio depois, o importante é que ela deixou eu fazer”. (T1)

Feudner28, ao abordar a comunicação colaborativa no cuidado em saúde, enfatiza a necessidade de substituição da compreensão da comunicação como “transmissão de mensagens” por uma conceituação que incorpore tanto a troca de informações como a natureza da relação de colaboração entre os falantes que estão se comunicando, sendo essencial a reciprocidade e a sinergia. Aborda, ainda, cinco objetivos primordiais, que são: estabelecer um objetivo comum ou um conjunto de objetivos que orientam nossos esforços de colaboração para com o usuário; expor o respeito mútuo e a compaixão pelo outro; desenvolver uma compreensão suficientemente completa das nossas diferentes perspectivas; garantindo a máxima clareza e exatidão do que comunicamos uns com os outros, e gerenciamento de processos intrapessoais e interpessoais que afetam a forma como enviar, receber e processar informações. Reconhecemos, no nosso estudo, na situação apresentada pela técnica de enfermagem, que, embora a solução da problemática tenha partido, sobretudo, da trabalhadora de saúde, esse comportamento abre perspectivas para novas situações nas quais os usuários se sintam protagonistas e gestores do seu cuidado, apontando um cuidado dialógico, compreendido como encontro amoroso dos homens, que, mediatizados pelo mundo, o transformam, e transformando-o, o humanizam para a humanização de todos25. Desse modo, a situação apresentada pode ser caracterizada como agir comunicativo, tendo em vista que a coordenação desta ação bem-sucedida dependeu de força racionalmente motivadora para o entendimento e para o consenso entre os atores sociais, resultando em prática efetiva de promoção da saúde.

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Conclusão Os resultados apontaram para concepções distintas de comunicação, com predominância da racionalidade instrumental, com uma compreensão da comunicação enquanto instrumento de repasse de informações para o alcance de êxito técnico nos comportamentos dos indivíduos e nos indicadores de saúde. Para outros entrevistados, exaltamos a compreensão da comunicação voltada ao entendimento, à escuta e à valorização dos usuários no cuidado em saúde, aproximando-se dos pressupostos da Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas. A Teoria da Ação Comunicativa, já utilizada em outros estudos na área de Educação e Saúde, se mostra relevante para o estudo da inter-relação entre trabalhadores de saúde e usuários (cuidadoras/ mães) no contexto da Estratégia Saúde da Família, pela sua aproximação aos pressupostos e diretrizes estabelecidos pelo SUS e pela ESF, fundamentalmente: a integralidade da atenção, escuta qualificada, acolhimento, vínculo e responsabilização, embora constitua um desafio a sua concretude na prática diária dos serviços de saúde. Aponta-se a necessidade de instrumentalização da comunicação dos profissionais de saúde desde a graduação, além da continuação deste processo por meio da Educação Permanente, de forma a responder as necessidades e demandas propostas pelo SUS. Diante da realidade apresentada, ressalta-se a necessidade de incorporação da educação em saúde e da comunicação no relacionamento entre trabalhadores de saúde, de forma a aprenderem, no seu cotidiano de trabalho, de forma integrativa, para a produção de uma comunicação que valorize, com maior propriedade, as demandas e necessidades das cuidadoras e crianças, com foco na escuta qualificada e na participação de processos que promovam a emancipação dos sujeitos assistidos. Sugere-se a realização de estudos posteriores que possam analisar efeitos de intervenções no âmbito da comunicação nas práticas em saúde, de modo a serem concretizadas práticas mais dialógicas voltadas à compreensão e ao consenso entre todos os atores sociais envolvidos nos atos comunicativos.

Colaboradores Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus responsabilizou-se por: concepção da pesquisa, coleta de dados, análise dos dados, redação da versão final. Rebecca Soares de Andrade participou da coleta de dados, análise dos dados, redação da versão final. Lidia Ruiz-Moreno participou da análise dos dados, redação da versão final, e Luciane Soares de Lima responsabilizou-se por: concepção da pesquisa, orientação da pesquisa, análise dos dados, redação da versão final. Referências 1. Ministério da Saúde. Sistema Único de Saúde: princípios e conquistas. Brasília (DF): MS; 2000. 2. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília (DF): MS; 2004.

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22. Bastidas Acevedo M, Becerra FNP, Ospina JNT, Paucar GE, A Córdoba AA, Correa FP. El diálogo de saberes como posición humana frente al otro: referente ontológico y pedagógico en la educación para la salud. Invest Educ Enferm. 2009; 27(1):104-11. 23. Cervera DPP, Parreira BDM, Goulart BF. Educação em saúde: percepção dos enfermeiros da atenção básica em Uberaba (MG). Cienc Saude Colet. 2011; 16 Supl. 1:1547-54. 24. Ciuffo RS, Ribeiro VMB. Sistema Único de Saúde e a formação dos médicos: um diálogo possível? Interface (Botucatu). 2008; 12(24):125-40. 25. Freire P. Extensão ou comunicação? 7a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1983. 26. Leonello VM, Oliveira MAC. Construindo o diálogo entre saberes para ressignificar a ação educativa em saúde. Acta Paul Enferm. 2009; 22:916-20. 27. Oliveira A, Silva Neto JC, Machado MLT, Souza MBB, Feliciano AB, Ogata MNl. A comunicação no contexto do acolhimento em uma unidade de saúde da família de São Carlos, SP. Interface (Botucatu). 2008; 12(27):749-62. 28. Feudtner C. Collaborative communication in pediatric palliative care: a foundation for problem-solving and decision-making. Pediatr Clin North Am. 2007; 54(5):583-ix.

Coriolano-Marinus MWL, Andrade RS, Ruiz-Moreno L, Lima LS. Comunicación entre trabajadores de la salud y usuarios en el cuidado a niños menores de dos años en el contexto de una unidad de salud de la familia. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):311-23. El objetivo del estudio fue conocer la concepción que trabajadores de la salud y usuarios tienen sobre la comunicación en el cuidado a los niños menores de dos años, adoptando la Teoría de la Acción Comunicativa de Habermas. Estudio cualitativo que tuvo, como técnica de colecta, entrevistas semi-estructuradas con trabajadores de la salud y cuidadoras de niños menores de dos años, para obtener subsidios para el estudio de la comunicación. Los datos se sometieron a análisis de contenido temático. Se identificaron dos categorías temáticas: una instrumental, por sus características enfocadas en el dominio y traspaso de informaciones y la otra denominada compartida, por entenderse como comunión de saberes entre el trabajador de la salud y el usuario, conteniendo aproximaciones a los supuestos de la Teoría de la Acción Comunicativa. Se sugieren cambios en el contexto estudiado, en la perspectiva de construcción de prácticas comunicativas dialógicas.

Palabras clave: Comunicación. Salud de la familia. Cuidado de los niños. Educación en salud. Recebido em 18/06/13. Aprovado em 10/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0146

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Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira

Clarice Rios(a) Francisco Ortega(b) Rafaela Zorzanelli(c) Leonardo Fernandes Nascimento(d)

Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. From invisibility to epidemic: the narrative construction of autism in the Brazilian press. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):325-35.

Although autism is not a contagious disease, the term “autism epidemic” is used in allusion to the dramatic increase in the number of new cases in only a short period of time. This paper provides an overview of the socially shared conceptions surrounding autism in Brazil, through the narratives that have given visibility to this topic in the Brazilian press between 2000 and 2012. We regard these narratives not as representations of a reality a priori, but through their function of structuring human experience. On the one hand, such narratives shape and give content to the issues and controversies that surround autism in Brazil, while on the other hand, they also actively contribute to such debates, given that they affect the meaning that readers place on them.

Keywords: Autism. Narrative. Media.

Embora o autismo não seja uma doença contagiosa, fala-se de uma “epidemia de autismo”, em alusão ao aumento vertiginoso do número de casos num período curto de tempo. O artigo traça um panorama das concepções socialmente partilhadas sobre o autismo no Brasil, a partir das narrativas que vêm conferindo visibilidade ao tema na mídia impressa brasileira no período de 2000 a 2012. Entendemos tais narrativas não como representações de uma realidade a priori, mas em sua função estruturante da experiência humana. Por um lado, essas narrativas dão forma e conteúdo às questões e às controvérsias ligadas ao autismo no Brasil, e, por outro, contribuem ativamente para esses debates, pois produzem determinados efeitos de sentido nos leitores.

Palavras-chave: Autismo. Narrativa. Mídia.

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(a) Departamento de Planejamento e Administração em Saúde, IMS/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra Filho, 7º andar, blocos D e E, Maracanã. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-900. clarice.r@ gmail.com (b,c) Departamento de Políticas e Instituições de Saúde, IMS/UERJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. fjortega2@gmail.com; rtzorzanelli@gmail.com (d) Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA. Salvador, BA, Brasil. leofn@ufba.br

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Introdução Embora o autismo não seja uma doença contagiosa, fala-se de uma “epidemia de autismo”, em alusão ao aumento vertiginoso do número de casos num período curto de tempo. De uma forma geral, atribui-se esse aumento a uma mudança no modo como a psiquiatria passou a descrever e a classificar um conjunto de comportamentos e de características que já se apresentavam com determinada frequência na população anteriormente1, expandindo os casos classificados sob essa alcunha nosológica2. Especula-se, também, que a dita epidemia seja fruto de uma reconfiguração na rede de cuidados a essa população, que teve como marco inicial a desinstitucionalização do retardo mental no final dos anos 1960 nos Estados Unidos3. Tal argumento não aponta, exclusivamente, para uma substituição diagnóstica do retardo mental por autismo mas, sobretudo, para o efeito que a rede de cuidados que se formou em torno do autismo teve no sentido de conferir mais visibilidade a esse diagnóstico. Assim, segundo esses autores, “não foi a epidemia que fez o autismo visível, mas a visibilidade do autismo que fez a epidemia”3 (p. 2). Exemplos dessa ebulição do tema do autismo proliferam tanto na mídia impressa quanto na audiovisual. No universo ficcional, autistas aparecem cada vez mais como personagens de livros, de filmes e de seriados televisivos4-7. Ao longo da década de 2000, ganham espaço, também, as narrativas não ficcionais em primeira pessoa, sobretudo de origem anglo-saxã8-10. Além disso – e este é o principal foco deste artigo –, o autismo tem sido cada vez mais objeto de atenção e discussão na mídia, na forma de notícias e em matérias de caráter eminentemente jornalístico. Há, certamente, uma atenção crescente no campo das pesquisas neurocientíficas e das políticas públicas, mas o autismo ainda é um transtorno permeado por controvérsias. A principal delas é, sem dúvida, em relação à etiologia do transtorno. Por um lado, um número crescente de pesquisas em neurodesenvolvimento e genética vem sendo realizado em busca de um marcador biológico que contribua para a detecção precoce e o tratamento do autismo11,12. Por outro lado, não se pode afirmar que haja uma única causa orgânica para esse transtorno, nem que as descrições diagnósticas de manuais como o DSM e a CID sejam suficientes para esclarecer o amplo universo de suas manifestações clínicas13. Há, portanto, uma evidente complexidade e uma heterogeneidade nas manifestações do transtorno, além de debates e incertezas quanto a sua etiologia e seu tratamento – o que dificulta a generalização das características próprias de um autista para os demais. Levando essas asserções em consideração, o filósofo Ian Hacking afirma que, se você conhece uma pessoa com autismo, você conhece uma pessoa com autismo5,14. Essa frase aparentemente tautológica pretende ressaltar quanto o autismo é um terreno de particularidades, em que biografias e experiências de pais e de pessoas acometidas por essa condição colocam-se sempre em tensão com uma definição mais ampla a respeito do que seja o autismo. O presente artigo utiliza a noção de narrativa como principal categoria de análise, procurando, com isso, mapear os sentidos específicos que se constroem em torno desse universo complexo e heterogêneo que é o autismo. Desse modo, partimos da premissa de que as incertezas e os debates acerca do autismo ganham contorno no texto midiático ao se organizarem em narrativas, agregando, também, elementos de ordem cultural e sociopolítica. Segundo Motta, “as narrativas midiáticas não são apenas representações da realidade, mas uma forma de organizar nossas ações em função de estratégias culturais em contexto”15 (p. 3). Dessa forma, o artigo tem como objetivo analisar notícias e matérias sobre autismo e autistas em quatro veículos da mídia impressa, aqui consideradas como “fragmentos desconexos de sentido”15 (p. 4). A partir disso, tentaremos recompor os enredos e as intrigas que estruturam tais fragmentos em narrativas, a fim de esboçar um panorama, ainda que parcial e mediado pela imprensa, das concepções socialmente partilhadas sobre autismo no Brasil. Entendemos tais narrativas não como representações de uma realidade a priori, mas em sua função estruturante da experiência humana. No caso do autismo, por um lado, essas narrativas dão forma e conteúdo às questões e controvérsias ligadas a essa condição no Brasil; e, por outro, contribuem ativamente para esses debates, produzindo determinados efeitos de sentido nos leitores. 326

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É importante destacar ainda que, mesmo quando contestadas e debatidas por leitores na seção de cartas, muitas dessas notícias são reproduzidas em sua versão digital em blogs e nas redes sociais, gerando uma difusão que vai além dos leitores do veículo em que foram originalmente publicadas, pois, nesses casos, o texto jornalístico adquire, também, um caráter eminentemente político. Tais grupos – compostos, em sua maioria, por familiares de autistas e, em menor número, por profissionais e pelos próprios autistas –, além de ajudarem a disseminar informações sobre o autismo e assuntos a ele relacionados, têm também um papel importante na luta por direitos e na constituição de políticas públicas16-20.

O texto jornalístico como narrativa Segundo Garro e Mattingly21 (p. 1), a “narrativa é a forma fundamentalmente humana de dar sentido à experiência”. Dizer que a narrativa tem uma função estruturante na experiência humana não significa, entretanto, reduzi-la meramente à sua dimensão subjetiva. A produção e a compreensão de uma narrativa são processos que dependem: de recursos pessoais e culturais; do mundo interior dos pensamentos e sentimentos; e do mundo exterior de ações observáveis e dos sentidos socialmente compartilhados21. Há, na própria organização narrativa, um recorte parcial da realidade, dando-se maior ou menor ênfase e visibilidade a certos temas, perspectivas e atores sociais. Tal recorte gera efeitos de sentido em seus leitores, que podem, pelo menos em parte, ser inferidos a partir da própria estrutura de uma narrativa e do contexto sociocultural em que ela se desenrola. Segundo Motta15 (p. 2), “quando o narrador configura um discurso na sua forma narrativa, ele introduz necessariamente uma força ilocutiva responsável pelos efeitos que vai gerar no seu destinatário”. No contexto da narrativa midiática, isso implica pensar as notícias como algo mais do que simples relatos de uma realidade objetiva preestabelecida. Outro elemento central na configuração de uma narrativa, o qual teve papel importante na análise dos dados aqui apresentados, é o que Motta chama de “conflito”, e que outros autores chamam, simplesmente, de “problema”. O problema é o elemento estruturador de qualquer relato, o que também equivale a dizer que todas as narrativas têm, em seu núcleo, algum tipo de problematização acerca da realidade22,23. Um problema, tomado num sentido amplo, pode ser um evento específico que merece ganhar as páginas de um jornal simplesmente para informar os leitores, mas pode incluir, também, um julgamento de valor a respeito desse evento. É o problema que torna a narrativa necessária como forma de ordenação da realidade que merece ser relatada e compartilhada, e que, no caso da mídia impressa em especial, assume-se que vá interessar aos leitores. Entretanto, nem todas as narrativas, nem mesmo as jornalísticas, apresentam um problema explicitamente articulado. Ochs e Taylor distinguem ‘narrativas orientadas para um problema’ de um simples relato, em que não há orientação explícita para problemas. No contexto deste artigo, entendemos por ‘narrativas orientadas para um problema’ aquelas que são associadas a um julgamento de valor a respeito de determinado assunto ou evento24. Tal julgamento funciona como um importante princípio organizador do relato, mobilizando, assim, ainda mais a atenção do leitor. Por exemplo: incluímos, nessa categoria, matérias nas quais há algum elogio ou alguma crítica a descobertas científicas, políticas públicas ou terapias; e/ou histórias de preconceito e de discriminação, superação individual de algum autista, ou luta por parte dos pais. Observamos que, além de apresentarem um problema mais facilmente identificável, tais narrativas frequentemente suscitavam outras narrativas a respeito do tema. Quando isso acontecia, passávamos a denominá-las narrativas-gatilho.

Metodologia A pesquisa foi realizada a partir de uma base empírica de 476 matérias coletadas no arquivo digital de quatro veículos de mídia impressa de circulação nacional: Folha de S. Paulo, O Estado de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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S. Paulo, O Globo e Veja. Esses veículos têm linhas editoriais diferentes e trazem também notícias locais, configurando uma base de dados numerosa e satisfatória para um estudo exploratório. As palavras-chave de busca foram autista e autismo, e os textos coletados incluem: reportagens, editoriais, entrevistas, colunas, resenhas de livros ou filmes, artigos de opinião e cartas de leitores. Embora tais textos tenham formatos e tamanhos diferentes, serão referidos aqui pelo termo matérias. Foram excluídas da base de dados matérias nas quais esses termos apareciam em sentido metafórico e em contextos muito distantes do autismo como condição clínica, ou seja, aquelas em que o termo aparece como categoria de acusação no âmbito da política brasileira. Embora esses usos dos termos ‘autismo’ e ‘autista’ sejam passíveis de análise no contexto das percepções do público leigo sobre autismo, a inclusão de tais matérias em nossa base demandaria um tipo de análise específica e diferente da que nos propusemos a conduzir aqui. O recorte temporal foi de janeiro de 2000 a outubro de 2012, de forma a contemplar marcos importantes na história do autismo no Brasil e no mundo. Entre esses marcos, estão: a III Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida em dezembro de 2001, quando a questão do autismo alavancou a produção de uma política de saúde mental voltada especificamente para crianças25, e a promulgação da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em dezembro de 200626. Em 2011, o tema ganhou destaque novamente, com o lançamento de um plano nacional de direitos das pessoas com deficiência, o “Viver sem limites”27. Embora nem a convenção da ONU nem o “Viver sem limites” lidem especificamente com o tema do autismo, seu impacto na luta pelos direitos dos autistas pode ser observado especialmente no debate sobre inclusão escolar. Mais recentemente, em dezembro de 2012, a inclusão do autismo na agenda dos direitos da pessoa com deficiência ganhou o estatuto de lei, com a aprovação da Lei no 12.764, em que os autistas são reconhecidos como pessoas com deficiência para todos os efeitos legais. As matérias foram analisadas por meio de um questionário elaborado com o auxílio de uma ferramenta para análise de dados quantitativos e qualitativos. O questionário permitiu o registro e o cruzamento de informações previamente categorizadas como relevantes, tais como: o contexto ao qual a matéria se referia (nacional, internacional ou ambos), os temas abordados, os problemas que suscitavam as narrativas jornalísticas, e as principais esferas e os atores sociais envolvidos. Além disso, o questionário foi formulado de maneira a identificar elementos que compunham as estratégias retóricas do texto, como, por exemplo, se a matéria continha relatos pessoais, opiniões de especialistas, informações sobre tratamento, diagnóstico etc. As matérias em que o autismo aparece como tema central ou secundário foram separadas daquelas em que há apenas uma simples menção do termo autismo ou autista, sem que nenhuma discussão ou aprofundamento seja feito a esse respeito. Por fim, o questionário continha também perguntas que visavam identificar as narrativas orientadas para um problema, mapeando as matérias que mostravam julgamentos de valor mais evidentes. A análise das matérias consistiu, inicialmente, na quantificação de certos elementos narrativos, de forma a identificar continuidades e justaposições temáticas, recompondo, a partir daí, os enredos mais amplos que perpassam nossa base de dados. Em um segundo momento, estreitou-se ainda mais o foco para as chamadas narrativas-gatilho e para o modo como elas articulavam problemáticas diversas em torno do tema do autismo. Entendemos que essas narrativas pontuavam temas e discussões importantes no campo do autismo, suscitando, portanto, o interesse público e ganhando destaque nesses veículos de mídia impressa. Na discussão dos resultados apresentada a seguir, procura-se traçar uma anatomia das principais narrativas que compõem o texto jornalístico sobre autismo, identificando seus elementos mais comuns, as estratégias retóricas utilizadas para sua composição e os principais problemas que as movem. Tal discussão não se pretende exaustiva, tendo em vista a amplitude da base, mas procura traçar os contornos gerais da construção narrativa da dita “epidemia de autismo” na mídia escrita brasileira, e apontar seu possível efeito no ativismo político dos pais de autistas.

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Resultados e discussão A análise geral dos resultados obtidos mostrou que houve um aumento significativo no número de matérias sobre autismo no conjunto dos veículos analisados entre 2000 e 2012, como demonstrado no Gráfico 1.

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Gráfico 1. Número de matérias publicadas por ano

Entre as 297 matérias em que o tema central é o autismo, ou há alguma discussão a respeito, a ciência – e, mais especificamente, as neurociências – aparece como o contexto mais frequente no qual se desenrolam as narrativas jornalísticas da amostra analisada, com 32%, seguida da saúde, com 23,5%. Embora ciência e saúde sejam áreas bem próximas no que tange à questão do autismo, fez-se uma distinção entre esses dois campos, de forma a destacar as matérias que tratam, primordialmente, de pesquisas e de achados científicos relativos, direta ou indiretamente, ao autismo. Assim, as matérias ligadas à pesquisa científica de uma forma geral serão chamadas de relativas à ciência. Também serão denominados dessa forma: os achados relacionados ao funcionamento do cérebro de indivíduos autistas, além dos estudos sobre diagnóstico precoce e tratamento, as possíveis causas genéticas ou ambientais e, mais recentemente, a perspectiva de cura. Conforme se observa no Gráfico 2, há um crescimento significativo no número de matérias que têm o campo científico como foco principal. Por outro lado, há também um número significativo de matérias que falam do autismo como uma condição que exige cuidados em saúde. Tais matérias variam em formato e em objetivo, mas são, geralmente, informativas, descrevendo as características do autismo de uma forma mais ampla, informando sobre instituições e associações que oferecem tratamento e apoio para as famílias, ou divulgando um ou outro tratamento específico. Esse tipo de matéria foi classificado como pertencente ao campo da saúde. Encontramos, ainda, outras formas de abordagem do assunto autismo, quais sejam: direito (10,2%), arte e entretenimento (8,8%), educação (7,5%), política (5,7%), entre outros (trabalho, vida pessoal, tecnologia etc.). Entre aquelas em que há uma simples menção ao termo autismo ou autista, as de ciência também lideram como tema principal (31,3%), seguidas pelas da saúde (14,5%). Se considerarmos o percentual de aparecimento desses dois assuntos juntos, chegamos a 45,8% do total das matérias.

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Gráfico 2. Número de matérias com foco principal no campo científico

Embora a divulgação de informações sobre o autismo de forma abstrata e generalizante seja comum na base de dados, observa-se, também, o uso frequente (21,64%) de relatos pessoais de autistas e familiares como estratégia retórica na confecção das matérias. Todavia, percebe-se uma escassez de relatos de autistas em primeira pessoa (6,1%) e um número ainda menor de relatos de autistas brasileiros (1,7%). A maioria dos autistas que aparecem falando em primeira pessoa é de estrangeiros, e conhecidos internacionalmente por terem escrito biografias famosas, militarem pela causa autista, aparecerem em documentários ou serem profissionais de destaque. Entretanto, a maior parte dos relatos pessoais não trata de biografias extraordinárias, mas cumpre uma função ilustrativa, servindo como exemplo singular para algum tema tratado na matéria em questão. Tais relatos oscilam entre breves comentários pessoais e narrativas biográficas mais extensas. Neste último caso, o narrador principal acaba sendo o próprio jornalista, que cita trechos do relato original do ator social entrevistado para a matéria (em quase metade dos relatos, essas citações são de mães de autistas). O papel meramente ilustrativo dos relatos pessoais é bastante evidente nas matérias que traçam um panorama sobre o autismo, ou que versam sobre os benefícios de determinado tratamento. Por exemplo, uma matéria publicada na revista Veja, com o título de “Olhos nos olhos”, traz uma visão geral sobre o autismo, tratando mais especificamente da importância do diagnóstico e do tratamento precoce. A matéria traz fotos, um pequeno quadro com estatísticas, e uma linha do tempo indicando sinais que podem estar associados ao autismo em cada etapa do desenvolvimento infantil. A história de um menino autista é o ponto de partida dessa matéria, que se inicia da seguinte forma: Rafael tem 9 anos. Com dificuldade para se comunicar, só consegue cumprir as tarefas mais prosaicas do cotidiano se seguir um passo a passo ilustrado com figuras e frases curtas. É assim para tomar banho, pôr a roupa, escovar os dentes e arrumar a mochila para a escola – e até para brincar. Alegre e amoroso, está o tempo todo beijando e abraçando a irmã mais velha, Carolina. [...] Rafael tem autismo e, até pouco tempo atrás, seu comportamento seria inimaginável para uma criança portadora do distúrbio. As conquistas do menino devem-se ao diagnóstico precoce da doença.28 (p. 108)

O tema das políticas e dos serviços públicos no Brasil para o tratamento dos autistas apareceu com razoável frequência na base de dados (19,5%) e foi o que mais gerou as já mencionadas 330

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narrativas-gatilho. Além disso, em 79,6% dos casos em que uma matéria discute serviços e políticas públicas, observa-se uma apreciação claramente crítica desses aspectos. As duas principais áreas em que o autismo é discutido no âmbito das políticas públicas são: saúde e educação dos indivíduos diagnosticados com transtorno do espectro autista. Entre as menções a políticas públicas, 44,8% dizem respeito à área de saúde; 37,3%, à área de educação; e o restante se divide em menções sobre políticas de investimento em pesquisa sobre o autismo, inclusão no mercado de trabalho, entre outras. Nas reportagens relacionadas à área da saúde, as críticas focam, sobretudo, no descumprimento, por parte do governo, de leis e portarias que garantem o atendimento a autistas. Nesse caso, as narrativas jornalísticas são inicialmente motivadas por batalhas jurídicas para que o Estado cumpra seu dever de proporcionar atendimento universal, mas acabam misturando queixas em torno da insuficiência de serviços de saúde de uma forma geral e a respeito da inadequação dos serviços já oferecidos; ou seja, a percepção de que falta tratamento para os autistas mistura-se à observação de que os tratamentos oferecidos pelo Estado estão longe de serem adequados. Uma matéria publicada pelo jornal O Globo, com o título “Os meninos do porão”29, é um bom exemplo desse tipo de enredo narrativo. Ela funciona também como uma narrativa-gatilho, motivando várias outras reportagens e cartas de leitores ao longo de algumas semanas. O problema que acionou a narrativa original foi a história de uma empregada doméstica em São Paulo e sua luta na Justiça para garantir o tratamento de seu filho, que, nesse caso, necessitava ser internado. Mesmo ganhando uma liminar que obrigava o governo a custear a internação do menino, o governo se negou a cumprir a lei, o que gerou ainda mais desdobramentos no caso. Na chamada que o jornal publicou para a matéria principal, lê-se que a repórter “investigou esse mundo subterrâneo e conheceu o drama de pelo menos trinta meninos autistas sem tratamento e de suas famílias aterrorizadas e esquecidas pelo poder público”30 (p. 2). Seguindo esse mesmo tom, as matérias subsequentes trouxeram não apenas o relato da luta dessa mãe para fazer valer seus direitos como cidadã, mas as histórias de várias outras mães de autistas de baixa renda e suas dificuldades cotidianas. O retrato dos autistas descritos nessas matérias difere bastante da matéria da revista Veja anteriormente citada, e serve para ilustrar outra face da questão do autismo no Brasil – a falta de atendimento e o descaso do poder público para com os autistas. O texto jornalístico também se inicia com um breve relato biográfico, não somente de um, mas de alguns autistas: Rafael, de 25 anos, finge que é passarinho, mas passou a vida trancado. André, 20 anos, reza dias inteiros e grita o tempo todo. Leandro, 29, engole esponjas de aço e cremes de cabelo. João Guilherme, 11, come compulsivamente. Eles se automutilam e agridem até suas mães. Apesar de adultos, serão sempre meninos. Eles têm autismo, transtorno que atinge até 1,8 milhão de brasileiros, segundo estimativas médicas.29 (p. 19)

Há também, nessas matérias, uma breve descrição da estrutura de atendimento para autistas na rede pública, sem que haja, no entanto, uma discussão mais profunda a esse respeito. Nas matérias publicadas nos dias seguintes, aparecem os pontos de vista de juristas, representantes do Ministério da Saúde e de outros pais de autistas não incluídos na matéria original. Em todas as matérias, há apenas uma breve menção a controvérsias quanto ao tipo de tratamento a ser oferecido na rede pública. De acordo com um deputado, essa discussão ainda estava sendo feita pela rede pública na época, “são metodologias estrangeiras e há divergências sobre sua aplicação”31 (p. 12). Consideradas em seu conjunto, essas matérias se organizam em uma estrutura narrativa de indignação com o descaso do poder público, em que o autismo não tratado configura uma crise de saúde pública, o tratamento oferecido pela rede pública é inexistente ou inadequado e, além de tudo, o governo recusa-se a cumprir a lei. Embora esse conjunto de matérias tenha sido publicado em 2006, e o debate público sobre o atendimento às pessoas com autismo tenha avançado desde então, a mesma controvérsia continua a aparecer em outras matérias. Por exemplo, em 2012, um incidente na Grande São Paulo chegou aos jornais e levantou, novamente, a discussão sobre o atendimento a pessoas com autismo na rede COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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pública. A notícia fala de um adolescente autista que foi esquecido em um centro de reabilitação social. Um problema de comunicação entre o centro e os pais do adolescente fez com que ele fosse dado por desaparecido até as 23h do mesmo dia, quando foi encontrado em uma sala escura dentro do centro. A notícia, que tem como manchete, no topo da página, “Aluno autista é esquecido em sala escura”, divide-se em matérias32. Logo abaixo da notícia principal, o leitor é informado sobre “o outro lado” em uma matéria com o título “Secretaria de Assistência Social diz que instaurou sindicância”32. Ao lado, um pequeno infográfico, com o título “Entenda o autismo e suas formas – apesar de elementos comuns, efeitos do problema variam muito”32 (p. C5), esclarece ao leitor o que é o autismo. Alguns desenhos e tópicos com pequenos textos explicativos fornecem estatísticas, sintomas e possíveis causas. Em outro pequeno quadro, onde se lê “Saiba mais”, outra matéria, com o título de “Em SP, governo tem que garantir atendimento”, faz críticas ao governo e ao atendimento da rede pública: Em São Paulo, o governo estadual é responsável por garantir atendimento de saúde, escolar e assistencial aos autistas, segundo uma decisão da Justiça de 2006. Mas, na prática, o tema ainda é alvo de ações administrativas e judiciais. São mães que reclamam que os filhos não recebem as terapias necessárias, que pedem inclusão em escolas adequadas ou o fornecimento de transporte.32 (p. C5)

Logo abaixo, há uma nota sobre o projeto que define o autista como deficiente. A deputada federal Mara Gabrilli (PSDB), relatora do projeto, é citada nessa nota, dizendo que “o Brasil nunca teve nenhum tipo de política pública voltada para o autismo e eles não eram incluídos na legislação para deficientes”32 (p. C5). Embora o fato que motivou a matéria central não dissesse respeito à falta de atendimento nem às brigas judiciais para garantir acesso ao tratamento e à educação, a narrativa jornalística construída em torno dessa notícia é bastante semelhante àquela estruturada a partir da matéria “Meninos do porão”. No campo da educação, o tema geral das narrativas é o impacto das políticas ligadas à inclusão escolar, e prevalece, também, um tom fortemente crítico. Nesse caso, as narrativas a respeito de um Estado faltoso em fazer cumprir decisões judiciais e em criar condições de implementação das políticas públicas na área de educação se entrecruzam com uma discussão sobre a própria validade das políticas de inclusão escolar. A maior parte das reportagens fala do despreparo das escolas públicas para receber alunos com necessidades especiais, assim como da dificuldade dos pais de encontrar vaga na rede privada, e trazem relatos de mães sobre o preconceito sofrido por seus filhos no contexto escolar. Um achado importante da análise é que a fronteira entre serviços de saúde e de educação nem sempre é clara no caso do autismo, seja nas reportagens sobre autismo de uma forma mais geral, seja nas reivindicações dos pais por atenção especializada para autistas. As matérias que criticam a falta de atendimento no sistema público, geralmente, fazem referência à saúde e à educação de forma conjunta quando mencionam tratamentos: “Não há unidades especializadas para o tratamento nas redes públicas de saúde e educação”33 (p. A26). Ou, como se vê adiante, ainda na mesma matéria: “Por trás da falta de programas voltados para o autismo está a desinformação, até mesmo de autoridades e profissionais de saúde e educação, sobre uma síndrome que não é tão rara”33 (p. A26). Além disso, há uma tendência dos pais em ver a escola como parte de uma “terapêutica” para autistas. Por exemplo, ao descrever sua saga em busca da melhor escola para seu filho, uma mãe fala sobre sua decisão de tentar matriculá-lo numa escola regular: “Como os psicólogos e médicos de meu filho sugerem que ele tenha um referencial de relacionamentos sociais normais, procurei outras escolas”34 (p. A3). Nessa perspectiva, a escola é vista menos como um espaço de desconstrução do preconceito em relação ao autista e como local de possível afirmação da diferença, conforme propõe a perspectiva da educação inclusiva, e mais como espaço de uma terapêutica focada na adequação do autista às expectativas sociais mais amplas.

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Considerações finais Observamos que o autismo se tornou objeto de crescente atenção na mídia de duas formas distintas, porém relacionadas. A primeira acontece em função de uma ênfase, cada vez maior, em sua dimensão neurobiológica, observada no aumento de matérias a respeito de pesquisas científicas sobre o autismo, especialmente no campo da genética e das neurociências. As matérias que falam do autismo como uma condição que exige cuidados de saúde também dialogam de perto com a visão neurobiológica. Por sua vez, esses dois tipos de matéria acabam por reforçar certa narrativa sobre o autismo em que este é concebido como “uma entidade objetiva independente da sua incorporação em indivíduos particulares”35 (p. 411). Os relatos sobre autistas que aparecem nesse contexto cumprem uma função ilustrativa, mantendo uma relação próxima com descrições psiquiátricas e neurocientíficas a respeito do transtorno. Por outro lado, esses relatos facilitam a identificação do leitor com o texto jornalístico, apresentando respostas e desfechos narrativos possíveis para os desafios que esses leitores possam estar vivendo em relação a seus filhos. A segunda forma de visibilidade alcançada pelo autismo, ao longo desse período, destaca-se pelo efeito dramático que produz nos leitores. As matérias que fazem críticas às políticas públicas, especialmente nas áreas de saúde e de educação, trazem casos limites de pais desesperados e de autistas desassistidos pelo poder público. Os relatos sobre autistas que aparecem nesse contexto abordam o autismo como uma condição extrema que necessita de atenção específica e intensiva. Tomando-se essas duas formas de visibilidade no contexto de uma discussão mais ampla sobre as estratégias em saúde e educação para o autismo no Brasil, é possível notar como a percepção de que há uma epidemia de autismo em curso torna-se ainda mais premente. Diante da abundância de matérias que falam de pesquisas e tratamento estrangeiros, agrava-se a percepção da escassez de recursos para lidar com o autismo no Brasil. A mobilização política dos pais e familiares no Brasil vem se construindo justamente em torno desses dois pilares – a denúncia da falta de serviços especializados e a divulgação de estudos e metodologias estrangeiras. Naturalmente, não se pode afirmar que a mídia impressa seja a única responsável por essa configuração. As redes sociais também têm desempenhado um papel importante nesse sentido16. Mas o uso da narrativa como categoria de análise nos permite afirmar que a mídia impressa assume um papel importante nas concepções socialmente partilhadas sobre o autismo no Brasil, não apenas por veicular informações de cunho científico sobre o tema. Em sua dimensão mais dramática, a narrativa midiática também sensibiliza o leitor para causas políticas. Tal efeito é especialmente evidente entre familiares que militam pela causa dos autistas, que não raramente recorrem a clippings de jornais e revistas para legitimarem e autorizarem suas reivindicações políticas36.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Os autores agradecem às alunas de pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da UERJ, Barbara Costa, Clara Feldman, Fernanda Nunes, e à bolsista de iniciação científica do curso de Psicologia da UERJ, Tatiana Soares, pelo auxílio na coleta e análise dos dados.

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Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. De la invisibilidad a la epidemia: la construcción narrativa del autismo en los medios impresos brasileños. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):325-35. Aunque el autismo no sea una enfermedad contagiosa, se habla de una “epidemia de autismo”, aludiendo al aumento vertiginoso del número de casos en un corto período de tiempo. El artículo esboza un panorama de las concepciones socialmente compartidas sobre el autismo en Brasil, a partir de las narrativas que otorgan visibilidad al tema en los medios impresos brasileños en el período de 2000 a 2012. Entendemos tales narrativas no como representaciones de una realidad a priori, sino en su función estructuradora de la experiencia humana. Por un lado, esas narrativas dan forma y contenido a las cuestiones y a las controversias vinculadas al autismo en Brasil y, por el otro, contribuyen activamente a esos debates, puesto que producen determinados efectos de sentido en los lectores.

Palabras clave: Autismo. Narrativa. Medios. Recebido em 26/05/14. Aprovado em 28/08/14.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0474

artigos

Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE): elementos para avaliação de projetos sociais em Juazeiro, Bahia, Brasil

Marcelo Silva de Souza Ribeiro(a) Carla Valois Ribeiro(b)

Ribeiro MSS, Ribeiro CV. Health and prevention at schools: elements for evaluating social projects in Juazeiro, Bahia, Brazil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):337-48.

“Health and prevention at schools” was a course completion project presented by this author at the time of being a student in the multidisciplinary family health residency program. It was a health education initiative that promoted a sexual and reproductive health activity for adolescents in the municipality of Juazeiro, Bahia, Brazil. The present study aimed to analyze the conception, methodology and results of this project, taking into consideration its intersectoral action, health-education interface and social effectiveness. Timely completion of this work ensured sustainability for the project and encouraged participation by the school community. The ramifications of the project are shown in the healthcare and education macropolicies that today direct the major intersectoral pacts within this scenario. Thus, an understanding of its construction is required so that it can be strengthened.

Keywords: Health. Education. Intersectoral action. Social effectiveness.

O SPE, à época, apresentado como trabalho de conclusão de curso (TCC) de Residência Multiprofissional em Saúde da Família, pela autora, então discente do programa, representou uma iniciativa de saúde e educação, promovendo uma atividade de saúde sexual e reprodutiva para adolescentes no Município de Juazeiro/ BA, Brasil. O objetivo deste trabalho foi analisar o SPE em sua concepção, metodologia e resultados, considerando a intersetorialidade, a interface saúde e educação e a efetividade social. Concluiuse que foi oportuna a garantia da sustentabilidade do projeto e o fomento à participação da comunidade escolar. Os desdobramentos do SPE são visualizados nas macropolíticas de atenção à saúde e educação que hoje direcionam as principais pactuações intersetoriais deste cenário, demandando a compreensão de sua edificação para seu fortalecimento.

Palavras-chave: Saúde. Educação. Intersetorialidade. Efetividade social.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Universidade Federal do Vale do São Francisco. Av. José de Sá Maniçoba, s/n, Centro. Petrolina, PE, Brasil. marcelo.ribeiro@ univasf.edu.br (b) Secretaria de Saúde de Pernambuco. Petrolina, PE, Brasil. carla_valois@ hotmail.com

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Introdução Este estudo está inserido no âmbito da avaliação das políticas públicas diretamente relacionadas à saúde materno-infantil, por meio da qual é possível compreender as necessidades humanas com vistas à tomada de decisões neste contexto. Particularmente, a interface saúde-educação tem impactado, nas politicas públicas e nas ações, temas como: sexualidade, desenvolvimento infantil, relações familiares, condição de gênero, dentre outros considerados significativos para a superação dos desafios sociais. Este trabalho partiu, portanto, do entendimento de que as políticas públicas em saúde devem estar articuladas com a educação, elegendo estratégias de construção coletiva e solidária, sobretudo para garantir a intersetorialidade das ações e, consequentemente, sua efetividade social. A seguir, alguns pontos sobre essa articulação e seus respectivos desdobramentos serão depreendidos. Do ponto de vista das recentes conquistas políticas, a Saúde e a Educação foram considerados direitos fundamentais e garantidos segundo a Constituição Federal¹, para a qual essas conquistas também concebem uma relação indissociável em Saúde e Educação incluindo, também, os pressupostos de cidadania e empoderamento. Um outro ponto a ser destacado é o conceito de Território segundo Faria e Bartolozzi², que torna possível reconhecer a dinâmica e os dispositivos sociais que, de modo integrado, subsidiam o enfrentamento das principais vulnerabilidades. Acredita-se que, na essência da educação, encontram-se os valores de formação humana e social, sendo a saúde entendida como essencial condição de dignidade humana que requer, para além de limites orgânicos, dimensões sociopolíticas, territoriais, de convivência e singularidades. A relação Saúde e Educação para Freire³, portanto, com base no território, dialoga com o mesmo, problematiza e elabora um saber relacional, como síntese entre os saberes apreendidos na escola da vida e os proclamados na vida da escola. A compreensão da relação entre Saúde e Educação, ao constituir-se de direitos de cidadania, propõe a elaboração de políticas públicas que deem concretude aos compromissos em pauta, justificadas pela integralidade, e que não podem ser concebidas de forma fragmentada. O processo de integração entre os setores, portanto, caracteriza-se como um processo de educação permanente. Considerando a educação como emancipação que propicia o diálogo e aprendizagens mútuas que facilitam a compreensão da saúde em sentido ampliado, sitiados em um território definido, segundo o qual Fonseca4 concebe a intersetorialidade, possível a partir da convergência solidária e corresponsável. Uma ação governamental que busca apreender todo esse processo de integração é o Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE). Tal projeto, lançado pelo Ministério da Saúde5, é uma iniciativa interministerial, criada em 2003 pelos Ministérios da Saúde e da Educação, cujo objetivo é a promoção da saúde sexual e reprodutiva com vistas à redução das vulnerabilidades de adolescentes e jovens: às doenças sexualmente transmissíveis (DST/HIV/Aids), à gravidez não planejada, ao uso de psicoativos. Além disso, visa fomentar o protagonismo juvenil na participação da elaboração de políticas públicas. A partir do que foi colocado, este trabalho apresentou uma análise do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE), implementado no município de Juazeiro – Bahia, nos anos de 2009, 2010 e 2011, na perspectiva da interface Saúde e Educação. A afinidade da pesquisadora, profissional de saúde, com o tema foi motivada pela participação da mesma nos processos disparados pelo SPE junto a profissionais de saúde e educação. Na oportunidade, a vivência em discussões relacionadas aos setores saúde e educação suscitou interesse em pesquisar sobre o assunto. Estudar esta relação é importante quando se vislumbra a potencial ferramenta de intersetorialidade, essencial para a elaboração de práticas integrais e integradas. A escassez de estudos que analisem políticas públicas e projetos sociais torna iminente o uso deste tipo de ferramenta de avaliação, tendo em vista o impacto político e social que estes produzem em seus contextos. Quanto ao objetivo geral, pretendeu-se analisar o Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas em Juazeiro – Bahia, em sua concepção, metodologia e resultados, disponíveis em documentos oficiais e institucionais. Dentre os objetivos específicos, buscou-se analisar o Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas considerando os seguintes conteúdos: a intersetorialidade, a interface Saúde e Educação e a efetividade social. 338

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artigos

Este estudo apoiou-se em alguns pressupostos. O primeiro é a ideia de que inserir o SPE nas agendas políticas potencializa práticas já existentes e possibilita a elaboração de novas ofertas, integrais e integradas. O segundo seria o de que o SPE aproxima sujeitos e subjetividades dos atores que o protagonizam. Finalmente, o terceiro tem a ver com a ideia de relacionar Saúde e Educação utilizando o dispositivo SPE promovendo ações intersetoriais socialmente efetivas.

Métodos O presente estudo constituiu uma pesquisa de base documental de fontes impressas, na qual, segundo a obra de Laville6, os documentos utilizados incluíram publicações de organismos, correspondências, dossiês e publicações científicas relacionadas ao Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas. A análise também contemplou a vivência da pesquisadora nos processos disparados pelo projeto. Os dados foram acessados a partir de consultas a arquivos públicos situados nas Secretarias Municipais de Saúde e Educação de Juazeiro – BA. O acesso aos mesmos foi facilitado por ser a pesquisadora então membro do Grupo Gestor Municipal do SPE. Estes documentos foram relevantes construções intersetoriais e por tal razão foram selecionados. Optou-se por incluir produções oficiais e institucionais, nacionais, consonantes aos objetivos da pesquisa, coerentes com a temática SPE, excluindo-se todos os demais que não convergiam com a mesma. A conveniência do acesso e a pertinência da escolha foram valiosos critérios de inclusão. Os conteúdos basilares ao desenvolvimento deste estudo utilizaram como referência: 1) Guia para a formação de profissionais de saúde e educação do SPE, de elaboração do Ministério da Saúde em 2008, que apresenta uma proposta estrutural e metodológica para implementação do Projeto5; 2) Manual Diretrizes para implementação do projeto SPE, constructo que direciona a proposta políticoideológica do Projeto, publicação do Ministério da Saúde do ano 20087; 3) Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola, elaborado pelo Ministério da Saúde em 2009, enuncia o Programa Saúde na Escola e demonstra estratégias de articulação intersetorial para a promoção da saúde escolar8; 4) Projeto municipal do SPE, de construção do GGM de Juazeiro em 2009, apresenta a versão preliminar do processo de trabalho a ser implementado9; 5) Decreto Municipal número 489/2009, da Prefeitura Municipal de Juazeiro – Bahia, institui o Grupo Gestor Municipal para a implantação e implementação do SPE, demonstrando suas funcionalidades e nomeando representações intersetoriais para a composição do referido grupo10; 6) O informativo Relação das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011, de construção do GGM em 201111, e 7) o instrumento de monitoramento, elaborado pelo GGM em 2011 e apresentado ao Grupo Temático Selo UNICEF12. Segundo Gil13, a pesquisa documental utiliza materiais que ainda não receberam tratamento analítico ou ainda podem ser reelaborados. Os documentos considerados de primeira mão, neste estudo, configuraram-se a partir das publicações oficiais, o projeto municipal de Juazeiro e o decreto municipal que discorre sobre o SPE. Os documentos de segunda mão, obedecendo aos critérios do autor, constituíram relatórios de pesquisa e avaliação interinstitucionais, de elaboração do Grupo Gestor do SPE de Juazeiro. A análise destes documentos foi imperativa à confecção de aproximações e distanciamentos entre as fontes, assegurando o alcance dos objetivos desta pesquisa. O tratamento dos dados seguiu a técnica da análise de conteúdo, sobre a qual Gil13 considerou possibilitar a elucidação do conteúdo expresso e latente das comunicações. A análise de conteúdo é desenvolvida em quatro fases: a) pré-análise, com a escolha de documentos; b) elaboração de hipóteses e preparo de materiais; c) exploração do material que consiste na escolha das unidades, enumeração e classificação; d) e o tratamento, inferência e interpretação dos dados.

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Resultados Os documentos acessados, por suas características elementares, foram aproximados e agrupados da seguinte forma: 1. Publicações e documentos oficiais: produções interministeriais que discorreram sobre projetos e programas intersetoriais na perspectiva da interface saúde e educação – Guia para a formação de profissionais de saúde e educação do SPE5; Manual Diretrizes para a implementação do projeto SPE7; Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola8. 2. Construtos elaborados pelos atores sociais locais: publicações locais pautadas nas vivências e demandas locais – Projeto municipal do SPE9; Decreto Municipal 489/200910. 3. Relatórios de avaliação: documentos situacionais para o monitoramento de implementação do projeto – Informativo Relação das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 201111; Instrumento de Monitoramento12.

1 Concepção 1.1 Quanto às concepções do primeiro grupo de documentos, o Guia5 orientou a construção de um saber compartilhado, concebendo o SPE como um marco de integração saúde-educação, pressupondo a articulação de políticas com vistas à produção de transformações efetivas nas condições de vulnerabilidade; enquanto o Manual Diretrizes7 contemplou o processo planejado e participativo das ações e consolidação das políticas públicas norteadas a partir de elementos de intersetorialidade, apresentando o projeto como um convite a esta integração e demais organizações da sociedade civil, privilegiando o espaço da escola como cenário de reorientação e inclusão de práticas e construção de espaços de diálogo como resposta social às vulnerabilidades. O Caderno de Atenção Básica8, por sua vez, apresentou conceitos de: cooperação e respeito às singularidades, estímulo à intersetorialidade, compromisso com a integralidade, fortalecimento da participação social. 1.2 Dentre os construtos do segundo grupo, quanto às concepções, o Projeto municipal9 destacou o SPE como marco de integração saúde-educação, privilegiando a escola como espaço de participação dos sujeitos: estudantes, famílias, profissionais da educação e da saúde. O Decreto10, em consonância com o primeiro, instituiu o Grupo Gestor Municipal do SPE considerando seu caráter intersetorial para a formulação de políticas públicas articuladas, prevendo as atribuições do GGM à luz da efetividade social, enfatizando a educação inclusiva e a participação da comunidade escolar para a construção do papel democrático da escola. 1.3 Dentre os relatórios de avaliação, o Informativo11 tabulou a relação nominal das escolas que participaram da formação SPE nos períodos 2009, 2010.1, 2010.2 e 2011.1, dispondo: a quantidade de alunos por unidade escolar, a implantação do SPE na unidade, a visita de monitoramento e a quantidade de professores formados. Sitiou a implantação do SPE no setor educação, sendo as informações, portanto, limitadas a este setor. A condicionalidade da efetividade social do projeto foi demonstrada timidamente pela formação de professores e consequente implantação ou não do SPE na unidade escolar. O documento foi de produção do GGM. O Instrumento de Monitoramento12 também relacionou escolas e implantação do projeto SPE. Foi elaborado por membros do GGM, mas configurase como um olhar sobre o território da escola. O Quadro 1 sintetiza a Concepção do SPE quanto aos elementos de intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social.

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Ribeiro MSS, Ribeiro CV

artigos

Quadro 1. Concepções do SPE sob a luz da intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social. Concepções

Documentos Intersetorialidade

Interface Saúde-Educação

Efetividade social

Publicações e documentos oficiais

SPE como processo planejado e participativo das políticas públicas – elementos de intersetorialidade (MD) Estímulo à intersetorialidade, escola como espaço de relações (CAB)

SPE como marco de integração saúde-educação (GF) Território como espaço de produção de vida e da saúde, ESF no processo de cuidado (CAB)

Articulação de políticas com vistas às transformações efetivas nas condições de vulnerabilidades (GF) A escola como cenário de reorientação e inclusão de práticas e construção de diálogo como resposta social (MD)

Construtos elaborados pelos atores sociais

Caráter intersetorial do GGM (Dec)

Escola como espaço de participação dos sujeitos (PrM) GGM para a formulação de políticas articuladas e integradas (Dec)

Efetividade social a partir do GGM pela construção do papel democrático da escola (Dec)

Relatórios de avaliação

Olhar sobre o Setor Educação

Relação nominal por ano das escolas e suas peculiaridades (IR) Relação nominal de escolas relacionadas à implantação do SPE (IM)

Pela formação de professores e implantação do SPE (IR)

GF= Guia para a formação de profissionais de saúde e educação do SPE; MD= Manual Diretrizes para implementação do projeto SPE; CAB= Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola; PrM= Projeto municipal do SPE; Dec= Decreto Municipal 489/2009; IR= Informativo Relação das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011; IM= Instrumento de Monitoramento

2 Metodologia 2.1 Quanto à metodologia do primeiro grupo, o Guia5 direcionou uma sequência de oficinas que requer planejamento conjunto e de formação intersetorial para profissionais de saúde e educação, propondo a inclusão de outros dispositivos sociais, utilizando de metodologia participativa pautada na emancipação. O Manual Diretrizes7 apoiou a concretização do projeto na formação continuada de profissionais de saúde e educação, enunciou a formação de grupos de trabalho e elaboração de Plano de Ação, com suas condições de efetividade. Articulou o impacto das iniciativas na elaboração dos projetos político-pedagógicos das escolas e da programação das ações em saúde do município. O Caderno de Atenção Básica8 apresentou conteúdos de intersetorialidade e interface saúde-educação pelas ofertas de: avaliações clínicas, nutricionais, oftalmológicas, de saúde e higiene bucal, auditiva e psicossocial, promoção da alimentação saudável, da saúde sexual e reprodutiva, da cultura de prevenção, redução da morbimortalidade por acidentes e violências, atualização do calendário vacinal, prevenção e redução do consumo de álcool e do uso de drogas, controle do tabagismo, educação permanente em saúde, atividade física e inclusão das temáticas de educação em saúde no projeto político-pedagógico das escolas. 2.2 No segundo grupo de documentos, quanto à metodologia, o Projeto municipal9 demonstrou o processo de trabalho estruturado a partir de oficinas temáticas com professores e profissionais de saúde, estabelecendo a formação de periodicidade quinzenal, com as temáticas seguintes: sexualidade, família, saúde e escola; relações de gênero; anatomia e fisiologia do sistema reprodutor masculino e feminino/gravidez na adolescência; escola e comunidade juntas na prevenção das DSTs; métodos contraceptivos e avaliação. O Decreto10 estruturou a composição do Grupo Gestor Municipal do SPE e normatizou o seu funcionamento.

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2.3 No terceiro grupo de documentos, o Informativo11 relacionou o quantitativo de 66 escolas municipais (Gráfico 1) e a evolução histórica do projeto. Em dez escolas, a formação ocorreu em 2009. Em 2010.1 a mesma foi promovida em 11 unidades. Em vinte unidades, a formação ocorreu em 2010.2. Em 2011.1, 25 escolas foram contempladas com a formação SPE. Dez escolas foram convidadas e não participaram da formação do SPE (Gráfico 1).

30 25 20 15 10 5 0 2009

2010.1

2010.2

2011

Gráfico 1. Relação das escolas formadas pelo SPE em Juazeiro, Bahia, no período de 2009 a 2011. Fonte: GGM, 2011

O Instrumento12 questionou: as parcerias porventura desenvolvidas, a interação unidade escolar X unidade de saúde da família, o envolvimento da comunidade escolar, as atividades desenvolvidas, as dificuldades e as sugestões. O Quadro 2 demonstra os principais aspectos abordados pelos documentos avaliados no que se refere à metodologia utilizada pelo SPE, e o alcance de intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social de suas ações.

3 Resultados 3.1 No primeiro grupo de documentos relacionados, o Guia5 direcionou-se ao fomento de processos de educação permanente de profissionais de saúde e educação, utilizando-se da interface saúde-educação baseada na intersetorialidade como instrumento de efetividade social das práticas, superando iniciativas pontuais e gerando projetos inovadores, permanentes e integrados. Já o Manual Diretrizes7 fundamentou-se na criação e instrumentalização dos Grupos de Trabalho, que assumiriam compromissos para a efetividade da proposta, destacando a importância da criação de espaços de participação social e do respeito à autonomia e responsabilidade compartilhada entre Federação, estados e municípios. Compreendeu as finalidades do projeto com vistas: à redução das vulnerabilidades às DST, HIV/Aids, gravidez não planejada e a evasão escolar a esta relacionada, o uso de psicoativos, o fomento ao protagonismo juvenil. O Caderno de Atenção Básica8 enunciou o PSE, programa que se propunha a alcançar a integração com ensino de competência, a instrumentalização técnica de professores e funcionários das escolas e dos profissionais da Estratégia de Saúde da Família, para apoiar e fortalecer as iniciativas, a identificação e a vigilância das práticas de risco, o monitoramento e a avaliação da efetividade de suas iniciativas, visando melhorar o compromisso das escolas com a promoção de saúde da comunidade escolar.

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Ribeiro MSS, Ribeiro CV

artigos

Quadro 2. Metodologia do SPE sob a luz da intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social. Metodologia

Documentos Intersetorialidade

Interface Saúde-Educação

Publicações e documentos oficiais

Oficinas de planejamento conjunto, inclusão de dispositivos sociais (GF) GTM, GTE, GTF e suas atribuições (MD) CAB

Formação para profissionais de saúde e educação (GF) Integração saúde-educação (MD) Articulação de políticas que assegurem ações em saúde de crianças, adolescentes e jovens (CAB)

Construtos elaborados pelos atores sociais

Oficinas temáticas (PrM) Composição do GGM (Dec)

Formação para profissionais de saúde e educação (PrM)

Relatórios de avaliação

Parcerias, envolvimento da comunidade escolar (IM)

Interação unidade escolar x unidade de saúde da família (IM)

Efetividade social Metodologia participativa e emancipatória (GF) Impacto das ações nos projetos político-pedagógicos das escolas e ações em saúde (MD) Inclusão das temáticas de educação em saúde nos projetos político-pedagógicos (CAB)

GF= Guia para a formação de profissionais de saúde e educação do SPE; MD= Manual Diretrizes para implementação do projeto SPE; CAB= Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola; PrM= Projeto municipal do SPE; Dec= Decreto Municipal 489/2009; IR= Informativo Relação das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011; IM= Instrumento de Monitoramento

3.2 O segundo grupo discorreu, em relação ao Projeto9, que, dentre os resultados esperados, encontravam-se: o apoio técnico, percepção da postura dos profissionais com o tema sexualidade e relações de gênero, troca de experiências, reflexão sobre os arranjos familiares e a violência intra e extrafamiliar, sensibilização da comunidade escolar à adoção de condutas preventivas em DST/ HIV/Aids, e reflexão sobre métodos contraceptivos para o exercício da sexualidade com liberdade e responsabilidade. O Decreto Municipal10 antecipou a ampliação de parcerias visando: a integração de esforços para a formação integral do educando, fomento à participação juvenil, construção de uma rede integrada saúde-educação, contribuindo para a sustentabilidade das ações do SPE e consolidação das políticas públicas de proteção à adolescência e à juventude brasileiras. 3.3 O terceiro grupo de documentos apresentou, no Informativo11, que, em 2009, quatro escolas (40% das escolas com profissionais formados pelas oficinas do projeto) implantaram o SPE, e o monitoramento ocorreu em sete escolas, o que representa 80% delas. Em 2010.1, apenas três escolas (27% das escolas) implantaram o SPE, ao passo que o monitoramento ocorreu em sete escolas. Em 2010.2, a implantação do SPE ocorreu em três escolas (15% das unidades escolares), e o monitoramento das ações foi realizado em cinco unidades. Em 2011, nenhuma escola implantou o SPE, e o monitoramento foi feito em uma escola (4% do total das unidades escolares), o que pode ser visualizado no Gráfico 2. O Instrumento12 espacializou que, das 53 escolas relacionadas, 21 implantaram o SPE, o que indica um percentual de 40%. Dentre as parcerias citadas, encontravam-se: Programa Saúde da Família (PSF), Guarda Municipal, Universidade, Polícia Militar, Conselho Tutelar, Comunidade Escolar, Secretaria de Agricultura, Desenvolvimento Rural e Meio Ambiente (SEADRUMA), entre outras. O Setor Saúde e a interação unidade escolar X unidade de saúde da família foram expressivamente citados, assim como o envolvimento da comunidade escolar: assistindo palestras e peça teatral, reuniões, organizando as ações, participando das oficinas, informes, videos, buscando parcerias, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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em visitas domiciliares, entrega de panfletos, dando suporte aos eventos. Quanto às atividades desenvolvidas, foram citadas: palestras com pais e alunos, divulgação e elaboração do projeto, danças, teatros, cordéis, jogos e brincadeiras em sala, confecção de cartazes, seminários, paródias, produções de texto, projeção de filmes, ação cidadania, produção de CD e DVD.

25 20 15 10 5 0 2009

2010.1

2010.2

2011

Escolas formadas pelo SPE Escolas que implantaram o SPE Escolas monitoradas pelo SPE

Gráfico 2. Situação de implantação e monitoramento do SPE. Fonte: GGM, 2011.

Dentre as dificuldades, foram citadas: restrições no acesso à saúde, centralização da formação na figura de um profissional, e a consequente não-socialização do conhecimento, ausência de profissional especialista para ministrar palestra, despreparo de professores para manejar a temática, espaço físico, distanciamento, falta de interesse e compromisso dos participantes, dificuldade de firmar parcerias relacionada ao tempo disponível dos profissionais, e o agendamento sucessivo de palestras não realizadas. Como sugestões, o documento elencou o envio de palestrantes para: a implantação, união dos núcleos próximos, solicitação de apoio do PSF para realização de palestras, divulgação da implantação do projeto dentro da escola, inclusão de visitas de profissionais da Unidade de Saúde da Família no cronograma de horário de trabalho destes profissionais, formação de parcerias com os postos de saúde. O Quadro 3 espacializou os principais resultados encontrados na avaliação dos documentos mencionados acima na perspectiva da intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social.

Discussão Quanto às concepções, os documentos do primeiro grupo convergiam para a integração saúdeeducação. O Manual Diretrizes7 para a implementação do projeto SPE aponta para a intersetorialidade construída a partir da articulação solidária e participativa, o que convergiu com o Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola, que retomou, também, a ferramenta do território para o alcance da efetividade social entre as ações propostas. Este conteúdo também foi apontado por todos os documentos analisados do primeiro grupo.

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Ribeiro MSS, Ribeiro CV

Resultados

Documentos Intersetorialidade Publicações e documentos oficiais

Interface Saúde-Educação

Efetividade social

O GF utiliza a interface saúde-educação baseada na intersetorialidade como instrumento de efetividade social de práticas O MD fundamenta-se na criação de grupos de trabalho que assumem compromissos com a efetividade da proposta O CAB enuncia o PSE como integração escola-ESF visando melhorar o compromisso das escolas com a saúde da comunidade escolar

Construtos elaborados pelos atores sociais Relatórios de avaliação

artigos

Quadro 3. Resultados do SPE sob a luz da intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social.

Parcerias PSF, NECOM, Guarda Municipal, UNIVASF, PM, Conselho Tutelar, ACS, Comunidade Escolar, CAPS, Secretaria de Agricultura, SEADRUMA, SIAN, Agrovale, Secretaria de Desenvolvimento (IM)

Rede integrada saúde-educação para redução dos agravos à saúde da população jovem (Dec)

Exercício da sexualidade com liberdade e responsabilidade (PrM) Fomento à participação juvenil para transformação da realidade (Dec)

A parceria com o setor saúde foi citada no IM. A interação unidade escolar x unidade de saúde da família. A restrição do acesso à saúde, ausência de profissional especialista. Sugestão de apoio técnico do PSF, inclusão de visitas do PSF, formação de parcerias com os postos de saúde (IM)

Implantação do SPE (IR) Compromisso dos partícipes, interesse, tempo disponível dos profissionais, interesse da comunidade sobre a questão ambiental, centralização da formação na figura de um profissional, e a não-socialização do conhecimento (IM)

GF= Guia para a formação de profissionais de saúde e educação do SPE; MD= Manual Diretrizes para implementação do projeto SPE; CAB= Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola; PrM= Projeto municipal do SPE; Dec= Decreto Municipal 489/2009; IR= Informativo Relação das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011; IM= Instrumento de Monitoramento

O território, para Fonseca4, é espaço e lugar construído socialmente, de conteúdo social, político e ambiental sobre o qual é possível atuar, eleito como estratégia para a coleta e organização de dados sobre ambiente e saúde, considerando os processos sociais e ambientais que transcendem esses limites. Sua peculiaridade mais importante é ser uma área de atuação, de fazer, de responsabilidade. O território é espaço comum para o qual convergem todos os setores sociais, sendo, portanto, elemento precioso para a compreensão das condições de vida e da dinâmica social. Esta fundamentação parece sustentar o seu uso pelos documentos analisados, sobretudo para a construção de planos de ação para a efetividade das práticas sugeridas. A compreensão de território precede a compreensão de intersetorialidade, relacionada à interação e articulação entre todas as coisas, fazendo daquele um lugar saudável. A intersetorialidade é um processo de construção partilhada no qual diversos setores conjugam saberes e modos de fazer nucleares, porém abertos ao diálogo e à corresponsabilidade e cogestão para a melhoria do aparelhamento público. Segundo Barros e Castro14, deve responder às necessidades em saúde da população, sendo precedida de processos de levantamento diagnóstico, planejamento e avaliação participativa. A efetividade social, entre os documentos do segundo grupo, foi apontada apenas pelo Decreto municipal7. Este conceito, segundo Belloni15, refere-se a critério de avaliação em políticas públicas que procura dimensionar os resultados da política pública, tanto econômicos quanto sociais. Estes resultados têm de ser compatíveis com as necessidades sociais e técnicas do mundo do trabalho. Já a interface saúde-educação foi também prevista pelo Projeto municipal9, de modo similar ao Decreto10, que se direciona para a formulação de políticas integradas a partir de elementos de intersetorialidade. A intersetorialidade foi parcialmente prevista, entre os documentos do terceiro grupo, por serem estes propostas relacionadas diretamente ao setor educação. Enquanto o Informativo11 apontou para COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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um panorama geral do SPE na educação no município, o Instrumento apresentou possiveis articulações com outros setores da sociedade. A efetividade social, em ambos os documentos, foi condicionada pela implantação do SPE a partir da formação de profissionais. A interface saúde-educação foi timidamente visualizada no Instrumento pela relação da interação das unidades escolares e unidades de saúde da família e envolvimento da comunidade escolar, atividades desenvolvidas, dificuldades e sugestões apontadas pelo documento. No primeiro grupo de documentos, a intersetorialidade foi contemplada por todos os documentos analisados, bem como a interface saúde-educação. A efetividade social também foi apontada por todos os documentos, orientados para a inclusão das políticas pelos projetos político-pedagógicos das escolas e na programação em saúde. A efetividade social esteve presente, também, no segundo grupo de documentos, objetivada mais claramente pelo Decreto10. A interface saúde e educação foi prevista por ambos os documentos, e a intersetorialidade é assegurada pela organização do GGM, planejamento e implementação do projeto. Ainda relacionado à intersetorialidade, o terceiro grupo de documentos lançou um olhar sobre o setor educação no município de Juazeiro, limitando a visualização deste elemento em seus conteúdos. A interface saúde e educação também foi timidamente apresentada pelo Instrumento12, enquanto a efetividade social, também limitada nesse estudo, foi apresentada pelos dois documentos. No primeiro grupo de documentos, assim como no segundo grupo, a intersetorialidade, a interface saúde e educação, e a efetividade social foram previstas em todos os documentos analisados. No terceiro grupo de documentos, o Informativo apresentou a efetividade a partir da formação e consequente implantação do SPE pelas unidades escolares, nos anos 2009, 2010 e 2011, sendo este indicador demonstrado a partir de baixos percentuais entre a quantidade de escolas formadas pelo SPE e a quantidade de escolas que o implantaram. O monitoramento desenvolvido nas escolas formadas também é indicador de efetividade do projeto. O mesmo, segundo o documento em questão, também apresentou números pouco significativos. Para o Instrumento12, a efetividade social, traduzida parcialmente nos 40% de implantação do SPE pelas escolas formadas pelo processo SPE, demonstrou pouca adesão ao projeto. Quanto à intersetorialidade, a presença de outros segmentos da sociedade civil nos processos de planejamento e execução de atividades demonstrou que este elemento esteve presente nos espaços disparados pelo SPE. A articulação com o Setor Saúde e a interação unidade escolar X unidade de saúde da família surgiu de modo significativo na relação nominal, demonstrando que os atores que protagonizam o SPE talvez desconheçam que já faz parte do seu processo de organização e implementação, além de previsto e pré-requisito que o Setor Saúde o operacionalize de modo solidário com o Setor Educação. A participação da comunidade escolar foi citada de modo incipiente, sendo importante salientar, dentre as dificuldades citadas, a necessidade de disponibilização de profissionais de referência para a realização de palestras. O projeto SPE pressupunha a sustentabilidade de sua proposta, o que talvez não tenha sido esclarecido aos atores. Desse modo, são os próprios sujeitos e dispositivos sociais que integraram o SPE que o desenvolviam, inclusive metodologicamente.

Conclusão A conclusão do presente estudo coincidiu com a aposta de inserir o Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE) como políticas e práticas potentes, fortalecendo ações e orientando processos de educação permanente que conjugam atores e suas itinerâncias. A experência SPE em Juazeiro apontou para o desenrolar de uma ação coplanejada por dois segmentos sociais, o setor saúde e educação. Sua construção e implementação apoiou-se nesta configuração, sendo, portanto, uma aposta intersetorial que, em sua concepção e metodologia, apresentou-se coerente com a proposta inicial, interministerial. Em seus resultados, o SPE emergiu por intervenções e reorientações que ressignificassem a essência do projeto e a colocassem em pauta junto aos protagonistas que o operam.

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A avaliação do SPE enquanto um projeto social contemplou admitir que a interface saúde e educação é possível considerando quais transformações sociais ela pode realizar, quem as realiza e por quê. Nesse sentido é que a avaliação permite elencar as melhores estratégias para que se alcancem os objetivos aos quais uma política está relacionada. Em Juazeiro, a integração saúde e educação foi possível e as transformações alcançadas, justamente porque houve efetivação da educação permanente e a implantação do SPE pelas escolas formadas. Este estudo demandou a construção de espaços destinados à educação permanente, garantindo o encontro e a multiplicação das iniciativas pelos sujeitos implicados com o SPE, além de assegurar sua sustentabilidade reafirmando as ações encabeçadas por seus protagonistas. A pesquisa considerou oportuno fomentar a participação da comunidade escolar, sobretudo o protagonismo juvenil, e partilhar da responsabilidade sanitária com os demais segmentos sociais que compõem cada território. Este trabalho, ao relatar a experiência do SPE em Juazeiro, reconheceu a limitação do seu estudo por se optar pela pesquisa documental, sendo de especial valia uma varredura mais detalhada sobre estes discursos, por quem fez o SPE acontecer. Por este motivo, este estudo não se esgotou por aqui, e carece de informações que o complementem. É importante ressaltar o incansável trabalho do Grupo Gestor Municipal de Juazeiro que, aprendendo com os próprios passos, soube mediar e conduzir o projeto SPE, com persistência, coragem e enfrentamento. Saúde e educação, hoje, dialogam como instrumentos de cidadania, que se relacionam entre si, conjugando a fluidez de uma rede, as práticas integrais e integradas, reorientações para o empoderamento e a transformação social. As iniciativas em saúde precisam contemplar, ainda, o setor educação, e vice-versa. Esta é uma relação indissociável para a garantia dos direitos fundamentais, tão inclusos nas agendas políticas atuais, e que para, se tornar realidade, demandam esforços coletivos.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Brasília (DF): Senado Federal; 1988. 2. Faria RM, Bortolozzi A. Espaço, território e saúde: contribuições de Milton Santos para o tema da Geografia na Saúde no Brasil. RA’E GA. 2009; (17):31-41. 3. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2000. 4. Fonseca AF. O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2007. 5. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes para a implantação do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas. Brasília (DF): SEF; 2008.

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6. Laville CA, Dionne J. Construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed; 1999. 7. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde e prevenção nas escolas: guia para a formação de profissionais de saúde e educação. Brasília (DF): SEF; 2008. 8. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde na Escola. Brasília (DF): SEF; 2009. 9. Grupo Gestor Municipal (2008). Projeto municipal do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas. Juazeiro; 2009. 10. Prefeitura Municipal de Juazeiro. Decreto nº 489/2009, de15 de outubro de 2009. Dispõe sobre a criação do Grupo Gestor Municipal para a implantação e implementação do SPE. Juazeiro: Gabinete do Prefeito Municipal; 2009. 11. Grupo Gestor Municipal (2008). Relação das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011. Juazeiro; 2011. 12. Grupo Gestor Municipal. Instrumento de Monitoramento. Selo UNICEF. Tema: Saúde e prevenção nas escolas, na família e na comunidade. Etapa: Monitoramento. Juazeiro: UNICEF; 2011. 13. Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 4a ed. São Paulo: Atlas; 2002. 14. Campos GW, Barros RB, Castro AM. Avaliação de política nacional de promoção da saúde. Cienc Saude Colet. 2004; 9(3):745-9. 15. Belloni I. Metodologia de avaliação em políticas públicas: uma experiência em educação profissional. 4a ed. São Paulo: Cortez; 2007.

Ribeiro MSS, Ribeiro CV. Salud y Prevención en las Escuelas (SPE): elementos para evaluación de proyectos sociales en Juazeiro, Bahia, Brasil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):337-48. El SPE presentado por la autora como TCC de Residencia Multi-profesional en Salud de la Familia, que en aquella época era alumna del programa, representó una iniciativa de salud y educación, promoviendo una actividad de salud sexual y reproductiva para los adolescentes en el municipio de Juazeiro/Estado de Bahia, Brasil. El objetivo fue analizar el SPE en su concepción, metodología y resultados, considerando la intersectorialidad, la interfaz entre salud y educación y la efectividad social. Este trabajo concluyó que era oportuna la garantía de sostenibilidad del proyecto y del fomento para la participación de la comunidad escolar. Los desdoblamientos del SPE se visualizan en las macro-políticas de atención a la salud y educación que hoy dirigen los principales pactos intersectoriales de este escenario, exigiendo la comprensión de su construcción para su fortalecimiento.

Palabras clave: Salud. Educación. Intersectorialidad. Efectividad social. Recebido em 09/07/14. Aprovado em 27/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0330

artigos

Residência Multiprofissional em Saúde da Família: concepção de profissionais de saúde sobre a atuação do nutricionista*

Irani Gomes dos Santos(a) Nildo Alves Batista(b) Macarena Urrestarazu Devincenzi(c)

Santos IG, Batista NA, Devincenzi MU. Multiprofessional residency in family health: the conceptions of healthcare professionals regarding nutritionists’ performance. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):349-60. Multiprofessional residency in family health is developed within the Family Health Strategy (FHS) and prioritize training and production of care technologies, thereby qualifying the Brazilian National Health System (SUS). In this setting, nutritionists promote dietary and nutritional actions aimed towards the local epidemiological profile. The aim of this study was to show the conceptions of healthcare professionals regarding nutritionists’ performance in the FHS, subsequent to nutritionists’ inclusion in the residency program. This was a cross-sectional, exploratory, descriptive and analytical study, involving the participation of 13 professionals. The data-gathering technique comprised semi-structured interviews and content analysis. It was shown that the low degree of inclusion of nutritionists in this strategy contributed towards poor understanding of their performance. Nevertheless, their specificity was valued, considering their differentiated view of situations concerning nutrition, thus broadening the possible scenarios for action, especially towards promotion and prevention.

Keywords: Nutritionist. Family Health Program. Internship. Residency.

A Estratégia Saúde da Família (ESF) é o local para desenvolvimento das Residências Multiprofissionais em Saúde da Família, que primam pela formação e produção de tecnologias do cuidado, qualificando o Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse cenário, o nutricionista promove ações de alimentação e nutrição voltadas para o perfil epidemiológico local. O objetivo do trabalho foi mostrar concepções de profissionais de saúde em relação à atuação do nutricionista na ESF após sua inserção em residência. Participaram 13 profissionais. Trata-se de estudo exploratório, descritivo, analítico, corte tipo transversal, tendo como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada e a análise de conteúdo. Evidenciou-se que a pequena inserção de nutricionistas nesta estratégia contribuiu para uma compreensão pouco clara de sua atuação. Porém, sua especificidade foi valorizada considerando seu olhar diferenciado para situações voltadas para a Nutrição, fazendo ampliar possibilidades de cenários de atuação, sobretudo dirigidas à promoção e prevenção.

Palavras-chave: Nutricionista. Programa Saúde da Família. Internato. Residência.

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Elaborado com base na dissertação de Mestrado da primeira autora, “Residência Multiprofissional e a formação do nutricionista para o Programa Saúde da Família”, defendida em 2009 na Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. (a) Faculdade Santa Marcelina, Unidade de Ensino Itaquera. Rua Cachoeira de Utupanema, 40. São Paulo, SP, Brasil. 08062-340. iraninutri@ gmail.com (b) Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). São Paulo, SP, Brasil. nbatista@unifesp.br (c) Departamento de Gestão e Cuidados em Saúde, Campus Baixada Santista, Unifesp. Santos, SP, Brasil. macarena.devincenzi@ unifesp.br *

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Introdução O Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído após vários anos de movimento sanitário, em meio à crise do setor da saúde, com suas incongruências, desarticulação e dificuldades em prestar assistência razoável à maioria da população. Sua origem data de 1988, após a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que embasou o texto da Constituição do mesmo ano. Desde então, a luta para que seus princípios de universalidade, equidade e descentralização sejam respeitados1 configura elemento de importância e destaque na política de saúde. No entanto, esse sistema não tem sido capaz, por si só, de colocar em prática as garantias já conquistadas legalmente. É evidente a magnitude dos problemas de saúde do povo brasileiro ocasionados por fatores ambientais, biológicos, físicos e sociais, decorrentes e permanentemente agravados pela crise social dos últimos anos, cuja repercussão direta se traduz em aumento da violência, desemprego e exclusão2. Devido à necessidade de consolidação do SUS, tem início, em 1994, a implantação do Programa Saúde da Família – PSF1,3, como instrumento para reorganização do SUS e da municipalização. Em 1997 e 1998, novos documentos publicados pelo Ministério da Saúde reforçam o entendimento do PSF como estratégia para reorganização da atenção básica, implantada a fim de trazer uma nova concepção de saúde, voltada para a promoção da qualidade de vida, resgatando, então, os princípios do SUS, visando melhorar e ampliar o atendimento à população4. Apesar de ser uma estratégia recente, segundo Mano1, no PSF (agora conhecido como Estratégia Saúde da Família – ESF), já é possível ver e questionar alguns princípios que fizeram parte de sua implantação, entre eles: possibilidade de expansão da equipe básica, carência de profissionais (caráter quantitativo e qualitativo), redimensionamento das áreas e multiprofissionalidade. Ao se considerar a carência qualitativa dos profissionais, surgem algumas modalidades como forma de potencializar o trabalho desenvolvido na ESF, como: cursos de Especialização em Saúde da Família, destinados a profissionais de nível Superior, capacitação da equipe e criação de Residências Multiprofissionais em Saúde da Família5. Frente à crescente demanda do setor saúde e à possibilidade de utilizar o espaço desses serviços como campos para o ensino e pesquisa, foram instituídas as Residências Multiprofissionais (específicas ou multiprofissionais), com o intuito de formar e produzir tecnologias do cuidado, aspectos importantes para a qualificação do SUS6. As Residências Multiprofissionais têm com principal objetivo desenvolvimentos de ações por profissões voltadas para a área da saúde, sobretudo as áreas prioritárias (Biomedicina, Ciências Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional), visando a qualificação desses profissionais da saúde no SUS a partir das necessidades de saúde da população, com a finalidade de transformação da realidade6. Segundo levantamento realizado pela Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (SGTES) e Diretoria Executiva de Gestão do Ensino Superior – DEGES7, os programas de Residências Multiprofissionais em Saúde, financiados pelo Ministério da Saúde, estão presentes nas regiões Norte (Rondônia), Nordeste (Bahia, Maranhão, Pernambuco, Sergipe), Sul (Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina) e Sudeste (Minas Gerais, São Paulo). A proposta das Residências Multiprofissionais em Saúde vem sendo a cada ano mais conhecida e aprimorada. Os programas de Residência Multiprofissional em Saúde da Família diferem das outras Residências Multiprofissionais, pois têm como loco de atividades o cenário da Atenção Básica; podendo contribuir com a revisão do modelo assistencial, pois formam um novo perfil do profissional de saúde, humanizado e preparado para responder às necessidades de saúde dos usuários, família e comunidade, permitindo a contribuição para a construção de novos paradigmas de assistência à saúde, ampliando a resolutividade da Estratégia Saúde da Família7. Em algumas Residências Multiprofissionais em Saúde da Família, o nutricionista encontra-se inserido, abrindo espaço para desenvolver suas relevantes atribuições diante do atual perfil nutricional da população brasileira. 350

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Atualmente, vários países, inclusive o Brasil, vivenciam rápida transição epidemiológica e nutricional, marcada pela coexistência da desnutrição com o aumento da prevalência da obesidade, sobrepeso, carências nutricionais e alta incidência de doenças crônicas não transmissíveis8, gerando sobrecarga ao SUS por demandarem grande número de ações, procedimentos e serviços de saúde, sobretudo quando envolvem doenças crônicas9. A transição nutricional associada com a epidemiológica está estreitamente relacionada: ao sedentarismo, alto consumo de alimentos industrializados, fast food, menor ingestão de frutas, verduras e legumes, e consumo elevado de gorduras saturadas9,10. As ações de promoção à saúde e prevenção de agravos são particularmente relevantes diante desse fenômeno, que traz a inversão na tradicional distribuição dos problemas nutricionais associada ao padrão de determinação de doenças atribuídas à modernidade11. Esse fenômeno é atualmente considerado um dos maiores desafios das políticas públicas, uma vez que faz surgir a necessidade de um modelo de atenção à saúde pautado na integralidade do indivíduo e sua família, com abordagem centrada na promoção da saúde9. Considerando que, na ESF, o atendimento ao usuário e sua família é realizado de forma integral e contínua, buscando desenvolver ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, enfocando o ambiente físico e social, percebe-se essa estratégia como um espaço de atuação do nutricionista, por ser um profissional apto a trabalhar conceitos e estratégias que abordem assuntos pertinentes à alimentação e nutrição12-14, contribuindo para recriar práticas de atenção à saúde no Brasil. O princípio de integralidade também justifica abordar ações de alimentação e nutrição, uma vez que elas têm por finalidade elevar a qualidade de vida da população13. No entanto, esse cenário de atuação para o nutricionista é ainda muito recente, fazendo-nos questionar como se desenvolve a atuação deste profissional ao ser inserido na ESF. Assim, este artigo objetivou investigar as concepções de profissionais de saúde, inclusive nutricionistas, em relação à atuação do nutricionista na Estratégia Saúde da Família após sua inserção em um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família.

Métodos O estudo apresentado é um recorte da dissertação intitulada Residência Multiprofissional e a formação do nutricionista para o Programa Saúde da Família, elaborada para obtenção do título de Mestre Profissional em Ensino em Ciências da Saúde pelo Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (CEDESS) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O cenário escolhido para o estudo foi a Residência Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF), desenvolvida em parceria com Ministério da Saúde, Faculdade Santa Marcelina e Casa de Saúde Santa Marcelina, entre os anos de 2005 a 2007. Nesse período, a referida Residência absorveu noventa profissionais de dez categorias, com, no máximo, dois anos de formação de nível Superior na área da Saúde e Serviço Social, sendo elas: Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional. Para atingir o objetivo almejado, os sujeitos da pesquisa foram egressos que participaram da RMSF, gestão 2005-2007, e que desenvolveram suas atividades juntamente com nutricionistas, totalizando 13 indivíduos, escolhidos em sorteio aleatório. Os participantes incluídos foram: um médico, um enfermeiro (tutor), um fisioterapeuta, um fonoaudiólogo, um terapeuta ocupacional, um farmacêutico, um odontólogo e seis nutricionistas (residentes). O presente estudo é do tipo exploratório, descritivo, analítico, corte tipo transversal, com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados em 2008, tendo, como instrumento de coleta, a entrevista semiestruturada com igual teor para todos os participantes. As principais questões contempladas no estudo que se relacionam com a atuação do nutricionista na Estratégia Saúde da Família foram: a) Em sua concepção, qual é a atuação do nutricionista em Unidades de Saúde da Família?; b) A partir da vivência com a atuação do nutricionista, descreva uma situação que você presenciou que demonstre a atuação desse profissional. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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As entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente, sendo posteriormente analisadas com base na Análise de Conteúdo, cujo objetivo é obter indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/ recepção de um conjunto de mensagens, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos. Diante dos pressupostos da técnica de análise de conteúdo, optou-se pela análise temática, por se perceber que a utilização do tema, enquanto unidade de análise para a interpretação das respostas de determinados grupos de pessoas, resulta em grande número de respostas permeadas por diferentes significados15. A análise dos dados respeitou os seguintes preceitos: pré-análise, definição das unidades de análise (unidade de contexto e unidade de registro) e categorias de análise. Foi escolhido o critério de categorização semântica, uma vez que a “proposta foi selecionar categorias, agrupando-as conforme o significado dos temas, sendo posteriormente confrontadas com achados de outras investigações sobre o assunto”15 (p. 62). Todas as categorias encontradas na pesquisa emergiram das falas dos entrevistados, não tendo sido, portanto, criadas a priori. Para preservar o sigilo dos participantes, eles foram identificados por ordem sequencial de 1 a 13, e suas falas marcadas, também, por ordem sequencial de acordo com a unidade de registro, por exemplo: entrevistado 1 - unidade de registro 15 (E1- UR15). O estudo teve aprovação da Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade Santa Marcelina, instituição que chancela a Residência Multiprofissional em Saúde da Família, do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, e aceite por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado pelos participantes do estudo.

Resultados e discussão Os participantes deste estudo são predominantemente do sexo feminino (92,3%), com idade entre 25 e 35 anos. No que se refere ao tempo de formação dos sujeitos, verificou-se que 53,8% (n = 7) estão formados há cerca de quatro anos; 23,1% (n = 3) concluíram a faculdade há três anos, seguidos por 7,7% de profissionais formados há cinco (n = 1) , sete (n = 1) e 11 (n = 1) anos. Ao serem questionados sobre maior titulação, foram encontrados 100% de especialistas, sendo também unânime a participação em Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família de caráter lato sensu. No momento da pesquisa, apenas três profissionais (23,1%), participantes do estudo, trabalhavam na Estratégia Saúde da Família, há dez, quatro ou dois anos. Os demais aguardavam processo seletivo ou haviam mudado o campo de atuação. As questões apresentadas neste estudo fizeram emergir a concepção dos entrevistados sobre a atuação do nutricionista na ESF, considerando sua vivência durante o período de Residência Multiprofissional em Saúde da Família. Foram encontradas 68 unidades de contexto, que resultaram em 111 unidades de registro, das quais, por sua vez, emergiram seis categorias de análise: Compreensão pouco clara da atuação do nutricionista; Valorização da atuação específica; Visão ampliada de cenários de atuação; Atuação na promoção e prevenção; Atuação na perspectiva multiprofissional; Atuação favorecida pela dinâmica do processo de trabalho da ESF. A seguir, cada categoria é apresentada e discutida à luz da literatura científica.

Compreensão pouco clara da atuação do nutricionista As falas sinalizam que a atuação do nutricionista ainda é pouco conhecida. Vale ressaltar que como 46,2% (n = 6) dos entrevistados eram nutricionistas, as respostas puderam expressar a necessidade que os próprios profissionais possuem em ter suas atribuições conhecidas e serem reconhecidos pelos demais da equipe de saúde. Contudo, ao se analisarem os dados não diferenciando as profissões, percebe-se que a presença desse profissional pode levar a uma abrangência de atendimento, independentemente da complexidade ou linha de cuidado em que o usuário se encontra. As falas analisadas manifestam que essa compreensão incipiente certamente é potencializada pela Ausência

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do profissional na ESF, repercutindo na dificuldade, em alguns momentos, de entendimento de quais atividades são, de fato, pertinentes à atuação do nutricionista, visto que esse profissional encontravase inserido no momento do estudo apenas no programa de pós-graduação. “[...] se espera muito do nutricionista por ser um profissional novo e quando a equipe não consegue dar suporte para aquilo, acaba sendo dele”. E1 - UR4

Outro ponto apreendido diz respeito à dificuldade de se desenvolverem ações quando se desconhece o caminho a seguir, ou seja, falta de direcionamento para a atuação na ESF, tanto de atividades específicas (área de Nutrição) quanto pela pouca compreensão dos demais profissionais inseridos nessa estratégia, podendo, às vezes, limitar o desenvolvimento das ações. Vale ressaltar que a subcategoria intitulada falta de direcionamento para a atuação está intimamente atrelada à ausência do profissional Nutricionista na Estratégia da Família durante o desenvolvimento da Residência Multiprofissional no momento da coleta desses dados. Portanto a ausência desse profissional como parte integrante da ESF fez com que houvesse a inexistência de um trabalho estruturado, no qual o residente pudesse se espelhar para desenvolver ou aprimorar suas ações diárias. Essa condução para desenvolvimento de atividades foi criada a partir da demanda local e ações propostas pela Politica Nacional de Alimentação e Nutrição. A pequena inserção do nutricionista na ESF foi considerada, por Santos13, como um dos motivos da falta de conhecimento de suas funções e atribuições por outros profissionais, mesmo considerando o atual perfil epidemiológico da população brasileira, caracterizado pelo assustador crescimento de doenças crônicas não transmissíveis, deficiências nutricionais, e sua estreita relação com hábitos de vida e alimentação não saudáveis8,16. Tais dados vão ao encontro de um levantamento realizado pelo Conselho Federal de Nutricionistas17, em que se constatou que a área de abrangência do Conselho Regional de Nutricionistas (CRN7), a qual contempla os estados de Pará, Rondônia, Roraima, Amazonas, Amapá e Acre, é onde se verifica o maior índice de inserção do nutricionista em Saúde Pública, sendo de 19%. Apesar de ser considerada uma porcentagem baixíssima, esse valor é ainda mais expressivo se comparado a outras regiões onde a frequência é inferior a 12%. Esse fato também foi verificado na pesquisa realizada por Akutsu18. Dos 587 nutricionistas brasileiros que participaram do estudo, apenas sessenta atuam na área de Nutrição Pública. Percebe-se que os estudos citados reforçam a pequena inserção deste profissional em Saúde Pública. Ressalta-se ainda que, nessa área, não foram encontrados trabalhos demonstrando quantos nutricionistas atuam especificamente na ESF em todo o Brasil. Esses números atualmente encontram-se alterados tendo em vista a criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), onde é possível a inserção deste profissional. O NASF é constituído por uma equipe multiprofissional agindo diretamente no apoio às equipes e na unidade de saúde da família, com o objetivo de ampliar a abrangência e o foco das ações de atenção básica, melhorando a qualidade e a resolutividade da atenção à saúde19. Em 2005, o Conselho Federal de Nutricionistas20 estabeleceu as atribuições do nutricionista em diversos campos de atuação, nos quais está incluída a Saúde Pública, considerando a ESF como integrante desse cenário. É fato que a resolução emitida pelo CFN representou um importante ganho para a profissão; no entanto, quando os relatos abordam a falta de direcionamento para atuar na ESF, referem-se à dificuldade de se desenvolverem essas atribuições, uma vez que, dificilmente, há diretrizes sobre como atuar especificamente nessa estratégia. Para Boog21, apesar de a resolução estar em vigor, faz-se necessário considerar que o processo de institucionalização depende da criação de uma nova realidade de atuação. Diante desse cenário, Santos13 pontua o momento da Residência em Saúde da Família como oportuno para a atuação do nutricionista em equipes de saúde da família, para divulgar suas ações e ampliar seu campo de trabalho. Essa nova área de atuação deve possibilitar que o profissional demonstre desprendimento, ousadia, envolvimento e criatividade.

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Valorização da atuação específica Apesar de a ESF constituir um campo de atuação no qual o trabalho multiprofissional é fundamental, as falas dos entrevistados ressaltam a necessidade de atuação específica como ponto primordial nas ações desenvolvidas pelo nutricionista, uma vez que sua especificidade traz um conhecimento técnico próprio de sua profissão. Vejamos algumas: “[...] com a presença da nutri, como ela já conhece mais específico de alimentos, a pessoa começa a entender melhor, capta melhor tudo isso, e é mais completa a abordagem [...]”. E8 UR67 “[...] segundo SIAB, a gente tinha nenhum ou um ou dois desnutridos, então a intervenção e o olhar com ela na equipe pôde permitir que a gente fizesse esse diagnóstico e intervenção direcionada”. E11 - UR90

Os destaques dos relatos referentes ao conhecimento específico do nutricionista vêm ao encontro das competências previstas em sua formação, que contemplam, entre outras vertentes: a capacidade de avaliar, diagnosticar e acompanhar o estado nutricional; planejar, prescrever, analisar, supervisionar e avaliar dietas e suplementos dietéticos para indivíduos sadios e enfermos; bem como realizar diagnósticos e intervenções na área de alimentação e nutrição, considerando as influências socioculturais e econômicas que determinam a disponibilidade, o consumo e a utilização biológica dos alimentos pelo indivíduo e pela população22. Diante do conhecimento específico do nutricionista, do seu olhar para situações que envolvem a alimentação e nutrição, torna-se muito mais fácil detectar problemas nesse sentido. Em estudo desenvolvido por Santos13, médicos e enfermeiros referem que, com a inserção do nutricionista, ocorre melhora no atendimento do usuário, uma vez que os entrevistados citaram dificuldades em abordar temas relacionados à alimentação e nutrição. Assis12 reafirma este fato ao perceber o nutricionista como um profissional com participação relevante na ESF, uma vez que possui conhecimento específico que o instrumentaliza a observar valores socioculturais, realizar diagnóstico e, assim, propor as devidas orientações dietéticas, sempre adequadas à realidade familiar. Considerando-se a demanda proveniente da transição epidemiológica e nutricional que se encontra estreitamente associada a hábitos alimentares inadequados, sobretudo a partir das décadas de 1980 e 1990, com baixo consumo de fibras e micronutrientes, e ingestão excessiva de gorduras saturadas10, é primordial que o nutricionista desenvolva apoio constante para a promoção de uma alimentação saudável, culminando na prevenção e tratamento da obesidade e de outros distúrbios nutricionais8. Diante desse cenário e pautando-se nos conhecimentos técnicos do nutricionista, faz-se necessário um planejamento para ações de prevenção às doenças relacionadas à alimentação e de intervenções nutricionais, visando promover um melhor estado nutricional da população, no qual o trabalho com outros profissionais só engrandece e potencializa os resultados. O nutricionista, em trabalho com a equipe multiprofissional, deve agir como: formador de outros profissionais, articulador de estratégias de ação junto aos equipamentos sociais da área de abrangência territorial, contribuindo para a promoção da alimentação saudável, da Segurança Alimentar e Nutricional e do Direito Humano à Alimentação Adequada16. Considerando a ESF como uma estratégia voltada para a promoção da qualidade de vida, Assis12 reforça que uma assistência de saúde cujo objetivo seja transformar a história das práticas alimentares e dos resultados de intervenção não poderá ser desenvolvida sem a atuação do nutricionista.

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Visão ampliada de cenários de atuação As falas dos sujeitos também permitem observar uma visão ampliada de cenários de atuação nos quais o nutricionista pode contribuir somando seus conhecimentos a uma gama de atividades, todas pautadas na ampla estrutura de ações desenvolvidas pela ESF. “[...] não só focado em atendimento como se fosse ambulatorial e não trabalhar grupo educativo, visita domiciliar, envolver a família, outros profissionais que trabalhem na unidade”. E3 - UR25 “[...] orientações com grupo, comunidade e tudo que abrange no PSF (ESF), as visitas domiciliares, consultas individuais, o trabalho com o indivíduo e a família como um todo [...]”. E7 - UR57

Espera-se que o nutricionista exerça suas atribuições em diversos cenários de atuação, pois é considerado um profissional capacitado a atuar, visando à segurança alimentar e atenção dietética, em todas as áreas do conhecimento em que a alimentação e a nutrição se apresentem como fundamentais20. Ao se ampliarem os cenários de atuação em Saúde Pública, abre-se um leque de possibilidades, permitindo: ações educativas sobre a alimentação e nutrição, diagnóstico populacional da situação alimentar e nutricional, estímulo à produção e ao consumo de alimentos saudáveis produzidos regionalmente, e atendimento para doenças relacionadas à alimentação e à nutrição23. Essas atribuições podem ser desenvolvidas na ESF, reconhecendo o território como um local propício para tanto, sempre considerando os espaços comunitários, trabalhando com a intersetorialidade e com abordagem multiprofissional. A amplitude desses cenários de atuação do nutricionista na atenção primária responde à demanda da responsabilidade de se promover o ensino de práticas alimentares saudáveis aos serviços e equipes de saúde, estabelecidas pela Política Nacional de Alimentação e Nutrição e pela Política Nacional de Promoção da Saúde, somando-se à vertente da ESF que almeja promoção à saúde e prevenção de agravos.

Atuação na promoção e prevenção As falas revelaram, de forma predominante, que um trabalho voltado à promoção e prevenção é o que mais se espera da atuação de um nutricionista. Consideram que deva ainda contemplar ações no sentido de despertar a conscientização das pessoas quanto ao estilo de vida saudável, possibilitando reduzir ou evitar agravos à saúde, extrapolando o caráter assistencialista, pautado na necessidade de educar e orientar para a promoção da saúde e prevenção de doenças. “[...] a atuação do nutricionista é na prevenção, atuando mesmo em ações de alimentação, segurança alimentar, mas principalmente em prevenção e promoção, não só a questão curativa”. E4 - UR28 “[...] a área de atuação é a mesma da nossa, atuação na forma de preferência preventiva [...]”. E7 - UR56

Para conseguir desenvolver as premissas de promoção e prevenção, as unidades de registro trazem, de forma muito expressiva, a necessidade de diversidade de estratégias de educação como ferramenta utilizada pelo nutricionista, responsável por tentar modificar hábitos alimentares ou fazer com que compreendam a necessidade de melhorá-los.

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Com respaldo nos relatos que defendem a participação do nutricionista em ações de promoção e prevenção, surge a necessidade de entendimento desses dois termos: no âmbito de prevenção, consideram-se ações que privilegiem intervenções voltadas a evitar o aparecimento de doenças específicas. Nessa perspectiva, devem minimizar a incidência e a prevalência de doenças associadas à má alimentação nas populações, objetivando controlar a transmissão de moléstias infecciosas e promover a redução do risco de doenças degenerativas24. Em se tratando de promoção à saúde, há uma visão ampliada, considerando ações direcionadas não a uma doença específica, mas com o propósito de contribuir para a saúde e bem-estar social. Todavia, a diferenciação de prevenção e promoção ainda é pouco entendida devido ao modo como que elas ocorrem, sendo que, para Czeresnia24, alguns projetos de promoção de saúde também utilizam conceitos de doença, transmissão e risco, mesmo discurso, portanto, da prevenção. As mudanças sociais, políticas e culturais, o esgotamento do paradigma biomédico e a mudança do perfil epidemiológico tornam urgente a proposta de Promoção à Saúde, sendo fundamental que as estratégias utilizadas adaptem-se às necessidades locais e às possibilidades de cada região, percebendo sempre as diversidades em seus sistemas sociais, culturais e econômicos. Diante da ampla demanda relacionada aos cuidados da atenção primária, Silva23 e Santos13 ponderam que os principais problemas de saúde no Brasil poderiam ser evitados por medidas preventivas, uma vez que a prevenção, o controle e o tratamento dos agravos à saúde estão intimamente ligados à alimentação dos indivíduos, suscitando a relevância da participação do nutricionista, tendo em vista sua dedicação à promoção de uma alimentação saudável no intuito de evitar o agravamento de doenças crônicas não transmissíveis. Reconhecendo este importante papel, recentemente, o Ministério da Saúde lançou a Matriz de Ações de Alimentação e Nutrição na Atenção Básica de Saúde, cujo propósito é orientar o nutricionista, por meio de conhecimento técnico específico, sobre como proceder nas ações de promoção e prevenção em saúde diante dos sujeitos das ações (indivíduo, família e comunidade), a respeito dos níveis de intervenção que contemplam a gestão das ações de alimentação e Nutrição e, também, no que se refere ao cuidado nutricional, compreendendo diagnóstico, promoção da saúde, prevenção de doenças, tratamento, cuidado e assistência16. Essas ações devem ser desenvolvidas em todo o ciclo de vida, pois exposições nutricionais, ambientais e padrões de crescimento durante a vida intrauterina e nos primeiros anos de vida podem repercutir diretamente nas condições de saúde quando adulto9.

Atuação na perspectiva multiprofissional

O trabalho realizado em conjunto com outros profissionais emerge como outra importante prática na vertente de atuação do nutricionista. É pontuado que as ações, fossem elas consultas, visita domiciliar, grupos educativos, entre outras, durante o período da RMSF, seriam realizadas com a interface multiprofissional, possibilitando ampliar e qualificar a atuação desse profissional. “[...] possibilitou ampliar mesmo a atuação no sentido de ter mais práticas coletivas, de conseguir trabalhar efetivamente em equipe [...]”. E11 – UR92

Czeresnia24 nos alerta para os preceitos da multiprofissionalidade, ao considerar ser primordial que o profissional desenvolva suas atividades baseado na delimitação dos problemas, o que possibilitará implementar práticas eficazes, pois, caso contrário, o enfoque ficará restrito a sua especialidade. Ao se buscar ampliar o olhar além da especificidade, surge a necessidade da vivência com outros profissionais. A forma e a intensidade da interação entre as profissões intitularão e caracterizarão sua estrutura de atuação. Para Ceccim e Feuerwerker25, considerar o complexo fenômeno – no caso, o processo saúde-doença – reforça a necessidade de um trabalho em que as equipes interajam de forma multiprofissional, uma vez que um modelo de saúde centrado no usuário e sua família, como o da ESF, impõe a ressignificação do processo de trabalho para a integralidade, sendo fundamental um adequado trabalho da equipe multiprofissional. 356

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Nessa perspectiva, buscar o desenvolvimento de programas que contemplem o modelo de atuação multiprofissional, pode, para Gil26, caracterizar oportunidade para uma reflexão, considerando alternativas que propiciem rever os caminhos para a formação dos profissionais, objetivando um trabalho integrado, em equipe, com trocas mais efetivas de saberes e práticas, como pode ser verificado nas Residências Multiprofissionais. O nutricionista encontra espaço no trabalho multiprofissional, compartilhando seus conhecimentos voltados para o cuidado nutricional na atenção básica, contribuindo para a efetividade das ações de Nutrição, com base na construção compartilhada de conhecimentos16, tendo em vista a dimensão da alimentação na vida do indivíduo/ família/ comunidade. Beneficia-se, por sua vez, dos saberes dos outros profissionais, aprimorando sua especificidade e ampliando seus conhecimentos.

Atuação favorecida pela dinâmica do processo de trabalho do Programa Saúde da Família Observa-se que, para os entrevistados, a atuação do nutricionista foi potencializada quando considerada a dinâmica de trabalho da ESF, decorrente da formação de vínculo com o usuário, sua família e comunidade. Ressalta-se, também, que atuar com outros profissionais, da equipe mínima (médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, agente comunitário de saúde) ou ampliada (odontólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo), agrega força para o desempenho do nutricionista. “[...] ter aquela população pronta, como se eles tivessem me aguardando, as demandas, os pacientes estavam ali, a facilidade de você chegar nas casas”. E4 - UR33 “[...] o trabalho dela foi importante aqui pra população porque quando acabou o pessoal vinha perguntar e agora como vai ser minha vida daqui pra frente sem a orientação dela [...]”. E12 UR104

Atuar na ESF fez com que o nutricionista conhecesse as diretrizes desse programa que se desenvolve guiado pelo caráter substitutivo, no qual o novo processo de trabalho deixa para trás as práticas convencionais e se estabelece centrado na vigilância em saúde; trabalha com a integralidade e hierarquização, de modo que a unidade de saúde da família insere-se no primeiro nível de ações e serviços do sistema local de saúde, e realiza as ações de forma integral; desenvolve suas práticas de saúde considerando o território de abrangência e sempre com o auxílio de uma equipe multiprofissional6. Assim como outros profissionais da ESF, o nutricionista residente pode desenvolver ações que extrapolem sua especificidade por vários motivos, entre eles: vivenciar o processo de territorialização e mapeamento da área adscrita, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos; realizar cuidados em saúde dessa população, considerando, também, espaços comunitários; notificar doenças e agravos por busca ativa; desenvolver, planejar e avaliar ações da equipe de saúde com base no levantamento de informações disponíveis, entre outros6. Além disso, agrega-se a proposta do acolhimento, responsabilização e trabalho sobre as necessidades de saúde, propiciando, aos profissionais que lá desenvolvem seu trabalho, a oportunidade de estabelecerem relações mais satisfatórias, humanas, comprometidas e eficazes junto à população27. Essas relações estabelecidas na ESF permitem a interação com o indivíduo e a comunidade, possibilitando conhecer suas necessidades por meio do estabelecimento de vínculo e de um enfoque não mais voltado apenas para o indivíduo, mas para sua família, a qual se torna objeto de atenção. Machado et al.28 consideraram a relevância desse vínculo durante experiência observada em uma residência multiprofissional em saúde da família, onde esse aspecto possibilitou, ao nutricionista, desenvolver ações exitosas de promoção à saúde no que se refere à sensibilização e ao empoderamento dos usuários.

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Considerações finais O Programa Saúde da Família, estratégia para a consolidação do SUS, surge como campo fundamental para a atuação do nutricionista, possibilitando a aproximação com premissas que ancoram essa estratégia, bem como sua inserção em um programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família. Na convivência com os outros profissionais, o nutricionista foi percebido como agente de promoção à saúde e prevenção de agravos na amplitude de cenários em que a ESF permite desenvolver estratégias. A valorização de seu conhecimento específico tornou-se relevante diante de seu olhar diferenciado para a alimentação e sua estreita relação com os fatores culturais, sociais e psicológicos. Por outro lado, a estrutura da Residência, somada ao processo de trabalho da ESF, possibilitou a esse profissional desenvolver ações que extrapolaram sua especificidade, resultando em um ganho de atuação, permitindo ampliar seu olhar e práticas por meio da vivência multiprofissional. Apesar do relato de compreensão pouco clara da atuação do nutricionista na ESF, acredita-se que essa visão pode ser modificada, com a inserção deste profissional em outros espaços, além das residências multiprofissionais. Trata-se de uma oportunidade possível em virtude da implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, os quais sugerem a presença do nutricionista, considerado necessário diante do perfil epidemiológico e nutricional do Brasil. A experiência de inserção do nutricionista no Programa Saúde da Família, por meio da Residência Multiprofissional em Saúde da Família, oportunizou que exercitasse, na prática, preceitos exigidos em seu perfil, ou seja, o programa buscou desenvolver uma formação generalista, humanística e crítica, ampliando conhecimentos, habilidades e atitudes suficientes para atuar na diversidade das demandas sociais, econômicas, políticas e educativas. Todavia, ao se considerarem os diversos fatores que envolvem a vida de um indivíduo e de sua família, fica a recomendação para olhar com cuidado a atual formação do nutricionista, visando uma maior interprofissionalidade, para que, após graduado, esse profissional consiga navegar por este novo campo de atuação.

Colaboradores Irani Gomes dos Santos, em desenvolvimento de sua tese de mestrado, compôs o artigo, que foi devidamente analisado e corrigido pelos orientadores. Nildo Alves Batista foi o coorientador da tese de mestrado, assim como no artigo em questão. Macarena Urrestarazu Devincenzi foi a orientadora da tese de mestrado, assim como orientadora na confecção deste artigo. Referências 1. Mano MA. A educação em saúde e o PSF resgate histórico, esperança eterna. Bol Saúde. 2004; 18(1):195-202. 2. Forattini OP. A saúde pública no século XX. Rev Saude Publica. 2000; 34(3):211-3. 3. Alves VS. Um modelo de educação em Saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface (Botucatu). 2005; 9(16): 39-52. 4. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Programa Saúde da Família. Rev Saude Publica. 2000; 34(3):316-9.

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artigos

5. Campos FE, Belisário SA. O programa de saúde da família e os desafios para a formação profissional e a educação continuada. Interface (Botucatu). 2001; 5(9):133-42. 6. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília (DF): MS; 2006. 7. Ministério da Saúde. Residência Multiprofissional em Saúde: experiências, avanços e desafios. Brasília (DF): MS; 2006. 8. Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília (DF): MS; 2011. 9. Coutinho JG, Gentil PC, Toral N. A desnutrição e obesidade no Brasil: o enfrentamento com base na agenda única da nutrição. Cad Saude Publica. 2008; 24 Supl 2:332-40. 10. Levy-Costa RB, Sichieri R, Pontes NS, Monteiro CA. Disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil: distribuição e evolução (1974-2003). Rev Saude Publica. 2005; 39(4):530-40. 11. Kac G, Velásquez-Meléndez G. Editorial. A transição nutricional e a epidemiologia da obesidade na América Latina. Cad Saude Publica. 2003; 19 Supl.1:4-5. 12. Assis AMO. O programa saúde da família: contribuições para uma reflexão sobre a inserção do Nutricionista na equipe multidisciplinar. Rev Nutr. 2002; 15(3):255-66. 13. Santos AC. A inserção do nutricionista na estratégia da saúde da família: o olhar de diferentes trabalhadores da saúde. Fam Saude Desenv. 2005; 7(3):257-65. 14. Carvalho AMM. A inserção do profissional nutricionista no Sistema Único de Saúde: reflexões a partir da experiência de um município da região metropolitana de Porto Alegre - RS [dissertação]. Porto Alegre (RS): Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul; 2005. 15. Franco MLPB. Análise de conteúdo. 2a ed. Brasília (DF): Líber Livro; 2007. 16. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Matriz de ações de alimentação e nutrição na Atenção Básica à Saúde. Brasília (DF): MS; 2008. 17. Conselho Federal de Nutricionistas. Notícias. 3ª Conferência Nacional de SAN [Internet]. Brasília: Conselho Federal de Nutricionistas;2007 [acesso 2015 Jan 9]. Disponível em: http://www.cfn.org.br/eficiente/sites/cfn/pt-br/site. php?secao=noticias&pub=166 18. Akutsu RC. Brazilian dieticians: professional and demographic profiles. Rev Nutr. 2008; 21(1):7-19. 19. Barros CML, Farias Junior G. Avaliação da atuação do nutricionista nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) do município de Picos/PI. Rev Saude Des. 2012; 1(1):1. 20. Conselho Federal de Nutricionistas. Resolução - CFN n° 380/2005, de 28 de dezembro de 2005. Dispõe sobre a definição das áreas de atuação do Nutricionista e suas atribuições. Estabelece parâmetros numéricos de referência, por área de atuação, e dá outras providências [Internet]. Brasília (DF): CFN; 2005 [acesso 2008 Jun 6]. Disponível em: http://nutricao.saude.gov.br/documentos/resolucao_cfn_380.pdf 21. Boog MCF. Atuação do nutricionista em saúde pública na promoção da alimentação saudável. Cienc Saude. 2008; 1(1):33-42. 22. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES 5/2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Nutrição. Diário Oficial da União. 9 Nov 2001. Seção 1, p. 39. 23. Silva NFS. O nutricionista na Atenção Básica [Internet]. Brasília (DF): Conselho Federal de Nutricionistas; 2008 [acesso 2009 Jun 2]. Disponível em: http://www.cfn.org.br/ novosite/arquivos/artigo_atencao.pdf

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24. Czeresnia D. The concept of heath and the difference between prevention and promotion. Cad Saude Publica. 1999; 15(4):701-9. 25. Ceccim RB, Feuerwerker LCM. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saude Publica. 2004; 20(5):1400-10. 26. Gil CRR. Formação de recursos humanos em saúde da família: paradoxos e perspectivas. Cad Saude Publica. 2005; 21(2):490-8. 27. Feuerwerker LCM. Impulsionando o movimento de mudanças na formação dos profissionais de saúde. Olho Mágico Enfoque [Internet]. 2001 [acesso 2009 Jun 11]; 8(2). Disponível em: http://www.ccs.uel.br/olhomagico/v8n2/index.html 28. Machado NMV, Viteritte PL, Goulart DAS, Pinheiro ARO. Reflexões sobre saúde, nutrição e a estratégia de saúde da família [acesso 2009 Jun 20]. Disponível em: http:// nutricao.saude.gov.br/documentos/noticia_01_09_06.pdf

Santos IG, Batista NA, Devincenzi MU. Residencia multi-profesional en Salud de la Familia: concepción de profesionales de salud sobre la actuación del nutricionista. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):349-60. La Estrategia Salud de la Familia (ESF) es el local para el desarrollo de las Residencias Multi-profesionales en Salud de la Familia que se destacan por la formación y producción de tecnologías del cuidado, calificando al Sistema Brasileño de Salud (SUS). En ese escenario, el nutricionista promueve acciones de alimentación y nutrición enfocadas en el perfil epidemiológico local. El objetivo fue mostrar concepciones de profesionales de la salud en relación a la actuación del nutricionista en la ESF después de su inserción en la residencia. Participaron trece profesionales. Se trata de un estudio exploratorio, descriptivo, analítico, con corte tipo transversal, que tiene como técnica de recolección de datos la entrevista semi-estructurada y el análisis de contenido. Se mostró que la pequeña inserción de nutricionistas en esta estrategia contribuyó para una comprensión poco clara de su actuación. No obstante, su especificidad se valorizó considerando su mirada diferenciada hacia situaciones enfocadas en la nutrición, ampliando posibilidades de escenarios de actuación, dirigidas principalmente a la promoción y la prevención.

Palabras clave: Nutricionista. Programa Salud de la Familia. Internado. Residencia. Recebido em 10/05/14. Aprovado em 13/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0107

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Novos espaços de reorientação para formação em saúde: vivências de estudantes

Juliana Alves Leite Leal(a) Cristina Maria Meira de Melo(b) Rafaela Braga Pereira Veloso(c) Iraildes Andrade Juliano(d)

Leal JAL, Melo CMM, Veloso RBP, Juliano IA. New reorientation spaces for healthcare education: students’ experiences. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):361-71.

The aim of this paper was to analyze the meaning of the experiences of students in undergraduate healthcare courses who participated in new education spaces resulting from strategies for reorientation of health education, from the perspective of the Brazilian Health System. (SUS) In producing data for qualitative exploratory research, we used semi-structured interviews with 12 students from different courses. For data analysis, thematic content analysis was used. For the students, participating in PET-Health and in SUS internship experiences is important because they learn meaningful content that is not addressed at university and develop joint activities with students from different courses. The learning that results from this linkage motivates them to develop professional work in the public system, since it allows them to experience the daily work; generates feelings of anxiousness, restlessness and struggle; and represents an incentive for seeking knowledge.

Keywords: Public health. Professional education in public health. Human resources education.

Pretendeu-se analisar o significado das vivências dos estudantes de cursos de graduação da área da saúde que participaram de novos espaços de formação, resultantes de estratégias de reorientação da formação em saúde na perspectiva do Sistema Único de Saúde (SUS). Na produção dos dados da pesquisa exploratória de tipo qualitativo, utilizouse a entrevista semiestruturada com 12 estudantes de diferentes cursos. Para análise dos dados, adotou-se análise de conteúdo temática. Para os estudantes, participar do PET-Saúde e do Estágio de Vivências do SUS é importante, pois aprendem conteúdos significativos que não são abordados na universidade; desenvolvem atividades conjuntas com estudantes de diferentes cursos, e o aprendizado resultante desta articulação motiva-os para o desenvolvimento do trabalho profissional no sistema público, pois permite vivenciar o cotidiano do trabalho; gera sentimentos de angústia, inquietação e luta; e representa um incentivo para a busca de conhecimentos.

Palavras-chave: Saúde Pública. Educação Profissional em Saúde Pública. Formação de Recursos Humanos.

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(a) Doutoranda, Programa de PósGraduação em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Rua Basílio da Gama, s/n, Canela. Salvador, BA, Brasil. 40110-907. leal.juliana@ufba.br (b) Escola de Enfermagem, UFBA. Salvador, BA, Brasil. cmmelo@uol.com.br (c) Enfermeira. Salvador, BA, Brasil. rafabveloso@ hotmail.com (d) Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, BA, Brasil. iajuliano@uol.com.br

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Introdução A formação dos profissionais de saúde continua sendo uma área crítica no processo de reorientação do trabalho no campo da saúde. No entanto, desde a implementação do Programa de Saúde da Família, o discurso político-governamental tem mudado, o que demonstra que os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) começam a intervir politicamente na ordenação da formação em saúde. As políticas na formação e capacitação dos profissionais de saúde sempre foram voltadas para aqueles inseridos ou em fase de inserção nos serviços. Dentre as intervenções do Ministério da Saúde (MS) para cumprir seu papel constitucional de ordenador da formação em saúde, destacam-se algumas iniciativas como: VerSUS, AprenderSUS e EnsinaSUS de 2003 a 2005, e o Pró-Saúde I, Pró-Saúde II e o PET - Saúde posteriormente1. Essas iniciativas coadunavam com a necessidade de modificação das práticas de saúde e das práticas pedagógicas no processo de formação, o que exige uma articulação entre o SUS, em suas três esferas de governo e as instituições formadoras. Destaca-se, como uma das estratégias utilizadas para redirecionar a formação, desde 2005, o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), que tem como objetivo induzir a transformação do ensino de saúde no Brasil2,3. Em 2008, na formulação do segundo Pró-Saúde, assume-se como estratégia prioritária o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-SAÚDE), inspirado no Programa de Educação Tutorial do Ministério da Educação. Dessa forma, o PET-SAÚDE foi criado como uma das ações intersetoriais direcionadas não só para a formação de profissionais da saúde, mas, também, para o fortalecimento da atenção básica em saúde, redirecionando as práticas dos profissionais que atuam na estratégia saúde da família2,3. O PET-SAÚDE tem, então, como base, a educação pelo trabalho, e disponibiliza bolsas para: tutores, professores das universidades públicas e privadas, e preceptores, profissionais da estratégia saúde da família, além dos estudantes de graduação dos cursos da área da saúde4. Outra estratégia que integra a Política de Educação para o SUS é o Projeto de Vivências e Estágios na Realidade do SUS – VER-SUS/Brasil, construído por meio de parceria entre o Ministério da Saúde e o Movimento Estudantil dessa área, e que tem, como principal objetivo: proporcionar, aos estudantes, a vivência e a experimentação do cotidiano da rede de sistemas de serviços do SUS5. É necessário acrescentar que esse projeto promove o encontro entre estudantes dos vários cursos de graduação em saúde de todo o Brasil em estágio de vivências na gestão do Sistema Único de Saúde, e possibilita o intercâmbio entre os estudantes. Outra versão do PET - Saúde/Redes de Atenção em Saúde (PET-Saúde/Redes) foi lançada ainda em 2013, propondo uma aproximação das Instituições de Ensino Superior (IES) com os níveis mais complexos da atenção à saúde, buscando o fortalecimento dos níveis mais complexos do sistema de saúde. Esta estratégia se apresenta como: instrumento de qualificação em serviço dos profissionais da saúde, aprimoramento e promoção de redes de atenção em saúde, de iniciação ao trabalho e formação dos estudantes dos cursos de graduação na área da saúde6. Tais estratégias governamentais demonstram que, para se alcançarem as transformações necessárias ao bom funcionamento do SUS, investimentos em adequação física da rede de serviços, em tecnologia em medicamentos, por si só, são insuficientes, sem que esteja somado a isso, grande investimento nas mudanças das práticas dos trabalhadores do SUS e na formação política e técnica dos futuros profissionais de saúde. Diante desse contexto, esta pesquisa partiu do questionamento de como os estudantes dos cursos de graduação em saúde vivenciam as estratégias de formação. Assim, o objetivo deste artigo é analisar o significado atribuído, por alunos de cursos de graduação da área da saúde, às vivências em espaços de formação resultantes das estratégias de reorientação da formação em saúde na perspectiva do SUS, a saber: o PET-SAÚDE e o Estágio de Vivências do SUS.

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Metodologia Esta pesquisa é de natureza qualitativa do tipo exploratória. Sendo assim, a pesquisa qualitativa tem por finalidade se aprofundar no universo de significados das ações, vivências e relações humanas, compreendendo a dinâmica interna de grupos específicos, instituições e atores, permitindo revelar processos sociais7. A escolha da pesquisa exploratória é justificada, uma vez que permite uma aproximação do pesquisador ao objeto de investigação, seu significado e o contexto da realidade8, como é o caso das estratégias de reorientação da formação em saúde vivenciadas por estudantes de graduação. No estado da Bahia, existiam, quando foi feito o trabalho de campo, sete instituições de Ensino Superior (IES) públicas, sendo duas federais e quatro estaduais: Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), e Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). Assim, os sujeitos selecionados foram 12 graduandos da área da saúde das IES públicas na Bahia, incluindo-se uma instituição de Ensino Superior pública de Pernambuco, a Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), porque um dos campi desta IES situa-se na cidade de Juazeiro, na Bahia. Utilizamos como critérios de inclusão: estudantes que tenham participado do PET-SAÚDE, pelo menos durante um ano, ou do Estágio de Vivências no SUS, pelo menos em uma das suas edições; ser estudante de um dos cursos de graduação na área da saúde e estar matriculado em curso de graduação em uma das IES selecionadas. Adotaram-se como critérios de exclusão: estudantes com matrícula institucional e/ou desligados do PET-SAÚDE por desempenho insatisfatório. Ressaltamos, ainda, que os entrevistados que participaram do PET-SAÚDE estiveram em sua primeira versão (saúde da família, vigilância, álcool e drogas), pois este estudo antecedeu o período de execução do PETSAÚDE/REDES, lançado em 2013. Do total de entrevistados, todos participaram do Estágio de Vivências do SUS e seis participaram de ambas as estratégias, PET-SAÚDE e Estágio de Vivências do SUS. A coleta de dados foi operada durante os encontros mensais do Curso de Formação dos Mediadores de Aprendizagem para a 5ª edição do Estágio de Vivências no SUS no município de Salvador, Bahia, promovidos pela Escola Estadual de Saúde Pública da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. A técnica utilizada para a coleta de dados foi a entrevista semiestruturada. A análise do material extraído das entrevistas foi realizada por meio do método da análise temática baseada em Bardin9 e Minayo7. Após as fases de pré-análise, com organização dos dados coletados, e leitura das entrevistas; de exploração do material e análise temática, o conteúdo das entrevistas foi dividido nas seguintes categorias centrais: as estratégias para formação como fonte de interação e aprendizagem; a vivência nas estratégias provoca mudanças no modo de pensar a saúde e a formação; as estratégias de reorientação da formação e novos modos de ver o SUS. Para tanto, a pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, respeitando a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, vigente quando se desenvolveu o trabalho de campo10.

Resultados e discussão As estratégias para formação como fonte de interação e aprendizagem Na compreensão dos estudantes, participar das estratégias PET – Saúde e Estágio de Vivências do SUS teve um significado positivo. A vivência, segundo os entrevistados, possibilita aprendizagem de temas que não são abordados nos cursos. Além disso, as vivências permitem a aproximação com o cotidiano dos serviços e com as práticas dos trabalhadores de diferentes áreas, permitindo a identificação e ampliação da consciência do estudante com a política do SUS, seu valor e importância COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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para um país como o Brasil. A experiência também proporcionou o intercâmbio entre os estudantes de variados cursos de saúde, o que não acontece nos espaços formais de práticas e estágios dos cursos na área da saúde. Portanto, a inexistência ou precária existência de um processo de formação que permita o desenvolvimento conjunto do trabalho em saúde é uma lacuna identificada no processo de formação na universidade, dado que a natureza deste é ser compartilhado entre diferentes profissionais e trabalhadores. A motivação dos estudantes em participar das estratégias de formação para o SUS estava relacionada com a expectativa de que tais projetos poderiam aproximá-los de um SUS real, em diferentes contextos municipais, ampliando a sua formação, visto que afirmam que a formação em saúde extrapola os muros da universidade. “queria adquirir conhecimento mesmo na área, poder ter habilidades, conhecer novas realidades, porque quando a gente está na universidade, a gente fica muito preso aos estágios que a universidade proporciona, e não tem tanta oportunidade de sair para outras regiões, de ter contato com outros alunos”. (Ent.4)

Segundo os estudantes, a vivência nos serviços de saúde foi fonte de aprendizagem reflexiva, ampliando a compreensão dos mesmos sobre o uso dos ensinamentos obtidos no espaço interno da universidade e a necessidade de que estes permitam a atuação profissional com o objetivo de corresponder às demandas e necessidades dos sujeitos que buscam os serviços de saúde. Ademais, os estudantes afirmaram compreender que essas experiências permitem entender como os serviços e a rede de atenção à saúde estão estruturados, e se estes possuem ou não condições para responder às necessidades dos indivíduos e das coletividades, bem como os fatores estruturais que limitam os resultados da produção de ações e serviços de saúde. O resultante da experiência é um conhecimento consciente de seus limites; um conjunto de referentes provisórios e mutantes, na medida em que ela – a experiência – problematiza não só o registro cognitivo de um sujeito, mas, também, seus sentidos, percepções e afetos11. O termo vivência engloba ambos os sentidos de vivenciar e de vivido. Para Freud, trata-se, ao mesmo tempo, de uma experiência imediatamente vivida, isto é, não presumida, nem meramente ouvida, mas direta e pessoalmente realizada; ao mesmo tempo em que se trata de uma experiência duradoura e significativa12. Levando isso em consideração, é possível afirmar que, por meio da vivência dos estudantes, foi possível o alcance de uma articulação teoria-prática. Além disso, enuncia-se um aprendizado mútuo por intermédio de experiências anteriores de indivíduos diferentes, por meio do compartilhamento de saberes, já que as estratégias trabalham em grupos de discussão. Para Henriques13 (p. 152), “o momento de imersão do estudante no cotidiano dos serviços poderia trazer recursos riquíssimos para o aprendizado do cuidado e da organização dos processos de trabalho e gestão”. Os entrevistados afirmam, também, que a participação em uma ou nas duas estratégias proporcionou abertura de canais de comunicação entre os estudantes de diferentes cursos da área da saúde. Por meio do diálogo e das intervenções de maneira integrada, foi possível compartilhar saberes e práticas dos seus núcleos de conhecimentos específicos, e aplicá-los nas vivências. Sabe-se que o trabalho na saúde requer a participação de diferentes atores. No campo da saúde coletiva, algumas reflexões têm sido produzidas acerca do trabalho em equipe, como forma de modificar o modelo de atenção à saúde. A comunicação, portanto, é considerada o denominador comum do trabalho em equipe. As experiências vividas pelos entrevistados reafirmam que, quando há comunicação, há interação no trabalho coletivo, menor desigualdade entre os diferentes trabalhos e os respectivos agentes, e, por conseguinte, ocorre maior integração na equipe14. À medida que o trabalho em equipe é construído com interação, quanto mais próximo o estatuto de sujeito ético-social dos agentes, maiores as possibilidades de interagirem em situações livres de coação e de submissão, na busca de consensos acerca da finalidade e do modo de executar o trabalho14. Nas entrevistas, a interdisciplinaridade também teve destaque como fator que valoriza e integra o 364

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trabalho em equipe na saúde e contribui para a formação dos novos profissionais para atuar na direção da consolidação do SUS. “muita gente acha que a interdisciplinaridade é juntar um monte de estudantes de diferentes cursos em um lugar, e não é. Você só consegue a interdisciplinaridade ofertando serviços diversos, com agregação de vários profissionais, mas tem que ter diálogo entre esses profissionais, discussão de casos clínicos em conjunto. E essas estratégias conseguem promover o diálogo entre os estudantes de vários cursos de saúde”. (Ent.1) “é muito bom, porque você vê, discute, vivência a interdisciplinaridade. Você conversa com pessoas de outras regiões, pessoas de cursos diferentes, de idades diferentes, de semestres diferentes, de instituições diferentes. Você não fica com sua cabeça fechada só na sua universidade”. (Ent.7)

Os estudantes destacam que a interdisciplinaridade promovida pelas estratégias de formação contribui para ampliação da visão de mundo, para ampliação das discussões sobre temas relativos à saúde, na medida em que proporcionou a interação de estudantes de diferentes cursos, formações e realidades educacionais. A abordagem interdisciplinar e o trabalho em equipe multiprofissional, muitas vezes, não são explorados pelas instituições formadoras, cujo ensino ainda é baseado em disciplinas. As disciplinas, dessa forma, são categorias organizacionais do conhecimento científico que se pautam na especialização do trabalho15, o que contradiz a própria política de Educação Superior expressa nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Superior no campo da saúde. A formação universitária tem problemas que remontam à origem do pensamento científico, configurando-se como paradigma positivista a ser superado, com todas as suas implicações de natureza política e epistemológica16. Por isso, pode-se afirmar que o ensino por disciplinas, especializando saberes, nem sempre consegue dar a real dimensão do espaço social ocupado por uma determinada profissão. A formação não pode tomar como referência apenas a busca eficiente de evidências para diagnóstico, cuidado, tratamento, prognóstico, etiologia e profilaxia das doenças e agravos. Devese, então, buscar desenvolver condições de atendimento às necessidades de saúde das pessoas e das populações, da gestão setorial e do controle social em saúde, redimensionando o desenvolvimento da autonomia das pessoas até a condição de influência na formulação de políticas do cuidado17.

A vivência nas estratégias provoca mudanças no modo de pensar a saúde e a formação Destacamos a concepção de que esses programas provocam mudanças no modo de pensar dos estudantes. Por isso, alguns se sentem mais preparados profissionalmente após a participação nas estratégias de formação do PET-Saúde e do Estágio de Vivências. Tais vivências despertam, também, uma visão positiva do trabalho no sistema público de saúde. “acho que é uma iniciativa extremamente interessante, porque ela vai muito além daquilo que a gente vê na universidade, eles utilizam a realidade, a dinâmica do SUS como fonte de aprendizagem”. (Ent.6) “sou muito apaixonada pelo SUS. Na verdade, brotou mais em mim uma sementinha de luta para que eu passasse para outros estudantes que era possível uma formação diferenciada através do EVSUS e do PET-SAÚDE”. (Ent.4)

A diversificação dos cenários de aprendizagem, como uma das estratégias para a transformação curricular e aproximação dos estudantes com a vida cotidiana das pessoas, desenvolve consciência crítica nos estudantes sobre os problemas da população18. Por conseguinte, a inserção dos estudantes COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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nas estratégias faz com que conheçam os diferentes cenários de atuação profissional. Além disso, possibilita a aprendizagem dos campos de atuação de outras profissões, o que auxilia na futura prestação da assistência integral, bem como permite entender quais as atividades que são próprias de cada profissão, quais as que são complementares e compartilhadas. “é um espaço articulador de enriquecimento profissional para o estudante, que permite visualizar o contexto da prática, analisar os perfis do profissionais, entender um pouco da demanda e do sistema, como funciona”. (Ent.9) “eu comecei a perceber que dentro das políticas públicas de saúde, dentro da efetivação do SUS, havia uma grande necessidade de uma atuação do assistente social, dentro das equipes. Então, é a ação da assistência social para com os usuários e para com a equipe, no trabalho inter e multidisciplinar nas unidades”. (Ent.6)

A depender da percepção que o estudante tenha sobre as estratégias, esta poderá repercutir em sua vida de tal maneira, afetando, inclusive, seu desempenho acadêmico, suas relações sociais e atitudes. Segundo os entrevistados, após a participação, eles desejam compartilhar com outros estudantes o que foi vivenciado na tentativa de produzir mudanças, também, naqueles que não tiveram oportunidade de participar. “quero levar para universidade como uma forma de revolucionar. Quando eu retornei do estágio de vivência eu me motivei a me inserir no diretório acadêmico, no movimento estudantil, eu me enxerguei como ator social para mudança tanto da formação dentro da universidade quanto como profissional de saúde”. (Ent.2)

O protagonismo estudantil também é um dos pontos fortes dessas estratégias, particularmente no Estágio de Vivências do SUS. A condução das atividades pelos próprios estudantes estabelece uma relação mais próxima e dialógica entre eles e os profissionais. Consequentemente, o aprendizado se dá de maneira mais tranquila e efetiva, pois não é estabelecida uma hierarquia entre os envolvidos. “a profundidade que a vivência proporciona é de você poder escutar outros profissionais em formação, assim como você, e não ter aquela questão hierárquica de você ter medo de falar. Quando você está diante do professor você mede suas palavras. A questão de você estar ali com iguais é a principal experiência da vivência [EVSUS], de você poder falar, você poder realmente se manifestar, dizer o que você acha”. (Ent.7) “acho muito bom essa onda dos mediadores serem estudantes. Você se insere mais ainda. Você passa não só sua visão, mas a ideia de liderança quando você vê quem está organizando”. (Ent.8)

Nesse processo, o estudante deixa de ser visto como objeto de aprendizagem e passa a ser sujeito dela, aquele que aprende, junto ao outro, o que seu grupo social produz, tal como valores e o próprio conhecimento19. Assim, o mediador de aprendizagem é um elemento-chave que deve cumprir o papel de estimulador de reflexões críticas entre os outros estudantes a partir de uma realidade concreta. Este papel é subsidiado, numa perspectiva teórico-prática, pelo Curso de Formação de Mediador e de Aprendizagem para o Estágio de Vivências no SUS. Outro destaque pelos estudantes foi a oportunidade de trabalhar em grupos e o estímulo à construção coletiva no processo de ensino-aprendizagem.

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“Esse estágio propicia o convívio com outras pessoas, trabalhar em grupo, escutar a opinião de outros. Você pode também construir e formar uma opinião, e procurar ver o melhor para o mundo em geral, para a população, o paciente e cliente”. (Ent.12)

Os estudantes revelaram, ainda, que a oportunidade de participar das novas estratégias para reorientação da formação provocou sentimentos distintos entre eles. Os sentimentos foram desde esperança, paixão, luta até desânimo, protesto e angústia: “dá uma angústia que você vai ouvindo as palestras estudando e você vê que é tão difícil mudar a cabeça de profissionais que estão conformados com o modo de trabalho deles e falam para gente quando você entrar no sistema você vai ver que você vai acabar se acomodando. Pessoas com a mente completamente conformadas, moldadas, de que o sistema não vai mudar”. (Ent.5) “a maior intenção e vontade foi conhecer outro lugar, outro sistema para continuar acreditando que ainda pode dá certo, quando você vê coisas darem certo cria a esperança de que ainda pode ser mudado”. (Ent.6)

Para os entrevistados, o encontro com a população e os profissionais atuantes nos serviços foi inquietante. Nesses espaços, eles foram estimulados a experimentar novas emoções, a repensar a realidade, relacionando-a com a vivência prática e confrontando-a com a visão de mundo já elaborada. Dentre as propostas do Pró-Saúde, o estímulo à interação ativa do estudante com a população e com os profissionais de saúde deve ocorrer desde o início do processo de formação, permitindo atuar sobre problemas reais, e assumir responsabilidades crescentes, compatíveis com seu grau de autonomia3,18.

As estratégias de reorientação da formação e novos modos de ver o SUS

Os estudantes consideram que as estratégias foram significantes na medida em que provocaram uma sensibilização em defesa do SUS e sobre os processos de trabalhos de suas profissões. As participações nas estratégias repercutem, então, na vida dos entrevistados. No plano acadêmico, a lógica que tem orientado os movimentos educacionais ainda está significativamente deslocada, tanto da realidade epidemiológica quanto dos propósitos assistenciais encetados pelo SUS e, na prática, exerce significativa influência no ordenamento futuro dos profissionais de saúde20. A vivência do estudante provoca uma crítica a essa lógica que se distancia das necessidades do SUS e da integralidade da assistência. Dessa forma, evidencia-se o descompasso entre ensino e serviço, o que inquieta o estagiário para mudança da realidade vivenciada na atuação na futura vida profissional. Os entrevistados reconhecem que o desenvolvimento do perfil profissional deve estar coerente com as necessidades do SUS e que dependem tanto do ensino na universidade quanto da experiência no serviço. Outra questão que deve ser ressaltada é a de que os entrevistados pensam que é necessário avançar nos conhecimentos sobre o SUS e políticas de saúde para a melhoria da atenção à saúde. Para isso, consideram importante ampliar os ensinamentos ofertados nas matrizes curriculares, aproveitando as novas vivências em contextos diferentes e estratégias diversas. “A vivência em si tanto no EVSUS, quanto alguns componentes curriculares voltados para saúde pública e também os PETs nos permite analisar qual o perfil de profissional que a gente vai ser, e daí, a partir desde a graduação, já desenvolver um perfil mais adequado para as necessidades do SUS”. (Ent.9)

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A compreensão sobre vários cenários de aprendizagem e sobre a atuação profissional posterior leva os estudantes a refletirem sobre: o futuro local de trabalho, a finalidade do seu curso, e o caminho que será percorrido para atingirem os seus objetivos. Para um dos entrevistados, o Estágio de Vivências no SUS também desperta reflexões sobre a importância da gestão em saúde. “o estágio faz a gente amadurecer, e me fez pensar, refletir sobre gestão, saber gerir, especificamente meu curso que não tem nenhuma disciplina voltada para gestão em saúde, o meu papel nessa área enquanto estudante e futura profissional de saúde”. (Ent.2)

O entrevistado, a partir de um dos temas discutidos – nesse caso, a gestão em saúde –, percebeu a lacuna que a universidade deixa na sua formação referente ao tema. As falas dos entrevistados demonstraram que a participação nas estratégias de formação estimula os estudantes a se aproximarem das modalidades de gestão e da possibilidade de, no futuro, se tornarem gestores. No entanto, reconhecem que precisam de um maior aprofundamento no assunto, já que, na sua graduação, não há disciplinas específicas de gestão em saúde. “estou no 3º semestre e eu não tive contato nenhum com o SUS, os únicos contatos que tive foram proporcionados pelo PET e pelo EVSUS e isso permite um contato precoce com o SUS”. (Ent.1) “na verdade o EVSUS para mim foi mais uma comprovação de que eu gosto mesmo de vestir a camisa, ... eu não vejo desvantagem e acho que o projeto é muito bom”. (Ent.9)

Outro aspecto relevante e identificado nas falas dos graduandos se refere à mudança de visão sobre o SUS, já que, antes das experiências, muitos possuíam uma concepção teórica sobre o sistema baseado na imagem retransmitida pela mídia impressa e televisiva. “[..] para mim teve uma modificação do que era o SUS, eu tinha uma visão de que o SUS era só o caos, era você chegar numa unidade ou num hospital e ficar horas esperando ainda para ser mal atendido, esperar a boa vontade dos funcionários de te atender ou o médico que nem olha para você”. (Ent.5) “a visão do SUS mudou muito, porque quando a gente pensa, a gente tem a visão da mídia, de jornal, a fila do SUS, de pessoas que estão sendo internadas em leitos não apropriados, sem cobertor, a gente pensa: ‘esse SUS é péssimo’”. (Ent.8)

Essas falas revelam a imagem do SUS na sociedade. Essa imagem é influenciada pelas informações divulgadas pelos meios de comunicação, até mesmo para os estudantes da área de saúde. Além disso, mostram que alguns estudantes possuíam uma imagem do SUS restrito ao que é propagado pela mídia, o que pode indicar a discussão ainda elementar sobre o sistema público no conteúdo da formação em saúde na universidade. Por meio das estratégias de reorientação da formação para o SUS, o SUS ideal e o SUS real são confrontados pelos estudantes. Isso colabora para uma nova representação do SUS, concreta, política e, de fato, vivenciada por meio do seu cotidiano.

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Conclusão Para estudantes de cursos de graduação da área da saúde da Bahia e Pernambuco, a participação nas novas estratégias de reorientação da formação em saúde na perspectiva do SUS (PET-SAÚDE e Estágio de Vivências do SUS) foi considerada como espaços de aprendizagem significativa, permitindo uma compreensão do seu lugar profissional e da experimentação do trabalho interdisciplinar. Assim, nota-se que não houve uma diferença de percepção entre os alunos que participaram do VERSUS e do PET e aqueles que participaram apenas do PET, apesar das estratégias ocorrerem em momentos e contextos nacionais diferentes. Os estudantes reconhecem, ainda, que a interação entre serviço e ensino provoca uma aproximação com a realidade dos serviços de saúde, despertando-os para assumirem, futuramente, o trabalho no sistema público de saúde. Eles consideram, também, que as estratégias possibilitam aprendizagem ampliada de temas, e que as atividades curriculares na universidade não podem contemplar. É necessário destacar que a vivência nos novos espaços de formação em saúde incentiva a atuação multiprofissional e interdisciplinar, que é apontada como uma das aprendizagens mais significativas, e que facilita o trabalho posterior à formação. Atuando nas estratégias, os graduandos sentem-se parte do processo de ensino-aprendizagem, pelo uso de metodologias que estimulam a participação e atuação conjunta e não hierarquizada, permitindo que estes sejam protagonistas desse processo. A participação provoca reflexões sobre a função da universidade, que, além da qualificação técnica e científica, é também a de estimular o desenvolvimento do espírito crítico, ético e social. A inserção precoce dos estudantes nas vivências permite uma reconstrução do que é o SUS para além do imaginário do senso comum construído pela mídia, francamente contrária a esta política pública. Por fim, conclui-se que tais estratégias de aprendizagem permitem afirmar que o processo de ensino-aprendizagem pode e deve romper a fragmentação dos saberes e práticas em saúde, permitindo identificar as correlações entre os saberes, a complexidade da vida e dos problemas de saúde da população. Além disso, é importante reconhecer que estas experiências devem ser ampliadas, e suas estratégias operacionais introduzidas nos espaços curriculares sempre que coerentes com os objetivos da universidade pública e da formação em saúde ordenada pelo SUS.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.

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Leal JAL, Melo CMM, Veloso RBP, Juliano IA. Nuevos espacios de reorientación para la formación en salud: vivencias de estudiantes. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):361-71. El objetivo de este artículo es analizar el significado de las vivencias de los estudiantes de cursos de graduación del área de la salud que participaron en nuevos espacios de formación, resultantes de estrategias de reorientación de la formación en salud, bajo la perspectiva del Sistema Brasileño de Salud (SUS). En la producción de los datos de la encuesta exploratoria de tipo cualitativo, se utilizó la entrevista semi-estructurada con 12 estudiantes de diferentes cursos. Para el análisis de los datos, se adoptó el análisis de contenido temático. Para los estudiantes, participar en el PET-Salud y en la Pasantía de Vivencias del SUS es importante, puesto que aprenden contenidos significativos que no se abordan en la universidad, desarrollan actividades conjuntas con estudiantes de diferentes cursos y el aprendizaje resultante de esta articulación los motiva para el desarrollo del trabajo profesional en el sistema público, puesto que les permite experimentar el cotidiano del trabajo, genera sentimientos de angustia, inquietud y lucha y representa un incentivo para la búsqueda de conocimientos.

Palabras clave: Salud pública. Educación profesional en salud pública. Formación de recursos humanos.

Recebido em 26/02/14. Aprovado em 29/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.1024

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Paradigmas e tendências do ensino universitário: a metodologia da pesquisa-ação como estratégia de formação docente

Erica Toledo de Mendonça(a) Rosângela Minardi Mitre Cotta(b) Vicente de Paula Lelis(c) Paulo Marcondes Carvalho Junior(d)

Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM. Paradigms and trends in higher education: the action research methodology as a teacher education strategy. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):373-86. The aim of this paper was to discuss the paradigms and trends in higher education today, pointing out strategies for teacher education. Action research was used as the method. Data were gathered using the techniques of up-and-down panorama, Wordle and class diaries, while conducting teacher training for mentoring actions in a discipline involving blended learning. The participants’ testimonies indicated dissatisfaction with use of the traditional teaching model; the importance placed on teachers being open to new things; and also that use of innovative teaching processes was considered to be an important strategy for changing the educational paradigm. The process of training university teachers was shown to be effective with regard to raising awareness among these individuals about the importance of introducing teaching into the agenda of the university’s priorities.

Keywords: Technology. Innovation. Teaching. Learning. Mentoring.

O objetivo do trabalho foi discutir sobre os paradigmas e as tendências do ensino universitário na atualidade, apontando estratégias de formação docente. Utilizou-se como método a pesquisa-ação; os dados foram coletados mediante as técnicas do Panorama Sobe e Desce, Wordle e Diários de Classe, durante a realização de capacitações docentes para exercício de tutoria em disciplina semipresencial. Os depoimentos dos participantes apontaram para uma insatisfação no uso do modelo tradicional de ensino; a importância de o professor estar aberto ao novo; e, ainda, que a utilização de processos inovadores de ensinagem foi considerada importante estratégia de mudança de paradigma educacional. O processo de capacitação de docentes universitários mostrou-se eficaz no que tange à conscientização destes indivíduos quanto à importância de se inserir o ensino na agenda das prioridades da universidade.

Palavras-chave: Tecnologia. Inovação. Ensino. Aprendizagem. Tutoria.

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Departamento de Medicina e Enfermagem, Universidade Federal de Viçosa (UFV). Avenida PH Rolphs, s/n, campus Universitário. Viçosa, MG, Brasil. 36570-000. erica.mendonca@ufv.br (b) Departamento de Nutrição e Saúde, UFV. Viçosa, MG, Brasil. rmmitre@ufv.br (c) Pró-Reitoria de Ensino, UFV. Viçosa, MG, Brasil. vlelis@ufv.br (d) Faculdade de Medicina de Marília. Marília, SP, Brasil. marcondes.paulo@ gmail.com (a)

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Introdução Na atualidade, a discussão sobre os paradigmas e as tendências do ensino no âmbito universitário vem ganhando cada vez mais espaço na agenda da formação docente. A experiência e vivências dos autores na área de ensino na saúde, metodologias ativas de ensino, aprendizagem e avaliação, além do desenvolvimento e implementação de métodos de ensinagem(e) no trabalho com estudantes e docentes universitários em capacitações e tutorias, especialmente em ambientes de ensino tradicional, motivaram a realização deste trabalho. Destarte, é foco deste estudo refletir sobre o processo de transformação dos métodos de ensino, aprendizagem e avaliação, tendo como referência o docente como agente de transformação1. Para tal, a pesquisa-ação foi a estratégia metodológica utilizada, dando voz a estes agentes. Para uma melhor caracterização do problema, torna-se importante abordar os paradigmas educacionais vigentes e as tendências preconizadas pelas políticas públicas para a educação universitária na atualidade. O modelo de ensino predominante, denominado tradicional, caracterizado pela transmissão de conhecimentos, pela ênfase na memorização em detrimento da reflexão crítica, designado por Freire2 como educação bancária, baseiase, essencialmente, em aulas expositivas, onde o professor é o detentor de conhecimentos e grande protagonista, cabendo, aos estudantes, repetirem fidedignamente os conteúdos memorizados nas provas classificatórias2-5. Não obstante, a sociedade do conhecimento atual, altamente influenciada pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), pelo uso da internet e pela criação e circulação de um volume cada vez maior, e de velocidade extraordinária, de conhecimentos e informações, coloca em evidência a urgente superação deste modelo tradicional, necessitando, para isto, que a universidade invista em estratégias de desenvolvimento docente, visando capacitá-los ao manejo de diferentes tecnologias educacionais5. Nessa perspectiva, destaca-se o uso de metodologias ativas de ensinagem no que tange ao desenvolvimento de competências necessárias à formação do estudante-profissional-cidadão, em quaisquer áreas do conhecimento4,6. Estas metodologias inovadoras dão ênfase ao processo de ensino, aprendizagem e avaliação, ao darem protagonismo aos estudantes, colocando-os como agentes proativos, estimulando que busquem respostas para problemas reais e complexos com liberdade e autonomia, tornando-os, assim, corresponsáveis na tomada de decisão; o que gera, consequentemente, uma ruptura com a aprendizagem mecânica e conteudista7,8. Mais especificamente, no campo da saúde, algumas considerações se fazem necessárias, tendo em vista as mudanças no perfil profissional exigidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)9,10. As DCN preconizam que a formação do profissional de saúde deva ser condizente com as diretrizes e princípios do SUS – de universalidade, integralidade, equidade, descentralização, participação e controle social –, objetivando a formação de profissionais-cidadãos engajados na luta pela vida, formados a partir de um perfil: generalista, humanista, ético, crítico, reflexivo, com competência técnica e capacidade de atuar sobre os problemas de saúde mais prevalentes do país7,10. Neste contexto, o papel do docente deve mudar drasticamente, passando de detentor do conhecimento para o de facilitador e provocador epistemológico(f). Aqui o estudante deve ser estimulado a estabelecer relações e conexões com o

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Ensinagem: de acordo com Anastasiou e Alves5, este termo indica uma prática social complexa entre os sujeitos (professores e alunos), que engloba tanto as ações ligadas ao ensinar quanto ao aprender, decorrentes de atividades realizadas em sala de aula e fora dela; transcende o simples ato de transmitir conteúdos, para um processo no qual o conhecimento é construído de uma maneira consciente e contratual. Além disso, este termo evita a dicotomização dos momentos do ensinar e do aprender, visto que são partes do mesmo processo. Ele será empregado no decorrer do texto, quando houver referência à expressão ensino-aprendizagem. Porém, quando houver referência a metodologias ou a processos tradicionais de ensino, a expressão processo de ensino e aprendizagem será mantida. (e)

(f) Provocador epistemológico: para Schon11, o professor exerce o papel de mediador, facilitador, problematizador e ‘provocador epistemológico’ das questões concernentes ao processo de ensino e aprendizagem, atuando no sentido de estimular o aprendiz a procurar o que não conhece; para este autor o conhecimento não advém de ensinamentos, mas de questionamentos.


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seu objeto de estudo, a partir da escolha das melhores estratégias didáticas, e incentivado a teorizar a partir de sua experiência em cenários reais de prática. Investir em processos de formação que rompam com as formas cristalizadas tradicionais de ensino e aprendizagem na docência universitária e que levem em consideração todas estas questões – configuração atual da sociedade, avanços tecnológicos, necessidades sociais, DCN, dentre outros – passa pelo planejamento de arranjos educacionais inovadores. Estes devem mesclar os pressupostos teóricos das metodologias ativas de ensinagem e da aprendizagem significativa, em interface com as TIC, propiciando o desenvolvimento de processos críticos e reflexivos, que despertam a criatividade e se baseiam nela, e que se ancorem na problematização da realidade como ferramenta educacional estratégica. Assim, o momento atual sugere novas formas de conceber o modelo educativo, exigindo mudanças do papel tradicional dos docentes, dos discentes e da própria administração universitária. O ensino de qualidade exige que a universidade crie condições para o desenvolvimento do docente ao longo de toda a sua carreira profissional, valorizando aquele que reconhece o papel da educação permanente na construção de sua expertise enquanto profissional da saúde, pesquisador e educador. O que se propõe, portanto, é que os docentes realizem um giro significativo desde os pontos de vista pedagógico, epistemológico e psicossocial4,12,13. Neste contexto, seguindo as orientações nacionais, inscritas nas DCN10, e as internacionais, inscritas no Informe da Unesco14 e no Processo de Bolonha15, ressalta-se que a inovação educativa que as novas orientações demandam não deve vir de fora, mas pelo caminho da reflexão sobre a própria prática e pelo trabalho que a instituição/administração universitária deve desenvolver junto aos docentes. Isto exige que as mudanças na práxis educativa não devam existir em contextos solitários, mas, sim, por meio da construção coletiva de uma nova prática educativa16. Inspirando-se nesse cenário, este estudo se propõe a refletir acerca da educação universitária na atualidade, a partir das seguintes dimensões: o que temos; o que queremos; e as estratégias que devem ser delineadas e mobilizadas para transformação dos processos de ensinagem. Assim, é objetivo deste estudo discutir sobre os paradigmas e tendências do ensino universitário na atualidade, apontando estratégias de formação e desenvolvimento docente.

Métodos Desenho do estudo e referencial teórico-metodológico Estudo de natureza qualitativa, que utilizou a orientação metodológica da pesquisa-ação, por se configurar como uma estratégia de pesquisa na qual a intervenção no meio estudado ocorre pela participação ativa dos pesquisadores e participantes. Neste método, os problemas identificados durante a pesquisa devem ser resolvidos no decorrer desta, de forma a auxiliar o agente na sua atividade transformadora (emancipadora); é uma pesquisa que investiga a própria prática com a finalidade de melhorá-la17,18. A pesquisa-ação apresenta etapas, que podem ser entendidas como um ciclo (Diagrama 1), que são: planejamento, implementação, descrição dos resultados e avaliação das mudanças ocorridas para o aperfeiçoamento da prática17. O presente estudo foi desenvolvido com base nos resultados oriundos da implementação de capacitações docentes para atuação como tutores em disciplina semipresencial, que integrou docentes e estudantes de diferentes áreas de conhecimento e de dois campi da mesma universidade pública, distantes geograficamente cerca de seiscentos quilômetros. O conteúdo programático desta disciplina abrangeu temas transversais à formação profissional (políticas públicas de saúde e cidadania), e utilizou ferramentas pedagógicas fundamentadas nos referenciais teóricos das metodologias ativas de ensinagem, visando o desenvolvimento de competências pessoais, profissionais e digitais pelos agentes envolvidos.

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AÇÃO

AGIR para implantar a melhora planejada

Monitorar e DESCREVER os efeitos da ação

PLANEJAR uma melhora da prática

AVALIAR os resultados da ação

INVESTIGAÇÃO

Diagrama 1. Representação em quatro fases do ciclo básico da investigação-ação Fonte: Tripp17

O Diagrama 2 apresenta as etapas que compuseram o presente estudo em consonância com os percursos propostos pela pesquisa-ação.

Etapa 2 (AGIR)

AÇÃO

. Capacitação dos tutores (Módulos I e II)

Etapa 1 (PLANEJAR)

Etapa 3 (DESCREVER)

. Planejamento da disciplina semipresencial

.

intercampi

. Planejamento da capacitação dos tutores

(docentes da universidade e estudantes de mestrado e doutorado) para atuação na disciplina.

Observação da participação, dos relatos, dos depoimentos acerca das vivências e atuação na docência universitária, das expressões verbais e não-verbais dos participantes (tutores), das práticas e percepções sobre os processos de ensinagem, durante o desenvolvimento dos dois módulos da capacitação para tutoria.

.

Avaliação das capacitações I e II (avaliação dos métodos de ensinagem, dos conteúdos abordados e de sua validade para o desenvolvimento de competências pelos estudantes, da mudança de percepção acerca dos métodos de ensino, aprendizagem e avaliação pelos tutores), por meio do método do Panorama Sobe e Desce, Wordle e registros em diários de classe.

Etapa 4 (AVALIAR)

INVESTIGAÇÃO

Diagrama 2. Etapas da pesquisa-ação propostas por Tripp17, aplicadas à formação/capacitação docente na pesquisa apresentada

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Participantes do estudo Participaram deste estudo docentes e estudantes de mestrado e doutorado de diferentes áreas de conhecimento que atuavam nos dois campi da universidade, totalizando 14 indivíduos, que foram codificados pela letra P (participante), seguidos de um número que os identificou. Estes agentes não possuíam experiência com processos inovadores de ensinagem, manejo de ambientes virtuais de aprendizagem e atuação em atividades de tutoria.

Instrumentos de coleta de dados Os dados aqui apresentados são oriundos dos momentos de desenvolvimento de programas de formação/capacitação docente para atuação como tutores na disciplina semipresencial intitulada: Tópicos Especiais em Políticas de Saúde e Cidadania. Caracterizou-se pela utilização de metodologias ativas de ensino, aprendizagem e avaliação; o manejo de ambientes virtuais de aprendizagem; a formação docente e discente centrada em competências; além da discussão de temáticas transversais à formação universitária, como políticas de saúde e cidadania. Viabilizou-se por meio de um desenho de ensino inovador, que visou integrar atores com formações distintas e distantes geograficamente, e formá-los para as exigências profissionais contemporâneas com novas ferramentas e tecnologias de ensino. Desse modo, a implementação de distintas tecnologias educacionais se configurou como uma proposta de intervenção (pesquisa-ação), na qual os resultados oriundos do processo de implementação das capacitações foram descritos e avaliados por distintos métodos. Neste estudo, serão utilizados os dados coletados por meio das técnicas do Panorama Sobe e Desce, Wordle e Diários de Classe, que foram utilizados em todos os momentos das capacitações. O Panorama Sobe e Desce foi criado pelas docentes Lia Márcia Cruz da Silveira e Denise Herdy Afonso, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); e é uma técnica que visa diagnosticar fatores motivadores, representados pelo SOBE, e desmotivadores, representados pelo DESCE, de participação/atuação em algum curso/cenário de trabalho/dentre outros, no qual post-its de duas cores diferentes são distribuídos aos participantes para que estes possam listar, a partir de suas visões de mundo e experiências, os fatores que os motivam e desmotivam a participar ou exercitar determinada ação/atividade. Esse método é muito útil, também, para comparação e avaliação de processos de ensinagem, ao dar parâmetros avaliativos iniciais e finais. Os resultados do Panorama Sobe e Desce podem ser representados por um diagrama de palavras denominado Wordle, no qual o tamanho das palavras e/ou expressões representam o quantitativo de vezes em que estas foram citadas pelos entrevistados. O Diário de Classe, por sua vez, de acordo com Zabalza19, é um instrumento narrativo e reflexivo que possibilita a obtenção de uma perspectiva completa de tudo que foi realizado e de sua sequência; permite, ainda, que seja realizada uma “leitura” mais profunda e pessoal dos acontecimentos, por meio do registro de sensações, imagens, experiências, o que leva a uma visão mais ampliada de todo o processo de trabalho e das relações que se estabeleceram, sendo um recurso de reflexão sobre a própria prática. A análise utilizou, como referencial teórico, os estudos desenvolvidos por Blanco12, para o qual se construíram quadros comparativos (Quadros 1, 2 e 3) entre o que este autor preconiza para a educação universitária e quais os resultados encontrados no presente estudo, representados na Etapa 4 do Diagrama 1.

Aspectos éticos Este estudo faz parte do projeto intitulado: “Programa de Inovação em Docência Universitária (PRODUS): uma proposta de (trans)formação no processo de ensino e aprendizagem para os cursos da área da saúde na Universidade Federal de Viçosa (UFV)”. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFV em 05/04/2013, em consonância com a Resolução nº 466/2012/CNS, que regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Resultados Os depoimentos dos agentes participantes deste estudo, durante os momentos de capacitação para o exercício da tutoria, apontam para uma insatisfação no uso do modelo tradicional de ensino e aprendizagem. Por meio do Quadro 1, pode-se visualizar uma representação gráfica sobre a “Educação no Ensino Superior: o que temos”, construída a partir dos pressupostos teóricos apontados por Blanco12. Os dados extraídos dos depoimentos dos participantes que constavam no Diário de Classe podem ser visualizados na terceira coluna (Práxis), como forma de ilustração dos constructos teóricos destes autores. Salienta-se a apresentação de dois paradigmas que necessitam ser analisados pelos atores do cenário educacional contemporâneo – o desenho da sociedade atual e o modelo tradicional de educação, que se configuraram como pano de fundo das discussões dos docentes/ tutores em formação. A aplicação de metodologias ativas, no contexto analisado, transcendeu o simples conhecimento de sua técnica na visão dos participantes. Estes esboçaram uma necessidade de empregá-las, e, sobretudo, de refletirem acerca de seu contexto de utilização, além de uma análise da viabilidade de sua aplicação, tendo em vista que todos pertenciam a uma universidade na qual os cursos de graduação são estruturados sob o formato de currículos tradicionais por disciplinas. Neste contexto, por meio do Quadro 2, apresenta-se o tema a “Educação no Ensino Superior: o que queremos”,

Quadro 1. Paradigmas educacionais no âmbito universitário: o que temos13,20 EDUCAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR: O QUE TEMOS... Paradigmas

Práxis

Características

Desenho da sociedade atual

Modelo tradicional de educação

. Sociedade em mudanças constantes (social, econômica, educação). . Sociedade do conhecimento/informação. . Questionamento do papel das universidades na sociedade frente a estas mudanças. . Contexto socioeducativo pouco promotor de uma educação/crescimento voltado à emancipação e compromisso social e político. . Sociedade consumista e conformista, com pouca implicação social e política. . Contexto de difusão intensa de ideias e informações.

“Não podemos mais fechar os olhos e fingir que as mudanças não existem. A era da internet, a velocidade e a quantidade de informações que temos hoje nos obriga a estar atualizados e a usar novas tecnologias (P11)”.

. Metodologias tradicionais: não medem progresso, não desenvolvem competências.(*) . Docente sem envolvimento/capacitação em processos de ensino inovadores.(**) . Pensamento tradicional: lógico e convergente em busca de um resultado esperado/pronto/acabado/inflexível/sem criatividade.(***) . Aluno se acostuma com os fatos dados, conforma-se com qualquer perspectiva, sem aprofundar-se, sem preocupar-se em ver o fenômeno sob outro paradigma. .Ensino carregado de conteúdos, dissociação entre teoria e prática. Interesse centrado em resultados de aprendizagem, que ignora o valor dos processos formativos e variáveis relacionais e sistêmicas.(****) . Atuação que gera condutas rotineiras, dependentes e pouco flexíveis.#

“Viemos de um modelo engessado, que não te dá asas... o que mudou nesta sala de aula desde que eu estudei aqui, há anos? (P6)”.(*) (***) “Temos uma raiz muito profunda no ensino tradicional. Romper com isso é muito difícil (P14)”. (**)

“Sensibilizar as pessoas para o ensino não é fácil (P13)”.(**) “O paradigma da nossa universidade é só valorizar pesquisa. Na minha opinião, para o aluno é muito mais interessante eu estar aqui me capacitando para dar aulas melhores do que somente escrevendo artigos (P5)”.(****) “Quando a gente tá só no nosso ambiente de trabalho, fazendo sempre as mesmas coisas, a gente não abre os olhos, não cria possibilidades. Precisamos fomentar essa necessidade do professor criar e inovar (P2)”.#

Os símbolos (*) e # foram utilizados como legenda para indicar qual pressuposto cada fala representa.

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delineado a partir dos pressupostos teóricos elaborados por Blanco12. Referente ao “Papel do docente”, destaca-se a importância do ser agente-professor aberto ao novo, com motivação e proatividade. A utilização de processos inovadores de ensinagem também foi considerada como uma importante estratégia de mudança de paradigma educacional por todos os participantes do estudo. Verificou-se,

Quadro 2. Tendências educacionais no âmbito universitário: o que queremos13,20 EDUCAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR: O QUE QUEREMOS... Tendências

Papel do docente

Desenvolvimento de competências

Educação centrada na realidadeproblematizadora

Características

Práxis

. Modelo de educação centrado na tolerância, nos valores, no respeito e diversidade.(*) . Foco no aluno. Envolver a pessoa que aprende no processo de ensino.(*) . Gestor da informação/guia da aprendizagem.(*) . É necessário prever riscos, planejar, estabelecer prioridades. . Responsável pela formação integral.(**) . Conflito= pontos de vista diferentes= busca de soluções criativas. Gestão do conflito. . Promotor de um ensino não somente transmissor de conhecimentos, mas sobretudo que fomente a capacidade de decisão e pensamento do aluno.(***) . Agir de forma criativa → capacidade ou atitude para gerar alternativas/soluções a partir de uma informação dada → cria propostas inovadoras/propõe novos caminhos e novas soluções a cada problema → dar respostas novas a problemas já conhecidos.# . Dar feedback nos processos educacionais, permitindo ao aluno a revisão de erros.##

“O estudante espera que o tutor seja virtual mas que não seja um robô. Se o aluno tá perdido, ele quer o conforto de poder ser guiado pelo tutor. O tutor que todos procuram deve ter coração, compaixão (P8)”.(*) “Discutir as formas de ensinar está sendo diferenciado para mim, me faz pensar e querer ser melhor como professor (P6)”.(**) “ As metodologias ativas tiram os resquícios de autoridade do professor. Temos que desconstruir o perfil dos docentes (P1)”.(***) “Para trabalhar com metodologias ativas o professor tem que querer, e precisa conhecer. Muitas vezes o professor não quer nem conhecer (P5)”.# “ Fazer uma avaliação apreciativa estimula o aluno a querer melhorar (P10)”.##

. Desenvolvimento das competências gerais: pensamento crítico: atitude de dúvida/interrogação. Raciocínio, solução de problemas, tomada de decisões (interpretação, análise, avaliação, inferência, explicação, autorregulação), que requer flexibilidade, reflexão.(*) . Autonomia, responsabilidade, autoconfiança, consciência dos valores éticos, flexibilidade, comunicação, iniciativa, inovação, criatividade, planejamento, trabalho em equipe.(**) . Competências secundárias: uso de tecnologias da informação, manejo de diferentes culturas, dos conflitos, da negociação. . Competências específicas (de cada área). . Novas tecnologias/meios/habilidades de gerir a informação. Competência: gestão da informação e das TICs.

“Saber estimular as competências de cada um, num movimento dialético e dialógico está sendo muito importante para mim enquanto professor (P4)”.(*) “Sou muito tímida, aqui estou mudando muito isso; coisas que eu não mudaria se não fizesse esta capacitação. To vencendo minha timidez. Essa fala espontânea eu aprendi e desenvolvi aqui. Em termos pessoais ganhei muita segurança e confiança em ser docente. Estou muito motivada a buscar mais, sem medo (P7)”.(**)

. O aluno deve aprender a conhecer a importância/ utilidade do conteúdo em sua via e futuro profissional.(*) • Educar com criatividade, para a mudança e formação de pessoas ricas em originalidade, flexibilidade, perspectiva, iniciativa, confiança, tolerância, com enfrentamento dos problemas que se apresentam na vida pessoal, profissional e social.(**) . Sociedade formada por pessoas criativas, empreendedoras e inovadoras nos âmbitos profissionais.(***)

“Tô aprendendo aqui além de metodologias ativas e políticas de saúde. Tô entendendo as coisas que estão acontecendo no momento atual no Brasil (P7)”.(*) “O ensino muitas vezes tá desvinculado da realidade na formação tradicional. Eu to procurando agora fazer diferente na minha disciplina. E to aprendendo isso, fazendo (P5)”.(*) “Foi muito bom mudar o planejamento de última hora. Uma aluna disse que é muito bom estudar o que estamos vivenciando no momento atual (P7)”.(**) “Não é final de nada. Saímos daqui com mais cidadania e empoderamento para lutar por uma sociedade melhor (P9)”.(***)

Os símbolos (*) e # foram utilizados como legenda para indicar qual pressuposto cada fala representa.

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além dos depoimentos orais e escritos, que a expressão não verbal e os olhares contemplativos dos indivíduos manifestaram satisfação, alegria e bem-estar, além da abertura ao conhecimento novo, marcada pela integração, interação e trabalho em equipe (Quadro 3).

Quadro 3. Necessidades e Estratégias educacionais no âmbito universitário13,20 PARA ISSO, HÁ QUE SE DESENVOLVEREM ESTRATÉGIAS... Necessidades

Estratégias

. Mudanças no paradigma

Desenvolvimento docente/discente/ institucional

docente.(*) . Capacitar graduandos para formação profissional e cidadã. . Utilização de indicadores de competências e técnicas que permitam desenvolvê-las. . Uso de metodologias participativas para desenvolver competências de responsabilidade, comunicação e trabalho em equipe.(**) . Metodologias que gerem o debate, a discussão dialética, o encontro de diferentes fontes, geradoras do pensamento crítico, do aprendizado dialógico, cooperativo, autônomo, baseado em problemas da vida real.(**) . Criar uma cultura de aula que estimule o pensamento crítico.(***) . Estimular em aula e fora dela situações de reflexão, interrogação e crítica fundamentada.(***) . Intenso debate nos meios acadêmicos para compreensão em profundidade quanto ao desenvolvimento de um projeto pautado no currículo por competências.(****) . Mudanças no planejamento e desenho curricular.(****) . Desenhar cenários e situações de aprendizagem e articulá-los aos diferentes níveis de desempenho das competências.(****) . Utilização de novas TICs.# . Desenvolver as competências em cenários autênticos/reais, semelhantes aos encontrados no contexto laboral e da vida cotidiana.## . Planejamento: competência básica= estabelecer objetivos, eleger meios para alcançá-los, analisar informações existentes, estabelecer um plano de atuação.###

Propostas dos agentes “A grande questão é que tem que treinar a gente, para que possamos ter acesso a estas ferramentas de ensino inovadoras (P3)”.(*) “Os treinamentos reforçaram a ideia que eu tinha de que os métodos atuais de ensinagem tem que mudar. Em 5 dias de capacitação eu aprendi mais que se tivesse feito uma disciplina de um semestre. Eu li, ri, aprendi, construí, reconstruí [...] (P5)”.(*) “Estou descobrindo um caminho de solo firme e frutífero. Estamos conseguindo fazer integração a distância (P2)”.(*)(**) “Sinto uma grande transposição acontecendo em mim, do estático ao dinâmico. Está sendo construído um ensino, um trabalho vivo (P1)”.(*)(**) “Acho um zelo vocês escutarem os professores. Não estamos acostumados a isso (P5)”.(**) “Como foi produtivo olhar os cartazes produtivos e ver o que fizemos! Como vocês programaram várias estratégias, controle do tempo [...]. “Adquiri competências para fazer uma análise mais criteriosa do SUS. Eu não teria esse olhar crítico se não tivesse sido estimulada a isso. Sem estes momentos aqui não teria tido vontade ou motivação para ler sobre o assunto. Fui despertada para isso (P2)”.(***) “Não achei que ia chegar neste resultado final. Achei que ia ficar em branco. Interessante trabalhar com o pré-conhecimento (P8, relatando a satisfação em ver o Mapa Conceitual produzido)”.(***) # “Antes era difícil trabalhar no ambiente virtual. Só aprendi mexendo, acessando. E treinar isso como aluno foi fundamental para eu ter segurança de aplicar junto com meus alunos. As aulas narradas foram excelentes recursos de aprendizagem (P9)”.# “[...] precisamos repensar nossas metodologias de ensino para mostrarmos aos nossos alunos a importância do conhecimento! (P6)”.(****) “Aprendi bastante. Me surpreendi. Me modifiquei. Criei (P9)”.(**) # “Que pena que acabaram as capacitações. Outros colegas tinham que ter essa oportunidade (P7)”.## “Adquiri mais confiança em mim como pessoa e como docente depois que aprendi novas formas de ensinar. Me sinto como se eu estivesse saindo do armário, desabrochando mesmo (P6)”.(**) “Organização e sensibilidade foram destaque aqui durante os três dias da capacitação. Isso traz segurança pra gente que estamos aprendendo coisas que foram bem planejadas (P11)”.(**) # “Aprendo aqui a reaprender. Pegar o Mapa Conceitual, refazer, reconstruir, mudar meus pontos de vista, para melhorar a autocrítica, para fazer mais reflexão (P6)”.(**)(***) “Tô aprendendo organização e gestão do tempo. E a discutir as temáticas na visão do professor e do aluno (P1)”.### “Sinto agora que o novo é aquilo que me estimula, e não dá mais medo (P10)”.(*)(**)(***) “O caminho para a consciência e exercício da cidadania é a educação (P7)”.(****)(*)

Os símbolos (*) e # foram utilizados como legenda para indicar qual pressuposto cada fala representa.

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O Quadro 3 traz, na primeira coluna, as “Necessidades”, aqui representadas pelo “Desenvolvimento docente/discente/institucional”, e as estratégias que precisam ser delineadas para o alcance de objetivos educacionais mais consistentes e duradouros, que contemplem os agentes inseridos no processo. A necessidade de capacitação e desenvolvimento docente foi apontada por unanimidade pelos professores. Dentre os principais pontos ressaltados, aparecem: a gestão do tempo, organização, comunicação, crítica, reflexão, manejo das TIC, conexão de conhecimentos novos com os prévios, dentre outros, que podem ser comprovados na terceira coluna do Quadro 3. Os participantes apontam para a necessidade de programas de desenvolvimento docente contínuos e duradouros, o que, na maioria das vezes, é dificultado pelas inúmeras atividades profissionais, contexto de trabalho e desafios institucionais. Este fato pode ser observado no Wordle demonstrativo do DESCE, do Panorama Sobe e Desce, resultado dos Módulos I e II das capacitações (meses abril e julho de 2013), onde se destacam como fatores desmotivadores para a participação em atividades de educação permanente: a sobrecarga de trabalho/cansaço, a insegurança quanto ao uso correto das metodologias aprendidas e a falta de tempo (Figura 1).

DESCE MEDO-NOVO DESLOCAMENTO

23/04/2013

TEMPOCANSAÇO

DEMANDA-ALUNO TRABALHO-INDIVIDUAL FALTA-COMPROMETIMENTO

TEMÁTICA-DISCIPLINA TRABALHO-EQUIPE NÃO COLABORAR INTERESSE-ALUNO

PREOCUPAÇÃO

Sobrecarga

11/07/2013

Tempo

Figura 1. Wordle “DESCE”, representando os fatores desmotivadores para participação em cursos de treinamento/capacitação, na visão dos docentes e estudantes de pós-graduação

Por outro lado, quando questionados sobre os fatores que os motivam (SOBE) a participar de capacitações e desenvolvimento docente, aprender sobre metodologias ativas e o trabalho em equipe foram os elementos mais citados (Figura 2).

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sobe Aplicabilidade APRENDER CAPACITAÇÃO Troca saberes NOVAS-METODOLOGIAS

23/04/2013

Integração

Aprender

aprimoramento

COMPROMETIMENTO Entusiasmo Colaboração

INOVAÇÃO

TRABALHO-EQUIPE

Professores experts Conhecimentos Prazer em ensinar

Novas experiências Relacionamento Dinâmicas

Trabalho-equipe

11/07/2013

Novos conhecimentos

Amizade Autonomia Envolvimento-aluno Interdisciplinaridade Integração Formação Aplicação prática Pró-atividade

Metodologia-ativa Alegria

Desenvolvimento pessoal

Desafios

Integração-campi

Figura 2. Wordle “SOBE”, representando os fatores motivadores para participação em cursos de treinamento/capacitação, na visão dos docentes e estudantes de pós-graduação

Discussão A discussão sobre os paradigmas e as tendências das práticas educativas sob a perspectiva da pesquisa-ação aponta para um projeto de intervenção que teve por objetivo mudanças concretas, e, como ponto de partida, problemas advindos da práxis educativa como prática social. Elaborar um desenho metodológico que seja significativo e coerente com as demandas sociais, baseado no processamento complexo da informação e na utilização das potencialidades de determinado entorno, utilizando as tecnologias e meios apropriados, e identificando qual recurso pode propiciar maior ou menor aprendizagem ao indivíduo, representa o grande desafio das práticas educativas, e da transformação da sociedade da informação em sociedade do conhecimento. “A qualidade dos atos que produzimos dependem precisamente da qualidade de nossas competências, da projeção das mesmas na sociedade e do uso eficiente das TICs”20 (p. 155). Nesse contexto metodológico, os achados deste estudo, representados nos quadros e figuras oriundos dos processos de capacitação em tutoria, mostraram o êxito de utilização de um formato educacional inovador, que combinou o uso de metodologias ativas de ensinagem mesclando AVA e ambientes presenciais, com foco no desenvolvimento de competências. A utilização da metodologia da pesquisa-ação, neste estudo, possibilitou a construção de estratégias de capacitação e desenvolvimento docente (Planejamento - Etapa 1 dos Diagramas 1 e 2), por meio da observação, registro (Descrição - Etapa 3 dos Diagramas 1 e 2) e avaliação do processo implementado (Avaliação - Etapa 4 dos Diagramas 1 e 2). O processo de aprendizagem foi avaliado pelos agentes (coordenadores e tutores em formação) por meio de feedback constante, contínuo e in lócus. Cabe ressaltar que as técnicas de coleta de dados utilizadas – o Panorama Sobe e Desce, o Wordle e o Diário de Classe – se complementam como estratégias metodológicas. Enquanto o Panorama Sobe e Desce é empregado com o objetivo de fazer o diagnóstico estratégico do processo de capacitação, o Wordle apresenta os resultados deste diagnóstico, de forma dinâmica e de fácil visualização, constituindo-se em uma representação gráfica da percepção dos participantes. O Diário de Classe, por 382

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sua vez, constitui uma ferramenta de monitoramento do processo de implementação das capacitações, pautando-se na observação criteriosa e avaliação longitudinais, possibilitando a revisão de estratégias didáticas adotadas de forma contínua e em tempo hábil, o que vai ao encontro dos pressupostos da metodologia da pesquisa-ação. Neste sentido, todo o processo de planejamento envolveu a elaboração de um plano rigoroso de atividades, distribuídas em tempos precisos, e que foram inúmeras vezes reconfiguradas para atender às demandas docentes e contextos emergentes. Ademais, a realização de reuniões da equipe coordenadora da capacitação diariamente – educação permanente –, após o término das atividades, possibilitou a correção de rumos no que tange à gestão do tempo, temas e técnicas escolhidas, além da inserção de conteúdos conforme demanda e rumos da capacitação. Trata-se, portanto, de um processo dinâmico e mutante, configurado segundo a necessidade e interesse identificados. A partir destas considerações, ressalta-se que a utilização da pesquisa-ação em contextos educacionais é um método amplamente difundido, e vem ganhando espaço no Brasil, uma vez que as pesquisas convencionais (que revelam diagnósticos situacionais ou avaliação de rendimentos escolares) não mais expressam as reais necessidades de conhecimento dentro da área de ensino. O conhecimento, a partir dos pressupostos desta metodologia, é apropriado como um instrumento indispensável a um projeto de mudança, de transformação de uma realidade, produzindo informações e conhecimentos mais efetivos para solução de problemas existentes no mundo atual, ao estabelecer uma conexão com a sociedade em sua complexidade, seus problemas e desafios18. Desse modo, conseguir despertar nos docentes: a necessidade de mudança paradigmática no ensino universitário (identificada pelas falas que demonstraram mudança de olhar, visão e perspectiva); a motivação intrínseca que foi observada pelo desejo de utilização dos métodos aprendidos e apreendidos em outras disciplinas que ministram (que pode ser identificada na Figura 2), e, ainda, a demanda por novas capacitações, sugere que a implementação de programas de desenvolvimento docente na instituição, aqui representados pelas oficinas de formação de tutores, foi fundamental para provocar, nos agentes envolvidos, o interesse pela mudança da práxis docente e institucional. O processo de formação transforma os agentes, e, neste caso, o objeto de estudo foi alvo de criação e planejamento constantes, possuindo, ainda, uma dimensão conscientizadora4,7,18,21. Assim, o modelo educacional planejado, executado, descrito e avaliado junto aos docentes e estudantes de pós-graduação alvos deste estudo produziu, além de um diálogo constante entre os agentes envolvidos (conforme pode ser observado nos depoimentos que constam nos Quadros 1, 2 e 3, o que levou ao redirecionamento do planejamento em alguns aspectos), a tomada de consciência sobre a problemática do ensino na atualidade, bem como das políticas de saúde e cidadania, conforme se ilustra nos depoimentos que se seguem: “Adquiri competências para fazer uma análise mais criteriosa do SUS. Eu não teria esse olhar crítico se não tivesse sido estimulada a isso. Sem estes momentos aqui não teria tido vontade ou motivação para ler sobre o assunto. Fui despertada para isso”. (P2) “Como foi produtivo olhar os cartazes produtivos e ver o que fizemos! Como vocês programaram várias estratégias, controle do tempo [...] Essa semente que está sendo plantada aqui hoje quero levar pra minha prática docente”. (P2)

Paulo Freire22 destacou os processos de formação de docentes como um movimento dialético, que compreende o fazer e o pensar sobre o fazer, ou seja, a reflexão consciente da prática. Sob esse ponto de vista, a prática emancipadora e contextualizada aos fatos reais que foram surgindo no decorrer da pesquisa, contribuiu para o desenvolvimento de competências pelos participantes, atributos que servirão de âncora para sua práxis profissional, viabilizando uma formação condizente com as DCN e com o desenvolvimento de habilidades, conhecimentos, atitudes e valores. Por fim, investir em processos de capacitação que estimulem o desenvolvimento docente e a aquisição de competências exige um conjunto de dimensões que envolvem: o conhecimento do contexto social da prática docente (sobrecarga de tarefas, ausência de tempo para envolvimento em COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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novas funções, motivação, investimento institucional, dentre outros – conforme evidenciado nas Figuras 1 e 2 do Wordle SOBE e DESCE), das atividades desenvolvidas, dos pressupostos teóricofilosóficos que embasam suas ações, além da seleção de métodos de ensinagem que possam contribuir para uma mudança de visão e atitude perante a vida profissional e pessoal.

Considerações finais A temática abordada neste estudo inscreve-se em um cenário real, ideológico, político e social complexo, permitindo a análise e reflexão a partir de múltiplas perspectivas, a saber: da metodologia utilizada (pesquisa-ação), da relevância do estudo sobre o que se pretendia “ensinar” (metodologias ativas, manejo de TIC e formação centrada em competências), da valorização dos participantes e de suas experiências de vida e de ensino como fator gatilho para o processo de revisão de práticas e tomada de consciência quanto às exigências atuais da sociedade contemporânea. Ademais, merecem destaque alguns apontamentos acerca da necessidade de envolvimento institucional no planejamento e oferecimento de programas de desenvolvimento docente, que despertem, criticamente, nos indivíduos envolvidos, o desejo da mudança, e que os ajude a caminhar no planejamento e aplicação de novos arranjos metodológicos. Sob essas perspectivas, compreendeu-se que o processo de capacitação de profissionais que atuam no âmbito do ensino universitário, desenhado de forma dialógica e participativa, rompeu com as concepções positivistas dominantes, valorizando e dando voz aos agentes; e mostrou-se eficaz no que tange à conscientização destes indivíduos quanto à importância de se inserir o ensino na agenda das prioridades da universidade, visando a (trans)formação de suas práticas de ensinagem. Falar de paradigmas requer ruptura: ruptura com o pensamento e práticas tradicionais, ruptura com modos de viver e trabalhar já reconhecidamente obsoletos e que exercem pouca influência sobre a realidade; o que exige abertura ao novo, àquilo que é capaz de causar inquietação e despertar o desejo e a motivação de mudança. Concluímos estas discussões acreditando que as atitudes legítimas se originam de inquietações e desconfortos, nas quais somos levados à mobilização de sentimentos, visões e percepções por meio da ação-reflexão-nova ação, o que foi belamente relatado por Rubem Alves23 (p. 11): A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de si um grão de areia que a faca sofrer. Sofrendo a ostra diz para si mesma ‘Preciso envolver essa areia pontuda que me machuca com uma esfera lisa que lhe tire as pontas...’ Ostras felizes não fazem pérolas. Pessoas felizes não sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte, surge sempre de uma dor. Não é preciso que seja uma dor doída. Por vezes a dor aparece como aquela coceira que tem o nome de curiosidade.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1. Sen AK. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras; 2004. 2. Freire P. Pedagogia do oprimido. 48a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005. 3. Neves FBCS, Bôaventura CS, Bitencourt AG, Athanazio DA, Reis MG. Impacto: introdução de mídia eletrônica num curso de Patologia Geral. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(4):431-6. 4. Cotta RMM, Silva LS, Lopes LL, Gomes KO, Cotta FM, Lugarinho R, et al. Construção de portfólios coletivos em currículos tradicionais: uma proposta inovadora de ensino aprendizagem. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):787-96. 5. Anastasiou LGC, Alves LP, organizadores. Processos de ensinagem na universidade pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. 9a ed. Joinville: UNIVILLE; 2010. 6. Noguero FL. Metodologías participativas en la enseñanza universitaria. 2a ed. Madrid: Narcea; 2007. 7. Cotta RMM, Mendonça ET, Costa GD. Portfólios reflexivos: construindo competências para o trabalho no Sistema Único de Saúde. Rev Panam Salud Publica. 2011; 30(5):415-21. 8. Mitre SM, Siqueira-Batista R, Girardi-de-Mendonça JM, Morais-Pinto NM, Meirelles CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Cienc Saude Colet. 2012; 13(2):2133-44. 9. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF); 1988 [acesso 2012 Maio 2]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituiçao_Compilado.htm 10. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais. Brasília; 2001. 11. Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: ArtMed; 2000. 12. Blanco F. Desarrollo y evaluación de competencias en educación superior. Madrid: Narcea Ediciones; 2009. 13. Zabalza MA. Competencias docentes del professorado universitário: calidad y desarollo profesional. Madrid: Narcea Ediciones; 2009. 14. Delors J. La educacion encierra um tesoro. Madrid: Santillana; 1996. 15. Bologna Working Group on Qualifications Framework. A framework for qualifications of the European higher education area. Copenhagen: Ministry of Science, Technology and Innovation; 2005. 16. Blanchard M, Muzás MD. Propuestas metodologicas para profesores reflexivos: como trabajar com la diversidad del aula. 2a ed. Madrid: Narcea Ediciones; 2007. 17. Tripp D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educ Pesqui. 2005; 31(3):443-66. 18. Thiollent M. Metodologia da pesquisa-ação. 17a ed. São Paulo: Cortez; 2009. 19. Zabalza MA. Diarios de classe: um instrumento de investigación y desarrollo profesional. 3a ed. Madrid: Narcea Ediciones; 2011.

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20. Lizarraga MLSA. Competencias cognitivas en educación superior. Madrid: Narcea Ediciones; 2010. 21. Cotta RMM, Costa GD, Mendonça ET. Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1847-56. 22. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 40a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1997. 23. Alves R. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Planeta do Brasil; 2008.

Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM. Paradigmas y tendencias de la enseñanza universitaria: la metodología de la encuesta-acción como estrategia de formación docente. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):373-86. El objetivo dese articulo fue discutir sobre los paradigmas y tendencias de la enseñanza universitaria en la actualidad, señalando estrategias de formación docente. Se utilizó como método la encuesta-acción; los datos se colectaron por medio de las técnicas del Panorama Sobe e Desce, Wordle y Diários de Classe, durante la realización de capacitaciones docentes para ejercicio de tutorado en asignatura semi-presencial. Las declaraciones de los participantes señalaron una insatisfacción en el uso del modelo tradicional de enseñanza; la importancia de que el profesor esté abierto a lo nuevo y, también, que la utilización de procesos innovadores de enseñanza se consideró una estrategia importante de cambio de paradigma educativo. El proceso de capacitación de docentes universitarios se mostró eficaz en lo que se refiere a la toma de conciencia de estos individuos en relación a la importancia de inserir la enseñanza en la agenda de las prioridades de la universidad.

Palabras clave: Tecnología. Innovación. Enseñanza. Aprendizaje. Tutorado. Recebido em 03/05/14. Aprovado em 30/10/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0155

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Educação, cinema e infância: um olhar sobre práticas de cinema em hospital universitário

Fernanda Omelczuk(a) Adriana Fresquet(b) Angela Medieros Santi(c)

Introdução Trabalhamos com uma concepção de educação que extravasa a escola. Uma educação em movimento ativo de aprender e desaprender sobre si mesmo e o mundo, que é, ao mesmo tempo, inventar a si e ao mundo. Uma educação criadora, presente em todos os processos da vida cotidiana1,2. Pensamos a educação tal como Franco3 a define. Quando se refere à educação escolar, a autora fala apenas em instrução. Educação são transformações mais abrangentes de visão de mundo/de si/ do outro/comportamentos/atitudes/pensamentos/ sentimentos que emergem de inúmeras experiências. Educação, neste sentido, pode acontecer em qualquer lugar. E observar as aprendizagens e experiências que vivenciamos em cada esquina e canto do mundo, e a forma como as mesmas nos desestruturam e nos (re)inventam, nos ajuda a recordar que a educação não é exclusividade da instituição escolar. Sendo assim, apresentaremos, neste artigo, a experiência de introdução do cinema num ambiente hospitalar, a partir do projeto “Cinema no Hospital?”, que promove atividades de ver, falar e fazer cinema com pacientes, crianças e adolescentes, que ficam na enfermaria pediátrica de um hospital universitário. O projeto está sendo desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro há três anos. O objetivo inicial é aproximar crianças e adolescentes do cinema; ver filmes e fazer atividades de criação cinematográfica com inspiração na fotografia, nas artes visuais, em trechos de filmes, em elementos da linguagem cinematográfica, em fatos da história do cinema, na ambiência do contexto hospitalar. Associado a isso, objetivamos pesquisar e investigar as possíveis mudanças que uma experiência simples e introdutória, como a visualização de filmes e experimentação audiovisual, traz para a vivência de uma criança ou adolescente hospitalizado em termos de alteridade, além de, por parte daqueles que participam do projeto, garantir experimentações em campo ampliado, permitindo pensar novas possibilidades pedagógicas capazes de produzir mudanças transformadoras para as crianças internadas e os profissionais envolvidos. Compartilhamos da hipótese de alteridade de Jaques Lang4, que defende a entrada do cinema no espaço escolar(c) como um “outro”, como algo diferente, um estrangeiro que vem quebrar e enriquecer as rotinas e estruturas escolares ao COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Doutoranda, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Av. Pasteur, nº 250, fundos, Urca. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22290-240. fernandaow@gmail.com (b,c) Departamento de Fundamentos da Educação, Faculdade de Educação, UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. adrianafresquet@ fe.ufrj.br; asanti@ufrj.br

(c) No final do ano de 2000, Alain Bergala foi convidado pelo Ministério da Educação da França – no nome de Jacques Lang – para liderar um projeto de iniciação à arte na escola, e organiza, então, a introdução da arte cinematográfica nas escolas públicas francesas. Essa experiência e a fundamentação do trabalho realizado estão relatadas no livro A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola.

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“fazer arte”. Acreditamos que o cinema ocupa, nas instituições que penetra (uma escola, um orfanato, um asilo, ou um hospital) – no caso dessa pesquisa –, o lugar de um estrangeiro, que provoca e desestabiliza a verdade com a invenção, a emoção, o irracional e o sonho, dimensões humanas negligenciadas pelo processo educativo. O cinema enquanto arte restitui à educação o que Larrosa et al.5 chamam de linguagem indireta, aquela que se utiliza como máscara e, sabendo-se que é uma máscara, é a linguagem do “como se”, diferente da linguagem direta, séria, austera: a linguagem professoral ou médica, plenamente identificada com sua posição, seu poder e sua categoria. O cinema compartilha da função do riso, que, nas palavras de Larrosa et al5, é aquele que mostra a realidade a partir de outro ponto de vista. Acreditamos que o cinema permite, ainda, outro exercício de alteridade, ao aproximar o outro no tempo e no espaço – de fato, conhecemos paisagens, culturas, costumes de outros países e épocas –, e ainda permite um melhor e mais profundo conhecimento de nós mesmos. Mas não é ensinar uma arte, é algo mais do que uma prática de oficinas ou de aprendizagem mecânica de recursos tecnológicos para se obter rapidamente um produto. Trata-se de introduzir crianças, adolescentes e adultos dentro de uma vivência cinematográfica no contexto hospitalar, no mundo do cinema pelo avesso, pelos bastidores, pelo que não se vende ou se compra no circuito comercial. É aprender a olhar com olhos de artista, com o desejo e o envolvimento de um criador, de um cineasta. A iniciativa de desenvolver um projeto para ver e fazer cinema em uma enfermaria pediátrica nasce porque acreditamos que crianças e adolescentes, ao “fazerem arte”, são capazes de produzir um mundo particular, que só o olhar inexperiente – no sentido afirmativo e benjaminiano da expressão – é capaz de dar. Só eles – e os poetas – são capazes de ver a importância dos objetos mais puros e infalsificáveis sobre a face da Terra. Só elas – e alguns cineastas – têm o talento de se inclinar a buscar, no cotidiano mais visível – e difícil –, aquelas coisas que são invisíveis para o mundo adulto, necessárias para os colecionadores e mágicos, e insubstituíveis para os artistas. O projeto é uma iniciativa de uma Faculdade de Educação de uma Universidade Pública brasileira comprometida em ampliar suas ações, ao pensar o poder pedagógico e transformador do cinema, no universo de uma enfermaria pediátrica.

Educação, cinema e infância no hospital: alguns frames teóricos Vigotski6 e sua compreensão acerca de como funciona a imaginação e a atividade criadora acompanham a razão de ser do projeto. Para o pensador soviético, a criação é condição necessária da existência e está em todos os campos da vida cultural, não sendo restrita a ninguém. Não negamos as doenças ou romantizamos um período sensível e doloroso na vida das crianças internadas e suas famílias acompanhantes, mas chamamos a atenção para o fato de que as crianças internadas possuem intensa atividade emocional, imaginativa, curiosidade de aprender e inventar; e isso não pode ser subestimado. Segundo Vigotski6, o somatório de nossas experiências fica guardado na memória e essas são recombinadas pela imaginação que cria o que não existe. De duas figuras reais: o cavalo e um pássaro, por exemplo, inventamos um cavalo-alado, que não é real. Outra ponte que o autor traça está relacionado ao caráter emocional entre imaginação e invenção. As imagens geram emoções e a atividade emocional também gera imagens. Compartilhamos, com Fontes7, que crianças internadas possuem intensa atividade emocional, movimento e curiosidade. Segundo a autora, a educação de crianças no espaço hospitalar caminha entre duas concepções: uma defende a escolarização dos internos nos mesmo moldes do ensino regular, a fim de diminuir o fracasso e a evasão escolar; a outra entende que uma prática própria deve ser pensada para este contexto, cujos conhecimentos com maior contribuição para o bem-estar físico, psíquico e emocional da criança não se encontram em um currículo escolar padrão. Nosso projeto apoia-se na possibilidade de promover, nesse espaço, uma pedagogia da própria imagem, ao invés de uma pedagogia com imagens, levando a enfermaria hospitalar a vivenciar a experiência do sensível proporcionada pelas obras8. Sendo assim, pretendemos criar um espaço para que uma potente experiência de cinema aconteça às crianças. Por ser potente e diferenciada, podemos caracterizá-la como estética. As características 388

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da experiência estética envolvem um peculiar relacionamento do homem com o mundo, numa dinâmica própria, capaz de produzir uma visão original, capaz de produzir mudança, transformação e emancipação. Por meio dela, exercita-se uma postura de jogo com os objetos do mundo (e não uma postura de uso) que, em contrapartida, ativa a criatividade e a imaginação, podendo, assim, apreender, dos objetos, sentidos e combinações inéditos. Somos estimulados na nossa capacidade criativa, e o mundo pode se mostrar como fonte inesgotável e multifacetada de significados. Esse tipo de experiência, no entanto, se viabiliza a partir de uma postura estética, ou seja, de uma postura contemplativa, “sem finalidade”, receptiva e reflexiva. Tal caracterização potente apoia-se em categorias desenvolvidas por Kant e, com ele, podemos compreender esse processo que o estético proporciona como uma nova e autêntica vivência do mundo. Para Kant9, a experiência estética, a experiência do belo, é diferenciada da nossa experiência com relação ao conhecimento, à nossa experiência ordinária (onde temos nossas preferências pessoais e nos relacionamos com as coisas de forma utilitária e mecânica) e com relação a uma dimensão prática, moral. Por isso, segundo ele, tal experiência foca-se nos objetos considerados em sua originalidade, e o homem possui, diante deles, uma atitude de despojamento e abertura, que o leva a retornar sempre ao mundo, para reapreendê-los, de forma intensa e viva, livre de todo olhar condicionado e alienado de si e do que vê. O belo relaciona-se com a liberdade, na medida em que, por meio da experiência deste, aprendemos a projetar utopias, imagens de outros mundos possíveis. Analisando Marcuse, Jamenson afirma que: “[...] a importância da beleza [...] consiste na possibilidade de um aprendizado prático para a verdadeira liberdade política e social”10 (p. 75). A reflexão é o estado em que o sujeito se encontra na experiência estética. Ele se abre para a recepção dos objetos na sua complexidade, como um fato novo: por intermédio da contemplação, o homem não impõe significados cristalizados às coisas; deixa-as “falar”, dá voz ao mundo, que lhe expõe mutabilidade e renovação. Por não pressupor ou determinar nada, ela suscita a saída de uma espécie de sonolência que automatiza o sujeito no ato de ajuizar o mundo. É um olhar incomum, descondicionado, que permite às coisas que elas se mostrem em sua originalidade inesgotável. É desta forma que pretendemos que o cinema impacte nas crianças e adolescentes com os quais estamos trabalhando, produzindo a intensificação da experiência com a imagem e o mundo, da atenção e do olhar.

Educação, cinema e infância no hospital: a experiência

Começamos na enfermaria pediátrica de um hospital universitário em março de 2011, trabalhando de março a abril, em todas as segundas-feiras, de 14 às 16 horas. Após esse período, em função de questões delicadas ligadas à natureza do espaço hospitalar e da adaptação com o campo e com seus atores, o projeto funcionou com interrupções até retornar ritmicamente em fevereiro de 2012 nas tardes de sextas-feiras, horário do presente momento. A primeira atividade é a realização de sessões de filmes nas próprias enfermarias ou em espaços neutros, como a sala de recreação. Entendemos que o contato com o cinema deve representar, para os pacientes, uma experiência de cinema. Tal experiência deve representar mais do que uma mera recepção agradável, passiva, associada a um divertimento eventual, ou seja, a criação de um momento qualitativo, ímpar, que produza uma marca, uma mudança no olhar e na percepção do próprio cinema e do mundo, “favorecendo um encontro individual e decisivo com uma obra”4 (p. 62). Para Bergala, “esse encontro depende mais de uma iniciação do que da aprendizagem”4 (p. 62), sendo o nosso trabalho o de viabilizar este encontro potente entre o filme e a criança. Sob o ponto de vista estético, narrativo e linguístico, procuramos o encontro com um cinema que cause uma espécie de falta de ar, uma apneia de compreensão racional do que se vê para que se experimente um vazio, uma incompletude, uma rejeição e se aceite ver as coisas com sua parte de enigma, antes de sobrepor-lhes palavras e sentidos. O que Bergala4 propõe é uma relação mais profunda e intensa com o cinema e seu processo de criação, muitas vezes intuitivo e inconsciente para o próprio cineasta. Trata-se de aprender a pensar, sentir, intuir, sofrer enquanto se assiste ao filme, tal como seu criador – essa metodologia é a pedagogia da criação. Perceber um posicionamento de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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câmera, uma sombra, a disposição dos objetos em cena, os atores, a influência da luz, a dúvida que fica quando o trecho de um filme acaba e logo em seguida começa outro... É mais do que ensinar uma arte, é algo mais do que uma prática de oficinas ou de aprendizagem mecânica de recursos tecnológicos para se obter rapidamente um produto. Trata-se de introduzir crianças e adultos dentro de uma vivência hospitalar, no mundo do cinema pelo avesso, pelos bastidores. Na seleção do que exibir para as crianças das enfermarias, buscamos filmes que desafiem o excesso de estímulos, a velocidade e a lógica previsível e condicionante do olhar nas narrativas clássicas e televisivas, acessíveis no circuito comercial. Temos, também, uma atenção especial com o potencial poético das obras e em compartilhar com as crianças produções do cinema brasileiro, que impulsiona nossa investigação e familiarização com a produção nacional, ajudando a romper com sua naturalizada desvalorização. A experiência de outros ritmos, a presença mais efetiva do silêncio, planos longos que seduzem o telespectador a esperar as imagens surgirem na tela se chocam com o imediatismo cinematográfico e pedagógico ao qual estamos acostumados. O olhar automatizado e utilitário do mundo – e, muitas vezes, das aprendizagens formais – é provocado pela sensibilidade de pequenos gestos que desfamiliarizam nossa percepção do cotidiano. Podemos, assim, desaprender, com o cinema, conceitos enrijecidos sobre o mundo, sobre a vida, sobre os outros e sobre nós mesmos. Podemos aprender, com o cinema, a ver o que não se via, a pensar o que nunca se havia pensado, e a impregnar a vida rotineira, mesmo no cotidiano do hospital, com poesia11. A montagem de uma tela nas salas da enfermaria, com os filmes sendo projetados por aparelhos de DVD, permitem uma espécie de “limpeza” e de foco no ambiente audiovisual ao qual as crianças estão acostumadas. Em geral, as enfermarias possuem uma televisão que está sempre ligada para todos, ao mesmo tempo em que muitos pacientes têm ainda sua própria televisão e aparelho de DVD, onde assistem à sua própria programação ou filme. O ambiente é uma confusão de sons e imagens misturados: televisões ligadas, o enfermeiro que fala alto ao celular durante a exibição do filme ou chega para aplicar alguma medicação, o paciente que sente dores e solicita alguma ajuda, as conversas em geral, entradas e saídas intermitentes. Neste sentido, a montagem e exibição do filme apresenta-se como um exercício de concentração, o que, por si só, já representa uma experiência nova, dado que, em geral, o contato com a imagem e, mais especificamente, com o filme, é vivido por estas pessoas como mais um elemento em suas rotinas, diluída num sem número de tarefas e focos de interesse, não sendo nunca objeto de uma eleição e atenção específica. Além dos filmes, o olhar automatizado e utilitário do mundo – e, muitas vezes, das aprendizagens formais – é provocado pela sensibilidade de pequenos gestos e atividades que desfamiliarizam nossa percepção do cotidiano: brincar de enquadrar com molduras de cartolina, repousar o olhar pelo orifício apertado do cubo de papel, ver e fazer Minutos Lumière(d) no ambiente hospitalar, filmar aquilo que só você vê, dar vida ao ambiente criando histórias com fotografias/ frames, dar vida aos brinquedos e objetos com a técnica de stopmotion(e), construir sua câmara escura ou recortar seu taumatrópo(f)... São algumas das atividades que convidam as crianças (e seus acompanhantes) a aprender e fazer cinema com alguns elementos que esta arte traz em sua essência.

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(d) “Minutos Lumière” é uma prática que busca reinstaurar a vivência de ser o primeiro cineasta, como os irmãos Louis e August Lumière, que, em 1895 em Paris, começaram a escrever a história do cinema com câmera fixa, em películas de 17 metros que atingiam, aproximadamente, 52 segundos de filmagem, registrando cenas cotidianas. Em nosso caso, projetamos alguns minutos dos irmãos Louis e August Lumière. Projetamos, também, Minutos Lumière feitos por outras crianças em diferentes contextos e, ainda, algumas partes do filme Lumière & Cia (1995), no qual quarenta cineastas produziram filmes de um minuto com o cinematógrafo (aparelho de filmar do final do século XIX) dos irmãos Lumière. Nas enfermarias, reproduzindo as limitações do cinematógrafo, propomos uma filmagem de um minuto, com câmera parada, em um único plano, que não será repetido, nem editado.

(e) StopMotion é uma técnica de animação que consiste na justaposição de fotografias de um mesmo plano, onde alteramos, pouco a pouco, o objeto que está sendo fotografado, e fotografamos: um boneco, um carrinho. A montagem de uma fotografia após a outra sugere a ilusão do movimento da imagem.

Brinquedo óptico que consiste em duas figuras coladas, uma no verso da outra, atravessadas por um barbante ou palito. Ao girar, tem-se a ilusão de um movimento. No hospital, trabalhamos com a imagem de um pássaro de um lado do papel e, no outro, uma gaiola. Nesse caso, ao girar, tem-se a ilusão de que o pássaro ora está dentro da gaiola ora fora.

(f)


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Frutos e encontros preliminares: resultados As crianças expressam, como suas preferências, os filmes comerciais, difundidos pela indústria de entretenimento, que são, mais cedo ou mais tarde, acessíveis no DVD ou na televisão. Entretanto, os filmes exibidos por nós, seguidos os critérios de seleção já descritos anteriormente, apesar de não serem conhecidos por aquelas crianças, são bem recebidos, sendo, muitas vezes, motivo de euforia por parte de crianças e adultos, acompanhantes ou profissionais da saúde. Elas apresentam-se disponíveis a outras possibilidades fílmicas e estéticas, se envolvendo e se identificando com um filme como “O Garoto”, de Chaplin. Inferimos, portanto, que o que é tomado como preferência é, na verdade, a expressão de uma falta de opção. Muitas crianças, ao retornarem para um acompanhamento nas enfermarias, nos solicitam rever filmes que conheceram naquele espaço. Ao montarmos a tela e pedirmos a todos que desliguem suas televisões observamos que produzimos uma relação diferenciada na recepção do filme, que se aproxima do cinema e que permite uma imersão maior na magia do filme e na construção de uma relação única entre aquilo que lá se passa e aquele que vê. Na maioria dos casos, este público desconhece a experiência do “ritual” da sala escura e tudo que dela deriva. Para muitas crianças e famílias, não é na escola, mas na enfermaria do hospital que experimentam, pela primeira vez, outro cinema, outro tempo, outra estética, outra possibilidade de ver o mundo. O projeto apoia-se na possibilidade de promover uma pedagogia da própria imagem, ao invés de uma pedagogia com imagens, permitindo as crianças da enfermaria hospitalar vivenciarem a experiência do sensível proporcionada pelas obras8. Oriundas, em sua maioria, de bairros periféricos do grande centro artístico e cultural da cidade, pode ser também que seja naquele espaço que participam pela primeira vez desse encontro que nos fala Migliorin: “Encontro em que um indivíduo qualquer, vindo de qualquer lugar, pode sentir e fruir com o outro na imagem, com o outro da sala [enfermaria] e com os múltiplos outros que o habitam, em uma experiência na qual sua própria fruição já é um tipo de criação”12 (p. 135). Para Migliorin12, o cinema e todo o seu entorno é um espaço privilegiado para a experiência da coletividade, que, por sua vez, é um problema de participação estética e discursiva para a soberania popular. Ele acredita que a escola é um espaço possível e desejável para o risco que as invenções de mundo pelo cinema provocam, e que as crianças têm muito a criar ao verem e fazerem cinema. A interseção cinema, escola e infância são, para Migliorin12, necessidades da arte e urgências da soberania popular. Conhecer múltiplas oportunidades de aprendizagens e vivências do mundo, nos ajuda a voltar para a escola com outros olhares sobre a forma como ensinamos e aprendemos. Sucede uma ampliação do campo de atuação das universidades, preparando professores universitários e em formação para atuarem, de forma socialmente comprometida, ampliando, ao mesmo tempo, o campo de atuação destes profissionais (no hospital) e a relação destes com a sua formação pedagógica e cultural. Quando estamos no espaço hospitalar, sentimos que a interseção cinema, escola e infância extrapola a escola, porque ver e fazer cinema (ainda que com seus primeiros gestos) nas enfermarias socializa, antes de tudo, a própria aprendizagem. Socializa o lugar reservado para aprender, o “conteúdo” a se aprender, o tempo (psicológico, afetivo e físico) para aprender, quem deve aprender, as “condições ideais” para aprender... O cinema no hospital socializa a aprendizagem porque não escolhe seu público: saudáveis ou adoecidos, temerosos ou valentes, alegres ou tristes, cansados ou alertas, pequenos ou grandes, jovens ou velhos. Impregna a todos, adultos e crianças, profissionais da saúde ou usuários que circulam no espaço hospitalar. É interessante destacar que, grande parte dos Minutos Lumière produzidos pelas crianças, costuma enquadrar as janelas e o espaço externo, onde as crianças raramente têm acesso. Seus registros nos sugerem o isolamento vivenciado durante o período da internação e o desejo da liberdade. Por outro lado, em algumas atividades de fotografias, observamos que a equipe médica e de enfermagem costumam ser o foco da atenção dos pacientes, numa demonstração da predominância das relações com estes, tanto do ponto de vista técnico quanto afetivo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Arte e criação, nos dizem Aidelman e Collell13, são incontroláveis. É preciso valentia para se expor ao desconhecido, ao que tenha de vir do processo de invenção. Nas enfermarias, as vidas interrompidas por um acontecimento inesperado, indesejado, muitas vezes incompreensível e sem respostas, incontrolável como é o adoecer, compartilham, com a arte, essas marcas. Se o cinema usa da matéria realidade para acontecer, como nos diz Bergala4, a experiência da realidade nesse espaço é ainda mais favorável para a aventura do fazer artístico. O fazer artístico tem sua chave no processo de diferenciação, ele instaura nossa condição de sujeito singular, solitário, com seu núcleo de criação partindo do indivíduo, que pode desenvolver e encontrar não só o resultado, mas, sobretudo, sua aventura e caminho13. O cinema – como toda arte – cria representações desestabilizadoras do mundo, abre infinitos modelos de compreensão do real, desfigura os conceitos que explicam a realidade, articula e interpela verdade e ficção, desdobrando o fluxo da nossa experiência em novos significados e símbolos. Desta forma, por tudo o que apresentamos, entendemos que nossa experiência de levar o cinema ao hospital, permitindo uma experiência com filmes contra-hegemônicos, não disponíveis no circuito comercial, cria a possibilidade da emancipação, pela construção de outra sensibilidade e de outra experiência. Sendo potencializada na sua capacidade de se apresentar como uma formação profissional comprometida com a desestabilização do modus operandi do trabalho universitário, em prol de outros mundos, de utopias pedagógicas.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1. Fresquet, A. Aprender com as experiências do cinema: desaprender com imagens na educação. Rio de Janeiro: Booklink; 2009. 2. Kastrup V. Flutuações da atenção no processo de criação. In: Borba S, Kohan W, Lecerf E, organizadores. Imagens da imanência: escritos em memória de H. Bergson. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. p. 59-71. 3. Franco M. Hipótese-cinema: múltiplos diálogos. In: Fresquet A, organizador. Dossiê cinema e educação. Rio de Janeiro: Booklink; 2011. p. 16-33. 4. Bergala A. A hipótese-cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; 2008. 5. Larrosa J, Lopes JM, Teixeira IC. A infância vai ao cinema. Belo Horizonte: Autêntica; 2006. 6. Vigotski L. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática; 2009. 7. Fontes R. A escuta pedagógica à criança hospitalizada: discutindo o papel da educação no hospital. Rev Bras Educ. 2005; (29):119-38.

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8. Leandro A. Posfácio: uma questão de ponto de vista. Rev Contemp Educ. 2010; 5(10):80-6. 9. Kant I. Crítica da faculdade de julgar. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1993. 10. Jamenson F, organizador. Marxismo e forma: teoria dialética da literatura no século XX. São Paulo: Hucitec; 1985. p. 225-37. 11. Fresquet A. Imagens do desaprender: uma experiência de aprender com o cinema. Rio de Janeiro: Booklink; 2007. 12. Migliorin C. Cinema e escola: sob o risco da democracia. Rev Contemp Educ. 2011; 5(9):130-6. 13. Aidelman N, Collel L. De las potencias pedagógicas de la creación cinematrográfica. Rev Contemp Educ. 2010; 5(10):23-33.

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O artigo apresenta o projeto “Cinema no Hospital?” que investiga o potencial pedagógico de ver e fazer cinema em enfermarias pediátricas em hospitais universitários. O cinema permite um exercício de alteridade – é um estrangeiro que entra no hospital desestabilizando rotinas e estruturas. O filme é pensado não no sentido de um instrumento ou suporte pedagógico para transmitir um saber, mas como a marca de um gesto de criação – uma arte. Espera-se encontrar, com o cinema no hospital, outras naturezas de aprendizagem, conexões e sentidos, que possam contribuir para o fazer da educação com jeitos renovados de pensar a relação com a aprendizagem, a arte e a saúde. As primeiras experiências mostram que a maioria dos pacientes desconhece a experiência do “ritual” da sala escura e que os mesmos se apresentam abertos e entusiasmados a outras possibilidades fílmicas e estéticas.

Palavras-chave: Cinema e educação. Arte. Saúde e educação. Educação no hospital. Education, cinema and childhood: a look at cinema practices in a university hospital This paper presents the project “Cinema at the Hospital?” which investigates the pedagogical power of seeing and doing cinema in pediatric wards in public university hospitals. Cinema allows an exercise in otherness: it is a stranger that enters the hospital and disturbs routines and structures. It is thought of not in the sense of a pedagogical support for conveying knowledge, but as the mark of a creative gesture: an art. It can be expected that, together with cinema, other forms of learning, connections and meanings will be found in the hospital, which may contribute towards conducting education with renewed ways of thinking about the relationship with learning, art and health. The first experiments have shown that most patients are unfamiliar with the experience of the “ritual” of the darkened room and that they are open to and enthusiastic about other filmic and esthetic possibilities.

Keywords: Cinema and education. Art. Health and education. Education in hospital. Educación, cine e infancia: una mirada sobre prácticas de cine en el hospital universitario El artículo presenta el proyecto “¿Cine en el hospital?” que investiga la potencia pedagógica de asistir y hacer cine en enfermerías pediátricas en hospitales universitarios. El cine permite un ejercicio de alteridad puesto que es un extranjero que entra en el hospital desestabilizando rutinas y estructuras. La película se piensa no en el sentido de soporte pedagógico para transmitir un saber, sino como la marca de un gesto de creación, un arte. Se espera encontrar, con el cine en el hospital, otras naturalezas de aprendizaje, conexiones y sentidos, que puedan contribuir para el hacer de la educación con formas renovadas de pensar la relación con el aprendizaje, el arte y la salud. Las primeras experiencias muestran que la mayoría de los pacientes desconocen la experiencia del “ritual” de la sala oscura y que se presentan abiertos y entusiasmados a otras posibilidades fílmicas y estéticas.

Palabras clave: Cine y educación. Arte. Salud y educación. Educación en el hospital.

Recebido em 25/03/14. Aprovado em 03/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0607

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Capacitação em álcool e outras drogas para profissionais da saúde e assistência social: relato de experiência Pedro Henrique Antunes da Costa(a) Daniela Cristina Belchior Mota(b) Erica Cruvinel(c) Fernando Santana de Paiva(d) Henrique Pinto Gomide(e) Isabel Cristina Weiss de Souza(f) Leonardo Fernandes Martins(g) Pollyanna Santos da Silveira(h) Telmo Mota Ronzani(i)

Introdução O uso de álcool e outras drogas tem sido problematizado em várias esferas da sociedade brasileira. As consequências do abuso destas substâncias são múltiplas e percebidas em vários setores. Por afetar tanto a saúde individual quanto a coletiva, este fenômeno exige uma abordagem que agregue prevenção, tratamento, organização de práticas e serviços assistenciais e formulação de políticas públicas específicas1. Entretanto, no setor da saúde, a formação profissional para atuação com os problemas relacionados ao uso de drogas é deficitária, baseada no saber médico, enfocando a dependência e não priorizando a prevenção2-5. Esse descompasso entre a relevância da temática e a qualificação insuficiente denota a importância de propostas de formação profissional, fornecendo, aos usuários e familiares, cuidados adequados. Além do campo da saúde, o abuso de drogas está entre os principais problemas identificados pelos profissionais do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)6. Em função do avanço das políticas de assistência social e suas capacidades institucionais, os serviços do SUAS oportunizam a realização de abordagens preventivas, encaminhamentos de usuários para tratamento, bem como a assistência e o suporte a familiares6. Nesse sentido, é importante que os profissionais dos dispositivos socioassistenciais também estejam capacitados para atender às demandas relacionadas ao uso indevido de drogas. Visando minimizar o panorama deficitário da formação de profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e SUAS, e concretizar novas práticas, os Centros Regionais de Referência sobre Drogas (CRRs) são criados. Sua implantação é coordenada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) por meio do edital nº 002/2010/GSIPR/SENAD do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (PIEC), instituído pelo decreto 7.179 de 20 de maio de 2010. Após reformulação do PIEC, dando origem, em 2013, ao Programa “Crack, é possível vencer” (PCPV), os CRRs passam a ser uma das estratégias de prevenção deste Programa, juntamente com outras capacitações à distância na área. Regidos por editais, os CRRs fornecem uma série de cursos de capacitação presencial para profissionais com atuação nas políticas sobre drogas. Por COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Departamento de Psicologia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora. Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e outras Drogas. Rua José Lourenço Kelmer, s/n, campus universitário, Bairro São Pedro. Juiz de Fora, MG, Brasil. 36036-900. phantunes.costa@gmail. com; danibelmota@ yahoo.com.br; ecruvinel@yahoo.com. br; fernandosantana. paiva@yahoo.com.br; henriquepgomide@gmail. com; leomartinsjf@gmail. com; pollyannassilveira@ gmail.com; tm.ronzani@ gmail.com (bolsista de Produtividade CNPQ). (f) Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. isabel.weiss8@ gmail.com (ab,c,d,e,g,h,i)

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intermédio da capacitação destes atores sociais, espera-se contribuir para a materialização de novas práticas e processos de cuidado/trabalho. Assim, representam uma nova proposta e, ao mesmo tempo, a principal estratégia de formação presencial permanente das políticas e programas na área, agregando uma visão ampliada do problema enquanto questão predominantemente de saúde pública. Segundo o site do PCPV, são 45 CRRs implantados em todas as regiões brasileiras, vinculados a grupos de professores e pesquisadores de instituições públicas de Ensino Superior, com alta concentração na região Sudeste7. Contudo, sabe-se que o processo de incorporação do conhecimento à prática profissional é complexo, indo além da mera transmissão da informação ou aquisição de conhecimentos técnicos. Apesar de a disponibilização de subsídios contextualizados contribuir para aumentar o senso de autoeficácia dos profissionais ao lidarem com os problemas do uso/abuso de drogas8, somente estes fatores não resultam diretamente em mudanças práticas9. Para isso, postula-se a formação de recursos humanos a partir da educação permanente10-12, somados à pesquisa e prática clínica, tendo como horizonte uma educação que seja reflexiva, problematizadora e que vise a transformação da realidade social8. Espera-se a superação da primazia dos procedimentos nos serviços, respaldados pelo saber técnico, abrindo espaço, também, para reflexões sobre as práticas no cotidiano do trabalho10,11,13. Nesse sentido, é necessário compreender e refletir criticamente sobre o papel dos CRRs no cenário de formação e atuação sobre a temática do uso de álcool e outras drogas. Assim como outras propostas de formação/capacitação governamentais, entende-se que o modelo representado pelos CRRs possa ter limitações e pontos positivos. Acredita-se que, por meio da explicitação e discussão de experiências dos CRRs, seja possível visualizar melhor estes fatores, de modo a fortalecer suas potencialidades e reverter ou minimizar seus obstáculos, contribuindo positivamente para o cenário de formação profissional na área. A partir do explicitado acima, o presente artigo objetiva discutir aspectos da capacitação de profissionais do SUS e SUAS, por intermédio de um relato de experiência de um CRR do estado de Minas Gerais. Para isso, são descritos e analisados: o perfil dos profissionais, a estrutura, a abordagem pedagógica dos cursos, o impacto nas concepções sobre a temática e rotinas dos profissionais, bem como as potencialidades e dilemas a serem superados pelo modelo dos CRRs.

Relato de experiência Estrutura e perfil dos profissionais O CRR abrangeu um município de grande porte de Minas Gerais e municípios vizinhos. A equipe gerencial e pedagógica possuía: um coordenador geral, quatro coordenadores de curso, cinco monitores, uma secretária e 15 docentes de áreas diversas, com experiência prática e de pesquisa na rede de atenção aos usuários de drogas. As capacitações foram desenvolvidas quinzenalmente, com oito horas/aula por encontro, totalizando sessenta horas. Os alunos, profissionais da rede pública (SUS e SUAS), foram alocados em quatro modalidades de curso – descritas abaixo – de acordo com seus perfis profissionais. Para receber certificação de conclusão dos cursos, foi estipulada uma frequência mínima de 75% e a apresentação de um projeto de intervenção nos serviços. Cabe ressaltar que os cursos e suas formatações (temáticas, ementas, cargas horárias etc.) foram estabelecidos pelo edital supracitado. A fim de assegurar a participação dos profissionais e englobar a realidade dos serviços, foram realizadas reuniões de pactuação com gestores da saúde e assistência social dos municípios de abrangência do CRR. Após acordos firmados, iniciou-se o processo de inscrição e matrícula dos alunos, respectivamente. O curso “Gerenciamento de casos e reinserção social para profissionais da rede SUS e SUAS” foi o curso que recebeu o maior número de inscrições (354). Ao todo, setenta profissionais efetuaram a matrícula e 54 concluíram o curso, em sua maioria, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e agentes sociais. 396

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Foram inscritos 69 profissionais no curso de “Aperfeiçoamento em crack e outras drogas para profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS)”. Devido ao não-preenchimento das vagas por médicos, viabilizou-se a participação de enfermeiros com atuação na APS. Entre o total de profissionais inscritos, 45 concluíram a sua matrícula, sendo que 70% eram médicos e 30% eram enfermeiros. No curso “Atualização em atenção integral aos usuários de crack e outras drogas para profissionais de hospitais gerais”, foram disponibilizadas sessenta vagas. Foram inscritos 109 profissionais. Dentre o total de inscritos, 67 efetuaram a matrícula, com 62 concluintes, sendo a maioria enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Já o curso “Aconselhamento motivacional e intervenção breve” contou com duas turmas, com sessenta vagas em ambas. A primeira turma contou com 62 inscritos (17 profissionais do SUS e 45 profissionais do SUAS) e 48 profissionais concluíram o curso. Na segunda turma, 67 profissionais se inscreveram (17 do SUS e cinquenta do SUAS), com 58 concluintes. Participaram das duas turmas: assistentes sociais, psicólogos, agentes comunitários de saúde, enfermeiros, dentre outros.

Abordagem pedagógica Pressuposto Por se tratar de um processo de formação, visando instrumentalizar e estimular o desenvolvimento de novas práticas de trabalho, a proposta pedagógica do presente CRR foi embasada nos princípios que orientam a educação permanente em saúde14. As ações objetivaram contribuir para os processos formativos por meio de práticas pedagógicas que abarcassem a organização dos serviços, identificando problemas cotidianos e construindo soluções para os mesmos14. Buscou-se o desenvolvimento do poder de captação dos profissionais sobre suas compreensões de mundo, abordando suas relações com ele em contínuo movimento. A adoção dos ditames da Educação Permanente em Saúde foi fundamental às transformações das práticas cristalizadas e naturalizadas encontradas nos diferentes dispositivos da saúde e assistência social, sinalizando a necessidade de as pensarmos criticamente. Assim, as estratégias pedagógicas do CRR foram norteadas pelos princípios abaixo: 1) O processo de construção do conhecimento deve ocorrer a partir da realidade concreta na qual os profissionais estão inseridos; 2) O processo de formação adota uma perspectiva problematizadora da realidade, buscando favorecer a conscientização do profissional em relação ao mundo e seu trabalho, afastando-se da mera transmissão de conteúdos; 3) Compreende-se os profissionais como atores ativos no processo de ensino-aprendizagem, enquanto o professor atua como um mediador dessa relação, guiando-se por uma postura crítica e dialógica. 4) Deve-se produzir conhecimento que estimule a construção de processos de ação em sintonia com a integralidade e intersetorialidade, tendo em vista a natureza multifatorial do uso de drogas. Estratégias pedagógicas Para fomentar a capacidade pedagógica do CRR, procurou-se proporcionar, aos profissionais, a aquisição de novos conhecimentos, redimensionando o problema por meio de análises críticas da realidade, e ampliando a capacidade de atuação15. Logo, foram delineadas as seguintes estratégias pedagógicas: 1) Análise da atuação profissional: identificação dos principais problemas e possibilidades nas práticas e serviços para abordagem aos usuários de álcool e outras drogas. 2) Formulação de propostas de ação: os profissionais dialogaram sobre soluções para o enfrentamento das necessidades identificadas, fomentando capacidades resolutivas. Como parte do processo de avaliação do aprendizado, eles apresentaram propostas de intervenção, compatibilizando os conteúdos abordados com suas realidades e serviços. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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3) Adequação à realidade institucional: foram considerados possíveis constrangimentos das realidades dos serviços para a adoção de novas práticas, questionando quais mudanças nos processos de trabalho eram viáveis e poderiam repercutir na sustentabilidade das ações. 4) Recursos de aprendizagem: além dos cursos de capacitação presencial, foi desenvolvida uma plataforma de ensino online, disponibilizando: informações, aulas, materiais, ambientes de interação, discussão e esclarecimento de dúvidas. Avaliação do trabalho A avaliação do CRR foi procedida continuamente, buscando-se compreender as consequências dos cursos e suas propostas nas concepções e rotinas dos profissionais, bem como levantar potencialidades e dilemas a serem superados pelo modelo dos CRRs. A observação participante foi uma importante estratégia, gerando relatórios sistemáticos, e sendo realizada durante a implementação dos cursos, juntamente com reuniões semanais de planejamento. Para compartilhar o trabalho executado e aprimorar as estratégias pedagógicas adotadas, a coordenação geral supervisionou os coordenadores dos cursos que monitoraram o corpo docente. Como forma de aprofundar as compreensões sobre atitudes, crenças e percepções dos profissionais sobre o tema, assim como avaliar o impacto do CRR em suas formações e concepções, no início e no final de todos os cursos, oito grupos focais foram realizados. Estes grupos tiveram média de seis participantes de diferentes categorias profissionais, serviços e setores, selecionados intencionalmente a partir de sua assiduidade e envolvimento nas aulas e demais atividades. O material foi transcrito, sistematizado e analisado a partir da análise de conteúdo temática16. Após leitura do material, as categorias foram divididas em dois temas: “Potencialidades do CRR” e “Dilemas a serem superados”, com as inferências baseadas na presença das categorias e referencial teórico.

Resultados e discussão Potencialidades do CRR Devido à alta procura por capacitação, e pelo decorrer dos cursos, observou-se que o abuso de drogas configura-se, para os profissionais, como um grave problema, atingindo várias pessoas e camadas populacionais. É uma questão que faz parte de suas incursões no âmbito das políticas de saúde e assistência social. São escassos os subsídios para a capacitação profissional e, consequentemente, para as ações voltadas à prevenção e assistência aos usuários de drogas17. O aprendizado acontece por meio de treinamentos rápidos e desarticulados, pela experimentação na prática (tentativa e erro), ou por intermédio de esforços individuais autodidatas4,5. A maioria dos profissionais mostrou-se motivada ao longo dos cursos, com expectativa de aumentar os conhecimentos e técnicas para lidar com usuários de drogas no seu cotidiano. Tal motivação pode ser percebida pela abertura dos profissionais, durante as aulas, para a aquisição de conhecimentos e a busca por recursos práticos para o desenvolvimento de intervenções junto aos usuários. Em suma, os cursos possibilitaram reflexões mais ampliadas sobre a temática, enfocando não apenas serviços e práticas isolados, mas, também, o trabalho em rede, discussões sobre a gestão, dentre outros fatores. Para almejar a consolidação de transformações, as capacitações devem possibilitar mudanças nos processos de trabalho, visando a integração entre profissionais e setores15, além de estimularem a implementação de novas práticas no dia a dia dos serviços8. Além disso, a aquisição de conhecimentos esclareceu diversos fatores relacionados ao uso e abuso de drogas, dando mais segurança para a realização das intervenções. O CRR serviu como ‘desmistificador’ de vários aspectos como, por exemplo, a modificação da visão acerca do usuário. Tal fator é fundamental para abordagens mais efetivas, auxiliando na reorientação da prática e para a adesão ao tratamento, rompendo com a cultura do preconceito. O profissional passa, também, a evitar individualizações do problema, tentando compreendê-lo a partir de um prisma abrangente18. 398

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O corpo docente e a estrutura pedagógica mostraram-se qualificados, atendendo às expectativas. O formato dos cursos e das aulas foi avaliado positivamente, agregando grupos heterogêneos de profissionais com diferentes vivências. Isso possibilitou a abertura de discussões e trocas de experiências entre os profissionais – que, nos seus cotidianos, aparecem desarticulados, sem integração no planejamento e compartilhamento das ações – e, também, uma maior noção da realidade, ampliando a visão sobre os problemas19. Os fatores referentes à gestão e ao trabalho em rede também foram bem avaliados, situando o abuso de drogas como uma questão de saúde e não somente de segurança pública. Os profissionais puderam ampliar a discussão para a pluralidade de ações necessárias, reconhecendo o caráter multifacetado do abuso de substâncias e rompendo com o senso comum15. Os cursos foram avaliados como responsáveis por suscitar ou reforçar esta discussão e apresentar, aos profissionais, a importância da articulação/comunicação entre setores e serviços. Dentro da proposta pedagógica, se destacaram os projetos de intervenção, onde os alunos formularam propostas para serem implementadas em seus locais de atuação. Estas propostas foram elaboradas em grupos e, posteriormente, apresentadas e discutidas juntamente com os demais integrantes da turma. Neste momento, diversos projetos foram estruturados com aplicabilidade nos serviços, propiciando reflexão dos papéis e envolvimentos nas ações com usuários de drogas. Houve um novo dimensionamento da problemática, com os profissionais considerando a maior complexidade da questão e a importância da integração da rede assistencial. Dessa forma, o CRR contribuiu para que os profissionais se compreendam em uma rede que engloba os setores da saúde e assistência social, dentre outros, sendo atores-chave no processo de implementação de ações efetivas aos usuários de drogas17.

O CRR como promotor de implementação de ações: dilemas a serem superados Apesar das potencialidades destacadas, dificuldades são percebidas na transposição da aquisição de conhecimentos para a implantação de novas práticas. Na tentativa de implementação do que foi aprendido, os profissionais esbarram na própria complexidade da problemática e na incapacidade de os serviços e rede lidarem adequadamente com essa amplitude20. Afirmam acreditar na prevenção e no tratamento, mas reconhecem que os problemas existentes e a falta de continuidade das ações obstaculizam o trabalho. Desse modo, somente a aquisição de conhecimentos não é capaz de superar a realidade8. Os profissionais demonstram ver o problema de forma ampliada, mencionam a importância do trabalho em equipe, de se conscientizar e envolver a comunidade, sobretudo na reinserção social dos usuários, mas esbarram em como fazer isso. Apesar dos pontos positivos das discussões sobre os contextos de atenção, eles relatam ter pouco poder de decisão e atuação3. Assim, a qualificação de recursos humanos deve ser encarada em um contexto amplo, em que pesam a necessidade de aprimoramentos na estrutura e definição de processos de trabalho que considerem os problemas relacionados ao consumo de drogas10. A rede assistencial é descrita como desintegrada e desarticulada, com dificuldade de suprir a demanda existente, gerando descontinuidade dos atendimentos e encaminhamentos para tratamento. Há desconhecimento acerca das formas de trabalho dos próprios serviços da rede, problemas no trabalho interdisciplinar e insuficiência de recursos19. Os profissionais mostraram-se sobrecarregados e, em alguns momentos, desmotivados, relatando, também, falta de autonomia5. Assim, as ações de prevenção acompanham a desarticulação da rede de atenção aos usuários de drogas, carecendo de maior integralidade e intersetorialidade, com o trabalho ainda organizado de forma fragmentada20,21. A ausência de guias clínicos, que orientem os cuidados nos diferentes níveis de atenção e de acordo com os casos, foi constantemente mencionada. Entretanto, ao mesmo tempo em que os direcionamentos sobre “o que fazer” e “como fazer” são escassos, os profissionais relatam ter pouca autonomia para realizar o trabalho que gostariam, devido aos engessamentos, restrições dos serviços e das práticas, além da falta de condições/estrutura e problemas na rede. A gestão aparece desconectada dos serviços e profissionais, sobretudo da APS, com discursos, muitas das vezes, não representando a realidade do problema. A efetividade da implementação de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ações preventivas ao uso de álcool e outras drogas aparece associada ao engajamento dos gestores no processo de implementação de tais estratégias2. Dessa forma, alguns questionamentos são pertinentes, como: Qual o papel da gestão na implementação das políticas públicas? Como os CRRs podem impactar nessas questões trabalhando, também, na aproximação entre gestão e profissionais? Ademais, algumas características dos próprios CRRs dificultam a transformação do conhecimento em prática. É pressuposto do conceito de educação permanente que o aprendizado ocorra na prática10,11,14. Contudo, os cursos são propostos sem continuidade. Quando os alunos voltam para suas realidades, com conceitos adquiridos e ações formuladas, os cursos acabam, não acompanhando a implementação das intervenções e dificultando sua continuidade. Esse aspecto torna-se frequente nas capacitações governamentais, com atuações pontuais e sem supervisão, dificultando a incorporação de mudanças na prática12. Outro ponto é a necessidade da inserção de outros setores, como a educação e segurança social. Para uma implementação efetiva das estratégias de prevenção, torna-se imprescindível a adoção de uma lógica de interação entre diversos setores, a partir da compreensão das demandas e necessidades sociais6. Além disso, deve-se garantir a participação efetiva de diferentes grupos sociais na identificação, formulação e implementação das ações. A educação e o âmbito escolar, especialmente na prevenção ao uso/abuso de drogas, podem favorecer a implantação de políticas públicas voltadas para os jovens, possibilitando que alunos, professores e comunidade assumam o papel de promotores de sua própria saúde22. Contudo, na formulação dos CRRs estes setores/dispositivos foram desconsiderados, nos fazendo questionar a intersetorialidade amplamente difundida nas políticas, mas insuficiente na implementação das ações. Apesar da avaliação positiva da proposta pedagógica, foram questionados alguns momentos de ênfase teórica que, segundo os profissionais, apareceram descolados das realidades práticas dos serviços. Mesmo com a preocupação de aliar teoria e prática, algumas aulas não conseguiram essa aproximação do conteúdo teórico ao cotidiano dos serviços. Ademais, considerou-se insuficiente o tempo de discussão dos projetos de intervenção, em detrimento da sua relevância dentro da proposta do curso. Nesse sentido, faz-se necessária a realização de exercícios de planejamento e avaliação constantes, visando potencializar as propostas dialógicas, explicitando os pressupostos teóricos, mas aliando-os ao “como fazer”, e considerando contextos que não necessariamente sejam os propagados idealmente pelas políticas públicas. Contudo, não se deve transformar as propostas em receituários, confundindo este “como fazer” com algo pronto e acabado. Isto é significativo, tendo em conta a dificuldade dos profissionais, assim como os demais atores (gestores e acadêmicos), de realizarem avaliações constantes de suas práxis profissionais e não caírem em naturalizações e reproduções das práticas cotidianas. Assim, os cursos devem ser oportunidades de conhecimento e de se repensar a ação profissional. As propostas de qualificação devem priorizar abordagens contextualizadas às realidades dos profissionais8, além de fortalecê-los para construírem novas estratégias de atuação e as articularem em suas rotinas. Isto poderá repercutir nas atitudes, possibilitando superar a perspectiva de que a única solução é transferir o problema para os serviços especializados, via encaminhamento. Considerando o cenário assistencial obstaculizado, os CRRs, ao proporem ações a partir de contextos idealizados, acabam fazendo com que os profissionais percebam quão problemático é o cenário no qual se inserem, e fiquem desmotivados. Questionam-se dois pontos cruciais: 1) a necessidade de uma descentralização das ementas e conteúdos dos cursos, para que os CRRs possam adequá-los às características específicas de suas localidades e dos profissionais; e 2) a construção de alternativas conjuntas com os profissionais a partir da realidade em que estão inseridos. São necessários direcionamentos aos cursos, não relativizando totalmente os conteúdos indispensáveis para a atuação no âmbito das drogas. Contudo, é imprescindível uma flexibilização das ementas para que não se desconsidere o conhecimento prático dos profissionais e suas realidades. São duas dicotomias: entre a ementa a priori e o estabelecimento de conteúdos a partir da realidade dos alunos; e entre o conhecimento teórico dos professores e o prático dos profissionais. Aproveitar o conhecimento de ambos os lados, estabelecendo relações de aprendizagem horizontais, é fundamental

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para a construção de práticas contextualizadas e impactantes nos serviços. Como apontam Souza e Ronzani8, a reflexão contínua sobre as práticas, proporcionada pela educação permanente, pode propiciar o contato com o desconforto e a disposição para produzir conceitos e alternativas de práticas transformadoras. No contexto dos serviços, observou-se, também, uma centralidade das tomadas de decisões na equipe de saúde e gestão. Sabe-se que o fortalecimento da discussão junto à sociedade é imprescindível para a construção de políticas mais contextualizadas19. Entretanto, as políticas públicas e sua implementação, por meio da gestão e profissionais, acabam por considerar a população como agentes passivos e despreparados para o enfrentamento da questão, e para assumir a posição de protagonistas de suas próprias vidas, o que demanda, do Estado e profissionais, uma função educativa da sociedade20. Ainda, os conhecimentos acadêmicos não podem continuar alienados dos serviços, na contramão do que hoje se espera numa ação formadora, que é produzir e disseminar conhecimentos que se sustentem no processo de trabalho11. Dessa forma, como o CRR poderia contribuir para a quebra desse monopólio entre gestão, academia e profissionais na formulação e implementação das políticas sobre drogas? Será que o CRR poderia, a partir da ampliação de suas ações, estabelecer agendas de diálogo com movimentos sociais, instituições de cuidado e o Estado, colaborando para a aproximação, e não polarização, de tais atores e grupos? Deve-se pensar na articulação das ações de educação permanente e gestão dos serviços como forma de contribuir para mudanças no trabalho por meio das capacitações. Tais fatores auxiliam a qualificar a implementação das ações e possibilitam a construção de estratégias adequadas à realidade social, o que só poderá ser efetivado a partir da interação entre os diferentes atores que compõem este cenário das políticas públicas8. Pensando o processo de educação voltado para a realidade, não é possível abarcar essa realidade sem considerar quem a constitui e é constituído por ela: a sociedade. Por ser um tema atravessado por inúmeros determinantes sociais, faz parte do processo inserir, estimular e propagar análises e intervenções que rumem nesta direção participativa, mesmo tendo clareza de que um curso não será capaz de abranger toda esta discussão. Finalmente, visando facilitar a integração entre ações das políticas nos municípios, envolvendo gestores, profissionais e sociedade, propõe-se a realização frequente de momentos formais de diálogo e troca de experiências. As seguintes ações podem ser operacionalizadas: 1) oficinas abertas e com participação de diferentes atores; 2) promoção de encontros entre associações/serviços; e 3) elaboração de atos compartilhados entre profissionais, grupos sociais e gestão. Tais momentos teriam como funções: promover espaços de trocas de saberes e integrar a rede de atenção aos usuários de drogas e suas famílias, por meio do engajamento e enfrentamento coordenado.

Considerações finais A implantação do presente CRR, a despeito das limitações apresentadas, possibilitou a qualificação de profissionais, gerando conhecimento para abordagens mais integrais e reflexivas da problemática. Os cursos possibilitaram troca de experiências, discussão e programação de ações de prevenção e cuidado em relação ao uso de drogas. Contudo, deve-se questionar se, para o tipo de formação profissional desejada, o modelo de curso conteudista seria o mais adequado. Para isso, é necessário pensar os CRRs para além da prevenção e o cuidado ao usuário de drogas, abertos às demandas profissionais e sociais, e não tão limitados a ementas preestabelecidas verticalmente. O CRR não pode atuar somente como centro de capacitação e transmissão de conhecimentos, mas como centro de referência, o que requer reformulações sobre seu modelo, e uma posição mais bem definida e atuante dentro das políticas sobre drogas, garantindo continuidade nas ações e auxiliando no processo de readequação da rede e reformulação das práticas.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Agradecimentos À Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Referências 1. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Relatório brasileiro sobre drogas. Brasília (DF): SENAD; 2009. 2. Ronzani TM, Mota DCB, Souza ICW. Prevenção do uso de álcool na atenção primária em municípios do estado de Minas Gerais. Rev Saude Publica. 2009; 43(1):51-61. 3. Moretti-Pires RO, Corradi-Webster CM, Furtado EF. Consumo de álcool e atenção primária no interior da Amazônia: sobre a formação de médicos e enfermeiros para assistência integral. Rev Bras Educ Med. 2011; 35(2):219-28. 4. Vargas D, Duarte FAB. Enfermeiros dos centros de atenção psicossocial em álcool e drogas (Caps ad): a formação e a busca pelo conhecimento específico da área. Texto Contexto Enferm. 2011; 20(1):119-26. 5. Kanno NP, Bellodi PL, Tess BH. Profissionais da Estratégia Saúde da Família diante de demandas médico-sociais: dificuldades e estratégias de enfrentamento. Saude Soc. 2012; 21(4):884-94. 6. Tribunal de Contas da União. Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Brasília (DF): TCU; 2012. 7. Observatório Crack, é Possível Vencer [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014 [acesso 20 Set 2014]. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/observatoriocrack/ index.html. 8. Souza ICW, Ronzani TM. Álcool e drogas na atenção primária: avaliando estratégias de capacitação. Psicol Estud. 2012; 17(2):237-46. 9. Fixsen DL, Naoom SF, Blase KA, Friedman RM, Wallace F. Implementation research: a synthesis of the literature. Tampa: University of South Florida, Louis de la Parte Florida Mental Health Institute, The National Implementation Research Network; 2005. 10. Ceccim RB. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface (Botucatu). 2005; 9(16):161-77. 11. Ceccim RB. Educação Permanente em Saúde: descentralização e disseminação de capacidade pedagógica na saúde. Cienc Saude Colet. 2005; 10(4):975-86. 12. Camargo Júnior KR, Campos EMS, Bustamante-Teixeira MT, Mascarenhas MTM, Mauad NM, Franco TB, et al. Avaliação da atenção básica pela ótica politico-institucional e da organização da atenção com ênfase na integralidade. Cad Saude Publica. 2008; 24 Supl 1:58-68. 13. Ceccim RB. Um sentido muito próximo ao que propõe a educação permanente em saúde. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):343-63. 14. Ministério da Saúde. Política de educação e desenvolvimento para o SUS: caminhos para a educação permanente em saúde: polos de educação permanente em saúde. Brasília (DF): MS; 2004.

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15. Coelho HV. Escola de redutores de danos: experiência de formação na perspectiva da Saúde Coletiva. Saude Debate. 2013; 37(n esp):70-81. 16. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010. 17. Barros MA, Pillon SC. Atitudes dos profissionais do Programa Saúde da Família diante do uso e abuso de drogas. Esc Anna Nery. 2007; 11(4):655-62. 18. Moraes M. O modelo de atenção integral à saúde para tratamento de problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas: percepções de usuários, acompanhantes e profissionais. Cienc Saude Colet. 2008; 13(1):121-33. 19. Schneider JF, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB, Camatta MW, Wetzel C. Atendimento a usuários de drogas na perspectiva dos profissionais da estratégia saúde da família. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(3):654-61. 20. Paiva FS, Costa PHA, Ronzani TM. Fortalecendo redes sociais: desafios e possibilidades na prevenção ao uso de drogas na atenção primária à saúde. Aletheia. 2012; 37(1):57-72. 21. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cad Saude Publica. 2009; 25(11):2309-19. 22. Müller AC, Paul CL, Santos NIS. Prevenção às drogas nas escolas: uma experiência pensada a partir dos modelos de atenção em saúde. Estud Psicol. 2008; 25(4):607-16.

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Como alternativa ao panorama deficitário de formação profissional para atuação na área do uso de álcool e outras drogas, e visando à incorporação de mudanças práticas, são criados os Centros Regionais de Referência sobre Drogas (CRRs). Faz-se necessário compreender e refletir sobre o papel dos CRRs nos cenários de formação e atuação sobre a temática. A partir disso, o presente artigo pretende discutir aspectos sobre a capacitação de profissionais do Sistema Único de Saúde e Assistência Social, por meio do relato de experiência de um CRR de Minas Gerais. A implantação do presente CRR possibilitou a qualificação de profissionais em direção a abordagens integrais e reflexivas sobre a temática. Contudo, são necessárias reformulações sobre o seu modelo, com uma posição mais bem definida e atuante dentro das políticas sobre drogas, garantindo continuidade nas ações e auxiliando na reformulação das práticas.

Palavras-chave: Capacitação de recursos humanos em saúde. Educação profissional em saúde pública. Educação continuada. Formação de recursos humanos. Training on alcohol and other drugs for health and social care professionals: report on experience As an alternative to the deficient área of professional education for working on alcohol and other drug use in Brazil, and in order to incorporate changes in practices, Regional Reference Centers for Drugs (CRRs) have been created. Therefore, it is necessary to understand and reflect on the role of CRRs within the scenario of education and action in this field. This paper aimed to discuss aspects of the education process for professionals in the Brazilian Health System and Social Assistance System, through a report on experience from a CRR in the state of Minas Gerais, Brazil. The implementation of this CRR enabled education for professionals towards comprehensive and reflective approaches in this field. However, reformulations of the CRR model are needed, with a better-defined and more active position within drug policies, so a to ensure continuity of actions and aid in reformulation of practices.

Keywords: Human resources training on healthcare. Professional education on public healthcare. Inservice education. Human resources education. Capacitación sobre alcohol y otras drogas para profesionales de la salud y asistencia social: relato de experiencia Como alternativa al panorama deficitario de formación profesional para la actuación en el área del uso de alcohol y de otras drogas y con el objetivo de la incorporación de cambios prácticos, se crearon los Centros Regionales de Referencia sobre Drogas (CRRs). Por lo tanto, resulta necesario comprender y reflexionar sobre el papel de los CRRs en los escenarios de formación y actuación sobre la temática. A partir de esa base, este artículo tiene el objetivo de discutir aspectos sobre la capacitación de profesionales de los Sistemas Únicos de Salud y de Asistencia Social, por medio del relato de experiencia de un CRR del estado de Minas Gerais. La implantación del presente CRR posibilitó la calificación de profesionales en dirección para abordajes integrales y reflexivos sobre la temática. No obstante, son necesarias reformulaciones sobre su modelo, con una posición mejor definida y actuante dentro de las políticas sobre drogas, asegurando continuidad en las acciones y auxiliando en la reformulación de las prácticas.

Palabras clave: Capacitación de recursos humanos en salud. Educación profesional en salud pública. Educación continuada. Formación de recursos humanos. Recebido em 12/08/14. Aprovado em 03/10/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0710

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Apoio matricial em Saúde Mental: tecendo novas formas de relação e intervenção Matrix support in Mental Health: constructing new ways of relation and intervention Apoyo matricial en Salud Mental: tejiendo nuevas formas de relación y intervención

A pesquisa teve por objetivo geral investigar o processo de trabalho de apoio matricial em Saúde Mental na Atenção Primária, levando em conta as diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Reforma Psiquiátrica, com vistas à identificação das diretrizes, princípios profissionais e valores que permeiam o processo. O delineamento do estudo é qualitativo, e foi realizado com profissionais especialistas em saúde mental e generalistas da Estratégia Saúde da Família de Gravataí/RS, Brasil. Os instrumentos utilizados foram entrevistas semiestruturadas e grupos focais. Os resultados evidenciam que o trabalho sustenta-se: no trabalho relacional em ato, mediante as relações personalizadas instituídas entre apoiadores e generalistas; nos recursos imateriais; e na ampliação da clínica. Dois outros paradigmas foram identificados, o psicossocial e o de produção de vida. A sistematicidade dos encontros, o viés de saúde pública dos especialistas, a identificação com o trabalho, a descentralização como um ideal de vida foram identificados como elementos que subsidiam o trabalho. Um achado, que encontra ressonância na literatura internacional, é a existência de liderança em saúde mental, reconhecida pelos pares e profissionais da APS, que mobiliza pessoas e intermedeia as relações com os demais serviços da rede. A complexidade decorre em razão dos diferentes desejos, interesses e forças dos distintos agentes envolvidos, e remete às questões de ordem estrutural, organizacional e de

gestão. Estes podem atuar como obstáculos ao processo. Dentre os fatores facilitadores, estão: as relações personalizadas entre os profissionais; a disponibilidade; o comprometimento; a comunicação fluida e dialógica; e a corresponsabilização. Os princípios profissionais que subjazem às práticas organizam-se em torno do desejo de trabalhar na comunidade; não centralizar funções; conhecer a rede; ter habilidades de escuta; e de construir consensos. Os valores presentes nas relações e interações pautam-se: no acolhimento; nas relações de cuidado intra e interequipes e com os usuários; na humildade; na generosidade de partilhar o saber; e no comprometimento. Com relação aos profissionais da APS, o aporte de conhecimentos e a retaguarda assistencial contribuem para a abordagem conjunta e resolução de casos, que, anteriormente, eram referenciados a serviços especializados. Evidencia-se que esta metodologia qualifica as intervenções em saúde mental, mediante a troca de experiências e saberes, colaborando para a integralidade da atenção. O vínculo com o apoiador, a comunicação, a estrutura das equipes de Saúde da Família, a sistematicidade dos encontros, a longitudinalidade e a corresponsabilização foram apontadas como fatores facilitadores. Um obstáculo ao trabalho diz respeito à imposição de barreiras de acesso ao Centro de Atenção Psicossocial, após a instituição do Apoio Matricial. Os resultados dos dois grupos investigados evidenciam que o enfoque COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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não é sobre o processo propriamente dito, mas, primordialmente, sobre as pessoas envolvidas nele. Os dados permitem inferir que a qualidade das relações, as caraterísticas dos profissionais, os princípios e valores profissionais e pessoais envolvidos sustentam uma prática com contornos singulares. Alice Hirdes Tese (Doutorado), 2014 Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre alicehirdes@gmail.com

Palavras-chave: Saúde Mental. Atenção Primária à Saúde. Assistência Integral à Saúde. Gestão em Saúde. Estratégias locais. Keywords: Mental Health. Primary Health Care. Comprehensive Health Care. Health management. Local strategies. Palabras clave: Salud Mental. Atención Primaria de Salud. Atención Integral de Salud. Gestión en Salud. Estrategias locales. Texto na íntegra disponível em: http://verum.pucrs.br/ppgpsico

Recebido em 25/08/14. Aprovado em 16/11/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0180

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Encontro Arte, Saúde e Cultura: compartilhando saberes e experiências em interface Isabel Cristina Lopes(a) Isabela Umbuzeiro Valent(b) Renata Monteiro Buelau(c)

Introdução

Psicóloga e sanitarista, supervisora de políticas públicas intersetoriais de saúde, saúde mental, cultura e meio ambiente. Idealizadora do programa municipal Centros de Convivência e Cooperativa de São Paulo; Coordenadora Geral, Projeto Cidadãos Cantantes. Rua Maestro Callia, 84, apto 61E, Vila Mariana. São Paulo, SP, Brasil. 04012-1000. cris.lopes24@terra. com.br (b) Coordenação, Núcleo de Cultura do Centro de Convivência É de Lei; Integrante do GT Arte, Saúde e Cultura. São Paulo, SP, Brasil. isabelavalent@usp.br (c) Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; integrante do GT Arte, Saúde e Cultura. São Paulo, SP, Brasil. renatabuelau@usp.br (a)

No dia 1º de dezembro de 2014, na Praça das Artes, no centro de São Paulo, aconteceu o I Encontro Arte, Saúde e Cultura: construindo uma política municipal de interface. O Encontro foi organizado pelo Grupo de Trabalho Arte, Saúde e Cultura, constituído por representantes: das Secretarias de Saúde e Cultura do Município de São Paulo, da sociedade civil organizada, de trabalhadores da rede de saúde e cultura, e da comunidade acadêmica. O evento contou com a presença do então Secretário Municipal da Cultura, Juca Ferreira, e do Secretário Adjunto da Secretaria Municipal da Saúde, Paulo Puccini, além do ator Sergio Mamberti, histórico militante dos direitos culturais no Brasil. Diversos grupos e trabalhadores da rede de saúde e cultura de São Paulo construíram um painel múltiplo e heterogêneo, expressão da riqueza de ações nesta interface na cidade. A metodologia do Encontro priorizou espaços de troca e debate, organizados em quatro estações nas quais os participantes puderam transitar construindo livremente sua forma de contribuição. Os temas trabalhados visavam abranger a complexidade de um diálogo transdisciplinar que se fortalece nas composições de diferentes saberes e experiências: 1. os territórios da arte, cultura e saúde; 2. diversidade e grupos heterogêneos; 3. financiamento, fomentos, editais e legislação; 4. formação, matriciamento e participação popular. A partir das estações, o encontro produziu um material a ser sistematizado e coletivizado entre os diversos realizadores de saúde e cultura da cidade, de forma a criar subsídios para a realização da I Conferência Municipal de Arte, Saúde e Cultura.

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criação

Intervenção fotográfica urbana “É de dentro e de fora”, realizada pelo Ponto de Cultura É de Lei que se apresentou no Evento.

Caixa de Poemas. instalação da Oficina de Escrita e Imagem do Hospital do Servidor Público Municipal

A riqueza das trocas que tiveram lugar neste encontro evidenciou a importância de registrar e divulgar seu acontecimento para um público mais amplo. Daí a iniciativa de publicarmos a fala de abertura do evento, proferida por Isabel Cristina Lopes em nome do GT Arte, Saúde e Cultura, conforme segue, juntamente com fotos de Renata Buelau e Isabela Valent que pudessem dar visibilidade a algumas das performances e participações. 408

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notas breves Eliana Bolanho com a intervenção artística Canto a Canto

Fala de Abertura do “I Encontro Arte, Saúde, Cultura: construindo uma política municipal de Interface”, por Isabel Cristina Lopes “Há uma memória política que alimenta e enraíza nosso propósito aqui hoje. Foi no final da década de 1980, no então Governo de Luiza Erundina, com Marilena Chauí e Carlos Neder à frente das Secretarias de Cultura e Saúde, respectivamente, que ocorreu a primeira iniciativa desta amálgama entre saúde e cultura, através do surgimento dos Centros de Convivência e Cooperativas (CECCO) em nossa Cidade. Os CECCOs, localizados em espaços públicos facilitadores de encontros, como os Parques Municipais, têm por premissa a promoção e o desenvolvimento do potencial criativo e ativo, sobretudo de pessoas em situação de vulnerabilidade social e/ou de saúde. Em agrupamentos heterogêneos que ali se constituem pela tarefa da arte, da artesania e do esporte, busca-se, acima de tudo, a fruição, a ampliação de laços afetivos e de pertencimento. Os encontros dali decorrentes caracterizam-se por uma força transformadora que promove novas formas de se fazer política pública, religando saberes. Todos os envolvidos descobrem saberes e potências: trabalhadores da saúde sabidos para além de suas especificidades, fazedores de arte e esporte sabidos de mundos internos e novos territórios humanos, e também sabido o povo frequentador destes espaços que se descobre desejante. Na época de seu surgimento, artistas, artesãos, educadores físicos e mestres de práticas orientais trabalhavam em conjunto com assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e outros, criando um novo ofício que ia além da prática assistencial. Um ofício da ordem da provocação criativa e ativa de sujeitos que despontavam para a criação, para a descoberta de um corpo de dores e amores, para a produção de bens e de subjetividades.

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Uma nova conjugação entre saúde e cultura aconteceu em 2003, por iniciativa do poder legislativo, de autoria do parlamentar Nabil Bonduki, com o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), numa tentativa de consolidação de uma Política de Cidadania Cultural na cidade. Anos depois, em 2006, na extinta Secretaria de Participação e Parcerias, o Secretário José Pólice Neto, cria o programa Ofício Social, que, entre outras ações formadoras, contratou artistas, esportistas, mestres da cultura popular para os serviços de saúde municipais, que poderiam, assim, se ocupar desses encontros de saberes promotores de emancipação e saúde. Nesta genealogia reavivada, a composição do Grupo de Trabalho inaugura, aqui, com ineditismo, a possibilidade de diferentes atores sociais – Secretarias Municipais de Cultura e Saúde, comunidade científica (por meio do Laboratório de Estudos e Pesquisa da Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da FMUSP), trabalhadores e gestores da rede de saúde e de cultura, organizações não governamentais (Ponto de Cultura É de Lei) e a sociedade civil organizada (Projeto Cidadãos Cantantes, Rede dos Fazedores de Arte) – inscreverem, com outros representantes desses segmentos, seu compromisso e, acima de tudo, seu desejo de estabelecer uma verdadeira Política Pública de interface: robusta, enraizada e de corresponsabilização de todos na construção de um bem comum.

Apresentação do Coral do Gabinete da Secretaria Municipal de Saúde

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A receptividade dos dois Secretários Municipais presentes nos impulsiona a construir uma carta de intenções que referende estratégias de multiplicação dessa discussão nos territórios da cidade, e, deste modo, crie as condições para a realização da I Conferência Municipal de Arte, Saúde e Cultura, que terá como meta indicar compromissos intersetoriais e diretrizes para o poder público neste campo.

Apresentação das ações culturais do Programa De braços abertos

Apresentação do grupo Mosaico Convivência Musical do CECCO Bacuri

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Nossas fontes jorram fartas, desde as políticas de valorização de um protagonismo cigano, quilombola, indígena, feminino, voltado a novas economias afetivas e solidárias, até as experiências de mais de três décadas da Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA) – que é escola, mas está na Secretaria de Cultura, que é da Cultura mas habita um Parque Municipal. Esta escola atende a infância de toda a cidade; infância de todas as cores, credos, filiações e condições mais amplas ou mais estreitas de se ir pelo mundo. As diversas linguagens que lá se experimenta, por vezes ao mesmo tempo – música, dança, teatro, artes visuais – promovem, nesses pequenos cidadãos e em suas famílias, improváveis diálogos instauradores de harmonia e novas sonoridades. Será isso prenúncio de saúde? Outras experiências que trabalham com população de rua e a redução de danos no uso de drogas, constroem roteiros e histórias na linguagem cinematográfica. No Ponto de Cultura É de Lei, sujeitos ressignificam trajetos e afirmam: a arte existe para que a verdade não nos destrua. Mas a emoção só não se completa no gozo necessário e de direito, pelo ainda frágil lugar que o artista, o fazedor cultural, ocupa. É preciso que este personagem, que não é onírico, que vive do ofício de nos ajudar a sonhar e de nos reconhecermos mais saudáveis e menos doentes, mais amantes do caos que dá a luz a uma estrela dançante – como diz o filósofo Nietzsche – tenha um lugar garantido e reconhecido nas políticas desta interface. Para avançarmos em encontros da diversidade arte, saúde e cultura, carecemos de esteio: desde a formação com apoio da comunidade popular e da comunidade científica, a garantia de valorização dos profissionais, até, e sobretudo, as políticas de financiamento, fomentos que incentivem verdadeiramente a inauguração de um novo modo de fazer que qualifique o SUS, a cultura viva em seu campo simbólico, existencial e material.

Apresentação do Coral Cênico Cidadãos Cantantes

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Nossa maior tarefa, hoje, é a de provocarmos encontros. Encontros da diversidade, das inúmeras tribos que habitam nossa cidade, que habitam nosso inconsciente coletivo, que habitam nosso imaginário popular e, por vezes, nos assustam em sua diferença, afastando a possibilidade de encontros criativos. A produção de homogeneidade, por um lado, protege as relações de surpresas e desconfortos diante do desconhecido, mas, por outro, subtrai da vida a chance de Alice, a chance de se perder e se achar inusitadamente, a chance do encontro com o chapeleiro lucidamente maluco, com o coelho senhor de um tempo que nos escapa, da rainha de copas que tem morada cativa em cada um de nós; subtrai de cada um essa maravilhosa chance de poetizar a vida, de reivindicar a vida, de se colocar impacientemente diante da vida.

Apresentação da Oficina de Dança e Expressão Corporal do Projeto Cidadãos Cantantes

Temos fome de novos paradigmas para o bem viver, para o bem encontrar, para o bem sonhar, para o bem fazer. Se são as interfaces de um fazer coletivo, fraterno e auspicioso, não o sabemos, mas o intuímos, o desejamos, pois a fragmentação, a dor, o isolamento, a abstinência, seja ela qual for, desumanizam e impedem o canto universal: o choro de quem nasce, o choro que vibra em diversas tessituras absolutamente compreensíveis do oriente ao ocidente, entre palestinos e israelenses, chineses e americanos, russos e ucranianos, africanos e europeus, aborígenes, indígenas, indianos, tibetanos, japoneses ou iranianos, venezuelanos ou chilenos, argentinos, brasileiros: nordestinos ou paulistanos. Todos somos filhos de Deus, como revela a poesia de André Abujamra, e falamos a mesma língua!! COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Integrantes do GT Arte, Saúde e Cultura

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notas breves

Colaboradores Isabel Cristina Lopes escreveu e proferiu a fala de abertura do I Encontro Arte, Saúde e Cultura: construindo uma política municipal de interface. Isabela Valent e Renata Buelau realizaram o registro fotográfico. As três participaram da organização do evento e trabalharam juntas na produção deste texto.

Esta composição visa registrar e divulgar o I Encontro Arte, Saúde e Cultura: construindo uma política pública de interface, por meio da publicação da fala de abertura, juntamente com fotos que apresentam alguns recortes das participações e apresentações que ocorreram ao longo deste acontecimento. O Encontro foi organizado pelo Grupo de Trabalho Arte, Saúde e Cultura, constituído por: representantes das Secretarias de Saúde e Cultura do Município de São Paulo, trabalhadores da rede de saúde e cultura, sociedade civil organizada e comunidade acadêmica.

Palavras-chave: Políticas Públicas. Cultura. Saúde. Arte. Interface.

Meeting Art, Health and Culture: sharing knowledge and experiences in interface This paper presents a composition between text and images that aims to record and publicize the I Encontro Arte, Saúde e Cultura: construindo uma política pública de interface (I Meeting Art, Culture and Health: building an interface public policy), through the opening speech, along with pictures that show some clippings of participations and presentations that took place during the event. The Meeting was organized by the Working Group Art, Culture and Health, consisting of representatives of the Departments of Health and Culture of the Municipality of São Paulo, workers of the network of health and culture, civil society and academia.

Keywords: Public Policies. Culture. Health. Arts. Interface.

Encuentro Arte, Salud y Cultura: compartindo saberes y experiencias de interfaz Esta composición tiene como objetivos registrar y divulgar lo I Encuentro Arte, Salud y Cultura: construyendo una política pública de interfaz, a través de la publicación del discurso de apertura, juntamente con las fotos mostrando algunos de los recortes de las participaciones e presentaciones que han ocurrido a lo largo de este acontecimiento. El Encuentro fue organizado por el Grupo de Trabajo Arte, Salud y Cultura, hecho por representantes de las Secretarias de Salud y Cultura de la ciudad de São Paulo, trabajadores da la red de salud y cultura, la sociedad civil organizada y la comunidad académica.

Palabras clave: Política Pública. Cultura. Salud. Arte. Interfaz.

Recebido em 02/03/15. Aprovado em 10/03/15.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2015; 19(53):407-16

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INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo. A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo sistema Scholar One Manuscripts. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo) Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada ao atendimento às normas descritas abaixo. Forma e preparação de manuscritos SEÇÕES Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até seis mil palavras). Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas de interesse para a revista (até seis mil palavras). Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista, cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até mil palavras; réplica: até mil palavras.). Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de experiência ou informações relevantes veiculadas em meio eletrônico (até cinco mil palavras). Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de abrangência da revista (até seis mil palavras). Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras). Criação - textos de reflexão sobre temas de interesse para a revista, em interface com os campos das Artes e da Cultura, que utilizem em sua apresentação formal recursos iconográficos, poéticos, literários, musicais, audiovisuais etc., de forma a fortalecer e dar consistência à discussão proposta. Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos, projetos inovadores (até duas mil palavras). Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil palavras). Nota: na contagem de palavras do texto, incluem-se quadros e excluem-se título, resumo e palavras-chave. ENVIO DE MANUSCRITOS SUBMISSÃO DE manuscritos Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita colaborações em português, espanhol e inglês para todas as seções. Apenas trabalhos inéditos e submetidos somente a este periódico serão encaminhados para avaliação. Não serão aceitas para submissão traduções de textos publicados em outra língua. A submissão deve ser acompanhada de uma autorização para publicação assinada por todos os autores do manuscrito. O modelo do documento estará disponível para upload no sistema.

Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado no sistema. Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado, clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão. Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial 12, respeitando o número máximo de palavras definido por seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática (com exceção das seções Livros, Notas breves e Cartas). Da primeira página devem constar (em português, espanhol e inglês): título (até 20 palavras), resumo (até 140 palavras) e no máximo cinco palavras-chave. Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título e palavras-chave. Notas de rodapé: identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Nota importante: ao fazer a submissão, o autor deverá explicitar se o texto é inédito, se foi financiado, se é resultado de dissertação de mestrado ou tese de doutorado, se há conflitos de interesse e, em caso de pesquisa com seres humanos, se foi aprovada por Comitê de Ética da área, indicando o número do processo e a instituição. Em texto com dois autores ou mais também devem ser especificadas as responsabilidades individuais de todos os autores na preparação do mesmo. O autor também deverá responder à seguinte pergunta: No que seu texto acrescenta em relação ao já publicado na literatura nacional e internacional? O autor pode indicar dois ou três avaliadores (do país ou exterior) que possam atuar no julgamento de seu trabalho. Se houver necessidade informe sobre pesquisadores com os quais possa haver conflitos de interesse com seu artigo. CITAÇÕES E REFERÊNCIAS Interface adota as normas Vancouver como estilo para as citações e referências de seus manuscritos. CITAÇÕES NO TEXTO As citações devem ser numeradas de forma consecutiva, de acordo com a ordem em que forem sendo apresentadas no texto. Devem ser identificadas por números arábicos sobrescritos. Exemplo: Segundo Teixeira1,4,10-15 Nota importante: as notas de rodapé passam a ser identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Casos específicos de citação: a) Referência de mais de dois autores: no corpo do texto deve ser citado apenas o nome do primeiro autor seguido da expressão et al. b) Citação literal: deve ser inserida no parágrafo entre aspas. No caso da citação vir com aspas no texto original, substituí-las pelo apóstrofo ou aspas simples.

instruções aos autores

Projeto e política editorial


instruções aos autores

Exemplo: “Os ‘Requisitos Uniformes’ (estilo Vancouver) baseiam-se, em grande parte, nas normas de estilo da American National Standards Institute (ANSI) adaptado pela NLM.”1 c) Citação literal de mais de três linhas: em parágrafo destacado do texto (um enter antes e um depois), com recuo à esquerda. Observação: Para indicar fragmento de citação utilizar colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...] quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. Exemplo: Esta reunião que se expandiu e evoluiu para Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (International Committee of Medical Journal Editors ICMJE), estabelecendo os Requisitos Uniformes para Manuscritos Apresentados a Periódicos Biomédicos – Estilo Vancouver 2. REFERÊNCIAS Todos os autores citados no texto devem constar das referências listadas ao final do manuscrito, em ordem numérica, seguindo as normas gerais do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) – http://www.icmje.org. Os nomes das revistas devem ser abreviados de acordo com o estilo usado no Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). As referências são alinhadas somente à margem esquerda e de forma a se identificar o documento, em espaço simples e separadas entre si por espaço duplo. A pontuação segue os padrões internacionais e deve ser uniforme para todas as referências. EXEMPLOS: LIVRO Autor(es) do livro. Título do livro. Edição (número da edição). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Exemplo: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Sem indicação do número de páginas. Nota: Autor é uma entidade: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. Séries e coleções: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1). *

CAPÍTULO DE LIVRO Autor(es) do capítulo. Título do capítulo. In: nome(s) do(s) autor(es) ou editor(es). Título do livro. Edição (número). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. página inicial-final do capítulo Nota: Autor do livro igual ao autor do capítulo: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28.

Autor do livro diferente do autor do capítulo: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do capítulo. *

ARTIGO EM PERIÓDICO Autor(es) do artigo. Título do artigo. Título do periódico abreviado. Ano de publicação; volume (número/ suplemento):página inicial-final do artigo. Exemplos: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al. se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do artigo. *

DISSERTAÇÃO E TESE Autor. Título do trabalho [tipo]. Cidade (Estado): Instituição onde foi apresentada; ano de defesa do trabalho. Exemplos: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertação]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010. TRABALHO EM EVENTO CIENTÍFICO Autor(es) do trabalho. Título do trabalho apresentado. In: editor(es) responsáveis pelo evento (se houver). Título do evento: Proceedings ou Anais do ... título do evento; data do evento; cidade e país do evento. Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Página inicial-final. Exemplo: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brasil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [acesso 2013 Out 30]. Disponível em: www.google.com.br Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar a data de acesso (dia Mês abreviado e ano) e o endereço eletrônico: Disponível em: http://www......

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Sem paginação: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [cited 2002 Aug 12]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/Wawatch. htmArticle

Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990.

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Segue os padrões recomendados pela NBR 6023 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT - 2002), com o padrão gráfico adaptado para o Estilo Vancouver.

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RESENHA Autor (es). Cidade: Editora, ano. Resenha de: Autor (es). Título do trabalho. Periódico. Ano; v(n):página inicial e final. Exemplo: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTIGO EM JORNAL Autor do artigo. Título do artigo. Nome do jornal. Data; Seção: página (coluna). Exemplo: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. CARTA AO EDITOR Autor [cartas]. Periódico (Cidade).ano; v(n.):página inicialfinal. Exemplo: Bagrichevsky M, Estevão A. [cartas]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. ENTREVISTA PUBLICADA Quando a entrevista consiste em perguntas e respostas, a entrada é sempre pelo entrevistado. Exemplo: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista a Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. Quando o entrevistador transcreve a entrevista, a entrada é sempre pelo entrevistador. Exemplo: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista de Yrjö Engeström]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. DOCUMENTO ELETRÔNICO Autor(es). Título [Internet]. Cidade de publicação: Editora; data da publicação [data de acesso com a expressão “acesso em”]. Endereço do site com a expressão “Disponível em:” Com paginação: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [acesso em 20 Jun 1999]; 40. Disponível em: http://www.probe.br/science.html.

Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos (URL) citados no texto ainda estão ativos. Nota: Se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre). Outros exemplos podem ser encontrados em http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html ILUSTRAÇÕES Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou jpeg, com resolução mínima de 300 dpi, tamanho máximo 16 x 20 cm, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel draw). Nota: No caso de textos enviados para a seção de Criação, as imagens devem ser escaneadas em resolução mínima de 300 dpi e enviadas em jpeg ou tiff, tamanho mínimo de 9 x 12 cm e máximo de 18 x 21 cm. As submissões devem ser realizadas online no endereço: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS Todo texto enviado para publicação será submetido a uma triagem e pré-avaliação inicial, que inclui a identificação de pendências na documentação e sistema de busca por plágio. Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial (editores e editores de área). Os textos são de responsabilidade dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista do Corpo Editorial da revista. Todo o conteúdo do trabalho aceito para publicação, exceto quando identificado, está licenciado sobre uma licença Creative Commons, tipo DY-NC. É permitida a reprodução parcial e/ou total do texto apenas para uso não comercial, desde que citada a fonte. Mais detalhes, consultar o link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/ Interface - Comunicação, Saúde, Educação segue os princípios da ética na publicação contidos no código de conduta do Committee on Publication Ethics (link: COPE).

instructions for authors

DOCUMENTO LEGAL Título da lei (ou projeto, ou código...), dados da publicação (cidade e data da publicação). Exemplos: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.


instructions for authors

Project and editorial policy INTERFACE - Communication, Health, Education publishes original analytical articles or essays, critical reviews and notes on research (unpublished texts); it also edits debates and interviews, in addition to publishing the abstracts of dissertations and theses, notes on events and subjects of interest. The editors reserve themselves the right to make changes and/or cuts in the material submitted to the journal, in order to adjust it to its standards, maintaining the style and content. The manuscript submission is online, by the Scholar One Manuscripts system. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo) All papers submitted to Interface have to follow the instructions described below. Form and preparation of manuscripts SECTIONS Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of the editors, resulting from original study and research (up to six thousand words). Articles - analytical texts or reviews resulting from original theoretical or field research on themes that are of interest to the journal (up to six thousand words). Debates - a set of texts on current and/or polemic themes proposed by the editors or by collaborators and debated by specialists, who expound their points of view. The editors are responsible for editing the final texts (original text: up to six thousand words; debate texts: up to one thousand words; reply: up to one thousand words). Open page - preliminary research notes, polemic and/or current issues texts, description of experiences, or relevant information aired in the electronic media (up to five thousand words). Interviews - testimonies of people whose life stories or professional achievements are relevant to the journal’s scope (up to six thousand words). Books - publications released in Brazil or abroad, in the form of critical reviews, comments, or an organized collage of fragments of the book (up to three thousand words). Creation - Texts reflecting on topics of interest for the journal, at the interface with the fields of arts and culture, which in their presentation use formal iconographic, poetic, literary, musical or audiovisual resources, etc., so as to strengthen and give consistency to the discussion proposed. Brief notes - comments on events, meetings and innovative research and projects (up to two thousand words). Letters - comments on the journal and notes or opinions on subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Note: In case of counting the text words, the tables with text are included and the title, the abstract and the keywords are excluded. SUBMITING ORIGINALS Interface - Communication, Health, Education accepts material in Portuguese, Spanish and English for any of its sections. Only unpublished papers and submitted only to this journal will be accepted for evaluation. Translations of

texts published in another language will not be accepted. Submissions must be accompanied by an authorization for publication signed by all authors of the manuscript. The model for this document will be available for upload in the system. Note: You must do the system registration in order to submit your manuscript. Go to the link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo and follow the instructions. When you have finished the registration, click “Author Center” and begin the submission process. The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, respecting the maximum number of words defined per section of the Journal. All originals submitted for publication must have an abstract and keywords relating to the topic (with the exception of Books, Brief notes and Letters). The first page of the text must contain (in Portuguese, Spanish and English): the article’s full title (up to 20 words), the abstract (up to 140 words) and up to five keywords. Note: In case of counting the abstract’s words, the title and the keywords are excluded. Footnotes: These should be identified using lower-case superscript letters, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary. NOTE: during the submission process the author needs to indicate whether the text is unpublished, whether it was the result of a grant, whether it results from a master’s thesis or doctoral dissertation, whether there are any conflicts of interest involved and, in case of research with humans, whether it was approved by an Ethics Committee in its field, specifying the process number. In articles with two authors or more, the individual contributions to the preparation of the text must be specified. The author also must answer the following question: What your text adds to what has already been published in the national and international literature? Please indicate two or three referees (from Brazil or abroad) who can evaluate your manuscript. If you consider necessary, inform about researchers with whom there may be conflicts of interest concerning your paper. CITATIONS AND REFERENCES The journal Interface adapts the Vancouver standard as the style to use for citations and references in manuscripts submitted. CITATIONS IN THE TEXT Citations should be numbered consecutively, according to the order in which they are presented in the text. They should be identified using Arabic numerals as superscripts. Example: According to Teixeira1,4,10-15 Important note: Footnotes will now be identified by means of lower-case letters, as superscripts, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary.


Specific cases of citations: a) Reference with more than two authors: in the body of the text, only the name of the first author should be cited, followed by the expression “et al.” b) Literal citations: These should be inserted in the paragraph between quotation marks (“xx”). If the citation already came in quotation marks in the original text, replace them with single quotation marks (‘xx’). Example: “The ‘Uniform Requirements’ (Vancouver style) are largely based on the style standards of the American National 1 Standards Institute (ANSI), adapted by the NLM.” c) Literal citation of more than three lines: in a paragraph inset from the text (with a one-line space before and after it), with a 4 cm indentation on the left side. Note: To indicate fragmentation of the citation use square brackets: [...] we found some flaws in the system [...] when we reread the manuscript, but nothing could be done [...]. Example: This meeting has expanded and evolved into the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), and has established the Uniform Requirements for Manuscripts Presented to Biomedical Journals: the Vancouver Style2. REFERENCES All the authors cited in the text should appear among the references listed at the end of the manuscript, in numerical order, following the general standards of the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) (http://www.icmje.org). The names of the journals should be abbreviated in accordance with the style used in Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). The references should be aligned only with the left margin and, so as to identify the document, with single spacing and separated from each other by a double space. The punctuation should follow the international standards and should be uniform for all the references. EXAMPLES: BOOK Author(s) of the book. Title of the book. Edition (number of the edition). City of publication: Publishing house; Year of publication. Example: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** Without indicating the number of pages. Note: If the author is an entity: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. In the case of series and collections: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1). *

BOOK CHAPTER Author(s) of the chapter. Title of the chapter. In: name(s) of the author(s) or editor(s). Title of the book. Edition (number). City of publication: Publishing house; Year of publication. First-last page of the chapter. Note: If the author of the book is the same as the author of the chapter: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28. If the author of the book is different from the author of the chapter: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the chapter, at the end of the reference. *

ARTICLE IN JOURNAL Author(s) of the article. Title of the article. Abbreviated title of the journal. Date of publication; volume (number/ supplement): first-last page of the article. Examples: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the article, at the end of the reference. *

DISSERTATION AND THESIS Author. Title of study [type]. City (State): Institution where it was presented; year when study was defended. Examples: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [thesis]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertation]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010. STUDY PRESENTED AT SCIENTIFIC EVENT Author(s) of the study. Title of the study presented. In: editor(s) responsible for the event (if applicable). Title of the event: Proceedings or Annals of ... title of the event; date of the event; city and country of the event. City of publication:


Publishing house; Year of publication. First-last page. Example: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brazil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [accessed Oct 30, 2013]. Available from: www.google.com.br * When the study has been consulted online, mention the data of access (abbreviated month and day followed by comma, year) and the electronic address: Available from: http://www...... LEGAL DOCUMENT Title of the law (or bill of law, or code...), publication data (city and date of publication). Examples: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.

Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. ELECTRONIC DOCUMENT Author(s). Title [Internet]. City of publication: Publishing house; date of publication [date of access with the expression “accessed”]. Address of the website with the expression “Available from:” With page numbering: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [accessed Jun 20, 1999]; 40. Available from: http://www.probe.br/science.html Without page numbering: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [accessed Aug 12, 2002]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/ Wawatch.htmArticle The authors should check whether the electronic addresses (URLs) cited in the text are still active.

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Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990. This follows the standards recommended in NBR 6023 of the Brazilian Technical Standards Association (Associação Brasileira de Normas Técnicas, ABNT, 2002), with its graphical standard adapted to the Vancouver Style.

Note: If the reference includes the DOI, this should be maintained. Only in this case (when the citation was taken from SciELO, the DOI always comes with it; in other cases, not always).

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REVIEW Author(s). Place: Publishing house, year. Review of: Author(s). Title of the study. Journal. Year; v(n):first-last page. Example: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTICLE IN NEWSPAPER Author of the article. Title of the article. Name of the newspaper. Date; Section: page (column). Example: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. LETTER TO EDITOR Author [letters]. Journal (City). Year; v(n.):first-last page. Example: Bagrichevsky M, Estevão A. [letters]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. PUBLISHED INTERVIEW When the interview consists of questions and answers, the entry is always according to the interviewee. Example: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview conducted by Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. When the interviewer transcribes the interview, the entry is always according to the interviewer. Example: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview with Yrjö Engeström].

Other examples can be found at http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html Illustrations: Images, figures and drawings must be created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 300 dpi. Maximum size: 16 x 20 cm, with captions and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as Word files. Other kinds of graphs must be created in image programs (corel draw or photoshop). Note: In the case of texts sent to the Creation section, images should be scanned at a minimum resolution of 300 dpi and be sent in jpeg or tiff format, with a minimum size of 9 x 12 cm and maximum of 18 x 21 cm. Submissions must be made online at: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS Every text will will be submited to a preliminary evaluation by the Editorial Board, that includes the identification of shortcomings in the documentation and search system for plagiarism. In case the reviewers have divergent opinions, the paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The final decision about the merit of the work is the responsibility of the Editorial Board (editors and area editors). The texts are the responsibility of the authors and do not necessarily reflect the point of view of the publishers. All content in the approved paper, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution, type BY-NC. Reproduction only for non-commercial uses is permitted if the source is mentioned. See details in: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/ Interface - Communication, Health, Education follows the principles of ethics in the publication contained in the Committee on Publication Ethics code conduct (link: COPE).


CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Alain Ehrenberg, Université Paris Descartes, France Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica Uruguaia, Uruguai Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma Metropolitana, México César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia, Colômbia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Elisabeth Meloni Vieira, USP Eunice Nakamura, Unicef Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz George Dantas de Azevedo, UFRN Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Gustavo Nunes de Oliveira, UnB Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, UFCE Jairnilson da Silva Paim, UFBa Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile José Carlos Libâneo, UCG José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Miguel Rasia, UFPr José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP José Roque Junges, Unisinos Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Lígia Amparo da Silva Santos, UFBa Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Unifesp Lydia Feito Grande, Universidad Complutense de Madrid, Espanha

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Luciana Kind do Nascimento, PUCMG Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Magda Dimenstein, UFRN Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa Márcia Thereza Couto Falcão, USP Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima Marcus Vinicius Machado de Almeida, UFRJ Margareth Aparecida Santini de Almeida, Unesp Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica Portuguesa, Portugal Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS, Argentina Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad Autónoma Metropolitana, México Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Inês Baptistella Nemes, USP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Maricela Perera Pérez, Universidad de la Habana, Cuba Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz Miguel Montagner, UnB Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb Mónica Petracci, UBA, Argentina Nildo Alves Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de México, México Roberto Passos Nogueira, IPEA Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha Rosamaria Giatti Carneiro, UnB Rosana Teresa Onocko Campos, Unicamp Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Simone Mainieri Paulon, UFRGS Soraya Fleischer, UnB Stela Nazareth Meneghel, UFRGS Túlio Batista Franco, UFF



APOIO/SPONSOR/APOYO Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Instituto de Biociências de Botucatu/Unesp Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EN

. Bibliografia Brasileira de Educação <http://www.inep.gov.br>

. CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales

y Humanidades <http://www.dgbiblio.unam.mx> . CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT <http://ccn.ibict.br> . DOAJ - Directory of Open Access Journal <http://www.doaj.org> . EBSCO Publishing’s Electronic Databases <http://www.ebscohost.com> . EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare> . Google Academic - <http://scholar.google.com.br> . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - <http://www.latindex.unam.mx> . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - <http://www.bireme.org> . Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA <http://www.csa.com.br> . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/> . SciELO Brasil/SciELO Social Sciences <http://www.scielo.br/icse> <http://socialsciences.scielo.org/icse> . SciELO Citation Index (Thomson Reuters) <http://thomsonreuters.com/scielo-citationindex/> . SciELO Saúde Pública <www.scielosp.org.br> . Social Planning/Policy & Development Abstracts <http://www.cabi.org> . Scopus - <http://info.scopus.com> . SocINDEX - <http://www.ebscohost.com/ biomedical-libraries/socindex> . CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com> . CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com> TEXTO COMPLETO EM . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

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