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INTERFACE Superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços, duas espécies, duas ordens de realidade diferentes Pierre Lévy

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ISSN 1414-3283

UNESP

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editorial

Interface - Comunicação, Saúde, Educação encerra 2010 completando, com esta edição, seu 35º número. Final de um ano e início de novo, é sempre momento propício para um balanço das atividades, compartilhando com leitores e colaboradores nossas conquistas e novos desafios. É notório em todo o campo da Saúde Coletiva - o que também se reflete não apenas em nosso periódico, mas em diversos outros - o crescimento dos programas de pós-graduação, das pesquisas e, consequentemente, da demanda por publicação. Encerraremos o ano com cerca de setecentas submissões, quando há quatro anos, em 2006, estávamos com 195. Para esse enorme incremento muito contribuiu a maior agilidade oferecida, desde fevereiro de 2008, pelas submissões realizadas on-line, mediante sistema desenvolvido pela Biblioteca Virtual Scielo (Scielo Submission), com o que, também, modernizamos todo o processo de publicação, aprimorando igualmente o trabalho da equipe da revista. Não obstante, foi na esfera comunicacional a mais relevante conquista nessa direção, tal como autores, avaliadores e editores de seção devem ter sentido no andamento cotidiano dos processos: uma forma não só rápida, mas direta de acompanhá-los, propiciando um intenso diálogo entre avaliadores e editores e editores e autores. Por outro lado, esse conjunto de novas conquistas gerou grandes desafios. Nesse sentido é que gostaríamos de compartilhar com leitores e colaboradores algumas preocupações, visando manter a boa qualidade da revista e melhorar ainda mais o seu mérito como periódico científico. Destacamos, assim, alguns dos principais aspectos que são considerados no modo pelo qual Interface é avaliada pelos pares e editores de outros periódicos e pelos indexadores de publicações científicas. São eles: a fidelidade ao escopo da revista; a fidelidade à proposta editorial, mantendo desenho e proporção das seções definidos; um corpo de consultores de abrangência internacional; a autoria dos artigos de abrangência internacional; a qualidade dos artigos quanto à produção de conhecimento; a conquista de bases de indexação relevantes; a adequada triagem inicial das submissões, expressa por taxa significativa de rejeições; a manutenção da periodicidade proposta; e, por fim, é claro, a manutenção do tempo decorrido entre a submissão e a publicação de um artigo, que não pode ser muito longo e, sobretudo, sofrer grandes variações. Este último aspecto, particularmente, merece comentários adicionais, pois, mesmo com o volume de processos bastante aumentado, temos buscado manter a qualidade da comunicação e o tempo médio entre a submissão e a publicação, na marca dos 14 a 16 meses. É preciso levar em conta, porém, que apenas parte desse sucesso liga-se a questões internas à revista, tais como a rápida pré-avaliação dos manuscritos, que é a fase em que basicamente identificamos a pertinência das submissões ao escopo da revista, ou a rapidez da edição final. Outra parte, substantiva para a existência de uma revista e para o seu mérito científico, diz respeito à participação da própria comunidade científica no julgamento de pares, como avaliadores dos processos de julgamento em curso. Esta participação é, hoje, sem dúvida um grande desafio, a que exortamos todos de nossa comunidade de pares a fazerem frente. E tornou-se uma questão emblemática das dificuldades mais atuais das publicações, seja pelo leque ampliado de temáticas abordadas pelos pesquisadores do campo, seja pelo intenso volume de atividades que tomou conta do campo dentro dos parâmetros que criamos para nossa própria avaliação de qualidade cientifica. As exigências para um bom periódico, portanto, são muitas e de diversas ordens. São, como apontamos, tanto nossas quanto de nossos colaboradores, daí a relevância de serem conhecidas por todos. Espaços e oportunidades de comunicação devem ser sempre usados e estimulados, tal como temos feito, em conjunto com outros editores de periódicos do campo, participando de mesas, colóquios ou sessões de debates nos diversos eventos científicos do campo, criando encontros diretos com nossos colaboradores. Este editorial soma-se a essa perspectiva de mantermos sempre abertos nossos canais de comunicação, nossa Interface, com a comunidade científica que nos estimula e nos desafia. Antonio Pithon Cyrino Lilia Blima Schraiber Miriam Celi Porto Foresti, Editores

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação is concluding 2010 by reaching this, its 35th issue. The end of one year and the start of a new one is always a propitious moment to weigh up the balance of activities and share our achievements and new challenges with readers and collaborators. The growth in postgraduate programs, research and, consequently, the demand for publication is well known throughout the field of Public Health, and this is reflected not only in our periodical but also in many others. We are concluding the year with around 700 submissions, whereas four years ago, in 2006, we had 195. One major contributory factor in this enormous increase has been the greater agility provided by the online submission system since February 2008. This takes place through a system developed by the Scielo Virtual Library (Scielo Submission), through which we have also modernized the entire publication process, thereby equally improving the work of the journal’s team. Nonetheless, the most important achievement in this direction has been within the sphere of communication, as authors, reviewers and section editors will have felt in the day-to-day progress of the processes: a form of communication that is not only fast but also directly accompanies the processes, thus enabling an intense dialogue between reviewers and editors and between editors and authors. On the other hand, this set of new achievements has also created great challenges. In this regard, we would like to share some of our concerns with readers and collaborators, with the aim of maintaining the good quality of the journal and further improving its merit as a scientific periodical. We will thus highlight some of the main points that are considered in the methods through which Interface is assessed by peer reviewers, editors of other periodicals and the scientific publication indexing organizations. They are as follows: faithfulness to the journal’s scope; faithfulness to the editorial propositions, i.e. keeping to the designs and proportions of the sections defined; a body of consultants of international reach; authorship of articles of international reach; quality of the articles, with regard to knowledge production; achievement of relevant indexation; adequate initial screening for submissions, expressed as a significant rejection rate; maintenance of the proposed periodicity; and finally, clearly, maintenance of the time that elapses between submission and publication of an article, which must not be very long and, above all, must not be subject to large variations. This last point, particularly, deserves additional comments, given that even with the greatly increased volume of processes, we have sought to maintain the quality of communication and the average time taken between submission and publication, which is around 14 to 16 months. However, it needs to be borne in mind that only part of this success relates to matters that are internal to the journal, such as rapid pre-evaluation of manuscripts (which is the phase in which we basically identify the pertinence of the submissions to the journal’s scope) or the speed of final editing. Another part, which is substantive for the existence of a journal and for its scientific merit, concerns participation by the scientific community itself in the peer review process, as assessors in ongoing evaluation processes. This participation is today indubitably a great challenge: one that we exhort all of our community of peer reviewers to face. This matter has become emblematic of the latest difficulties faced by publications, either because of the expanded range of topics covered by researchers within this field, or because of the intense volume of activities that has taken hold in this field, within the parameters that we have created for our own assessment of scientific quality. The requirements for a good periodical are thus many in number and of different orders. As we have pointed out, these requirements are both ours and those of our collaborators, hence the relevance of making everyone aware of them. Communication spaces and opportunities should always be used and stimulated, as we have done, in conjunction with other editors of periodicals in this field, with participation in round tables, colloquiums or debate sessions at various scientific events within this field, thereby creating direct contacts with our collaborators. This editorial adds to this perspective of always keeping our communication channels open: our Interface with the scientific community that stimulates and challenges us. Antonio Pithon Cyrino Lilia Blima Schraiber Miriam Celi Porto Foresti, Editors 726

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artigos

Algumas considerações nietzschianas sobre corpo e saúde

Carlos Augusto Peixoto Junior1

PEIXOTO JUNIOR, C.A. Some Nietzschean considerations about body and health. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.727-38, out./dez. 2010.

Trying to emphasize the importance of some Nietzschean considerations for the understanding one may have about body and health, the present work starts from the critique formulated by Nietzsche to metaphysics and Platonism to discuss his point of view about the relations between body and conscience. Based on this and having as main reference the concept of will of power, the current work tries to show how the body could be conceived as a metaphor to which Nietzsche resorts in his critical interpretation of subjectivity and culture.

No intuito de ressaltar a importância de algumas considerações nietzschianas para o entendimento que se pode ter do corpo e da saúde, o presente trabalho parte da crítica formulada por Nietzsche à metafísica e ao platonismo para discutir o seu ponto de vista a propósito das relações entre corpo e consciência. A partir daí, tendo como referência principal o conceito de vontade de potência, procura-se mostrar como o corpo poderia ser concebido como uma metáfora à qual Nietzsche recorre em sua interpretação crítica da subjetividade e da cultura.

Keywords: Body. Health. Conscience. Interpretation.

Palavras-chave: Corpo. Saúde. Consciência. Interpretação.

1 Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rua Belisario Távora, 521/102, Laranjeiras, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.245-070. cpeixotojr@terra.com.br

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES NIETZSCHIANAS ...

Introdução O corpo e a saúde sempre foram temas instigantes para todos aqueles que se interessaram em compreender o homem e sua posição no mundo. Desde os anos 1960, pelo menos, tornou-se comum falar da importância e do valor que adquiriram, na nossa sociedade, o culto ao corpo, associado a uma noção de saúde prescritiva bastante questionável. E isso a tal ponto que alguns chegam mesmo a dizer que estaríamos vivendo em uma cultura somática. No entanto, algumas questões fundamentais se colocam caso queiramos compreender como teríamos chegado a esse estado de coisas: será que são esses os corpos e essa saúde que realmente importam se queremos construir um mundo mais afirmativo no que se refere à diferença e à singularidade? E, afinal, quais seriam os modelos de corpo e saúde que teriam se tornado dominantes até os dias atuais? Do nosso ponto de vista, trata-se, no caso, de duas concepções fundadas prioritariamente em uma perspectiva normativa sobre os corpos e as saúdes possíveis, a qual se constituiu na esteira de uma determinada tradição que precisaria ser questionada de forma bastante incisiva. É nesse sentido que a obra de Nietzsche pode nos servir como um instrumento fundamental de luta contra esse modelo homogeneizante e serializado, posto que ele certamente foi o pensador que mais se dedicou a combater os valores tradicionais que se encontram na base da atual valoração de um determinado tipo de corpo e do conceito vigente de saúde. No decorrer do presente trabalho, portanto, pretendemos buscar, na sua obra, alguns indícios que nos permitem formular uma visão crítica dessas noções de corpo e saúde, procurando mostrar como o pensamento nietzschiano pode contribuir para o estabelecimento de uma nova perspectiva, que não apenas coloca em questão o ponto de vista da tradição, mas que também nos abre novas alternativas para pensar o corpo e a saúde no que esses fenômenos contribuem para uma outra visão, mais afirmativa, sobre o homem e o mundo. No intuito de alcançarmos esse objetivo, partimos da crítica formulada por Nietzsche à metafísica e ao platonismo para, em seguida, discutirmos o seu entendimento a propósito das relações entre corpo e consciência. A partir daí, tendo como referência o conceito de vontade de potência, procuramos entender como o corpo poderia ser concebido como uma metáfora à qual Nietzsche recorre em sua interpretação crítica da subjetividade e da cultura. Para Nietzsche, quando se considera a história da filosofia, até agora, de um ponto de vista suficientemente crítico, pode-se constatar que “o pior, o mais inveterado, o mais perigoso de todos os erros foi um erro de dogmáticos: a invenção platônica do espírito puro e do Bem em si” (Nietzsche, 1971, p.18). Se é desse pesadelo dogmático que o pensamento crítico pode nos despertar, nossa tarefa, como pensadores contemporâneos, consiste precisamente em permanecermos despertos e, justamente por isso, colocarmos a verdade novamente sobre os próprios pés, pois o sortilégio de Platão consistiu em colocá-la de cabeça para baixo. Embalada pela crença na invenção platônica do espírito puro e do Bem em si, a herança filosófica de Platão reputou o subjetivo-perspectivístico como o contrário da verdade, isto é, como erro, engano, ilusão. Segundo Giacoia Junior (2003, p.24), “Se essa invenção em si é uma ousada inversão de valores, e uma vez que conseguimos despertar do pesadelo platônico, então nossa tarefa mais autêntica e radical consiste em subverter a inversão platônica”. E esse é também um dos principais sentidos do programa filosófico nietzschiano da transvaloração de todos os valores. Com o platonismo temos uma concepção de filosofia como exercício ascético, vale dizer, em termos extremos, como preparação para a morte, pela qual a alma se redimiria da prisão do corpo e retornaria à divindade de sua origem. Nietzsche identifica esse traço ascético com uma espécie de pecado original da metafísica, a partir do qual a filosofia se institui como negação e desvalorização do sensível, do corpo, da materialidade, do movimento, do transitório, do devir e da multiplicidade. No projeto metafísico, o que em nós é corpo, é precisamente aquilo que deve ser afastado para que possamos ter acesso ao reino puro das essências. Se a tradição platônico-cristã se erigiu sobre a base da crença no primado da alma - e se essa tradição ruiu -, então, por que não tomar como fio condutor o complexo campo de fenômenos constituído pelo corpo? “O corpo pode servir de paradigma para a constituição de uma hipótese sobre a subjetividade, muito mais rica e plausível do que aquela formulada pela metafísica e pelo platonismo” (Giacoia Junior, 2001, p.59). 728

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A consciência e o corpo De acordo com Deleuze (1976), Nietzsche sabe que chegou a hora de chamar a consciência à modéstia necessária, e tomá-la pelo que ela é: um sintoma de uma transformação mais profunda e da atividade de forças de uma ordem que não é espiritual. Em toda a evolução do espírito, talvez não se trate de outra coisa que não corpo: é a história se tornando sensível a que um corpo superior esteja sendo formado. Centenas de milhares de experiências são feitas para modificar a alimentação, a forma de morar e de viver no corpo: nele, dizia o filósofo alemão, a consciência e as apreciações de valores, todos os tipos de prazer e desprazer são indícios dessas modificações e dessas experiências. Para Nietzsche, o que define um corpo são as relações entre forças dominantes e forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político. Duas forças quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo desde que entrem em relação; por isso, no sentido nietzschiano, o corpo é sempre fruto do acaso e surge como aquilo que é mais surpreendente, muito mais surpreendente, na verdade, do que o espírito ou a consciência. Em seus fragmentos póstumos (Nietzsche, 1979), o autor afirma que o corpo humano é um pensamento mais surpreendente do que a alma, e que não nos cansamos de nos maravilhar com a ideia de que o corpo humano tornou-se possível. Do ponto de vista deleuziano, o corpo é um fenômeno múltiplo e composto por uma pluralidade de forças irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo, unidade de dominação, em termos nietzschianos. Em um corpo, são consideradas ativas as forças dominantes ou superiores, e reativas aquelas inferiores ou dominadas. (Deleuze, 1976, p.33)

Segundo Pierre Klossowsky, o corpo quer se fazer compreender por meio de uma linguagem de signos, falaciosamente decifrados pela consciência: esta constitui esse código de signos que inverte, falsifica e filtra aquilo que se expressa através do corpo. Nestes termos, a própria consciência é apenas o código cifrado das mensagens transmitidas pelos impulsos: a decifração é, em si, a inversão da mensagem que o indivíduo se atribui. Neste sentido, Nietzsche não defende uma “higiene” do corpo estabelecida pela razão, defendendo os estados corporais como dados autênticos que a consciência não pode deixar de escamotear por ser um deles. Para Klossowsky (2000, p.46-7), “tal concepção vai muito além de um ponto de vista meramente fisiológico a propósito da vida. Resultado do acaso, o corpo é apenas o lugar do encontro de um conjunto de impulsos individualizados para esse intervalo formado pela vida humana, os quais aspiram a perder a individualidade”. Remetendo o consciente, o espírito, como signo, à profundidade do fundamento, Nietzsche quer dizer, mais uma vez, que tudo o que está em evidência é apenas signo: a profundidade do mundo é que tudo é signo – o corpo sendo a instância principal onde o caos do mundo é inicialmente reduzido por cada pulsão para ser novamente pluralizado. O corpo, como unidade-pluralidade, é o lugar da interpretação que constitui o caos do mundo em unidades plurais, em signos. A consciência confunde a unificação-simplificação do signo consciente com a unificação do caos pelo corpo, promovendo um curto-circuito no corpo como jogo de unidade-pluralização das pulsões. Neste sentido, superestimar o consciente seria considerar o signo como uma coisa em si. Considerando essa questão, Nietzsche recoloca a consciência diante da pluralidade invisível do corpo à qual ela está submetida: “a consciência é um órgão como o estômago” (Nietzsche, 1982a, p.251). “O intelecto é apenas o instrumento cego de uma outra pulsão” (Nietzsche, 1980, p.89). Como dizia Zaratustra, criticando aqueles que desprezam o corpo, “essa pequena razão que tu chamas de ‘espírito’, meu irmão, é apenas um instrumento de teu corpo, um instrumento bem pequenino, um joguete da tua grande razão” (Nietzsche, 1969, p.51). A consciência, como joguete, é um objeto polissêmico. Inversamente, desprezar o corpo é rebaixar o mundo, fazer dele uma série de objetos, ao invés de um campo de interpretações. Assim, a consciência é apenas o lugar no qual o plural se diz como particularidade, uma espécie de reflexo em espelho ou linguagem cifrada que designa algo de fundamentalmente outro. Ao invés de entendermos o estado consciente como um instrumento, um COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.727-38, out./dez. 2010

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mero detalhe da vida como um todo, o tomamos como critério ou como estado de valor supremo diante da vida: resumindo, trata-se de uma perspectiva errônea que toma a parte pelo todo. Em última instância, a consciência não passa de abreviação de uma pluralidade: a do corpo como texto. Nestas condições, perguntar-se sobre o que é o corpo é também perguntar-se sobre o que é a interpretação. E a descrição do corpo interpretante se apoia sobre metáforas que se interpenetram: metáfora gastroenterológica, metáfora política, metáfora filológica. Em um de seus fragmentos póstumos, Nietzsche (1979) nos mostra que, visivelmente, o intelecto não passa de um instrumento nas mãos dos afetos, os quais constituem uma pluralidade. Guiados pelo fio condutor do corpo, aprendemos que nossa vida só é possível graças ao jogo de inúmeras inteligências de valor bastante desigual, isto é, graças a uma perpétua troca de obediência e comando sob as formas mais diversas. O fenômeno do ‘corpo’, do ponto de vista intelectual, seria “tão superior à nossa consciência, ao nosso espírito, à nossas maneiras conscientes de pensar, de sentir e de querer, quanto a álgebra é superior à tábua de multiplicação” (Nietzsche, 1979, p.198). Para dar conta dessa relação não aritmética, Nietzsche se serve dos esquemas metafóricos, constituindo uma rede de metáforas. Tais metáforas são úteis para pensar a unidade do plural e a pluralidade singular do corpo interpretante.

O corpo e a interpretação De acordo com Éric Blondel (1986), Nietzsche teria retirado todos os recursos da linguagem para dizer o que ela recobre: o corpo, a realidade. Segundo o comentador francês, “para dizer algo sobre o corpo, Nietzsche vai relativizar a linguagem e a filologia. Mas, ao invés de deslocar o acento para a fisiologia, como se poderia esperar, ele procura representar o mundo das pulsões e instintos criando uma nova linguagem” (Blondel, 1986, p.279). A genealogia, buscando pensar filosoficamente a cultura, relaciona os ideais com o corpo como sua origem escondida. Nietzsche se propõe então a enunciar o que se deve entender por corpo e esclarecer a noção de origem. Recorrendo ao corpo, o filósofo procura recusar tanto o idealismo espiritualista quanto o mecanicismo ou biologismo. No primeiro, o corpo é subutilizado, e, no segundo, ele é conceituado de forma puramente objetivista. A isso o autor opõe, por um lado, a primazia do corpo e, por outro, uma concepção não-empirista. Não é possível remeter os ideais ao corpo simplesmente reabsorvendo os primeiros no segundo, nem tampouco recair no dualismo. O monismo nietzschiano repousa, portanto, sobre a união-separação do ideal e do corpo: tal união-separação será explicitada segundo o eixo da interpretação. As imagens utilizadas por Nietzsche no âmbito da fisiologia não são exatamente imagens sensíveis: elas levam, ao contrário, à noção filológica de interpretação. Mas será que nessa contestação do dualismo mente-corpo trata-se apenas de reduzir o homem e a cultura ao corpo, o espírito e a consciência ao organismo? O parágrafo 14 de O Anticristo indica uma possível solução, e se inicia por uma recusa do espírito: “nos tornamos em todos os pontos mais modestos. Não buscamos mais a origem do homem no ‘espírito’, na ‘natureza divina’, nós os substituímos pelo nível dos animais” (Nietzsche, 1974a, p.24-5). Como animal, o homem é corpo, e ainda que não haja simetria fisiológica, o homem não é o animal mais perfeito. Nestes termos, Nietzsche opõe sua concepção tanto à visão antropológica da Gênese quanto aos subentendidos ideológicos finalistas da teoria evolucionista de Darwin. Para ele, a animalidade do homem, como segurança proporcionada pelo instinto, é diminuída pela precariedade do pensamento consciente. Essa dimensão precária não serve apenas para contestar uma visão orgulhosa do homem ou, ainda, um antropocentrismo: com relação ao monismo da redução à animalidade, ela introduz no homem uma distância da qual testemunham esses fenômenos que costumamos chamar – erradamente segundo Nietzsche – de “espírito”, “consciência”, “vontade livre” e que são, simplesmente, “sintomas de uma certa imperfeição do organismo” (Nietzsche, 1974a, p.25). Além disso, o autor descreve esses fenômenos como uma multiplicidade: espírito e corpo são apenas um, mas essa unidade é plural. “[A “vontade” é] uma resultante, uma espécie de reação individual, que dá necessariamente lugar a uma multidão de solicitações em parte contraditórias, em parte concordantes” (Nietzsche, 1974a, p.25). Mas, então, se a consciência ou o espírito são modos do corpo, em que sentido se poderia dizer que o homem é “inteiramente corpo e nada além disso” (Nietzsche, 1969, p.51)? Com a noção de 730

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interpretação parece que se reintroduz sub-repticiamente a consciência no corpo. Para que serve a referência ao corpo, se assim ele é quase espiritualizado? Afinal, o que é o corpo como interpretação fundamental? De acordo com Blondel (1986, p.282-3), o corpo são os instintos ou pulsões que, interpretando a realidade, a constituem. O curtocircuito real-espírito é substituído pelo desvio através do corpo que se interpõe entre o mundo e o espírito consciente. A partir daí surgem dois corolários: a constituição categorial é substituída pela interpretação corporal-pulsional; e o espírito-intelecto consciente se torna instrumento de um corpo interpretante inconsciente.

Portanto, não parece haver apenas uma simples reversão do dualismo anterior. O que há é uma interposição ou desvio, em conjunto com uma mudança de ordem. O mundo como natureza bruta é caos; “o belo caos da existência” (Nietzsche, 1982b, p.189). Antes do corpo, não há ordem, relação ou texto; o mundo é o auge da multiplicidade. Ele só é texto para ou pelas pulsões que reduzem essa multiplicidade absoluta. Mas essa redução não é como aquela promovida pelo intelecto, a qual introduz uma unidade: se o corpo interpreta, ele o faz em termos de afetos, e, se os afetos interpretam, eles só instituem uma certa simplicidade para pluralizá-la. Os afetos constituem pontos de vista instáveis de um jogo no qual eles só existem no plural. O desvio nietzschiano pelo corpo é um desvio pelo plural das pulsões. Dado que os afetos interpretam, poderíamos dizer que não existem propriamente fatos, mas apenas interpretações. Nietzsche opõe o intelecto às pulsões como o simples à pluralidade. Nestas condições, o corpo parece ser um elo intermediário entre o plural absoluto do caos do mundo e a simplificação absoluta do intelecto. Se a cultura e a humanidade começam com ele como interpretação, é precisamente no que ele é um lugar de articulação, e não propriamente fundamento, no que ele é um modelo dessa unidade-pluralidade ou um esquema da vontade de potência. Se o corpo é primeiro, ele o é como modelo de algo que é misto. Se a multiplicidade é primeira, o corpo, como jogo de afetos, será primeiro (como multiplicidade), em relação ao intelecto concebido como unificador-simplificador, enquanto será segundo em relação ao caos do mundo. Portanto, poderíamos dizer que Nietzsche não pretende reduzir o intelecto ao corpo, mas, apresentando o corpo como “pluralidade de intelectos”, evidenciar o caráter radical dessa pluralidade. A realidade do corpo é mais movimento e relação de forças do que substância ou coisa: isso é o que indicará a ideia da vontade de potência como determinação ontológica. A distância entre corpopensamento e pensamento consciente é mais uma distância entre múltiplo e simples do que entre consciente e inconsciente. Na verdade, o corpo é para Nietzsche “um mundo subterrâneo de órgãos ao nosso serviço” (Nietzsche, 2000, p.120). Este mundo subterrâneo das pulsões inconscientes é menos uma causa ou uma natureza do que um invisível, reconhecido enquanto tal porque indecifrável por um pensamento da interpretação muito menos preocupado com o fundamento verdadeiro do que com a leitura, buscando um equilíbrio entre o fixo e o instável. Segundo Blondel, Nietzsche não tem apenas a intenção de retomar a imagem da caverna platônica para mostrar que a relação ontológica de eminência, assim como a relação epistemológica de causalidade devem ser invertidas. O corpo subterrâneo não vem substituir o sol como causa e realidade verdadeira das aparências (sombras), como se, para Nietzsche, a sombra devesse ser, ao contrário de Platão, a razão última da luz enganadora (do consciente). (Blondel, 1986, p.286)

Com frequência, ele define essa obscuridade do corpo muito mais como um enigma filológico do plural do que como fundamento escondido, como oposição do visível (legível) simples à obscuridade do múltiplo. Na verdade, o filósofo chega mesmo a condenar explicitamente a ideia de que os afetos possam ser tomados como um fundamento ou causa. Em Aurora ele considera que “por mais longe que alguém possa levar o conhecimento de si, nada, no entanto, pode ser mais incompleto do que a imagem do conjunto de pulsões que constituem o seu ser” (Nietzsche, 1980, p.99). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.727-38, out./dez. 2010

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Se o conhecimento pretendido pelo espírito é impossível, resta-lhe esquematizar, impondo ao caos alguma regularidade e algumas formas para satisfazer às nossas necessidades práticas. É por isso que, como vimos antes, do ponto de vista nietzschiano, o intelecto não seria senão um instrumento nas mãos dos afetos; e esses são uma pluralidade por trás da qual não há qualquer necessidade de postular uma unidade (Nietzsche, 1979). O intelecto deve se contentar em simplificar e igualar. Processo multiforme, o corpo é, portanto, obscuro para o espírito consciente, o qual não domina sua contínua pluralidade. Essa é a razão pela qual Nietzsche compara o conjunto do corpo não consciente aos processos interiores do trato digestivo. Se ele é obscuro, não o é como um embasamento oculto à luz e à visão, mas no sentido de que sua pluralidade é inapreensível.

A metáfora “gastroenterologia” do filósofo médico O pensamento de Nietzsche parece proceder por transferências. O movimento de algumas de suas metáforas ilustra por sua forma aquilo que seu conteúdo imaginário se propõe a explicitar, qual seja, a relação unidade-pluralidade. Algumas metáforas a propósito do corpo tendem a desembocar sobre um corpo como metáfora, unidade-pluralidade interpretativa, de modo que o corpo, utilizado metaforicamente para pensar a interpretação, parece que acaba por ser, ele próprio, interpretado como interpretação. A metáfora gástrica, por exemplo, repousa sobre a ideia de assimilação, de dependência funcional. O estômago reduz o múltiplo ao singular assimilando-o. Mas essa assimilação supõe uma relação de forças que se opõem, resistem ou cedem, numa luta que desemboca sobre um estado de potência de vontades. Nestas condições, a metáfora gástrica poderia ser transportada para o âmbito de uma metáfora política: o corpo seria uma coletividade mais ou menos regrada, na qual uma determinada instância reina ou toma o poder, e, portanto, exclui, descarta ou escolhe, simplifica, iguala ou traduz, isto é, interpreta. Em termos mais precisos, a filosofia nietzschiana não parece se propor a descrever fisiologicamente o corpo: o espírito é reduzido a um aspecto indevidamente privilegiado do organismo, enquanto que, inversamente, o organismo se vê atribuir um funcionamento espiritual que se estende à totalidade. Há, então, um espírito no sentido amplo, qual seja, o corpo. Para descrever esse corpo-espírito, o autor recorre a imagens da fisiologia gastroenterológica, sem valor fisiológico descritivo, mas que, por uma espécie de circuito fechado, serve de metáfora à interpretação. Se, ontologicamente, Nietzsche mantém o corpo como realidade primeira, por outro lado, do ponto de vista epistemológico, dada a sua recusa do “em si”, o corpo parece funcionar antes de tudo como uma metáfora da interpretação, ou seja, um modo humano de interpretar. Neste contexto, segundo Blondel (1986, p.297-8), “seus textos aparentemente biologizantes, longe de reduzirem o ideal ao corpo são apenas tentativas de remeter a cultura (concebida como um corpo) à interpretação fundamental, o corpo fisiológico sendo um caso particular da interpretação dentre outros”. Considerando-se esta hipótese do comentador, a cultura, entendida como um corpo, e o corpo como sistema interpretativo seriam fenômenos da interpretação, ou do ser como interpretação, isto é, modos do interpretar. Do ponto de vista nietzschiano, a interpretação é um princípio quase-ontológico, do qual a vida, o corpo, a nutrição, a reprodução são “fenômenos derivados”, casos particulares ou simples consequências da apropriação insaciável da vontade de potência (Nietzsche, 1976). Em última instância, a vontade de potência poderia ser tomada como uma interpretação à qual tudo é remetido. No âmbito da metáfora gastroenterológica, o sistema digestivo, como metáfora da interpretação, procede, antes de tudo, assimilando: ele absorve aquilo que é estranho e se esforça para reduzi-lo à sua singularidade, à sua identidade múltipla, diversa e plural. No caso da nutrição saudável, trata-se de vencer um ser que resiste, e de se apropriar dele incorporando-o. Trabalho secreto, subterrâneo, obscuro e também repugnante. Entretanto, considera Nietzsche, ver as entranhas seria ver uma realidade verdadeira, realidade interior ao mesmo tempo ameaçadora e repugnante, misto de pudor e horror: como se a pluralidade caótica real inspirasse medo, tanto à consciência quanto à moral. É para opor uma verdade abominável ao charme superficial do ideal que Nietzsche, como filósofo médico, fala das entranhas. Elas constituem a realidade de um corpo que incorpora e assimila a pluralidade e têm 732

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como objetivo reduzir o excesso. O estômago deve, como a cultura e a interpretação, recusar coisas, dado o risco de disfunções. Como fica claro a partir de uma passagem de A genealogia da moral (Nietzsche, 2000), a capacidade de absorção pode ser um critério de força: o homem forte, possuidor de uma boa saúde instintiva, digere seus atos exatamente como digere suas refeições, mesmo quando se trata de alimentos mais pesados. Os problemas de absorção-assimilação podem assumir diversas formas, as quais o autor evoca com riqueza de detalhes em Para além de bem e mal: o espírito quer “remeter a multiplicidade à simplicidade”, a partir de “uma tendência pronunciada a assimilar o novo ao antigo, a simplificar o complexo, a ignorar ou descartar o que é absolutamente contraditório”; ele “procura incorporar em si novas experiências”, segundo “o grau de sua força de assimilação, de sua ‘capacidade digestiva’” (Nietzsche, 1971, p.148-9). Aplicando esse esquema à cultura e à interpretação, Nietzsche atribui a ele a finalidade de pôr fim a alguma coisa: absorver para aumentar a si próprio sem nada perder, mas sem se perder. O autor denuncia o excesso “alimentar” e a “voracidade”, aos quais ele opõe a escolha e a lentidão das operações fisiológicas, as quais, no campo isomorfo da filologia da interpretação, dizem respeito ao discernimento, à sutileza e ao ritmo lento. Nota-se, portanto, que a finalidade não é o dispêndio, mas uma certa forma de economia. Neste sentido, estar doente não é somente digerir mal, mas engolir tudo e eliminar mal: a cultura mórbida, dispéptica, é aquela que interpreta mal, assim como uma interpretação fraca engole e deixa passar tudo de um texto sem ruminá-lo. Se os problemas digestivos podem provir dos excessos, eles muitas vezes se devem à “preguiça das entranhas” (Nietzsche, 1974b, p.115), resultado de uma má dietética. O conselho da ruminação destina-se a remediar essa falha. Mas a melhor maneira de prevenir esses aborrecimentos é preparar o corpo para movimentos que encorajem a atividade intestinal, esse fora do espírito-estômago. Donde a importância do tema da caminhada: ela ajuda a digerir e simboliza a exterioridade e a oposição a uma cultura livresca. Nesses termos, “adotar livremente um movimento”; “conhecer o tamanho do seu estômago”; considerar que “uma refeição copiosa é mais fácil de digerir do que uma refeição leve demais”: eis alguns preceitos do que Nietzsche chama de sua moral.

A saúde e a grande saúde Considerando-se os aspectos discutidos até aqui - e indo um pouco além da metáfora gastroenterológica, assim como das outras dimensões metafóricas da corporeidade mencionadas acima -, também se torna possível revelar, por trás de uma dada cultura, um certo estado do corpo, traduzindo a qualidade do trabalho cumprido pelos instintos e afetos. A elaboração da noção de saúde, que se substitui ao critério de verdade, representa a articulação capital da teoria da interpretação, pois, na falta de tal critério, a genealogia desapareceria no relativismo, e a tarefa do filósofo médico se reduziria a constatar os laços filológicos necessários entre corpo e componentes culturais. Colocar a saúde como critério não implica simplesmente substituir uma norma por outra norma, mas comporta um deslocamento radical do questionamento filosófico: pois, contrariamente à verdade, ela não é pensada por Nietzsche como um conceito unívoco e normativo; ela escapa ao dualismo metafísico e encontra, para além disso, sua legitimidade numa certa relação com a experiência. O idealismo é recusado num primeiro nível pelo fato de o critério elaborado pelo autor confirmar o primado do corpo como fonte de qualquer interpretação. Não há saúde “normal”, e se a saúde não é a normalidade, é inicialmente porque ela é fundamentalmente múltipla. Como fica claro em uma passagem de A gaia ciência, “não há saúde em si [...] existem inumeráveis saúdes do corpo [...]. [Portanto,] nossos médicos deverão abandonar a noção de uma saúde normal” (Nietzsche, 1982b, p.146). A saúde - ou para retomar o termo de Nietzsche, o “sucesso fisiológico” - se define de maneira completamente diferente daquela proveniente de uma ordem estatística. Muito longe de ser a norma, o sucesso constitui exceção: “encontramos na espécie humana, como em todas as outras espécies animais, um excedente de indivíduos fracassados, doentes, degenerados, enfermos, seres voltados ao sofrimento; também entre os homens os sucessos constituem sempre a exceção” (Nietzsche, 1971, p.77). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.727-38, out./dez. 2010

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Pode-se notar que a saúde não representa, em nenhum caso, uma versão nova da verdade ou do absoluto: o critério proposto por Nietzsche se conjuga com as linhas fundamentais de sua experiência de pensamento, confirmando a recusa do “em si”. Ainda mais importante é o fato de que a recusa do idealismo é radicalizada pela rejeição de qualquer forma de dualismo metafísico: se a saúde não pode ser compreendida como uma norma, a doença também não pode ser pensada como anormalidade ou negação absoluta da saúde. Nesse caso, afirma Patrick Wotling (1995, p.122-3): a consequência é a solidariedade fundamental entre saúde e doença, a hipótese da vontade de potência implicando na homogeneidade integral da realidade e, portanto, na rejeição de qualquer diferença de natureza entre esses dois termos. O trabalho do filósofo médico exige então uma profunda atenção às variações de grau, de dosagem relativa, que distinguem diferentes processos corporais.

Se as diferenças são apenas de grau, não encontraremos, em Nietzsche, qualquer nostalgia de uma saúde como pureza original, aspiração típica do niilismo e da fraqueza. A ideia de um organismo rigorosamente puro em relação a todo fenômeno patológico repousa apenas na crença em uma diferença de natureza entre saúde e doença, forma derivada do preconceito fundamental dos metafísicos, o dualismo. Nietzsche justifica, enfim, o estatuto de critério que ele atribui à saúde por seu enraizamento na experiência, ponto sobre o qual esse novo critério, anti-idealista, se opõe à noção de verdade, que pretende mascarar sua origem corporal. A validade do experimento nietzschiano se atém, com efeito, à dupla experiência que ele reivindica, a da saúde, mas também a da doença: dupla natureza do corpo que está na origem da interpretação das interpretações que, como vimos, representa o texto de Nietzsche. Toda a eficácia de sua teoria do valor dos valores se atém ao fato de que a saúde representa um critério estritamente interno. Se ele pode fazer com que a hostilidade à vida ou, ao contrário, o “sim” a ela, representem critérios de avaliação, sem menção explícita ao critério da saúde, é porque o conceito de saúde não tem outra significação a não ser traduzir o acordo entre uma interpretação particular e as exigências fundamentais da vida, e porque, por outro lado, a vida é pensada como vontade de potência. O exame clínico dos valores e das culturas que deles resultam, tal como realizado pelo filósofo médico, consiste, antes de tudo, em determinar o estado do corpo que os coloca como suas condições de existência, e em se interrogar sobre o acordo ou desacordo entre essas condições e as exigências da vontade de potência. A saúde, enquanto acordo com as exigências da vontade de potência, não pode, portanto, designar outra coisa que não a aptidão do corpo para enfrentar a luta pelo domínio da realidade [...] longe de ser uma norma imposta do exterior sobre o corpo, a saúde traduz a capacidade que ele tem de interpretar eficazmente a realidade, ou seja, a capacidade que tem a vontade de potência de assimilar o real, chegando assim à intensificação do sentimento de potência. (Wotling, 1995, p.125-6)

Nestes termos, a saúde não é um estado neutro: ela designa, ao contrário, a capacidade do corpo de superar a doença. Como vimos, saúde e doença não são valores contraditórios, mas processos solidários. Contrariamente à verdade, a saúde não é uma interpretação particular, mas o dinamismo próprio à vontade de potência. É por isso que Nietzsche prefere, ao termo doença, designações mais apropriadas para exprimir essa dinâmica, tais como os conceitos de decadência ou de declínio. Em suas Considerações intempestivas, ele afirma que “as doenças já são, em geral, sequelas da decadência e não suas causas” (Nietzsche, 1974c, p.77). Verdadeira perversão no funcionamento dos instintos, a decadência é o processo que tende a buscar aquilo que agrava as disfunções do corpo. Ao descrevê-la em termos de fisiologia, pela imagem da doença, Nietzsche define, paradoxalmente, os sintomas dessa doença por meio de determinações psicológicas, em particular pela presença de juízos negativistas. “Sob o nome de doença 734

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devemos entender: uma aproximação prematura da velhice, da torpeza e dos juízos pessimistas: todas essas coisas caminham juntas” (Nietzsche, 1980, p.224). De maneira simétrica, ele caracteriza a saúde e o estado do corpo conforme as exigências da vida por suas determinações psicológicas opostas: na perspectiva da psicologia da vontade de potência, a alegria, que seria preciso aproximar do sentimento de prazer, é a tradução da expansão do sentimento de potência e, portanto, da saúde. Como não há saúde em si, o que existem são as inumeráveis saúdes dos diferentes corpos em suas singularidades. Para que isso tenha sentido, faz-se necessário abandonar o conceito de saúde normal e, mais do que isso, a ideia de regime ou curso normal da doença. Se a saúde não é o contrário da doença, dada a rejeição nietzschiana do dualismo, ela deve ser redefinida como processo dinâmico de ultrapassagem, e não entendida como um estado. Para Bilheran (2005, p.43), “a experiência da doença é indispensável e, de qualquer modo, inevitável. Qualquer projeto de erradicação da doença seria desprovido de sentido; tudo se atém ao comportamento face à doença, ao tratamento que um determinado tipo de sistema pulsional em seu conjunto dará a ela”. Para além dessa relação de composição com a doença, é impossível normatizar a saúde, inscrevendo-a em uma definição essencialista; só existem saúdes individuais (e plurais, no próprio seio da evolução de cada um), elaboradas no terreno de doenças individuais, das quais só se avalia a gravidade com relação aos afetos sadios ou mórbidos (que louvam a vida ou, ao contrário, depreciamna). A verdadeira saúde se define e se honra enquanto tal em seu combate com a doença, um combate de conquistas e sacrifícios. “A grande saúde - uma saúde que não nos contentamos em ter, mas que ainda conquistamos e devemos conquistar continuamente, porque a sacrificamos e devemos sacrificá-la incessantemente!” (Nietzsche, 1982b, p.292, grifado no original). A saúde não consiste, em última instância, no combate interior contra um elemento mórbido, eliminando uma parte vital de si que residiria no adversário interno, mas em fundar uma coexistência pacífica entre afetos, em uma esfera transfigurada. A saúde é dionisíaca: não se trata de matar as zonas de sombra, mas de incluí-las em um movimento de alegria que as supera, assim como Dionísio é o paradigma de um trágico superado na alegria, mas não eliminado. Essa grande saúde engloba todos os niilismos para transfigurá-los. A saúde que se desvela no afrontamento com, e depois na vitória sobre a doença, é aquilo que Nietzsche chama de “grande saúde”, ou melhor, a verdadeira saúde. Reforçar a si próprio é a essência da saúde; se destruir é a essência da doença. Essa saúde se define pelo movimento; como a vida, ela é sempre movimento. A grande saúde é um paradigma do pensamento nietzschiano, no que a sua estrutura permite pensar a da vontade de potência. Esta vontade é a conseqüência e a realização da lógica originariamente médica do dinamismo ao nível da natureza. A saúde dinâmica define um movimento da vida que suscita doenças que não apenas não a prejudicam de maneira duradoura - pois a vida pode e deve superar aquilo que se opõe a ela -, mas também aparecem como necessárias a esse dinamismo. (Bilheran, 2005, p.52)

A vida não é apenas vontade de viver e se conservar: viver significa querer a potência. A vontade de potência é exigência de sempre se superar, como a saúde é exigência de se colocar em causa, expondo-se à doença, a fim de se fortificar através de uma contínua vitória sobre ela. Do mesmo modo, o declínio é, para a vontade de potência, o que a doença temporária (a doença como meio) é para a saúde dinâmica. Se a saúde se define essencialmente pela faculdade de superar a doença e, em particular, a doença grave no caso da “grande saúde”, estar bem de saúde consiste em acolher a doença – e não rejeitá-la ou negá-la – para melhor afrontá-la em seguida. Como a vida não escapa ao patológico, não existe outra saúde que não a temporária e conquistada sobre a doença. A saúde se define, em suma, pela cura da doença, a saber, uma saúde que inclui em si a doença, superando-a. Ela é um dinamismo mais que um estado, um movimento de autointensificação, contrariamente à concepção médica comum segundo a qual ou estamos saudáveis ou estamos doentes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.727-38, out./dez. 2010

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Além disso, as noções de saúde e doença, tal como ocorre com o corpo, não são estritamente assimiladas a fatos orgânicos, mas designam acontecimentos notáveis para aquele que quiser saber um pouco mais sobre o estado de seu próprio pensamento e, geralmente, sobre a gênese de qualquer pensamento. A grande saúde envolve forças concentradas ao extremo, e contraditórias em último grau. Elas são contidas por uma firme vontade de impor lei e conhecimento. O sintoma dessa grande saúde é a capacidade de se servir da doença. A aptidão para fazer dela uma admirável arma para o conhecimento. Trata-se de saber curar acima de todos os males que se inflija, como o indica o prefácio de 1886 de Humano Demasiado Humano: “esta saúde transbordante que se regozija de recorrer à própria doença, meio e armadilha do conhecimento [...] esta superabundância que é justamente o índice da grande saúde e que ao espírito livre dá o privilégio arriscado de viver à prova e de se oferecer à aventura” (Nietzsche, 1968, p.11). A grande saúde, portanto, não é nada além de ter suficiente abundância em si para se permitir cair doente a fim de reunir em si todos os tipos de conhecimentos. A busca genealógica calcula os valores através da doença. Mas, seria ela possível se, no fundo, aquele que busca não percebesse nele uma força soberana o suficiente para tudo suportar, tolerar, em nome de sua paixão por conhecer? De acordo com Montebello (2001, p.109-10), é sob a legislação dessa força que [a] paixão de conhecer se transforma em paixão do corpo, que o corpo se torna o terreno de experimentação para o conhecimento: sob a tutela de tal força, o filósofo médico não hesita em oferecer o corpo que sofre por amor ao conhecimento, ele quer até crucificá-lo pelo futuro do homem, sempre como indício de superabundância de sua vontade, na certeza de sua cura.

Nota-se que aqui, para além de sua pura dimensão metafórica destacada por Blondel, e que discutimos acima, o corpo torna-se uma espécie de plano de imanência, um espaço de experimentação para as forças, a partir do qual é possível delimitar estados saudáveis ou doentios. A grande saúde também é a capacidade de viver o conjunto dos valores. Ela não é a saúde daquele que nunca fica doente, mas a daquele que teve todas as doenças, ou melhor, que aspira ter todas as doenças. A possibilidade de retraçar em si a gênese de todos os tipos de pensamento a partir da experiência corporal, na medida em que as formas de pensamento são a expressão do combate das forças no corpo, requer essa grande saúde. “Aquele cuja alma aspira viver toda a amplitude dos valores e das aspirações que prevaleceram até agora”, diz Nietzsche em A gaia ciência, “este tem a necessidade em primeiríssimo lugar de uma coisa: a grande saúde” (Nietzsche, 1982b, p.291-2).

Considerações finais Conforme podemos deduzir das reflexões sobre corpo e saúde analisadas neste artigo, Nietzsche propõe uma atitude trágico-dionisíaca diante do sofrimento, opondo-a à reação decadente-niilista que prega uma dicotomia radical prazer-sofrimento, formulando uma concepção idealista de felicidade como ausência de qualquer sofrimento. Se o estatuto desse sofrimento deve ser repensado em conformidade com a atividade da vontade de potência, ele não pode ser visto como uma anomalia suscetível de ser eliminada, dado que é parte de nossa existência. Rejeitá-lo totalmente seria rejeitar a própria vida da qual ele é uma dimensão essencial. Ainda que considere a dor como um elemento fundamental da vida, Nietzsche se recusa a fazer dela o signo de uma lesão corporal. Neste sentido, a ausência ou presença de dor não podem, de modo algum, ser consideradas sinônimo de saúde. Mas o sofrimento também não pode ser tomado como essência última da vida ou princípio de realidade, pois isso seria condenar a própria vida como instância determinante da existência. Ele é apenas mais um índice de variação do sentimento de potência, do seu crescimento ou declínio. A força não deve condenar nem ser insensível ao sofrimento em seu caráter problemático, mas deve poder enfrentá-lo. A cultura como

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negação da vida implica justamente a incapacidade de enfrentar o sofrimento como expressão particular da vontade de potência. O niilismo do fraco é um estado declinante da vontade de potência que não suporta praticamente nenhum desprazer. Buscando assimilar a realidade na sua totalidade trágica, o criador dionisíaco procura dominar o sofrimento e fazer dele um estimulante da vontade de criar ou uma condição de ultrapassagem de si mesmo. Neste sentido, dizer sim à vida é recusar a decadência, o ressentimento e a má consciência - os quais transformam o sofrimento em objeção ou motivo único para o viver aceitando os estímulos provenientes das forças antagônicas. O sim à vida não é, de modo algum, uma aceitação resignada da dor, mas uma luta contra ela. E é essa luta que representa a forma suprema da afirmação. Afirmação que devemos contrapor, nos dias de hoje, ao culto ao corpo como pretensão puramente narcísica, e à saúde normativa como assepsia com pretensões de hegemonia absoluta. Pois esse corpo e essa saúde - que nada têm a ver com as propostas nietzschianas - são, em última instância, apenas novas modalidades de recusa da singularidade que é própria à vida.

Referências BILHERAN, A. La maladie, critère des valeurs chez Nietzsche: premices d’une psychanalyse des affects. Paris: L’Harmattan, 2005. BLONDEL, E. Nietzsche le corps et la culture. Paris: PUF, 1986. DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. GIACOIA JUNIOR, O. Corpo: ponte para o mundo. In: FONSECA, T.M.G.; KIRST, P.G. (Orgs.). Cartografias e devires: a construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p.23-42. ______. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001. KLOSSOWSKY, P. Nietzsche e o círculo vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000. MONTEBELLO, P. Vie et maladie chez Nietzsche. Paris: Ellipses, 2001. NIETZSCHE, F. La généalogie de la morale. Paris: Le Livre de Poche, 2000. ______. Fragments posthumes (automne 1884 – automne 1885). Paris: Gallimard, 1982a. ______. Le gai savoir. Paris: Gallimard, 1982b. ______. Aurore. Paris: Gallimard, 1980. ______. Fragments posthumes (automne 1885 – automne 1887). Paris: Gallimard, 1979. ______. Fragments posthumes (automne 1887 – mars 1888). Paris: Gallimard, 1976. ______. L’Antéchrist. Paris: Gallimard,1974a. ______. Ecce homo. Paris: Gallimard, 1974b.

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NIETZSCHE, F. Crépuscule des idoles. Paris: Gallimard 1974c. ______. Par-delà bien et mal. Paris: Gallimard, 1971. ______. Ainsi parlait Zarathoustra. Paris: Aubier-Flammarion, 1969. ______. Humain, trop humain. Paris: Gallimard, 1968. WOTLING, P. Nietzsche et le problème de la civilisation. Paris: PUF, 1995.

PEIXOTO JUNIOR, C.A. Algunas consideraciones nietzscheanas sobre cuerpo y salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.727-38, out./dez. 2010. Con el intuito de resaltar la importancia de algunas consideraciones nietzscheanas para el entendimiento que se puede tener del cuerpo y de la salud, el presente trabajo parte de la crítica formulada por Nietzsche a la metafísica y al platonismo para discutir su punto de vista a propósito de las relaciones entre cuerpo y conciencia. A partir de lo cual, y teniendo como principal referencia el concepto de voluntad de potencia, se trata de mostrar como el cuerpo podría concebirse como una metáfora a la que recorre Nietzsche en su interpretación crítica de la subjetividad y de la cultura.

Palabras clave: Cuerpo. Salud. Conciencia. Interpretación. Recebido em 05/12/09. Aprovado em 12/04/10.

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Práticas e sentidos do barebacking entre homens que vivem com HIV e fazem sexo com homens Luís Augusto Vasconcelos da Silva1 Jorge Alberto Bernstein Iriart2

SILVA, L.A.V.; IRIART, J.A.B. Practices and meanings of barebacking among HIV-positive men who have sex with men. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.739-52, out./dez. 2010. This article is the result of an online ethnography about barebacking (intentional unprotected anal sex) in the Brazilian scene, between the years 2004 and 2007. More specifically, it aims to discuss the practice of barebacking among HIV-positive men who have sex with men, considering the implications, meanings and conflicts lived by them since the moment they discover being HIV-positive after engaging in barebacking. For this article, we use narratives produced in open interviews in MSN messenger after the creation of a webpage in orkut and the participation in communities about barebacking. Stories of three men from different regions of Brazil who practiced barebacking and underwent the process of seroconversion are analyzed. These brief stories highlight some tensions or ambiguities concerning pleasure and prohibitions associated with barebacking, including the feelings of freedom and guilt.

Keywords: Barebacking. Seroconversion. Pleasure. Risk. Male homosexuality.

Este artigo é decorrente de uma etnografia online sobre o barebacking (sexo anal desprotegido de forma intencional) no cenário brasileiro, entre os anos de 2004 e 2007. Mais especificamente, busca discutir a prática e sentidos do barebacking entre homens soropositivos que fazem sexo com homens, considerando as implicações e conflitos vividos por eles a partir do momento em que se descobrem soropositivos após o engajamento no sexo bareback. Para tal, utilizamos relatos produzidos em entrevistas abertas no MSN messenger, após a criação de uma página no orkut e participação em suas comunidades sobre o barebacking. Apresentamos histórias de três homens, de diferentes regiões do país, que praticavam o barebacking e passaram pelo processo da soroconversão. Nessas breves histórias, destacamos algumas tensões ou ambiguidades diante dos prazeres e das proibições ligados ao sexo sem camisinha, incluindo a culpa pelo engajamento no sexo desprotegido e o sentimento de liberdade produzido pelo mesmo.

Palavras-chave: Barebacking. Soroconversão. Prazer. Risco. Homossexualidade masculina.

1 Instituto de Humanidades, Artes & Ciências, Universidade Federal da Bahia. PAF III - Rua Barão de Jeremoabo, s/n. Campus Universitário de Ondina, Salvador, BA, Brasil. 40.170-115. luisvascon@uol.com.br 2 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia.

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PRÁTICAS E SENTIDOS DO BAREBACKING ...

Introdução Este artigo tem, como ponto de partida, uma tese de doutorado3, buscando abarcar alguns conflitos e interrogações sobre aspectos da sexualidade e saúde masculina. Referimo-nos aqui à discussão sobre as novas tendências da epidemia de HIV/Aids, ou melhor, sobre o recrudescimento do risco de infecção por HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis entre homens que fazem sexo com homens (HSH), em diferentes contextos industrializados (Elford, 2006), o que inclui o contexto brasileiro (Brasil, 2007; Da Silva et al., 2005). Mais precisamente, com base em uma leitura socioconstrucionista sobre o risco (Lupton, Tulloch, 2002; Spink, 2001; Lupton, 1999), buscou-se compreender a forma como usuários da internet, no contexto brasileiro, dão sentido ao fenômeno do barebacking, geralmente definido como o engajamento no sexo anal desprotegido, entre homens, de forma intencional (Suarez, Miller, 2001). O termo barebacking significa, literalmente, cavalgar ou montar sem cela. Originalmente empregado nos rodeios norte-americanos como uma modalidade de esporte sem proteção, passou a ser usado no contexto da comunidade gay (norte-americana), em meados de 1990, de forma analógica, para designar o sexo sem preservativo4 (Léobon, Frigault, 2005). Para alguns, representa uma estratégia de resistência a um discurso normativo da saúde em relação ao sexo seguro (Crossley, 2002; Rofes, 2002). Nessa perspectiva, é importante ressaltar uma ‘nova’ trajetória de positividade do risco (Spink, 2001; Le Breton, 2000; Lupton, 1999) que passa a ‘coexistir’ com a ideia (negativa) de risco como ameaça ou perigo, ou seja, resultados negativos ou indesejados que devem ser evitados (Douglas, 1994). Um aspecto, portanto, mostra-se central para a discussão: no barebacking tem ocorrido a valorização de uma experiência corporal, sensorial, que se concretiza a partir de um contato mais intenso com o outro (Silva, 2008; Shernoff, 2005; Halkitis, Parsons, Wilton, 2003; Mansergh et al., 2002), um prazer excedente que surge pela expansão e transgressão das fronteiras e limites do próprio corpo5. Com a realização desse prazer, as pessoas parecem adquirir maior autonomia e liberdade frente às normas e discursos socialmente estabelecidos. Faz-se, então, necessário considerar, na atualidade, a ‘explosão de discursos’ (Foucault, 2001) que reconhecem ou põem em evidência a vontade, possibilidade e o prazer do sexo sem camisinha, muitas vezes tornando o conceito de barebacking disperso e confuso6. É o caso, por exemplo, quando muitos de seus praticantes (e ‘curiosos’) não levam em consideração se há intencionalidade da prática, ou, mesmo, o tipo de vínculo ou condição sorológica dos parceiros envolvidos (Silva, 2008). Como já sinalizado por Shernoff (2005), o barebacking tem adquirido um sentido mais corriqueiro para referir-se a qualquer sexo anal desprotegido, mesmo de forma ocasional ou não intencional7. Essa ambiguidade de definições está também presente entre homens que vivem com HIV, quando usam o termo barebacking para descrever o sexo anal sem camisinha, não levando em consideração se o ato envolve intenção ou não (Elford et al., 2007). Assim, tomando por base a discussão sobre o conceito, sentidos e práticas do barebacking entre usuários da internet, no contexto brasileiro (Silva, 2008), buscamos focalizar e especificar essa discussão para ‘homens HIV positivo que fazem sexo com homens’. É importante destacar que estudos com homens que fazem sexo com homens, nos Estados Unidos e Inglaterra, sinalizam que homens HIV positivo praticam mais o barebacking do que homens HIV negativo, embora o engajamento no sexo desprotegido ocorra, sobretudo, com parceiros soroconcordantes (Elford, 2007, 2006; Halkitis, Parsons, 2003; Halkitis, Parsons, 740

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3 Este artigo traz a discussão de um capítulo da tese de Silva, defendida em abril de 2008, no Instituto de Saúde Coletiva (UFBA), sob a orientação do Prof. Dr. Jorge Iriart. Parte da tese foi desenvolvida durante o estágio de doutorado no exterior, na UQAM (Canadá), financiado pela Capes, sob a orientação do Prof. Dr. Joseph Lévy. O projeto de tese foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva, UFBA.

4 O termo barebacking (como sexo anal sem preservativo) aparece também associado a alguns nomes de atores pornôs gays, soropositivos, que, em meados de 1990, passam a declarar publicamente sua intenção de não usar mais a camisinha no sexo anal; foi o caso, por exemplo, de Scott O’Hara, que também aparece como o primeiro, em 1995, a criar a expressão barebacking para descrever o sexo anal desprotegido (Huebner, Proescholdbell, Nemeroff, 2006).

Esta é uma das perspectivas na discussão sobre a relação entre risco e prazer abordada por Deborah Lupton (1999), sobretudo no que diz respeito à transgressão das fronteiras e oposições (dentro-fora, eu-outro etc). Estas fronteiras (simbólicas) que demarcam comportamentos e que organizam os prazeres produzem, ao mesmo tempo, medo e fascinação, mostrando-se de forma ambivalente, tênue e instável, na medida em que o prazer e o risco entram em contato e, muitas vezes, se misturam. 5


SILVA, L.A.V.; IRIART, J.A.B.

7 Em estudo realizado por Huebner, Proescholdbell e Nemeroff (2006), com 398 homens gays e bissexuais, 64,4% consideraram o barebacking como ‘qualquer sexo anal desprotegido’, independentemente do tipo de parceria ou intencionalidade.

Deve-se ressaltar que muitos barebackers (negativos e positivos) aparecem como indiferentes ou ambivalentes em relação ao status sorológico de seus possíveis parceiros (Grov, Parsons, 2006; Tewksbury, 2003). 8

É interessante destacar que a internet vem servindo como fonte de conhecimento e difusão do barebacking. Entretanto, isso não significa que este fenômeno seja, simplesmente, um produto da internet ou ocorra apenas através da mesma, na medida em que há uma diversidade de espaços e abordagens para os encontros de barebacking (Silva, 2008; Halkitis, Parsons, Wilton, 2003; Mansergh et al., 2002). Há, portanto, de se considerar os diferentes interesses e usos da internet por seus usuários, como também os efeitos e transformações mútuas, das tecnologias, dos usuários e de suas culturas (Miller, Slater, 2004). 9

10 A maioria das comunidades do orkut girava apenas em torno da preferência pelo sexo sem camisinha, destacando seus aspectos positivos ou ‘ganhos sensoriais’. Na maioria delas, portanto, não havia nenhuma referência direta, na sua descrição, ao barebacking.

Wilton, 2003; Mansergh et al., 2002)8. Esta preferência por homens de mesmo status sorológico sugere uma modalidade de estratégia de ‘redução de danos’ utilizada por homens soropositivos (Halkitis et al., 2005). Seguindo esta tendência, Elford et al. (2007) também destacam que a internet parece facilitar esta relação entre homens soropositivos, considerando que é mais fácil revelar a soropositividade em contextos de interação online. Nessa direção, torna-se importante compreender as novas possibilidades e formas de interação social abertas pelo ciberespaço para homens que fazem sexo com homens, vivendo com HIV, podendo revelar a sua condição sorológica e falar abertamente sobre suas preferências sexuais, de forma menos estigmatizada9. A necessidade de compreender a dinâmica homoerótica entre homens soropositivos que praticam o barebacking encontra respaldo, também, na utilização diferenciada de estratégias para minimizar o risco de transmissão do HIV (Parsons et al., 2005). Por isso, apresentamos algumas sínteses de narrativa, ‘pequenas’ histórias de homens que vivem com HIV, sobre as suas trajetórias de barebacking. O propósito é discutir como esses atores compreendem o conceito de barebacking, a dinâmica da prática, as justificativas ou sentidos para a realização do mesmo. Nesse percurso, serão consideradas também as implicações (e estratégias) para a continuação do sexo anal desprotegido e os conflitos vividos por eles a partir do momento em que se descobrem soropositivos após um período de engajamento no barebacking.

artigos

6 Alguns autores tentam diminuir essa ambiguidade não considerando as práticas sexuais desprotegidas que ocorrem entre parceiros primários (Mansergh et al., 2002) ou, entre parceiros primários HIV negativo (Wolitski, 2005), como barebacking.

Acompanhando alguns barebackers positivos As histórias que serão retomadas neste artigo foram produzidas durante o percurso de uma tese de doutorado (Silva, 2008), tentando viabilizar uma etnografia online sobre as novas práticas de risco para HIV entre homens com práticas homoeróticas. Em 2006, após uma pesquisa de reconhecimento do campo, na internet, utilizando suas ferramentas de busca, foram encontradas sete comunidades do orkut que discutiam as práticas do barebacking (uma delas se posicionava contra a prática), bem como mais de quarenta que focalizavam os aspectos positivos em relação ao não uso da camisinha10. Após, aproximadamente, um ano e cinco meses de observação participante online nas comunidades do orkut (desde abril de 2006 a setembro de 2007)11, houve a participação em alguns fóruns criados diretamente para a discussão sobre o barebacking ou sobre o sexo sem camisinha12. Durante essa trajetória, como forma de acompanhar os grupos de discussão, foi criada uma página específica com as informações da pesquisa no orkut. É importante destacar que se buscou adaptar os textos existentes sobre consentimento informado para o contexto online. Assim, foi adaptado um termo de consentimento na página pessoal do orkut, criada especialmente para a apresentação do projeto de tese. No espaço organizado para o registro (perfil) do pesquisador, houve a descrição de toda uma postura ética que orientaria a pesquisa. A descrição sobre a condução do trabalho, objeto e objetivos também foram ressaltados. Nessa mesma página, foram inseridos os dados profissionais e vínculos institucionais do pesquisador. Com a criação de uma página pessoal, foi possível solicitar a participação de voluntários para uma entrevista online, aberta, utilizando o recurso do MSN existente para a conversa em tempo real. Vale enfatizar que foi registrado, na respectiva página, o endereço eletrônico do pesquisador para contato. Cada novo convite no MSN significava uma resposta positiva para participar da pesquisa, ainda COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.739-52, out./dez. 2010

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que esses interlocutores pudessem desistir ou retirar seu consentimento a qualquer momento. Na entrevista online13, portanto, todos os interlocutores tiveram a garantia do anonimato e ficaram novamente cientes de que os dados produzidos seriam utilizados em uma pesquisa de doutorado sobre as práticas do barebacking. Todos os interlocutores do MSN foram chamados pelo codinome de ‘Moscarda’, uma referência direta ao personagem de Luigi Pirandello14, buscando focalizar algumas perspectivas e facetas identitárias de possíveis barebackers no cenário brasileiro, sempre com o objetivo de respeitar o anonimato dos interlocutores. No que concerne à ‘identificação’ de cada um dos Moscarda, ela foi feita na forma de um endereço eletrônico (e-mail) fictício, trazendo apenas sua respectiva idade e região do país de onde ‘teclava’, por exemplo, ‘Moscarda20@hotmail.com, SP’. É importante esclarecer que o foco principal da pesquisa foram homens na internet que se diziam praticantes do barebacking, ainda que outros tivessem entrado em contato com o pesquisador no MSN sem se identificarem como barebackers, embora conhecessem o termo ou, mesmo, tivessem curiosidade para a realização da prática. Entre os 23 interlocutores que se autoidentificaram como barebackers15, três deles se posicionaram como soropositivos para HIV. Neste artigo, apresentaremos as trajetórias destes três homens - jovens, em torno de seus vinte anos, de diferentes regiões do país - que passaram a viver como soropositivo para HIV no decorrer de seus encontros de barebacking. Para a reconstrução das histórias, optou-se por um formato de escrita (narrativa) mais híbrido, trazendo, sempre que possível, os estilos de linguagem dos interlocutores e da ‘mídia’ em que foram gerados. Alguns dos fragmentos de discurso online, como continuação de uma resposta, foram postos no mesmo parágrafo, com o objetivo de tornar a leitura mais fluida. É possível que alguns dos recursos ou signos utilizados para complementar ou construir enunciados, como imagens e símbolos disponíveis no próprio MSN, tenham se perdido no momento de transferi-los e salvá-los como documento do word. Finalmente, é importante esclarecer que esses documentos de texto foram trabalhados no QSR Nvivo, um software específico usado para o tratamento e armazenamento de dados qualitativos. Dessa forma, ao acompanhar as linhas temáticas dos fragmentos de texto selecionados, foi possível identificar e relacionar os códigos (categorias) entre si, bem como localizar os respectivos segmentos de textos no interior das categorias de análise, sem perder de vista os ‘tópicos discursivos’ ou regras de conexão legitimadas socioculturalmente (Eco, 1999). Essas regras de conexão implicam considerar também o ‘contexto midiático’ (internet) de produção e circulação de textos.

Primeira história: Moscarda20@hotmail.com, SP Este Moscarda, de vinte anos, estudante universitário, teclando de São Paulo, sabia que barebacking significava “montaria sem cela e tal, e por isso serve pra descrever a prática sexual de risco”. Entretanto, procurava não excluir do ‘bare’ o vínculo com o parceiro: “porque eu me sentia praticante com meu ex namorado, com quem eu sempre transei bare, e mesmo depois de um ano de namoro continuava praticando com ele”. Para ele, portanto, havia uma diferença nesta sua trajetória de barebacking, que era a ‘intenção’ de não usar a camisinha com seu ‘ex’ desde o início do relacionamento, o que era também diferente de “uma transa acidental sem preservativo”. Para ser barebacking, então, era preciso que houvesse “a intenção de se transar sem camisinha”. Ele também não via essa sua prática como um prazer em correr 742

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11 Apesar de a pesquisa no orkut se iniciar em 2006, desde 2004 havia o acompanhamento de páginas na internet sobre encontros homoeróticos masculinos, focalizando ora a discussão sobre o risco para HIV/Aids, ora propriamente sobre o tema do barebacking. Em 2005, por exemplo, foi encontrado um grupo no Yahoo! Grupos, do Brasil, para a discussão e realização do barebacking. O acompanhamento online desse grupo ocorreu entre os meses de junho de 2005 a julho de 2006, momento em que o grupo deixou de estar disponível no endereço correspondente. É interessante destacar que a maior parte dos dados produzidos na tese de Silva (2008) foi gerada através do orkut, lançado em 2004. As comunidades sobre o barebacking continuaram (e continuam) a existir e se proliferar no orkut. Juntamente com outros sites de relacionamentos da internet, é possível, então, que o orkut venha se tornando um “canal” considerável de conhecimento e difusão da prática no cenário brasileiro.


SILVA, L.A.V.; IRIART, J.A.B.

Com alguns dos interlocutores, as conversas (online) se prolongaram no tempo, em dias diferentes, conforme a disposição e disponibilidade para a pesquisa. Alguns ‘tópicos-guia’ foram importantes para orientar a conversa, por exemplo: motivos, sensações e interesses no barebacking, diferenças entre barebacking e sexo sem camisinha em geral, o processo do encontro para o barebacking (‘como’, ‘com quem’ e ‘quando’). 13

risco: “vejo mais intimidade na relação sexual, mais liberdade, naturalidade”. Entretanto, ao mesmo tempo em que sentia prazer no barebacking, Moscarda retratava uma situação conflituosa e ambígua que advinha de suas experiências. Dizia ficar “muito preocupado e muito deprimido depois de ter a relação sem preservativo”, mas não sabia mais como evitar o barebacking, já era um ‘vício’ (“uma prática tão absurda e tão suicida e reprovável”). No momento da conversa online, Moscarda estava “meio brigado” com o seu namorado, de quem havia contraído o vírus HIV. Segundo ele, seu namorado tinha o vírus há pelo menos cinco anos, e estavam juntos há um ano. Há dois meses, Moscarda havia descoberto ser soropositivo: “meu namorado apresentou sarcomas de kaposi, a médica dele pediu o exame, deu positivo, eu fiz o meu depois q ele, e deu”. Ressaltava também que, até 2003, havia feito o teste para HIV várias vezes, todos negativos. A partir de 2005, quando começou “a meter bare”, parou com os testes, porque “tinha medo”. Moscarda enfatizava que “não gostaria de ser adepto ou de ter aversão a preservativo”. Havia usado a camisinha por muito tempo, ‘aliás’, só resolveu praticar ‘bare’ há um ano mais ou menos. Até os seus 18 anos, “mesmo não sentindo prazer com camisinha”, sempre a usou. Entretanto, quando começou a se relacionar com o seu (ex) namorado, passou a fazer sexo sem camisinha. Depois, passou a não usar com outros parceiros ocasionais. Moscarda sentia-se preocupado em transmitir para alguém o vírus, mas achava que as pessoas com quem ‘transava’ sem camisinha “eram todas praticantes de barebacking”, e ‘presumia’ que elas também eram ‘soroconvertidas’: “por ex., um cara do disponível16 que tem o nick bareback e pratica isso há três anos, é um soroconvertido com certeza”. Ele procurava, também, esclarecer que a intenção de não usar a camisinha não está associada diretamente ao risco de contrair o HIV, ainda que isso pudesse ocorrer ‘indiretamente’: “eu pratiquei bare mts (muitas) vezes quando eu estava deprimido e imaginava ser portador do hiv, entao pra mim algumas das vezes foram meio que uma forma de auto-destruição”. Não era também, simplesmente, querer se infectar. Explicava que, por causa de ‘outras transas’ que teve sem preservativo, acreditava ter contraído o vírus HIV. E então, por se sentir infectado, ‘simplesmente’ deixava de se preocupar com ‘isso’. Da mesma forma, por considerar o sexo sem camisinha com desconhecidos inadmissível, acreditava que podia ter contraído o vírus. Moscarda enfatizava que é muito difícil usar o ‘preservativo’ para quem é adepto do barebacking. E completava seu argumento dizendo que não era uma ‘vaidade’ não usar preservativo, “porque todo mundo sabe que é muito arriscado hoje fazer sexo sem camisinha”, mas era “um problema com relação ao preservativo”. Nesta perspectiva, sentia-se “mal por gostar do barebacking”. Dizia ser um “cara super responsável” (“estudo pra caramba, sou super altruísta e me preocupo mto com todo mundo”). Dizia ter se afeiçoado “pelo pior dos gostos sexuais”. Mas também, segundo ele, a camisinha era inadequada para o sexo anal: “não sentia prazer usando a camisinha”. Sentia desconforto: “a camisinha me incomoda, arde, alem de me trazer uma sensação de ausencia de intimidade”. Relacionou, então, o sexo sem camisinha à ‘liberdade’ e ‘intimidade’, destacando a ‘revolta’ contra o preservativo (apesar de não achar correto):

artigos

12 Essa estratégia metodológica foi importante para que se pudessem discutir alguns aspectos implicados (e ambiguidades) na relação entre o conceito de ‘barebacking’ e o ‘sexo sem camisinha’ de modo geral. Deve-se, entretanto, enfatizar que as comunidades vinculadas diretamente ao tema do barebacking foram objeto e referência principal da tese de doutorado. Esses conflitos e relações entre as comunidades não serão tratados neste artigo. A título de esclarecimento, é interessante citar que alguns homens ‘heterossexuais’, participantes das comunidades que valorizavam ‘positivamente’ o sexo sem camisinha, procuravam se posicionar como ‘não barebackers’. Para eles, o barebacker era um ‘homossexual’ que buscava desafiar o risco. É preciso, entretanto, ressaltar os aspectos morais e as relações de poder em jogo na distinção entre ‘heterossexuais’ e ‘homossexuais’; sobretudo porque o que ligava todos os discursos (sexo sem camisinha e barebacking) era a busca por experiências mais naturais e livres, sensações e prazeres mais intensos.

“Quando eu transo sem camisinha, sinto uma liberdade, uma intimidade sexual, uma sensação de prazer sem restrição. Parece que eu to fazendo sexo de verdade entende, sexo da maneira que sempre foi

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feito, até antes dos anos 80 [...] Mas veja, não é estranho usar camisinha? Não é algo artificial, um plástico que está sendo colocado no meio da relação sexual? [...] As vezes eu acho q o bareback é uma manifestação, um tipo de revolta contra o preservativo, eu sei que não tem lógica mas as vezes vejo assim, eu tenho varios pre-conceitos com relação ao bareback, eu nao prego isso q eu to falando, nem acho q seja correto, os maiores conflitos pessoais que eu tive e tenho foram com relação a isso... mas é um problema q eu tenho e q varias pessoas tem... acho q me revoltei contra o uso do preservativo”.

Entretanto, Moscarda explicava que, desde que descobriu “o HIV”, ‘transou’ com poucas pessoas: “com umas 4 eu acho, sauna (bareback), net (bareback) e disponivel (bareback)”. Tudo ocorria no anonimato, mas acreditando que todos eram soroconvertidos. Ele fazia questão de lembrar que, na verdade, só fazia realmente ‘sexo bareback’ quando tinha alguns momentos de ‘loucura’, “como enorme excitação, alcoolizado”. Ainda que usasse outras drogas, como cocaína e ecstasy, foi com o álcool que começou a ‘liberar’ mais sua vontade de praticar o barebacking. No entanto, sentia culpa e arrependimento “depois de ejacular”, ainda que ocorresse, no momento da ‘transa’, “uma coisa deliciosa, uma sensação de perigo com liberdade, naturalidade, indescritível”. Para ele, tirando a “sensação de depressão” que vinha depois, quando alguém ‘gozava’ dentro dele, sentia uma “coisa incrível”: “é como se o cara estivesse deixando aquilo de mais íntimo dele dentro de mim, uma sensação de que eu to fazendo sexo ‘original’”. Ele também se satisfazia quando ocorria apenas a penetração sem camisinha, mas reconhecia que “quando o cara goza a sensação de liberdade, de cumplicidade é maior”. Nessa perspectiva, Moscarda procurava remeter a imagem do esperma à “ejaculação interna dentro da mulher, à fecundação”. E completava sua analogia com as ideias de ‘cumplicidade’, ‘intimidade’, ‘risco’. Em relação aos cuidados que passou a ter após a soroconversão, trazia algumas das estratégias de redução do risco (danos) desenvolvidas por outros ‘barebackers’, que era a busca por evitar a “ejaculação interna”. No último mês, após o resultado positivo do teste, foi duas vezes à sauna e ‘transou’ sem preservativo: “ninguem gozou dentro de mim mas foi sem preservativo, e eu acredito na falsa ideia de que portanto que nao haja ejaculação interna e eu nao ejacule em ninguem a transmissao do virus está contida”. Para ele, também não havia nenhuma razão científica para acreditar nessa estratégia. Finalmente, Moscarda passou a falar de suas dificuldades de relacionamento, sobretudo depois que contraiu HIV. Dizia que ninguém de sua família sabia que tinha o vírus, apenas algumas “amigonas” sabiam desta sua história. Ele tinha medo de sofrer preconceito de qualquer “pretendente” se soubesse de sua ‘condição’. Também reconhecia que o sexo sem preservativo (e o uso de drogas) era “uma tentativa fictícia de compensação sexual e emocional”: “pelo menos enquanto fazendo sexo, ou sobre o efeito da droga, eu to numa realidade prazerosa”. Realidade prazerosa. Era o que Moscarda queria encontrar: “ter um namorado ideal, uma familia compreensiva, satisfação profissional, realizações pessoais, etc”. Enfim, o barebacking (e mesmo o uso de drogas) significava, para ele, “um pouco fazer o proibido, sair um pouco da realidade, descumprir regras”. Nesses “momentos de loucura”, Moscarda parecia fugir da realidade ou dar vazão a outro mundo: “nao sou eu, o garoto q estuda [...], q sai com os amigos pra tomar cerveja, parece uma explosao de loucuras”. 744

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14 Em “Um, nenhum e cem mil”, de Luigi Pirandello, o protagonista, Vitangelo Moscarda, encontra-se em situação inusitada ao descobrir não ser aquele que até então acreditava ser. Por intermédio de outro, sua esposa, percebe que seu nariz pende para a direita. A partir de então, mergulhado em dúvidas e questionamentos sobre sua própria identidade, busca conhecer o estranho que não ele mesmo. Durante a trajetória de rápidas transformações, o protagonista convive com a incerteza sobre si mesmo, um drama que se tensiona com a descoberta “dos cem mil Moscardas” não só para os outros, mas também para ele próprio.

Todos se colocaram na posição de homens com práticas homoeróticas, preferindo fazer sexo com outros homens. No que concerne à ocupação, eram, predominantemente, profissionais de nível superior ou estudantes universitários. Em relação à idade, oito estavam na faixa-etária de 18 a 23 anos, outros sete de 24 a 28 anos e oito de 29 a quarenta anos. A maioria deles (16) era oriunda da região Sudeste, principalmente dos Estados de São Paulo (11) e Rio de Janeiro (quatro).

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Site de encontros e relacionamentos masculinos.

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SILVA, L.A.V.; IRIART, J.A.B.

artigos

Segunda história: Moscarda26.1@hotmail.com, GO Para este Moscarda, de 26 anos, pós-graduando, teclando de Goiás, barebacking é “praticar sexo anal sem preservativo, com parceiros não fixos”. Moscarda sinalizava que não houve, de sua parte, um “rito de passagem” para o barebacking. Sempre esteve “entre práticas bare e não bare”. O que ocorria, “geralmente, era uma decisão ou concessão que acontecia no momento do ato sexual”. A ‘única vez’ que foi mesmo uma ‘decisão intencional’ (de não usar a camisinha) antes das relações sexuais foi em uma viagem internacional que fez em janeiro de 2007. Para ele, a palavra ‘acidental’ para a prática do sexo sem camisinha “não descreve bem a questão, porque sempre é deliberada, a menos que seja um estupro”. Moscarda passou, então, a esmiuçar este momento específico de sua vida como um tipo de divisor de águas, sobretudo para a sua decisão antecipada de abandonar o uso do preservativo: “Eu sempre tive um medo enorme de contrair o vírus HIV, sempre me fiz uma pressão muito grande nesse sentido, mas o que intriga é que sempre faço os exames e volto a expôr-me ao risco, mas quando falo em risco, falo em qualquer relação sexual sem preservativo, não necessariamente barebacking, e aí, se o cara goza na minha boca, ou se há penetração sem camisinha, aí fico todo neurótico, é um desgaste enorme de energia. No início desse ano, fiz uma viagem internacional longa, estava saindo de uma terrível crise depressiva. Nessa viagem, não sei explicar o que me aconteceu, simplesmente concluí que não queria mais usar preservativo, ainda que isso implicasse em uma contaminação. Não tenho base teórica para avaliar o que aconteceu comigo, mas apenas explicar que estava saindo de uma crise, e acredito que busquei ao máximo tirar das costas toda e qualquer pressão, inclusive aquela que me atormentou toda a vida: medo de contrair o vírus. Fiz sexo com penetração sem preservativo com seis caras diferentes, que não conhecia pessoalmente antes. Por incrível que possa parecer, não fiquei paranóico com o medo de uma possível contaminação”.

Até aquele momento, Moscarda fazia o teste para HIV periodicamente, uma vez por ano, e sempre dava negativo. A conversa com este Moscarda ocorreu em maio de 2007, um dia após ter a confirmação do resultado positivo para HIV: “três exames ELISA no meu sangue acusaram a presença de anticorpos, esta semana fiz o Western Blot pra checar, e o resultado se confirmou, tenho o vírus”. No espaço de oito meses, mais ou menos, desde seu último teste negativo, teve a confirmação daquilo que sempre pressentira: “a sensação que tenho é de que chegou a hora de eu ter HIV, aquela hora que sempre tive como certa o tempo todo, e que finalmente chegou”. Contava também que “entre a segunda coleta e o resultado final, foram alguns dias de muito sofrimento”. No dia em que o laboratório lhe telefonou pedindo uma segunda coleta, levou “um choque”, mas “esse choque” passou assim que pegou o resultado positivo. Mas também não passou pela sua cabeça se matar: “não dessa vez, muitíssimas vezes tive idéias suicidas, suicídio é muito recorrente em minha família”. Entre o dia da coleta e o resultado, disse ter entrado em contato “com os seis caras com quem tinha praticado bare”. Todos lhe asseguraram que eram HIV negativo. Isso o perturbava: “a insistência dos 6 em afirmarem que são (ou eram...) negativos me preocupa, pois sempre me pus na posição de vítima, e agora vejo que posso tê-los contaminado”. Dizia sentir “muito prazer” no contato com o esperma, gostar “do cheiro, do gosto, além da questão do proibido”. Ressaltava que esta ideia do proibido era ocasionada “por uma série de questões culturais, religiosas e de saúde”. Essa dimensão do proibido, portanto, estaria vinculada à prática do barebacking, ainda que o prazer não se reduzisse a esta dimensão, especialmente após a descoberta de sua soropositividade. Moscarda destacava que o fato de saber que era HIV positivo o fazia pensar “num monte de coisas sobre o futuro”. Reconhecia que esta descoberta “tinha sido muito mais fácil do que imaginara”. E completava: “talvez pq não adoeci ou pq é muito recente ainda, não sofri preconceitos e talvez não venha a sofrer, pois pretendo manter essa informação em sigilo”. No que concerne a seus parceiros de barebacking (antigos e futuros), fez algumas considerações, especialmente sobre alguns cuidados que teve no passado e outros que o aguardam no futuro. Relatou que praticava barebacking de maneira COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.739-52, out./dez. 2010

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regular com “três caras” que conhecia em sua cidade, mas também praticava com desconhecidos quando viajava. Com os parceiros desconhecidos, o único cuidado “era perguntar se ele era positivo ou negativo” (“mas sei que isso não representa muita coisa”). Entretanto, reconhecia que nem todos sabiam informar sobre a própria condição sorológica: “houve um que disse não saber... já tínhamos transado, mas eu tinha pedido a ele pra gozar fora”. Esse era outro cuidado que, “às vezes”, tomava pedir para “gozar fora”. Quando isso acontecia, geralmente com desconhecidos, Moscarda pedia para o ‘cara’ ‘gozar’ em sua boca. Para ele, isso era uma maneira de diminuir o risco, ainda que fosse “ruim”, porque “queria que gozassem dentro dele”. Nesse momento, algo se perdia, ainda que se sentisse menos paranóico: “sentia que poderia ter sido mais prazeroso, mas diminuía minha paranóia depois, de ter talvez me contaminado”. Nessas situações de risco, sentia também muita ‘culpa’, tinha ‘medo’ de decepcionar sua família, ‘medo’ de entristecer quem gostava dele. Mas admitia não ter ‘medo de morrer’. Tinha medo da imagem do suicídio por questões religiosas e porque não queria se sentir fraco (“medo tb de ter cometido um tipo de suicídio, não pelo medo de morrer, mas de ter cometido o ato em si, por questões religiosas e tb pq isso me fazia me sentir fraco”). Reconhecia que o barebacking sempre foi uma ameaça para ele, mas isso muitas vezes não o incomodava (“até dava mais tesão”). Entretanto, depois do resultado positivo, algo havia mudado: “se o cara for HIV- é uma ameaça a ele, e isso não quero fazer. Sei da questão da recontaminação, mas me preocupa menos me recontaminar do que contaminar outros”. Agora, depois de sua nova condição, Moscarda ressaltava que apenas iria praticar o barebacking (“sem medo e muito prazer”) com as pessoas que também são HIV positivo: “com aquelas que não sabem, que eu não sei ou que são HIV-, camisinha no bicho!”. No momento atual, ele descreve e nomeia suas práticas sexuais sem camisinha “de fato” como barebacking: “agora que já sei que sou HIV+ e decidi não mais usar com quem já é tb positivo”. No que diz respeito às suas práticas sexuais desprotegidas anteriores à ‘viagem’ e, agora, à contaminação, Moscarda passava a chamá-las “de momentos impensados, emoção falando mais alto que a razão, ansiedade exagerada”. Moscarda também tinha “quase como certo” que iria se “recontaminar”, na medida em que não tinha “a menor intenção de usar preservativo com quem abertamente pratica barebacking e/ou já se sabe HIV+”. Reconhece que, com a descoberta do HIV, tirou um “peso das costas, o medo de se contaminar, e o sentimento de culpa por se expor a riscos”. No decorrer de diferentes momentos da conversa online, enfatizava que o barebacking é “um comportamento auto-destrutivo, que parece levar à morte, destruição”. Porém, havia algo que parecia superar essa sensação de iminência da morte, visto que o barebacking era um dos poucos prazeres em sua vida: “é uma das coisas que consigo pontuar que gosto de fazer na vida... não me pergunte por muitas outras coisas que eu goste, não tenho muitas respostas”. Nesta trajetória de risco, Moscarda dizia produzir, por meio da prática do barebacking, um “sentimento de completude e realização”.

Terceira história: Moscarda26.2@hotmail.com, AP Nem todos os Moscarda que descobriram ter HIV disseram continuar a praticar o barebacking. Eis a história deste Moscarda, de 26 anos, graduação completa, teclando do Amapá, que definia o barebacking como “sexo sem proteção alguma, em qualquer situação” (“no popular, sem borracha”). No início da conversa online, dizia “curtir” de tudo no barebacking: “o que vale é a emoção! o tesão mesmo”. Moscarda pontuava que não era “assumido”, vivia “num armário escuro e frio, e não queria sair dele”. Começou a ‘transar’ sem camisinha desde os vinte anos, com homens mais velhos. Para ele, o barebacking “veio quase que naturalmente”: “sempre me relacionei com gente mais velha, daí eles dominavam a relacao, comecavam sem camisinha, e quando via ja tinha acabado”. Dizia ‘transar’ com homens e mulheres, ainda que preferisse os homens. Preferia, também, ser passivo. Contava que sentia “todo tipo de tesão inimaginável, liberdade, felicidade”, quando estava transando sem camisinha. Admitia que “era bem prazeroso” quando era penetrado: “eh como se tudo de bom acontecesse naquele instante, eh se sentir dominado! ser objeto de alguem, eh estar protegido, as vezes eh bom se sentir desejado”.

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Em suas palavras: “[...] o barebacking era minha liberdade.... queria ficar livre da familia q sempre m (me) cobrava netos, nora. da sociedade porque eu sempre tava soznho (sozinho) nas reunioes sociais, e as vezes d (de) mim por nao querer encarar td (tudo) isso d (de) frente... dai falando no bom portuga eu caia na putada... n (no) bare eu era o ‘Moscarda’ livre q podia td (tudo)”.

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artigos

Moscarda também falava sobre o sexo com desconhecidos de modo diferenciado. Segundo ele, existe “um tesão pelo desconhecido”, ou seja, na presença de anônimos, acrescenta-se “aquela coisa do casual, a coisa quase do selvagem”. Ressaltava que “a camisinha tira toda essa naturalidade do selvagem”. Nessas situações, dizia sentir-se ‘livre’ (“sem pudor mesmo!”). Para ele, com um ‘cara’ desconhecido, parece que podia ‘tudo’. E sentia-se “nas nuvens, via estrelas a cada estocada” que recebia de um anônimo. Ele também reconhecia outro motivo para não usar a ‘borracha’: “no sexo anal parece que a camisinha te queima por dentro, eh mais dolorido, e a sensação do esperma quente do parceiro eh perdida”. Para ele, portanto, fazia diferença não sentir o esperma dentro dele. Enfatizava que o esperma era o ‘clímax’: “uma sensação prazerosa que eu comparo com o orgasmo. Dessa forma, se usasse a camisinha, não ia sentir “o gozo” dentro dele (“e claro, também não ia gozar”). Moscarda sabia que os riscos existiam. Era um profissional de saúde e trabalhava em laboratório diretamente com testes para HIV. Entretanto, acreditava que “era imune a tudo e nada iria lhe acontecer”. Depois ficava preocupado e vinha a culpa. Porém, quando recebia outra proposta para ‘transar’, esquecia as preocupações e os riscos. Agora, ele não pensa mais nos riscos, pois abandonou o barebacking desde outubro de 2006, quando descobriu ‘ser soropositivo’. Enfatizava que não queria contaminar ninguém, querendo dormir com “a consciência tranquila”. De três em três meses, fazia o teste para HIV. O último resultado negativo tinha sido em julho de 2006. Entre os meses de julho e outubro, praticou barebacking várias vezes; participando, também, de “surubas bare” marcadas pela internet, em salas de bate-papo; e nunca descartou a possibilidade de se infectar ‘no bare’. Sabia que algo podia sair errado. Reconhece que foi um choque quando viu o resultado, mas admitia ser algo já esperado. Segundo ele, era a mesma coisa que pular de paraquedas: “o que vale eh a emoção do momento, mesmo vc sabendo que uma hora o para-quedas pode naum (não) abrir”. Moscarda explicava que apenas praticava barebacking porque sabia que era HIV negativo, ou seja, “que não oferecia riscos”. Entretanto, em seus encontros, sabia que alguém podia ser soropositivo. Para ele, “esse seria o legal do bare”: “se todos fizessem que nem eu o para-quedas ia sempre se abrir”. Moscarda, portanto, admitia existir uma “emoção do inesperado, do desconhecido, tipo roleta-russa” no barebacking. Ainda que dissesse não poder mais praticar sexo sem camisinha, ressaltava que ‘o bare’ tinha significado, para ele, única e inesgotável fonte de prazer. No barebacking, Moscarda queria provar para si mesmo que era “o dono da situação”, que podia ser ele mesmo, livre, inclusive do “politicamente correto e preventivo” 17.

Considerações finais: sobre estes e outros (possíveis) ‘Moscarda’ No orkut, é possível acompanhar fóruns de discussão sobre o barebacking em que alguns dos membros se dizem “positivos” (“convertidos”), levando o vírus HIV ou “convertendo” outras pessoas. No decorrer dessas trajetórias interativas, existem aqueles para quem o medo (ou dúvida) da infecção parece (ou pode) não mais fazer parte do seu cotidiano, quando a possibilidade ou certeza de ser “convertido” (“positivo”, “carimbado”) torna-os livres e despreocupados para a realização do sexo “sem borracha”. Uma mudança de ‘status’ (biológico e social) que pode colocá-los fora da ordem, na posição de estranho, doente, abjeto,

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perigoso, podendo também ter a “oportunidade” de levar, compartilhar ou dividir com alguém este mesmo lado da fronteira (a soropositividade). Entretanto, isso não significa que não haja conflitos morais, preocupações ou sofrimentos mobilizados pelo vírus HIV. Conforme indicado em outros relatos online, e pelos ‘Moscarda’ cujas trajetórias foram aqui sintetizadas, estas tensões giram em torno do bem-estar pessoal e as implicações (do próprio prazer) para o parceiro. Depois que se descobriram como ‘portadores do HIV’, todos estes Moscarda passaram, em maior ou menor grau, a conduzir suas trajetórias afetivo-sexuais de uma maneira diferenciada: um desses Moscarda (‘Moscarda26.2@ hotmail.com’), por exemplo, decidiu não mais praticar barebacking. De qualquer forma, a preocupação em não transmitir o vírus HIV para outros homens foi uma temática marcante em todas as três histórias. Nessa direção, dois dos Moscarda (‘Moscarda20@hotmail.com’; ‘Moscarda26.1@ hotmail.com’) que continuaram a se identificar como barebackers falaram sobre a necessidade de fazer sexo bare com parceiros (presumidamente) também “positivos”. Ressalta-se que um deles (Moscarda20@hotmail.com) mais especificamente partia do pressuposto de que quem pratica barebacking é soropositivo. Por sua vez, todos viveram, em maior ou menor grau, um sentimento de culpa por se engajarem no sexo desprotegido. Como em outros relatos disponíveis em fóruns do orkut, depois do resultado positivo para HIV, um dos Moscarda (‘Moscarda26.1@hotmail.com’) também sentiu alívio por não precisar mais viver com a culpa de se engajar no sexo desprotegido e por não se preocupar mais em contrair o HIV. Também no que se refere à definição do ‘barebacking’, estes Moscarda, de certa forma, demonstram que a mesma tem sido ‘usada’ de forma distinta (e ambígua). Na última história, por exemplo, o barebacking é definido simplesmente como ‘qualquer sexo sem borracha’18. Finalmente, com base nos interesses e justificativas para a realização do barebacking (maximização do prazer sensorial e sentimento de liberdade) presentes nas três histórias, é importante discutir algumas implicações eróticas do sexo sem camisinha ou ‘borracha’, quando o barebacking aparece associado à maior estimulação física, a um sentimento de estar emocionalmente mais próximo (conectado com o parceiro) ou à ideia de um sexo mais “quente” (Halkitis, Parsons, Wilton, 2003; Mansergh et al., 2002). Nessa direção, é interessante focalizar o erotismo como uma maneira de colocar em xeque a ordem e regularidade da vida ou a descontinuidade dos seres (Bataille, 2004) 19. Então, se o erotismo é a “aprovação da vida até na morte” (Bataille, 2004), pode-se problematizar o sexo desprotegido como uma maneira de afirmar a própria vida, de se sentir encantado novamente, compartilhá-la (e conectar-se) com outros, enfim, restabelecer uma existência precária, ainda que de modo muito frágil e provisório. Em contrapartida, como argumenta Le Breton (2000), quando fala sobre a paixão do risco em tempos de vazio, perda de referência de sentidos e valores da cultura contemporânea, o próprio indivíduo passa a buscar um sentido para a sua vida desafiando, deliberadamente, os riscos. Uma maneira, portanto, de fabricar sentido através do “afrontamento real ou simbólico da morte”; podendo-se renovar a intensidade do viver. Por sua vez, a partir da possibilidade de soroconversão, é importante desenvolver alguns aspectos que giram em torno da responsabilidade do cuidado e das novas facetas interativas centradas na condição sorológica dos parceiros sexuais. O ponto principal a destacar é que esta responsabilidade parece adquirir um peso diferenciado (e maior) para as pessoas que têm o vírus HIV, quando se sentem ‘obrigadas’ a protegerem e a cuidarem do outro20. Este aspecto mostra a 748

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18 Não significa dizer, com isso, que o termo barebacking (e suas variações – sexo bare, BB, bareback etc) não tenha mais utilidade, sobretudo porque pode indicar/ sugerir que alguém (ou um grupo) prefere ou pratica sexo sem camisinha. Nessa perspectiva, além do desenvolvimento de novos estudos sobre os usos do conceito e dinâmica da prática em contextos de interação diversos (online e offline), torna-se importante, ainda, compreender os (novos) sentidos, motivos e interesses no sexo desprotegido, considerando os múltiplos posicionamentos identitários (de gênero, sexual, classe etc.). 19 Por exemplo, na discussão sobre a cultura sexual no Brasil, Parker (1991) aponta o sistema erótico como alternativo à ideologia de gênero e da sexualidade (norma da heterossexualidade reprodutiva). A referência do erótico não anula nenhum desses dois sistemas; pelo contrário, o erótico viabiliza-se pela existência das proibições, ligando-se de várias formas aos significados sexuais disponíveis. A ideia de proibição é fundamental para entender a dinâmica transgressiva no campo sexual, especialmente no que se refere aos espaços públicos onde predomina a norma heterossexual, possibilitando, por exemplo, a pegação e o sexo nos banheiros públicos, nos parques, nas praias etc. 20 Não se deve negligenciar uma discussão sobre o modelo de responsabilidade em foco, eminentemente individualista, neoliberal, que tem justificado a prática do barebacking (Adam, 2005). Segundo Adam (2005, p.344), a visão neoliberal que tem acompanhado o discurso sobre o barebacking “constrói os atores humanos como racionais, adultos, indivíduos fazendo contratos em um mercado de opções livres”.


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Essa temática em relação à preocupação com o vírus HIV (quem é ‘soropositivo’ ou ‘soronegativo’), abre uma discussão sobre o modo como as relações contemporâneas passam a ser orientadas e organizadas em torno de marcas e atributos corporais (biológicos), ou seja, em torno das ‘bioidentidades’ (Ortega, 2003).

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23 Por exemplo, a retirada do pênis antes da ejaculação, a ‘preferência’ por ser ativo ou passivo (posicionamento estratégico) e a busca por manter relações sexuais desprotegidas com homens do mesmo status sorológico (Shernoff, 2006; Parsons et al., 2005; Suarez e Miller, 2001).

Seria uma visão reducionista (e biologicista) pensar o barebacking como um fenômeno ‘patológico’ ou como um ‘problema’ vinculado (exclusivamente) a pessoas ‘mal ajustadas’ socialmente ou psicologicamente. É preciso destacar que, para além de discursos moralizantes, existe uma variabilidade de situações em que são produzidas estratégias e justificativas para não se usar a camisinha, buscando-se intensificar a intimidade e o prazer vivido entre os parceiros (Silva, 2008).

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dificuldade, o medo e o sofrimento de muitas pessoas para falar sobre a sua soropositividade. Por outro lado, como explicam Van Kesteren et al. (2005), o sentimento de responsabilidade pessoal de ‘homens HIV positivo que fazem sexo com homens’ frente ao sexo seguro também sofre influência de fatores situacionais e interpessoais, podendo produzir comportamentos discrepantes. Dessa forma, tipos de parceria (estável ou ocasional), normas sociais (pressões dos parceiros para o engajamento no sexo desprotegido) e as características dos parceiros sexuais (atratividade física e emocional) podem afetar o sentimento de responsabilidade em relação ao outro. Estas mesmas contingências mobilizam uma reflexão ou questionamento sobre a necessidade (direito ou dever) de alguém publicizar que é ‘portador do HIV’ para o parceiro sexual, sobretudo quando os mesmos estão engajados no barebacking. Dessa forma, a necessidade de fazer parte de um grupo ou comunidade, de compartilhar um sentimento de inclusão, de ser aceito, sentir-se desejado, de se entregar completamente ao outro (sem preocupação ou culpa), parece produzir novos modelos de relacionamentos e contatos, ou mesmo justificar o sexo desprotegido entre homens HIV positivo. Este aspecto também foi discutido por Halkitis et al. (2005), mostrando que o barebacking entre homens soropositivos também funciona como afirmação do self, da vida e da atratividade física. Torna-se, assim, importante a construção de espaços mais abertos e dialógicos que possam reconhecer as diferenças21; espaços estes em que as pessoas se sintam incluídas (e desejadas), sem terem, necessariamente, de compartilhar uma mesma identidade (‘positiva’ ou ‘negativa’)22. Vale ressaltar que o sentimento de ‘pertencimento’ é altamente importante na vida de qualquer pessoa, o que nos faz refletir sobre as repercussões ou efeitos produzidos quando as pessoas se sentem estranhas ou fora do lugar. Nessa direção, é preciso reconhecer os limites (e efeitos) atuais do discurso preventivo-epidemiológico, orientado pela ideia do ‘sexo seguro sempre’ (Terto Jr., 2002). Com base nesse ponto de vista, torna-se importante focalizar e discutir a viabilidade (e alcance) de outros modelos alternativos de prevenção e ‘redução de danos’ que já circulam no cotidiano vivido dos diversos atores23. São estratégias alternativas desenvolvidas a partir das preferências sexuais, crenças, experiências e contextos interativos. Evidentemente, outros barebackers preferem não fazer uso dessas estratégias, investindo nas emoções e ganhos sensoriais obtidos no sexo ‘sem borracha’ de forma mais livre ou completamente sem restrições. O prazer, portanto, é uma dimensão importante da vida (e do risco) que não deve ser posto como secundário no campo da saúde, especialmente no momento atual em que se destaca a busca de ‘prazer corporal’ (Costa, 2004), quando as pessoas são vistas como colecionadoras de experiências e sensações (Bauman, 1998). Deve-se lembrar que as histórias contadas neste artigo também enfatizaram o prazer e o sentimento de liberdade vivido no sexo ‘sem borracha’24. Um tipo de prazer extático (Coveney, Bunton, 2003) que se produz através da liberação e comunhão entre os parceiros. De algum modo, os protagonistas dessas histórias reconheciam que o risco (com suas interdições) também produzia fortes emoções, ainda que nenhum deles tenha se colocado (explicitamente) na posição de quem buscava contrair o HIV. A partir desse cenário, torna-se importante problematizar as dificuldades ou fragilidades da vida contemporânea para considerar projetos mais coletivos, mas também discutir, reconhecer, imaginar (e viabilizar) formas e espaços alternativos de produção de novos (e distintos) prazeres importantes para se ‘recriar’ o gosto pela vida. Evidentemente, isso não significa impor padrões de relacionamento ou COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.739-52, out./dez. 2010

artigos

21 Há a necessidade de se pensar estratégias de prevenção que focalizem mais os “contextos de intersubjetividade” (Ayres, 2002), de reconstrução de identidades através de contínuas interações (entre sujeitos); ou, em termos ‘bakhtinianos’ (Bakhtin, 2002), a multiplicidade de ‘vozes’ (imiscíveis) que coexistem (simultaneamente), possibilitando a produção de novos sentidos (e posicionamentos); enfim, modos de vida criativos.

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convivência alheios aos próprios atores, tampouco (re)produzir um modelo de culpabilização ou vitimização dos mesmos. Esta multiplicidade de prazeres, portanto, é irredutível ao sexo (ou, mais precisamente, ao ato da penetração sexual). Além de trazer (e atualizar) esta discussão em diferentes espaços dialógicos (para além das oficinas de sexo seguro), é preciso, também, reconhecer que os “soropositivos não vivem em outro mundo” (Ayres, 2002, p.20). Os prazeres (e desejos) continuam a existir e se multiplicar (por exemplo, sentir-se ligado/conectado a outras pessoas). Notoriamente, esses contextos de interação, de diversas ‘vozes’, vão além do setor Saúde. É o caso das ‘comunidades’ de ‘homens com HIV que fazem sexo com homens’, criadas na internet (orkut, por exemplo) com o objetivo de trocar experiências e construir novas redes de relacionamento. Certamente, este novo cenário abre possibilidades interessantes de prevenção e promoção da saúde para homens que fazem sexo com homens no Brasil25.

25 No que concerne à ‘entrada’ e ‘impacto’ do barebacking no cenário brasileiro, onde as políticas públicas para homens que fazem sexo com homens ainda são muito incipientes, é importante considerar as ‘diferenças’ dos ‘atores’ locais, os usos e sentidos da categoria ‘barebacking’ para que ‘respostas’ mais adequadas sejam produzidas. Por outro lado, é preciso, também, lembrar que existem muitos homens com práticas homoeróticas que não se identificam como ‘gays’, não conhecem o termo barebacking, tampouco podem acessar (e pagar) determinados serviços. Isso exige, portanto, o desenvolvimento de estratégias de prevenção e promoção de saúde de forma mais diversificada e contextualizada.

Colaboradores Luís Augusto Vasconcelos da Silva desenvolveu a pesquisa, analisou os dados e escreveu o artigo. Jorge Alberto Bernstein Iriart orientou a pesquisa, fez revisão, correção e sugestões no manuscrito. Referências ADAM, B.D. Constructing the neoliberal sexual actor: responsibility and care of the self in the discourse of barebackers. Cult., Health Sex., v.7, n.4, p.333-46, 2005. AYRES, J.R.C.M. Práticas educativas e prevenção de HIV/aids: lições aprendidas e desafios atuais. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.6, n.11, p.11-24, 2002. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. BATAILLE, G. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004. BAUMAN, Z. On postmodern uses of sex. Theory Cult. Soc., v.15, n.3-4, p.19-33, 1998. BRASIL. Plano nacional de enfrentamento da epidemia de Aids e das DST entre gays, HSH e travestis. Brasília: Ministério da Saúde, 2007. CONVENEY, J.; BUNTON, R. In pursuit of the study of pleasure: implications for health research and practice. Health, v.7, n.2, p.161-79, 2003. COSTA, J.F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

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SILVA, L.A.V.; IRIART, J.A.B. Prácticas y sentidos del barebacking entre hombres que viven con HIV e hacen sexo com hombres. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.739-52, out./dez. 2010. Este artículo es consecuente de una etnografía online sobre el barebacking (sexo anal desprotegido de forma intencional) en el ámbito brasileño, entre los años 2004 y 2007. Más específicamente: busca discutir la práctica y sentidos del barebacking entre hombres sero-positivos que hacen sexo con hombres; considerando las implicaciones y conflictos vividos por ellos a partir del momento en que descubren sero-positivos tras el comprometimiento en el sexo bareback. Para tal utilizamos relatos producidos en entrevistas abiertas en MSM Messenger después de la creación de una página en el orkut y la participación en sus comunidades sobre el barebacking. Presentamos historias de tres hombres, de diferentes regiones del país, que practicaban el barebacking y pasaron por el proceso de sero-conversión. En estas breves historias detectamos algunas tensiones o ambiguedades ante los placeres y las prohibiciones relacionadas al sexo sin condón incluyendo la culpa por su participación en el sexo desprotegido y el sentimiento de libertad que produce.

Palabras clave: Barebacking. Cero conversión. Placer. Riesgo. Homosexualidade masculina. Recebido em 12/05/09. Aprovado em 13/03/10.

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artigos

Higienizar, cuidar e civilizar: o discurso médico para a escola paranaense (1920-1937)

Liliana Müller Larocca1 Vera Regina Beltrão Marques2

LAROCCA, L.M.; MARQUES, V.R.B.Sanitizing, caring and civilizing: the medical discourse for schools in the State of Paraná (1920-1937). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.753-66, out./dez. 2010. Based on the investigation of medical discourses referring to school sanitation, this study addresses the spread of the Hygiene science in the State of Paraná, southern Brazil, between 1920 and 1937. Discourses to schools present in many sources, mainly periodicals, Archivos Paranaenses de Medicina and Revista Medica do Parana, pointed out the perception of medicine underpinned by Hygiene, in which doctors advocated a new social function: educators. By discussing intervention in schools and their users, doctors intended to “care for, protect and sanitize infancy”, a task aiming to insert the territory of Paraná in the national process of hygienic and social sanitation. It is a historical research study, inspired by Norbert Elias’ ideas of Civilizing Process. Thus, its purpose is to recognize civility proposals in the medical discourses created to the schools of the State of Paraná. Educational conceptions in the studied period evolved from knowledge, prescriptions and discourses on Hygiene science and its greatest advocates - the doctors.

Com base na investigação dos discursos médicos referentes à higienização da escola, este estudo problematiza a difusão da ciência Higiene na sociedade paranaense no período compreendido entre 1920 e 1937. Os discursos para a escola presentes em várias fontes, com destaque para Archivos Paranaenses de Medicina e Revista Medica do Paraná, emergiram a percepção de uma medicina na qual os médicos defendiam uma nova função social: a de educadores. Ao tematizarem sobre uma intervenção nas escolas e nos seus usuários, pretendiam “cuidar, proteger e higienizar a infância”, tarefa assumida com vistas à inserção do território paranaense no processo de saneamento sanitário e social. Trata-se de uma pesquisa de caráter histórico, inspirada nas ideias de processo civilizador de Norbert Elias. Assim, propõe-se reconhecer propostas de civilidade contidas nos discursos médicos. As concepções de educação e as prescrições para a escola no período estudado, produzidas pela Ciência Higiene, são aqui apresentadas.

Keywords: School health. Eugenics. History of medicine. Medical education.

Palavras-chave: Saúde escolar. Eugenia. História da medicina. Educação médica.

Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Paraná. Rua Padre Camargo, 120, Curitiba, PR, Brasil. 80.060-240. larocca_m@terra.com.br 2 Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná. 1

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HIGIENIZAR, CUIDAR E CIVILIZAR: O DISCURSO MÉDICO ...

Introdução Desde meados do século XVIII, o “cuidar de si” era preconizado por meio de conselhos médicos divulgados nos manuais de boa conduta que se encontravam embebidos do ideal iluminista de uso da razão humana para promoção do progresso social (Marques, 2003). A preocupação com a higiene das pessoas e das cidades e sua transformação em um conjunto de normas e leis, com objetivo de controlar doenças e de melhorar a vida em sociedade, foi decorrência de um longo percurso histórico (Hochman, 1998). A higiene como ciência e prática médica data do início do século XIX. Entendida como “arte de conservar a vida”, indicava rumos para sua utilização, fosse pelos que afirmavam as responsabilidades individuais no processo de adoecer e morrer ou como conceito para os que alardeavam sua determinação social (Arouca, 1975). Compreendida como medida para diminuir o desperdício de recursos humanos causado pelas doenças, a Higiene também foi “guia científico”. Como disciplina acadêmica, se destacou na Alemanha em meados de 1860, servindo de alicerce para o progresso e regeneração social (Arouca, 1975). Como ciência, se institucionalizou, produziu práticas e discursos, os quais encontraram eco e visibilidade na atuação dos médicos paranaenses. O conceito de limpeza passou a refletir o processo de civilização de uma sociedade, moldando gradualmente as sensações corporais. Refinou comportamentos e desencadeou, sutilmente, seu polimento; promoveu o crescimento do espaço privado, do autorregramento e dos cuidados individuais, ações cada vez mais estreitadas entre o íntimo e o social. Trata-se de uma história que percebeu o peso da cultura sobre as sensações imediatas: do “toalete seco” do cortesão, esfregando o rosto com um pano branco, às normas de limpeza “racionais” do século XVII, nas quais os critérios de limpeza eram ditados pelos autores de livros de boas maneiras, até o advento da era bacteriológica, quando se iniciou um gradual deslocamento dos saberes em direção à higiene e à medicalização das sociedades (Vigarello, 1996). No Brasil, as prescrições médicas adentraram o século XX impulsionadas pelos poderes da Ciência Higiene, de maneira a convocar a adesão a novos saberes. Gradualmente tornaram-se “rituais de saúde”, com o intuito de alavancar a cidadania, numa cruzada pela saúde, educação e civilidade (Rocha, 2003a). A escola foi lócus privilegiado dessas prescrições, local onde a higiene formatou propostas de construção de modelos educacionais, formação de professores, inspeção de alunos e de organização de espaços e equipamentos, objetivando a formação de novos e higienizados cidadãos. Pensada como “veículo de formação harmônica do corpo e do espírito”, à escola foi delegada a missão de modelar os futuros cidadãos necessários à construção da nação brasileira. A medicalização da infância e a intervenção nas possíveis degenerações aconteceriam, segundo os esculápios, por meio de prescrições e campanhas em prol da educação higienista, possibilitando a transposição dos bons hábitos adquiridos na escola à vida doméstica, promovendo assim o saneamento médico e social do país (Marques, 1994). Alguns médicos paranaenses aderiram aos discursos higienistas e civilizadores, particularmente no início do século XX. Entre os veículos por eles utilizados e que permitiram auscultar seus clamores, destacamos os Archivos Paranaenses de Medicina3 (APM) e a Revista Médica do Paraná (RMP)4, cujas edições circularam nas décadas de 1920-1930. Ao se reconhecerem como porta-vozes da higiene, e atuando, segundo suas normas, na contenção dos flagelos paranaenses, bem como 754

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3 Revista de Medicina Experimental e de Hygiene - Órgão Oficial do Serviço de Prophylaxia Rural, editada mensalmente entre os anos de 1920 e 1923.

Órgão da Sociedade Medica dos Hospitaes do Paraná (fundada em dezembro de 1930), mantém sua periodicidade até os dias atuais sob a chancela da Associação Médica Paranaense. 4


LAROCCA, L.M.; MARQUES, V.R.B.

artigos

na regeneração nacional, orquestraram uma cruzada ousada: a construção de uma nova ordem sanitária, objetivando trazer civilidade para o Paraná. O processo higienização-escolarização redundaria na civilidade, pensada como codificação de normas de conduta, condicionando, adestrando e atuando no autocontrole de pulsões, de forma a submeter os indivíduos às intervenções modeladoras (Elias, 1994, 1993). E ainda mais: civilidade foi um dos componentes do processo civilizatório, considerado não apenas um conjunto de conquistas tecnológicas ou econômicas, mas, antes de tudo, um estágio no relacionamento entre os seres humanos. A escola então foi escolhida como foco para as intervenções nos relacionamentos humanos, desenvolvidas por meio de prescrições médicas pormenorizadas, objetivando o controle das pulsões. Controle este considerado basilar na organização da medicina social, no início dos Novecentos, no intento de construir cidadãos civilizados. Foi um período vibrante de produção de conhecimento e tentativas de disseminar preceitos higiênicos para os professores - os mais indicados para repassá-los aos pequenos cidadãos em formação. De fato, o professorado estava em locais onde os médicos não circulavam; tinham um domínio territorial que faltava aos doutores; eram, portanto, potenciais agentes civilizadores e precisavam ser chamados à cruzada. Construir um Paraná moldado pela saúde e educação apresentava-se como o grande desafio.

A missão de higienizar - prescrevendo para a escola Segundo Marques e Farias (no prelo), os escolares paranaenses, no início do século XX, eram acometidos por várias doenças: gripes, verminoses, anemias, pediculoses, casos de “heredo lues” (sífilis), varicela, sarampo e escarlatina. Este cenário não deixava dúvidas: “sem higiene não haveria condições de saúde adequadas, nem ‘escola produtiva’ e os alunos dificilmente se tornariam futuros cidadãos moralizados e úteis ao estado e à nação, pois até do vigor físico se ressentiam”. Cabia à escola estancar a degeneração nacional. E, nesse intuito, formar professoras e normalistas para atuarem como educadoras sanitárias tornara-se imprescindível. Estudos de Rocha (2003b, p.400) demonstram que instrução, moral e saúde formariam um tripé capaz de alicerçar “[...] a atuação das novas mensageiras da saúde, incumbidas do sublime apostolado de levar a todos os cantos a boa nova da regeneração da raça brasileira” (grifos no original). Guiar a infância faria os professores “cruzados” capazes de aproximarem as crianças do “evangelho da saúde” e promoverem sua conversão à “religião da higiene” (Rocha, 2003b, p.400). Tal papel faria parte da formação de cidadãos vigorosos e virtuosos capazes do engrandecimento nacional, levando o Brasil à “vanguarda da civilização” (Rocha, 2003b). Discursos com ênfase eugenista chegaram ao Paraná. Nos anos 1920, as ideias eugênicas circulavam mais densamente nas publicações médicas paranaenses. A eugenia foi tema de trabalho original de Fontenelle (1923), publicado nos Archivos Paranaenses de Medicina: “[...] palavra que significa ‘geração bôa’ e conhecimentos scientificos que concorrem para melhoramento physico e mental das gerações futuras e a necessidade de restringir a propagação dos individuos doentes, monstruosos, degenerados e deficientes mentaes” (p.107). Como higiene da raça, a eugenia tomava para si discutir os flagelos nacionais, com destaque para: a tuberculose, consanguinidade, alcoolismo e doenças sexualmente transmissíveis. A civilidade e o autorregulamento, de acordo com os médicos paranaenses, dar-se-iam por meio de várias estratégias, dentre elas desenvolver o campo fértil do espaço escolar, uma vez que a criança era considerada “massa modelável” capaz de reproduzir, no ambiente familiar, as prescrições higienizadoras. Há que se considerar: a realidade sanitária das crianças, das famílias, das escolas e das professoras ganhava novos contornos no século XX. Para tanto, os médicos paranaenses organizaram estratégias. E a formação higienista de professores por meio de cursos específicos foi o primeiro passo dado, já que a escola foi escolhida como “sede primeira” de formação de hábitos higiênicos, corroborando as relações entre saúde-educação e seus respectivos representantes. Nos Archivos Paranaenses de Medicina (Redacção..., 1922, p.191-2) destacava-se:

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[...] o ensino de hygiene é de importância tamanha, que bem merece as attenções dos dirigentes do nosso estado, tornando-o mais desenvolvido e em condições de maior efficiencia pratica. Não basta o que se tem feito até aqui [...].

Desde meados do século XIX, intelectuais e cientistas europeus, cujas ideias ecoaram no Paraná, acreditavam que o universo era regido por leis mecânicas, causais e evolutivas, cerceando a liberdade individual. Tratar-se-ia de uma situação na qual a soma das características físicas de uma raça determinaria sua relação com o meio. O fenótipo dos indivíduos era considerado “espelho d’alma”, em especial no que se referia às virtudes e vícios (Schwarcz, 1993). Urgia, para tanto, reconhecer, nas crianças, vícios e virtudes, e fazer intervenções nos primeiros e a promoção das segundas, sendo a escola espaço ideal para tal ação. O estabelecimento de um paradigma “moderno” à saúde brasileira - reconhecido fundamentalmente como um conjunto de ações capazes de introduzirem hábitos higiênicos e eugênicos na população e reestruturarem o “tipo nacional” - orientou os discursos produzidos nas sociedades médico-científicas nos primeiros trinta anos do século XX (Herschmann, Pereira, 1994). Reconhecemos, na construção de uma ordem sanitária nacional, etapas de um processo civilizador, no qual, de acordo com Elias (1997), algumas figurações sociais podem ser analisadas sob a ótica das coerções, nas quais, por distintas maneiras, os seres humanos estão sujeitos a relações de interdependência dentro de dinâmicas sociais específicas. Tais dinâmicas estariam representadas por mudanças nas relações entre coações sociais internas e autocoações individuais, papel amplamente reconhecido nas prescrições médico-higiênicas do início do século XX. O movimento gerado pelos doutores paranaenses para efetivação da ordem sanitária produziu estratégias – discursos, prescrições, ocupações de espaços, eleição de coadjuvantes – que atuaram sobre e sofreram interferências do movimento social urbano paranaense desencadeado pelos atores sociais circulantes no cenário local. Tomamos por hipótese que, além da participação de técnicos paranaenses em eventos e sociedades científicas e profissionais, um dos fatores determinantes na difusão do ideal higienista no Paraná foi a publicação de periódicos locais. Nos anos 1920, um convênio firmado com esferas do governo federal organizou, no Paraná, um “novo serviço sanitário”: o Serviço de Profilaxia Rural (Relatório..., 1923). Estudos realizados por Fernandes (1988) apontam que o rompimento com o convênio federal, ao final da década de 1920, produziu a incorporação do Serviço de Profilaxia Rural à Diretoria dos Serviços Sanitários do Estado do Paraná, o que pode ser explicativo para a interrupção da publicação do periódico. A saúde pública paranaense paulatinamente se inseriu no espaço escolar, local “eficientíssimo” para construção de uma ordem sanitária local e propagação dos ideais higiênicos (Fernandes, 1988).

A formação sanitária do professorado paranaense Neste estudo, consideramos a publicação dos periódicos estudados um elo entre a medicina paranaense e a escola – proposta de sensibilização ao professorado local, pois as revistas pretendiam, entre outros objetivos, ampliar os “mensageiros” da higiene pelas terras paranaenses. Em 1920, uma estratégia para disseminar a possibilidade de regeneração nacional pela educação foi, a pedido do inspetor geral de ensino Cezar Martinez, o Curso Elementar de Higiene para professores, com o objetivo de “[...] prepara-los não só a orientar a educação dos seus discipulos, como tambem para formar no professorado um grupo de propagandistas da moderna hygiene publica” (Araujo, 1921, p.373). O curso gratuito de dois meses, dividido em duas partes, teve conferências abertas ao público, com aulas teóricas no “Gymnasio Paranaense”. Os temas tratados estão listados no Quadro 1.

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LAROCCA, L.M.; MARQUES, V.R.B.

Quadro 1. Temas do Curso Elementar de Higiene. Responsável

Tema Noções geraes sobre hygiene. Importância do saneamento do Brazil. Ophidismo.

Vital Brazil

Microorganismos pathogenicos em geral. Infecção. As defezas do organismo. Pontos de penetração do agente infectuoso. Evolução e especificidade das infecções. Vaccinação e sôrotherapia.

H. Araujo

Doenças contagiosas em geral. Meios de contagio. Transmissores animaes de molestias: mosquitos, barbeiros, pulgas, piolhos, etc.

H. Araujo

Ectoparasitoses. Noções geraes sobre a escabiose, a pediculose, as tinhas, etc. Sua prophylaxia.

Leal Ferreira

Verminoses intestinaes. Noções theorico-praticas sobre a ancylostomose, a ascaridiose, a trichuriose, etc. Sua prophylaxia.

H. Araujo

Febres eruptivas. Noções geraes sobre a escarlatina, o sarampo e o grupo variólico. Sua prophylaxia. Vaccinação anti-variolica.

Medeiros

Trachoma, raiva e molestia de Heine-Medin. Noções geraes e sua prophylaxia.

Leônidas Ferreira, Leal Ferreira e Medeiros

Infecções typhicas e parattyphicas, dysenterias, Noções theorico-praticas e sua prophylaxia.

Leal Ferreira

Diptheria, tetano e meningite cerebro-espinhal. Noções theorico praticas e sua prophylaxia.

Medeiros

Tuberculose. Noções theorico praticas e sua prophylaxia.

Medeiros

Lepra. Noções theorico praticas e sua prophylaxia.

H. Araujo

Epizootias transmissiveis ao homem; peste; mormo e carbunculo. Noções theorico praticas e sua prophylaxia.

Leal

Impaludismo. Noções theorico-praticas sobre diversos parasitos. Doença de Carlos Chagas e leishmaniose. Sua prophylaxia.

H. Araujo

Doenças venéreas: syphilis, blennorrhagia, etc. Noções geraes e sua prophylaxia.

Sebastião Azevedo

Intoxicações: morphina e cocaina, alcool e alcoolismo. Considerações medico-sociaes. Sua prophylaxia.

Medeiros

Hygiene Geral, hygiene escolar e alguns pontos de medicina social.

Sem indicação

Fonte: Araujo (1920a).

Para Marques e Farias (2007), ao dominarem esses conhecimentos, os professores paranaenses seriam considerados aptos à vigilância e à propagação do ideal higienista, papel que lhes cabia na exemplar missão de educadores. Criado pela Lei 2.095 de 31 de março de 1921, o Serviço de Inspeção Médica escolar estava pautado na experiência paulista, trazida, não sem ressalvas, ao Paraná, pelo então Inspetor Geral do Ensino Cezar Prieto Martinez. Um dos objetivos do serviço era visitar escolas e grupos escolares, examinando “amiudadamente alunos e professores” para compreender a influência que a vida escolar exercia sobre a vida das crianças (Marques, Farias, 2007). Marques (1994) cita que, na formação dos professores, a estreita relação higiene-educação se destacou em teses, congressos e conferências. Os mensageiros, contudo, precisavam ser sabatinados e, nem sempre, conseguiram acompanhar os temas e as aulas, compostas pelo que se considerava à época o melhor da moderna saúde pública. O programa era complexo e, ousamos dizer, inadequado para a finalidade proposta. Segundo Pykosz (2007), torna-se possível perceber, entre o âmbito educacional e o higienista, uma distância entre o prescrito e o efetivado. O respeito aos preceitos da higiene e a pedagogia moderna era dificultado devido às condições estruturais e humanas para seu cumprimento. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.753-66, out./dez. 2010

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No Paraná, a oficialização do conteúdo higienista para ser desenvolvido junto aos escolares incluiu saberes relacionados às principais doenças que aqui grassavam, sua profilaxia e tratamento, bem como noções de primeiros socorros, o que acabou por expor necessidades relativas à formação do professorado local para o empreendimento de tal tarefa (Pykosz, 2007). Os conteúdos de ensino demonstravam preocupação com a saúde do corpo e da mente, além de um propósito antigo: a formação de hábitos saudáveis, a contribuir para organizar espaços e corpos capazes de participarem da jornada civilizadora proposta pela intelectualidade médica de então (Pykosk, 2007). O relatório do encerramento do Curso de Hygiene Elementar (1920) esclarecia: [...] Dos 65 professores públicos inscriptos no curso submetteram-se a exame apenas 28 senhoras professoras, das quaes uma elevada porcentagem revelou grandes conhecimentos da materia leccionada, tendo apenas uma dellas obtido pontos em numero inferior ao estipulado para a habilitação. (Araujo, 1920b, p.266)

O diretor do curso, o médico Souza Araujo, registrou, no texto, sua satisfação com o resultado da ação, e enfatizou que “grande pleiade de professoras patricias revelou muita intelligencia, perseverança e actividade, causando a melhor impressão aos assistentes [...]” (Araujo, 1920b, p.266). Grandes nomes da Saúde Pública brasileira escreveram nos Archivos, conferindo ao discurso higienista credenciais para destacar o papel missionário dos médicos, sua cruzada civilizatória, além do imprescindível papel a ser desenvolvido pelo professorado local nessa “batalha saneadora”. A prosperidade paranaense, segundo os intelectuais locais, não seria conquistada sem um amplo e profundo intercâmbio entre médicos e povo. Desse modo, consideramos que os professores foram “soldados recrutados” para batalhar junto às crianças e seus familiares, disseminando os ventos civilizatórios trazidos pela ciência higiene. Um assíduo parceiro dos Archivos Paranaenses de Medicina foi o médico Belisário Penna, que fez conferência sobre a consciência sanitária durante visita a Curitiba: “Em qualquer paiz civilisado não se faz mais hygiene sem o concurso da propaganda e da educação sanitária [...]” (Penna, 1921, p.73). Algumas contribuições ao saneamento nacional foram destacadas pela campanha contra os quatro flagellos universaes: alcoolismo, sífilis, tuberculose e consanguinidade, que não respeitavam: “[...] clima, regiões, nem civilisações [...]” (Penna, 1921, p.76-7). Para Penna, o combate a esses males dar-se-ia por uma ciência positiva, experimental e biológica – a higiene – que, em conjunto com a aplicação, pelos professores, da educação higiênica nas escolas, seria capaz de desenvolver nas crianças o domínio da vontade. Tal processo teria sólida base moral, da qual se deduziriam numerosos deveres e cujo cumprimento evitaria às sociedades os perigos que a sua inobservância acarretava à espécie humana: [...] é essa sciencia que crêa uma moral biologica, e nos indica a prophylaxia e therapeutica para previnir e combater os terriveis flagellos que castigam e destroem a humanidade de hoje: o egoismo social, o antialtruismo, o homicidio, a dissolução da familia, o pessimismo, o malthusianismo, as doenças sociaes (tuberculose, syphilis), o anticivismo, o antipatriotismo, a desmoralisação internacional, o suicidio e as intoxicações voluntarias euphoristicas e habituaes (morphina, cocaina, haschich, ether, chloroformio, fumo, alcool etc.). (Penna, 1921, p.77)

De fato, a educação higiênica tornou-se, na década de 1920, grande aliada dos médicos paranaenses. Os Archivos Paranaenses de Medicina passaram a publicar uma secção denominada Educação Hygienica, que serviria de subsídio científico para professores desenvolveram ações higiênicas junto aos escolares. [...] sendo creada uma secção de ‘Educação hygienica’, onde teem apparecido artigos praticos, que se distribuem, por intermedio da Inspectoria de ensino, pelos differentes Grupos e Escolas do Estado [...] quando a educação começa pela escola, desde, mesmo, o

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jardim da infancia, a criação dos bons habitos, que se faz aos poucos entre populações escolares, tem repercussão magnifica no seio da familia. (Redacção..., 1922, p.192)

Acreditar na medicina e na higiene como armas civilizatórias era fundamental para demarcar um campo profissional para os doutores paranaenses, onde não cabiam crendices nem charlatanismos: A par de tudo quanto indicamos é de importancia maxima, primordial, a propaganda intensa, pertinaz, continua, por todos os meios, em toda parte, sob todos os pretextos, e a educação hygienica de toda a gente. E’ imprescindivel criar a todo transe a consciencia sanitaria, quer entre as classes dirigentes, para que saibam legislar, quer entre as dirigidas, para que saibam obedecer sem relutância. (Propaganda ..., 1921, p.268)

O que havia sido feito com relação à formação das professoras, era considerado, pelos médicos locais, muito pouco. Na opinião deles, a independência do ensino de higiene daria oportunidade, aos formandos da Escola Normal, de adquirirem maior soma de conhecimentos. [...] cumpre, pois, introduzir nos trabalhos, o ensino pratico da hygiene individual principalmente; o resto virá aos poucos mas, a reforma deve vir de cima: - formando auxiliares competentes, com uma cultura hygienica moderna, capazes de transmitir aos que lhe forem confiados principios fundamentaes que terão de abrir uma nova via de progresso, para a grandeza do nosso povo. (Redacção..., 1922, p.192)

A batalha pelo poder de difundir conhecimento foi grande entre os higienistas paranaenses. O Serviço de Profilaxia Rural, mais ligado à esfera federal, e os programas estaduais de saúde e educação disputavam entre si importantes recursos humanos - professores e alunos - para propagar ideais em um espaço privilegiadíssimo: a escola. Passados doze anos do curso do Serviço de Profilaxia Rural, em fevereiro de 1932, o diretor da Inspeção Médica Escolar apresentou artigo, à Revista Medica do Paraná, no qual propunha a separação efetiva entre o ensino de biologia humana e o da higiene. Para tanto apresentou roteiro de curso intitulado Educação Sanitária, no qual as questões da higiene escolar exigiriam, dos professores, conhecimentos de vários domínios. Retomar a estratégia de formar professores, colaboradores eficientes na formação da consciência sanitária, era imprescindível. Para alcançar esse objetivo, a Inspeção Médica Escolar do Paraná incluiu, nos seus programas de serviços, o Curso de Educação Sanitária, destinado a “ministrar aos alunos do ultimo ano da Escola Normal conhecimentos necessarios, se bem que elementares, de higiene e medicina preventiva e breves noções sobre as molestias transmissíveis [...]” (Macedo, 1932, p.123). O curso ofertado pela Inspeção Médica Escolar não pretendia, segundo seus organizadores, resolver o problema “da formação mental do professor para a sua elevada missão educativa, nem substituir a cadeira de higiene do curso normal” (Macedo, 1932, p.124). Era considerado um ensaio que buscava fornecer-lhes bases concretas para compreensão do programa de higiene do Estado, de modo “[...] a integrar nosso professor nos problemas referentes ás praticas sadias no meio escolar e consequente repercussão destas nos lares” (Macedo, 1932, p.125). A Inspeção Médica Escolar não possuía, “para a sua missão”, os recursos necessários para dispensar “a colaboração inteligentemente desenvolvida no meio escolar pelo professor. Sem esta colaboração assidua e permanente, todo e qualquer esforço do médico escolar será grandemente prejudicado” (Macedo, 1932, p.125). No Quadro 2, reproduzimos o programa semestral, apresentado em 1931, do Curso de Educação Sanitária da Inspeção Médica Escolar do Paraná para o 5º ano da Escola Normal. Composto por trinta itens, o curso poderia ser considerado uma exposição breve da ciência higiene e principais fatores do adoecimento e mortalidade dos paranaenses.

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Quadro 2. Temas do Curso de Educação Sanitária. Temas trabalhados 1. Micróbios: fórma e estrutura. Protozoários. Cogumelos. Bactérias 2. Biologia geral dos microorganismos patógenos 3. Desinfecção. Agentes de desinfecção 4. Infecção, seus agentes e especificidade 5. Imunidade e imunisação 6. Toxinas e anti-toxinas 7. Difteria 8. Coqueluche 9. Febre Tifóide 10. Tuberculose 11. Lepra 12. Estomatites e conjuntivites 13. Vitaminas – Avitaminoses 14. Vírus filtráveis. Raiva 15. Sarampo 16. Escarlatina 17. Varíola, Alestrim e Varicela 18. Vacinas e soro-vacinas 19. Biologia Geral e papel patogeno dos parasitas animaes: tripanozomas. Spiroquetas. Hematozoarios 20. Doença de Chagas 21. Sífilis 22. Malaria 23. Amoebas. Schistozomas 24. Disenterias 25. Tênias. Ascaris. Oxyurus. Ancilostomum. Tricocefalos 26. Verminoses 27. Sarna e phthiriase 28. Sarcoptes scabiei e Pediculideos 29. Papel patógeno dos dípteros; pulez irritans. Sacopsyla penetrans 30. Papel patógeno dos dípteros. Moscas. Mosquitos transmissores de doenças: anofeles. Stegomya. Fonte: Macedo (1932).

A não sobrecarga de esforços às normalistas era fator considerável na organização do curso, pois, segundo o Inspetor, os deveres morais, por parte das alunas, se resumiriam [...] num pouco de atenção nos ensinamentos e demonstrações praticas dos médicos [...] espurgado de minucias fastidiosas bem como de terminologia técnica, ao alcance de qualquer inteligencia, abrirá novos horisontes á mentalidade dos futuros professores para o julgamento das nossas realidades sanitárias e muito contribuirá para o aproveitamento de uma colaboração valiosa, perfeitamente integrada das suas responsabilidades na educação popular, para a transformação dos nossos hábitos de higiene. (Macedo, 1932, p.125)

Em termos de conteúdos, não percebemos diferenças significativas entre o Curso Elementar de Higiene (1920) e o Curso de Educação Sanitária da Inspeção Médica Escolar do Paraná (1932). Torna-se importante destacar, no primeiro curso, um tom moralizador, perceptível pelos temas “saneamento do Brasil”, “higiene geral e higiene escolar”, que não aparecem no curso de 1932, mas que certamente estariam diluídos quando das discussões sobre sífilis. Talvez, mais importante que a diferença conceitual entre os cursos fosse a distinção entre seus promotores: o Serviço de Profilaxia Rural (ligado ao Departamento Nacional de Saúde Pública) e o Serviço de Inspeção Médica Escolar, numa tentativa de, por meio do segundo, valorizar a educação e os médicos locais. 760

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Além de cursos, as normalistas recebiam a visita regular dos doutores paranaenses na Escola Normal. Chamadas ao cumprimento do dever moral de engajamento à missão higienista, tiveram contato, entre outros, com Milton Munhoz, professor de Higiene da Faculdade de Medicina do Paraná. Ao versar sobre saúde pela educação, em palestra proferida no Salão Nobre da Escola Normal, como encerramento da Semana da Educação, em 25 de novembro de 1933, Munhoz afirmou, ao público, seu convencimento da parceria higiene-educação como caminho verdadeiro para realizar os “sonhos mais belos da Medicina Social”. Atribuiu relevância ao papel dos médicos, cuja missão era ser [...] orago da saude, aconselhando os meios de a manter integra, ensinando as medidas de prevenção e colocando ao alcance de todos os recursos de defesa contra o inimigo comum que é a molestia. O medico é bem o representante terreno das duas divindades da mitologia grega. Como Asclépio, astuciosa, vigilante e prudentemente cura, quando póde, os organismos doentes e como Higieia, de posse da sabedoria dos fenomenos normais e patologicos, transmite aos que estão sob sua imediata guarda a verdade cientifica do seu tempo para o bem de seus semelhantes. (Munhoz, 1933, p.11)

Para Munhoz e outros médicos paranaenses, era deles também o papel de sensibilizar, treinar e supervisionar a ação do professorado na coadjuvância da missão higienista no Paraná. Segundo ele, a ingerência do médico não deveria ser menor na educação, pois acreditava que o pedagogo deveria atuar em parceria com o primeiro, que, de fato, seria o técnico capaz de determinar as possibilidades físicas e mentais dos educandos e assim “[...] orientar, corrigir e auxiliar a tarefa do professor” (Munhoz, 1933, p.12). A ciência capaz de aproximar pedagogia e medicina seria a higiene, pois, ao incorporar conhecimentos de outras ciências, alargou desmensuradamente seu raio de ação: “[...] Os conhecimentos que mobilisa, a sua constante interferência em todos os quadrantes da atividade humana, a necessidade quotidiana dela em todos os nossos atos, avantajaram-na á própria ciência donde proveio [...]” (Munhoz, 1933, p.13). Com poderes de interferir na saúde, “[...] fator imprescindível de progresso e para a pátria um dos maiores motivos de sua grandeza”, a Higiene seria capaz de produzir também cooperação social. A participação dos professores na valoração da saúde, um dos grandes “bens concedidos ao homem”, não era privilégio nem prêmio distribuído pela sorte, mas sim, considerado por Munhoz, objetivo conquistável pelo esforço e inteligência. Estes teriam, talvez, um de seus mais importantes papéis, afinal, segundo ele, a “saúde perene” e o desaparecimento das moléstias eram passíveis de serem conquistados pela aplicação dos preceitos da higiene (Munhoz, 1933, p.12). A assistência sanitária, efetivada também por meio da educação, deveria estender sua proteção a todos os cidadãos. Segundo Munhoz, a proteção à sociedade seria “[...] passivel de medidas, às vezes violentas, mas explicáveis e necessárias” (Munhoz, 1933, p.12). O conjunto de medidas apresentadas pelos higienistas possibilitariam, então, o aperfeiçoamento contínuo da sociedade que se formulava, para o médico paranaense, em uma só palavra: progresso (Munhoz, 1933, p.13). Mais que propiciar saúde, a higiene poderia colocar os desviantes em condições tais “que as suas energias se não desviem nem esmoreçam, que a sua contribuição economica e social seja propicia” (Munhoz, 1933, p.14). Apresentar esse ideário às jovens normalistas fazia parte de uma estratégia dos médicos paranaenses: torná-las copartícipes da construção de uma consciência sanitária nacional, na qual a educação higiênica impor-se-ia como complemento inseparável da educação geral e, também, como base formadora de cidadãos saudáveis e capazes de promoverem o progresso e a prosperidade. [...] devemos educar não para a escola mas para a vida de modo a que se tornem em elementos úteis e produtivos [...] Da cera virgem tem o educador de modelar, com habilidade de artista, o homem capaz. A educação não se limita somente a desenvolver as faculdades mentais. Vai mais longe [...]. (Munhoz, 1933, p.12-3)

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Sob tal perspectiva, a saúde pela educação, segundo o paranaense Munhoz, precisava de regras para não ser uma proposta utópica. Passou, então, a elencar alguns preceitos, que uma vez desenvolvidos pelas jovens professoras, tanto contribuiriam para o sucesso da empreitada higienista. O primeiro passo seria criar, nos indivíduos, hábitos sadios: A formação de habitos bons, habitos sadios, na criança de tenra idade é o ponto de partida da educação [...] o empirismo nos aconselha que não há mistér esperar que a razão desperte para se iniciar a educação [...] A educação higiênica cifra-se na aquisição de habitos que lentamente incorporados ao automatismo psicologico formarão mais tarde a consciencia sanitária (grifo no original). Quanto mais cedo se a iniciar tanto mais reais os resultados. A criança registra passivamente as impressões recebidas. (Munhoz, 1933, p.14-5)

Para interlocutor dos “hábitos bons” tomamos Norbert Elias (1997), que entende habitus basicamente como uma segunda natureza, não tomada de forma essencialista, fixa e estática, mas como soma de modificações ao caráter individual movimentadas pelo autoaperfeiçoamento. Os higienistas preconizavam, para a regeneração da raça, o desenvolvimento da capacidade humana de autoaperfeiçoar-se com a consequente aquisição de hábitos saudáveis. A escola, para alguns médicos paranaenses, era [...] pedra angular da educação higienica. Para tanto deve estar preparada para a sua nova missão. O edificio onde funciona deve ser construído de acordo com a engenharia sanitária, o material escolar adequado, as instalações sanitárias suficientes e mantidas em rigoroso asseio [...]. (Munhoz, 1933, p.14-5).

Desse modo, Munhoz apresentou, aos alunos da Escola Normal, prescrições, descritas no Quadro 3.

Quadro 3. Regras para a escola e professoras. Lista de prescrições do médico Milton Munhoz A criança deverá entrar e sair limpa da escola. Durante as aulas a professora corrigirá atitudes irregulares nas carteiras e bancos, prevenindo posições viciosas. No recreio a professora regulará jogos e exercícios de acordo com a capacidade física dos alunos. A professora deverá ensinar aos alunos a se servirem dos aparelhos sanitários. A professora evitará que os alunos façam sua merenda em local impróprio e com mãos sujas, mastigando apressadamente os alimentos. Colocar em cada escola uma professora da saúde escolhida entre as moças de mais bela aparência em pleno gozo de saúde e entusiasta da higiene. As regras higiênicas deverão ser praticadas a princípio intencionalmente e depois de forma automática. A professora deverá despertar na criança o interesse pela saúde, de forma positiva, por meio de brincadeiras, pelo exemplo e pela ação. A professora estimulará e organizará a formação de pelotões de saúde, sob moldes militares, com promoções, distintivos, competições e até cadernetas de serviço em que serão anotados, além das conquistas, cuidados corporais, peso e altura. A professora deverá encaminhar os alunos para exames médicos periódicos. Fonte: Munhoz (1933).

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Para o cumprimento de tantas prescrições, se impunha, como preliminar, a instrução das professoras, pois para Munhoz a tarefa educacional em matéria de higiene caberia ao professorado primário, sendo considerado, por ele, incoerência tentar qualquer iniciativa sem a prévia formação de um corpo consolidado de educadores. Todos esses envolvimentos seriam para dar conta dos dois maiores problemas nacionais, conforme o higienista paranaense: educação e higiene. Volvamos as nossas vistas para as escolas, colocando-as á altura da sua nobre missão, introduzamos nela a educação higienica, eficiente e proveitosa, demos corpo a essa aspiração, que até hoje na poude ainda se concretisar como devera [...] Trabalhemos pela saude do nosso povo e assim teremos contribuído para a felicidade do Paraná e grandeza do Brasil. (Munhoz, 1933, p.18)

Em 1937, a Revista Medica do Paraná publicou tema que destacou as mazelas do meio rural, referindo-se à ignorância como a maior delas. Propôs que a escola primária fosse estrategicamente reconhecida como Centro de Educação: “[...] as crianças escolares são physica e espiritualmente mais sadias e, por isso mesmo, mais alegres; as novas idéias de progresso e civilização são mais facilmente difundidas pelas vias de communicação [...]” (Gonzaga, 1937, p.301-2). Todavia, o progresso por si não era garantia de um processo civilizador: E’ sabido que o progresso de um paiz está em razão dirécta da cultura do povo. O saber é o principal capital da propriedade. E a instrucção, em todos os seus graus, é a unica chave que abre a porta ao progresso material, social, civico e profissional. Quando o ensino aliado á hygiene tiver penetrado em todas as massas populares das mais reconditas regiões ruraes, novos e promissores horizontes estarão desvendados para a nossa nacionalidade. (Gonzaga, 1937, p.301-2)

O caboclo se tornou referência no reconhecimento dos grandes problemas relacionados ao progresso nacional, de modo que sua redenção ou impedimento de seu aparecimento seriam conseguidos pela aplicação do ideal higienista, no qual educação e eugenia seriam fundamentais, porém somente o apostolado das professoras não seria capaz de tamanha mudança: A instrução e a hygiene constituem as duas forças eugenisadoras capazes de salvar a criança da roça – o nosso caboclo de amanhã. A simples e rudimentar alphabetização nada adeanta sem a complementar educação: educação civica, educação physica, educação economica, educação profissional, educação sanitaria, enfim, transformar o inconsciente e consciente [...]. (Gonzaga, 1937, p.303)

O imperativo categórico era convocar médicos para formar sanitariamente as professoras, pois, mesmo após os cursos realizados, críticas se faziam presentes, talvez pela distância existente entre os cursos ministrados e a prática pedagógica cotidiana: Infelizmente, entre nós, o ensino de hygiene nas escolas normaes deixa muito a desejar [...] A escola primaria deve ser a primeira e a maior escola de hygiene de um paiz [...] ella exerce com o ensinamento da hygiene uma nova funcção social [...] cada escola deve ser um templo de hygiene onde as crianças se habituem a praticar ritos de asseio, a hygiene sendo uma religião cívica [...]. (Gonzaga, 1937, p.303)

Foram, então, apresentadas algumas conclusões que já configuravam a prática de alguns médicos paranaenses, de acordo com a citação: “Não basta combater o analphabetismo; é necessario hygienisar pela educação e pelo saneamento [...] O ensino de hygiene nas Escolas Normaes deve ser intensivo, cuidando tanto da hygiene urbana como da rural [...] (Gonzaga, 1937, p.304). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.753-66, out./dez. 2010

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HIGIENIZAR, CUIDAR E CIVILIZAR: O DISCURSO MÉDICO ...

Considerações finais Ao final do século XIX e início do século XX, o ideal de progresso adquiriu, para os médicos paranaenses, significados distintos, mas com um mesmo receituário a balizar seus discursos: higiene se ensina e se aprende na escola. Naquele período, a organização de uma ordem médica no Paraná, centrada em um modelo para a escola projetado com bases na racionalidade científica advinda da ciência higiene, produziu mais que discursos; passou a elaborar prescrições para seus usuários, mesmo que a acessibilidade a elas fosse um fator complicador para a grande maioria dos paranaenses. Cuidar, proteger e higienizar a infância, por meio da escola, foi tarefa assumida com vistas à inserção do Paraná no processo de saneamento sanitário e social que, segundo seus idealizadores, uma vez disseminado, promoveria a melhoria de nossa gente, de nossa raça e a contenção das doenças que nos assolavam. A construção de uma legitimidade local e o anseio de uma identidade própria forjaram a difusão de um ideal europeizado, no qual médicos discursavam sobre “o clima salubérrimo” e sobre um espaço idealizado para o Paraná. Contraditoriamente, conviviam com as estatísticas nada “civilizadas” da morbimortalidade populacional, com a organização e construção de hospitais, sanatórios, entre outros estabelecimentos de “combate às doenças”. No afã de transformar esse quadro, elegeram-se a escola e a infância para serem higienizadas e, assim, galgarem etapas na construção de um processo civilizador. Pois vale lembrar que crianças moldadas pela higiene tornavam-se importantes disseminadoras de hábitos higienizados, transformandose também em agentes da saúde, atuando especialmente junto às suas famílias. Nossa pretensão foi dar visibilidade à ciência da higiene no movimento de medicalização da sociedade paranaense, adentrando em espaços ocupados pela retórica higienista, nas intervenções do cotidiano, em um processo de civilização que vislumbrava ser caminho para o progresso e redenção nacionais. Seguindo um ideário positivista do final do século XIX, a higiene e a educação adentraram ao século XX, consolidadas em seu papel difusor do espírito científico, imprescindível à regeneração social, mesmo que, em vários momentos, o “social” ficasse à margem das discussões e as formas ditas higienizadas de viver propostas fossem pouco acessíveis às populações pobres. Ao se considerarem “intelectuais”, os médicos paranaenses se conformaram como agentes difusores da ciência e valorizaram o potencial do higienismo como estratégia civilizadora. Como foco central das práticas discursivas dos médicos paranaenses, higiene e educação foram o arcabouço deste estudo. Os saberes médicos construídos se aproximaram dos saberes pedagógicos, expondo, frequentemente, aspectos contraditórios, mas que tiveram como base a higienização da escola e de seus usuários. Stephanou (1999) comparou esta produção de saberes e prescrições a um caleidoscópio, cuja visão infinita permite desvelar relações entre sujeitos higienizadores e higienizados e produção de procedimentos de controle e dependência.

Colaboradores Liliana Müller Larocca responsabilizou-se pela elaboração do manuscrito (com base em um capítulo da tese de doutoramento). Vera Regina Beltrão Marques responsabilizouse pela análise do referencial teórico, análise das fontes e discussões temáticas.

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LAROCCA, L.M.; MARQUES, V.R.B.

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HIGIENIZAR, CUIDAR E CIVILIZAR: O DISCURSO MÉDICO ...

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LAROCCA, L.M.; MARQUES, V.R.B.Higiene, cuidar y civilizar: el discurso médico para la escuela paranaense (1920-1937). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.753-66, out./dez. 2010. Con base en la investigación de los discursos médicos referentes a la higienización de la escuela, este estudio plantea el problema de la difusión de la ciencia Higiene en la sociedad paranaense en el periodo comprendido entre 1920 y 1937. Los discursos para la escuela presentes en varias fuentes destacándose los Archivos Paranaenses de Medicina y la Revista Médica del Paraná, estado de Brasil, hicieron emerger la percepción de una medicina en la cual los médicos defendían una nueva función social: la de educadores. Al plantear los temas sobre una intervención en las escuelas y en sus usuarios, pretendían “cuidar, proteger e higienizar la infancia”, tarea asumida hacia la inserción del territorio paranaense en el proceso nacional de saneamiento sanitario y social. Se trata de una investigación de carácter histórico inspirada en las ideas de proceso civilizador de Norbert Elias. De este modo se propone reconocer propuestas de civilidad contenidas en los discursos médicos. Los conceptos de educación y las prescripciones para la escuela en el período estudiado producidas por la Ciencia Higiene son aquí presentadas.

Palabras clave: Salud escolar. Eugenia. Historia de la medicina. Medicina y educación.

Recebido em 10/05/09. Aprovado em 04/01/10.

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Pedro e seus circuitos na cidade de São Paulo: religiosidade e situação de rua *

Debora Galvani1 Denise Dias Barros2

GALVANI, D.; BARROS, D.D. Pedro’s circuits in the city of São Paulo: religiosity and homelessness. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.767-79, out./dez. 2010. This is a case study based on the reconstitution of the life history of a homeless adult in the city of São Paulo. Ethnographic research and life history were the strategies in a 12-month long data collection. The analysis tried to reveal, in the process of identity construction, singularities able to resignify and grant historicity to the homelessness experience. To discuss Pedro’s path, religiosity analysis is a crucial element for re-assessing his homelessness history. Allied to other nets, religiosity showed different possibilities of constructing interdependence nets, thus characterizing re-signification and sense reconstruction movements, and eluding disaffiliation processes so frequent in the case of people that experience rupture conducting to homelessness. In those processes, the socially negative identity linked to homelessness can be dislodged and widened, acquiring more elucidative delineations and dynamics. Nonetheless, there is always the need and the challenge of constructing collective alternatives to the precarious homelessness experience.

Trata-se de estudo de caso, com base na reconstituição da história de vida de um adulto em situação de rua na cidade de São Paulo. A pesquisa etnográfica e a história de vida compuseram as estratégias para coleta de dados, realizada durante 12 meses. Na análise, buscou-se desvendar singularidades no processo de construção de identidades capazes de redimensionar e conferir historicidade à experiência da situação de rua. Na discussão da trajetória de Pedro, a análise da religiosidade é fundamental para releitura da sua história de rua. Aliada a outras redes, mostrou possibilidades distintas de construção de redes de interdependência, caracterizando movimentos de ressignificação e de reconstrução de sentidos, afastando-se dos processos de desfiliação. A identidade socialmente negativa vinculada à situação de rua pode ser descentrada, adquirindo contornos e dinâmicas mais elucidativos. No entanto, ocorrem a necessidade e o desafio de construção de alternativas coletivas à precariedade da experiência de rua.

Keywords: Life history. Disaffiliation. Social nets. Homeless adults. Cultural antropology.

Palavras-chave: História de vida. Desfiliação. Redes sociais. Adultos em situação de rua. Antropologia cultural.

Artigo inédito que discute parte dos resultados da pesquisa que deu origem a Galvani (2008); pesquisa aprovada pela Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e financiamento parcial pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 1,2 Projeto Metuia, Curso de Terapia Ocupacional, Departamento de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Rua Cipotânea, 51. Cidade Universitária, São Paulo, SP, Brasil. 05.360-000. degalvani@gmail.com *

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PEDRO E SEUS CIRCUITOS NA CIDADE DE SÃO PAULO: ...

Introdução Com base na reconstituição de uma história de vida, apresentamos estudo de caso sobre a trajetória de um homem adulto que vive em situação de rua na cidade de São Paulo. O foco central recai sobre as estratégias singulares para criar e ampliar suas redes de suporte social, religioso, cultural, econômico e/ou afetivo a partir de situação em que o espaço das ruas é o articulador das relações sociais, da moradia e de trabalho. Trata-se de analisar a formação de grupos de pertencimento e de identidades coletivas, assim como as alternativas criadas para construir suportes e estabelecer novas possibilidades de vida. Compreende-se que a população em situação de rua, enquanto grupo social (Oliven, 1995), transita entre zonas de vulnerabilidade e desfiliação, conforme definidas por Castel (1998, 1994), pois está frequentemente submetida à ausência de emprego ou a trabalhos temporários e a trajetórias marcadas por rupturas. Ressaltamos, entretanto, que [...] viver na rua não significa necessariamente viver sem dinheiro mas, sobretudo, significa adquirir o essencial para a sobrevivência sem passar pelo mercado. Não significa a eliminação de trabalho, mas o abandono do compromisso constante e cotidiano do emprego, substituído por outras formas de trabalho. Também não significa viver sozinho, mas estabelecer novos vínculos com diferentes pares. Assim, viver na rua é também transitar pela possibilidade de gerar renda como estratégia para agregar valor à própria existência. (Ghirardi et al., 2005, p.603)

O que parece mais fecundo nos estudos de Castel (1998, 1994) para esta reflexão é o que se pode depreender do conceito de proteção próxima. Construída na esfera dos laços afetivos e familiares, nas redes de relações e na cultura, a proteção próxima cria campos de suporte e de partilha interpessoal mesmo na adversidade da precarização do trabalho. Para este autor, a proteção próxima é constituída pela tessitura de redes de sociabilidade e de solidariedade que encontra, na família e na dimensão da cultura, dois registros fundamentais. Constitui, assim, o húmus nutritivo para a camada mais miserável da população, onde se partilham bens e serviços e um sistema de trocas que mantém ou cria o laço social e o sentido. A desfiliação emerge quando as relações de proximidade (sistema de interdependência fundado em família, linhagem ou comunidade), que inscrevem uma pessoa em seu território na cumplicidade produzida pelo sentimento de pertencimento, tornam-se incapazes de garantir a reprodução da existência e assegurar a proteção. Existe grande heterogeneidade de experiências entre pessoas que vivem em situação de rua (Galvani et al., 2006; Rosa, 2005). Ao longo de trabalho realizado desde 2001 no contexto do Projeto Metuia (Barros, Lopes, Galheigo, 2002), com adultos em situação de rua, e de pesquisa vinculada à dissertação de mestrado3, foram identificados grupos e pessoas que pareciam proporcionar referência para a discussão de formas endógenas/internas (e de auto-organização) de superação, ainda que parcial ou fugaz, da experiência negativa de desqualificação social e das sucessivas rupturas de laços sociais. Entre as histórias de vida trabalhadas durante a pesquisa, destaca-se, para este artigo, a análise do lugar da religiosidade e das redes de relações e de amizade na reconstrução do laço social e de pertencimento. Pedro tem 43 anos de idade, é filho de baianos e nasceu em São Paulo (SP). Costuma vestir-se com uniforme de motorista de ônibus e contar histórias sobre 768

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3 Ver Galvani (2008). O Projeto Metuia é um núcleo interinstitucional de estudos, formação e ações pela cidadania de crianças, jovens e adultos em processo de ruptura das redes sociais de suporte vinculado ao Curso de Terapia Ocupacional da USP.


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Expressão utilizada, especialmente, por adultos em situação de rua, para nomear serviços e espaços de oferta de alimentação gratuita. 4

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sua vida, na perspectiva de que seus interlocutores aprendam com suas “cabeçadas”, como diz, e com os ensinamentos religiosos que transmite quando tem oportunidade. Apresenta-se como ex-morador de rua e ex-mendigo que conseguiu, por meio da religiosidade aliada ao apoio da rede de serviços sociais e outras redes de trocas e de relações interpessoais, retornar ao convívio familiar e ao trabalho, mantendo-se abstinente do consumo de álcool e outras drogas. Na discussão da trajetória de Pedro, a análise da religiosidade é elemento fundamental para a releitura da sua experiência de vida nas ruas de São Paulo. A participação na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), a inserção no trabalho como motorista de veículos pesados, o retorno ao convívio familiar, a participação na dinâmica da Praça da Sé, o recurso aos serviços da assistência social (como albergues, “bocas de rango”4 e centros de serviços e de convivência) compuseram um conjunto de relações interpessoais para a reconstrução de sentimento de pertencimento, a ressignificação da experiência negativa e a reversão do processo de ruptura de redes e da deriva de sentidos. Recorremos aos estudos de Magnani (2003, 2002, 1996) sobre as cidades e as redes de pertencimento de grupos sociais urbanos. Ao articular a reflexão sobre a cidade e a etnografia, o pesquisador propõe - em contraposição ao que chamou de “olhar de fora e de longe” - o “olhar de perto e de dentro”, que implica partir dos atores sociais, [...] não como elementos isolados, dispersos e submetidos a uma inevitável massificação, mas que, por meio do uso vernacular da cidade (do espaço, dos equipamentos, das instituições) em esferas do trabalho, religiosidade, lazer, cultura, estratégias de sobrevivência, são os responsáveis por sua dinâmica cotidiana. (Magnani, 2002, p.18)

Assim, para compreender dinâmicas próprias às sociedades urbanas, este pesquisador criou o conceito de “pedaço”, para explicar um tipo particular de relações sociais estabelecidas em um espaço que se transforma em ponto de referência para determinados grupos pertencentes a uma rede de relações, independente dos limites territoriais. Neste estudo, foi possível reconhecer os “pedaços” de pertencimento nas redes sociais de Pedro e, a partir destes, os trajetos (fluxos pela cidade) e os circuitos (rede de espaços e equipamentos referentes a determinada prática ou oferta de serviço). Vale destacar que este estudo está situado na interface entre indivíduo e sociedade. Ao buscar uma superação da cisão entre indivíduo e sociedade, historicamente construída, Elias (1994) cunhou o conceito de interdependência entre os indivíduos. O autor mostrou que as ideias de indivíduo e de sociedade estão estreitamente articuladas por um processo interativo amplo; haveria uma relação de interdependência entre os indivíduos, como na imagem de uma rede de tecidos, que só pode ser compreendida em termos da maneira como os fios se ligam e de sua relação recíproca. A interdependência pode ser expressa, assim, nas diferentes formas de pertencimento, como circuitos religiosos e artísticos, movimentos sociais e recomposições familiares, entre outros exemplos. A noção de construção de identidades proposta por Castells (2002, p.18) - que tem como base “a construção de significados a partir de atributos culturais ou ainda um conjunto de atributos inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” contribui para a análise do que pode ser a expressão prática da noção de interdependência. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.767-79, out./dez. 2010

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PEDRO E SEUS CIRCUITOS NA CIDADE DE SÃO PAULO: ...

Compreendemos a população em situação de rua como grupo social composto por pessoas que utilizam os logradouros públicos como locais de habitação e para atividades cotidianas (dormir, alimentar-se e trabalhar), pernoitam em albergues por não disporem de moradia autônoma e fazem uso dos serviços da rede de assistência, como projetos de moradia provisória e centros de serviços (Varanda, 2003). A Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e a Secretaria da Assistência Social, desde 1991, realizaram pesquisas na cidade de São Paulo, buscando caracterizar esse grupo social. Os dados mais recentes (São Paulo, 2003) apontam para uma população de 10.394 pessoas em situação de rua, 6.184 em albergues e 4.208 morando na rua. No total, 84% são do sexo masculino, e a maior parte é de pessoas cuja origem é do estado de São Paulo.

Metodologia A pesquisa etnográfica com foco nas histórias de vida compôs as estratégias de constituição das bases da discussão aqui apresentada (Víctora, Knauth, Hassen, 2000; Queiroz, 1988). Trata-se de pensar a etnografia em meio urbano e, desta forma, como sugeriram Magnani (2003, 2002, 1996) e Oliven (1995), aceitar o desafio ao pesquisador de interpretar sua própria cultura. Segundo Magnani (1996), nesse tipo de trabalho é preciso buscar a superação do sentimento de proximidade, criando certo distanciamento para transformar em estranho algo que parece familiar ao pesquisador. No trabalho etnográfico, o pesquisador depara-se com a necessidade de produzir interpretações sobre grupos sociais ou trajetórias pessoais. Mas tais grupos e pessoas produzem igualmente interpretações sobre quem são e o que necessitam. Há, portanto, uma pluralidade de interpretações que devem ser consideradas, tanto durante a coleta de dados, como no processo de análise. Cabe lembrar que o confronto das interpretações é dificultado pelas distâncias entre pesquisador e pesquisado: diferenças de classe, gênero, idade, cultura e valores, entre outras. Como enfatizou Clifford (1998), os textos etnográficos são orquestrações de trocas polifônicas em situações politicamente carregadas. As subjetividades produzidas nessas trocas, frequentemente desiguais, fazem parte de um campo de construções de verdades. Assim, o termo “etno-grafia” pode ser traduzido por “escrita da cultura”, como sugere Atkinson (1992). Partimos da compreensão do reconhecimento do sujeito da pesquisa como interlocutor, pois, segundo Oliveira (2000), o trabalho etnográfico envolve o encontro com o “outro”. Este “outro” é compreendido como interlocutor com quem se estabelece uma relação de cooperação, criando-se, desta maneira, a possibilidade de uma relação dialógica. Pelas razões expostas, adotamos, neste estudo, o termo “colaborador”, como Meihy (2005), para enfatizar a necessidade de se construir uma relação de colaboração entre entrevistador e entrevistado. A pesquisa de campo, realizada durante doze meses em 2006, desenvolveu-se por meio de entrevistas (com registro em áudio), observação de campo, visitas aos pedaços significativos sugeridos pelos colaboradores, pesquisa documental e bibliográfica. É preciso ressaltar, porém, que os primeiros contatos com a população adulta em situação de rua ocorreram em virtude de atividades de extensão universitária desenvolvidas pelo Projeto Metuia, em parceria com a Associação Minha Rua Minha Casa (AMRMC), iniciadas em 2001. Foi nesse contexto de convívio semanal que os estudos com foco em histórias de vida emergiram. A proposta de pesquisa - aprovada pela Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da USP (protocolo 1209/05) - foi discutida com os usuários daquela associação e algumas pessoas foram convidadas a colaborar com o estudo. O convite aos colaboradores foi feito aos usuários que satisfizessem, pelo menos, dois dos seguintes requisitos: estar inserido em programa de moradia; participar de organização política (movimentos sociais específicos); integrar redes de relações de caráter religioso; integrar circuitos ligados a arte e cultura; utilizar serviços da rede assistencial como recurso complementar para organização de seu cotidiano; possuir formas de geração de renda. Além destas dimensões, que sugerem diferentes formas de participação social, foi critério de seleção o colaborador estar ou ter vivido em situação de rua por mais de dois anos. O estudo foi realizado com cinco colaboradores, porém, aqui a discussão recai sobre a relação entre religiosidade e as redes de relações próximas na reconstrução do sentido e da participação social evidenciada pela história de Pedro. 770

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GALVANI, D.; BARROS, D.D.

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Ao iniciarmos o trabalho de campo, Pedro mantinha redes de relações de caráter religioso, além de ter construído formas de geração de renda e de utilizar a rede assistencial como recurso complementar para organização do cotidiano. Todas estas eram dimensões sinalizadoras do potencial de criação de laços sociais e de suporte interpessoal. Vale destacar que, como parte do método, privilegiamos as escolhas do colaborador na definição do local de realização das entrevistas. Tais escolhas implicaram realizar entrevistas na Praça da Sé, por exemplo, e houve necessidade de lidar com as dificuldades que se impuseram em algumas situações, como interrupções e ruídos que prejudicaram a qualidade da gravação em áudio. Percebemos, por outro lado, que determinados locais eram muito significativos e pareciam capazes de potencializar as narrativas sobre experiências e vivências que neles se produziram, pois, naquele momento, já era possível observar que representavam “seus pedaços”. Foram realizadas, ainda, visitas dentro dos seus circuitos na cidade, atendendo às sugestões e aos convites do colaborador. Esse momento do estudo proporcionou informações da gestão do cotidiano e aproximação com coletivos diversos, como na Praça da Sé e na igreja. A casa da sua família e a AMRMC constam, igualmente, dos espaços de observação e interação com Pedro e sua rede de relações. As entrevistas foram registradas, transcritas e, após a transcrição, textualizadas (Meihy, 2005). Neste processo de tradução do relato oral em texto escrito procurou-se manter a máxima fidelidade ao estilo do colaborador. As maneiras de falar revelam pertencimento grupal, a uma região, a uma faixa etária, entre outros aspectos; assim, os “erros” gramaticais foram mantidos em alguns casos. A análise foi realizada com base na reconstituição da história de vida do colaborador, com o objetivo de mostrar suas redes de interdependência e de discutir sua singularidade no processo de construção de identidades capazes de redefinir sentidos, sentimentos de pertencimento e dar historicidade à experiência da situação de rua.

De Capão Redondo à Praça da Sé Pedro é frequentador do centro de São Paulo, porém tem fortes laços na região do Capão Redondo. Morou com a família neste bairro da periferia paulistana até seus trinta anos. Parou de estudar aos 14 anos, após uma série de fracassos na escola, mas concluiu a 4ª série do Ensino Fundamental, quando começou a trabalhar como ajudante em feiras livres do seu bairro, pois precisava contribuir com a renda familiar. Aos 18 anos ingressou na atividade de carreteiro, realizando viagens pela cidade e outras regiões do Brasil. As constantes viagens favoreceram seu distanciamento da família, assim como as brigas frequentes entre seus pais, que acabaram optando pela separação. Pedro avaliou que o consumo de bebidas alcoólicas, presente desde sua adolescência, foi se tornando excessivo e passou a prejudicar seu desempenho no trabalho, suas relações familiares e com os amigos. “Estou com 43 anos e faz mais ou menos dez anos que fui pra rua. Antes disso, sempre morei com a minha família. Morava com a minha família até que um dia minha mãe se separou do meu pai, e aí eu fiquei morando com meu pai, e ele me botou pra fora de casa. Eu já era velho, tinha uns 30 ou 33 anos quando ele me botou pra fora, porque eu bebia muito. [...] Aí, fui morar com a minha irmã. Aí, não chegou a fazer dez dias, me botou pra fora também. Aí fui morar na casa dum colega, que hoje é finado, aí o colega me botou pra fora também. Aí, vim conhecer aqui, a Praça da Sé. Descobri o que é albergue, morei, dormi nesses bancos da Praça, dormi debaixo dos viadutos. Albergue eu fui em todos!”.

Sem renda e com dificuldade nas relações familiares, passou a dormir em hotéis de baixo custo. Não conseguiu novas oportunidades de trabalho e, quando seu dinheiro acabou, passou a dormir na rua: não havia a quem recorrer, todas as suas relações estavam muito desgastadas. Durante anos desligou-se da família. Pedro considerou as transformações de sua relação com o trabalho como um dos fatores que motivou sua chegada à situação de rua. Avaliou que, cerca de 15 anos antes, era mais fácil encontrar trabalho em sua área e conseguia manter-se empregado, mesmo que necessitasse trocar de emprego frequentemente, pois não conseguia permanecer muito tempo no mesmo local de trabalho por COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.767-79, out./dez. 2010

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consequência do abuso de bebidas alcoólicas. Esta trajetória mostra a confluência de dupla dinâmica de vulnerabilização da integração social: dissolução de vínculos e precarização ou ausência do trabalho, fatores que alimentam o processo de desfiliação. Porém, vale destacar que, para Pedro, o fator desencadeador do seu processo de chegada à situação de rua foi o afastamento da prática religiosa. “Eu nasci num lar cristão. Aí, na minha adolescência, eu desviei dos caminhos de Jesus, saí da igreja, comecei trabalhar no dia de sábado, comecei a trabalhar em feira de ajudante de pastel. Ali foi que eu comecei, que eu aprendi a beber bebida alcoólica. Comecei com um vinhozinho, aí quando eu fui abrir os olhos já tava na pinga. E, na idade de 18 anos, eu já bebia bastante pinga. E me tornei um motorista. Com 18 anos, já tirei a minha habilitação, na categoria D, na época só tirava categoria C. Aí eu comecei a beber, beber, mas me tornei um motorista profissional. Com 20 anos, eu saí da feira e fui trabalhar já como motorista profissional. Aí foi a minha trajetória: pegava emprego num dia e perdia no outro. Mas naquele tempo era fácil, né? Você perdia um emprego hoje e no outro dia já tava empregado!”.

Seu destino foi o centro da cidade de São Paulo, mais especificamente a Praça da Sé, destino de muitos que “caem” na rua. Magnani (2003), ao estudar o lazer no centro de São Paulo, deparou-se com diferentes usos e apropriações do espaço urbano, os quais seriam significados ou ressignificados por práticas sociais. Deslocamo-nos, então, para compreender algumas dessas práticas e a relação de Pedro com elas, circunscritas a determinado espaço, visível na geografia da cidade. Pedro tornou-se um conhecedor deste espaço, e sua forma de utilizá-lo foi se transformando com o tempo. A dinâmica da praça é complexa; trataremos de descrevê-la a partir da perspectiva das relações estabelecidas por Pedro. Foi na praça que conheceu Maciel, artista de circo que realizava exibições e vendia produtos para a saúde. Trabalhou como seu auxiliar na segurança, venda dos produtos e coleta de doações, recebendo, para isso, uma contribuição financeira que variava de acordo com a arrecadação. Após alguns anos sem trabalhar, seu conhecimento sobre a praça, sua dinâmica e seus personagens, inclusive os policiais, renderam-lhe oportunidades de geração de renda. Além da imponente catedral, marco da Igreja Católica, a praça concentra uma série de pregadores de diferentes orientações religiosas que ali coabitam (nem sempre pacificamente) e disputam a atenção dos transeuntes para divulgar seus conhecimentos e vender seus produtos. Os pregadores disputam, também, com os artistas que trabalham na rua. Chamam a atenção dos passantes e dos frequentadores da praça as grandes rodas em torno de um evento, que por si só atraem a curiosidade de outras pessoas. A praça também é espaço de trabalho de engraxates, cabeleireiro e vendedores da “feira do rolo”5, que se beneficiam do movimento para vender serviços ou produtos. Pudemos compreender que fazem parte da dinâmica da praça e que algumas pessoas, como Pedro, encontram conforto, entretenimento, serviços, amigos, ao vivenciar tal dinâmica. Há, portanto, pessoas que se utilizam da praça de maneira mais frequente, estão no seu pedaço. Com este grupo, Pedro vem se relacionando mais intensamente. Uma das ações do proselitismo religioso que se estabelece na praça foi narrada por Pedro com muitos detalhes. A seguir, um trecho desta narrativa:

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5 Espaço informal de troca e venda de produtos usados.


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“E aquele negócio... A minha vida, eu estava cada vez mais andando que nem caranguejo: pra trás. Mentiras e mais mentiras, álcool e mais álcool, crack e mais crack, e por essa linha afora. Aí, até que num belo dum sábado... [...] Eu estava dormindo, quando de repente uma pessoa, uma voz meiga e suave, chegou no meu ouvido e falou: Jesus te ama! Aí deixou um folhetinho na minha mão. [...] Eu abri o folheto e estava escrito assim: vi novo céu e nova terra, vi a cidade santa descendo da parte de Deus, ataviada com seu noivo, adornada pra sua noiva. E o mal já não existirá e Deus enxugará de todas as suas lágrimas. E a morte já não existirá. Li assim, essas frases bonitas, e atrás estava escrito assim: Jesus te ama e Ele tem um plano na sua vida! Nossos queridos irmãos da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Peguei aquele folhetinho, coloquei no bolso, aí tinha o carimbo da igreja, aqui na Rua Taguá, na Liberdade, próximo à estação do metrô Liberdade. Aí eu falei: vamos ver se essas igrejas de crente são boa mesmo?”.

Foi desta maneira que Pedro descreveu seu retorno a IASD, com algumas idas e vindas, mas considerando esta abordagem na Praça da Sé como o momento que marcou o início do processo que chamou de “transformação”. Diferentes redes e apoios, além das que foram estabelecidas na Sé e na IASD, foram citados neste percurso. Pretendemos, a seguir, reconstituir resumidamente esta trajetória.

Espaços e redes na experiência de Pedro: assistência, trabalho e família Pedro ressaltou, em nossos encontros, que procurava mostrar sua “transformação de mendigo para trabalhador” e a influência da religião nessa passagem: “No ano de 2001, aceitei Jesus como meu salvador, e aí o milagre foi operado na minha vida. Foi quando eu deixei o álcool e deixei de usar droga, que seria o crack”.

Ao partir da ideia de “transformação” motivada pela “aceitação de Jesus”, Pedro destacou a importância da recomposição de laços e das diferentes redes que considerou parte desse processo. “Eu comecei aqui na Igreja Adventista da rua Taguá. [no centro da cidade], depois que eu fui pra Igreja do Capão Redondo [zona sul] e aí foi aonde eu conheci a Associação Minha Rua Minha Casa. Fui pra Associação, comecei ir nas bocas de rango, aí comecei dormir nos albergues, porque aí eu não estava bebendo mais, nem usando droga, aí os albergues estavam me acolhendo, eu estava lá direitinho. E, com o decorrer dos dias, foi passando, eu fui me integrando lá na Associação, tiraram meus documentos, a Rosana [coordenadora da AMRMC] me ajudou a tirar meus documentos, e eu comecei a fazer bicos, comecei a entrar na Frente de Trabalho e aí comecei a fazer bico aqui na Praça da Sé, vender coisas, comecei a trabalhar com um artista de rua, o Maciel [...] e aí até que eu entrei numa cooperativa de transporte coletivo. Trabalhei um ano lá. Só que lá num consegui juntar dinheiro, porque lá era uma cooperativa vagabunda, os caras roubavam. Aí, agora, nesse finalzinho de ano, entrei numa cooperativa boa. [...] Hoje já me encontro na sociedade. Voltei para minha casa, estou morando com a minha mãe”.

Os serviços de assistência compuseram uma rede de suporte importante. A relação de Pedro com a rede de serviços da assistência foi marcada pela presença em albergues. Ao refletir sobre a sua história, Pedro associou sua frequência em tais serviços à possibilidade de se abster do consumo de álcool e outras drogas. Por diversas vezes, ao falar de sua participação em albergues, utilizou a expressão “me botaram pra fora”, mostrando as dificuldades que teve em permanecer nestas instituições. A rotatividade e o não acolhimento pela falta de adaptação às regras foram dois pontos que chamaram a atenção nas suas reflexões sobre estes serviços. Durante o trabalho de campo, foi possível perceber que Pedro tinha um profundo conhecimento da rede de serviços da assistência e se movimentava dentro deste circuito de acordo com as possibilidades COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.767-79, out./dez. 2010

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oferecidas e suas necessidades. Um exemplo disso foi seu conhecimento sobre as chamadas “bocas de rango”, a qualidade das refeições e as regras necessárias para conseguir ser incluído nos serviços. Alguns destes serviços pertenciam à rede de equipamentos conveniados com a Prefeitura Municipal de São Paulo, por meio da Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social (SMADS), mas alguns espaços de distribuição de comida eram conhecidos por alguns, como o centro espírita na região da Mooca, que distribuía comida aos domingos. Há, na cidade, uma série de situações como esta e só quem faz parte deste circuito consegue se manter informado. Foi no interior das relações do circuito da assistência que Pedro soube do trabalho da AMRMC. Neste espaço guardava seus pertences, lavava suas roupas, tomava banho, fazia as refeições e participava de atividades socioeducativas e de geração de renda. A intensidade de sua participação no serviço e o tipo de atividade realizada atrelavam-se à inserção ou não no trabalho, às relações estabelecidas com seus familiares e à possibilidade de adequação às regras institucionais e de convivência com equipe e usuários, assim como à flexibilidade no acolhimento institucional. Pedro referiu-se muito pouco à AMRMC em suas reflexões e, quando o fez, além de reconhecer o apoio para tirar documentação e para geração de renda, nas participações nas frentes de trabalho do governo, avaliou que frequentava o serviço “porque é melhor do que ficar em casa”, sobretudo nos momentos em que esteve desempregado. Informou também que gostava de frequentar a AMRMC “para dar uma força para o pessoal”, pois participava de atividades de manutenção da instituição. Mesmo em períodos que estava trabalhando e morando com a família, Pedro frequentava esporadicamente as atividades da AMRMC. Interessante notar que, para não depender da família, Pedro preferiu ficar em albergues e frequentando a AMRMC nos períodos em que esteve desempregado. Porém, ressaltou que o controle sobre o consumo de álcool e outras drogas foi elemento decisivo para sua reaproximação com os familiares. “Aí a família viu que eu não estava mais bebendo. Aí, meu irmão chamou pra morar com ele, meu irmão mais velho. Aí comecei a morar com ele e consegui um emprego na cooperativa [empresa de transporte coletivo]. Aí eu comecei a morar lá, trabalhava na cooperativa, aí, depois dum belo dia, depois de um tempo, minha cunhada começou a jogar muito na cara, aí eu saí fora. Não por causa dele, por causa dela! Aí voltei a morar em albergue. E aí até que eu comecei a ganhar uns troquinhos e aluguei um quarto pra mim lá perto da cooperativa. Aí fiquei desempregado, a cooperativa ficou fraca, me enrolaram. Aí eu fiquei desempregado e voltei pro albergue”.

A presença na AMRMC, somada à participação na IASD, foi essencial para que se reorganizasse. Foi por intermédio da IASD que conseguiu o trabalho de motorista de ônibus em uma empresa cujo dono também era adventista. É importante destacar que estar trabalhando, frequentar a igreja e mostrar à família que estava “curado” foram elementos decisivos para o fortalecimento e manutenção da relação de Pedro com seus familiares. Mesmo que Pedro avalie as dificuldades com o consumo de bebida alcoólica na permanência nas suas atividades de geração de renda, ao longo do tempo tem se sujeitado a relações precárias de trabalho, sem estabilidade e garantias. Isso pode ser compreendido dentro de um processo social mais amplo, que Castel (1998) analisou como nova questão social, quando refletiu sobre as dinâmicas da filiação social com base no trabalho, enfatizando, no entanto, a relevância do processo de degradação da sociedade salarial. Pedro viveu “na pele” essa transformação do mercado de trabalho. Exceto nos eventos religiosos, Pedro vestia-se com uniforme de motorista de ônibus, mesmo quando estava desempregado ou em dias de descanso. Parece ser necessário para ele se afirmar neste universo profissional, e é desta forma que quer ser identificado. Historicamente, o não trabalho, a preguiça e a vagabundagem sofreram restrições, mais ou menos violentas. Segundo Castel (1998, p.424), em determinado momento histórico, base para a constituição da “sociedade salarial”, há nítida separação entre os que trabalham e os que não trabalham, e estes são alvo de regulações. Na constituição da sociedade salarial, o “vagabundo” 774

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torna-se novamente, durante um ou dois decênios, o contramodelo abominado que representou na sociedade pré-industrial: a figura da associabilidade que é necessário erradicar, porque destoa numa sociedade que volta a endurecer as regulações do trabalho. (Castel, 1998, p.424)

Parece que é desta imagem que Pedro procurou se desvincular. Existe, ainda, segundo as reflexões do autor, a noção de construção identitária através da condição de assalariado, compreendida, para além da retribuição do salário, como “a condição a partir da qual os indivíduos estão distribuídos no espaço social” (Castel, 1998, p.478). Compartilhamos a compreensão deste autor de que, em nossa sociedade, o trabalho confere identidade às pessoas.

Religiosidade: a IASD e novas redes Ser membro da IASD e seguir seu conjunto de valores e práticas possibilita a Pedro pertencer a um grupo específico e compartilhar uma série de códigos, inclusive nas relações familiares. Durante o trabalho de campo, as intensas narrativas sobre a IASD motivaram a busca de informações sobre a religião e uma visita à igreja que frequenta. A igreja do bairro paulistano onde reside é a referência da família, e, entre seus familiares, existem aqueles que ocupam posições importantes na estrutura daquela denominação religiosa. A região concentra quantidade expressiva de instituições adventistas. Além de algumas igrejas, é lá que se localiza o Centro Universitário Adventista de São Paulo, onde ocorrem diversos eventos ligados à religião. Assim, Pedro mantém-se dentro de um circuito ligado à prática da IASD: além de comparecer aos cultos e à Escola Sabatina, acompanha os eventos na universidade e outros acontecimentos da igreja. Pedro propôs uma visita a sua igreja em um sábado - dia indiscutivelmente importante dentro das práticas adventistas e, por consequência, na organização de seu cotidiano -, que envolveu visita à Escola Sabatina e participação no culto. Por sugestão do próprio Pedro, ao final da programação, entrevistamos o pastor, para quem nos apresentou como alguém que o conhecia da época da Praça da Sé e tinha visto sua transformação. O pastor, por sua vez, explicou alguns dos postulados fundamentais da IASD e de que maneira acreditava que Pedro havia se reorganizado. “[...] Ele era uma pessoa que era um alcoólatra, vivia nas ruas, era uma pessoa que não tinha uma norma a seguir, um princípio de vida e uma vez que ele conheceu os princípios da Bíblia, simplesmente aceitou e passou a seguir esses princípios que lhe foram ensinados. Só que nós acreditamos que, além do fato do ensino, além de receber as instruções da Bíblia, existe um fator, que nós acreditamos, que é um fator sobrenatural onde Deus entra, através do Espírito Santo, tocando na vida dessa pessoa, trabalhando na sua própria consciência para que ela possa se despertar para necessidade de uma mudança”.

O pastor considerou, por um lado, o fator “sobrenatural”, que, em outros momentos, Pedro nomeou de “milagre”; por outro, os princípios “éticos e morais” que foram ensinados. Vale buscar a compreensão de alguns desses princípios - que podem apoiar a leitura da situação de Pedro -, assim como uma breve contextualização histórica dessa religião. Como evidenciou Capellari (2001, p.45), a IASD é considerada uma religião paralela à Reforma, formando, no interior do protestantismo, um grupo específico de denominações religiosas, as quais, “nascidas no século XIX nos EUA, postulam que suas doutrinas foram reveladas de um modo especial, pela ação divina, sendo as principais a Igreja Adventista, a Igreja Mórmon e das Testemunhas de Jeová.” Oliveira Filho (2004), ao discutir a formação histórica da IASD, recuperou a construção de seu universo simbólico. Nascidas no contexto dos movimentos messiânicos do século XIX originados nos EUA, comunidades adventistas acreditavam em uma data prevista para o retorno do Messias; esse episódio ficou conhecido como “o grande desapontamento”. Um pequeno grupo permaneceu em busca de explicações para o evento e manteve a referência do Advento e, a partir das visões proféticas de Ellen White, os adeptos aglutinaram-se e foi orientada a formação do universo simbólico adventista. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.767-79, out./dez. 2010

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Segundo o endereço eletrônico oficial da IASD no Brasil (<http://www.adventista.org.br>, indicado pelo pastor entrevistado como fonte segura de informações), adventista é uma referência à “crença” no Advento, ou seja, à segunda vinda de Jesus à Terra. A narrativa do pastor contribui nesta compreensão: “Nós aceitamos a Jesus Cristo como nosso salvador e nos preocupamos em observar todos os dez mandamentos, e entre esses mandamentos da lei de Deus, que acreditamos ser uma aliança, está o mandamento do sábado como dia do Senhor. Por isso o nosso nome, “Igreja Adventista” — porque nós aguardamos o Advento de Jesus, a volta de Jesus —, e “do Sétimo Dia”, porque nós guardamos o sábado como o dia do Senhor, como está registrado em Êxodo, capítulo 20, verso de 8 a 11".

Como ficou dito, o sábado, nessas condições, é dia muito especial para essa igreja. É quando acontece a Escola Sabatina, na qual participam todos os batizados e os membros da Escola, interessados e futuros adeptos ao batismo (Oliveira Filho, 2004). Na Escola Sabatina, os bancos da igreja são divididos em classes, e cada uma destas classes tem seu professor, responsável por conduzir o estudo do dia. Pedro conduziu-nos aos bancos da igreja que representavam sua classe de referência e nos apresentou como visita, categoria distinta dos membros e batizados, facilmente identificável pela forma de organização. A experiência deixou evidente o proselitismo e a forma de acolhimento da religião. Após algum tempo de permanência na igreja, recebemos diversos bilhetes com palavras de boas-vindas e convites para estudar a Bíblia. A prática de “pregar o evangelho” a outras pessoas é compartilhada por Pedro, que assume, na igreja, papel importante como os outros membros. A importância de cada membro dentro da igreja, assim como a explicação sobre a noção de transformação dentro do universo simbólico adventista, está referida neste trecho da entrevista do pastor: “Então o papel da igreja hoje é pregar o evangelho de Jesus Cristo, que nós cremos, é a única maneira de o ser humano encontrar a salvação eterna. Logicamente que qualquer outro tipo de grupo pode ajudar na recuperação de uma pessoa, acreditamos que isso pode acontecer. Mas nós acreditamos que Jesus Cristo, ele é suficiente, no salmo 23 ele menciona assim: “O senhor é meu pastor e nada me faltará.” Então nós entendemos que Jesus Cristo, quando ele entra na vida de uma pessoa, a vida dessa pessoa, ela é transformada, e como o motivo de todos os problemas, até os problemas de saúde, têm o seu ponto de partida na mente, nós acreditamos que uma pessoa sadia mentalmente, transformada pelo poder do Espírito Santo, compreendendo os aspectos morais e éticos que são apresentados na Bílbia, ela pode não só encontrar um caminho, uma cura, para a sua própria alma, para a sua mente, como também pode ajudar a outras pessoas também. [...] Todo tempo que nós temos nós devemos utilizar para nossa família, para nosso bem-estar, mas também para o progresso da obra de Deus aqui na terra. Para pregação do evangelho”.

Se no circuito da rede assistencial Pedro recebia ajuda, um apoio, dentro da IASD passou ao estatuto de quem tem um conhecimento a ser transmitido para outras pessoas, de importância ímpar, porque significa, para ele e para o grupo que compartilha os mesmos códigos, a “única forma de salvação”. A religiosidade vai dando sentido a uma série de práticas e também promove novos desafios, como o de se manter dentro dos padrões “éticos e morais” expostos pelo pastor. Conseguir negociar os sábados como dia de folga no trabalho é um exemplo. No caso de Pedro, a conciliação é possível, porque trabalha em empresa cujo proprietário é adventista. Há também o esforço de se manter sem consumir carne de porco, tarefa difícil, já que feijoada e bisteca são pratos regularmente servidos nos restaurantes em que gosta de comer na região da Sé e nos quais compartilha uma série de valores com outros frequentadores. Desta maneira, haverá sempre a necessidade de negociação, em vários sentidos, visto que se trata do encontro de diferentes práticas culturais dentro da mesma sociedade. Como sugere Bhabha (2001), pode tratar-se da construção de espaços de fronteira que permitam o diálogo e a negociação cultural. 776

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A experiência de vida nas ruas não é negada, nem por seus familiares nem pelos pastores. Ao contrário, pareceu adquirir novos sentidos na medida em que se transformou em testemunho de Pedro reforçado pela palavra pública dos pastores, os quais encontraram, em sua história, uma forma de renovar a eficácia simbólica (Lévi-Strauss, 1975) da sua igreja, evocando a transfomação pessoal do fiel e reforçando as práticas e os valores que aquele grupo compartilha. Lembremos, ainda, que a relação entre religiosidade e processos de cura forma interessante interface para a análise desta trajetória. O tema é complexo. Sanchez e Nappo (2007) fizeram uma revisão da literatura científica (de trabalhos indexados nas bases de dados PubMed e Scielo entre 1976 e 2006) sobre a religiosidade e a espiritualidade como fatores de proteção do consumo de drogas e concluíram que [...] a frequência constante a uma igreja, a prática dos conceitos propostos por uma religião e a importância dada à religião e à educação religiosa na infância são possíveis fatores protetores do consumo de drogas. Verifica-se também uma possível influência positiva da religiosidade para a recuperação dos dependentes de drogas. (Sanchez, Nappo, 2007, p.79)

Há, segundo as autoras, um campo aberto à investigação, pois quase todas as pesquisas encontradas são quantitativas, e a exploração do tema no contexto brasileiro poderia trazer novas contribuições à saúde pública, haja vista a forte influência das religiões em processos assistenciais.

Apontamentos finais À medida que reconstituímos a história de vida de Pedro, seus circuitos e “pedaços” de pertencimento foram ficando aparentes e revelaram as diversas alternativas que conseguiu criar, mesmo em situações de vulnerabilidade. Ao compartilhar códigos e símbolos, nosso colaborador torna-se pertencente a determinados circuitos, que transcendem o da assistência e parecem contribuir para a construção e o fortalecimento de redes e de identidades interligadas e interdependentes. As diversas formas de participação social que observamos na trajetória de Pedro nos mostraram uma complexa rede e movimentos em busca de trocas em diferentes setores da sociedade. A participação nos serviços da rede assistencial, por exemplo, não se configurou como único recurso utilizado e não significou relação de dependência, situação comumente atribuída a seus usuários. A Igreja, as relações na Praça da Sé, a família e o trabalho compuseram diferentes possibilidades de trocas, colaborando para a construção da proteção próxima. Nesta trajetória, a religiosidade pareceu fornecer bases importantes para a construção de identidade coletiva e o pertencimento. O estudo das redes sociais formadas pelas pessoas em permanente presença ou interação com a situação de rua pode ser enriquecido se a abordagem apreender, além das dimensões do trabalho e da moradia, as da religiosidade, da cultura, do lazer e da participação política (em movimentos sociais específicos). Há necessidade de se compreender, de forma aprofundada, a complexidade das dinâmicas de dissociação social e dos movimentos opostos a esta, para contribuir com a construção de práticas que buscam equacionar as dificuldades enfrentadas pelo grupo social em questão. Permanece o desafio e a necessidade de se produzirem, a partir de relações de interlocução, circunstâncias que evitem a chegada de pessoas à situação de rua, assim como se construírem alternativas coletivas.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.

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artigos

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GALVANI, D.; BARROS, D.D. Pedro y sus circuitos por la Ciudad de São Paulo, Brasil: religiosidad y situación de calle. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.767-79, out./dez. 2010. Se trata de estudio de caso con base en la reconstitución de la historia de vida de un adulto en situación de calle en la ciudad de São Paulo. La investigación etnográfica y la historia de vida han compuesto las estrategias para colecta de datos realizada durante 12 meses. En el análisis se busca exponer singularidades en el proceso de construcción de identidades capaces de obtener nueva dimensión y conferir historicidad a la experiencia de la situación de calle. En la discusión de la trayectoria de Pedro es fundamental el análisis de religiosidad para releer su historia de calle. Aliada a otras redes, muestra posibilidades distintas de construcción de redes de inter-dependencia, caracterizando movimientos de nuevos significados. La identidad socialmente negativa vinculada a la situación de calle se puede descentrar, adquiriendo contornos y dinámicas más elucidativos. Aún así se presenta la necesidad y el desafío de construcción de alternativas colectivas a la precariedad de la experiencia de calle.

Palabras clave: Historia de vida. Independencia. Redes sociales. Adultos en situación de calle. Antropología cultural. Recebido em 19/05/09. Aprovado em 29/03/10.

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artigos

Análises das representações dos professores sobre o currículo cultural da Educação Física * Marcos Garcia Neira1

NEIRA, M.G. Analysis of teachers’ representations about the Physical Education cultural curriculum. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.783-95, out./dez. 2010.

The present study discusses the representations of Physical Education teachers who voluntarily participated in an in-context investigation process, with the objective of building and developing curriculums inspired by cultural theorization. Adopting bricolage as a research method, the records of the fortnightly meetings were intertwined with descriptions of the pedagogical practices. By using Cultural Studies to weave the interpretations of the empirical references, it was possible to consider the ideas that emerged as results of the accessed formative processes and of personal positions in relation to the students’ cultural heritage.

Keywords: Physical education. Curriculum. Culture.

No presente estudo discutimos as representações dos professores de Educação Física que, voluntariamente, participaram de um processo de investigação em contexto com o objetivo de construir e desenvolver currículos inspirados na teorização cultural. Adotando a bricolagem como método de pesquisa, os registros das reuniões quinzenais foram entretecidos com os relatos das práticas pedagógicas. Ao se recorrer aos Estudos Culturais para tessitura das interpretações do referencial empírico, foi possível considerar as noções que emergiram como decorrentes dos processos formativos acessados e de posicionamentos pessoais com relação ao patrimônio cultural dos estudantes.

Palavras-chave: Educação física. Currículo. Cultura. * Apoio: CNPq. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. Av. da Universidade, 308. Cidade Universitária, São Paulo, SP, Brasil. 05.508-040. mgneira@usp.br

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A problemática Há muito que a literatura educacional manifesta algum consenso em torno do reconhecimento da influência do contexto nos procedimentos adotados pelo professor ou nas suas concepções. Consequentemente, nas últimas décadas vêm ganhando visibilidade os estudos que buscam integrar a formação continuada à pesquisa in loco. A investigação no contexto escolar se torna possível à medida que mobiliza os docentes como parceiros ativos de um projeto de transformação (Sarmento, 2003). Graças à relação de parceria, estabelece-se uma dimensão colaborativa de pesquisa que reconhece o papel protagonista do professor no que tange a suas práticas e representações. Nos anos de 2007 e 2008, conduzimos um projeto de investigação ambientado em sete escolas públicas situadas nos municípios de São Paulo, Barueri, Osasco e São Bernardo do Campo, com o objetivo de construir e desenvolver currículos de Educação Física teoricamente amparados nos referenciais dos Estudos Culturais (EC). Nelson, Treichler e Grossberg (1995) definem os EC como um termo de conveniência para uma gama bastante dispersa de posições teóricas e políticas. Sendo profundamente antidisciplinares, pode-se dizer que partilham o compromisso de examinar práticas culturais do ponto de vista de seu envolvimento com, e no interior de relações de poder. Os 11 professores2 de Educação Física, cujas representações se transformaram em objeto de análise no presente artigo, mostraram-se interessados em implementar currículos inspirados na teorização cultural com base nas discussões travadas durante um evento de extensão universitária do qual participaram. Oriundos de cursos de Licenciatura moldados segundo a Resolução CFE nº 03/ 873, quatro participantes concluíram cursos de especialização na área educacional, enquanto os demais manifestaram envolvimento frequente em eventos de formação contínua desenvolvidos pelos sistemas públicos de ensino. Com relação ao tempo de magistério, os professores, à época do estudo, possuíam de três a sete anos de experiência. Perfazendo jornadas entre 27 e 35 horas/aula semanais, dentre aqueles que se dedicavam exclusivamente a uma instituição de ensino, dois atuavam na rede estadual; quatro, em escolas da rede municipal de São Paulo; um, na rede municipal de Osasco; e um, na rede municipal de Barueri. Já, entre os professores que atuavam em duas escolas, um acumulava exercícios na rede estadual e na rede municipal paulistana; um trabalhava nas redes municipais de São Bernardo do Campo e São Paulo; e, outro, nas redes municipais de Osasco e São Paulo. Após reuniões com as equipes gestoras das escolas para esclarecimentos e solicitação formal de autorização para realização do estudo, ao pesquisador coube planejar e desenvolver as atividades formativas e acompanhar a implementação do currículo cultural da Educação Física. Nos seis meses que antecederam a elaboração do currículo cultural, as reuniões formativas se caracterizaram por um conjunto de atividades que simultaneamente promoviam a reflexão sobre o fazer pedagógico dos participantes e possibilitavam o acesso aos referenciais do currículo cultural da Educação Física que subsidiavam a construção da proposta a ser experimentada. Após a leitura da bibliografia recomendada, foram realizados debates acerca das temáticas4 que fundamentam o currículo cultural. Também foram mapeados os saberes culturais corporais de cada comunidade escolar5 como estratégia relevante para o planejamento6 conjunto das atividades de ensino. Uma vez iniciado o desenvolvimento do currículo cultural, concomitante às discussões 784

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Após as explicações iniciais e leitura do projeto de pesquisa, todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

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Essa informação, angariada durante as entrevistas, permitiu fazer conjeturas sobre a relação entre o currículo da formação inicial acessado e as representações acerca da perspectiva cultural da Educação Física. Na maioria das instituições formativas, segundo Benites, Souza Neto e Hunger (2008), a Resolução CFE nº 03/87 (Brasil, 1987) propiciou a adoção do que se denominou “Licenciatura ampliada”, ou seja, “formavam-se profissionais para atuar tanto no espaço escolar quanto no não escolar em virtude da abrangência do seu campo de atuação” (Benites, Souza Neto, Hunger, 2008, p.345). A correção desse problema só ocorreria com a Resolução CNE/CSE nº 07/ 04 que regulamentou percursos distintos conforme o perfil profissional.

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Função social da escola na contemporaneidade; teorização curricular da Educação Física; teorias póscríticas da educação e suas influências na Educação Física; e o ensino da Educação Física na perspectiva cultural.

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A comunidade escolar é aqui compreendida como estudantes e suas famílias e todos os profissionais que atuam na escola.

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Seleção das manifestações corporais que seriam abordadas e proposição das atividades de leitura e interpretação da gestualidade, ressignificação (modificação da manifestação em estudo conforme os significados do grupo), aprofundamento (melhor compreensão da prática corporal a partir do acesso de novas informações sobre ela) e ampliação (estabelecimento de comparações com outras perspectivas sobre a mesma manifestação acessadas mediante fontes externas ao grupo).

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Os depoimentos dos participantes foram transcritos em itálico.

artigos

promovidas a partir das leituras, as gravações das aulas e o retorno dos alunos às atividades propostas (coletados pelos professores) foram analisados durante as reuniões enquanto recurso formativo e forma de acompanhamento das ações didáticas. A elaboração de instrumentos de avaliação da aprendizagem e a interpretação dos seus resultados também entraram na pauta das discussões, além, é claro, das conversas permeadas por inúmeras trocas de impressões acerca do trabalho em experimentação. Muito embora retornássemos inúmeras vezes ao ponto, ilustrando, explicando e diversificando as atividades formativas, com remissões frequentes aos referenciais teóricos e às imagens gravadas nas escolas, uma parcela do grupo persistiu em uma visão distorcida com relação à construção do currículo cultural. Mesmo após 24 meses de reuniões, estudo e interlocuções pedagógicas, algumas falas seguiam denotando concepções arraigadas a uma perspectiva curricular baseada na cultura dominante, o que se opunha radicalmente às intenções da proposta: A escola deve ensinar coisas novas; Não podemos ficar naquilo que eles já conhecem; Trabalhar com o repertório deles limitará a aprendizagem7. Tal quadro permitiu intuir que as atividades formativas pouco contribuíam para modificar as representações dos participantes. O provável empecilho que isso representaria para a modificação da política curricular das escolas envolvidas fez surgir a necessidade de elucidar as razões da permanência dessas representações. A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando cada pessoa como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que o homem e a mulher dão sentido à experiência e àquilo que são. (Woodward, 2000, p.17)

8 Grosso modo, o significante pode ser entendido como a imagem mental de um signo, sem que se estabeleça uma relação direta com o significado. Para Derrida (2002), o significado é uma abstração inalcançável. Vive-se em contato apenas com significantes que são mobilizados na perseguição dos significados dos signos.

Conforme os EC, as representações dos docentes não podem ser concebidas de forma essencialista. Frutos de experiências contextuais refletem visões construídas dialeticamente em meio à socialização cultural. É bastante plausível que, ao longo dos anos, os depoentes tenham acumulado vivências e acessado discursos que os levaram a interiorizar determinados significantes8, influenciando, consequentemente, sua atribuição de significados. Se o grupo pretendia elaborar e desenvolver um currículo atento à pedagogia cultural, desvelar os mecanismos que proporcionaram a emergência de tais representações constituía-se, objetivamente, atividade formativa de elevada importância, merecedora, portanto, de uma análise mais profunda. A reflexão sobre o fenômeno levou-nos a duas interpretações inter-relacionadas. Além das dúvidas com relação à forma com que a escola contemporânea lida com a cultura, os professores explicitavam restrições com respeito ao reconhecimento do repertório acessado pelos estudantes nas experiências extraescolares. Ora, nesse ambiente, o mínimo que se poderia esperar era a distorção do significado do currículo cultural da Educação Física, implicando, certamente, dificuldades para levar a cabo as intenções do projeto.

Currículo: um campo de lutas Os EC ensinam que o currículo não é um instrumento meramente técnico, neutro ou desvinculado da construção social. Enquanto projeto político que forma novas gerações, o currículo é pensado para garantir a organização, controle, eficiência e regulação da sociedade. Como componente pedagógico, define: formas e organiza conteúdos; os conhecimentos que se ensinam e se aprendem; as experiências desejadas para os estudantes etc. Dado seu teor regulatório, o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.783-95, out./dez. 2010

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currículo constitui estratégia de política cultural, pois, interfere na produção de representações e identidades. Silva (2007) adverte que a escolha de conteúdos do currículo privilegia um tema em detrimento de outro, ou seja, mediante a inter-relação de saberes, identidade e poder, são promovidos conhecimentos e valores considerados adequados para as pessoas atuarem no mundo. É fato que, para concretizarem seus projetos de sociedade, aqueles que detêm o poder de decisão sobre o currículo escolhem, validam e legitimam conteúdos e atividades de ensino. Quando agregado ao debate curricular, o campo teórico dos EC questiona quem está autorizado a participar dessas decisões, a que interesses servem os conteúdos selecionados, o que é e o que não é considerado conhecimento válido ou importante para a formação das identidades e, por fim, que identidades pretende formar. Como qualquer artefato cultural, o currículo forma pessoas como sujeitos particulares. Isso significa que o conhecimento nele transmitido não preexiste nos indivíduos (Silva, 1995). O currículo é uma prática discursiva que transmite regimes de verdade, que se corporifica perante certas narrativas de cidadão e sociedade, construindo sujeitos singulares. O currículo não é apenas uma forma de transmissão cultural, é também um modo de posicionar os sujeitos no interior da cultura. Os EC convidam a se compreender o currículo com base na perspectiva de quem é sujeito do processo de formação. A preocupação quanto aos sujeitos que o currículo forma é decorrente destes tempos em que a presença da diversidade configura novas formas de comunicação entre comunidades e, portanto, de identidades. A identidade, como conceito, oferece recursos para entendermos a interação de nossa experiência subjetiva do mundo e as paisagens culturais em que as subjetividades se constroem. As identidades são produzidas nas relações entre os sujeitos e na interação entre diferentes culturas e, por não haver consenso, são sempre relações de poder, algumas mais visíveis que outras. A questão da identidade tornou-se central quanto ao modo com que percebemos a contemporaneidade. Para Hall (2000), se é verdade que temos algum sentimento de pertencimento, este não é predeterminado, sólido ou irrevogável. A identidade é constantemente deslocada para toda parte, ora por experiências confortáveis, ora por vivências perturbadoras. Trata-se de fruto de um processo discursivo, constituído em meio a circunstâncias históricas e experiências pessoais que levam o sujeito a diferentes identificações ou a assumir determinadas posições que conduzem ou influenciam seus atos. As identidades se efetivam a partir do que se realiza e da repetição e reforço das descrições a respeito do que se faz. A identidade, portanto, se torna aquilo que é descrito. Por assim dizer, compreende-se a identidade como um conjunto de características pelas quais os grupos se definem como grupos e marcam, ao mesmo tempo, aquilo que eles não são. Contudo, esse pertencimento não é uma essência ou garantido para sempre. O sentimento de pertença é transitório. De acordo com Hall (2000), as identidades são um ponto de apego temporário às posições de sujeito com que as práticas discursivas nos interpelam. Elas se transformam à medida que o sujeito percorre caminhos diversos, age e toma decisões diante de uma variedade de ideias e representações com as quais convive. Tanto a nossa identidade quanto a dos outros – a diferença – são construídas na e por meio da representação. É na estreita ligação entre identidade e representação que localizamos o jogo do poder cultural. O poder está inscrito na representação e é por meio dele que os diversos grupos sociais criam a própria identidade e impõem aos outros a diferença. Mediante a representação, travam-se lutas pela validação e negação de significados (Silva, 2000). Em meio à diversidade cultural, é na inter-relação entre representação, identidade e poder, que ganha ênfase a chamada política da diferença. Neste movimento social e político, os grupos sociais definem-se por meio de múltiplas dimensões (classe, raça, etnia, gênero, idade, profissão, religião, gostos e preferências diversas etc.), afirmando sua identidade e representação. Nas relações de poder entre esses grupos são definidas as representações e identidades válidas. Por sua vez, os grupos desprovidos do poder de definir resistem à hegemonia das identidades dominantes e lutam pelo direito de se fazerem representar ou controlar a construção e divulgação de sua representação. Com base no campo dos EC, a pedagogia se articula como ação social corporificada no currículo, buscando a tomada de posição de seus sujeitos na luta por justiça e transformação social. Em virtude de seu compromisso com o exame das práticas culturais a partir de seu envolvimento com e no interior das relações de poder, os EC contribuem para as análises dos efeitos do currículo sobre as identidades que 786

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interpela. Sua recusa em desvincular a política do poder do processo de escolarização reforça a ideia de que a pedagogia não pode ignorar os fatores que interferem na definição dos significados e das metas da educação. Ao projetarem as identidades “adequadas” ao projeto social, as políticas educacionais organizam currículos que definem quais posições os sujeitos da educação devem assumir enquanto cidadãos (Silva, 1995). Contudo, diante da possibilidade de se recontextualizarem as diretrizes oficiais e partindo de uma visão de educação como prática cultural responsável politicamente pelas histórias que produz (Giroux, 1995), supomos bem-vinda a emergência de outras propostas curriculares. Propostas que ponham em circulação outras narrativas identitárias, outras linguagens, outras formas de significar a Educação Física, proporcionando, aos seus sujeitos: condições para construir uma agenda crítica preocupada com a cultura e suas conexões com o poder, reconhecer-se enquanto portadores e produtores de conhecimento, validar suas vozes, rejeitar o elitismo e entender a necessidade da constante elaboração de um projeto democrático para a sociedade. Estes são, de forma sumária, os fundamentos do currículo cultural da Educação Física debatidos ao longo das reuniões formativas.

O currículo cultural da Educação Física

Termo empregado por Neira e Nunes (2006) para classificar as propostas curriculares da Educação Física que destinam-se a transmitir conhecimentos relativos à aquisição e manutenção de um estilo de vida fisicamente ativo. 9

A análise das propostas da Educação Física a partir da teorização crítica aventou que os conteúdos corporificados nos currículos desenvolvimentista, psicomotor, esportivista e saudável9 carregam as marcas indeléveis das relações sociais em que foram forjados (Neira, Nunes, 2006). Cada qual, a seu modo, reproduz, culturalmente, a estrutura de classes da sociedade capitalista. Funcionando como aparelhos ideológicos, esses currículos transmitem a ideologia dos grupos melhor posicionados na escala econômica. Resumidamente, as teorias críticas denunciaram a reprodução da desigualdade pelo sistema educacional e suas consequências sobre os sujeitos da educação. Afirmaram a necessidade de uma reflexão mais profunda acerca do que ensinam os currículos, a quem pertencem os conhecimentos neles veiculados, quais identidades legitimam e quais negam. Recentemente, as teorias pós-críticas, nas quais se enquadram os EC, ampliaram as análises das teorias críticas, fortalecendo a resistência aos ditames da sociedade classista e indicando a existência de relações de poder em outros marcadores sociais: etnia, gênero, religião, tempo de escolarização etc. Buscando inspiração na teorização pós-crítica, Silva (2007) aponta formas alternativas de conceber a educação e o sujeito social. Reafirma o ideal de uma sociedade que considere prioritário o cumprimento do direito que todos os seres humanos têm de ter uma vida digna, ou seja, de ter uma vida em que sejam plenamente satisfeitas suas necessidades vitais, sociais e históricas. Nesse cenário, sinaliza o autor, a educação está estreitamente vinculada à construção de uma sociedade em que riqueza, recursos materiais e simbólicos e condições adequadas sejam mais bem distribuídos. A educação deve ser construída como um espaço público que promova essa possibilidade e como um local em que se forjem identidades sociais democráticas. Em pesquisa anterior (Neira, 2008), constatamos que um currículo de Educação Física comprometido com essa visão - aqui denominada “cultural” - procura impedir a reprodução consciente ou inconsciente da ideologia dominante, presente, por exemplo, nas propostas que deixam de questionar os inúmeros marcadores sociais que caracterizam as manifestações corporais. O currículo cultural tem como pressuposto básico a recorrência à política da diferença por meio da valorização das vozes daqueles que são quase sempre silenciados (Giroux, 1995). Trata-se de um apelo para que se reconheça que, nas escolas, assim como na sociedade, os COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.783-95, out./dez. 2010

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significados são produzidos por experiências que precisam ser analisadas em seu sentido político-cultural mais amplo. Um currículo cultural da Educação Física prestigia, desde seu planejamento, comportamentos democráticos para a decisão dos conteúdos e atividades de ensino. Valoriza a reflexão crítica sobre práticas sociais da cultura corporal do universo vivencial dos alunos para, em seguida, aprofundá-las e ampliá-las mediante o diálogo com outras vozes e outras manifestações corporais. No currículo cultural, a experiência escolar é um campo aberto ao debate, ao encontro de culturas e à confluência da diversidade de manifestações corporais dos variados grupos sociais. É um campo de disseminação de sentidos, de polissemia, de produção de identidades voltadas para a análise, interpretação, questionamento e diálogo entre e a partir das culturas. Na opinião de Canen e Oliveira (2002, p.61), o currículo cultural “valoriza a diversidade e questiona a própria construção das diferenças e, por conseguinte, dos estereótipos e preconceitos contra aqueles percebidos como ‘diferentes’ no seio de sociedades desiguais e excludentes”. Aceita essa premissa, é de se esperar que o currículo cultural da Educação Física organize situações em que os alunos sejam convidados a refletir acerca da própria cultura corporal e do patrimônio disponível socialmente, bem como da bagagem veiculada por outros grupos. Evidentemente, essas finalidades implicam a busca permanente pela explicitação das possibilidades e limites oriundos da realidade sociopolítico-cultural e econômica enfrentada pelos cidadãos no seu cotidiano, e que condiciona e determina a construção, permanência e transformação das manifestações da cultura corporal. O currículo cultural da Educação Física tenciona posicionar os estudantes como sujeitos da transformação social e contribuir com a construção de uma sociedade mais democrática e justa. Consequentemente, a prática pedagógica deverá articular-se ao contexto de vida comunitária; apresentar condições para que sejam experimentadas e interpretadas as formas como a cultura corporal é representada no cenário social; ressignificar essas práticas corporais conforme as características do grupo; aprofundar os conhecimentos acerca desse patrimônio e ampliar os saberes dos alunos a respeito da manifestação corporal estudada. Tais preocupações, alertam Neira e Nunes (2006), tencionam fazer “falar”, por meio do estudo das manifestações corporais, a voz de várias culturas no tempo e no espaço, além de problematizar as relações de poder explícitas e implícitas. Para Garcia (1995), ao situar, no currículo, os conhecimentos que os alunos trazem quando entram na escola, o professor os reconhece como sujeitos de conhecimento, sujeitos capazes - capacidade esta revelada e reconhecida no já sabido, e capacidade potencial para se apropriar de novos conhecimentos que a escola pode e deve oferecer. Com isso, pretende-se não só a valorização identitária, como, também, a ampliação cultural e o reconhecimento das diferenças. Somente o diálogo cultural contribuirá para a construção do autoconceito positivo e respeito com o outro, elementos indispensáveis a uma relação democrática.

A bricolagem Os métodos analíticos empregados pelos EC apelam para qualquer campo teórico que colabore para produzir o conhecimento exigido por um projeto particular. Sua proposta pode ser vista como uma “bricolagem” de métodos de pesquisa. Ao questionar as formas positivistas de produzir conhecimento, os EC recorrem a múltiplas leituras de mundo, suscitando interessantes possibilidades quando o foco recai sobre as representações atribuídas a qualquer prática cultural, no caso em tela, o currículo cultural da Educação Física. A opção pela bricolagem busca dar coerência aos posicionamentos político e epistemológico que inspiraram a presente investigação. Baseamo-nos no fato de que não é possível provocar transformações e mudanças nos quadros sociais sem modificar ou alterar as estruturas e hierarquias que regem a produção dos conhecimentos científicos. Kincheloe e Berry (2007) explicam que, no contexto da pesquisa, o termo bricolagem é compreendido como o emprego de variados métodos e estratégias à medida que se tornam necessários no desenrolar da investigação. Adotando uma postura ativa, a bricolagem rejeita diretrizes e roteiros 788

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Lankshear e Knobel (2008) sugerem a utilização de dispositivos de evocação como estratégia para suscitar posicionamentos dos sujeitos da pesquisa acerca de um determinado tema. 10

11 Originalmente proposto por Nietsche, o termo “genealogia” foi desenvolvido por Foucault (1992) para descrever o processo de recordar e incorporar as memórias de conhecimentos subordinados, de conflito e as dimensões de poder que revelam as lutas atuais.

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preexistentes, solicita ou, até mesmo, cria os processos de investigação à medida que surgem as demandas. A bricolagem permite que as circunstâncias deem forma aos métodos empregados. Nenhum método pode ser privilegiado ou empregado com segurança, tampouco descartado antecipadamente. Apesar de sua multilogicidade, fazer bricolagem implica selecionar métodos, estratégias e referenciais teóricos. Atentos à possibilidade de se construírem novos sentidos e perguntas sobre o objeto investigado sem jamais se apresentarem respostas ou verdades definitivas, recorremos à etnografia e à pesquisa-ação que, entrecruzadas pelos EC, coadunam com o objetivo do presente estudo. A etnografia, por considerar a prática pedagógica dos participantes e reconhecer suas visões do contexto educativo e social, e a pesquisa-ação, por suscitar a transformação dos posicionamentos com relação ao currículo da Educação Física. Diante da pluralidade de ações às quais um bricoleur pode recorrer, em consonância com os métodos empregados, observamos e filmamos o currículo em ação nas escolas. As imagens coletadas constituíram dispositivos de evocação10 durante as atividades formativas desenvolvidas com os participantes. Para uma compreensão mais apurada das concepções docentes, foram realizadas entrevistas, e recolhidos os relatórios alusivos à experiência com o currículo cultural. Os procedimentos e instrumentos adotados permitiram reunir um variado referencial empírico: diário das observações de campo, atas das reuniões, transcrição dos depoimentos docentes e toda a documentação pedagógica. Com o foco nas representações veiculadas pelos professores colaboradores com relação ao patrimônio cultural da comunidade, à pedagogia proposta e aos pressupostos teóricos que a fundamentam, analisamos criticamente os materiais resultantes, procurando confrontá-los com o arcabouço teórico dos EC. Num primeiro momento, procuramos desconstruir as representações atribuídas ao currículo cultural da Educação Física explicitadas pelos sujeitos. Em seguida, prosseguindo com a análise, recorremos à genealogia11 para entretecer diferentes interpretações. Na bricolagem as análises são entretecidas (Kincheloe, Berry, 2007). Entretecer significa tecer juntos, tecer entremeando. O ato de entretecer fundamenta uma concepção de pesquisa que pretende construir com base em uma perspectiva crítica, questionadora, dialógica e dialética. Tecer juntos, entremeando, almeja uma produção coletiva de conhecimentos, respeitadora de múltiplas perspectivas e que contemple o ir e vir, o relativo, o temporário e o imprevisível da complexidade contemporânea. O entretecer é uma ação contínua e constante, configura a bricolagem como recurso para a interpretação e construção de conhecimentos acerca da realidade. Ao promover o entretecimento, ou seja, a tessitura de diferentes posicionamentos, a bricolagem rompe com a arrogância de uma interpretação unívoca a fim de favorecer a multiplicidade de vozes e interpretações acerca da prática social em foco. Para entretecer as representações acerca do currículo cultural da Educação Física, procuramos ouvir os sujeitos, ler seus relatos, observar suas práticas e compreender os pressupostos que sustentam seus argumentos. Todo e qualquer sujeito produz teses e teorias sobre qualquer fenômeno. Todavia, suas explicações são carregadas dos valores que compartilha, lembrando que os discursos não são produtos individuais, mas de grupos, de coletivos, de instituições. A bricolagem baseia-se numa constante interação e realimentação por novos posicionamentos e análises. O processo de realimentação é contínuo e não quantificável. Dependendo das informações que surgirem, as interpretações iniciais poderão ser reorganizadas. É esse ir e vir que dá consistência ao 789


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conhecimento produzido, ou seja, o rigor e a validade. A interpretação na bricolagem não possui um método. O ato interpretativo promove o desvendar de significados e sentidos expressos pelos diferentes participantes, sendo a tarefa do pesquisador analisar como são construídas essas representações. Assim, o referencial teórico cumpre o papel de subsidiar o olhar do pesquisador para enxergar as relações existentes entre os diferentes discursos e interpretações que fazem da realidade. Na bricolagem, o pesquisador chega a um texto com interpretações múltiplas, mas nem sempre conciliáveis sobre o objeto de pesquisa. Não existe explicação verdadeira, conclusão do estudo ou considerações finais, afinal, o conhecimento é transitório e está sempre em processo. É impossível produzir uma explicação completa sobre determinado fenômeno social, pois, a complexa natureza das relações embutidas não permite que isso aconteça. Ao concordarmos com Kincheloe e Berry (2007, p.112) quando afirmam que “todas as descrições do mundo são uma interpretação e sempre há novas interpretações a serem encontradas”, afirmamos que as análises a seguir são apenas interpretações passageiras.

Desconstruindo as representações do currículo cultural O currículo cultural da Educação Física traz para o interior da escola uma variada gama de manifestações corporais para submetê-las a um permanente processo de tematização. Seguindo o raciocínio de Corazza (2003), tematizar significa abordar algumas das infinitas possibilidades que podem emergir a partir de leituras e interpretações da prática social da manifestação. Tematizar, na visão de Freire (1980), implica procurar o maior compromisso possível do objeto de estudo numa realidade de fato, social, cultural e política. O que se pretende com a tematização é uma compreensão profunda da prática corporal em foco e o desenvolvimento da capacidade crítica dos alunos enquanto sujeitos de conhecimento, desafiados pelo objeto a ser conhecido. Portanto, não se trata de “perguntar aos alunos o que querem estudar”, nem tampouco de um empreendimento espontaneísta baseado no laisse faire, conforme afirmado pelos participantes da pesquisa. Enquanto alguns chegaram a dizer que, no currículo cultural, “os alunos escolhem o que querem fazer”, outros viam as chamadas “aulas livres” como situações em que a cultura da comunidade era valorizada. Tais representações foram verbalizadas diversas vezes ao longo da investigação. Dada a variedade de grupos culturais que compõem a sociedade contemporânea, para promover uma trajetória formativa democrática, temos, nas palavras de Connell (1993), que instaurar a justiça curricular. Reconhecendo o valor de todas as identidades, o currículo cultural da Educação Física deve atentar à distribuição equilibrada de diversas manifestações culturais corporais. Para fazer dialogar a multiplicidade, convém reconhecer o patrimônio cultural corporal dos grupos que constituem a sociedade e eleger, a partir dele, as manifestações que serão estudadas. Uma atenta seleção, seguida de interpretação, aprofundamento e ampliação dos saberes, possibilitará o entendimento da heterogeneidade social, contribuindo para democratizar as identidades e valorizar a diversidade cultural corporal. Tais objetivos foram pouco traduzidos nas práticas pedagógicas, conforme anunciam os relatos dos participantes: “Organizei a atividade de modo a garantir as mesmas experiências para todos”; “Todo mundo tinha que viver a situação de pegador” ou “A bola deve passar pelas mãos de todos”. Movidos por uma “igualdade” que camufla noções deterministas de “cultura comum”, as falas dos professores indicam suas preocupações com a estruturação de situações didáticas em que os todos os alunos atuem da mesma forma, requisitando, portanto, os mesmos conhecimentos. Os educadores, quando portadores desse pensamento, comumente afirmam que todos os alunos são iguais e, portanto, necessitam das mesmas experiências educacionais para serem bem-sucedidos. Na visão de Stoer e Cortesão (1999), o que se está promovendo é a homogeneização da diversidade que caracteriza os estudantes. Esse daltonismo cultural, explicam os autores, recorre a intervenções pedagógicas que distorcem a igualdade, pois, tendem a tratar a todos da mesma forma, tencionando o alcance de comportamentos idênticos. Mormente, o resultado é o privilégio atribuído àqueles que dispõem de experiências culturais anteriores vinculadas às práticas corporais trabalhadas em aula, o que só faz reforçar certas identidades e desqualificar outras, ou seja, excluem-se os estudantes cuja cultura de chegada se distancia das vivências solicitadas, marcando negativamente as diferenças. 790

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Na visão do grupo que participou do estudo, a prática pedagógica que caracteriza o currículo cultural, por vezes, foi vista como desperdício de tempo. Para alguns, seria melhor “colocar rapidamente os alunos em movimento”. Sempre que as filmagens das aulas ou depoimentos dos colegas que se deixavam inspirar pela proposta apresentavam atividades de leitura, discussão, escrita, pesquisa, assistência a vídeos ou debates entre os alunos, surgiam locuções de rejeição ou escárnio - “Educação Física não é lição” ou “não dá para dar aula teórica” -, proferidas antes que pudessem entender o que estava sendo feito. Notamos que a resistência a um outro formato de atividades de ensino obstaculizava a necessária compreensão do significado dos conteúdos em tela. Mesmo reconhecendo a existência de outras posturas, Grant e Wieczorek (2000) são enfáticos ao relacionar o currículo cultural às práticas pedagógicas pautadas na ancoragem social dos conteúdos. Trata-se de uma séria análise sócio-histórica e política das manifestações corporais presentes no currículo, adotando a prática social como ponto de partida. O que está em jogo é a compreensão e posicionamento críticos diante do contexto social de produção e reprodução da cultura corporal. Em outras palavras, é necessário descobrir como surge, ocorre e se transforma a manifestação corporal objeto de estudo, para que os alunos possam vivenciá-la e adaptá-la conforme as características do grupo e da escola. Dessa forma, reproduzem-se, com as devidas modificações, as microrrelações que caracterizam o processo de ressignificação de qualquer artefato cultural, posicionando os estudantes na condição de produtores culturais. A viabilização desse processo leva em conta as experiências pessoais referentes ao tema e os conhecimentos veiculados pelos meios de comunicação de massa, obras específicas, histórias, depoimentos etc. A condução de atividades de ensino pautadas na ancoragem social, ao abordar variadas narrativas, potencializa o diálogo entre o senso comum, a cultura acadêmica e os conhecimentos acessados em outros ambientes, além de ajudar os alunos a elucidarem os discursos que legitimam determinadas experiências e desqualificam outras. O que permite superar a alienação provocada pela veiculação de informações fantasiosas e reconhecer uma nova visão sobre os conhecimentos disponíveis relativos à cultura corporal, sejam eles socialmente valorizados ou marginalizados.

Entretecendo interpretações A análise da documentação pedagógica - no caso, o mapeamento do patrimônio cultural corporal da comunidade realizado pelos professores como estratégia para construção do currículo cultural - revelou a existência de diversas manifestações até então “esquecidas” pelas propostas da Educação Física baseadas na transmissão da cultura dominante. Acatando as recomendações sugeridas durante as reuniões formativas, os participantes puderam arrolar uma quantidade de práticas corporais que julgavam desconhecidas pelos estudantes. Emergiram inúmeras brincadeiras; danças da cultura popular, como forró e maculelê; práticas esportivas, como bocha e malha; modalidades radicais, como skate, bicicross e le parkour; danças contemporâneas, como psy e rebolation, entre tantas outras práticas corporais que poderiam compor o currículo cultural. Quando o currículo cultural valoriza o patrimônio de chegada dos estudantes, quando procura hibridizar suas vozes com aquelas oriundas da cultura dominante, quando reconhece as diferenças, promove a justiça e busca lastrear os conteúdos de ensino, no limite, está defendendo uma política pedagógica absolutamente distinta das acessadas pelos docentes nos seus anos de escolarização. Ou seja, nossos informantes possuíam representações de escola, sociedade, função do professor e prática de ensino que, por ventura, se afastavam do que se propunha nos encontros de formação. As informações obtidas por meio das entrevistas revelam que os participantes, quando alunos da Educação Básica, experimentaram relações pedagógicas inversas àquelas que caracterizam o currículo cultural: “No meu tempo, ninguém perguntava o que os alunos sabiam”; “Chegava na aula e o professor demonstrava e explicava, a gente fazia”; “Às vezes eu sinto que ensino do mesmo jeito que aprendi”; “Como havia os campeonatos da secretaria, meus professores só davam treinamento”; “Tinha os exercícios que a professora dava todo o ano”. Bernstein (1998) diria que, mediante tais experiências, os códigos acessados pelos alunos indicarão que a instituição educativa e os órgãos administrativos são os únicos capacitados a definir o que e o como ensinar. Diante desse quadro de opressão em que foram COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.783-95, out./dez. 2010

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socializados os entrevistados, é compreensível que a assunção da autoria curricular pelo coletivo escolar, conforme propõe o currículo cultural, seja vista como algo improcedente. A passividade diante da política curricular adquirida durante os anos de escolarização básica, ao que tudo indica, se consolidou nos bancos universitários: “Aprendi assim na faculdade. Lá cobravam a execução dos movimentos”; “Alguns professores valorizavam mais a prática do que a teoria”; “Diziam que aprenderia a ensinar, mas aprendi, principalmente, a fazer”; “No curso que frequentei, a maior preocupação era ensinar treinamento físico”. Investigando o tema, Neira (2007) concluiu que uma parcela considerável dos projetos pedagógicos dos cursos de Licenciatura em Educação Física exprime concepções destoantes com relação aos atuais pressupostos que fundamentam a docência. A maioria impinge aos futuros professores conteúdos desnecessários a quem vai trabalhar na escola, deixando de lado questões primordiais. Muitos cursos superiores ainda ensinam o preenchimento de súmulas esportivas, exigem o desempenho atlético e, sobretudo, priorizam disciplinas biológicas em detrimento das pedagógicas. Os universitários, quando interpelados, queixam-se da capacidade didática ou das avaliações propostas pelos professores, quase nunca questionam os conteúdos ensinados. Aprenderam a aceitá-los mesmo sem conhecer suas origens, razões e relações com a docência. Sob a influência das teorias pós-críticas, é possível questionar a atualidade dos conteúdos presentes nos currículos que formam professores: quais são os códigos transmitidos quando se desconsidera que ensinar Educação Física numa escola democrática, compulsória e multicultural significa recorrer ao diálogo, respeito e valorização da cultura patrimonial? Quais representações sobre a profissão, alunos, escolas, ensino, papel do componente etc., são transmitidas quando o desempenho esportivo é destacado? É importante frisar que ao se ofertarem certas experiências e conteúdos, e não outros, formar-se-ão determinadas identidades docentes, e não outras. Qualquer decisão curricular é política. Qualquer decisão curricular vincula-se a um modo de ver o mundo que se quer legitimar e tornar hegemônico. Com isso, qualquer decisão curricular contempla alguns e afasta os demais. Os saberes e situações que constituem o currículo da formação para a docência refletem, em última análise, o sujeito que se quer formar. Sempre há um projeto de cidadão em vista e, no caso da formação inicial, um perfil profissional a ser alcançado para um determinado projeto de sociedade. Se concordarmos com a assertiva de Silva (2007), para quem o currículo forja pessoas, constitui identidades, somos obrigados a perguntar se pretendemos formar identidades profissionais docentes mais alinhadas à manutenção ou à transformação do atual quadro social. Em suma, ao explicitarmos que os currículos escolares e universitários, consciente ou inconscientemente, se vinculam a determinados setores, grupos, conhecimentos, correntes e tendências, atribuímos à trajetória formativa, vivida pelos participantes do estudo, uma parcela da responsabilidade pelo teor das representações que possuíam acerca do currículo cultural da Educação Física. Avaliamos que a repetição de códigos opressores ao longo de toda formação básica e superior contribuíram para a adoção de uma postura heterônoma diante do currículo. No tocante à incorporação do repertório cultural da comunidade, outra característica marcante da perspectiva cultural, grande parte do grupo investigado se mostrou reticente: “O que está na cultura deles? Só dançam funk, rap, jogam videogame, essas coisas”; “Na hora do recreio eles já fazem isso, na aula, é melhor aprender coisas úteis”. Na visão dos participantes, nota-se que somente os conteúdos extraídos da cultura dominante poderão mudar as condições de vida dos alunos. Kincheloe e Steinberg (1999) enxergam, nesse posicionamento, uma forma de etnocentrismo, pois desqualifica o patrimônio alheio em prol da visão pessoal. Um currículo centrado nos conhecimentos hegemônicos provavelmente desencadeará o sentimento de superioridade nos representes da elite e inferioridade nos demais. Por isso, não é de se estranhar a condição de fracasso enfrentada por aqueles que não se reconhecem no currículo. Ao repelirem por meio de práticas pedagógicas impositivas o repertório cultural dos alunos, os docentes, em certa medida, camuflam seus preconceitos, aludindo à inferioridade daqueles por meio de insinuações sobre seus valores familiares ou sobre o que configura a

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forma ideal de ser, agir e pensar. Em tal cenário, os comportamentos ideais são naturalizados, servindo para justificar e fundamentar posturas opressoras com relação aos que se encontram à margem, posto que, presumivelmente, são carentes ou incapazes e, por essa razão, não conseguem aprender os conteúdos ensinados. McLaren (2003) alerta que uma das formas encontradas pelos setores dominantes para pasteurizar a presença da diversidade cultural na escola é o constante apelo à “cultura comum” concretizada nos currículos unificados. Um dos indícios desse pensamento, frequentemente mencionado nas reuniões formativas, consistiu na defesa intransigente de uma só proposta curricular de Educação Física. Seus porta-vozes aludiram à facilidade que isso representaria para eles e os benefícios para os alunos: “Todos já saberiam o que ensinar a cada ano” e “Na quinta série é aquilo e pronto, os alunos não reclamariam”. Nega-se a cultura da comunidade quando se propõe um currículo planejado centralmente e uniforme para todos os alunos e todas as escolas, independentemente das características e condições de implementação. O currículo uniforme é insensível aos interesses e necessidades dos estudantes e da escola. A consequência, segundo o autor, é o silenciamento das vozes dos alunos menos favorecidos em razão da sua condição social. A análise dos relatos e depoimentos indica que, enquanto a maior parcela dos sujeitos atuava no sentido da manutenção das condições vigentes, preservando a todo custo a inviolabilidade dos conteúdos hegemônicos da Educação Física, aludindo a uma certa tradição da área, outros ousaram, transgrediram e experimentaram mudanças. Essa ocorrência denota a dialeticidade que caracteriza a relação dos sujeitos com as práticas culturais. Daí a importância de se proporcionarem situações formativas que priorizaram o debate, a reflexão e a análise profunda sobre a realidade que cerca a escola contemporânea e a docência da Educação Física. Afinal, conforme Giroux (1995), não há somente passividade diante da cultura, há, também, resistência e ressignificação. Em função disso, é possível dizer que, a seu modo, alguns professores que colaboraram com a investigação ensejaram avanços na construção e desenvolvimento de currículos inspirados na teorização cultural. Findado o período de permanência nas instituições que acolheram o estudo, simplesmente responsabilizar os participantes pela sua compreensão acerca da proposta é um equívoco. A genealogia que proporcionou o entretecimento das interpretações permite afirmar que os significados atribuídos ao currículo cultural da Educação Física se encontram profundamente vinculados às trajetórias formativas. Quando negligenciam os conhecimentos dos estudantes e defendem uma pedagogia salvacionista, os docentes revelam sua fé naquilo que sabem e na forma como sabem ensinar. Há que se dizer, no entanto, que não se trata de um posicionamento cristalizado ou definitivo. Afinal, o estudo desenvolvido traz esperanças acerca da ressignificação das representações docentes. Apesar das modificações constatadas nas concepções de diversos participantes, na nossa perspectiva, a maior contribuição da investigação diz respeito à compreensão dos mecanismos que geram a resistência e distanciamento com relação ao currículo cultural - como se constatou, tanto os processos formativos acessados quanto os posicionamentos pessoais com relação ao tratamento pedagógico dos saberes oriundos dos grupos minoritários mostram-se como empecilhos ao entendimento da proposta. Como fator limitante do estudo desenvolvido não pode ser desconsiderado o fato de que os sujeitos da cultura encontram-se em processos dinâmicos de significação, sendo bastante variados os aspectos que influem na construção de identidades. É bem possível que os sujeitos investigados sigam modificando suas representações acerca do currículo cultural da Educação Física, independentemente da participação em atividades formativas. Uma vez reconhecido o emaranhado que leva os sujeitos a elaborarem determinadas representações a respeito do currículo cultural, é possível empreender ações voltadas para a transformação. Inspirados nos EC, se indagarmos com mais frequência e intensidade sobre o etnocentrismo pedagógico que povoa os currículos que formam professores de Educação Física, será possível desconstruir práticas curriculares engessadas e evitar que o oprimido de hoje se transforme no opressor de amanhã, perpetuando indefinidamente o ciclo.

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NEIRA, M.G. Análisis de las representaciones de los profesores sobre el currículo cultural de la Educación Física. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.783-95, out./dez. 2010. En el presente estudio discutimos las representaciones de los profesores de Educación Física que, voluntariamente, han participado de un proceso de investigación en contexto con el objetivo de construir y desarrollar currículos inspirados en la teorización cultural. Adoptando el bricolaje como método de investigación, los registros de las reuniones quincenales fueron entretejidos con los relatos e las prácticas pedagógicas. Al recorrer a los Estudios Culturales para tesitura de las interpretaciones del referencial empírico, ha sido posible considerar las nociones que emergieron como consecuencia de los procesos formativos accedidos y de posicionamientos personales con relación al patrimonio cultural de los estudiantes.

Palabras clave: Educación física. Currículo. Cultura.

Recebido em 09/09/09. Aprovado em 23/04/10.

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A estreita porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS): uma avaliação do acesso na Estratégia de Saúde da Família *

Ana Lucia Martins de Azevedo1 André Monteiro Costa2

AZEVEDO, A.L.M.; COSTA, A.M. The narrow entrance door of Brazil’s National Health System (SUS): an evaluation of accessibility in the Family Health Strategy. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.797-810, out./dez. 2010. This study has the purpose of analyzing users’ perception of the accessibility to Estratégia Saúde da Família (ESF - Family Health Strategy) in its geographical, organizational, socio-cultural and economic dimensions. Process evaluation with qualitative approach through open interview, direct observation and documental analysis was performed in the city of Recife, northeastern Brazil. The main problems were: the deficient referral and counter-referral system; delayed return of laboratory test results; excessive number of families per team; difficulties in scheduling medical consultations; expenditures on medicines. Facilities were observed in the professional-user relationship, as well as in the geographical proximity of the health unit. ESF proved to be a narrow entrance door to Sistema Único de Saúde (SUS Brazil’s National Health System). Therefore, it deserves to be evaluated with a more critical look that takes into account, as a starting point, the needs of individuals who request its actions, as well as the reasoning which guides the actions of the subjects involved in care.

Keywords: National Health System (SUS). Healthcare quality, acess, and evaluation. Family Health Strategy. User satisfaction. Primary healthcare.

Este estudo objetivou analisar a percepção dos usuários sobre o acesso à Estratégia de Saúde da Família (ESF) em suas dimensões geográfica, organizacional, sóciocultural e econômica. Fez-se uma avaliação de processo com abordagem qualitativa por meio de entrevista aberta, observação direta e análise documental, em Recife, Pernambuco. Os principais problemas foram: deficiente sistema de referência e contra-referência; demora no retorno dos resultados dos exames laboratoriais; excessivo número de famílias por equipe; dificuldades para marcar consultas; despesas com medicamentos. Foram observadas facilidades na relação profissional-usuário, bem como na proximidade geográfica da unidade de saúde. A ESF revelou-se uma estreita porta de entrada do SUS, merecendo um olhar distinto, que adote como ponto de partida as necessidades dos indivíduos demandatários de suas ações, bem como as lógicas que norteiam as ações dos sujeitos envolvidos no cuidado.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde (SUS). Acesso e avaliação da qualidade da assistência à saúde. Estratégia de Saúde da Família. Satisfação do usuário. Atenção primária à saúde.

Elaborado com base em Azevedo (2007); pesquisa sem financiamento, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz/ CPqAM. 1 Ministério Público de Pernambuco. Av. Santos Dumont, 508, apto. 403. Aflitos, Recife, PE, Brasil. 52.050-050. anazevedo.pe@gmail.com 2 Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz (CPqAM/Fiocruz). *

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A ESTREITA PORTA DE ENTRADA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ...

Introdução O Sistema Único de Saúde (SUS) ampliou o acesso da atenção básica por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF), que foi criada em 19943 e vem se expandindo sensivelmente desde então. Em 2007, a ESF atingiu mais de 90% dos municípios brasileiros e cobria cerca de 87 milhões de habitantes (46%), com 27 mil equipes instaladas (Giovanella, Mendonça, 2008). Tal expansão se tornou fundamental à garantia do acesso a partir da atenção básica (Brasil, 2006), assumindo esta a função de porta de entrada do SUS. Porém, essa ideia de “porta de entrada”, presente no sistema de saúde brasileiro, apresenta-se, segundo Merhy e Queiroz (1993) e Cecílio (1997), inconsistente com um modelo que pretende realizar a integralidade das ações individuais e coletivas em sua plenitude. Compartilham dessa opinião Friedrich e Pierantoni (2006), para quem o modo como se organiza o processo produtivo das equipes na ESF apresenta sérias contradições entre o propósito dessa estratégia e a demanda dos usuários. Para esses autores, a ESF desenvolve-se predominantemente de forma “parcelada, fragmentada e isolada”, comprometendo o principal sentido da “porta de entrada”, que é o acesso integral ao sistema de saúde. Como objeto de análise no presente artigo, o acesso4 assumido aqui parte do entendimento de que a existência de um serviço em um determinado local, apesar de constituir um aspecto importante, não garante sua efetiva utilização (Viera da Silva, 2005). Portanto, ao se examinar o discurso dos sujeitos, seu modo de ver e experimentar o acesso aos serviços de saúde de que necessitam, muito provavelmente ver-se-á que a população constrói seus próprios conceitos e estratégias de acesso; que reage em face das inúmeras vezes em que se cogita induzi-la a aceitar certos modelos de organização do sistema de saúde de cuja criação não participou. Neste aspecto, o acesso deve ser analisado à luz de uma relação de poder, na acepção de Foucault (1979), que envolve diversos interesses e “agendas ocultas nem sempre imediatamente reveladas” (Cecílio, 2002, p.295). A análise do acesso tem se colocado na agenda de muitos estudiosos da política de saúde, mesmo quando este não é o tema central. Em estudo sobre a qualidade em saúde desenvolvido na rede básica de Natal (RN), Dimenstein et al. (2003) observaram que o acesso constituiu uma dificuldade. Mais recentemente, Elias et al. (2006), comparando o PSF e as UBS (Unidades Básicas de Saúde) na cidade de São Paulo, a partir da avaliação de usuários, gestores e profissionais, identificaram que a acessibilidade foi considerada a pior dimensão da atenção básica nos dois modelos. Para Fekete (1996, p.116) a acessibilidade pode ser um eixo de análise interessante para se operacionalizarem processos avaliativos porque favorece a “apreensão da relação existente entre as necessidades e aspirações da população em termos de ‘ações de saúde’, e a oferta de recursos para satisfazê-las”. Esta perspectiva - o acesso relacionado fundamentalmente às necessidades dos indivíduos - sugere que as dificuldades postas à utilização dos serviços de saúde têm valor substancial (Viera da Silva, 2005). Visto deste modo, o conceito de acesso atrela-se profundamente ao princípio da integralidade com que Mattos (2001) e Cecílio (1997) trabalham no campo da saúde. A integralidade consiste em abolir os reducionismos na atenção, e exprime-se na concretização do “direito universal ao atendimento das necessidades de saúde”. Isto é, o direito do indivíduo ao acesso (sem impedimentos de qualquer natureza) a todas as tecnologias que o sistema oferece para o atendimento de suas necessidades (Mattos, 2001, p.63).

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Quando foi criada, em 1994, a Estratégia de Saúde da Família era denominada Programa de Saúde da Família (PSF). 3

O conceito de acesso não é consenso na literatura, sendo também variável a terminologia empregada. No presente estudo, acesso e acessibilidade são tratados como sinônimos, adotando-se, predominantemente, o termo acesso. 4


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Neste sentido, a experiência de acesso dos indivíduos no contato direto ou indireto com os serviços de saúde diz muito a respeito da capacidade do sistema em corresponder às suas expectativas e necessidades; em garantir-lhes um direito humano e social - o direito a ter saúde - que, no âmbito das políticas públicas, deve refletir o respeito às múltiplas singularidades que compõem a complexa demanda da população usuária. É nesta perspectiva que Bobbio (2004, p.65) entende os direitos sociais, em face dos quais, segundo ele, “os indivíduos são iguais só genericamente, mas não especificamente”. Essa pode ser considerada a razão pela qual a abordagem sobre o acesso não tome o todo pela soma de suas partes, antes tenha por foco que o todo é multidimensional e indissociável, retroalimentado e recodificado no cotidiano objetivo e subjetivo das experiências humanas. Nessa linha de pensamento, operacionalizar o conceito de acesso aos serviços de saúde implica considerar a relação que se estabelece entre os indivíduos e o sistema de saúde, num contexto de necessidades complexas e de respostas, na maioria das vezes, limitadas. É dessa perspectiva que Donabedian (1984) parte quando define o acesso como o grau de ajuste entre as características dos recursos de saúde e as da população, no processo de busca e obtenção de assistência à saúde. Esta visão é compartilhada por Starfield (2002), para quem o acesso consiste no primeiro requisito para que a atenção primária, de fato, torne-se porta de entrada para o sistema de saúde, sendo necessária a eliminação de barreiras financeiras, geográficas, organizacionais e culturais. Também baseada nesta concepção Fekete (1996) identifica quatro dimensões da acessibilidade: i) Dimensão geográfica refere-se a aspectos físicos impeditivos ao acesso (rios, grandes avenidas); distância entre a população e os recursos. ii) Dimensão organizacional refere-se a obstáculos originados no modo de organização do serviço: a) na entrada - demora na obtenção da consulta, tipo de marcação, horário; b) pós-entrada - demora na espera pelo atendimento médico; continuidade da atenção, que se relaciona a mecanismos de referência e contrarreferência. iii) Dimensão sociocultural refere-se a perspectivas da população: percepção do indivíduo sobre a gravidade de sua doença, medo do diagnóstico e das intervenções, crenças e hábitos, vergonha; e do sistema de saúde: formação dos profissionais; falta de preparo das equipes frente à diversidade de pacientes com distintas características socioculturais, incipiência dos processos de participação. iv) Dimensão econômica refere-se ao consumo de tempo, energia e recursos financeiros para busca e obtenção da assistência, prejuízos por perda de dias de trabalho, custo do tratamento. A expansão da cobertura da atenção básica proporcionada pela ESF tem sido espantosa e sua população adscrita deve, em breve, coincidir com toda a população mais necessitada do Brasil. Em Recife, de 2000 para 2007, o número de equipes cresceu 730%, o que possibilitou um salto, na cobertura populacional, de 6,5% em 2000 para 51% em 2007 (Recife, 2008). No entanto, a oferta desses serviços parece não satisfazer as necessidades dos usuários, pois não oferece integralmente o acesso, limitando, na prática, os objetivos da ESF, conforme foi explicitado anteriormente. Esta foi a hipótese à pergunta que conduziu este estudo: a ESF possibilita o acesso (integral) à população adscrita? Assim, o objetivo geral deste estudo foi avaliar o acesso à ESF, com base na percepção de usuários.

Metodologia Esta pesquisa consiste numa avaliação qualitativa do acesso na ESF em uma localidade de Recife/PE, com foco no processo, entendido este como “uma série de atividades que se levam a cabo por e entre profissionais e pacientes” (Donabedian, 1984, p.95). A abordagem qualitativa, segundo Chizzoti (2005), compreende que o conhecimento não se resume a um conjunto de dados isolados e costurados por alguma teoria que os explica. Como parte integrante do processo de conhecimento, o sujeito-observador assume uma postura interpretativa frente aos fenômenos, aos quais esse mesmo sujeito atribui significados. No que tange à área de estudo, este ambientou-se no município de Recife, no território correspondente ao Distrito Sanitário IV, onde há 39 Equipes de Saúde da Família, que cobrem 37.916 famílias (136.500 pessoas, totalizando 49% da população do Distrito). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.797-810, out./dez. 2010

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Foram utilizados, como instrumentos de coleta de dados: a entrevista (com roteiro semiestruturado e perguntas abertas), a observação direta e a análise documental. O roteiro utilizado para a observação e a análise documental consistiu nos subitens de cada categoria de análise, que serviram como guia para as anotações, sendo destacados: forma de acolhimento, horário, vínculo usuário-profissional, demanda e oferta dos serviços e insumos, funcionamento e organização da unidade, disponibilidade de medicamentos e mecanismos de referência e contrarreferência. Quanto à amostra, em pesquisa qualitativa, o critério de definição não é numérico. Antes, importa enxergar os fenômenos sob vários pontos de vista, perspectivas e de observação, tendo sempre em conta o princípio da saturação do tema (Minayo, 1999). Assim, utilizou-se uma amostra aleatória de 24 sujeitos acima de 15 anos, usuários de duas equipes de saúde da família, selecionados entre a população cadastrada na área de abrangência das duas equipes, por meio da Ficha - A (ficha de cadastro dos usuários). Com o apoio dos agentes comunitários de saúde (ACS), os indivíduos foram identificados e contatados em suas próprias residências (onde também foram realizadas as entrevistas), porém só participaram aqueles que voluntariamente aderiram à pesquisa, após leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Todos foram informados acerca dos objetivos da pesquisa e esclarecidos sobre o conteúdo do TCLE antes de o assinarem. As entrevistas foram gravadas com a anuência dos participantes. Os sujeitos foram selecionados pelo ciclo da vida, sendo oito jovens, oito adultos e oito idosos, com as seguintes características: 18 eram frequentadores da ESF - sendo 12 do sexo feminino e seis do sexo masculino - e seis não frequentadores, cujos sexos variaram de acordo com o sorteio. A opção por essa diferença numérica tomou por base a proporcionalidade na procura e na utilização dos serviços de saúde, em que a proporção de mulheres e frequentadores é conhecidamente maior do que a de homens e não frequentadores. Optou-se por ouvir alguns profissionais (total de oito) e o gestor (diretora do Distrito Sanitário), o que permitiu alguns contrastes e comparações, assim como ampliou o universo das reflexões. Os profissionais entrevistados foram quatro de cada uma das duas equipes sorteadas, sendo eles: o (a) médico, a (o) enfermeira e o (a) dentista e um ACS. Todos aceitaram participar da pesquisa (assinaram o TCLE) e foram entrevistados nas suas respectivas unidades de saúde. As entrevistas foram realizadas de agosto a dezembro de 2006. A observação direta foi realizada nas duas unidades de saúde da família (USF), durante os meses de novembro e dezembro de 2006, e a análise documental foi realizada durante o ano de 2006. Totalizaram-se sete visitas sistemáticas às unidades, distribuídas nos dois turnos de funcionamento das mesmas (manhã e tarde). As categorias de análise que constituem as dimensões do acesso são: geográfica, organizacional (obstáculos na entrada e pós-entrada), sociocultural e econômica, já detalhadas anteriormente. Tais categorias foram baseadas na sistematização de Fekete (1996) e nas contribuições conceituais de Donabedian (1984) e Starfield (2002). Para a análise dos dados, fez-se uso da Análise de Conteúdo (Bardin, 2004). Todo o material de caráter discursivo e os registros de campo foram tratados e analisados conforme as categorias adotadas e de acordo com os valores atribuídos aos núcleos de sentido.

Resultados e discussão A dimensão geográfica do acesso É amplamente sabido que barreiras relacionadas à distância estão associadas ao nível de complexidade dos serviços: quanto menos especializados, mais próximos localizam-se da população, e o inverso é verdadeiro. O acesso nesta dimensão não sofreu críticas por parte dos usuários, o que já era esperado, uma vez que as unidades de saúde em foco estão localizadas no território onde as famílias a elas cadastradas residem. Prováveis barreiras no trajeto (tais como canaletas abertas e calçadas inacabadas ou desniveladas) não foram referidas como limitantes, mesmo quando o entrevistado foi uma pessoa idosa com visíveis dificuldades de locomoção. Assim, sobre a distância para chegar à unidade de saúde, o seguinte trecho resume como os usuários a classificaram: 800

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“É perto daqui, eu vou andando”. (usuário 8, adulto, frequentador, equipe A)

Dimensão organizacional Obstáculos na entrada Um dos motivos pelos quais alguns usuários não frequentavam a unidade, e, consequentemente, não utilizavam os serviços da equipe, foi a “dificuldade de marcar a consulta [...]”. (usuária 10, adulta, não frequentadora, equipe B)

Esta dificuldade permanece como um importante problema de acesso na atenção básica, como demonstraram Araújo et al. (2008), constituindo, ainda hoje, um desafio para o SUS. Apesar de reconhecidas conquistas neste sentido - haja vista estudos que demonstram o significativo aumento da cobertura na atenção básica (Sá, 2002), e o avanço no sentido da equidade (Facchini, 2006; Piccini et al., 2006; Travassos et al., 2000) -, ainda persiste, como se vê, uma situação na qual os usuários não encontram espaço para o encaminhamento de suas demandas em momentos de dor e sofrimento agudo. A dificuldade para marcar consulta também foi atestada pela fala dos profissionais, conforme se vê adiante. “A gente é muito numeroso, tem muita quantidade de famílias, então eles se queixam [...]”. (profissional 1)

Neste estudo observou-se, ao contrário do resultado encontrado por Araújo et al. (2008), que esta questão está intimamente relacionada (mas não somente) à insuficiência de profissionais para atender à demanda dos usuários, visto que a população adscrita em uma das unidades estudadas estava muito acima dos limites aceitos pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2006). Piccini et al. (2006) e Cohn et al. (2002) identificaram problema semelhante, corroborando a ideia de que “a insuficiência quantitativa de oferta implica, em certa medida, na insuficiência qualitativa” (Cohn et al., 2002, p.8). No caso do acesso ao dentista, essa situação apresentou-se de modo mais evidente, devido ao fato de existir apenas uma equipe de saúde bucal para duas equipes de saúde da família. A fala a seguir reflete esta questão. “Para conseguir a consulta por odontologia ainda é mais nó. Por fazer mais tratamento concluído, eu ainda restrinjo mais um pouco o acesso”. (profissional 7)

Esse achado é corroborado por Oliveira (2002), em estudo desenvolvido sobre o acesso e utilização dos serviços odontológicos do SUS em 2001, pois a autora comprovou que nem mesmo os procedimentos básicos são garantidos em todos os municípios. Outro aspecto destacado negativamente pelos usuários foi o atendimento de urgência, que, diante de suas necessidades mais agudas, esperam encontrar na unidade de saúde mais próxima: “eu peguei a infecção [...]. Eu fui praí e ninguém me atendeu, a mulher mandou me levar pra urgência. Isso era pra ter aí”. (usuária 12, jovem, frequentadora, equipe A).

Este achado coincide com o que foi encontrado no estudo de Dalmaso (2000), que destacou as urgências como uma demanda (reprimida) muito frequente nas unidades básicas de saúde. Outros autores (Merhy, Franco, 2005; Merhy et al., 2002; Trad et al., 2002) lembram que, sobretudo na ESF, a falta deste serviço constitui um dos principais motivos de insatisfação dos usuários. Esse resultado é, no mínimo, curioso, diante do fato de a urgência ser um serviço já normatizado na ESF, e constar no plano da gestão como um recurso adicional na garantia do princípio da integralidade no SUS (Brasil, 2006). É nesta direção que alguns autores criticam a estrutura da ESF e a insuficiência da atenção básica (Merhy, Franco, 2005; Cohn et al., 2002; Cecílio, 1997). Para estes autores, os usuários procuram o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.797-810, out./dez. 2010

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serviço de saúde em situação de sofrimento agudo e, quando a unidade básica não responde às suas necessidades, desembocam nos serviços de pronto atendimento e pronto-socorros, lotando-os com demandas consideradas “simples”, que poderiam ter sido resolvidas no nível da atenção básica. Este aspecto pôde ser constatado por Kovacs et al. (2005), em estudo realizado numa emergência pediátrica do Recife, no qual observaram que a dificuldade de acesso na atenção básica foi um motivo importante para a procura dos usuários pelo serviço de urgência/emergência analisado. Obstáculos pós-entrada Para alguns usuários frequentadores o obstáculo estaria na espera pelo atendimento na unidade, conforme reflete a fala de um deles: “A doutora fica na sala e demora muito a atender a gente. [...]” (usuária 4, adulta, frequentadora, equipe A).

Já outros usuários situaram o problema nos exames de fezes, urina, sangue e de citologia. As dificuldades não estariam exatamente na realização desses exames (a coleta é facilitada por realizar-se na unidade de saúde), mas no retorno dos seus resultados. Este problema só foi referido para as coletas realizadas na unidade, e não nos serviços laboratoriais conveniados - que, em geral, localizam-se em áreas mais distantes das periferias onde funcionam as unidades básicas de saúde. Esta questão é relevante, pois resulta num esforço adicional dos usuários (o deslocamento e o custo financeiro do transporte) na busca por um serviço, no seu entendimento, de qualidade melhor, ou, no que tange a este estudo, mais acessível. “Eu fiz aí [no ‘posto’], aí demorou um bocado [...] Essa semana ele passou uns exames de sangue pra mim, [...] na cidade, num laboratório [conveniado], eu fiz, e com cinco dias fui buscar o resultado”. (usuária 24, idosa, frequentadora, equipe B)

A explicação encontra-se no fato de as unidades da ESF disporem apenas do serviço de coleta; a análise laboratorial é realizada no Laboratório Municipal, que também é responsável pelo envio dos resultados às unidades de saúde coletoras. O mau funcionamento neste outro plano da atenção (apoio diagnóstico) contribui para desqualificar as ações realizadas no plano assistencial. No que toca à continuidade do cuidado em serviços de referência, esta não apareceu como problema para os usuários. A dificuldade para a marcação das consultas na unidade local (USF) - a porta de entrada - parece ter sido mais sentida pela população do que a dificuldade para marcar consultas com especialistas ou exames fora da área de abrangência da unidade. “[...] Demorou um pouquinho. Demorou, mas chegou, para eu poder ir para o Ermírio de Moraes, porque me atendem lá como médico do coração”. (usuária 9, idosa, frequentadora, equipe A)

Identificou-se, neste aspecto, uma certa diferença entre os discursos dos usuários, profissionais e gestora, na percepção do acesso. Para os profissionais e a gestora, o acesso às consultas com especialistas constitui um grande entrave na ESF, e para algumas especialidades a dificuldade é ainda maior. “Às vezes tem consulta que demora dois meses [...] neurologista, cardiologista, psiquiatra, nem todo mundo consegue”. (profissional 2)

Do ponto de vista da gestora, as dificuldades relacionam-se ao número excessivo de encaminhamentos realizados pela atenção básica, por entender que há casos solucionáveis no âmbito da unidade que, no entanto, são encaminhados:

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“Com a organização da marcação de consultas na Policlínica pelas unidades de saúde da família, eu acho que isso facilitou muito o acesso [...]. Encaminha-se muito pra especialista sem necessidade [...]”. (gestora)

Sem entrar na polêmica discussão que envolve a questão da resolutividade ou dos resultados do cuidado de saúde como elemento referencial para o acesso (Travassos, Martins, 2004, p.197), cabe esclarecer que esta percepção deve ser vista com ressalvas. Primeiro porque, como explicam as autoras citadas, “a saúde da população não resulta diretamente da ação dos sistemas de saúde”; segundo, porque, no Documento de Avaliação dos Indicadores do SIAB, produzido pela Gerência Operacional de Atenção à Saúde (GOAS) do Distrito Sanitário IV, identificou-se o contrário, que a média de encaminhamentos realizados pela ESF em 2006 está dentro do esperado nas equipes estudadas - em torno de 13% em uma equipe e 6% na outra -, visto que o Ministério da Saúde preconiza para a ESF o encaminhamento, para os serviços de referência, no máximo, de 20% dos atendimentos. A dificuldade percebida pelos profissionais e pela gestora parece estar associada ao número insuficiente de cotas de especialidades para cada unidade de saúde da família – fragilidade que está intimamente relacionada às limitações nos mecanismos de referência e contrarreferência. Estes mecanismos são itens considerados “necessários à implantação das Equipes de Saúde da Família” (Brasil, 2006, p.24) e constituem a “garantia dos fluxos de referência e contrarreferência aos serviços especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico, ambulatorial e hospitalar”. Este problema está associado à questão da descentralização inacabada da atenção à saúde no município, o qual ainda não exerce a gestão total da rede assistencial do SUS, situação complexa na qual os grandes hospitais públicos ainda se encontram sob a gestão estadual ou mesmo federal. Quanto aos usuários, sua percepção de facilidade no acesso pode estar associada à sua baixa expectativa em relação aos serviços públicos, cuja demora para se conseguir atendimento especializado já é esperada pelos mesmos, sendo apenas o fato de conseguir o atendimento um fator importante de satisfação. Neste sentido, as representações que os usuários têm dos serviços públicos de saúde encontram-se relacionadas intimamente com as experiências vividas pelos mesmos na busca pelo atendimento de que necessitam (Starfield, 2002; Halal et al., 1994). Percepção semelhante não foi observada no estudo de Escorel et al. (2007), no qual as famílias tiveram uma percepção mais clara desse problema do que os profissionais de saúde, carentes de mecanismo de aferição do tempo de espera e da magnitude das filas. A fala a seguir chama a atenção novamente para a questão da continuidade da atenção: “[...] O encaminhamento que ela me deu foi para o Lessa de Andrade, eu tô me tratando lá. Não voltei, não. Continuo fazendo lá”. (usuária 4, adulta, frequentadora, equipe A)

O que se depreende deste depoimento é que a responsabilidade pelo tratamento da doença passou para outro nível da atenção, juntamente com a responsabilidade pelo cuidado com o sujeito em questão, que, a partir de então, desvincula-se da relação profissional-usuário estabelecida na atenção básica. O foco na fala de um profissional reflete esta discussão. “[...] Isso é importante porque se a gente tem unidade básica com profissional que atende aquele usuário [...] e quer dar continuidade [...] a gente precisa desse retorno. [...] Então esse usuário se perde”. (profissional 6)

A continuidade do cuidado, em outro nível da atenção, quando as tecnologias disponíveis no nível básico já não respondem às necessidades dos usuários, não desresponsabiliza a equipe de saúde à qual os mesmos estão vinculados. Isto porque o acompanhamento sistemático desses usuários é tarefa cotidiana na ESF, e está condicionado ao compromisso (com o outro) tanto de quem encaminha quanto de quem recebe. Conforme Escorel et al. (2007), a comunicação e a troca de informações entre profissionais é muito importante para a função de coordenação atribuída à ESF e para a garantia de continuidade do cuidado. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.797-810, out./dez. 2010

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Esta característica de rede de serviços interligados entre si, com conexões que dão lógica e sentido ao sistema hierarquizado de saúde, constitui um elemento fundamental na questão que vem sendo discutida neste trabalho, posto que o acesso sem integralidade da atenção limita o caráter universalizante do sistema. Nesta perspectiva, cabe lembrar a crítica elaborada por Cecílio (1997) à hierarquia do modelo de saúde dos SUS, pois, além dessa hierarquia, na prática, não funcionar totalmente (por razões que não convém explicitar aqui, em face do limite do espaço deste artigo), este modelo parte da noção de pleno funcionamento de uma rede cujos constrangimentos são sentidos já na porta de entrada. Assim, um mecanismo de referência e contrarreferência com base na ESF tende a fracassar em sua função essencial, que é a garantia do que Cecílio (2006) denominou “integralidade ampliada”.

Dimensão sociocultural Os motivos pelos quais os usuários frequentam as unidades de saúde deste estudo expressaram a busca prioritária por ações e serviços relacionados ao controle ou à cura de doenças e/ ou à redução de algum desconforto ou mal-estar, conforme demonstra a fala a seguir: “é alguma coisa na boca, ou então nos dentes, na visão também [...]” (usuário 18, jovem, frequentador, equipe B).

Conforme Cohn et al. (2002), a predominância de referências dos usuários ao consumo individual e imediato do serviço demonstra que a saúde dificilmente é vista e baseada numa perspectiva coletiva, situada no âmbito da cidadania. Por outro lado, a oferta de serviços apresenta um caráter semelhante, constituindo-se prioritariamente de ações de natureza assistencial. Trata-se, portanto, de um padrão de oferta e demanda condizente com uma compreensão do processo saúde-doença centrada no modelo biomédico de atenção à saúde, concepção esta muito combatida pelos ideais reformadores da saúde pública brasileira. No que se refere à preocupação com a saúde, esta foi relacionada, por um dos usuários, à impossibilidade de trabalhar, ou à dificuldade de conseguir um emprego devido ao adoecimento. Esta dificuldade de acesso a um serviço de referência não só manteve como agudizou sua situação de carência, tanto do emprego quanto do tratamento. “Quando eu trabalhava, eu tive que parar por causa da minha coluna, que dói muito [...]. Aí eu perdi de trabalhar por causa do problema. Não, até agora não [não foi se tratar]. É difícil conseguir encaminhamento para o médico”. (usuário 8, jovem, frequentador, equipe A)

O modo de inserção dos indivíduos no mercado de trabalho - e o grau de liberdade que esta inserção proporciona - pode constituir um limite importante, relacionado: às condições materiais de existência nessa sociedade, à frequência do usuário à unidade e à busca pelo atendimento de que necessita, conforme se observa no relato: “[...] Tinha que pedir duas licenças [...]. Porque eu trabalhava como office boy [...], aí não tinha tempo. Quando ela [a empregadora] precisava de mim, eu tava indo pra lá correndo e eu não tava trabalhando com carteira assinada, aí não dava pra ir, aí eu só pedi uma licença a ela, ficava muito ruim”. (usuário 23, jovem, não frequentador, equipe B)

Segundo Minayo (1999), na sociedade capitalista, o corpo representa a “força de trabalho”, a única forma de os indivíduos não detentores dos meios de produção se reproduzirem, ou, em outras palavras, manterem suas condições materiais de sobrevivência. Daí, portanto, advém uma experiência existencial sofrida, “representadora” de uma realidade em que o corpo constitui a única fonte geradora de bens. Este entendimento encontra eco em outros estudos. Barbosa e Coimbra Júnior (2000) identificaram, em pesquisa sobre a esquistossomose em uma comunidade rural do nordeste brasileiro, que esta doença só passava a ser considerada pelos adultos como grave quando os incapacitava para o trabalho ou impossibilitava as crianças de frequentarem a escola. Seguindo a mesma reflexão, Bercini e Tomanik 804

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(2006), em estudo desenvolvido com mulheres de pescadores no município de Porto Rico, Paraná, observaram que, entre as mulheres entrevistadas, havia a percepção - constituída de significados e valores próprios daquela localidade - de que o indivíduo saudável é aquele com disposição e capacidade para trabalhar. A participação da comunidade constitui um dos princípios fundamentais do SUS, e implica compartilhamento de poder e responsabilidades na tomada de decisões que, afinal, dizem respeito a todos os envolvidos, e cujo sucesso, caso ele ocorra, será auferido por todos. Por isso, a participação deve ser estimulada e, sobretudo, promovida pelos profissionais da ESF, conforme orienta o Ministério da Saúde (Brasil, 2006). Mas, num contexto de convivência diária (nem sempre pacífica) entre atores em diferentes posições de poder, com interesses e possibilidades distintas, a participação idealizada pelo SUS torna-se um projeto ainda inacabado, haja vista a experiência relatada abaixo. “[...] eles [os profissionais] não querem nem ver a gente falar. [...] a gente não tem direito de se meter em nada.[...]. A comunidade era pra se reunir e tudo, [...], todo mundo combinar “é aquilo e aquilo”. (usuário 14, adulto, frequentador da unidade B)

A incipiente experiência no campo da participação social, tanto dos profissionais quanto dos usuários, somada à insuficiente capacitação tanto de uns quanto de outros, desenha um quadro conflitante no âmbito local, justamente num espaço em que se dão as relações (em todas as suas dimensões) mais estreitas entre estes atores. Assim, vistas de modo amplo, isto é, como necessidades sociais dos indivíduos, as necessidades de saúde podem se transformar em potencialidades, como alerta Stotz (1991), desde que as carências motivem, comprometam e mobilizem as pessoas.

Dimensão econômica Questões econômicas são destacadas quase sempre em estudos relacionados ao acesso aos serviços de saúde (Elias et al., 2006; Ribeiro et al., 2006; Travassos et al., 2000.), sendo constante, nesses estudos, a referência a uma relação inversamente proporcional entre a situação socioeconômica dos indivíduos e a possibilidade de acesso. Um aspecto favorável nesta dimensão foi a disponibilidade de medicamentos na própria unidade. Entretanto, apesar de a farmácia da USF ser abastecida mensalmente, não recebe a quantidade de medicamentos correspondente à necessidade de todos os usuários, o que acaba por tornar a busca pelos remédios um processo que requer agilidade, pois a garantia é para aqueles que chegarem primeiro (antes que acabe). Assim, ao mesmo tempo em que se constituiu numa facilidade - porque, mesmo sendo poucos, os remédios são fornecidos na unidade, que é próxima e os disponibiliza para todos irem buscar -, a despesa com medicamentos também se constituiu numa dificuldade grave para alguns usuários. Esta profunda condição de injustiça social à qual esses indivíduos estão submetidos (que já os exclui do acesso a outros bens e produtos indispensáveis à manutenção da vida e da saúde) priva-os, cotidianamente, do direito de contrair esta despesa: “Não [não teve despesa com medicamentos]. Eu não tenho esse dinheiro. [...] Já faltou, mas eu nunca comprei [...]” (usuário 11, idoso, frequentador, equipe A).

A fala de todos os profissionais revelou o conhecimento profundo que eles parecem ter da realidade de carecimentos vivida recorrentemente pelos usuários, cujas problemáticas se refletem nas demandas para a unidade. Há também o sentimento de impotência e mal-estar ante uma realidade tão cruel e degradadora da condição humana. Neste sentido, destaca-se a seguinte fala: “[...] Muitas vezes eles deixam de comer, ou comem muito mal porque o remédio que eles procuram não tem aqui no posto, então, de certa forma, eles ainda gastam, gastam o que não têm”. (profissional 6)

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Conviver com uma situação de contato permanente com a dor e tantas carências materiais torna complexos tanto o ambiente de trabalho quanto as inter-relações pessoais e profissionais processadas no cotidiano laboral. Assim, produzem-se “sintomas institucionais”, tais como falhas de comunicação ou excesso de ideologização em defesa do SUS, conforme menciona Campos (2005). Cabe refletir que a compreensão do cuidado em saúde não deve ser descontextualizada das relações de trabalho, das peculiaridades do labor dos produtores do cuidado (Deslandes, 2005). Nos registros do diário de campo, resultado da observação direta nos serviços, foi possível identificar, além da falta de medicamentos - incluindo os constantes na lista de medicamentos padronizados pelo município -, a falta de preservativos masculinos, que são fornecidos nos serviços públicos desde os anos 1980, conforme esclarecem Ramos e Lima (2003). Estes autores também identificaram esta problemática em estudo sobre o acesso e o acolhimento em uma unidade de saúde de Porto Alegre (RS). A fala de alguns profissionais sobre os gastos que os usuários precisam despender quando são encaminhados para outros serviços, componentes ou não da rede municipal de saúde, revela outra realidade, conforme o exemplo: “[...] Muitas vezes eles deixam de fazer por causa da passagem [...]. Às vezes tem a dificuldade de conseguir o especialista, consegue e não vai por causa da distância”. (profissional 2)

Estas falas refletem o modo de organização da rede de serviços de saúde; referem-se ao princípio da descentralização com hierarquização e regionalização da rede de serviços. A crônica situação de exclusão social na qual vive a grande maioria dos usuários do SUS põe em xeque tal modelo quando este revela-se desarticulado de outra rede - a de serviços sociais, incluindo os de geração de renda. Este aspecto é fundamental, pois esta rede responde a outras necessidades (de saúde) vinculadas ao meio de (ganhar a) vida das pessoas, às suas precárias condições materiais de existência, resultantes de um quadro de injustiças e desigualdades sociais. Estes aspectos há muito preocupam o conjunto de atores sociais engajados em tornar a saúde pública efetivamente acessível a todos os brasileiros.

Conclusões Buscou-se, neste estudo, avaliar o acesso à atenção à saúde no SUS, com base na percepção dos usuários da Estratégia de Saúde da Família, triangulando-a e confrontando-a com o ponto de vista do gestor e de profissionais de saúde. Observou-se que a existência de serviços, associada à ampliação da cobertura da atenção básica, ainda que importante, não implica acesso efetivo. Por isso, a mudança organizacional advinda com a ESF tem uma implicação importante na organização do sistema de saúde, pois a atenção básica foi normatizada como forma privilegiada de acesso, assumindo a função de reestruturar todo o modelo de atenção e reorganizar as práticas assistenciais. No presente estudo, a análise do acesso trouxe à luz aspectos já conhecidos da atenção à saúde no Brasil. A questão relevante, porém, é o fato de que problemas relativos ao acesso na ESF revelam a existência de gargalos no sistema que podem comprometer toda a sua estrutura de organização e funcionamento. E mais, pode implicar a exclusão de milhões de indivíduos cujas condições precárias de vida já os mantém à margem de muitos direitos de cidadania. Elementos facilitadores e dificultadores do acesso foram identificados, sendo os facilitadores: o horário, o acolhimento e a proximidade dos serviços da USF. As situações mais críticas, apontadas nas falas dos usuários, foram: 1 dimensão organizacional: i) demora para conseguir a consulta; ii) mau funcionamento do sistema de referência e contrarreferência, comprometendo o acesso a especialistas; (iii) excessivo número de pessoas adscritas na área das equipes; (iv) demora, na sala de espera, para receber o atendimento; (v) demora no recebimento dos resultados dos exames; vi) baixa resolubilidade da ESF, particularmente pela ausência 806

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de atendimento a pequenas urgências, implicando estrangulamento nos serviços de média e alta complexidade. 2 dimensão sociocultural: i) despreparo dos profissionais e usuários quanto à organização e execução de ações conjuntas; ii) baixa capacidade de visualizar a perspectiva coletiva da saúde, situada no campo da cidadania. 3 dimensão econômica: i) despesas com medicamentos e outros insumos. A ESF, como uma estratégia de viabilização do acesso de pessoas com complexas necessidades sociais às ações e serviços de saúde, revelou-se uma porta de entrada estreita, merecendo um olhar mais distinto, que adote como ponto de partida as situações que particularizam os indivíduos demandatários de suas ações e a organização dos serviços com base nas necessidades dos sujeitos.

Colaboradores Ana Lúcia Martins de Azevedo revisou a literatura, elaborou os instrumentos da pesquisa, coletou e analisou os dados e escreveu o artigo. André Monteiro Costa orientou a investigação, supervisionou a elaboração dos instrumentos e a coleta de dados, analisou os dados e auxiliou na redação do manuscrito. Referências ARAÚJO, M.A.L.; VIEIRA, N.F.C.; SILVA, R.M. Implementação do diagnóstico da infecção pelo HIV para gestantes em Unidade Básica de Saúde da Família em Fortaleza, Ceará. Cienc. Saude Colet., v.13, n.6, p.1899-906, 2008. AZEVEDO, A.M.A. Acesso à atenção à saúde no SUS: o PSF como (estreita) porta de entrada. 2007. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Instituto Aggeu Magalhães, Recife. 2007. BARBOSA, S.C.; COIMBRA JÚNIOR, C.E.A. A construção cultural da esquistossomose em comunidade agrícola de Pernambuco. In: BARATA, R.B.; BRICEÑO-LEON, R. (Orgs.). Doenças endêmicas: abordagens sociais, culturais e contemporâneas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. p.47-60. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004. BERCINI, L.O.; TOMANIK, E.A. Aspectos sobre saúde, ambiente e representações sociais na população de Porto Rico, Paraná. Disponível em: <http:// www.peld.uem.br/Relat2002/pdf/comp_social_econ_aspectos.pdf>. Acesso em: 16 jan. 2006. BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, 2006. CAMPOS, R.O. O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.573-82, 2005. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.797-810, out./dez. 2010

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A ESTREITA PORTA DE ENTRADA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ...

AZEVEDO, A.L.M.; COSTA, A.M. La estrecha puerta de entrada del Sistema Único de Salud (SUS): una valoración del acceso en la Estrategia de Salud de la Familia (ESF). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.797-810, out./dez. 2010. Este estudio tiene por objeto enfoca el de analizar la percepción de los usuarios sobre el acceso en la ESF en sus dimensiones geográfica, de organización, socio-cultural y económica. Se ha valorado del proceso con planteamiento cualitativo por medio de entrevista abierta, observación directa y análisis documental en la ciudad de Recife, del estado brasileño de Pernambuco. Los principales problemas han sido: deficiente sistema de referencia, demora en el retorno de los resultados de los exámenes de laboratorio, excesivo número de familias por equipo, dificultad de establecer consultas, gastos con medicamentos. Se han observado facilidades en la relación profesionalusuario así como en la aproximación geográfica de la unidad de salud. La ESF se ha revelado una estrecha puerta de entrada del SUS que merece una observación distinta que adopte como punto de partida las necesidades de los individuos demandantes de sus acciones y también las lógicas que orientan las acciones de los sujetos involucrados en el cuidado.

Palabras clave: Sistema Único de Salud (SUS). Calidad de la atención de salud, acesso y evaluación. Estrategia de Salud de la Familia. Satisfacción del usuario. Atención primaria de salud. Recebido em 22/07/09. Aprovado em 16/05/10.

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O trabalho em espiral: uma análise do processo de trabalho dos educadores em saúde nas favelas do Rio de Janeiro*

Marize Bastos da Cunha1 Gaudêncio Frigotto2

CUNHA, M.B.; FRIGOTTO, G. Working in spiral: an analysis of community health educators’ work process in Rio de Janeiro’s shantytowns. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.811-23, out./dez. 2010. This paper aims to contribute to the field of study of the community health agent in its relation to the education field. The study investigated the work process of community agents who live in shantytowns and work in public programs and also in Non-Governmental Organizations, in the north zone of the municipality of Rio de Janeiro. The main results of the study are the determinations and characteristics of the community health agents’ work process, from their insertion in the boundary and as subjects who have experiences, social relation networks and accumulated knowledge. With such focus, the intention is to enlarge the view about the role played by the agents so as to allow an advance in the debate about the possibilities and limits of such initiatives.

Keywords: Health educators. Poverty areas. Government programs.

Este artigo busca contribuir para o campo de estudo voltado para o agente comunitário de saúde, recuperando uma pesquisa realizada na área da educação, que investigou o processo de trabalho de agentes comunitários, moradores das favelas, inseridos em programas públicos e também em ONG´s, na zona norte do município do Rio de Janeiro. Entre os resultados do estudo destacam-se as determinações e características do processo de trabalho do agente comunitário de saúde, a partir de sua inserção na fronteira e como sujeito portador de experiências, redes de relações sociais e conhecimentos acumulados, ao longo de percursos diversos. Com este recorte, pretende-se ampliar a visão a respeito do papel desempenhado por esses agentes, de forma a favorecer um avanço no debate sobre as possibilidades e limites inscritos nas engrenagens de tais iniciativas.

Palavras-chave: Educadores em saúde. Áreas de pobreza. Programas governamentais.

* Este artigo resulta da pesquisa que conformou a tese de doutorado de Cunha (2005), apoiada pela Capes. 1 Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480. Manguinhos, RJ, Brasil. 21.041-210. marizecunha@ ensp.fiocruz.br 2 Faculdade de Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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Introdução Nas últimas décadas, nas favelas do município do Rio de Janeiro, multiplicam-se os programas governamentais, ou não governamentais, onde moradores locais atuam como agentes comunitários. Eles constituem peças-chave da engrenagem de iniciativas realizadas em territórios, marcados pela vulnerabilidade social e ambiental e por antigas e novas formas de pobreza, uma nova desigualdade (Martins, 1997). Identificados, no campo da Saúde Coletiva, como Agentes Comunitários de Saúde (ACS), eles dão sustentação ao crescimento de iniciativas governamentais, como os Programas de Agentes Comunitários de Saúde e da Saúde da Família, criados, respectivamente, em 1991 e 1994, pelo Ministério da Saúde. Desde os anos oitenta do século XX, a discussão em torno da adoção de novas práticas baseadas em modelos de atenção básica à saúde, capazes de garantir a integralidade e a universalidade, inspirou as primeiras experiências e reflexões sobre os ACS (Fernandes, 1992; Giffin, Shiraiwa, 1989). Recentemente, a literatura sobre o tema se expande, indicando um leque de eixos temáticos (Bornstein, Stotz, 2008). Enfocam a identidade profissional do ACS, bem como as propostas de sua formação profissional e a regulamentação de sua prática (Nascimento, Correa, 2008; Silva, Dalmaso, 2002; Tomaz, 2002). Destacam a sua vinculação institucional como trabalhador no âmbito de novas formas de execução de políticas sociais (Lima, Moura, 2005; Nogueira, Silva, Ramos, 2000). E, ainda, aspectos relativos ao seu processo de trabalho (Jardim, Lancman, 2009; Martines, Chaves, 2007). Este artigo busca contribuir para este campo temático, recuperando uma pesquisa realizada na área da educação, particularmente do trabalho e formação humana (Cunha, 2005). A investigação enfocou o processo de trabalho de agentes comunitários, moradores das favelas, inseridos em programas públicos, e também em ONG´s, na zona norte do município do Rio de Janeiro, abordando suas experiências a partir do campo de trabalho social do qual eles fazem parte, que denominamos de fronteira. Apresentamos os resultados do estudo, destacando as determinações e características do processo de trabalho do ACS, considerando sua inserção na fronteira, e como sujeito portador de experiências, redes de relações sociais e conhecimentos acumulados, ao longo de percursos diversos. O recorte pretende ampliar a visão a respeito do papel desempenhado por estes agentes, a fim de contribuir no debate sobre as possibilidades e limites inscritos nas engrenagens destes modelos de atenção básica.

Os pressupostos da pesquisa Desde os anos noventa do século passado, estudamos as favelas do Rio de Janeiro e, particularmente, a ação mediadora de moradores que trabalham em suas localidades ou mesmo em outras, em programas sociais. Acumulamos um conjunto de questões que nos levaram a refletir sobre a particularidade do lugar histórico-social deste agente social, e concluir que a compreensão de seu processo de trabalho supõe a análise das determinações e redes de relações nas quais eles estão inseridos, em territórios marcados pela vulnerabilidade social e ambiental, e em relação com diversas estruturas supralocais (Alvito, 2001). Sob esta perspectiva, o processo de trabalho dos ACS é aqui concebido no âmbito de um terreno maior, onde estão alojados diferentes agentes sociais, desenvolvendo iniciativas sociais nas favelas. Recorremos ao termo fronteira para denominar este terreno. A fronteira é concebida, num sentido histórico e sociológico, como um lugar que possui uma configuração particular, localizado num ponto de encontro entre as favelas da cidade e diferentes estruturas supralocais. Ponto de cruzamento do global com o local, da esfera pública com o não público. A fronteira aproxima-se do conceito de campo de Bourdieu, sendo compreendida como um espaço que se forjou historicamente, constituída por relações objetivas entre diferentes agentes sociais, que ocupam posições diferenciadas na sociedade e na fronteira (1990). Assim, está longe de ser um espaço homogêneo e com relações horizontais. Consideramos, ainda, na abordagem do processo de trabalho dos sujeitos da pesquisa, sua experiência de vida e trabalho. Dialogando com a reflexão de Thompson (1987), postulamos que a experiência dos agentes em questão, ainda que inscrita em processos macroestruturais do mundo social e, em particular, da fronteira, é vivida por estes sujeitos, que tratam desta experiência em sua 812

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CUNHA, M.B.; FRIGOTTO, G.

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consciência de maneiras diferenciadas, de acordo com sua cultura, sua visão de mundo e sua historicidade. Desta forma, apesar de inseridos em determinadas condições de vida e trabalho que conformam seu campo de ação, esses agentes não respondem reativamente a elas, mas atravessados por sua experiência, que implica uma determinada forma de apropriação da realidade e as possibilidades de ação sobre ela (Cunha, 2005).

Metodologia A pesquisa realizou-se por meio de dois caminhos. O levantamento bibliográfico e documental permitiu compreender a constituição histórica do terreno do trabalho social desenvolvido nas favelas, a fronteira. Analisamo-na, desde sua gênese, a partir dos anos quarenta do século passado, quando se deu a definitiva afirmação da favela no mundo urbano, tornando-se objeto de pesquisas e estudos, de ação política e configurando-se como lugar de intervenção social (Cunha, 2005; Valla, 1986). Tal reconstrução permitiu acompanhar a história da fronteira como lugar de produção de múltiplas experiências e práticas sociais, e de representações que se acumulam, no âmbito de um trabalho coletivo, de negociações e conflitos - muitos dos quais atualmente se repõem, naturalizam e alimentam as ações dos agentes sociais que hoje nela se encontram. Neste texto, considerando nosso objetivo, apresentamos as tendências que caracterizam a fronteira na atualidade e que contribuem para a compreensão do campo de ação do agente comunitário. O outro caminho refere-se ao levantamento de dados para análise do processo de trabalho enfocado. Realizamos um estudo em profundidade junto a educadores em saúde de favelas da zona norte do município do Rio de Janeiro - uma área de alta concentração de favelas e intenso intercâmbio sociocultural e demográfico, onde se destacam tanto tensões, como recentes aproximações entre a classe média e os grupos populares do lugar. Nessa região, os educadores estão em permanente interlocução com diferenciados agentes sociais. Acompanhamos dois grupos de educadores, que conformaram vinte sujeitos ao todo: dez educadores de projetos de saúde desenvolvidos por uma ONG, alguns dos quais estavam inseridos também junto a programas das Secretarias Municipais de Saúde e de Habitação do Rio de Janeiro; cinco agentes do Programa Saúde da Família (PSF), e cinco do programa Favela Bairro. Incluímos os trabalhadores desta última iniciativa porque, embora não sejam identificados como agentes de saúde, cabe a eles o desenvolvimento de ações educativas, relativas às condições ambientais e urbanísticas, que têm impacto sobre a situação de saúde local. A amostra abarca uma fatia particular do universo dos agentes comunitários, pois estes sujeitos ocupam uma posição diferencial no terreno da fronteira, por estarem em intercâmbio com estruturas supralocais e circularem por vários fóruns, externos ao espaço comunitário. Contudo, optamos por um desenho de pesquisa que aborde um “caso particular”, que possa ser interrogado sistematicamente (Bourdieu, 1989), e cuja relevância se coloca em função de seu potencial de permitir uma compreensão mais abrangente do tema em questão, bem como indicar pistas que tornam possível a abertura de novas questões para o campo de pesquisa (Becker, 1993). Para o exame do processo de trabalho, consultamos os manuais dos programas pesquisados. Recorremos ainda a procedimentos da metodologia qualitativa, como entrevistas semiestruturadas, grupos focais e observação participante, que ofereceram registros que se complementavam ou traziam novas interrogações. Acompanhamos os sujeitos da pesquisa, os observando em ação, em seu cotidiano de trabalho, em diálogo com diferentes agentes sociais, inclusive em eventos fora de suas áreas de trabalho, o que forneceu indicações capazes de ampliar a compreensão do posicionamento dos ACS na fronteira. O material resultante enriqueceu os dados coletados e as análises, pois foi produzido a partir de uma situação observacional, que torna difícil os sujeitos da pesquisa fabricarem seu comportamento (Becker, 1993). Dentre os procedimentos utilizados, destacamos a coleta de depoimentos orais, com ênfase nas histórias de vida, que permitiu construir o que Becker chama de “mosaico”, onde cada peça, representada pelo percurso de cada sujeito, contribuiu para a compreensão do quadro do processo de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.811-23, out./dez. 2010

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trabalho (1993). A história de vida abriu espaço ainda para novas variáveis e questões, fornecendo uma visão do lado subjetivo de processos institucionais estudados. (Becker, 1993). Seguimos padrões éticos da pesquisa com seres humanos e os valores de conduta necessários à realização de investigações que têm como base a produção compartilhada de conhecimento. Na redação da tese, as identidades dos sujeitos foram preservadas, e seus nomes foram substituídos por codinomes. Porém, no presente artigo, eles são apresentados sob a forma de sigla, seguida de numeração (exemplo: AC1).

Resultados e discussão A fronteira Nas duas últimas décadas, observamos um alargamento da fronteira, incorporando novos agentes sociais. Ela expande-se conforme avança a nova desigualdade que atinge hoje o mundo social, e, em particular, os moradores das regiões mais empobrecidas da cidade. O enfrentamento da vulnerabilidade e da reprodução das famílias trabalhadoras se opera por intermédio de uma multiplicidade de caminhos que indicam os deslocamentos possíveis num terreno de antigas e novas formas de pobreza (Martins, 1997). Alguns deslocamentos efetuam-se através de igrejas, grupos religiosos, ou redes locais informais, onde as lideranças e moradores que atuam junto a projetos sociais exercem um papel fundamental. Ainda que, muitas vezes, impliquem relações de favorecimento, todos estes deslocamentos são vias que dispensam a burocracia e a degradação subjetiva que envolve a busca por acesso a um serviço ou a um projeto público. Referimo-nos, aqui, à degradação subjetiva para nomear a experiência dilapidadora, extenuante e humilhante pela qual passa a população empobrecida ao recorrer a um serviço público ou ao buscar inserção num programa de atendimento social. Experiência inscrita no “lugar dos não-direitos e da não-cidadania”, onde “a pobreza vira ‘carência’, a justiça se transforma em caridade e os direitos em ajuda, a que o indivíduo tem acesso não por sua condição de cidadania, mas pela prova de que dela está excluído” (Telles, 1999, p.95). Neste contexto, configuram-se as políticas sociais compensatórias, como “débitos a fundo perdido, preço a pagar pela sustentação de uma economia cuja dinâmica bane e descarta parcelas da população” (Martins, 2002, p.14). São políticas assistemáticas, que atuam de forma fragmentária e geram diversas iniciativas sociais, mobilizadoras de múltiplos agentes, ocupantes de posições diferenciadas dentro destas iniciativas. Com isso, a fronteira vai se constituindo no lugar do mundo social de onde estas pessoas vêm tirando seu sustento. Frequentemente, sem se deslocar no espaço físico da favela, estes moradores se localizam na fronteira, e aí atuando, buscam sua inserção econômica e social. A fronteira se amplia conforme se redefine a relação entre o Estado e a sociedade, e o desenho das políticas sociais, onde instituições públicas, organizações comunitárias, igrejas das mais variadas orientações, ONG´s, instituições de ensino e empresas aparecem como “parceiros”, num contrato que evoca uma horizontalidade que não traduz o posicionamento desigual destes diferentes agentes na fronteira. As entidades locais deixam de atuar como interlocutores políticos, tornando-se “parceiras” na execução e gerenciamento de programas e serviços públicos. Este novo desenho, fundamentado na participação de organizações locais, lideranças e moradores de favelas nos programas sociais, evoca uma experiência histórica que remonta à constituição da fronteira. Há a reatualização de uma ação social fundada nos primórdios desse terreno de iniciativas sociais, e que assumiu uma projeção política maior com a ação do SERFHA (Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-Higiênicas), em fins dos anos 1950 e início dos anos 1960 (Cunha, 2005). De acordo com esta forma de ação, o dinheiro e o trabalho do povo eram a via de solução do “problema” das favelas, enquanto o Estado e os empregadores isentavam-se da responsabilidade pela melhoria das condições de moradia e vida da população favelada (Valla, 1986). A participação e a mobilização dos moradores de favelas, no papel de trabalhadores a serviço de ações sociais, das quais depende a viabilidade dos programas, assumem hoje contornos mais complexos, envolvendo uma diversidade de agentes sociais, e recursos humanos e financeiros vultosos, 814

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nos fazendo recordar a avaliação de uma agente comunitária sobre as políticas sociais: “é uma indústria da pobreza” (AC1 de uma ONG).

As tramas do trabalho A análise das determinações e características do processo de trabalho dos agentes comunitários demonstra que, inscrito na fronteira, este processo é marcado pela precariedade. Eles estão inseridos num modo de dominação de tipo novo, chamado “flexexploração”, “fundado na instituição de uma situação generalizada e permanente de insegurança, visando obrigar os trabalhadores à submissão, à aceitação da exploração” (Bourdieu, 1998, p.124). Muitas iniciativas não se estabelecem como direitos, estando inscritas na “prevalência da ideologia da ‘parceria’ e da ‘governança’”, que leva as agências governamentais a privilegiarem projetos setoriais e ações pontuais, em detrimento da “execução de políticas públicas, articuladas como um conjunto orgânico de caráter universalista” (Machado da Silva, Leite, 2004, p.64). Mesmo os agentes que atuam em iniciativas consolidadas, como o Favela Bairro e o PSF, estão submetidos à precariedade. Os complementos, sob a forma de vale transporte ou ticket refeição, podem ser retirados a qualquer momento. As mudanças, que levam à troca das instituições responsáveis pela contratação e gestão administrativa dos agentes, os fazem viver numa condição de incerteza. Nas ações desenvolvidas pelo Favela Bairro, possivelmente há uma lógica de rotatividade do agente, cujo objetivo é a alegada diminuição dos custos, mas também o controle das demandas produzidas nas favelas. Com isso, o agente não fica tempo suficiente para ultrapassar o papel de “agente a serviço” do programa, e estabelecer uma ação de mais fôlego na localidade. A “flexexploração” implica uma forma de relação na qual está subjacente a ideia de que os trabalhadores são desnecessários, o que se traduz no recorrente fantasma da demissão, e também indicando que o programa funciona sem eles. Os programas são dinamizados por uma lógica que os faz existir, e ter visibilidade pública, mesmo sem funcionarem efetivamente. A questão da “visibilidade” do programa foi sugerida em uma entrevista: “projeto Favela Bairro, quer dizer programa porque isso eu aprendi, projeto não é programa. O projeto está no início, o programa tem que ter visibilidade” (AC2 do Favela Bairro e de uma ONG). A diferença entre projeto e programa não reside em seu grau de institucionalidade, nem na forma de vínculo de trabalho estabelecido com o trabalhador. Ambos são pontuais, e inscritos num padrão de política pública que prioriza a parceria e a precariedade. A diferença é que o programa possui visibilidade, o que o faz atrair recursos e sustentar-se, a despeito de não atender aos objetivos propostos. O trabalho do agente comunitário é, pois, efetivamente sazonal. Configuram-se, aqui, as “trajetórias erráticas”, onde a incerteza se aloja como uma prisão da qual não se pode escapar, e que exige “as virações provisórias” (Castel, 1998). Considerando esta lógica, os limites do trabalho dos agentes se revelam também de outras formas. No caso do PSF, o programa tem, no ACS, a figura-chave para desenvolver o elo entre a comunidade e os serviços de saúde, onde as visitas domiciliares assumem papel central. Se o agente faz as visitas, e não pode responder a determinados problemas ou solicitações, produz demandas. A unidade é procurada e, caso não tenha condições de suportar a demanda, acaba sobrecarregada. Se o agente de saúde não faz as visitas domiciliares, o circuito se quebra. A pergunta é se, afinal de contas, na atual lógica das políticas públicas sociais, isso não é mais interessante do que ter um aumento de demandas? A precariedade se manifesta também nas condições de realização do trabalho. É preciso conviver com o fato de que é preciso fazer trabalho de muitos, como acontece no PSF onde: “as enfermeiras, elas estão fazendo muitas tarefas, não tem agente administrativo na unidade” (AC9 do PSF). E conviver, também, com a tensão trazida por isso: “a raiva da enfermagem é que a gente manda o morador descer pra conseguir número, mas não tem outra solução; as agendas são lotadas, mas não tem outro jeito”, conta outra agente do PSF (AC12 do PSF). É frequente a falta de acesso imediato a informações, no momento de dar resposta a um morador, ou que o encaminhamento seja lento. E que, neste caso, o trabalhador acione sua rede de relações, como sugere uma agente do Favela Bairro: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.811-23, out./dez. 2010

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“a gente encaminha à assistente social; mas se ela se mexe de lá, e a gente se mexe daqui [...] e isso é bem visto na nossa equipe; ela vai pelos trâmites legais, a gente vai marginalmente”. (AC16)

Daí vem outra marca registrada deste trabalho, que cumpre um papel importante no desenvolvimento das iniciativas públicas. É a “flexibilidade” que, nos programas inspirados nas novas formas de sociabilidade capitalista, permite ao trabalhador: maior controle do processo de trabalho, formação continuada por meio da permanente qualificação, certa autonomia decisória, polivalência funcional e o trabalho em equipe (Lima, Moura, 2005). Ou seja, indica a capacidade de um agente executar várias tarefas e dar respostas aos problemas recorrentes no trabalho. Um processo de trabalho, sob a nova dinâmica do capital, que não prescinde do saber do trabalhador e do saber em trabalho (Frigotto, 1995). Há, pelo menos, quatro verbos que são fundamentais nas ações do ACS: identificar, encaminhar, orientar e acompanhar (Brasil, 2000). Eles se remetem a uma variedade de funções, que levam a uma multiplicidade de atividades: “é tanta coisa para o agente fazer que a gente fica atordoado; as equipes dizem assim: isso aqui é com ACS, isso é com ACS. É tanta coisa pra os ACS, que para as equipes não sobra nada”. (AC13)

No manual do agente comunitário do Programa Favela Bairro, recomenda-se que o agente tenha: “criatividade, desembaraço, boa redação e senso de equipe” (Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, s/ d). A referida flexibilidade traduz-se aqui na “criatividade, desembaraço e senso de equipe”, que tornam possível, ao trabalhador, responder à precariedade de condições de realização do trabalho. As “recomendações” são valorizadas na engrenagem dos programas. Porém, este valor não aparece na remuneração do trabalhador, em seu vínculo de trabalho, no encaminhamento de suas reivindicações e em sua autoria no planejamento e execução das ações. Aliás, os resultados da pesquisa mostram que não se inscreve também nas relações entre os agentes e as hierarquias mais altas. Acionando sua “criatividade, desembaraço e senso de equipe”, o agente comunitário agrega um valor simbólico à organização do trabalho. Levando aquilo que nenhum curso ou programa de capacitação é capaz de oferecer: experiência no trabalho comunitário e o conhecimento das relações existentes nas localidades onde trabalham. Sem este valor, os programas não se viabilizariam.

Traçados do trabalho e segredos do ofício Cabe interrogar de que forma estes agentes vivenciam estas “tramas” do trabalho. Os resultados indicaram que eles enfrentam a precariedade de suas condições de trabalho e da realidade onde atuam, recorrendo a sua experiência histórica, a práticas e valores culturais, que são potencializados sob uma nova situação, numa tessitura social que lhes confere um novo significado, acionado pelo trabalho vivo, isto é, absorvido e recriado pela ação social concreta (Durham, 1977). Apropriam-se de conhecimentos obtidos em cursos e na prática do trabalho, e apelam às redes sociais tecidas ao longo de seu percurso de vida e trabalho. Com isso, constituem aquilo que chamamos de “segredos do ofício”, um conjunto de saberes e práticas que acumulam, conformando estratégias que lhes permitem, ainda que de forma precária, trabalhar, sobreviver e tecer projetos familiares. Inseridos precariamente nestas iniciativas, um bom número desses trabalhadores tem outras atividades. “O agente comunitário de saúde não só vive desta profissão, porque ele ganha muito pouco”. (AC10, do PSF)

Valorizando o fato de que o “trabalho em área” lhes dá relativa autonomia para compor seus horários, e permite a dedicação a outras atividades, eles se apropriam da flexibilidade inscrita na lógica 816

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dos programas, referenciados em suas formas sociabilidade e experiências históricas, onde é comum a conciliação das tarefas domésticas e a prestação de serviços na localidade. A flexibilidade tem um valor particular para quem atua na localidade onde mora, pois o deslocamento casa-trabalho se opera com facilidade e rapidez. É o caso das mulheres, maior contingente dos agentes integrados a programas públicos. Elas possuem dupla jornada, necessitando dedicar-se às tarefas domésticas e ao cuidado com os filhos. E, não raramente, trabalham como lavadeiras e passadeiras, cuidam dos filhos de vizinhos ou atuam como “explicadoras”. Quando o trabalhador exerce outras atividades no terreno da fronteira, a flexibilidade permite um aumento da renda e que uma determinada ação se reverta em benefício de dois, ou mais, trabalhos diferentes. Possibilita, ainda, uma costura entre vários aprendizados e experiências acumulados nos vários ofícios. Referindo-se a seu trabalho na participação comunitária do Favela Bairro, uma agente observa: “é legal porque se funde com outros trabalhos porque aí você acaba trabalhando e fazendo as outras milhões de coisas”. (AC17)

Muitos trabalhadores participam de vários projetos e instituições. Configura-se, pois, uma superposição de ações, que, algumas vezes, indicam interesses divergentes, o que acaba por produzir tensões no cotidiano do trabalho. Uma delas é a sobreposição de institucionalidades, à qual os trabalhadores respondem fazendo uso da referência maior por meio da qual legitimam seu trabalho: “a comunidade”. Assim, a despeito de encarnarem diferentes instituições, eles evocam, sobretudo, seu pertencimento à localidade, que concorre para que eles circulem por vários espaços e instituições, sem que esta sobreposição desperte desconfiança. O acúmulo de várias frentes de trabalho traz implicações sobre a administração do tempo. Os agentes enfrentam o desafio mobilizando o apoio de familiares e das redes sociais na localidade. Os percursos de vida demonstram que estas estratégias acionam uma experiência de vida tecida desde a infância, quando compatibilizavam o tempo de criança com o tempo de adulto, assumindo várias responsabilidades na família. A contrapartida do sacrifício da infância foi o ganho da sabedoria de administrar o tempo, que é algo que possui especial significado para os educadores. Um valor que agregam ao trabalho, e que torna possível fazer tantos traçados de trabalho. Recordando, uma agente observa: “Eu não sei administrar dinheiro, mas eu sei administrar muito bem tempo porque eu aprendi. E eu ensinei isso a meus irmãos. Tem que ter tempo de escola, tempo de brincar. Eu tinha que ter tempo de lavar roupa, pegar água, fazer isso, fazer comida e tempo de brincar, que prá mim era sagrado”. (AC3)

A precariedade se revela também nos tênues limites entre trabalho e vida pessoal dos agentes. “Eu não preciso nem sair de casa. As pessoas vão na minha casa” (AC4), contou uma agente comunitária. Ao buscar resposta à demanda de um morador, o agente abre um leque de ações, o que lhe rouba o tempo reservado a outras atividades, ou o de momentos destinados à vida pessoal. “No dia a dia, que eu estou fazendo visitas, as famílias querem que eu almoce com elas. Só que eu não posso. Porque isso acaba muito com meu tempo e eu preciso dar conta da área. Então, as famílias têm que entender. Muitas vezes, eu nego o almoço. O período de meu almoço é um período que eu preciso me dedicar a outra família. Eu sempre almoço fora de hora. Eu preciso ganhar tempo. Mostrar produção”. (AC13)

O relato aponta um impasse com o qual os sujeitos da pesquisa se defrontam: como conciliar a necessidade de manter uma proximidade com os moradores e sua credibilidade, garantir a produção e, ainda, assegurar a separação trabalho e vida pessoal? O estudo indicou que os agentes acionam mecanismos que facilitam a convivência do trabalho e vida pessoal. Novamente, trata-se do enfrentamento da precariedade por meio da ressignificação de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.811-23, out./dez. 2010

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experiências e padrões culturais. O código de reciprocidade inscrito nas relações de sociabilidade da favela torna o trabalho, referenciado por valores morais, um projeto coletivo (Sarti, 1996). Por isso, no caso das mulheres, ainda que lhes roube o tempo doméstico, seu trabalho acaba por ser aceito por maridos e filhos, porque dá sustentação aos projetos familiares. É comum que elas deleguem, ao marido e filhos, papéis nas várias atividades que precisam realizar no cotidiano. E ainda, a partir das redes de relações que vão construindo, abram oportunidades de trabalhos para eles. A transposição dos limites do trabalho para casa traz muitos inconvenientes para as agentes, porém, por outro lado, esta transposição tem como base o próprio modo de vida histórico dessas trabalhadoras, sendo apropriada por muitas delas, de forma a construírem seus projetos de melhoria familiar. No que se refere ao enfrentamento das demandas dos moradores, o estudo revelou, também, a importância de saberes e práticas, produzidos na sociabilidade da favela e experiência de vida dos agentes. Uma ACS do PSF refere-se à necessidade da “escuta ativa” no trabalho do agente: “Tem muito problema psicológico; tem dia que você fica duas, três horas numa casa só, ouvindo a mulher, o estresse dela, ela colocar tudo pra fora, o que ela não consegue colocar pra o marido; ela quer ouvir sua opinião, uma palavra de amigo, de profissional”. (AC12)

Ao acionar a “escuta ativa”, a agente aplica conhecimentos e técnicas dos programas de treinamento. Mas, sobretudo, recupera sua experiência na favela, marcada por um padrão cultural que valoriza a solidariedade, produzida como prática social fundamental à experiência de viver no espaço urbano, construída na tensão entre as necessidades cotidianas e a constatação das impossibilidades de respondê-las individualmente. Um padrão cultural que dá um significado particular ao saber ouvir e saber silenciar-se - fundamentos para a credibilidade daquele que vive na favela e trabalha junto a sua população. O saber acumulado pelo agente, compartilhado com os moradores, contribui na legitimação deste trabalhador. Em um projeto de prevenção em DST´s/AIDS na região de estudo, identificamos que, para garantir a sustentação de seu trabalho, os ACS recorrem à rede de relações que mantêm. Na distribuição do preservativo masculino, contam com uma estrutura organizada onde incluem os chamados “multiplicadores” que disponibilizam preservativos em pontos estratégicos, acessando conhecimentos que são repassados pelos agentes. O compartilhamento de saberes influencia na resposta da comunidade e altera a relação com ela, de forma que o agente não precisa mais buscar o morador, pois é buscado por ele, porque se torna alguém que lhe explica e lhe dá informações, e pode escutá-lo também. Daí, o processo de trabalho desliza mais facilmente porque tem resposta. Referência é uma das expressões mais usadas pelos ACS para nomear este processo. “A gente passa a ser referência e aquele que é referência para as pessoas, não pode deixar a peteca cair não porque a gente mata este trabalho” (AC18 do Favela Bairro e outras iniciativas). Ser referência significa circular além da localidade, trazendo conhecimentos e experiências que são compartilhados com os moradores, mas não deixar de encarnar o conjunto de valores da localidade. Ser referência é o verbo da mediação educativa desses agentes. Efetivamente, a dimensão educativa inscrita neste ofício é um dos aspectos que mais traz satisfação aos agentes e os distingue em suas localidades. Há uma aposta na busca de conhecimentos e de caminhos para a ação junto aos moradores. As dinâmicas aprendidas em cursos são valorizadas, e eles fazem circular o aprendizado entre eles. Acumulam uma reflexão a respeito das melhores formas de trabalhar com a particularidade de cada grupo. Sabem que é difícil desenvolver um trabalho junto aos jovens e que todas as experiências de grupos sistemáticos com eles não funcionam. “Você tem que pegar ali, nas esquinas da vida, há uma timidez que eles não têm, mas que acabam demonstrando que têm”. (AC4, de uma ONG) “Cada um está descobrindo as estratégias, a forma de vencer o obstáculo porque uma das coisas que era dificultosa é você chegar numa comunidade prá falar de desgraça, de um povo

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que não conhecia a felicidade. Você estava levando apenas mais uma tragédia. E ainda falar de doença. Quer dizer, a pessoa já vive ferrada e você ainda chega prá falar de doença. E as outras comunidades vão descobrindo dentro de seu próprio ambiente como levar também”. (AC1)

A pesquisa indicou ainda que a precariedade da realidade onde os ACS trabalham, somada à credibilidade acumulada, produz demandas que exigem ações que vão além de seu ofício. Ao representar uma institucionalidade, o agente recebe solicitações que estariam sob a responsabilidade de diferentes agências governamentais. “A gente vai ficando como a gente fala: bucha, fica na ponta” (AC20 do Favela Bairro). Ou seja, fica administrando as demandas, e gerindo a pobreza crescente, recuperando seu conhecimento sobre a localidade e seus segredos de ofício, para atuar num espaço cuja complexidade desafia a atuação de muitos técnicos. “É complicado prá gente como uma referência na comunidade, você trabalhar prá o poder público que é odiado, porque não responde como deveria responder. A gente fica naquela mediação, a gente fica ali tapando buraco, dando desculpa. Parece que, às vezes, o nosso papel é este mesmo, e manter a credibilidade. Na verdade, a pessoa te vê como um órgão. Você está ali, com aquela camisa, com aquela identificação, você é um órgão”. (AC16)

É desafiante para um trabalhador social defrontar-se com situações cujas respostas são lentas. Ele trata de acelerá-las. Mais difícil é lidar com algumas que não possuem respostas. “Eu não sei como as pessoas podem assistir tanto sofrimento e não se moverem com aquilo”. (AC15, do PSF) “Você é um educador comunitário da área de saúde, tem horas que você quer se dedicar a área de saúde. Mas você tem que se dedicar a procurar uma cesta básica. Uma família esta passando fome. Enfim você, não tem recursos pra ir auxiliar essas famílias. Muitas vezes, as portas estão fechadas e aí, você não sabe o que fazer. Muitas vezes, você ajuda com seu próprio bolso”. (AC12, do PSF)

Este é o desenho da situação precária dos trabalhadores da área social, investidos pelo Estado para garantir os mais elementares serviços públicos. Eles refletem as contradições do Estado que são vividas freqüentemente no mais profundo deles mesmos, como se fossem dramas pessoais: contradições entre as missões, quase sempre desmedidas, que lhes são confiadas - principalmente, em matéria de emprego e habitaçãoe os meios normalmente irrisórios, que lhe são alocados. (Bourdieu,1997, p.219)

Responder “as missões desmedidas” com “meios irrisórios” leva o agente a recorrer a suas relações no terreno da fronteira. Por isso, a “articulação” assume uma centralidade neste processo de trabalho, pois possibilita responder a determinadas demandas, e confere ao ACS um melhor posicionamento no terreno da fronteira, constituindo um de seus canais de legitimação. Ser um articulador, criando elos entre agentes sociais locais e supralocais, é um dos papéis que as instâncias de gestão de programas reservam a esse trabalhador. Mas, entre os próprios agentes, existe uma reflexão a respeito da importância da articulação, atribuindo-se a ela um significado particular, que distingue o trabalhador que a domina. Ela é mais valorizada no enfrentamento de situações de conflitos, na negociação de apoios, financeiros ou políticos, ou quando se define a representação de um grupo específico. Um agente comunitário observa que o PSF “trabalha muito com uma questão, que é uma palavra enorme, que foi tão difícil prá a gente aprender, que é da intersetorialidade. Ele trabalha muito com isso. Ele não pode trabalhar sozinho”. (AC13) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.811-23, out./dez. 2010

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Na prática, a intersetorialidade é implementada, sobretudo, pelos agentes. Uma ACS esclarece que, quando não se encontra fazendo visitas domiciliares, passa boa parte do tempo em contato com instituições de forma a fazer parcerias. Pela manhã, ela desenvolve ações em organizações locais, com as quais mantém interlocução e, à tarde, reserva uma parte do tempo para fazer encontros com outros agentes sociais, locais ou supralocais. “Parceria” é palavra-chave no vocabulário desses trabalhadores, assim como marca a lógica à qual nos referimos, que domina atualmente o campo da fronteira. Para os agentes comunitários, a parceria se fundamenta nos vínculos informais que eles estabelecem com outros trabalhadores, ou técnicos de projetos ou instituições. Também é costurada por meio de diferentes iniciativas nas quais o trabalhador insere-se, ou seja, ele estabelece elos entre as várias iniciativas em que atua, planejando ações em comum, que dão respostas às propostas dos vários projetos. Como as parcerias se dão fora de canais institucionais, não criam um caminho sistemático de resposta, tornando-se condicionadas às relações pessoais. Assim, o limite de sua lógica é que ela não inscreve a ação desenvolvida num campo universal de direitos, restringindo-se a ações pontuais e precárias. Contudo, são estas parcerias que possibilitam a resposta a demandas que não podem, ou algumas vezes, não devem ser atendidas no âmbito de uma iniciativa na qual o agente atua. Somada ao saber local acumulado e às informações que o ACS vai incorporando em seu processo de trabalho, a rede de parcerias contribui para que ele se legitime. Numa dinâmica em que tudo passa, os governos mudam, alterando por completo os programas e serviços públicos, os agentes comunitários são efetivamente uma referência. Eles dão enraizamento àquilo que é temporário e precário. Por isso, não apenas os moradores recorrem a eles, mas também os agentes supralocais que buscam atuar nas favelas. Constituindo-se como referência, eles encarnam os papéis de diferentes instituições, o que acaba por torná-los uma “instituição em movimento”. É assim que se configura a lógica de um trabalho em “espiral” - termo usado por uma agente para designar seu ofício e das colegas: “Nós somos uma espiral. Se pararmos, nós morreremos” (AC4, de uma ONG). É um trabalho que não para porque é necessário, e também porque se amplia, e se renova a cada dia, tendo como base as demandas crescentes que os agentes recebem, e os resultados que vão colhendo, sob a forma de novos conhecimentos e relações no terreno da fronteira. “Quando você começa saber e começa a levar prá comunidade, você começa a passar isto. É gratificante. Aí a comunidade começa a te procurar, porque você tem alguma resposta”. (AC8)

Considerações finais As experiências dos agentes comunitários demonstram por que eles caminham “em espiral”. A espiral move-se sob o ritmo da urgência. A urgência impõe a necessidade de acumular ações e estabelecer um leque de interlocuções, buscando o sustento individual e familiar, a sustentação do processo de trabalho, e a sustentabilidade das ações. Dores e perdas estão sob seus olhos e eles procuram dar algum tipo de resposta aos dramas que presenciam, sem contar com muitos meios para isso. Explorando seus traçados de vida, recuperando as práticas sociais e valores culturais inscritos em sua experiência histórica, os conhecimentos obtidos no processo de trabalho e a redes sociais que constroem, produzem um modo de trabalho, cujos “segredos” permitem responder à flexibilidade negativa (Lima, Moura, 2005), traduzida nos contratos temporários, e à precariedade das condições de realização de seu trabalho e da favela. Com isso, vão deslocando suas existências. Nas localidades, se constituem como referência, tornando-se “uma instituição em movimento”. Na fronteira, buscam um melhor posicionamento, de forma a fazer avançar seus projetos individuais, familiares e coletivos. Deslocando-se, entram em aliança com alguns agentes sociais, e em confronto com outros, nas favelas, bem como na fronteira. “A nossa vida, a gente vive no fio da navalha, a gente se expõe” (AC6). Deslocam-se no fio da navalha, na tensão entre a necessidade de não parar na espiral, e não perder a legitimidade.

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Os resultados sugerem ainda que o limite de sua espiral de trabalho acaba sendo o “movimento”. Ou seja, se expandem suas ações e seus projetos, produzindo demandas e agregando diferentes agentes sociais, vivem sob o risco de serem demitidos, não terem apoio para suas atividades ou projetos, e passam a ser objeto de controle de muitos. Talvez este seja o maior impasse deste processo de trabalho: aquilo que lhe dá particularidade e potência, o movimento em espiral, é também o que o coloca em risco. Porque o movimento em espiral é um movimento cuja existência contraria a lógica inscrita nos programas e projetos, e que produz inovação em meio à reprodução (Martins, 1996). É um movimento que cria demandas e referência, aonde existe precariedade e sazonalidade. Estes trabalhadores se defrontam com o desafio inscrito na porosidade entre trabalhar e morar na mesma comunidade que, como alertam Jardim e Lancman (2009), pode ser uma fonte de sofrimento psíquico. Uma das respostas possíveis a tal desafio é a criação de espaços de diálogo e reflexão coletiva, que contribuam para que os ACS elaborem a experiência vivida e busquem novos sentidos partilhados para o trabalho (Jardim, Lancman, 2009; Nascimento, Correa, 2008). Nestes espaços de reflexão, o exercício de rememorar pode desempenhar um caminho fundamental. Buscar o alimento da memória, na esfera do grupo, funciona como uma espécie de acerto de contas de cada um consigo mesmo, com o outro, e com o sentido que estão dando a suas ações. Rememorando em conjunto, os trabalhadores rompem o tempo da urgência, a objetivação e a tecnificação que lhes são exigidas, e que, ao longo do tempo, fazem acumular tensões, individuais e sociais. É uma das formas que os fazem calibrar a dimensão humana de seu trabalho (Cunha, 2007). Por fim, cabe ressaltar que há certo romantismo na imagem que destaca a experiência do agente comunitário em relação à comunidade. Por um lado, ela lhe atribui o árduo e complexo papel de mola propulsora de consolidação do SUS, sem considerar que tal consolidação depende de um conjunto de fatores e o envolvimento de vários agentes sociais (Tomaz, 2002). Por outro lado, esta imagem trata da experiência do agente comunitário como se ela fosse algo natural. Ela oculta o caráter conflituoso e histórico desta experiência e naturaliza algo que foi produzido pelo trabalhador, e que é resultado de sua experiência de vida e trabalho. Por isso, é também uma imagem redutora, que priva de qualidade social aquilo que foi constituído na trama histórica e social. No jogo de forças na fronteira, mais concretamente em meio a disputas ocorridas no desenvolvimento dos programas, o diferencial de trabalho do agente comunitário não é reconhecido como resultado de um investimento acumulado, tanto objetiva quanto subjetivamente; de um caminho de aprendizados, prática, reflexões e reelaborações constantes que lhe permitem exercer o papel mediador.

Colaboradores Marize Bastos da Cunha foi responsável pela revisão bibliográfica, levantamento e análise de dados e a elaboração do manuscrito. Gaudêncio Frigotto responsabilizou-se pela revisão bibliográfica e análise dos dados da seção “As tramas do trabalho”.

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CUNHA, M.B.; FRIGOTTO, G. El trabajo en espiral: un análisis del proceso de trabajo de los educadores comunitarios de salud en las favelas de Rio de Janeiro. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.811-23, out./dez. 2010. Este artículo trata de contribuir para el campo de estudio dirigido al agente comunitario de salud, recuperando una investigación realizada en el área de la educación que indagó el proceso de trabajo de agentes comunitarios, moradores de las favelas insertados en programas públicos y también en ONG en la zona norte del municipio de Rio de Janeiro. Entre los resultados del estudio se destacan las determinaciones y características del proceso de trabajo del agente comunitario de salud a partir de su ubicación en la frontera y como sujeto portador de experiencias, redes de relaciones sociales y conocimientos acumulados a lo largo recorridos/diversos. Con este recorte se pretende ampliar la visión respecto al papel representado por estos agentes, de modo a favorecer un avance en el debate sobre las posibilidades y límites inscriptos en los engranajes de tales iniciativas.

Palabras clave: Educadores en salud. Áreas de pobreza. Programas de gobierno.

Recebido em 23/11/09. Aprovado em 23/04/10.

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artigos

A integralidade na visão dos fisioterapeutas de um município de médio porte * Angela Carla Ghizoni¹ Marina Patrício de Arruda² Charles Dalcanale Tesser³

GHIZONI, A.C.; ARRUDA, M.P.; TESSER, C.D. Integrality: the perspective of physiotherapists from a medium-sized town. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.825-37, out./dez. 2010. This study aims to survey integrality from the perspective of physiotherapists in a medium-sized town. The research was carried out through self-administered questionnaires to professionals, and indepth interviews with six of them. For data treatment, we used content analysis, through which six different integrality faces emerged: the holistic face (viewing the patient as a whole), the enlarged face (emphasizing the social context and determinants of health-disease), the interdisciplinary face (interdisciplinary view contrasted to its absence in practice), the hidden face (lack of knowledge about the term; traces of integrality within daily practice), the fragmented face (mechanical view of the body), the null face (lack of knowledge; indifference). Such faces point to the need for adopting more integral practices by physiotherapists at private and public healthcare services. Therefore, professional education and permanent, continuing education are highlighted as two of the dimensions that characterize a socially constructed professional practice.

Keywords: Integrality. Physiotherapy. National Health System. Professional Education. Qualitative research.

Objetivou-se conhecer a visão dos fisioterapeutas acerca da integralidade em um município de médio porte. Foram utilizados questionários autoaplicados e entrevistas em profundidade com seis deles. Optou-se pela análise de conteúdo para tratamento dos dados. Emergiram seis diferentes faces da integralidade: holística (visão do paciente como um todo), ampliada (consideração do contexto e determinantes sociais da saúde-doença), interdisciplinar (visão interdisciplinar contrastada com a sua ausência prática), oculta (desconhecimento do termo; com indícios de prática da integralidade no cotidiano), fragmentária (visão mecânica do corpo) e face nula (desconhecimento e indiferença). Essas diversas e contraditórias faces indicam que a adoção de práticas mais integrais pelos fisioterapeutas deve ser fomentada nos serviços privados e públicos. Para tanto, ressalta-se a importância da formação profissional e da educação permanente e continuada como duas das várias dimensões que configuram o exercício profissional como uma prática socialmente construída.

Palavras-chave: Integralidade. Fisioterapia. Sistema Único de Saúde. Formação profissional. Pesquisa qualitativa.

* Elaborado com base em Ghizoni (2008), pesquisa que obedeceu aos preceitos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa. 1 Universidade do Planalto Catarinense. Rua Hirto Luiz Melegari, 480. Sagrado Coração de Jesus, Lages, SC, Brasil. 88.508-395. angelcgfisio@yahoo.com.br 2 Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva e Educação, Universidade do Planalto Catarinense. 3 Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina.

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A INTEGRALIDADE NA VISÃO DOS FISIOTERAPEUTAS ...

Introdução Este artigo apresenta e discute as faces da Integralidade em saúde que emergiram de um estudo realizado sobre a percepção de fisioterapeutas de um município catarinense de médio porte sobre a mesma. Em uma proposta de conhecer os sentidos e significados atribuídos pelos profissionais à integralidade, buscou-se esclarecer questões que dificultam o exercício pleno, efetivo e integrado do profissional de fisioterapia junto ao Sistema Único de Saúde (SUS). A Constituição brasileira afirma que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1988, art.196). Dessa forma, como menciona Mattos (2004, p.1412), a integralidade emerge como um dos princípios do SUS: “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”. O SUS, como um “dispositivo institucional” criado para possibilitar o acesso universal e igualitário nos termos da Constituição, abarca todas as ações e serviços públicos de saúde e, ainda, alguns serviços privados por serem credenciados ao Sistema (Mattos, 2004, p.1412). O fundamental na discussão deste princípio é que não se deve reduzir o sujeito à doença. Ao invés desta postura reducionista, é preciso manter a perspectiva da intersubjetividade (Mattos, 2004), levando em conta os conhecimentos sobre as doenças e sobre o humano que é, ao mesmo tempo, biopsicossocial. Isso implica a ampliação do olhar do profissional da saúde sobre o humano, pois, segundo Morin (2000), ser ao mesmo tempo biopsicossocial não significa que uma destas condicionantes/dimensões se sobreponha às restantes, nem que exista uma prioridade entre elas. Pelo contrário, significa que, sendo humano, qualquer uma de suas ações apresenta, simultaneamente, as dimensões biológica, psicológica, social e cultural - são interdependentes, indissociáveis. Portanto, o homem, como uma unidade complexa, deve ser atendido/cuidado como tal, sem ser dividido em partes - orientação esta fundamentada na reforma do pensamento e na compreensão do ser humano sob a perspectiva de um paradigma de complexidade. No cotidiano da saúde pública, os profissionais se deparam com situações que exigem, além do conhecimento profissional, o conhecimento acerca do funcionamento do sistema de saúde vigente no país. Porém, a ausência deste conhecimento dificulta a efetivação de ações articuladas em saúde, problema que, muitas vezes, é enraizado nos currículos das instituições formadoras de fisioterapeutas. Assim sendo, só depois de formado, o profissional passa a atender pelo SUS, sistema sobre o qual pouco sabe. Por ser estrutural, o problema se estende por várias gerações de formandos, perpetuando um trabalho inconsistente e desarticulado em razão da falta de conhecimento de muitos. Para que se possa auxiliar na efetivação de um sistema de saúde universal e igualitário, em que a integralidade seja mais que um slogan, faz-se necessário criar possibilidades de discussões e reflexões. Mattos (2004), ao abordar a integralidade como um conceito polissêmico que se revela em diferentes saberes e práticas expressas no cotidiano da saúde, tece comentários sobre três dos sentidos que se aplicam ao termo. O primeiro refere-se a “respostas governamentais a certos problemas de saúde”; o segundo aplica-se à “organização dos serviços”, e o terceiro diz respeito aos atributos das práticas de saúde” (Mattos, 2004, p.1411-2). Sobre as práticas dos profissionais de saúde, Araújo, Miranda e Brasil (2007) destacam que uma série de aspectos vem sendo relacionada à ideia de integralidade. Dentre estes aspectos está o de que a visão integral do ser humano evita que o mesmo seja focalizado como um conjunto de partes (coração, fígado, pulmões etc.), inclui a valorização dos aspectos cotidianos da vida do paciente e evita práticas profissionais centradas apenas na doença. Estes aspectos, por sua vez, traduzem as percepções de alguns participantes desta pesquisa acerca de integralidade em saúde. No caso desta pesquisa, os fisioterapeutas e suas compreensões foram o objeto e o foco de análise privilegiados. Apesar de se reconhecer a grande interinfluência da dimensão organizacional e da dimensão política - no caso, municipal - da abordagem do problema do provimento de cuidado fisioterápico à população que dele necessita, optou-se, por uma questão de recorte, conveniência e possibilidade metodológica - tempo e recursos escassos no contexto de um estudo de mestrado - por centrar a investigação nas percepções, compreensões e práticas dos profissionais. 826

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Como entende Mattos (2001), o termo integralidade possui diversas interpretações. Nesta pesquisa, foram identificadas as percepções dos fisioterapeutas como faces, que são compreendidas como aspectos, formas de ser, porque cada profissional tem a sua e conduz sua prática de maneira singular, seja ela mais ou menos integral. Sem a pretensão de esgotar a complexidade do tema, buscou-se problematizar práticas e percepções dando vistas às práticas singulares que se desenvolveram em diferentes clínicas de atendimento à saúde da população.

Metodologia Realizou-se um estudo exploratório com abordagem qualitativa, tendo a integralidade e a percepção dos fisioterapeutas a respeito dela como eixos de discussão. Para tanto, a investigação destacou as subjetividades, as percepções, os conflitos, as contradições e, também, o potencial de transformação da prática profissional. Segundo Minayo (1994), a pesquisa qualitativa preocupa-se com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um processo profundo das relações humanas e sociais. O município em que os sujeitos investigados atuavam, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE, 2006), apresenta área territorial equivalente a 2.644 km² e população estimada de 161.583 pessoas. Segundo pesquisa realizada pelo IBGE em 2005, a cidade contava com noventa estabelecimentos de saúde, 59 deles atendendo pelo SUS. Os habitantes da zona urbana encontram-se distribuídos em 65 bairros e, conforme dados da Secretaria do Estado da Saúde (www.saude.sc.gov.br), o município conta com 34 equipes de Saúde da Família com cobertura total a 70,9% da população (www.lages.sc.gov.br). O local é polo regional na área da saúde, possui laboratórios, clínicas especializadas e três hospitais. Conforme dados do Crefito10 (2007), há um total de 91 fisioterapeutas inscritos no Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, mas nem todos trabalham na cidade. Não havia, no momento da pesquisa, fisioterapeutas trabalhando em serviços públicos municipais. A população-alvo foi composta por todos os fisioterapeutas das clínicas locais, totalizando 32 participantes, seis deles credenciados ao SUS. Foram excluídos da pesquisa os fisioterapeutas que atuavam em clínicas de fisioterapia estética. Procedeu-se à coleta de dados após a aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa atendendo as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996). Os instrumentos para a coleta de dados foram entrevistas em profundidade e um questionário com 14 questões abertas, que respaldam a construção deste artigo (além de sete perguntas fechadas aqui não utilizadas, relacionadas à graduação e ao perfil dos profissionais). Antes da coleta de dados, foram realizados três pré-testes do questionário e um pré-teste da entrevista com fisioterapeutas que não pertenciam à população-alvo da pesquisa. Isso auxiliou no aprimoramento dos instrumentos utilizados. O questionário, desenvolvido pela pesquisadora, era autoaplicado. As entrevistas em profundidade foram realizadas com seis fisioterapeutas, metade destes conveniados ao SUS. As entrevistas foram realizadas com seis fisioterapeutas proprietários de clínicas credenciadas ao SUS, sendo selecionados por meio do critério de inclusão que considerou aqueles que tivessem mais tempo de atuação profissional, pois se entendeu que os relatos trariam maior riqueza de dados. As entrevistas foram gravadas e transcritas para análise. Codificou-se o nome dos fisioterapeutas com intuito de se preservar a identidade dos mesmos. Os entrevistados que também responderam o questionário foram identificados como fisio1 a fisio6, e os profissionais que responderam somente o questionário foram identificados como fisio7 a fisio32. Para tratamento dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo, que, segundo Bardin (1979), é uma estratégia metodológica que permite a construção de um quadro de categorização prévio no qual foram dispostas dimensões teóricas assumidas e categorias delas derivadas para análise, assim como a exploração aberta do material em busca de temas (análise temática) que emergem do texto à luz dos objetivos e dos referenciais teóricos. As categorias de pesquisa analisadas no presente estudo foram: formação do fisioterapeuta e a integralidade em saúde.

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Resultados e discussão Para compreender os sentidos e significados atribuídos ao princípio da integralidade, trataram-se os dados com base em diferentes concepções teóricas. Segundo Pinheiro e Mattos (2001, p.12), “integralidade é uma palavra que não pode ser nem ao menos chamada de conceito”. Estes autores acrescentam que “na melhor das hipóteses é uma rubrica conveniente para o agrupamento de um conjunto de tendências cognitivas e políticas com alguma imbricação entre si, mas não completamente articuladas”. Alves (2005, p.43) destaca que o termo integralidade representa: Integrar ações preventivas, promocionais e assistenciais; integrar profissionais em equipes interdisciplinar e multiprofissional para uma compreensão mais abrangente dos problemas de saúde e intervenções mais efetivas; integrar partes de um organismo vivo, dilacerado e objetivizado pelo olhar reducionista da biomedicina, e reconhecer nele um sujeito, um semelhante a mim mesmo; nisto implica a assimilação do princípio da integralidade em prol da reorientação do modelo assistencial.

No trabalho de Alves (2005), a integralidade é analisada na Estratégia Saúde da Família (ESF), mas os sentidos acima mencionados podem ser atribuídos a todos os níveis da atenção. O importante é que sejam assimilados na atuação profissional, pelos profissionais envolvidos. Mesmo se tratando de uma diretriz do Sistema de Saúde brasileiro, a integralidade também é vista como um ideal de atendimento, o que pressupõe ser um princípio de atendimento à saúde, e não uma exclusividade dos profissionais credenciados ou não ao SUS, como comenta a Fisio3, que considera praticar a integralidade: “[...] eu acho que essa questão da integralidade, ela foi vinculada ao princípio do SUS, mas eu vejo que o processo é, da integralidade pra qualidade da saúde [...] esses princípios devem ser aplicados, como princípios de atendimento em saúde, independente de ser SUS, de ser convênio, de ser particular [...] porque a integralidade [...] é um modo de pensar, é um modo de agir, não é uma coisa que está vinculado àquele setor, àquela forma, ah se a sua forma é SUS então o senhor tem que ter eqüidade, integralidade, universalidade [...] ou você tem integralidade em todas as formas, ou você não tem”. (fisio3)

Este depoimento mostra a integralidade como uma prática incorporada. A entrevistada menciona um “modo de agir e pensar”, o que remete à prática fisioterapêutica, ou seja, uma teoria em ação (Gadotti, 1995). Entendida como uma nova atitude em saúde, a integralidade é uma prática relatada a partir de experiências e expressa a possibilidade de se construírem caminhos para a efetivação de direitos. A integralidade como um modo de agir expressa, sobretudo, a força das transformações possíveis nos espaços cotidianos de trabalho, nos serviços e organizações sociais. A integralidade pode dar qualidade à saúde, que se desenvolve por meio de laços solidários do poder de novas redes e vínculos (Almeida, Feuerwerker, Llanos, 1999). Machado et al. (2007), ao descreverem a integralidade no cuidado de pessoas, destacam a necessidade de se considerar o usuário como sujeito histórico e contextualizado na sociedade que se insere. “Neste cenário se evidencia a importância de articular as ações de educação em saúde como elemento produtor de um saber coletivo que traduz no indivíduo sua autonomia e emancipação para o cuidar de si, da família e do seu entorno” (Machado et al., 2007, p.336). Concordando com a percepção de Mattos (2001), compreende-se que a integralidade tem uma dimensão plural que se revela em diferentes saberes e práticas no cotidiano do trabalho de educadores, profissionais de saúde, usuários e, até, de gestores. Em decorrência dessa multidimensionalidade ter se expressado neste estudo, e assim como fizeram Oliniski e Lacerda (2004) - que classificam o ambiente do trabalho em saúde por faces pela multidimensionalidade deste ambiente - também foram agrupados 828

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por faces os sentidos e significados da integralidade que emergiram das visões dos profissionais investigados. Seguem, apresentadas e discutidas, as seis faces da integralidade em saúde surgidas da pesquisa. Faces que, embora algumas antagônicas entre si, podem conviver e sinalizam a existência de uma prática profissional plural e diversa - diversidade esta que necessita ser reconhecida, trabalhada e, por vezes, reconstruída.

Face holística Esta face emergiu dos depoimentos dos fisioterapeutas com visão totalizadora do paciente, caracterizada pela indicação de “ver o todo”. O relato da Fisio3, no questionário aplicado, evidencia esta visão mais globalizada do paciente: “A forma como a pessoa pode ser tratada de forma completa e integral em um processo que o todo seja visto, por exemplo: condições de vida, rede social de apoio, vida familiar enfim avaliação e tratamento visando todos os aspectos do ser humano e como ele vive”. (fisio3)

Ela acrescenta durante a entrevista: “[...] tem que ver o todo do paciente [...] não adianta dizer, olha o senhor tem que fazer duas horas de bicicleta ergométrica por dia, tirando o fato de ele não ter condições nem de comprar o chinelo, se eu prescrever pra ele uma bicicleta ergométrica, vai ficar difícil. Eu acho que integralidade é ver tudo, é ver qual é a condição sócio-econômica do paciente, qual é a realidade [...]”. (fisio3)

Cada contexto traz a possibilidade de se aprender e tem um poder de transformar ideias (Ribeiro, 2004). Desse modo, a prática não é apenas um espaço de verificação de ideias, mas também de construção de possibilidade e renovação teórica. A visão holística de um paciente equivale a se ter uma “face única” e sintética de todas as partes. Com uma visão holística é mais seguro se tomarem decisões relativas à saúde do paciente. “Holismo” origina-se do grego Holos, que significa todo. A teoria da complexidade defende que o homem é um ser indivisível, que não pode ser entendido por meio de uma análise separada de suas diferentes partes. A forma de agir, de tratar, de visualizar o paciente não somente como uma parte física lesionada, e sim de maneira global, ou seja, o físico, o mental, o sociocultural, é vista por esta profissional como sendo a integralidade. Ela também sinaliza a igualdade na forma de tratar os pacientes, sem dividi-los conforme a condição socioeconômica, como um modo de praticá-la. Os depoimentos dos entrevistados abaixo também revelam a mesma concepção: “Atender o paciente de forma mais global e não só a patologia do mesmo trazendo à tona toda a condição social, cultural e econômica em que está inserido”. (fisio11)

A fisioterapeuta a seguir menciona que é necessário visualizar o paciente de maneira holística, e alerta para o fato de que a doença pode ser originada pelo modo de vida que a pessoa adota: Eu acho que é o que a gente faz, envolver a pessoa como um todo [...] tratar a pessoa como uma pessoa, não como aquele problema, não como aquele diagnóstico [...] eu não sou aquele diagnóstico, eu sou uma pessoa que tem uma vida de uma determinada maneira e que desenvolve determinada conseqüência por essa vida ser assim ou não; então a pessoa tem noção de qual é o correto do uso de si mesma”. (fisio6)

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Esse relato traz à tona a importância do autoconhecimento como um fator auxiliador na melhoria da saúde dos pacientes. Dessa forma, coloca o humano como ser ativo e corresponsável por sua saúde, e o fisioterapeuta como auxiliador deste processo. Aqui o olhar sistêmico é essencial para a compreensão do ser humano e da sua saúde, sendo impossível conhecer o todo sem conhecer as partes, e conhecer as partes sem conhecer o todo. O conceito sistêmico, segundo Morin (1987), exprime, simultaneamente, unidade, multiplicidade, totalidade, diversidade, organização e complexidade. A concepção situa-se imediatamente além do reducionismo, apelando para um princípio de inteligibilidade que integre as partes. Na complexidade, a visão sistêmica é essencial para a compreensão do ser humano e da sua saúde. Morin (2003) defende a inter-poli-transdisciplinaridade como forma de integrar os saberes tão fragmentados e circunscritos aos limites das disciplinas, criadas pela necessidade imposta pelo modelo cartesiano. Assim, propõe a tão discutida mudança de paradigma, lançando o desafio da reforma do pensamento para se ter um pensamento complexo.

Face ampliada Os fisioterapeutas que percebem esta face entendem a integralidade em saúde como a realização de ações conjuntas de promoção, prevenção e reabilitação. Uma visão ampliada de saúde pressupõe ações integradas e uma prática plena de possibilidades. Na opinião de Mattos (2004, p.1414), defender a integralidade é: Defender antes de tudo que as práticas em saúde sejam sempre intersubjetivas, nas quais profissionais de saúde se relacionem com sujeitos, e não com objetos - práticas intersubjetivas envolvem necessariamente uma dimensão dialógica. Isso confere às práticas de saúde um caráter de prática de conversação, na qual nós, profissionais de saúde, utilizamos nossos conhecimentos para identificar as necessidades de ações e serviços de saúde de cada sujeito com o qual nos relacionamos, para reconhecer amplamente os conjuntos de ações que podemos pôr em prática (incluindo ações como o aconselhamento e as chamadas práticas de educação em saúde) para responder as necessidades que apreendemos.

Além de a integralidade ser considerada como sinônimo de acesso a todos os níveis de complexidade do sistema, é relevante que haja, em todos esses níveis, articulações de ações preventivas e assistenciais. Ações assistenciais são demandadas a partir do sofrimento do indivíduo, já as preventivas antecedem a experiência individual de sofrimento. Nos dois tipos de ações é necessário que o profissional tenha conhecimento das doenças para interceder sobre elas ou evitá-las. A capacidade do profissional em responder ao sofrimento manifesto articulando ações preventivas e assistenciais é considerada por Mattos (2004) como uma das dimensões da palavra integralidade. O Fisio1 comenta sua atitude diante de um paciente tabagista que chegou à clínica com problemas respiratórios: “Eu o orientei que fazendo atividade física diária ia manter a pressão, perder peso, problema do coração e até mesmo o tabagismo, acho que o paciente que está fazendo fisioterapia respiratória, que fuma, eu sou sincero [...] o paciente tem que se ajudar primeiro, tem que abandonar o vício, não é só a gente ajudar o paciente. [...] oriento bastante eles: alimentação [...] cuidados como diminuir o sal, a gordura [...] é isso que a gente tenta fazer, orientações gerais durante o tratamento”. (fisio1)

É relevante que, além de atender ao sofrimento manifestado pelo paciente e diagnosticado pelo médico, haja a apreensão dos chamados “fatores de risco” para o desenvolvimento de outras situações patológicas, e isso só se consegue com a visão ampliada e focada na saúde do paciente. Este entrevistado considera que a prática de atividade física tem muitos benefícios e a recomenda para os pacientes, assim como orientações alimentares, simbolizando a prática da educação em saúde. 830

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Embora as práticas educativas e preventivas possam ser mais ou menos dialogais ou diretivas (ou ainda autoritárias), é relevante salientar que a face ampliada aponta para uma atuação profissional que envolva também aspectos promocionais e preventivos, para além do caráter reabilitador da profissão, pelo que é mais comumente conhecida. Para Alves (2005, p.42), o profissional deve estar preocupado em “dimensionar fatores de risco à saúde e, por conseguinte, na execução de ações preventivas, a exemplo da educação para a saúde”. Para tratar o paciente por meio de uma visão ampliada de saúde, é preciso enxergá-lo não somente no aspecto biológico, mas implica acrescentar, ao tratamento fisioterapêutico, ações direcionadas à promoção da saúde e prevenção de doenças. Além disso, dada a recente medicalização exacerbada dos fatores de risco e a redução dos umbrais terapêuticos a eles relacionados (como hipertensão e diabetes) (Norman, Tesser, 2009), assim como a tradição autoritária e a visão de educação em saúde como transmissão de informações a pessoas passivas que as devem seguir (Cyrino, Schraiber, 2009), outro desafio constante é fomentar a educação, promoção de saúde e prevenção de doenças sem recair em culpabilização dos usuários ou práticas autoritárias e medicalizantes pouco efetivas, que mais fazem amedrontar e espalhar insegurança, medo e dependência do que constroem parcerias e corresponsabilizações mútuas por processo de cuidado, de reinvenção e fortalecimento da vida. A construção compartilhada entre profissionais e usuários de projetos terapêuticos sustentáveis, factíveis e integradores de cura, prevenção de doenças e promoção da saúde, não medicalizantes (Tesser, 2006a, 2006b), não culpabilizantes e não higiomaníacos (Nogueira, 2003a, 2003b, 2001), que fomentem a invenção da vida e a expansão das possibilidades da liberdade vivida com responsabilidade, é missão complexa da face ampliada da integralidade.

Face interdisciplinar Esta face refere-se ao entendimento da integralidade enquanto trabalho em equipe interdisciplinar. É relevante que se possa inserir a interdisciplinaridade além do campo da educação para aplicá-la também ao campo da ação profissional na saúde. A interdisciplinaridade é considerada como ação de conhecimento, a postura interdisciplinar está no exercício do conversar, dialogar, trocar experiências e aprender. O profissional da saúde precisa ser condutor do processo de sua produção (Fazenda, 1996). É a partir da adoção de novos conceitos de saúde que haverá novos produtos em saúde. Alguns entrevistados percebem a integralidade como a união de profissionais da saúde sob uma perspectiva interdisciplinar: “É atendimento integral, união dos profissionais com objetivo único”. (fisio9) “Integralidade é o comportamento do profissional de saúde em equipe e pela relação dessas equipes como uma rede de serviços, mas na prática é isso é difícil de acontecer, pela dificuldade de acesso com outros profissionais”. (fisio15) “Integralidade acontece quando uma pessoa integra a uma equipe, equipe multidisciplinar onde pessoas interagem e trocam informações. Fazem discussão de casos”. (fisio28)

Observa-se que há clareza do conceito desta face entre os participantes, mas um deles sinaliza que a dificuldade de aplicá-la está no acesso aos demais profissionais deste nível da atenção, já que trabalham em locais distintos. Esta separação dificulta práticas realmente interdisciplinares. No entendimento de Peduzzi (1998), a nenhum profissional de saúde cabe atender a totalidade de ações demandadas pelos usuários. A conexão entre os profissionais é fundamental para um atendimento focando a saúde integral do paciente. Reconhecer que o paciente necessita do olhar de outro profissional pode significar a interação para o início de um trabalho em equipe interdisciplinar. Entretanto, os participantes desta pesquisa mencionaram a dificuldade de contato com os médicos, profissionais que consideraram essenciais para a composição da equipe: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.825-37, out./dez. 2010

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“Eles são muito fechados [...] com o médico é difícil o acesso”. (fisio1) “Os médicos têm exceções. Tem aqueles que se consideram num cargo mais hierárquico, se sentem superiores então eles acham que tem poder, não atendem ligações, não respondem cartas”. (fisio2) “Para eu ligar hoje para um médico é muito difícil, porque as próprias secretárias já fazem barreira”. (fisio4)

O modelo formador clássico flexneriano, tecnicista, biologicista, voltado para a prática hospitalar e médico-centrado, é um tipo de formação que não contempla todas as necessidades básicas de saúde da população. Hoje, porém, se questiona o sistema de saúde centrado no médico e todo um processo/ organização que durante muito tempo garantiu a essa categoria profissional o distanciamento hierárquico de outras profissões. Formar profissionais de saúde sob a perspectiva da integralidade constitui uma proposta inovadora, e significa a ruptura não só com um modelo tradicional de formação, mas também implica a reorganização dos serviços e a análise crítica dos processos de trabalho. Japiassu (1976) destaca que cada disciplina, por meio de seu enfoque específico, desenvolve instrumentos para se conhecerem a realidade e os problemas com base em um determinado ponto de vista, mas essa visão unidisciplinar necessariamente fragmenta, reduz e privilegia a decomposição do todo em partes. Com o desenvolvimento do conhecimento humano, a perspectiva de interconexão amplia a visão, permitindo a compreensão da complementaridade entre os sabres e as profissões.

Face oculta (escondida) Essa face mostra o desconhecimento do profissional acerca dos significados da integralidade, mas indica certa presença da mesma, por meio de posturas e procederes que o colocam como educador e investigador dos aspectos biopsicossociais do paciente, com olhar atento às necessidades para a melhoria da saúde. Como o Fisio2, que verbaliza: “não sei, não lembro, me foge um pouco; até é uma coisa que eu não gosto de saber”; porém, logo em seguida (sobre como realiza a avaliação fisioterapêutica), diz: “[...] o psicológico, físico e mental e o social [...] só que não é em uma avaliação [...] é na conversa diária com ele que você vai pegando os pontos positivos e negativos do paciente, vai acrescentando o seu tratamento e na própria indicação ou nos cuidados na prevenção, passando orientações [...] eu gosto de ser amigo dos meus pacientes [...] eu trato todos igual: SUS ou particular [...] a confiança é o que faz o paciente seguir as orientações que você passa”. (fisio2)

Mesmo sem explicitarem conscientemente o significado do termo, vários profissionais conseguem praticar algo das faces holística e ampliada. Também Mattos (2004, p.1415) comenta que “há muitos profissionais que, mesmo sem uma formulação teórica da proposta, ou mesmo sem utilizar o termo, praticam a integralidade no seu cotidiano”. Propiciar diálogo, visibilidade, valorização e ressignificação das boas práticas já existentes certamente é valioso e, muitas vezes, necessário, possibilitando a conexão de tais práticas com a missão da integralidade, de forma a expandir sua potencialidades. Isso é um desafio para os gestores de serviços de SUS e para os formadores de profissionais. Tanto em serviços públicos como conveniados, muitos profissionais se beneficiariam de arranjos institucionais que permitissem alguma educação permanente4 e discussão de suas práticas, de modo a ampliar suas possibilidades no sentido do reconhecimento de alguma integralidade já existente e praticada e de sua ampliação na abordagem dos usuários e seus problemas. O que importa é que, com base nessa visão mais abrangente adotada, buscar soluções para as novas demandas, antes negligenciadas, pode explicitar a necessidade de mudança para a saúde.

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5 Abraham Flexner comandou uma pesquisa sobre o ensino médico nas escolas de medicina dos Estados Unidos e Canadá, e produziu, em 1910, o famoso Relatório Flexner, aceito pelo governo americano, que a partir dele fechou muitas escolas médicas e reformulou os critérios para o funcionamento das escolas, instituindo o modelo dito flexneriano de ensino médico, centrado nos laboratórios, no ambiente hospitalar e suas patologias graves e raras, nas especialidades médicas e no uso intensivo de tecnologia diagnóstica e terapêutica “duras”. De 1910 a 1930, inicia-se a era da especialização na medicina. Ver o Relatório Flexner em: <http:// www.carnegiefoundation. org/files/elibrary/ flexner_report.pdf>

Face fragmentada (anti-integralidade)

artigos

4 No sentido dado ao termo por Peduzzi (2009): a educação permanente é fundamentada na concepção de educação como transformação e aprendizagem significativa, centrada no exercício cotidiano do processo de trabalho, na valorização do trabalho como fonte de conhecimento, na valorização da articulação com a atenção à saúde, a gestão e o controle social, e no reconhecimento de que as práticas são definidas por múltiplos fatores. Neste contexto, a educação dos profissionais ainda volta-se à multiprofissionalidade e à interdisciplinaridade, com estratégias de ensino contextualizadas e participativas, e orienta-se para a transformação das práticas. Tais características diferenciam-na da educação continuada, pautada na concepção de educação como transmissão de conhecimento e na valorização da ciência como fonte do conhecimento, pontual, fragmentada e construída de forma não articulada à gestão e ao controle social, com enfoque nas categorias profissionais e no conhecimento técnicocientífico de cada área.

Esta face é percebida pelos entrevistados que expressam, na prática, a fragmentação do saber, a constante busca pela especialização e a visão reducionista do indivíduo. O pensamento cartesiano sempre volta e mostra que, na área da saúde em geral, e da fisioterapia em particular, alguns profissionais ainda tendem a enfatizar a despersonalização da pessoa enferma quando, por exemplo, se referem a ela como uma máquina ou um amontoado de peças: “Então, eu enxergo o meu paciente como uma máquina cheia de peças que se articulam umas sobre as outras [...] eu investigo muito disfunções articulares que possam gerar alterações, ou dores em relação aos processos de degeneração, aos processos de inflamatórios [...] é mais a área de Ortopedia e Traumatologia [...] pra que o corpo funcione de uma maneira correta ele precisa ter os movimentos nos seus eixos adequados”. (fisio5)

A visão dos pacientes como “máquina” e a dissociação do humano em partes, para tratá-lo, remete, como já mencionado, ao modelo de ensino e prática biologicista, fragmentador, unicausal e positivista que, em 1910, com a publicação do Relatório Flexner5, teve grande impulso no ensino médico norteamericano, vindo posteriormente a influenciar o ensino das demais profissões da saúde, de modo ainda hoje presente no processo de formação dos profissionais da saúde. Esta orientação instigava o reducionismo, a fragmentação do corpo. Tal modelo é objeto de crítica para profissionais que já atuam sob a perspectiva da integralidade em saúde. Neste sentido, parece importante repensar o processo de formação profissional da saúde com características que tornem os acadêmicos capazes de construírem conhecimentos que superem as dicotomizações, tendo presente que as pessoas são corporeidades complexas e vivem em contextos complexos (Vieira, Baggio, Maraschim, 2007). Mattos (2001, p.62) ilumina o relato mencionando que “há profissionais que, impossibilitados de tratar com sujeitos, tratam apenas das doenças”, e não os veem como portadores de “desejos, de aspirações, de sonhos”. Ele define esse modo de agir como incapacidade de criar uma relação com o outro, a não ser transformando-o em objeto, ou no caso do relato desse fisioterapeuta, transformando o paciente em uma máquina, desmembrando-o para tratar a “peça” debilitada. Morin (2000) amplia esta compreensão destacando que o ser humano é, a um só tempo, físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico. Esta unidade complexa da natureza humana é totalmente desintegrada na educação por meio das disciplinas, tornando impossível aprender o que significa ser humano. É preciso restaurá-la, de modo que cada um, onde quer que se encontre, tome conhecimento e consciência, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa e de sua identidade comum a todos os outros humanos.

Face nula Nesta face não há conhecimento nem prática da integralidade, com a confusão sobre o termo presente em alguns depoimentos:

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“Eu até não sei se eu não deixei em branco essa pergunta (no questionário). Eu não entendo [...] se essa integralidade é o espaço físico, racional e emocional, eu não sei”. (fisio4)

Na análise da entrevista desse profissional, observa-se que não há indícios da prática da integralidade no seu atendimento ao paciente, caracterizando um profissional alheio ao conhecimento do SUS e à prática de um de seus princípios, apesar de ser prestador de serviços ao sistema. Esse desconhecimento é importante e contribui para que esse profissional não consiga praticar e nem perceber algum dos significados que compõem a multiplicidade semântica abarcada pela integralidade. Essa ausência de aspectos da integralidade na abordagem profissional, juntamente com a anti-integralidade (face fragmentada) mencionada antes, podem estar presentes em muitos serviços públicos e privados do país e nas escolas formadoras de profissionais, o que certamente faz degradar em algum grau a qualidade do cuidado fisioterapêutico. A dimensão da extensão de sua presença é uma incógnita, e serão necessárias outras pesquisas em outros contextos para dimensioná-la. Em todo caso, sua presença implica mais um desafio para os gestores do SUS, na medida em que significa a necessidade de seu reconhecimento como um tipo de prática presente e uma dificuldade adicional para o provimento de cuidados aos cidadãos brasileiros: além de viabilizar acesso ao cuidado fisioterapêutico para os que dele necessitam, tarefa já bem difícil, há que se reconhecer e valorizar nele a presença da face oculta ou escondida da integralidade e fomentar a construção e a expansão das características das faces holística, ampliada e interdisciplinar da mesma, ao mesmo tempo em que se necessita transformar as faces fragmentadas e nulas.

Considerações finais Parece ser imperativo reconhecer na fisioterapia, assim como provavelmente nas demais práticas profissionais em saúde, que os sentidos da integralidade variam muito e associam-se a práticas que podem ser consideradas integrais, menos ou não integrais. Pela polissemia do termo integralidade, identificaram-se os sentidos e significados atribuídos à integralidade, pelos fisioterapeutas, como faces que variaram de acordo com o entendimento de quem as descreveu. Notou-se que a face holística foi a mais usada pelos participantes da pesquisa para conceituar o termo, citada como aquela capaz de entender o humano como ser biopsicossocial, e não reduzi-lo à parte física debilitada. A face fragmentada ou anti-integralidade chamou a atenção para uma prática ainda existente. Nessa face constatou-se a influência de uma formação “de base flexneriana”, biologicista, que estimula um conhecimento fragmentado pela constante especialização. Para a reversão deste quadro, os fisioterapeutas precisam ser capacitados para desempenharem atividades considerando o indivíduo na sua multiplicidade, globalidade e contexto existencial, atuando com um olhar ampliado para a saúdedoença e seus condicionantes. É importante salientar que as faces apresentadas não esgotam toda a multiplicidade do termo integralidade, tratando apenas dos sentidos que emergiram das falas dos profissionais entrevistados. A visão da integralidade, para alguns, é de uma utopia (Mattos, 2004), para outros, de compromisso e, ainda, de confusão e desconhecimento. A pesquisa mostrou que, na prática dos fisioterapeutas, a integralidade se traduz em faces variadas. Esta multidimensionalidade existe em decorrência, provavelmente, de uma formação profissional heterogênea, associada a contextos institucionais diversos e por vezes anti-integrais de cuidado. Este estudo partiu do pressuposto de que a adoção de novos paradigmas no campo da saúde coletiva, no âmbito das práticas, enfrenta distintos desafios, dentre eles a percepção e compreensão que os profissionais - no caso, fisioterapeutas - têm do termo integralidade em saúde. Ele possibilitou trazer à tona aspectos relevantes sobre a diversidade de percepções que os fisioterapeutas possuem a respeito do tema. As faces que emergiram dos depoimentos colhidos mostram a diversidade de práticas e entendimentos, sinalizando a complexidade do campo da saúde e a responsabilidade na formação e na educação permanente dos fisioterapeutas. 834

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GHIZONI, A.C.; ARRUDA, M.P.; TESSER, C.D.

artigos

O provimento de um somatório de serviços disciplinares ou profissionais especializados (como de fisioterapia) isolados uns dos outros parece não ser suficiente para um cuidado longitudinal efetivo e integral. É imprescindível que escolas de graduação e seus docentes realizem um processo de ensino e capacitação adequado para formar profissionais com base nas diretrizes curriculares, capazes de atuarem em concordância com os princípios do sistema de saúde público vigente no país. Por outro lado, os resultados permitem sugerir que os gestores locais do SUS também precisam atuar de forma a reconhecerem e reconstruírem os significados e as práticas profissionais, associando-os à missão da integralidade, viabilizando e induzindo processos de educação permanente entre seus trabalhadores, bem como fomentando: arranjos institucionais, matriciamentos, formas de gestão democráticas e responsáveis, construção de parcerias e apoios personalizados, de modo a enriquecerem as possibilidades de trabalho interdisciplinar, necessário para um maior teor de integralidade nas práticas de cuidado e na organização do Sistema. Os processos de formação e capacitação profissional e educação permanente, bem como o trabalho interdisciplinar, precisam ser realmente constantes e conectados com as necessidades do SUS e sua proposta de integralidade, para se tornarem efetivos.

Colaboradores Angela Carla Ghizoni responsabilizou-se pela coleta e organização dos dados e, juntamente com Marina Patrício de Arruda, por todas as etapas da elaboração e revisão da pesquisa e do artigo. Charles Dalcanale Tesser responsabilizou-se pela revisão geral da pesquisa, da discussão dos dados, da concepção e das fases de redação do artigo. Referências ALMEIDA, M.; FEUERWERKER, L.; LLANOS, M. (Orgs.). A educação dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec, 1999. ALVES, V.S. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface - Comunic, Saude, Educ., v.9, n.16, p.39-52, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ icse/v9n16/v9n16a04.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2009. ARAÚJO, D.; MIRANDA, M.C.G.; BRASIL, S.L. Formação de profissionais de saúde na perspectiva da integralidade. Rev. Baiana Saude Publica, v.31, supl.1, p.20-31, 2007. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 27 out. 2007. ______. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n°196 de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: Ministério da Saúde, 1996. CONSELHO REGIONAL DE FISIOTERAPIA E TERAPIA OCUPACIONAL DA 10ª REGIÃO - CREFITO10. Disponível em: <http://www.crefito10.com.br>. Acesso em: 7 set. 2007.

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GHIZONI, A.C.; ARRUDA, M.P.; TESSER, C.D.

artigos

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GHIZONI, A.C.; ARRUDA, M.P.; TESSER, C.D. La integralidad en la visión de los fisioterapeutas de un municipio de porte mediano. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.825-37, out./dez. 2010. Se ha objetivado conocer la visión de los fisioterapeutas sobre la integralidad en un municipio de porte mediano. Se utilizan cuestionarios auto-aplicados a los fisioterapeutas en profundidad con seis de ellos. Se ha optado por el análisis de contenido para el tratamiento de datos. Emergen seis diferentes aspectos de la integralidad: holístico (visión del paciente como un todo), ampliado (consideración del contexto y determinantes sociales de la salud-enfermedad), interdisciplinario (visión interdisciplinaria contrastada con su ausencia práctica), aspecto oculto (desconocimiento del término con indicios de práctica de la integralidad en lo cotidiano), fragmentario (visión mecánica del cuerpo) y aspecto nulo (desconocimiento e indiferencia). Los diferentes y contradictorios aspectos de la integralidad recomiendan la adopción de prácticas más integrales. Para tal, se resalta la importancia de la formación profesional y de la educación permanente y continuada como dos de las varias dimensiones que configuran el ejercicio profesional como una práctica socialmente construida.

Palabras clave: Integralidad. Fisioterapia. Sistema Único de Salud. Formación profesional. Investigación cualitativa. Recebido em 26/06/09. Aprovado em 08/04/10.

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artigos

Adolescência e trabalho: significados, dificuldades e repercussões na saúde

Cibele Almeida Torres1 Paulo Henrique Alexandre de Paula2 Adriana Gomes Nogueira Ferreira3 Patrícia Neyva da Costa Pinheiro4

TORRES, C.A. et al. Adolescence and work: meanings, difficulties and health repercussions. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.839-50, out./dez. 2010. Work experiences of working adolescents and their health repercussions were investigated. This study was developed in a school in Fortaleza, Ceará, in 2008, with ten working adolescents. It was an exploratory study with a qualitative approach, and the data gathering tools were a focus group and field diary. The data analysis was guided by content analysis. The legal and ethical issues were respected. Through developing the study, four categories emerged: characteristics of the adolescents who participated in the study; meanings of the work experiences for the adolescents; working adolescents and the difficulties faced in work situations; repercussions of work situations on the field of adolescents’ health. It was perceived that there was a set of circumstances that led the adolescents to be surrounded by vulnerabilities. Thus, preparation for healthcare professionals to attend to this public is fundamental, in order to provide comprehensive care and health promotion for these adolescents.

Keywords: Adolescence. Work. Health.

Foram investigadas experiências de trabalho de adolescentes trabalhadores e as repercussões na saúde. A pesquisa foi desenvolvida em uma escola de Fortaleza, Ceará, em 2008, com dez adolescentes trabalhadores. O estudo foi exploratório, com abordagem qualitativa, tendo o grupo focal e o diário de campo como instrumentos de coleta de dados. A análise dos dados seguiu a análise de conteúdo. Foram respeitados os aspectos legais e éticos. Com o desenvolvimento do estudo, surgiram quatro categorias: características dos sujeitos participantes do estudo; significados das experiências de trabalho para os adolescentes; adolescentes trabalhadores e dificuldades enfrentadas nas situações de trabalho; repercussões da situação de trabalho no campo da saúde dos adolescentes. Percebeu-se que há toda uma conjuntura que leva os adolescentes a serem cercados por vulnerabilidades, sendo fundamental a preparação dos profissionais de saúde para atender tal público, proporcionando uma atenção integral e promovendo a saúde desses adolescentes.

Palavras-chave: Adolescente. Trabalho. Saúde.

1

Universidade Federal do Ceará (UFCE). Rua Alexandre Baraúna, 1115. Rodolfo Teófilo. Fortaleza, Ceará, Brasil. 60.430-160. cibeleat@yahoo.com.br 2,4 UFCE.

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ADOLESCÊNCIA E TRABALHO: SIGNIFICADOS, DIFICULDADES ...

Introdução A adolescência compreende uma das etapas do desenvolvimento humano caracterizada por intensas mudanças nos quesitos biológicos, psíquicos e sociais. Trata-se de uma etapa repleta de conflitos pessoais e interpessoais em que os adolescentes recebem influências do contexto cultural no qual estão inseridos (Saito, 2001). A Organização Mundial de Saúde considera adolescente o indivíduo de ambos os sexos com idades entre 10 e 19 anos (OMS, 1995). Já no Estatuto da Criança e do Adolescente, a adolescência começa aos 12 anos e vai até os 18 anos incompletos (Brasil, 2007). Nesta fase, com as diversas transformações, o adolescente passa a incorporar novas construções sociais e comportamentais, adquirindo, consequentemente, direitos e deveres relacionados à identidade familiar, sexual e laboral, embasados nas normas e valores socioculturais vigentes. É também nesta fase que se percebe grande vulnerabilidade física, psicológica e social (Heidemann, 2006). No caso de países em desenvolvimento, caracterizados pelo empobrecimento e pela acessibilidade ao mercado de trabalho precarizado, tem grande relevância a questão da exploração do trabalho infanto-juvenil. Baseando-se em dados internacionais, poder-se-ia estimar que pelo menos metade dos adolescentes trabalhadores desenvolva atividades definidas como perigosas (International Labour Organization - ILO, 2002). No Brasil, as mudanças ocorridas na organização do trabalho a partir de 1970 provocaram repercussões nas condições de vida e trabalho, destacando-se a situação do trabalho infanto-juvenil, que assume proporções dramáticas e preocupantes (Minayo-Gomez, Meirelles, 1997). Até o inicio da década de 1980, a legislação brasileira não seguia as normativas internacionais acerca do direito de crianças e adolescentes (Antão de Carvalho et al., 2003). Somente com a redemocratização do país e com a Constituição de 1988, foi possível dar maior visibilidade às necessidades de crianças e adolescentes e protegê-las com respaldo jurídico (Antão de Carvalho et al., 2003). A Emenda nº 20, de 15 de dezembro de 1998, alterou o art. 7º da Constituição Federal, estabelecendo em 16 anos a idade mínima de acesso ao trabalho, exceção feita apenas ao emprego em regime de aprendizagem, permitido a partir de 14 anos (Brasil, 1988b). Em 1990, as crianças e os adolescentes obtiveram novas conquistas, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente e regula o direito à profissionalização e à proteção do trabalho (Brasil, 1990). Em 12 de junho de 2008, foi assinado o decreto, no País, que regulamenta a convenção n° 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na qual se eleva a quantidade de atividades econômicas enquadradas na lista das piores formas de trabalho infantil, estando presentes, dentre outras: a exploração sexual, o tráfico de drogas e o trabalho doméstico (Brasil, 2009). No tocante às políticas públicas de Saúde relacionadas à saúde do trabalhador infanto-juvenil, o Ministério da Saúde elaborou e implantou uma Política Nacional de Saúde para a Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalhador Adolescente, por meio da Área Técnica de Saúde do Trabalhador. Esta Política considera o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) prioritário na atenção integral à saúde das crianças e adolescentes trabalhadores, apresentando, no âmbito da atenção básica, um papel fundamental na aplicação desta política, pela sua ampla distribuição no País e por atender a um grande número de indivíduos abaixo dos 18 anos (Brasil, 2005). É importante incluir, também, o papel dos profissionais de saúde envolvidos com a saúde ocupacional, para a construção de um conjunto de ações de atenção integral à saúde de crianças e adolescentes, em situação de trabalho, destinadas à promoção, à proteção, à recuperação e à reabilitação da saúde. Os profissionais de saúde, que atuam, sobretudo, no ramo da saúde pública, têm também responsabilidades no campo da saúde do trabalhador, com ações de: promoção da saúde; proteção contra os riscos decorrentes das atividades laborais; recuperação de lesões, doenças ocupacionais ou não ocupacionais, e sua reabilitação. Tornam-se, pois, fundamentais para a promoção da saúde dos adolescentes em situação de trabalho (Brasil, 2005). Assim, percebendo a problemática da exploração de trabalho envolvendo adolescentes e as repercussões geradas em suas vidas, surgiu a necessidade de se desenvolver este estudo, que tem 840

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TORRES, C.A. et al.

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como objetivo investigar as experiências de trabalho de adolescentes trabalhadores e as repercussões no campo da saúde.

Conduta metodológica O estudo, cuja abordagem é qualitativa, enquadra-se no tipo exploratório, já que sua finalidade foi reunir informações em geral a respeito do tema a ser pesquisado e aproximar-se da natureza do objeto de interesse e de suas manifestações (Rodrigues, 2007). Foi realizado em uma escola pública de Ensino Fundamental e Médio de um bairro periférico de Fortaleza, Ceará, durante o mês de junho de 2008. Os sujeitos do estudo consistiram em dez adolescentes, selecionados a partir da população de 450 estudantes matriculados na escola onde foi realizada a pesquisa. A seleção seguiu os critérios de inclusão: ser adolescente de 12 a 18 anos incompletos, ser matriculado na escola, ter alguma experiência de trabalho atualmente ou anteriormente, querer participar da pesquisa e ter a aprovação do responsável. Realizaram-se visitas nas salas de aula de Ensino Fundamental e Médio da escola, verificando aqueles estudantes que atendiam a todos os critérios de inclusão, alcançando-se os dez participantes do estudo. Todos os adolescentes selecionados, coincidentemente, estudavam no período noturno da escola, já que trabalhavam no período diurno. A escolha do tamanho da amostra da pesquisa qualitativa, em geral, é decidida por critérios distintos dos da pesquisa quantitativa, variando: pela importância dos sujeitos para o esclarecimento do assunto em foco, a facilidade de se encontrarem as pessoas, o tempo dos indivíduos para as entrevistas, entre outros (Triviños, 1987). Foram utilizados, como técnica de coleta de dados, o grupo focal e o diário de campo para a obtenção de dados de natureza qualitativa. O grupo focal permite analisar, de forma eficiente e em curto tempo, problemas na perspectiva da população, examinando: suas percepções, conceitos, opiniões, expectativas, representações culturais, universo cultural e vocabular (Westphal, Bogus, Faria, 1996). Os grupos focais abordaram: as experiências de trabalho dos adolescentes, os significados do trabalho para os adolescentes, saúde ocupacional, situações de riscos no trabalho precoce e reflexões nos encontros. Deu apoio ao estudo um diário de campo, que permitiu descrições, comentários, reflexões, ideias e questionamentos que surgiram no decorrer da pesquisa e dos grupos focais. Seu conteúdo foi organizado e desenvolvido durante o processo investigatório, alinhando-se junto à análise dos dados coletados nos grupos focais. Para a análise dos dados do diário de campo e dos grupos focais, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin, uma técnica que analisa as comunicações, objetivando reconhecer indicadores que permitam a aquisição de conhecimentos relativos às condições de produção e recepção destas mensagens, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens (Bardin, 1977). Foram respeitados os aspectos legais e éticos que envolvem pesquisas com seres humanos, conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2002). A participação dos estudantes foi iniciada após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, por eles e seus responsáveis. Ressalta-se, ainda, que o estudo foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa, obtendo aprovação. Para garantir o sigilo e anonimato dos adolescentes participantes deste estudo, eles foram nomeados, de forma fictícia, com as palavras “menino” ou “menina”, de acordo com o gênero, seguidas de um número para diferenciá-los.

Resultados e discussão A partir da sistematização e análise dos dados coletados nos grupos focais e no diário de campo, foram identificadas quatro categorias relevantes ao objeto de estudo: Características dos sujeitos participantes do estudo; Significados das experiências de trabalho para os adolescentes; Adolescentes COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.839-50, out./dez. 2010

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trabalhadores e as dificuldades enfrentadas nas situações de trabalho; Repercussões da situação de trabalho no campo da saúde dos adolescentes. Cada categoria temática emergiu do universo cultural dos participantes do estudo e apresentou relevância para o contexto dos adolescentes em situação de trabalho.

Características dos sujeitos participantes do estudo Participaram do estudo dez adolescentes, sendo cinco mulheres e cinco homens, com 16 e 17 anos. Todos tinham experiência de trabalho, com sua iniciação antes dos 16 anos de idade, sendo que seis estavam trabalhando atualmente e quatro desempregados, porém buscando alguma atividade. Dos adolescentes participantes, as situações de trabalho e experiências foram diversificadas: vendedoras de loja (um), de coco (um), serviços domésticos (dois), modelo (um), serviços gerais em revenda de carro (dois), serigrafista (um), auxiliar de escritório (um), e como ajudante do pai no mercadinho da família (um). Dentro destas atividades, nenhum dos dez adolescentes participantes do estudo tinha algum registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), pelo empregador, ou recebia, pelo menos, um salário-mínimo, confirmando a precarização do trabalho a que são submetidos os adolescentes, para se inserirem no mercado de trabalho. Além disso, possuíam carga-horária elevada e desgastante, sem direitos trabalhistas relacionados a folgas, férias ou 13° salário. Neste sentido, estes dados são confirmados ao se saber que crianças e adolescentes de classes sociais desfavoráveis tendem a trabalhar elevado número de horas semanais e a receber baixos salários, poucos dispondo de cobertura previdenciária. Frequentemente, trabalham sem carteira assinada e são vítimas expressivas do subemprego, com dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, devido: à destinação aos jovens das piores posições, elevada incidência de desemprego e emprego intermitente, más condições de trabalho, baixo grau de satisfação com as tarefas executadas, baixa remuneração e longa jornada (Gomes, 1990). De posse dos dados levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2002, também se passou a ter uma nova configuração do fenômeno do trabalho infanto-juvenil no Brasil para a faixa etária de cinco a 15 anos. O universo dos trabalhadores infantis é majoritariamente masculino, ainda que, em algumas ocupações, como o trabalho infantil doméstico, haja predominância de mulheres. Do total de trabalhadores infantis, 49,8% estão na zona rural e 50,2% na urbana (IBGE, 2003). Percebeu-se que a situação dos adolescentes participantes do estudo é confirmada pelas pesquisas brasileiras acerca da precarização do trabalho nesta faixa etária. Apesar dos esforços que foram realizados nos últimos 15 anos, ainda existem, no Brasil, mais de cinco milhões de crianças e adolescentes trabalhando em atividades proibidas pela legislação (IBGE, 2003). Na busca de romper com esse quadro desfavorável, é fundamental a elaboração de ações intersetoriais, que alcancem a dimensão real do problema, incluindo o foco específico da saúde. Neste contexto problemático, que envolve estes adolescentes em situação de trabalho, o profissional de saúde - sobretudo o que atua na atenção primária - tem papel importante na identificação, acolhimento, caracterização desta realidade, intervenção intersetorial e notificação do problema, visando à promoção da dignidade humana.

Significados das experiências de trabalho para os adolescentes De acordo com a análise dos dados, foi possível perceber que as experiências de trabalho são vivenciadas de formas diferenciadas pelos adolescentes. Alguns as veem como positivas para seu cotidiano, outros as consideram como experiências negativas, sendo estas realizadas de acordo com a necessidade. Alguns adolescentes referem satisfação ao trabalharem para ter o recurso financeiro próprio e poderem adquirir certos bens de consumo que seus pais não poderiam prover:

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“Eu trabalho pra poder gastar o dinheiro que eu suei pra conseguir, sabendo que fiz um esforço e não simplesmente minha mãe ou alguém que me deu. Dar aquele gosto que você realmente fez um esforço pra conseguir”. (menina1) “Eu trabalho pela necessidade de gastar, sou muito gastão, só gasto meu dinheiro com besteira. Ajudo minha mãe e o resto investi em besteira”. (menino1)

Outros adolescentes prefeririam não trabalhar e poder passar aquele tempo dedicado aos estudos. Esse desejo está representado pela seguinte fala: “Eu trabalho, mas preferiria estar estudando, porque é muita coisa pra gente trabalhar e estudar. É muito ruim. Eu não queria trabalhar agora não. Eu queria trabalhar quando terminasse os estudos, mas minha família não pode me mandar dinheiro. Depois de estudar eu iria trabalhar, pra não ter que depender”. (menina3)

Um estudo realizado com adolescentes de São Paulo indicou que a representação do trabalho durante a adolescência, para os pesquisados, foi considerada positiva para a maioria dos adolescentes, reproduzindo um discurso moralista no qual o trabalho é responsável por dignificar o homem, mesmo que prejudique os estudos. Aponta também opiniões opostas, indicando que ou o trabalho acomoda os adolescentes, afastando-os dos estudos, ou traz um sentimento de mudança (Oliveira et al., 2005). Outros adolescentes ainda referiram a importância de iniciarem o trabalho mais cedo, pela experiência, e já aprenderem um ofício, facilitando conseguirem empregos futuros, como representado pela fala a seguir: “É bom que você começa a aprender logo, mais cedo”. (menino3)

As narrativas evidenciam a dimensão cultural na iniciação precoce ao trabalho. Esta precocidade laboral ocorre no País como em diversas nações, por diferentes motivos, dentre eles: a desigualdade social, a pobreza, a necessidade de complementar a renda familiar. Isto, porém, não é a única motivação das famílias para introduzirem seus filhos precocemente no mundo do trabalho, havendo, atualmente, uma supervalorização cultural do trabalho também no âmbito moral, por acreditarem que o trabalho é a única forma de “libertar” os jovens da delinquência (Lima, 2008). Com isso, valores culturais determinam uma aceitação social do trabalho precoce para as classes sociais desfavorecidas com a criação de mitos de que o trabalho evitará a permanência das crianças e adolescentes nas ruas, reduzindo o índice de delinquência infanto-juvenil, fazendo com que o trabalho seja aceito como a única e salvadora alternativa para redução daquela delinquência. Assim, a sociedade aceita o trabalho precoce independentemente da idade do trabalhador, dos ambientes de trabalho em que são inseridos, e não busca opções para a erradicação do trabalho precoce e para a criação de condições para a manutenção das crianças e adolescentes na escola. Entender os motivos que levam o adolescente a trabalhar precocemente é importante para que o profissional de saúde que atende este indivíduo possa compreender seu entorno e implementar cuidados integrais e individualizados adequados à realidade e à necessidade dele. O conhecimento acerca dos motivos que levam o adolescente a trabalhar precocemente também é relevante para que estes profissionais possam participar das ações inerentes à busca pela erradicação da exploração do trabalho infanto-juvenil.

As dificuldades enfrentadas pelos adolescentes nas situações de trabalho Diversos são os problemas enfrentados pelos adolescentes em seus ambientes de trabalho, e conhecê-los é importante para que o profissional de saúde entenda suas consequências. Os diálogos fomentados no grupo permitiram visualizar a complexa problemática que envolve o adolescente trabalhador. O trabalho precarizado refletiu-se: nas queixas referentes às questões de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.839-50, out./dez. 2010

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remuneração, na carga-horária trabalhada, nas necessidades diárias ignoradas dos adolescentes, usurpando direitos inerentes ao trabalhador. O empregador, por outro lado, não promove suporte suficiente para os empregados, influenciando consideravelmente na saúde dos adolescentes: “O patrão nunca paga o que é pra pagar”. (menino3) “O adolescente trabalha muito e ganha pouco. E a carga horária é maior do que era pra ser”. (menina1) “Eu trabalhava e eles não davam almoço e nem transporte. Eu ia de bicicleta e demorava quase 1 hora e meia”. (menino1) “Eu já trabalhei em um lugar que eu passava o dia todo em pé das 6:00 da manhã às 18:00. À noite não agüentava de tanta dor nas pernas”. (menina2)

Ante tal problemática enfrentada pelo adolescente trabalhador, existem contradições entre a realidade e o aparato judicial acerca da sua condição. Sabe-se que, segundo a legislação brasileira, 16 anos é a idade mínima de acesso ao trabalho, proibindo-se qualquer emprego ou trabalho abaixo dos 16 anos, exceção feita apenas ao emprego em regime de aprendizagem, permitido a partir de 14 anos. Abaixo de 18 anos, o trabalho é proibido, sem exceção, quando é perigoso, insalubre, penoso, noturno e prejudicial ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social (Brasil, 1988a). Além disso, sabe-se que as etapas de desenvolvimento e maturação, presentes na infância e adolescência, formam um complexo processo, que exige tempo, espaço e condições favoráveis para realizar sua transição em direção à vida adulta. Logo, a exaustão corporal provocada por uma sobrecarga de trabalho além do “suportável” pelo organismo do indivíduo, associada a um aporte nutricional insuficiente, parecem ser os fatores precipitantes para o desenvolvimento das patologias (Asmus, 2001). Como os adolescentes participantes do estudo têm mais de 16 anos, todos estão com idade hábil para trabalhar, segundo a legislação brasileira, devendo, portanto, ter seus direitos trabalhistas e previdenciários seguidos, com atividades livres de insalubridade, periculosidade ou trabalho noturno. No entanto, acerca do (des)conhecimento quanto aos direitos trabalhistas, os diálogos dos grupos focais proporcionaram registros das seguintes falas dos adolescentes: “O menor pode trabalhar a partir de quando ele agüentar”. (menino1) “O menor pode trabalhar se o patrão pagar um salário mínimo”. (menino2) “Menor não pode trabalhar, tem que estar no colégio”. (menina1)

Percebe-se que eles desconhecem as leis que os amparam, expressando que todos podem trabalhar desde que consigam realizar a atividade ou o patrão pague um salário-mínimo. Outros já consideram que adolescentes menores de 18 anos não podem trabalhar, desconhecendo a faixa etária permitida ao trabalho e, mesmo assim, desrespeitando esta suposta afirmação, já que todos trabalham. Durante o desenvolvimento da pesquisa, os participantes identificam-se, nas falas, como “menores”, refletindo o termo usado, a partir do final do século XIX, no vocabulário jurídico brasileiro, que indicava, além da condição jurídica da criança e do adolescente, a sua condição de desamparo e abandono, judicializando a infância e criminalizando a pobreza. Esta legislação menorista lidava com crianças pobres e marginalizadas, tratando-as como simples objetos de tutela do Estado. Neste sentido, pela carga discriminatória, o termo “menor” passa a ser substituído pelos termos criança e adolescente, caracterizando um tratamento individualizado de respeito à dignidade humana e de sujeito de direitos (Scheinvar, 2002). Essa percepção do “menor” reflete um sentimento social na forma de visualizar e tratar o adolescente, inclusive no meio do trabalho, muitas vezes colocando o empregador como um tutor do adolescente trabalhador pobre e salvando-o da marginalização. 844

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Entende-se que a iniciação da atividade laboral na adolescência torna-se mais abrangente e subjetiva do que a legislação que estipula a faixa etária permitida para o trabalho. O ECA foi criado com o intuito de suprimir lacunas e tratar as crianças e adolescentes como singulares e sujeitos de direitos. Aplicado ao trabalho, o ECA busca uma mudança política no sentido da valorização da vida e transformação cultural, protegendo o adolescente da exploração pelo trabalho e das vulnerabilidades relacionadas. Sabe-se, no entanto, que crianças e adolescentes com menos de 14 anos não podem exercer nenhuma atividade laboral, pela exposição aos riscos que as cargas físicas, psíquicas e sociais do trabalho geram, afetando o desenvolvimento das potencialidades culturais, emocionais e biológicas. Para os adolescentes maiores de 14 anos, torna-se necessária uma orientação para o desenvolvimento das atividades, prevenindo potenciais riscos à saúde e garantindo um aprendizado técnico-profissional. É primordial, então, para a preservação da saúde dos trabalhadores juvenis, que haja: sensibilização e capacitação de professores de educação; sensibilização e capacitação de profissionais da saúde; crescimento da articulação com os centros comunitários das comunidades e organizações não governamentais, e realização de pesquisas de investigação do nexo causal envolvendo a adolescência (Asmus et al., 2005). A falta de uma posição ético-política na cultura trabalhista, identificando crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, prejudica a efetivação do respeito ao desenvolvimento e dignidade dos jovens cidadãos. É necessária mudança cultural. Sobre as leis existentes acerca do trabalhador, alguns dos adolescentes revelam que estas são empecilhos para seus anseios: “Muitas vezes a lei atrapalha, por acabar dando menos oportunidade pra o adolescente que está precisando”. (menino3) “É melhor que a empresa não siga as leis de trabalho, pague menos de um salário mínimo pros adolescentes, porque dá mais oportunidade”. (menina1)

Considerando os direitos assegurados nas legislações trabalhistas e de saúde, pode-se acrescentar que os direitos dos adolescentes devam ser respeitados para que estes não compreendam seu bemestar como algo prejudicial ao seu cotidiano enquanto trabalhador, e sim como algo que faz parte de sua dignidade. Os direitos à saúde, especificamente, precisam ser debatidos na sociedade, para que não se restrinjam a uma conquista por meio de ações institucionais organizadas e externalizadas, nem como um bem disponibilizado e adquirido por meio de processos mercantis ou políticos, nem como valor humanístico decorrente de atos solidários (Verdi, Coelho, 2005). Será necessário, assim, planejamento de políticas e concretização de programas e serviços de saúde capazes de gerar bem-estar e de evitar riscos, tanto para os sujeitos quanto para os grupos sociais. Os adolescentes da pesquisa equivocaram-se quanto às leis trabalhistas, considerando-as, muitas vezes, como barreiras a sua admissão nas propostas de trabalho, indicando que as empresas não deveriam seguir as leis. Estas são questões que explicitam a percepção dos adolescentes ao identificarem os direitos como culturalmente estabelecidos, ao invés de naturalizá-los. Estes fatores os tornam vulneráveis a diversas situações negativas relacionadas às condições sociais e de saúde, necessitando-se sensibilidade para se perceberem as vulnerabilidades que expõem aquele adolescente a riscos e a melhor forma de intervir, buscando sempre a qualidade de vida e autoestima juvenil.

Repercussões da situação de trabalho no campo da saúde dos adolescentes O ambiente de trabalho tem impacto significativo dentro do campo da saúde e da promoção da saúde de indivíduos, família e comunidade. Segundo a Carta de Ottawa, que direciona as bases da promoção da saúde, o trabalho deveria ser fonte de saúde para as pessoas, bem como a organização social do trabalho deveria contribuir para a constituição de uma sociedade mais saudável (Brasil, 2001). As situações de trabalho descritas anteriormente revelam que, mesmo os adolescentes tendo percepção dos problemas de saúde presentes em sua realidade, não conseguem se autocuidar adequadamente devido à ameaça de perderem seus empregos: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.839-50, out./dez. 2010

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“No trabalho, se a gente tiver algum problema de saúde eles descontam o dia que faltei”. (menino2) “Quando eu trabalhava no “beco da poeira”, eu chegava na minha casa e não conseguia nem andar com os pés inchados, não tinha tempo de ir no médico, não tinha tempo de fazer nada, ou eu trabalharia ou se eu fosse no médico teria que sair e se eu saísse iriam precisar de alguém e certamente pegaria meu lugar. Entendeu? Ai eu não queria deixar de trabalhar”. (menina1)

Percebe-se a fragilidade dos vínculos empregatícios no relato da menina 1, que identifica o “Beco da Poeira” como uma exemplo de trabalho precarizado. O Centro Comercial de Pequenos Negócios de Vendedores Ambulantes (CPNVA), popularmente conhecido como “Beco da Poeira”, localiza-se no centro comercial de Fortaleza desde 1991. Conforme o Portal de Serviços e Informações do Governo do Estado do Ceará (2004), no CPNVA, 85% dos estabelecimentos comerciais são informais, não apresentando registro perante a junta comercial de Fortaleza. Segundo Forte (2004), o CPNVA emprega, diretamente e indiretamente, mais de trinta mil pessoas. Abrange dois mil e trinta boxes, com, aproximadamente, 1,5 m2, sem conforto ou higiene adequada. Sua estrutura arquitetônica é precária, antiga e sem acabamento, com risco evidente de acidentes. Os produtos comercializados incluem, sobretudo: vestuário, calçados e acessórios - e, historicamente, praticam preços populares. As relações trabalhistas também são informais, não existindo vínculos empregatícios legalizados, caracterizando-se, eminentemente, por “contratos” temporários. Consequentemente, o estabelecimento sendo informal, sem vínculos empregatícios e sem pagamento de impostos, possui mercadorias com valores abaixo da concorrência e atrai clientes de baixo poder aquisitivo. Neste contexto do Beco da Poeira e em outros em semelhantes condições, o adolescente é percebido como uma mão-de-obra barata, vulnerável, com um imenso contingente desempregado, com escassez de postos de trabalho e necessitando de experiência. Assim, a realidade precária desencoraja o exercício da cidadania juvenil, como ir ao médico, por exemplo. Reflete-se, pois, a necessidade de se implementar a promoção da saúde, ante os empecilhos presentes na realidade destes adolescentes. Como falar em promoção da saúde em um ambiente de trabalho que só produz lacunas e torna os adolescentes ainda mais vulneráveis? É importante a atuação do poder público para se viabilizarem melhorias nestas instâncias, minimizando o desrespeito aos direitos destes adolescentes. Sobre essas questões que envolvem saúde e trabalho, é necessário também perceber o que estes adolescentes entendem sobre risco presente no trabalho: “O trabalhador tem risco em cortar a mão”. (menino1) “O risco é prejudicial para a nossa saúde”. (menina2) “Quem trabalha com altura e quem trabalha com animais tem risco”. (menina4)

Essa questão relativa a riscos no trabalho está ligada à insalubridade. Segundo a Norma Regulamentadora n° 15, que relata sobre estas condições, insalubridade é toda situação que exponha o trabalhador a circunstâncias acima do nível de tolerância. Nesta norma regulamentadora, são descritos cada nível de intolerância e o respectivo risco a que está exposto o trabalhador (Atlas, 2008). Sobre as espécies de risco presentes no trabalho, eles fizeram uma diferenciação, apontando conhecimentos e experiência com esse tipo de atividade: “Quem mexe com produtos de limpeza, às vezes fica com falta de ar”. (menina2) “Quem lida com risco biológico corre o risco de pegar doenças dos outros, no hospital”. (menina1)

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“Risco ergonômico tem quem estuda e chega em casa toda doída”. (menino3) “Risco físico tem quem trabalha no frigorífico”. (menino1)

Acerca da prevenção desses riscos, os adolescentes apontaram a necessidade do uso de equipamentos de proteção individual (EPI): “Deve usar luva, máscara, bata, aqueles óculos pra prevenir os riscos”. (menina3) “Melhor usar os equipamentos do que não usar”. (menina1) “Caso a pessoa não usar, ela prejudicará ela mesmo, ela tem que ter consciência”. (menina2).

Segundo a Norma Regulamentadora n° 06, EPI trata-se de todo dispositivo ou produto de uso individual utilizado pelo trabalhador, destinado à proteção de riscos suscetíveis de ameaçar a segurança e a saúde no trabalho. Deve ser distribuído gratuitamente, pelo empregador, ao empregado, bem como se deve orientar sobre a importância de seu uso. O trabalhador orientado tem por obrigação usar o EPI (Atlas, 2008). A maioria dos adolescentes trabalhadores mencionou a importância de usarem os EPI, porém, um adolescente que está exposto a alguns riscos no trabalho não apresenta experiência positiva, revelando certa resistência em usá-los e a falta de orientação do empregador quanto ao seu uso: “Nós que trabalhamos lavando carro, usamos muito produto químico, óleo. Aí tem a máscara e o protetor do ouvido, mas incomoda muito, então não uso”. (menino1).

Logo, as normas regulamentadoras devem ser obedecidas, sob risco de punição, visando sempre à saúde do trabalhador. A presença do risco é constante na vida dos adolescentes trabalhadores, porém, reagem de forma a naturalizá-los em seus cotidianos: “Na serigrafia tem produto químico, mas a gente usa máscara direto. Também sinto um pouco de dor nas costas, mas chego em casa, deito, me estico, num instante passa a dor. Isso não é problema pra mim. Isso tudo é frescura”. (menino2)

Nota-se, então, que o adolescente trabalhador se encontra em situações de vulnerabilidade particulares no campo da saúde, influenciadas por: medos e inseguranças de perder o emprego, independência financeira, riscos no trabalho, uso de EPI, dentre outros. Além dos fatores inerentes ao trabalho que podem influenciar na saúde destes adolescentes, eles ainda reveleram a independência financeira como algo que deve ser investigado para se entender se isto torna os adolescentes mais vulneráveis: “Depende da pessoa. Se ele tiver dinheiro, acha que pode sair com um monte de mulher é arriscado, ele pode pegar alguma DST”. (menino1) “Ele pode correr o risco de se ficar muito bêbado, pegar qualquer uma por ai e ficar doente”. (menina2)

Nas falas, revelaram-se relações entre a obtenção de recursos financeiros pelo adolescente e sua exposição a vulnerabilidades sociais e de saúde. Nos exemplos relatados, identificaram-se as doenças sexualmente transmissíveis (DST) como ponto a ser analisado. Entendendo que, dentre as áreas de possível consumo dos adolescentes, encontram-se as festas e ingestão de bebidas alcoólicas, os participantes do estudo relacionaram esta situação à vulnerabilidade às DST. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.839-50, out./dez. 2010

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No contexto atual de globalização e cultura pop, o século XXI remonta ao consumismo com que a sociedade se escraviza atualmente, incluindo os adolescentes e jovens, adentrando no mercado de trabalho. Este jovem, abduzido pelo consumo, inicia-se no processo de endividamento e busca urgente por fonte de renda, sendo assim público fácil para ingressar no mercado de trabalho informal e temporário. Este desenrolar de acontecimentos enquadra o adolescente numa situação de trabalho precário e difícil discernimento para o consumo controlado. Neste aspecto, a situação é inconsolável, pela ineficácia da escola em viabilizar novas realidades frente às relações de trabalho e emprego precarizadas. Porém, a esperança renasce perante o impulso dos jovens na criatividade por ideais sonhados ou na batalha pela própria sobrevivência (Pais, 2001).

Considerações finais Com o desenvolvimento deste estudo e o auxílio da revisão de literatura nas temáticas pertinentes, foi possível expandir a visualização destas adolescências no mundo do trabalho. Há toda uma conjuntura que leva os adolescentes a serem cercados por vulnerabilidades, alegrias, medos, perigos, contradições e singularidades nas situações de trabalho, e isto é percebido no desenvolvimento das categorias temáticas deste estudo. O grupo focal proporcionou um desvelamento destas crenças e valores, contribuindo para o entendimento do ser adolescente e o trabalho. O estudo teve relevância por evidenciar reflexões direcionadas à saúde dos adolescentes trabalhadores e as repercussões na proteção e promoção da saúde destes indivíduos, contribuindo para atuação dos profissionais de saúde neste âmbito. Percebeu-se a complexidade da questão do trabalho na adolescência, além de, muitas vezes, sua crueldade e magnitude devido a fatores conjunturais que tornam estes grupos vulneráveis. Os adolescentes e jovens, dentre outros agrupamentos sociais vulneráveis, representam, nas relações entre trabalho e capital da sociedade atual de ideário liberal, os de menor poder na negociação com o capital, sendo explorados. A reversão deste quadro implicaria a produção de uma cultura de direitos, repercutindo nas relações trabalhistas. Pensa-se que, pelos significados das experiências de trabalho, pelas suas dificuldades e pelas repercussões da situação de trabalho no campo da saúde dos adolescentes, é fundamental que os profissionais de saúde estejam preparados para atender tal público, proporcionando uma atenção integral e promovendo a saúde destes trabalhadores. Na perspectiva da promoção da saúde dos adolescentes trabalhadores, a saúde coletiva tem prioritária atenção na ressignificação das suas ações, revendo suas limitações e ações reducionistas e, assim, articulando inovações que percebam os adolescentes com suas particularidades e necessidades. Assim, as políticas públicas para os adolescentes trabalhadores devem ser formuladas com suporte em novas tendências de práticas de saúde, priorizando a intersetorialidade, para a efetivação do ser adolescente saudável, com qualidade de vida e satisfeito com a atenção a sua saúde. Portanto, há necessidade de desenvolvimento de estudos - tanto de pesquisa como de extensão que esclareçam as particularidades dos adolescentes nas atividades de trabalho, bem como estimulem ações que possam transformar as atitudes dos espaços coletivos que cercam estes adolescentes.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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TORRES, C.A. et al. Adolescencia y trabajo: significados, dificultades y repercusiones en la salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.839-50, out./dez. 2010. Se han investigado experiencias de trabajo de adolescentes trabajadores y las repercusiones en la salud. La investigación se ha desarrollado en una escuela de Fortaleza, estado de Ceará, Brasil, en 2008, con diez adolescentes trabajadores. El estudio ha sido exploratorio con planteamiento cualitativo, con el grupo focal y el diario de campo como instrumentos de colecta de datos. El análisis de los datos sigue el análisis de contenido. Se respetan los aspectos legales y éticos. En el desarrollo del estudio surgen cuatro categorías: características de los sujetos participantes del estudio; significados de las experiencias de trabajo para los adolescentes; adolescentes trabajadores y dificultades afrontadas en las situaciones de trabajo; repercusiones de la situación de trabajo en el campo de la salud de los adolescentes. Nótase que hay toda una coyuntura que lleva a los adolescentes a un cerco de vulnerabilidades, por lo que resulta fundamental la preparación de los profesionales de salud para atender tal público, proporcionando una atención íntegra y promoviendo la salud de estos adolescentes.

Palabras clave: Adolescente. Trabajo. Salud.

Recebido em 20/01/09. Aprovado em 12/08/10.

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artigos

Políticas públicas dirigidas à juventude e promoção da saúde: como a proposta de auxiliares da juventude foi traduzida em prática

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Elisabete Agrela de Andrade1 Cláudia Maria Bógus2

ANDRADE, E.A.; BÓGUS, C.M. Public policies targeted at youth and health promotion: how the proposal for youth auxiliaries has been translated into practice. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.853-66, out./dez. 2010. This article discusses an intervention in public policies for youth in the city of São Paulo with the purpose of discussing the operationalization and the difficulties this program had when it was translated into the municipal managers’ daily practice. The article aimed to analyze the work of youth auxiliaries in the city and to reflect on strategies and principles of health promotion. This is a qualitative research based on questionnaires and interviews that tries to conciliate practical experience and theoretical discussion. The conceptual theoretical discourse was convincing about the importance of this social actor in the construction of public policies; however, the practice showed that it was ineffective due to the little merit and sustainability that were spent for that purpose. The space of public health can be a privileged locus as regards the contribution it brings to review the intervention proposals for youth.

Keywords: Youth. Adolescent. Public policies. Health promotion.

Este artigo discute uma intervenção em políticas públicas voltada para a juventude no município de São Paulo, com a finalidade de debater o funcionamento e as dificuldades que esta proposta encontrou ao ser traduzida na prática cotidiana dos gestores municipais. Teve como objetivo analisar o trabalho dos auxiliares da juventude do município e refletir a respeito dos princípios e das estratégias da promoção da saúde. Tratase de estudo qualitativo, utilizando questionários e entrevistas, procurando aproximar a experiência prática da discussão teórica. O discurso teórico conceitual foi convincente quanto à importância deste ator social na construção de políticas públicas, entretanto sua prática mostrou que não foi efetivo pelo pouco mérito e pouca sustentabilidade despendidos ao propósito. O espaço da saúde pública pode ser um lócus privilegiado no sentido de contribuir para a proposição de intervenções para esse público.

Palavras-chave: Juventude. Adolescente. Políticas públicas. Promoção da saúde.

Elaborado com base em Andrade (2008). 1 Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação Cidades Saudáveis. Av. Praia Grande, 705. Osasco, SP, Brasil. 06.040-440. elisagrela@usp.br 2 Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. *

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POLÍTICAS PÚBLICAS DIRIGIDAS À JUVENTUDE: ...

Introdução Com o crescimento da população juvenil, que mundialmente chega a cerca de 1,03 bilhões de jovens, diferentes instituições interessadas e preocupadas com o tema juventude reafirmaram a relevância e a necessidade de investigações e conhecimento sobre políticas publicas direcionadas a este público. Neste sentido, vários referenciais normativos foram produzidos para formulação de políticas públicas/intervenções políticas direcionadas a esta população, com a finalidade de criar preceitos para que os jovens pudessem ter melhores condições de participarem da sociedade em que vivem. No Brasil, devido ao aumento da população jovem - segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2004), há cerca de 35 milhões de jovens entre 15 e 24 anos no país, o que representa 30,3% da população (PNAD 2004) – a partir da década de 1990, as discussões em torno do tema juventude tomaram parte do cenário das políticas públicas, ganhando projeção e complexidade. Por outro lado, a Saúde Pública, nos últimos anos, vem passando por várias transformações e adequações, influenciadas por dimensões econômicas, políticas, sociais e pela implantação do Sistema Único de Saúde, com seus princípios de universalidade, integralidade, equidade, participação e controle social. Diante do imperativo de absorver tais influências, tornou-se imprescindível à Saúde Pública agregar novos conhecimentos que contribuíssem neste sentido. Em 2006, o Ministério da Saúde publicou a Política Nacional de Promoção de Saúde (Brasil, 2006), que consolidou o compromisso de ampliação e qualificação de ações de promoção da saúde no Sistema Único de Saúde. Como as políticas públicas direcionadas à juventude na Saúde Pública foram geralmente embasadas no modelo biomédico, ao se assumir a necessidade de tomar a saúde de forma mais ampla e adotar uma postura diferente da tradicionalmente concebida, considerou-se que a reflexão sobre políticas públicas para a juventude, à luz da promoção da saúde, poderia contribuir neste cenário. A promoção da saúde refere-se a um modelo de atenção à saúde que vai além da assistência médico-curativa, onde a concepção de saúde é considerada como produção social, resultado de relações de distintas naturezas, ou seja, econômicas, políticas, organizacionais, ideológicas, culturais e cognitivas (Sicoli, Nascimento, 2003). Dentro do seu escopo de trabalho, a promoção da saúde reconhece que decisões políticas de diferentes setores têm fortes repercussões sobre a saúde da população. Assim, ao se articular com outros campos, a saúde pode contribuir na elaboração de políticas públicas saudáveis focadas na juventude. Nesta investigação, foram considerados dois princípios fundamentais da promoção da saúde: intersetorialidade e participação social. Entende-se intersetorialidade por articulação de saberes e experiências no planejamento, realização e avaliação de ações, a fim de se obterem resultados integrados no desenvolvimento local. A participação social é entendida como um processo de negociação, desenvolvimento e fortalecimento das comunidades envolvidas (Bógus, 2004). Ao relacionar a importância da intersetorialidade e da participação social na formação de políticas públicas saudáveis, a promoção da saúde aproxima-se dos referenciais legais relacionados ao tema juventude, já que tais documentos também priorizam: a integralidade dos sujeitos, a descentralização das ações, o envolvimento e a participação dos jovens. Diante de tal propósito, partiu-se de alguns referenciais teóricos relativos ao tema juventude que embasaram a pesquisa. Primeiramente, considera-se o termo juventude razoavelmente novo, já que foi com o desenvolvimento da sociedade moderna, e consequente nascimento das três novas instituições burguesas (escola, família e infância), que surgiu a juventude como a conhecemos atualmente. Com as novas necessidades burguesas, foram formados indivíduos com qualificação para a nova estrutura econômica de fábricas e sistemas produtivos (Ariès, 1981). Outra base teórica que serviu de apoio a este trabalho foram os estudos de Pais (2003), que apontam a juventude como uma categoria socialmente construída, em circunstâncias históricas, econômicas, sociais e políticas particulares, que podem modificar-se ao longo do tempo. O que implica o desafio constante de desconstrução de aspectos dos jovens dados como homogêneos e independentes do contexto em que estejam imersos. De acordo com o mesmo autor (Pais, 2005), ao desconsiderarem sua heterogeneidade, muitas intervenções dirigidas à juventude correm o risco de criarem um descompasso entre o que se propõe e o que se produz praticamente, justamente por não valorizarem as trajetórias, o contexto objetivo e subjetivo dos jovens onde acontecem as intervenções propostas. 854

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artigos

Pimenta (2007) reforça esta discussão ao elencar alguns motivos que tornam as políticas públicas mais propensas ao fracasso: não levam em consideração as perspectivas subjetivas dos jovens; consideram a integração social apenas como a colocação no mercado de trabalho; têm função ‘contentora’ de tirar o jovem da rua e direcioná-lo a um plano de carreira sem ajudá-lo a construir seu próprio percurso; mascaram o problema estrutural entre o sistema educacional e o mercado de trabalho; não proporcionam formação adequada e exigem do jovem mais educação; critérios burocráticos, como idade, escolaridade, tempo de desemprego, são reguladores do acesso a estas políticas. Neste debate sobre os muitos complicadores para a elaboração de políticas públicas dirigidas aos jovens, Castro (2004) resume algumas fragilidades, entre elas: não considera a diversidade entre jovens; não concebe o jovem com identidade própria; desconsidera a falta dos direitos humanos básicos, como: estudar, divertir-se, exercitar-se, investir em autonomia, ter assegurada sua manutenção econômica e afetivo-familiar. Uma alternativa para lidar com esses dilemas foi a proposição de órgãos gestores municipais voltados especificamente para este público: a institucionalização, entendida como um canal facilitador de comunicação, onde os jovens pudessem ter questionados seus anseios, seus propósitos, seus ideais, como sujeitos ativos das ações desenvolvidas em seu favor, e, como implicação, poderia diminuir o hiato entre o planejado e o desejado. Entretanto, apesar do avanço que significou a criação desta estratégia, muitos obstáculos ainda precisam ser superados, tais como: romper com a setorialização da juventude; promover políticas que transcendam a visão estigmatizante dos jovens; conectar-se com a sociedade civil e, sobretudo, com os jovens; abandonar as políticas estatais de juventude, para dar lugar a uma política pública de juventude, como discute Bango (2003). Ao se entender que nem só de programas e projetos isolados faz-se política pública de juventude, considerou-se este novo desenho político democrático - a institucionalidade das políticas públicas - como uma estratégia de fomento à criação de órgãos gestores voltada para o atendimento das demandas juvenis. Dentro desta nova perspectiva, a Coordenadoria Municipal de Juventude de São Paulo assumiu a função de articular e promover interlocuções entre o poder público e os movimentos juvenis, assegurando, no âmbito municipal, a discussão sobre políticas públicas dirigidas à juventude (Sposito, 2003). A fim de expandir seu trabalho por toda a cidade, a Coordenadoria passou a contar com auxiliares de juventude nas subprefeituras da cidade: pessoas que deveriam ter maior contato com a população jovem local, com a finalidade de articular a relação entre os serviços públicos e os jovens da região. Isto os tornaria sujeitos importantes no processo de construção de políticas públicas para a juventude a nível local, pois possibilitaria que fossem ouvintes das opiniões de seu público, e, consequentemente, permitiria a diminuição da distância entre o ofertado pelo poder público e o desejado pelo jovem. Este cenário desencadeou a inquietação que moveu este trabalho: conhecer o que se entende e se produz em políticas públicas não apenas pela ótica dos marcos teóricos e legais, mas também pela ótica dos jovens responsáveis por estas ações, os auxiliares da juventude do município de São Paulo. Para tanto, considerou-se este ator como um componente importante dessa estratégia de ação das políticas públicas municipais, com a função de aproximar a juventude da gestão pública, desempenhando o papel de elo entre estes dois polos. As normas que embasam ou remetem ao trabalho dos auxiliares da juventude estão relacionadas à Lei 13.169 de julho de 2001, quando foi criada a Coordenadoria Especial da Juventude, com a função de promover e coordenar programas e políticas para a juventude no município de São Paulo. Posteriormente, a partir da criação das subprefeituras (São Paulo, 2003, 2002a), dentro do processo de descentralização da cidade, a gestão municipal percebeu a necessidade de se criar uma estratégia de comunicação com a juventude local, foi então criado o cargo do auxiliar da juventude, subordinado ao gestor local. Dentro da proposta de trabalhar a juventude local, alguns marcos legais (São Paulo, 2005, 2004, 2002b) remetem à instituição das Estações da Juventude nas subprefeituras de São Paulo, como um equipamento público que concentrasse ações direcionadas aos jovens das regiões em que estivessem inseridos. O Decreto 45.889 (São Paulo, 2005) instituiu que a execução dos programas deveria ser feita pelas subprefeituras e que a responsabilidade pelo planejamento, monitoramento e avaliação das atividades desenvolvidas pelo programa deveriam ser compartilhadas entre a Coordenadoria da Juventude e as subprefeituras, sendo que as atribuições contidas nesse decreto deveriam ser executadas pelos auxiliares da juventude de cada região. Estabeleceram-se, como objetivos, para esta proposta: 855


POLÍTICAS PÚBLICAS DIRIGIDAS À JUVENTUDE: ...

articular políticas sociais intersetorializadas voltadas à juventude, com a participação desse segmento; identificar os espaços e equipamentos públicos da região, democratizando e otimizando sua utilização; implementar ações de formação e campanhas de proteção e promoção de direitos dos jovens; disponibilizar informações sobre os programas, atividades, equipamentos, espaços e ações jovens na sua área de atuação; facilitar o acesso aos recursos educacionais, culturais, sociais e de atenção à saúde; produzir parcerias para implementar programas voltados aos interesses da juventude na região; apoiar e auxiliar movimentos, grupos e eventos ligados à juventude, desenvolvidos na região; fomentar a organização da juventude local, auxiliando o desenvolvimento de suas potencialidades, bem como propiciando a realização de encontros para interlocução entre os diferentes agrupamentos, a sociedade e o poder público. (São Paulo, 2005)

Como esta função de auxiliar da juventude é bastante recente, foi necessário recuperar e entender o trabalho destes gestores municipais. Neste sentido, a pesquisa propôs-se a identificar e caracterizar esta função na gestão das políticas públicas dirigidas à juventude no âmbito local. Com essa finalidade, conhecer as formas de intervenção destes gestores municipais permitiu identificar os significados atribuídos, pelos auxiliares da juventude, ao tema política pública, para então analisá-los à luz da promoção da saúde. Tomada como um pressuposto de intervenção, a concepção de promoção da saúde ultrapassa o campo da saúde pública e requer a discussão sobre a elaboração de políticas públicas como estratégias promotoras de saúde (Valadão, 2003). O que a aproxima dos referenciais normativos das políticas públicas para juventude, que consideram a necessidade de que seja: integral, no sentido de apreender a questão juvenil em todos seus componentes; descentralizada, proporcionando atendimento e participação local dos jovens; universalista, adequada ao contexto do jovem e participativa, além de envolver todos os atores no processo decisório e levar em conta a dinâmica da juventude (Chaves Junior, 1999). Ao relacionar o trabalho da gestão pública com o campo da promoção da saúde, entendeu-se que se poderia fomentar uma discussão necessária sobre a participação dos jovens na formulação, organização e implementação de políticas, assim como contribuir no sentido de pensar a intersetorialidade necessária para a compreensão e a adequação dos trabalhos dirigidos a este grupo social.

Procedimentos metodológicos Com o crescimento do município de São Paulo, a criação de 31 subprefeituras, a partir da lei 13.339 de agosto de 2002, teve como intuito a descentralização do poder municipal, com o objetivo de criar instâncias regionais de representação da gestão, possibilitando o planejamento, controle e execução de políticas públicas no nível local (Garibe, 2004). Com 20% da população formada por jovens, a gestão municipal, em 2002, percebeu a necessidade de se criar uma estratégia de comunicação com este grupo etário, a partir do espaço das subprefeituras. Nesse sentido, dentro da concepção de governos locais, surgiu a proposta da criação de espaços ligados a assuntos relativos à juventude nas subprefeituras, denominados “assessorias de juventude”, tendo uma pessoa responsável pela proposta no nível local, chamada de auxiliar da juventude. Os auxiliares da juventude, como uma estratégia de descentralização, são algo bastante novo no cenário das políticas voltadas a esse público. Por esse motivo, essa pesquisa, tendo em vista seus objetivos, foi classificada como pesquisa exploratória, por proporcionar maior familiaridade com essa questão inovadora (Gil, 2002). Tratou-se de um estudo de caso (Gil, 2002), por ter como propósito explorar um fenômeno da realidade que, por sua jovialidade e seu entorno, ainda está em definição. Mesmo considerando que não é possível generalização, pode-se proporcionar a identificação de prováveis fatores que influenciam no processo de formulação e implementação de políticas públicas dirigidas à juventude. Pelas características do problema proposto e do objeto de estudo, realizou-se uma pesquisa de abordagem qualitativa. Conforme descreve Minayo (1992), a pesquisa qualitativa pode ser importante 856

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entrevista realizada

entrevista não realizada

artigos

para se compreenderem os valores culturais e as representações de um determinado grupo a respeito de temas específicos. Procurando compreender o processo de criação desta forma de trabalho do auxiliar da juventude na gestão local, a metodologia qualitativa possibilitou considerar a percepção desses atores quanto ao trabalho que exercem. O presente estudo utilizou-se de técnicas de análise documental, aplicação de questionário e realização de entrevistas semiestruturadas junto aos atores envolvidos. A análise de documentos teve como propósitos identificar o contexto histórico e as principais características da intervenção. Os questionários tiveram a função de descrever o perfil sociodemográfico dos auxiliares da juventude. Já as entrevistas, entendidas como um dos instrumentos básicos de coleta de dados dentro da perspectiva da pesquisa qualitativa, de acordo com Ludke e André (1986), tiveram, como objetivo, apreender as percepções, os sentidos e significados na perspectiva dos atores envolvidos quanto aos temas de interesse da pesquisa, bem como identificar e analisar a contribuição da promoção da saúde. Para atender ao objetivo proposto de analisar o trabalho e as percepções dos auxiliares da juventude e aproximações com a promoção da saúde, a proposta inicial era a de realizar o estudo com todos os casos, pois, pela quantidade total de 31 profissionais da Coordenadoria, considerava-se que todos poderiam contribuir como fonte de informações. Entretanto, considerou-se que os critérios numéricos na pesquisa qualitativa não servem de base para garantir sua representatividade, mas que o número suficiente de sujeitos participantes é aquele que permite a reincidência de informações (Minayo, 1992). Foram realizadas 18 das 31 entrevistas programadas, entre o segundo semestre de 2007 e início do primeiro semestre de 2008. As dificuldades para coleta deram-se pelos seguintes motivos: houve situações em que o cargo era desconhecido dentro da própria subprefeitura, ou então os auxiliares encontravam-se espalhados pelos diferentes setores das subprefeituras, pelo fato de não ocuparem, exclusivamente, a função de auxiliar; também houve situações de subprefeituras em que não havia uma pessoa nomeada para o cargo ou existiam pessoas nomeadas para a função que não quiseram realizar as entrevista por não desenvolverem esse trabalho. Das 31 subprefeituras nas quais deveria haver um auxiliar da juventude nomeado para o cargo, o mais comumente encontrado foi o que denominamos de acúmulo de funções, correspondendo a 48% do total de auxiliares da cidade. Em 13% das subprefeituras havia os auxiliares nomeados, porém eram desviados da função que deveriam exercer. Em 10% das subprefeituras não havia nomeação para o cargo. Também chamou atenção o fato de que 26% das pessoas que deveriam ocupar o cargo não foram às entrevistas agendadas (10%) ou não foram encontradas, pois não foram localizadas por outros funcionários da subprefeitura (16%), alegando ausência, licença ou, até mesmo, desconhecimento de quem fosse o auxiliar da juventude da subprefeitura. A Figura 1 contribui para o entendimento da situação exposta.

Falta do auxiliar Não quis desvio de função Sem auxiliar nomeado Sem nomeação Exclusiva função Desvio de função Acúmulo de função 0

2

4

6

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10

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16

Figura 1. Explicitação do campo das entrevistas com auxiliares da juventude do município de São Paulo, 2008.

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No que se refere à análise dos dados desta pesquisa, utilizou-se a análise de conteúdo temática, com base em categorias criadas, como proposto por Bardin (1995), cujo objetivo foi o de compreender o sentido das comunicações e suas significações explícitas e/ou ocultas. A análise final foi feita por meio da articulação entre os dados obtidos em campo, por meio da análise documental e das entrevistas, e os objetivos da pesquisa e o referencial teórico que orienta o estudo. Discussão dos resultados Para entendimento do caminho de raciocínio tomado, foi criada uma representação gráfica para contribuir na análise da pesquisa. Cabe ponderar que, apesar do risco que a utilização de uma representação gráfica pode trazer de reduzir o entendimento de determinada questão, a preocupação da pesquisa foi a de criar um olhar holístico, preocupado com a não-fragmentação dos dados coletados. O desenho central com os quadros representa a construção a partir do campo teórico relativo ao tema políticas públicas para a juventude. As setas pontilhadas representaram os questionamentos que esta pesquisa tentou compreender. O esquema teve, então, o propósito de facilitar o olhar e apontar para questões que a pesquisa levantou, contribuindo na análise dos resultados (Figura 2).

são

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ia

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ilícitas o reg emp s e D DST s

PREOCUPAÇÃO COM A JUVENTUDE ÓRGÃOS INTERNACIONAIS NACIONAIS ESTADUAIS MUNICIPAIS

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PARTICIPAÇÃO JUVENIL

COORDENADORIA DA JUVENTUDE

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X

relação Como é selecionado

Como se dá a

? articulação local

X

X

X

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perfil

X

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X

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Figura 2. Representação gráfica advinda do campo da pesquisa.

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X

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jovem

SUBPREFEITURAS

X

31 AUXILIARES DA JUVENTUDE

X

Como se dá a

? articulação local

PPJ ser pauta, subprefeitura

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X

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X

X

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X

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OUTRAS SECRETARIAS


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artigos

Ao se traçar o perfil das pessoas que ocupavam a função, os dados mostraram que há uma diversidade entre os responsáveis pelo cargo, ocupado sobretudo por homens (76%), enquanto 24% correspondem a mulheres. Apenas 21% dos entrevistados têm entre 18 e 24 anos, enquanto 21% das pessoas que ocupavam o cargo estavam na faixa etária de 26 a trinta anos, 26% entre 31 e quarenta anos, e a maioria dos entrevistados estava na faixa etária entre 41 e 55 anos. Por ser uma estratégia desenvolvida com a finalidade de trazer a questão juvenil para a pauta de discussões da gestão pública, havia a expectativa de que o responsável por esse cargo fosse um jovem com idade entre 18 e 24 anos, denominado gestor jovem, pois poderia ser um aspecto facilitador da integração com outros jovens. Entretanto, a proposta de ter um auxiliar da juventude nas subprefeituras não considerou esta perspectiva, já que outras faixas etárias foram encontradas entre os responsáveis pelo cargo. “Tem pessoas que tem 30, na reunião que eu fui tem uma senhora que tem 52 anos, que representava a juventude, e ela vê a juventude com outros olhos, não vê como eu ou você, então é isso, eles não se preocupam com a faixa etária na hora de nomear, com o perfil do auxiliar”.

A heterogeneidade dos gestores públicos que assumiram as subprefeituras motivou a existência de diferentes formas de concepção de gestão, de prioridades de trabalho e, no caso da juventude, quando o tema foi cogitado, não garantiu que a juventude fosse pautada em seus trabalhos. O mais comumente encontrado foi o sujeito estar a serviço da autoridade local, exercendo diferentes funções, poucas vezes relacionando assuntos com que deveria se ocupar. “Existe desvio de função, às vezes o auxiliar não é somente auxiliar de juventude, existe o tramite de fluxo interno na subprefeitura, porque as questões do cotidiano consomem a subprefeitura. E quando eu falo questões de cotidiano é: plantar arvores, tapar buracos, correr atrás e rato, limpar lixo, é isso, trocar lâmpada”.

A inserção de um jovem nesse tipo de gestão não mudou a realidade, e a formalização do cargo não garantiu que exercitasse seu direito de participar, pois o cargo não foi considerado um instrumento da gestão. Sem poder de decisão, o auxiliar da juventude é desconhecido dentro do próprio ambiente de trabalho. Há poucas situações em que é valorizado pela subprefeitura, e a grande maioria dos subprefeitos utiliza o cargo para suprir outras necessidades, sobretudo de cunho administrativo. “Todos os dias a gente tem que dizer o que é e o que faz, para as mesmas pessoas, até a gente convencer essas pessoas que a gente está aqui para isso. O pessoal não entendeu que o cargo de auxiliar de juventude não é um cargo partidário, um cargo com um moleque que não vai fazer diferença, as próprias pessoas da subprefeitura não entendem isso, elas levam por outro lado”.

Foi identificada, neste trabalho, uma nítida dificuldade em tornar as políticas públicas para juventude pauta das agendas das subprefeituras, dentre outros fatores, pela pouca visibilidade e jovialidade do tema. “A maior questão da juventude é a visibilidade para essas questões”. “Dentro do nosso país, normalmente, eles começaram a ver o jovem há pouco tempo, investir no jovem e fazer política para o jovem. Então tanto para os governos federal, estadual e municipal a gente está engatinhando ainda, eu acho que poderia ser muito melhor ainda”.

Uma estratégia que fomentaria o tema juventude na gestão local seriam cursos de capacitação, pois poderiam ser importantes instrumentos para a apropriação de conhecimentos e informações, facilitando COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.853-66, out./dez. 2010

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o enfrentamento das situações cotidianas e o amadurecimento para o exercício da função. Entretanto, pode-se considerar que os auxiliares da juventude não passaram por nenhuma atividade de profissionalização técnica específica para assumir o cargo - 79% dos entrevistados afirmaram não ter tido nada nesse sentido, enquanto 21% relataram terem recebido algum tipo de capacitação. Porém, chama a atenção o fato de que esses últimos são os servidores da rede que fizeram capacitação em função de outros trabalhos que exercem, e não algo específico para o cargo. “Total impotência de você ter as ferramentas na mão e ninguém te ensinar a usar, você tem prego, chave-de-fenda, pregos, parafuso, mas ninguém te ensina a usar, ninguém te dá o caminho, quando você sabe o que fazer eles não te dão o material e quando você tem o material você não sabe o que fazer... Você tem ferramenta demais para pouco conhecimento. E aí quando você vai adquirindo esse conhecimento, eles vão tirando essas ferramentas de você, então fica um negócio de impotência”.

A viabilidade de condições para o exercício de seu trabalho foi considerada um ponto de reflexão para a implantação da estratégia de ter um gestor jovem atuando na gestão local. A falta de recursos, de estrutura física, assim como a burocracia do serviço foram anunciadas em várias entrevistas como obstáculos para o seu desenvolvimento. “Às vezes você tem uma idéia boa e sabe que vai para frente, vai dar resultado, só que isso demora trezentos anos para liberar verba, vai para análise e às vezes você não tem as ferramentas necessárias nessa sub, nem mesmo em qualquer outra secretaria você consegue. E você acaba se desgastando um pouco”.

Como é funcionário de escolha do subprefeito, a cada troca de governo há a possibilidade de um novo auxiliar da juventude ocupar a função e, dadas a instabilidade e descontinuidade de pessoas no cargo, a criação de propostas que venham a ser políticas públicas torna-se quase inviável. “Por ser cargo comissionado, não há garantias de estabilidade e continuidade, o que gera uma alta rotatividade de pessoas e conseqüente incerteza quanto ao futuro do próprio trabalho. Além da discussão de que este trabalho, da forma com que está desenhado perde sua capacidade de ação a cada troca de mandato de subprefeitos, contribuindo para elaboração de políticas de governo e não de Estado como deveria ser a política pública”.

Outro aspecto importante que as entrevistas deixaram claro foi a falta de conhecimento, tanto da gestão como deles mesmos, sobre algumas diretrizes nos marcos legais que contribuem para nortear o cargo. Os auxiliares entrevistados mencionaram a falta de regras estabelecidas para a execução do seu trabalho, o que contribui para o fortalecimento do seu papel. “Se você coloca uma atribuição o cargo fica muito mais respeitado. Ai você passa a participar de muito mais coisas que você não tinha noção antes. Porque, se o cara não tem atribuição, pra que eu vou passar isso para ele? Ele tem o nome de auxiliar de juventude. Eu acho que o grande mal é esse, porque o auxiliar de juventude, na subprefeitura, é praticamente nulo. Eu acho que esse é o grande problema. Tem vontade, mas não tem corpo, e ai não tem poder”.

Saber se o auxiliar da juventude funcionava como um canal de comunicação entre a gestão e a juventude local foi um dos propósitos da pesquisa, pois o sucesso de uma intervenção está vinculado a como é considerada a perspectiva da juventude de onde ocorre tal proposta. De acordo com a percepção dos entrevistados, a juventude local pouco ou nada conhece do seu trabalho, há um distanciamento entre ele e a sociedade civil jovem. Em poucas situações a comunidade jovem reconhecia seu trabalho. Os motivos apontados seriam: a falta de atratividade ou a inexistência de propostas; o jovem não se sente atraído por temas políticos ou pela subprefeitura; ou, ainda, os jovens 860

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ao redor das subprefeituras não reconhecem o auxiliar como um canal de interlocução e exigibilidade de seus direitos, por ser visto com desconfiança porque ocupa um cargo público. “A população não tem nenhum esclarecimento sobre esse cargo. As portas sempre foram fechadas para a comunidade. Os jovens não conhecem esse cargo. Eles não sabem para que serve a subprefeitura nem o que é o cargo de auxiliar de juventude”.

Além do desconhecimento, a partir do momento em que a participação juvenil institucionalizou-se na gestão local, trouxe um risco: simultaneamente, o mesmo jovem que ocupa um cargo público é tomado como porta-voz de uma comunidade. Caminhar entre estes dois polos exige autonomia e independência por parte desse sujeito pois, enquanto está no serviço, é um representante da juventude, e, quando está na comunidade, é um representante do poder público. “Quando você chega lá e se identifica como prefeitura, ninguém quer conversar, todo mundo leva a prefeitura como funcionário publico, funcionário publico não trabalha, não faz isso, não faz aquilo, e não vê que tem os dois lados... Só que os jovens não sabem disso, e quando você tenta passar isso para eles, eles não acreditam, eles discordam de você, criticam você”.

Uma fala emblemática afirma que, se os jovens de sua comunidade soubessem da sua existência e fossem procurá-lo na subprefeitura, ele não teria o que oferecer como resposta. “Falta informação para o jovem sobre a nossa função, tudo bem. Ai vai supor, chega a informação, auxiliar de juventude, ai os jovens começam a procurar. Onde você vai descarregar toda a sua demanda? Quem vai pegar essas demandas e comparecer, dar um retorno para essas demandas? Então é preocupante”.

A pesquisa tinha a preocupação de se aproximar das práticas dos auxiliares, os dados trazidos do campo empírico mostraram que há poucos ou nenhum projeto construído no nível local. Na descrição dos entrevistados, a maioria dos trabalhos com jovens era relacionada, predominantemente, à produção de eventos, com a característica de não ter continuidade. Estes eventos nem sempre são dirigidos especificamente aos jovens da região, são desenvolvidos para toda a população, e como a maioria das pessoas que participa destas propostas são jovens, são considerados eventos para a juventude. “As ações aqui são muito isoladas, uma vez ou outra tem um show ou outro, acontece uma apresentação de teatro, movimentação do pessoal que pratica esportes... Um pacote já fechado, mas mesmo assim surte efeito, mesmo sendo ações isoladas, porque são pessoas carentes de tudo, de lazer, cultura e entretenimento”.

Se, por um lado, o auxiliar da juventude é um instrumento de responsabilidade pela Coordenadoria da Juventude, com a finalidade de contribuir para a elaboração de políticas públicas para juventude no nível local, por outro, ele é indicado pela subprefeitura e subordinado a ela, o que permite identificar dois importantes canais de gestão pública que deveriam ser complementares, mas têm dificuldades de estabelecer o diálogo necessário. Mostra-se a ausência de articulação entre os diferentes setores da gestão por meio da falta de demarcações claras do papel de cada instituição em relação ao auxiliar da juventude, dificultando a interlocução entre estes órgãos. “Eu acho que o projeto é legal, você ter uma pessoa em cada subprefeitura que realmente consiga políticas publicas para o jovem, mas eu acho que mesmo dentro da subprefeitura tem essa dificuldade... A Coordenadoria não bota nada aqui no auxiliar de juventude, eles não podem nem bater o pé”.

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Uma política destinada à juventude deveria ter, por princípio, um caráter intersetorial, já que cruza transversalmente várias políticas municipais: cultura, esporte, saúde, educação, trabalho. As entrevistas realizadas trouxeram esta preocupação, mas não indicam sinais de que isto aconteça. “Envolver outras secretarias eu acho que a questão. É você ter na Coordenadoria de Juventude realmente uma representação melhor, um diálogo maior com outras secretarias, para estar questionando a questão do jovem mesmo”.

Quando as entrevistas trouxeram a temática de sujeito saudável, as respostas ficaram no nível idealizado, como algo ainda não conquistado. A saúde aparece relacionada à garantia dos direitos básicos. “Um jovem saudável é entendido a partir de um conjunto de determinantes, como o acesso ao trabalho, à educação, às condições de moradia, ao lazer, aos serviços de saúde”.

Os referenciais teóricos que embasaram esta pesquisa têm em comum os pressupostos da participação e da intersetorialidade, entendidos aqui como questões fundamentais para a elaboração de políticas capazes de reorientar os serviços no sentido de diminuir sua fragmentação, respeitar a heterogeneidade juvenil, assim como promover políticas que superem a visão estigmatizante de jovem problema. O auxiliar da juventude, tomado como ator com possibilidade de exercício da função pública, poderia ser um agente promotor de saúde desde que os tantos desafios apontados fossem superados. A Figura 3 objetivou representar graficamente a complexidade do que seria um possível funcionamento efetivo da proposta. A partir de um fluxo constante, os diferentes componentes envolvidos nesse circuito se articulariam e se inter-relacionariam, de forma a contribuir para a qualidade do trabalho dos auxiliares da juventude, em um processo de contínua retroalimentação, tendo o jovem local como grande centro.

JOVEM LOCAL POTENCIALIDADES JUVENIS ÓRGÃOS INTERNACIONAIS NACIONAIS - ESTADUAIS - MUNICIPAIS

X

X

X

X

POLÍTICAS PÚBLICAS DIRIGIDAS À JUVENTUDE

X

X X

X

X

X

X

X

X

X

X

SUBPREFEITURAS

X

OUTRAS SECRETARIAS X X

X

X

X

COORDENADORIA DA JUVENTUDE

X

AUXILIARES DA JUVENTUDE

X

PERFIL ARTICULADOR

X

Figura 3. Representação gráfica para efetividade da estratégia de trabalho dos auxiliares de juventude.

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Considerações finais O referencial teórico-conceitual sobre políticas públicas para a juventude reforça a necessidade de se considerarem as determinações socioeconômicas e a diversidade subjetiva dos jovens para os quais são criadas intervenções e que elas devem ser integrais, descentralizadas e incentivar a participação ativa destes atores sociais. Entendidos como sujeitos de direitos e potencialidades, as políticas públicas devem contribuir para que o jovem possa construir o próprio percurso e exercer sua cidadania. Ao se tomarem os auxiliares da juventude como objeto de estudo, considerou-se que estes, ao ocuparem um canal institucional de participação, pudessem ser articuladores de diferentes setores da gestão local em função da transversalidade do tema Juventude. Entendeu-se que havia um avanço significativo no fato de ter sido criado o cargo, e não havia como desconsiderar sua potência. A conotação de potência da proposta se deu pelo fato de estar apoiada em importantes conceitos: a participação juvenil na gestão pública e a intersetorialidade, por pressupor que a temática de juventude seja articuladora de setores em prol da sua comunidade. Entretanto, os dados colhidos nessa pesquisa mostram que há muitos desafios para o seu funcionamento ideal. O lugar criado para que o jovem ocupasse e atuasse com uma ponte entre o Estado e o jovem local não funcionou como foi proposto, havendo ainda muitos desafios a serem enfrentados. Pôde-se considerar que a proposição e criação desse lugar representaram um avanço, porém houve uma precariedade na forma com que ele foi ocupado. A distribuição dos auxiliares nos espaços da cidade onde há maior concentração de jovens com necessidades de intervenções do poder público foi considerada um aspecto positivo, pois esse instrumento de gestão estava presente nas regiões periféricas do município com concentração de jovens. Entretanto, a existência de apenas um auxiliar em cada subprefeitura foi considerada um dos fatores que influenciaram a inviabilização do diálogo com a diversidade juvenil local. O cargo de auxiliar da juventude foi uma proposição da Coordenadoria da Juventude, porém o funcionário ocupante do cargo é subordinado à subprefeitura. A dificuldade de diálogo entre estes dois canais da gestão pública, que deveriam ser complementares e norteadores do seu trabalho, contribuiu para não legitimar seu lugar na gestão. Neste sentido, o auxiliar da juventude não pôde ser responsabilizado unicamente por não exercer sua função de forma adequada, já que caberia à Coordenadoria advogar a seu favor nas subprefeituras, em nível ampliado, Assim como caberia aos subprefeitos contribuir para que o papel do auxiliar tivesse visibilidade no nível local. A ausência do tema políticas públicas para a juventude nas agendas das subprefeituras explicita que o fato de se instituir uma proposta de trabalho não garante seu funcionamento. O cargo de auxiliar da juventude nas subprefeituras da cidade foi constituído, mas não foi tomado como instrumento de gestão, e o responsável pelo cargo foi reconhecido pela função que ocupava dentro do serviço. Por ser de responsabilidade do subprefeito, a ocupação do cargo deu-se mais por questões políticas do que pela capacidade técnica ou representatividade dos jovens da região. Dentro de uma gestão, com intenções democráticas, não foi considerada a possibilidade de eleição deste representante da juventude local, como uma estratégia de reconhecimento, pela comunidade, deste jovem eleito como um canal de interlocução e exigibilidade de seus direitos. Acrescenta-se, ainda, que a falta de comunicação entre setores dentro das subprefeituras, secretarias e serviços das comunidades contribuiu para a dificuldade de tornar o auxiliar da juventude ator estratégico da intersetorialidade que o tema “juventude” demanda dentro das próprias subprefeituras. Cabe apontar, ainda, a inexistência de estratégias de diálogo com o jovem local, de forma que pudessem ser ouvidas suas opiniões. Outro fator que contribuiu para a não-sustentação da estratégia diz respeito à falta de capacitação técnica para a execução da função destes profissionais. Essa falta de instrumentalização, no sentido de fortalecer seu trabalho, contribuiu com a dificuldade de os auxiliares definirem as atribuições do cargo. A percepção dos responsáveis pelo cargo de auxiliar da juventude trouxe, ainda, um aspecto conflituoso, que induz a uma ambiguidade de expectativas: de um lado, a comunidade que deveria aspirar que o auxiliar da juventude fosse um porta-voz local, que reivindicasse os seus direitos; do outro, o Estado almejando que este personagem fosse um mediador de conflitos no âmbito local. Como COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.853-66, out./dez. 2010

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consequência, o próprio auxiliar, por não conseguir ocupar nenhum dos papéis esperados, relata percepções de impotência, inércia e incredibilidade. Ao estabelecer o entrosamento da promoção da saúde com as políticas públicas dirigidas à juventude, a pesquisa propôs-se a fomentar a elaboração de ações e intervenções que possam auxiliar na maior qualificação desta experiência de gestão, aproximando os referenciais teóricos da prática cotidiana.

Colaboradores Elisabete Agrela de Andrade trabalhou na concepção, análise, interpretação dos dados e redação final do texto. Cláudia Maria Bógus trabalhou na concepção, revisão crítica e redação final do manuscrito. Referências ANDRADE, E.A. Gestão municipal de políticas públicas dirigidas à juventude e possíveis aproximações com a promoção da saúde. 2008. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2008. ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. v.2. BANGO, J. Políticas de juventude na América Latina: identificação de desafios. In: FREITAS, M.; PAPA, F. C. (Orgs.). Políticas públicas: juventude em pauta. São Paulo. Cortez, 2003. p.33-55. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995. BÓGUS, C.M. A promoção da saúde como referencial para a formulação e desenvolvimento de políticas públicas saudáveis. Bol. Inst. Saúde, v.34, p.16-7, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. CASTRO, M.G. Políticas públicas por identidades e de ações afirmativas: acessando gênero e raça, na classe, focalizando juventudes. In: NOVAES, R.; VANNUCHI, P. (Org.). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. p.275-303. CHAVES JÚNIOR, E. Políticas de juventude: evolução histórica e definição. In: SCHOR, N.; MOTA, M.S.F.T.; CASTELO BRANCO, V. (Orgs.). Cadernos juventude, saúde e desenvolvimento. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, 1999. p.41-8. GARIBE, R.N. A descentralização de poder em São Paulo. In: CAPUCCI, P.F.; GARIBE, R.N. (Orgs.). Gestão local nos territórios da cidade: ciclo de atividades com as subprefeituras. São Paulo: Mídia Alternativa Comunicação, 2004. p.13-5. GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Síntese de indicadores sociais 2003. Rio de Janeiro: IBGE, 2004.

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POLÍTICAS PÚBLICAS DIRIGIDAS À JUVENTUDE: ...

ANDRADE, E.A.; BÓGUS, C.M. Políticas públicas dirigidas a la juventud y promoción de la salud: como la propuesta de auxiliares de la juventud ha sido traducida en práctica. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.853-66, out./dez. 2010. Este artículo discute una intervención en políticas públicas dirigida a la juventud del municipio de São Paulo, Brasil, para debatir el funcionamiento y las dificultades que esta propuesta ha encontrado al ser traducida en práctica cotidiana de los gestores municipales. Tiene como objetivo analizar el trabajo de los auxiliares de la juventud y reflexionar sobre los principios y estrategias de la promoción de la salud. Se trata de estudio cualitativo con cuestionarios y entrevistas. El discurso teórico conceptual ha sido convincente en relación a la importancia de este sector social para la construcción de políticas públicas, aunque en la práctica poco efectivo por insuficiente mérito y sustentabilidad empleados.

Palabras clave: Juventud. Adolescente. Políticas públicas. Promoción de la salud. Recebido em 14/09/09. Aprovado em 15/06/10.

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artigos

Envelhecimento bem-sucedido e vulnerabilidade em saúde: aproximações e perspectivas

Henrique Salmazo da Silva1 Ângela Maria Machado de Lima2 Ricardo Galhardoni3

SILVA, H.S.; LIMA, A.M.M.; GALHARDONI, R. Successful aging and health vulnerability: approaches and perspectives. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.867-77, out./dez. 2010. Considering the multidimensional and dynamic nature of the concept of health vulnerability, this article aimed to promote a discussion about the meaning of aging successfully even in the presence of vulnerabilities. We have selected studies which discussed dimensions of vulnerability in the context of old age, exploring personal, social, programmatic and community resources that could make older adults be less vulnerable in situations of dependence and reduced functional capacity. The articulation of the concept of health vulnerability and successful and healthy aging seems to be productive and should be further explored.

Keywords: Health. Vulnerability. Elderly.

Tomando como referência a natureza multidimensional e dinâmica do conceito de vulnerabilidade em saúde, o objetivo deste artigo foi promover uma discussão sobre o que vem a ser envelhecer de forma bem-sucedida mesmo na presença de vulnerabilidades. Foram selecionados estudos que discutiram dimensões da vulnerabilidade no contexto da velhice, problematizando os recursos pessoais, sociais, programáticos e comunitários que poderiam tornar as pessoas idosas menos vulneráveis em face das situações de dependência e capacidade funcional reduzida. Embora pouco aplicada no campo da Gerontologia, a articulação entre o conceito de vulnerabilidade em saúde e o envelhecimento saudável e bem-sucedido parece ser produtiva e precisa ser melhor explorada.

Palavras-chave: Saúde. Vulnerabilidade. Idoso.

Mestrando em Saúde Pública. Rua Felipe Bonani, 59. São Paulo, SP, Brasil. 08.372-040. henriquesalmazo@ yahoo.com.br 2 Curso de Gerontologia, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo. 3 Gerontólogo. 1

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ENVELHECIMENTO BEM-SUCEDIDO E VULNERABILIDADE ...

Introdução A possibilidade de se tomar o envelhecimento como processo positivo e a velhice como etapa da vida que pode ser acrescida de bem-estar, prazer e qualidade de vida vem sendo objeto de pesquisadores e estudiosos interessados em compreender as condições associadas à saúde na última fase do ciclo de vida: a velhice. Nesta discussão, trataremos a velhice como um fenômeno social e vital complexo, sendo determinado pelo curso de vida e pelas experiências e oportunidades socioculturais e históricas acumuladas durante a vida (Lima, Silva, Galhardoni, 2008; Paz, Santos, Eidt, 2006; Glass, 2003). Ancorando-se pela visão de que é possível manter o bem-estar e a qualidade de vida na velhice, os conceitos de envelhecimento ativo e bem-sucedido têm levantado discussões sobre o envelhecimento saudável, enfatizando que a velhice e o envelhecimento não são sinônimos de doença, inatividade e contração do desenvolvimento (Lima, Silva, Galhardoni, 2008; Neri, 2008). Contudo, não existe consenso na literatura a respeito da saúde na velhice. A vulnerabilidade em saúde é um conceito pouco estudado na Gerontologia e que poderá trazer contribuições interessantes para enriquecer essa discussão. Em estudo de revisão, Paz, Santos e Eidt (2006) enumeraram as condições sociais e de saúde que, empiricamente, podem estar envolvidas no contexto da vulnerabilidade em saúde no processo de envelhecimento, entre elas: a capacidade funcional na velhice, a distribuição das doenças crônico-degenerativas, a disponibilidade de programas e serviços, a posição social que os indivíduos ocupam e os recursos sociais disponíveis. Apesar de esses autores apresentarem a relação entre a vulnerabilidade e a saúde, atualmente, a terminologia “vulnerabilidade” tem sido utilizada para se referir aos idosos com susceptibilidade para desenvolver incapacidades4, ou para indicar os idosos com condições sociais desfavoráveis e que possuiriam menos acesso a oportunidades de atingir níveis satisfatórios de saúde e independência. A noção de “risco”, associada ao desenvolvimento de condições desfavoráveis de saúde, aparece subjacente nessas aplicações. Contudo, nem todos os idosos com susceptibilidade a incapacidades as desenvolvem, e nem todos os idosos com condições sociais desfavoráveis possuirão piores condições de saúde (Hildon et al., 2010). Acreditamos que a interação entre saúde, independência e autonomia na velhice solicita um olhar analítico e que pode receber contribuições do conceito de vulnerabilidade em saúde. Oriundo das Ciências Humanas e da Saúde, o conceito propõe que as condições populacionais de saúde ultrapassam as correlações de risco, sugerindo que o estado de saúde é intrínseco aos sujeitos e ao coletivo (Muñoz Sánchez, Bertolozzi, 2007). O conceito possui raiz vinculada aos Direitos Humanos e começa a ser construído na década de 1980 para se compreender a distribuição dos casos de HIV (vírus da imunodeficiência adquirida) em populações de homossexuais norte-americanos. A ampla divulgação de práticas e programas de divulgação contra o HIV contribuiu para a diminuição de casos entre os homossexuais, tornando limitadas as concepções de risco e fatores de risco naquele contexto. O conceito é concebido considerando-se, fundamentalmente, três aspectos: o plano individual, o plano social e o plano programático e de serviços (Muñoz Sánchez, Bertolozzi, 2007; Ayres et al., 2003). De acordo com Ayres et al. (2003), o plano da vulnerabilidade pessoal referese a comportamentos que os indivíduos adotam que podem ser favoráveis ou desfavoráveis para o autocuidado e o estado de saúde. Já o plano da 868

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4 Termo que indica deficiências e limitações no desempenho das atividades e restrições na participação social.


SILVA, H.S.; LIMA, A.M.M.; GALHARDONI, R.

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artigos

vulnerabilidade social enfatiza que as representações sociais, os estigmas e as condições sociais podem ser fatores que contribuem para o status de saúde, valorizando também o acesso aos meios de comunicação e a disponibilidade de usufruir de recursos cognitivos e materiais. Já o plano da vulnerabilidade programática e de serviços sugere que o acesso, a qualidade dos programas e o compromisso das instituições são determinantes importantes para a distribuição das condições de saúde e bem-estar. Cabe destacar que a vulnerabilidade em saúde é um conceito apropriado para estimular respostas sociais e que não possui aplicação direta às questões que envolvem a saúde na velhice. Nesse sentido, pode-se indagar se o idoso é socialmente reconhecido como um cidadão de direitos e que, independentemente da condição social, possui o direito de alcançar o envelhecimento saudável e apresentar uma velhice bem-sucedida (Brasil, 2003). Na Gerontologia, o conceito de velhice bem-sucedida, inicialmente, foi proposto por Havighurst no início da década de 1960, sugerindo que envelhecer bem era produto da participação em atividades sendo essas associadas à satisfação, manutenção da saúde e participação social. A proposição desse conceito foi uma mudança ideológica importante no estudo do envelhecimento, incentivando a investigação sobre os aspectos positivos na velhice e sobre o potencial de desenvolvimento associado ao envelhecimento (Neri, 2008; Rowe, Kahn, 1998). Ao final da década de 1980 e início da década de 1990, o conceito foi resignificado e passou a ser tratado por dois modelos teóricos: o de Rowe e Kahn (1998), que foi baseado nos dados do estudo norte-americano “MacArthur Foundation Study”, e o de Baltes e Baltes (1990), que propôs o modelo teórico de “Seleção, Otimização e Compensação (SOC)” para representar, no âmbito das ciências psicológicas, as possibilidades de plasticidade comportamental e funcional em face das perdas associadas às últimas fases do ciclo de vida. O modelo proposto por Rowe e Kahn (1998) sugere que o envelhecimento bem-sucedido seria composto por três fatores: engajamento com a vida; manutenção de altos níveis de habilidades funcionais e cognitivas e baixa probabilidade de doença; e incapacidade relacionada à prática de hábitos saudáveis para redução de riscos. Embora esses fatores sejam importantes, esse modelo possui limitações por tratar como secundárias as dimensões socioculturais e coletivas associadas à saúde na velhice e por poucos idosos se enquadrarem nesse modelo (Britton et al., 2008). Baltes e Baltes (1990) propuseram que os idosos que conseguem usar mecanismos de compensação e regulação das perdas associadas ao envelhecimento são aqueles que alcançam a velhice bem-sucedida e atingem níveis satisfatórios de independência. Ao propor o modelo SOC, os autores sugerem que os idosos selecionam as tarefas que acreditam possuírem melhor ou ótimo desempenho, excluindo ou evitando aquelas com as quais possuem dificuldades; aperfeiçoam as habilidades que ainda estão preservadas, utilizando esforços para mantê-las; e compensam as habilidades comprometidas, como é o caso das estratégias mnemônicas para manter a eficiência da aquisição e resgate de novas informações. Em face das limitações conceituais do modelo proposto por Rowe e Kahn (1998), Kahn (2003) incentiva que o debate sobre envelhecimento bem-sucedido seja acrescido pelo modelo teórico proposto por Baltes e Baltes (1990) e por investigações que consideram a autopercepção dos idosos sobre o estado de saúde. Além dos modelos destacados, a política de envelhecimento ativo, proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2005), também tem discutido as questões relacionadas à saúde na velhice, enfatizando que envelhecer bem faz parte de uma construção coletiva e que deve ser facilitado pelas políticas públicas e por oportunidades de acesso à saúde ao longo do curso de vida. Desse modo, a definição de envelhecimento ativo baseia-se na “otimização das oportunidades de saúde, participação, segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas” (OMS, 2005, p.13). A priori, a política parte do pressuposto de que, para se envelhecer de forma saudável e bem-sucedida, é preciso favorecer oportunidades para que os indivíduos possam optar por estilos de vida saudáveis e, ainda, fazer controle do próprio status de saúde. Tomando como referência a natureza multidimensional e dinâmica do conceito de vulnerabilidade, o objetivo deste artigo é contribuir para a reflexão sobre a saúde na velhice e problematizar questões importantes no cenário do envelhecimento no Brasil (Alexandre, Cordeiro, Ramos, 2009; Ramos, 2007; Santos, Lopes, Neri, 2007; Camarano, 2006; Ramos, 2003). Para tanto, foram selecionados estudos que 869


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discutiram dimensões da vulnerabilidade no contexto da velhice e que se concentram nas seguintes questões: a) Refletir o que vem a ser envelhecer de forma satisfatória ou bem-sucedida, mesmo na presença de vulnerabilidades. Isso é possível? Em que medida, pensando que os idosos brasileiros possuem baixo nível de escolarização e de renda, e dificuldades no uso e acesso aos serviços de saúde? b) Problematizar que as situações de dependência não implicam, necessariamente, condições de vulnerabilidade, isto é, alguns idosos dependentes e com diferentes graus de limitação funcional dispõem de recursos pessoais, sociais e comunitários que poderiam torná-los menos vulneráveis em saúde e, consequentemente, menos expostos a determinadas condições desfavoráveis de saúdedoença. Imagina-se que esta última perspectiva auxiliará a identificar os pontos que precisarão de intervenções e os recursos que os idosos possuem para manejar as situações de dependência. Espera-se que o presente artigo possa contribuir para a formulação de estudos e práticas no campo da Gerontologia, iniciando, assim, discussões acerca do que vem a ser envelhecer de forma bemsucedida, mesmo na presença de vulnerabilidades.

Vulnerabilidade programática: qual a contribuição das práticas e serviços para o bem-estar na velhice? Pensar na vulnerabilidade programática associada ao envelhecimento bem-sucedido não é um exercício fácil e, muito menos, trivial. É preciso considerar que, nas últimas décadas, o envelhecimento populacional brasileiro aconteceu de forma mais acelerada do que em países europeus, acarretando escassez de programas de suporte e de contingência às necessidades sociais e de saúde da população idosa. Há que se entender, como cita Neri (2005), que o Brasil não atingiu o “walfare state” e não o atingirá tão prontamente, pois, com as desigualdades sociais, econômicas, educacionais, o idoso foi pouco privilegiado. Apesar do Estatuto do Idoso (2003) e da Política Nacional do Idoso (1994), muitas vezes, outras faixas de idade acabam por concorrer com os idosos pelos mesmos recursos. Dessa forma, olhar para a trajetória de concepção da lei que promulga, respectivamente, o Estatuto do Idoso e a Política Nacional do Idoso nos permite ter uma interpretação mais sólida do que ocorre no cenário nacional em relação às ações programáticas empreendidas pelo Estado para combater as vulnerabilidades dos idosos. Partindo da premissa de que a velhice é uma categoria socialmente construída, Groisman (1999) aponta, como marco inicial dessa categoria no Brasil, o ano de 1890, quando surge, no Rio de Janeiro, o asilo São Luiz para a velhice desamparada e, em 1909, um pavilhão para velhos não-desamparados. Borges (2002) atenta para a dificuldade de se traduzirem políticas pensadas para os idosos em ganhos reais. No Brasil, não há estudos longitudinais que se ocupem das questões que envolvem os conceitos de envelhecimento bem-sucedido e vulnerabilidade; além do campo acadêmico, há que se ressaltar que os programas de atenção em Gerontologia são amplos e possuem múltiplas aplicações. Apesar da heterogeneidade entre o perfil dos programas e do público atendido, as práticas e os serviços direcionados de atenção ao idoso possuem, como princípio, algumas diretrizes legais regulamentadas ao longo das décadas de 1990 e 2000. São direcionamentos da Política Nacional do Idoso, do Estatuto do Idoso e da RDC 2005: a valorização da autonomia, do bem-estar, socialização e independência da pessoa idosa. Clark et al. (2008) defendem a hipótese de que, além do formato dos programas, as práticas de atenção ao idoso são fundamentais para o sucesso das intervenções. Esta afirmação se baseia nos resultados que os autores levantaram ao entrevistarem uma população de idosos norte-americanos com renda domiciliar inferior a 200% da média e um grupo populacional de idosos com maior renda. Ao compará-los em relação aos hábitos e crenças sobre a saúde, esses autores encontraram que: o grupo de idosos com menor renda referiu a medicação e o cuidado direto de saúde como os principais meios de autogerenciar a saúde, enquanto os idosos com melhor renda exploraram dimensões como atividade física e engajamento em atividades mentais; as relações com família se baseavam entre trocas de apoio para os idosos de baixa renda e entre visitas para os idosos de alta renda, encontrando-se maior presença de conflitos familiares entre o primeiro grupo; a diferença entre os grupos também se baseou nas expectativas 870

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que os idosos possuíam em relação ao futuro, à saúde e à possibilidade de terem um envelhecimento bem-sucedido. Os idosos de baixa renda referiram que já haviam vivido bastante e citavam poucos projetos para o futuro, enquanto os de alta renda declararam que havia muitos projetos pessoais. Em outras palavras, os dados de Clark et al. (2008) sugerem que as práticas valorizem a percepção dos idosos em relação ao autogerencimento do cuidado em saúde, visto que pode ser uma ferramenta importante para a eficácia das intervenções e para a acessibilidade de populações em desvantagem social. Lima (2003) examinou as relações entre autocuidado e envelhecimento nas narrativas de idosos residentes em regiões empobrecidas do município de São Paulo. A autora partiu da premissa de que assistimos a modos heterogêneos de conceber, de experimentar e de gerenciar o envelhecimento. Apontou que a gestão da velhice, durante muito tempo considerada como própria da vida privada e familiar, nos meados do século XX, ganhou expressão e legitimidade no campo das preocupações sociais e transformou-se em uma questão da esfera pública. Porém, recentemente, o avanço das idades sofreu um processo de reprivatização, que recoloca o envelhecer e seus destinos sobre a responsabilidade individual, abrindo espaço, então, para que a velhice seja relativizada no leque das preocupações sociais do momento (Debert, 1999). Nessa perspectiva, o autocuidado não pode ser compreendido como simples adoção de saberes técnicos para a promoção da saúde, mas como uma atitude prática, relacionada à experiência de envelhecer, às condições de vida e às interações familiares e comunitárias. Trata-se da necessidade de resistir à tendência de responsabilização individual do idoso pela sua saúde, frequentemente associada às propostas de autocuidado. No âmbito da eficácia das intervenções e programas gerontológicos, Huss et al. (2008) conduziram um estudo de meta-análise que avaliou o impacto das visitas domiciliares sobre indicadores como institucionalização, declínio funcional e mortalidade. Os autores incluíram vinte estudos de segmento, publicados em bases de dados, como PUBMED e MEDLINE, entre os anos de 2001 e 2007. Apesar da heterogeneidade dos dados e do desenho metodológico, os resultados indicaram que houve associação estatisticamente significativa entre visitas domiciliares e preservação ou aumento do status funcional entre os dados que incluíram avaliações clínicas (p = 0.02). Já para o indicador mortalidade, as visitas parecem ter sido mais protetoras para os idosos jovens (risco relativo = 0,74) do que entre os idosos mais longevos (risco relativo = 1,14). Para as medidas institucionalização e tipos de intervenções, não foram encontradas associações estatísticas, fator que pode ter sido atribuído à heterogeneidade dos dados. Este estudo revela o papel protetor de programas de visita e atenção domiciliar, sobretudo entre os idosos mais jovens, provavelmente com melhor estado de saúde e com maior probabilidade de se beneficiarem da intervenção ao longo do tempo. Mellis et al. (2008) conduziram um estudo randômico para comparar o custo e efetividade de um programa de atenção multidisciplinar e de um programa convencional, ambos direcionados para idosos frágeis e vivendo em comunidade. Adotou-se, no estudo, o critério de Fried et al. (2001), em que o fenótipo de fragilidade engloba: perda de peso não intencional (10% do peso inicial ao mês); relato de fadiga e exaustão; diminuição da força de preensão; redução das atividades físicas; e diminuição da velocidade para executar a marcha. Os custos foram calculados pelos cuidados prestados e os recursos materiais e humanos envolvidos; já a efetividade foi avaliada por meio do desempenho funcional e cognitivo, com intervalo de seis meses entre as avaliações. Os resultados levantados pelos autores indicaram que, dos 151 idosos reavaliados, 34 foram tratados de forma bem-sucedida, demonstrando aumento de cerca de dez pontos nas medidas de desempenho funcional e estabilidade de desempenho cognitivo. Desses 34, 27 pertenciam ao grupo de idosos que receberam atenção multiprofissional, e o estudo revelou que a atenção multidisciplinar propiciou redução dos gastos para hospitalização, institucionalização e cuidados de enfermagem; embora tenha solicitado aumento dos gastos para cuidados adicionais, home-care, cuidados diários e refeições recebidas em casa. A estimativa de custo-efetividade indicou que, para se obterem 95% de chances de sucesso no tratamento, seria necessário investir 34 mil euros. Os investimentos do governo em programas de auxílio e renda também parecem ter uma influência positiva sobre as medidas de saúde na velhice. Neri e Soares (2007), por meio dos dados da PNAD – 871


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Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios, estimaram o impacto das políticas públicas de transferência de renda sobre a autoavaliação de saúde e sobre o acesso aos serviços de atenção em saúde, comparando os dados das populações entrevistadas em 1998 e em 2003. Os dados analisados pelos autores indicaram que a proporção de idosos que autoavaliaram a saúde como boa ou muito boa subiu de 36,5% em 1998 para 40,8% em 2003. Entre os idosos com idade superior a 65 anos e com renda domiciliar de meio salário-mínimo, verificou-se diminuição do percentual de idosos que estiveram acamados de 1998 a 2003. Em face dos dados apresentados, as intervenções de saúde podem considerar o contexto em que os idosos se inserem e o compartilhamento de decisões na proposição de ações que almejam promover o bem-estar e a manutenção da independência do idoso (Lima, Silva, Galhardoni, 2008). Nessa perspectiva, usar a senecultura (momento em que o indivíduo se prepara para o envelhecimento e a sociedade se prepara para o envelhecimento do indivíduo) seria fundamental para: consolidar programas baseados na prevenção, promoção da saúde, mobilização comunitária, formação de profissionais sensíveis às questões do envelhecimento e ampliação do acesso a informações sobre saúde e qualidade de vida. Esses elementos permitiriam minimizar as situações de vulnerabilidade social e vulnerabilidade programática, tornando as intervenções qualificadas e compromissadas com as condições de vida dos idosos atendidos (Jacob-Filho, 2006; Moon, 2002). É importante lembrar que, como cita Sposati (2001), é preciso desenvolver uma política que favoreça não só as pessoas com vulnerabilidade social, mas toda a população, fazendo com que todos tenham as mesmas oportunidades de acesso. Cabe ao Estado pensar na efetivação dos princípios propagados na Constituição de 1988 a respeito da integralidade em saúde, fugindo das falsas premissas de que: 1) a velhice sempre está diretamente associada à doença; 2) que o envelhecimento é um processo que pressupõe homogeneidade; 3) que os idosos são sujeitos passivos das intervenções propostas pelos serviços e rede de atenção social e de saúde, não dispondo de recursos pessoais e sociais que poderiam influenciar o resultado das intervenções; e 4) que fatores intrínsecos e extrínsecos, associados ao gênero e classe social, não mudam o peso da “equação” e que isso não muda diretamente os padrões de envelhecimento saudável e patológico (Neri, 2005).

Vulnerabilidade individual: existem recursos pessoais que poderiam favorecer a independência? Os estudos que se concentraram em investigar o impacto de recursos pessoais5 sobre o estado de saúde e capacidade funcional consideraram, fundamentalmente, dois níveis de análise: os idosos saudáveis e os idosos que possuem valores intermediários de capacidade funcional (Kempen et al., 2006; Seeman, Chen, 2003). Kempen et al. (2006), ao estudarem idosos saudáveis, investigaram a presença de fatores de proteção6 e de risco sobre a trajetória da funcionalidade na velhice. Os autores avaliaram 1.765 idosos no intervalo de oito anos (entre 1993 e 2001). Os resultados revelaram que, entre o grupo com maior declínio funcional, foi observada maior projeção de doenças crônico-degenerativas, altos níveis de neuroticismo e maior incidência de sintomas depressivos e avaliação negativa da saúde. Ajustando-se os dados segundo idade, gênero e anos de estudo, os autores encontraram que a autopercepção positiva da saúde e elevados níveis de autoeficácia7 foram fatores de proteção para o desempenho funcional, enquanto os sintomas depressivos e a presença de baixo senso de domínio foram fatores 872

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5 Termo empregado, nesta discussão, como recursos que são inerentes ao indivíduo e que englobam autopercepção, comportamentos, relações interpessoais, satisfação pessoal e bemestar. 6 Termo empregado, em estudos epidemiológicos, como um fator de exposição que minimiza as chances de os indivíduos apresentarem o evento observado, nesse caso, a diminuição da funcionalidade. 7 Avaliação individual de que as ações pessoais fazem a diferença nas relações interpessoais e nos aspectos de funcionamento da vida diária.


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associados a menores níveis de desempenho. Estes dados revelam que somente evitar os fatores de risco como medida preventiva limita a análise de fatores de proteção, apresentando-se como substancialmente diferentes. Seeman e Chen (2003) analisaram a relação entre variáveis psicossociais e de estilo de vida sobre o nível de funcionalidade entre idosos com doenças crônico-degenerativas - entre elas: hipertensão, diabetes, câncer, doenças cardiovasculares e fraturas - e idosos com ausência de doenças crônicodegenerativas. Os autores encontraram que, na avaliação de segmento (2,5 anos), o indicador “ter pouco conflito com os outros” foi preditivo de menor declínio funcional entre os idosos com diabetes e depressão; em idosos com câncer, o nível de autoeficácia (crenças nas próprias habilidades) se associou com estabilidade de desempenho; e os idosos com doenças cardiovasculares tiveram menor declínio quando reportaram maior suporte emocional. Em face dos resultados apresentados, os autores sugeriram que os fatores sociais e psicológicos foram críticos para a funcionalidade em idosos com doenças crônico-degenerativas. Outra linha de investigação se concentra em mapear recursos internos e externos orientados para adaptação e enfrentamento aos estressores e às condições de saúde, o que poderia tornar os idosos com limitações funcionais menos susceptíveis a determinados eventos de saúde-doença (Bastistone, Fortes, Yassuda, 2007; Neri, 2007; Piazza, Charles, Almeida, 2007; Néri, Fortes, 2006; Kirby, Coleman, Daley, 2004; Poon et al., 2003). Produto das ciências psicológicas, o estudo do senso de ajustamento psicológico propõe que, mesmo na presença de baixos níveis de saúde física e níveis de funcionalidade reduzidos, os idosos podem apresentar níveis satisfatórios de qualidade de vida e bem-estar subjetivo, o que, potencialmente, atenuaria a velocidade de progressão do declínio funcional (Park-Lee et al., 2009; Bowling et al., 2007; Néri, 2007; Ostir, Ottenbacher, Markides, 2004; Pennix, Guralnik, BandeenRoche, 2000). Pennix, Guralnik e Bandeen-Roche (2000) investigaram o impacto da vitalidade emocional em 1.002 idosas com idade superior a 65 anos e com desempenho limitado para duas ou mais Atividades de Vida Diária (AVDs). Os autores definiram vitalidade emocional como um constructo que envolveu senso de domínio pessoal, senso de felicidade e baixos níveis de depressão e ansiedade. Os resultados encontrados revelaram que 351 mulheres idosas possuíam vitalidade emocional, sendo que a vitalidade emocional esteve significativamente associada à preservação das AVDs e à manutenção do desempenho funcional. Alguns estudos, como os de Ostir, Ottenbacher e Markides (2004) e Park-Lee et al. (2009), investigaram o impacto dos afetos positivos sobre a incidência do fenótipo de fragilidade proposto por Fried et al. (2001). Ostir, Ottenbacher e Markides (2004) acompanharam 1.558 idosos não frágeis durante o intervalo de sete anos e encontraram incidência de fragilidade em 7,9% do total dos idosos pesquisados. No estudo, os afetos positivos, definidos como estados de contentamento e felicidade, diminuíram o risco de os idosos apresentarem os critérios do fenótipo de fragilidade na avaliação final. Park-Lee et al. (2009), na mesma direção, estudaram a relação entre os afetos positivos e a incidência de fragilidade em 3.167 idosos cuidadores e 617 não cuidadores, avaliados no intervalo de dois anos. A projeção de afetos positivos e a incidência de fragilidade foram similares em ambos os grupos, todavia, o grupo de idosos cuidadores obteve maiores níveis de estresse percebido. No estudo de Bowling et al. (2007), em uma amostra de 999 idosos ingleses, cerca de 31% apresentavam declínio significativo nas habilidades funcionais. Destes, 62% referiam a própria saúde como boa. Dentre outros fatores, foram preditivos para a autoavaliação positiva de saúde: possuir maior percepção de controle sobre a vida, o envolvimento social e possuir maior rede de contatos sociais. Em outras palavras, as evidências apresentadas sugerem que o estudo do bem-estar, saúde e qualidade de vida na velhice também poderia considerar como os idosos, mesmo na presença de baixo desempenho funcional, adaptam-se e utilizam estratégias pessoais e/ou recursos internos e externos frente aos baixos níveis de desempenho. A articulação dessas questões com as intervenções gerontólogicas precisa ser melhor elucidada, estabelecendo a relação com a vulnerabilidade social e o impacto das condições sociais na trajetória de saúde ao longo do curso de vida.

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Considerações finais Em geral, a contribuição dos estudos populacionais e conduzidos com a população idosa centra-se na possibilidade de se mapear objetivamente o perfil de saúde dos idosos, fornecendo dados importantes sobre o impacto das condições sociais para as medidas objetivas e subjetivas de saúde. Apesar das contribuições, as estimativas de risco são limitadas quando se ampliam para o plano individual e subjetivo dos indivíduos (Ayres et al., 2003). Cabe destacar aqui os limites do conceito de vulnerabilidade e o desafio de articulá-lo com dimensões da saúde na velhice. Assim como descrevem Ayres et al. (2003), ao utilizarmos o conceito, corremos o risco de vitimizarmos os indivíduos e de não produzirmos respostas sociais que produzam o efeito desejado (ampliação paralisante). Ao se identificarem grupos populacionais, pode-se tutelar ou vitimizar os indivíduos, propiciando discriminações negativas. No mesmo sentido, o efeito paralisante do conceito pode advir da amplitude e complexidade para transformar as situações de vulnerabilidade em respostas sociais, traduzindo-as para o plano das políticas públicas e das intervenções (Ayres et al., 2003). Na discussão levantada, a articulação com as questões relativas ao processo de envelhecimento poderá exigir respostas sociais que nem sempre serão atingidas; e ainda podem propiciar a discriminação de idosos com maiores ou menores níveis de vulnerabilidade. Como menciona Debert (1999), é preciso ampliar a concepção socialmente vigente de que os idosos são os únicos responsáveis pela condição de saúde que atingem na velhice. A discriminação, advinda da adoção de hábitos de vida não favoráveis ao longo do curso de vida, precisa ser desmistificada, enfatizando-se a necessidade de se oferecerem oportunidades iguais para o acesso à saúde. Ressaltamos aqui que procuramos desenvolver uma primeira tentativa de aproximar o conceito de vulnerabilidade em saúde à saúde na velhice, apresentando limitações que se relacionam ao alcance dos estudos descritos e por não ter abrangido toda a complexidade do fenômeno. No contexto de populações com vulnerabilidade social, os estudos poderão traçar metas para o enfrentamento dos determinantes sociais e para a solução dos problemas levantados pelos próprios idosos. Nesse sentido, problematizar temas que envolvem o cotidiano dos idosos com vulnerabilidade social, programática e/ou individual, poderia resultar na valorização do papel do idoso como sujeito de direitos, e, da comunidade, como corresponsável para a promoção do envelhecimento bem-sucedido. Como indica Clark et al. (2008), é preciso oferecer condições para que os idosos, em especial os idosos de baixa renda, possam autogerenciar a saúde e ter outras perspectivas em relação aos significados de envelhecimento bem-sucedido e das estratégias para alcançá-lo. Em síntese, a articulação do conceito de vulnerabilidade às questões levantadas parece ser produtiva, apesar de ainda pouco explorada na literatura. As propostas de práticas à luz do conceito de vulnerabilidade, sugeridas neste trabalho, são: estratégias que os próprios idosos utilizam para alcançar a saúde e o bem-estar; os recursos individuais e intrínsecos aos idosos e que poderiam ser utilizados como meios de favorecerem as condições de saúde; a disponibilidade e a adequação de recursos e serviços direcionados à população idosa, em especial os idosos com baixa renda e com algum tipo de limitação funcional; as respostas sociais incentivadas e fomentadas pelos idosos. Para tanto, é fundamental se oferecerem condições estruturais para que as respostas sociais às situações de vulnerabilidade ocorram, envolvendo: profissionais, a sensibilização do poder público, organizações e movimentos sociais, cuidados comunitários de longa duração, empresas e profissionais que atuam na capacitação e formação (Moon, 2002). São necessários esforços coletivos que possam minimizar as situações de vulnerabilidade da população idosa brasileira, favorecendo, assim, o alcance do envelhecimento saudável e com qualidade de vida.

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Colaboradores Henrique Salmazo da Silva, Ângela Maria Machado de Lima e Ricardo Galhardoni trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALEXANDRE, T.S.; CORDEIRO, R.C.; RAMOS, L.R. Fatores associados à qualidade de vida de idosos ativos. Rev. Saude Publica, v.43, n.4, p.613-21, 2009. AYRES, J.R.C.M. et al. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C.M. (Orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p.117-40. BALTES, P.B.; BALTES, M.M. Successful aging: perspective from the behavioral sciences. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. BATISTONE, S.S.T.; FORTES, A.C.G.; YASSUDA, M.S. Aspectos psicológicos do envelhecimento. In: FORLENZA, O.V. (Org.). Psiquiatria geriátrica: do diagnóstico precoce à reabilitação. São Paulo: Atheneu, 2007. p.32-7. BORGES, M.C.M. Gestão participativa em organizações de idosos: instrumentos para a promoção da cidadania. In: FREITAS, E.L. et al. (Eds.). Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. p.1037-41. BOWLING, A. et al. Quality of life among older people with poor functioning: the influence of perceived control over life. Age Ageing, v.36, n.3, p.310-5, 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto do idoso. 1.ed. 2.reimpr. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. BRITTON, A. et al. Successful aging: the contribution of early-life and midlife risk factors. J. Am. Geriatr. Soc., v.56, n.6, p.1098-105, 2008. CAMARANO, A.A. Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica. In: FREITAS, E.L. et al. (Eds.). Tratado de geriatria e gerontologia. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006. p.88-105. CLARK, D.O. et al. The meaning and significance of self-manegement among socioeconomically vulnerable older adults. J. Gerontol. B Psychol. Sci. Soc. Sci., v.63B, n.5, p.5312-8, 2008. DEBERT, G.G. A reinvenção da velhice: sociabilização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. FRIED, L. et al. Frailty in older adults: evidence for a phenotype. J. Gerontol. A Biol. Sci. Med. Sci., v.56, n.3, p.146-56, 2001. GLASS, T. Successful aging. In: TALLIS, R.C.; FILLIT, H.M. (Eds.). Brocklehurt´s textbook of geriatric medicine and gerontology. 6.ed. Nova York: Churchill Livingstone, 2003. p.173-99. GROISSMAN, D. A infância do asilo: a institucionalização da velhice no Rio de Janeiro da virada do século. 1999. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Medicina Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1999. HILDON, Z. et al. Examining resilience of life in the face of health-related and psychosocial adversity at older ages: what is “right” about the way we age? Gerontologist, v.50, n.1, p.36-47, 2010. HUSS, A. et al. Multidimensional preventive home visit programs for communitydwelling older adults: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. J. Gerontol. A Biol. Sci. Med. Sci., v.63, n.3, p.298-307, 2008.

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artigos

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SILVA, H.S.; LIMA, A.M.M.; GALHARDONI, R. Envejecimiento feliz y vulnerabilidad en salud: aproximaciones y perspectivas. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.867-77, out./dez. 2010. Tomando como referencia la naturaleza multi-dimensional y dinámica del concepto de vulnerabilidad en salud, el objetivo de este artículo es el promover una discusión sobre lo que viene a ser envejecer con éxito incluso en presencia de vulnerabilidades. Se han seleccionado estudios que discuten dimensiones de vulnerabilidad en el contexto de la vejez, encarando la problemática de los recursos personales, sociales, programáticos y comunitarios que podrían tornar a las personas ancianas menos vulnerables ante situaciones de dependencia y capacidad funcional reducida. Aunque poco aplicada en el campo de la Gerontología, la articulación del concepto de vulnerabilidad en salud y el envejecimiento saludable y feliz parece ser productiva y ha de ser mejor utilizada.

Palabras clave: Salud. Vulnerabilidad. Anciano.

Recebido em 27/08/09. Aprovado em 15/06/10.

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artigos

O corpo envelhecido: percepção e vivência de mulheres idosas *

Maria das Graças Melo Fernandes1 Loreley Gomes Garcia2

FERNANDES, M.G.M.; GARCIA, L.G.The aged body: perception and experience of elderly women. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.879-90, out./dez. 2010. This qualitative study aimed to analyze aged women’s perception and experience concerning their bodies, considering the gender perspective. It was carried out in the elderly group Juventude Acumulada, located in the popular neighborhood Cruz das Armas, in the city of João Pessoa, northeastern Brazil. The empirical material was collected through individual semi-structured interviews and reflection workshops, involving eighteen senior women, and was examined by means of discourse analysis. The results show that some senior women see their bodies as fragile, modified, sick and ugly bodies; bodies that bring them negative experiences. On the other hand, others demonstrate satisfaction with their corporal dimension, noticing it as still beautiful and conserved. As for the determinants of their physical aging, the women mentioned maternity, overload of domestic work and domestic violence.

Keywords: Aging. Old age. Gender. Body.

Este estudo, de natureza qualitativa, teve como objetivo analisar a percepção e vivência de mulheres idosas acerca de seus corpos, considerando a perspectiva de gênero. Sua efetividade se deu no grupo de convivência de idosos Juventude Acumulada, localizado no bairro popular de Cruz das Armas, do município de João Pessoa, PB. O material empírico foi obtido por meio de entrevistas individuais semiestruturadas e oficinas de reflexão, envolvendo 18 mulheres idosas, e trabalhado pela análise de discurso. Os resultados apontam que algumas idosas veem seus corpos como frágeis, modificados, doentes e feios, trazendo-lhes vivências negativas. Já outras demonstram satisfação com sua dimensão corporal, percebendo-a ainda bonita e conservada. Quanto aos determinantes do seu envelhecimento físico, as depoentes referiram a maternidade, sobrecarga de trabalho doméstico e violência conjugal.

Palavras-chave: Envelhecimento. Velhice. Gênero. Corpo.

Elaborado com base em Fernandes (2009), investigação aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba. 1 Departamento de Enfermagem Clínica, Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Rua Engenheiro Normando Gomes de Araújo, 132. Bessa, João Pessoa, PB, 58.037-125. graacafernandes@ hotmail.com 2 Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFPB. *

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Introdução O envelhecimento constitui um processo que, no plano individual, implica trajetórias de vida e, no plano coletivo, se constrói sob diferentes influências de ordem sociocultural. Já a velhice denota o estado de “ser velho”, ou seja, a condição resultante do processo de envelhecimento que gerações têm vivenciado no âmbito de contextos específicos de seu ciclo vital (Lima, Silva, Galhardoni, 2008). A natureza da experiência desses processos influencia a percepção do corpo envelhecido por parte dos idosos. Vale ressaltar que o corpo humano como sistema biológico é afetado, também, pela religiosidade, pela ocupação, pelo grupo familiar, pela classe e por outros intervenientes sociais e culturais, a exemplo do gênero (Rodrigues, 2006). Considerando essa perspectiva, o corpo é a interface entre o social e o individual, entre a natureza e a cultura, entre o fisiológico e o simbólico (Le Breton, 2007). Assim sendo, o comportamento evidenciado pelos idosos com relação à vivência de sua corporeidade é modelado representacional e socialmente. É usual percebermos, com o olhar do senso comum, que eles ostentam posições e condutas que advêm da dimensão natural inscrita em seus corpos, por meio do social, especialmente as mulheres. As diferenças biológicas constituem os traços estruturais em torno dos quais as sociedades humanas acrescentam diversos detalhes para definir socialmente o que significa o homem e o que significa a mulher (Le Breton, 2007). Considerando isso, incapaz de pensar tais diferenças, o discurso médico impingiu à mulher a representação que a subordina a uma matriz biológica e procriadora, destinando ao trato do seu corpo um nível de intervenção mais acentuado. Segundo Barros (2004), o cuidado e a intervenção no corpo feminino se iniciam cedo na trajetória de vida das mulheres e, hoje, alcançam a velhice por meio do controle dos sinais corporais do envelhecimento com cirurgias, reposições hormonais, remédios e outros, considerando o poder aquisitivo e a pressão simbólica presentes sobre cada classe social. Nesse cenário, os corpos femininos tornam-se o que Foucault (1987) chamou de corpos dóceis; aqueles cujas forças e energias estão habituadas ao controle externo, à transformação e ao aperfeiçoamento, menos orientados para o social (Bordo, 1997). Nesse mesmo entendimento, Bourdieu (1999) ressalta que o mundo social exerce uma espécie de “golpe de força” sobre os sujeitos e imprime, em seus corpos, não apenas um modo de estar e de ser, mas todo um programa de percepção. O autor destaca ainda que a vivência dessa realidade, por parte dos indivíduos, é diversificada conforme o gênero e a geração. Motta (2002) e Negreiros (2004) salientam que a velhice afeta de modo diferencial homens e mulheres. Como sujeitos que viveram processos socializadores muito diversos em sua juventude e trajetória geral de vida, por mais que tenham, no processo de envelhecimento, experiências que sejam ou aparentem ser comuns à condição etária, a condição de gênero enseja experiências, papéis e representações distintas, o que pode influenciar, também de modo diferencial, o modo de o idoso perceber e vivenciar sua velhice e sua corporalidade. Attias-Donfut (2004) discorre que as desvantagens femininas na velhice não se limitam a sua frequente inferioridade econômica, sendo elas significativas também num plano mais simbólico, que é o da identidade pessoal associada à imagem corporal. Considerando nossa experiência no trato com idosos tanto na assistência à saúde como na pesquisa, bem como no âmbito de grupos e na comunidade, também verificamos as observações aqui pontuadas. Não obstante, nem sempre as expectativas dos que lidam com as questões relativas ao envelhecimento correspondem às demandas das mulheres referentes à sua senescência, emergindo, assim, a importância de desvelarmos seus posicionamentos ante tal realidade com base em seus próprios relatos, o que nos conduziu à realização deste estudo, cujo objetivo foi analisar a percepção e vivência de mulheres idosas acerca de seus corpos, considerando a perspectiva de gênero.

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Estratégias metodológicas Este estudo, de caráter qualitativo, que expõe o olhar de mulheres sobre seu corpo envelhecido, foi efetivado no período de abril a junho de 2008, no grupo de convivência de idosos Juventude Acumulada, localizado no bairro popular de Cruz das Armas, do município de João Pessoa, PB, tendo como participantes 18 mulheres, de baixo nível socioeconômico e instrucional, que aceitaram, livremente, participar da investigação após a pesquisadora esclarecer seus objetivos e seus passos operacionais. Para a produção do material empírico, utilizamos duas estratégias: entrevista individual semiestruturada e oficina de reflexão. Quanto às entrevistas, estas foram subsidiadas pelas questões: pensar no corpo envelhecido lhe traz que sentimentos?; como a senhora percebe seu corpo nessa fase da vida?; pensando em toda a sua vida como mulher, o que mais contribuiu para o envelhecimento de seu corpo?. Os depoimentos foram gravados em fita cassete e, logo após cada entrevista, eram transcritos, em sua íntegra, pelas pesquisadoras. Quanto às oficinas, foram realizadas duas: na primeira, as mulheres, após um período de descontração com atividades de relaxamento físico e mental, elaboraram seus corpos em argila e, posteriormente, completaram a frase: ao construir o meu corpo na velhice veio em minha mente...; na segunda oficina, proporcionamos às idosas um encontro com o espelho e lhes solicitamos que, concomitantemente a essa contemplação de sua imagem corporal, tentassem transmitir, por meio da linguagem verbal, sentimentos e percepções que vieram às suas mentes sobre o seu corpo. A análise do material empírico apreendido ao longo da coleta de dados foi realizada com base na proposta de análise de discurso de Fiorin (2005). Esse procedimento teve início com a impressão, leitura e releitura dos discursos e recorte dos textos que continham os temas geradores das categorias referentes ao posicionamento social das idosas relativo ao objeto em questão, o qual foi ancorado no referencial de gênero. O enfoque básico da análise de discurso, na perspectiva de Fiorin (2005), é a compreensão de que o discurso é uma posição social, devendo, assim, ser analisado.

Resultados e discussão As percepções e vivências das mulheres relativas aos seus corpos no contexto do envelhecimento, expressas no âmbito das entrevistas, bem como das oficinas de reflexão, convergiram em três categorias: “as transformações negativas da velhice sobre o corpo”; as “lembranças do corpo jovem” e a “satisfação com o corpo”. A categoria relativa às transformações negativas da velhice sobre o corpo foi subsidiada por discursos que apontam para modificações na aparência – pele enrugada, cabelos brancos – e alterações da saúde, expressando que o tempo deixou sobre ele suas marcas: “que susto! Quando eu era nova, eu era um chuchu; agora, sou um maracujá murcho, mas me amo assim mesmo”. (sra. D, 69 anos) “como eu era linda! Hoje estou tão diferente! O rosto envelhecido, com rugas. Meus cabelos estão brancos. Os dentes não são mais os mesmos. Minha pele não é lisinha. O corpo não é mais durinho. A saúde é pouca. Não posso mais correr. Saudades!”. (sra. L, 67 anos) “como o meu corpo mudou! A flexibilidade dos meus seios, as rugas em meu rosto! Não tenho a ligeireza de antigamente, tudo mudou. É um corpo cansado, cheio de dor, com muita artrose e precisando de cuidados físicos. Esse corpo quer destruir a minha saúde”. (sra. C, 70 anos) “quando me contemplei no espelho, me veio à mente como o tempo muda a gente. Eu era bonita. Mas, hoje vejo a diferença: a pele envelhecida. Mas, tudo tem seu tempo, eu já tive meu momento”. (sra. N, 61 anos)

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“acho que, quando a gente se olha no espelho e não gosta mais, é só na velhice. Eu não tenho mais vontade. Quando eu era novinha, casadinha de novo, eu adorava me arrumar no espelho, mas, agora, eu não ligo”. (sra. D, 69 anos)

Se antes, quando jovens, as idosas procuravam o espelho porque este servia para confirmar sua autoestima, agora, que mostra a imagem do antimodelo, quiçá, deve ser evitado, para não “desconfirmar” a mesma. Tal imagem esboça nelas uma reação que sintetiza o sentimento de todas: “que susto!” Essa reação se consubstancia quando uma das mulheres percebe a metamorfose de um chuchu num maracujá murcho, inscrita na sua própria dimensão corporal, condição difícil de ser assimilada, apesar do sentimento de resignação: “[...] hoje vejo a diferença [...]. Mas, tudo tem seu tempo, eu já tive meu momento!”.

Assim, as mudanças corporais percebidas pelas mulheres conduziram-nas, a exemplo dessa senhora, a elaborarem uma ressignificação de seus corpos e do sentido de suas vidas. Essa ressignificação se tornou possível graças à aceitação da mudança da imagem e das funções corporais, emergindo uma conformação frente a um evento ao qual não se pode resistir de modo absoluto – o envelhecimento. Ante essa situação, as mulheres se confortam com as lembranças do corpo jovem: “veio em minha mente os anos cinquenta, quando eu brincava com as minhas irmãs, fazendo esse mesmo corpo, só que eu era magrinha, bem despreocupada. Hoje em dia, é diferente, é tanta preocupação!”. (sra. A, 78 anos) “este corpo envelhecido me trouxe lembranças. Lembranças da minha mocidade. De quando eu era mais forte, cheia de pensamentos e projetos”. (sra. S, 65 anos) “Ah, espelho! Quem eu era, como estou hoje?”. (sra. P, 70 anos)

Segundo Eco (1989, p.106), “o espelho registra aquilo que o atinge de forma como o atinge. Ele diz a verdade de modo desumano, como bem sabe quem – diante do espelho – perde toda e qualquer ilusão sobre a juventude”. Mesmo que se queira negar a velhice, seus primeiros e mais evidentes sinais se manifestam na aparência, e isto ninguém ignora, de forma que o espelho passa a ser o principal acusador de sua manifestação, o grande vilão. Com esse mesmo sentimento de repulsa da velhice, ante o espelho, Simone de Beauvoir fecha sua obra “La force des choses”, publicada quando ela tinha 55 anos, com a seguinte descrição: [...] No fundo deste espelho, a velhice me espreita [...] Ela me tem. Muitas vezes me detenho, ofuscada, diante desta incrível coisa que é o meu rosto. Compreendo Castiglione que tinha quebrado todos os espelhos [...] Vejo meu antigo rosto onde se instalou uma doença da qual não vou me curar. [...] A velhice me infecta também o coração [...] A morte não é mais, na distância, uma aventura brutal; ela obceca meu sono; acordada, sinto sua sombra entre o mundo e mim mesma: ela já começou. (Beauvoir, 1963, p.198)

Ao descrever seu autorretrato na velhice, Swain (2003, p.2) expressa: [...] Seria eu a outra de mim mesma? Minha imagem no espelho é de uma estrangeira, renovada cada dia, aqui uma dobra, ali uma ruga, uma expressão nos olhos, esta tristeza que se acumula na experiência, a neve que, cada vez mais, possui meus cabelos.

No entendimento de Dourado (2006), o envelhecimento do “corpo biológico”, aquele sobre o qual não há palavra que imponha ordem, mostra-nos uma imagem não mais condizente com o ideal que guardamos. A imagem do espelho não corresponde à imagem de memória, pois antecipa ou confirma a velhice, enquanto a imagem da memória se mantém idealizada. 882

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Motta (2002) discorre que há sempre um sentimento de brusquidão na (auto) percepção do corpo envelhecido, especialmente pelo sentimento em relação ao que lhe acontece: enrugamento, encolhimento, descoramento dos cabelos, enfeiamento, menor agilidade, problemas de saúde e outras perdas. Neste caso, sendo o corpo um veículo da denúncia dos limites, ele produz angústia e dor. Como colocou Elias (2001, p.80), “não é fácil imaginar que nosso corpo, tão cheio de frescor e muitas vezes de sensações agradáveis, pode ficar vagaroso, cansado e desajeitado. [...] No fundo, não o queremos”. Talvez por isso, Goldfarb (1998, p.23) saliente que “a velhice, como alguma coisa da ordem do diabólico, não pode ser nomeada sem provocar medo e rejeição”. Segundo Py e Scharfstein (2001), no curso do envelhecimento, o ser humano é impelido a confrontar a desqualificação do corpo envelhecido, marcada pelos limites inexoráveis do tempo que marcam essa fase da vida. Esses limites são representados, não só pelas modificações estéticas do corpo, mas, também, pelo seu adoecimento, situação expressa de forma muito nítida na fala das mulheres: “a saúde é pouca – muita artrose, muitas dores [...]. Não tenho a ligeireza de antigamente”; “[...] Esse corpo quer destruir minha saúde [...]. É um corpo que precisa de cuidados físicos”. Assiste-se, assim, a um verdadeiro desfile de órgãos deteriorados, membros desobedientes e sintomas intermináveis. Nesse contexto, o corpo deixa de ser aliado confiável para se converter em um inimigo que é necessário controlar e dele cuidar constantemente (Goldfarb, 1998). Ante essas faltas (saúde, agilidade, beleza) evidenciadas num corpo que é o limite e a extensão do contato/relação com o mundo, as idosas que não gostam de seus corpos apresentam, como indicadores comuns, o recordar do corpo jovem que possuíam tempos atrás, na mocidade. Elas comparam as atividades executadas quando jovens e atualmente, em função do corpo já estar cansado, envelhecido, já não respondendo com eficiência, julgam possuir um corpo de certa forma imperfeito ou “in-válido”, como refere Virilio (2000). Nesse processo, percebemos que a expressão “minha mocidade” traz em si um conjunto de representações feitas sobre o passado, que, ressemantizado, passa a antagonizar com o presente. Vale salientar que o corpo revela os meandros e as curvas da história pessoal, incluindo a capacidade do indivíduo de transgredir, reagir e autoafirmar-se. Assim, na circularidade desse movimento, outras idosas demonstraram satisfação com seu próprio corpo, quebrando possíveis preconceitos relativos ao corpo envelhecido, atribuindo-lhe beleza e outras características nobres, talvez por estarem atreladas a outra imagem interna de si mesmas, mais importante e forte do que sua aparência externa: “meu corpo é de grande importância na minha vida. Gosto muito do meu corpo, sinto-me amada pelo meu corpo. Envelhecido, mas bem conservado”. (sra. S, 65 anos) “ao construir meu corpo, refleti e lembrei como ele era. Com o tempo, houve transformação. Mas, estou feliz com meu corpo, a transformação é natural; só fiquei assim ressecada”. (sra. C, 70 anos) “sou idosa, mas me cuido, ainda me acho bonita. Me maquio. Agora, pouquinho. Gosto de ficar bonita só pra mim. Nessa idade a gente tem que ser mais reservada. Também já tô na menopausa”. (sra. O, 63 anos)

Com a ideia de resistência, não estamos nos reportando especialmente aos recursos tradicionais de “correção” da natureza, tais como o uso dos recursos biotecnológicos destinados a disfarçar as intempéries do tempo sobre o corpo; até porque as senhoras deste estudo não têm acesso a tais dispositivos, dada a sua pobreza material, sendo o tema central de suas vidas a luta diária pela sobrevivência, a preocupação com filhos e netos, a doença, o abandono. Referimo-nos a processos de reflexão, representações e comportamentos que Debert (1994) define como mecanismos que se destinam a desnaturalizar o processo de envelhecimento, colocando-o, também, como uma questão de autoconvencimento, como um modo de sobrevivência e resistência ao modelo de construção social do idoso, ou “ideologia da velhice”, que tem, como característica fundamental, “ocultar e desconhecer os diferentes modos de viver, sofrer e suportar a velhice” (Haddad, 1986, p.27). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.401-10, out./dez. 2010

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Entre os rótulos presentes na “ideologia da velhice”, destaca-se o da velhice assexuada. Nesse pressuposto, corpo e sexo são categorias que foram exiladas estritamente ao espaço privado, importando, na maioria das vezes, somente os sujeitos mais jovens, justificando a preocupação da idosa em “ser mais reservada”, afetiva e sexualmente, pois, “já tá na menopausa”. Vale salientar que a menopausa, assim como a velhice, também é uma construção social que, para Swain (2003, p.6), “promove a recriação do corpo doente, todas histéricas! Por definição, feminino”. Considerando as mulheres jovens, esta reapropriação é realizada pelos discursos sobre a TPM (tensão pré-menstrual), que reduz as mulheres a seus hormônios (Rohden, 2008). Na nossa cultura, o desequilíbrio hormonal e o fim do ciclo reprodutivo, historicamente, foram considerados a porta de entrada da construção do envelhecimento das mulheres, para a retirada dos encantos da sua beleza corporal e, ainda, para o declínio de sua sexualidade. Até as próprias idosas entram nesse ageism. “O problema do meu corpo é a menopausa [...] Quando as regras pararam, parei o sexo, também já não tinha vontade. Aí veio pele seca, grossa, calor demais, muitos problemas. O corpo ficou esquisito, diferente! Com pouca saúde”. (sra. Q, 66 anos)

Percebe-se, nesse discurso, que a interpretação da depoente, relativa à menopausa, e suas reações frente à vivência desse processo biológico são influenciadas por referências sociais negativas feitas à mulher menopausada, que a tratam como um ser de corpo esquisito, afligido por calor, seco e assexuado, em contraste com o corpo masculino que, por não vivenciar tal fenômeno, não constitui objeto de tais mitos ou preconceitos. Esse imaginário relativo à menopausa ainda está, fortemente, por ser desconstruído, sendo revigorado pela indústria farmacêutica e cosmética, que aufere imensos benefícios para o trato de seus sinais e sintomas com a venda de produtos antimenopausa, antivelhice, antirrugas, anticelulite – produtos viva-a-juventude! (Swain, 2003). Apesar de o tema sexualidade ser tratado pelas mulheres com muita cautela, as quais, muitas vezes, se preocupavam mais em velar o assunto do que desvelá-lo, encontramos, na fala da Sra. P, de 70 anos, uma contraposição à velhice assexuada, pois, para ela, seu corpo é jovem, desejoso e sexuado: “pra mim, meu corpo não fica velho. Eu sinto até o amor [desejo sexual]. Eu sinto saudades. Tem gente que diz que não sente, mas é mentira. O amor é coisa muito boa. Sinto saudades da minha mocidade, quando eu namorava, era muito bom [...]”. (sra. P, 70 anos)

Apesar da expressão do desejo sexual, a idosa ainda vive na saudade, na impossibilidade física ou psicossocial de buscar um parceiro. Ou seja, inclui-se na categoria dos “inativos sexualmente”. Cabe destacar que a regularidade das relações sexuais das mulheres idosas está muito ligada à oportunidade representada pela situação conjugal. Como muitas são viúvas ou não têm parceiros, a primeira consequência deste dado objetivo de suas vidas é a limitação de seus relacionamentos afetivos e sexuais. A intensidade dessa situação se dá também devido ao fato de os homens idosos viúvos ou solteiros optarem, mais frequentemente, por parceiras mais jovens, pois acreditam ser esta uma das formas de potencializar seu poder e virilidade (Risman, 2005). Para as mulheres idosas, no entanto, as relações afetivas com indivíduos mais jovens ainda passam por uma avaliação negativa no âmbito social, demonstrando, assim, um trato desigual da mulher em relação ao homem por parte da sociedade. O discurso da Sra. P também dialoga com outros discursos femininos sobre a questão e revela: “[...] tem gente [outras mulheres] que diz que não sente [desejo sexual]”. Devemos considerar que estas mulheres foram socializadas num tempo em que as regras morais e sexuais eram bastante rígidas, quando o controle sobre a conduta e o comportamento das pessoas era algo muito bem definido pelas instituições, a começar pela família, interferindo, portanto, na expressão da sexualidade e do amor erótico, os quais eram marcados pelo ocultamento. Historicamente, nesse cenário, à mulher não era permitida a manifestação sexual. Era negado o direito ao orgasmo. Em geral, o homem não se preocupava com essa questão. Muitas desconheciam 884

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como se davam as relações sexuais, pois eram proibidas de conversar sobre sexo, ensinamento permitido somente aos homens, desde que exercitassem seus instintos com prostitutas. Quanto às jovens, deviam casar virgens e não compartilhar com outros sua intimidade sexual, não podendo, na maioria dos casos, escolher com quem iriam se casar. Ao abordar essa questão, Giddens (1993) destaca que as mulheres se casavam virtualmente e sem qualquer conhecimento sobre sexo, sendo comum uma mãe dizer para a filha que, depois do casamento, coisas desagradáveis poderiam acontecer. A fala da Sra. H, de 68 anos, reflete essa realidade: “[...] Pra mim o casamento não foi bom. Casei com ele porque naquele tempo a moça tinha que obedecer aos pais. Como eu era muita nova, morava na roça e não tinha estudo, eu não sabia nada da vida de casal. Sou do tempo em que falar de sexo era pecado. A primeira vez, eu nunca esqueço, foi muito ruim, eu chorei muito, com medo! Depois fui me acostumando, agora, era uma coisa por obrigação; querer mesmo, eu não queria [...] Tive onze filhos. Aguentei muita coisa por causa dos filhos. Só ele mandava em tudo, e eu fiquei com minha humildade. Agora, faz treze anos que me separei dele, mas de sexo, porque ele continua morando em casa. Depois que fiquei mais velha, resolvi fazer as coisas que quero [sorriso]”.

Tomando como referência esse discurso, observamos, entre outros aspectos, como a família, embasada especialmente pela doutrina religiosa predominante nas sociedades ocidentais, regulava o exercício sexual dos indivíduos, especialmente o das mulheres. O casamento tradicional não tinha, como objetivo principal, o prazer, mas, a reprodução. Apesar de muitas dessas mulheres vivenciarem tal realidade, com o avanço da idade, algumas delas expressam mudanças no âmbito da vivência da relação conjugal, passando a se liberarem e demonstrarem coragem de dizer não ao sexo sem prazer e de assumirem a autonomia do seu corpo, a exemplo da Sra. H: “[...] me separei dele, mas, de sexo, porque ele mora na mesma casa. Depois de velha, resolvi fazer as coisas que quero”. Essa mesma postura assume a Sra. M: “sexo com ele nem pensar! Ele fique no canto dele que eu fico no meu. É assim. Não ganhei nada com isso, só doença e velhice”. Não obstante, o corpo e a velhice dessas mulheres, diferentemente da experiência masculina, trazem marcas negativas imprimidas pelas suas condições de vida e de gênero, como mulheres pobres e excluídas do poder, tanto no espaço público como no espaço privado do lar, na vivência da maternidade e, sobretudo, nas relações conjugais, muitas das quais opressoras e violentas. Ao longo de suas vidas, muitas sofreram violência conjugal, com agressão verbal crônica, ameaças, isolamento e humilhação. Foram obrigadas a manter a casa e os filhos bem cuidados e, especialmente, a promover o conforto de seus esposos, ainda que estes as agredissem, resultando em envelhecimento precoce do seu corpo. Essa triste realidade experimentada pelas idosas nos foi revelada frente à questão: pensando em toda a sua vida como mulher (jovem, adulta, casada, mãe, dona de casa, trabalhadora), o que mais contribuiu para o envelhecimento do seu corpo? Seus discursos apontam que seu envelhecimento corporal decorreu da “maternidade”, “da sobrecarga de trabalho doméstico” e, de modo mais consistente, da “violência conjugal” (descrita mais adiante), conforme podemos verificar: “cada filho que tive fez decair o meu corpo. Eu usava cinta e tudo, mas não teve jeito”. (sra. H, 68 anos) “muitas noites em claro, cuidando dos filhos pequenos. Sofria muito na gravidez, era muito doente. Tudo era muito difícil. Cada parto, eu achava que ia morrer”. (sra. D, 69 anos) “fui muito cobrada na casa, na criação dos filhos. Nunca tive ajuda. Até no resguardo, o repouso era pouco, tinha que cuidar de tudo, mesmo doente. Às vezes ia até pro roçado com o marido! Agora ele só me levava quando eu tava boa, só no tempo da colheita. Isso foi ruim pro meu corpo. Estragou a saúde, né? Eu digo lá em casa. Eu sei”. (sra. G, 67 anos)

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Essa realidade de trabalho vivida pela Sra. G guarda identificação com a ideia de Guedes, Silva e Coelho (2007) sobre o casamento e o trabalho doméstico. Para essas autoras, o contrato de casamento também pode ser compreendido como uma relação de trabalho na qual, em troca do sustento e proteção, o marido recebe da esposa o trabalho doméstico e o acesso sexual ao seu corpo. As autoras acrescentam ainda que muitas mulheres, sobretudo algumas idosas de hoje, foram forçadas a participar desse contrato. Os costumes sociais da época destituíam as mulheres da oportunidade de ganharem seu próprio sustento, de modo que o casamento era a única chance de elas constituírem uma vida com mais dignidade. Esse ideal de dignidade a ser adquirida no contexto do casamento se desfaz nos casos em que este é marcado pelo autoritarismo e pela violência, levando as mulheres a terem seu processo de envelhecimento exacerbado, conforme clarifica esta fala: “o que mais envelheceu meu corpo foi sofrimento. Cana de marido. Ele batia muito em mim. Olhe, meu sofrimento era muito grande. Minha pressão subia, ficava nervosa; até hoje, ainda sou nervosa. O pior foi um dia que ele tava de folga, aí eu fui na casa da minha mãe. Olha, mulher, ele chegou em casa e não me achou. Foi triste. Ele foi me buscar; aí dizia assim: sua safada, se você queria se casar era pra tá em casa [...]. E eu quietinha, assim, só rezando, com medo porque ele parecia um satanás. Mas, não teve jeito, ele pegou assim, tirou o cinturão e me deu uma pisa tão triste, tão cruel, [choro] que, quando a fivela do cinturão batia na minha barriga [gravidez], a menina se encolhia toda [...]. Aí, minha vizinha disse: mulher vá na delegacia! Mas, eu pensei: quem vai pagar aluguel e dar de comer a esses meninos? Eu não tinha emprego, pai tinha morrido [...]. Mas um dia ele bebeu e, quando chegou aí no retorno, o carro matou [...]. Meu Deus, perdoa-me, mas eu me aliviei. Hoje não, minha vida mudou, agora eu tô feliz, venho aqui, converso com minhas amigas, passeio. Minhas filhas trabalham [...], eu tiro a pensão dele. Vivo feliz. Homem? Eu não quero mais. Eu não merecia”. (sra. M, 65 anos)

Esse discurso revela o controle total do marido sobre o corpo, a vida e a vontade dessa mulher. Tal domínio corresponde a uma espécie de tutela construída e legitimada pela cultura machista oriunda da ideologia da supremacia do masculino sobre o feminino, gerando a violência direcionada à mulher, a qual, segundo Gomes et al. (2007, p.505), consiste em “todo ato de violência de gênero que resulte em agressão física, sexual ou psicológica”. Chauí define essa forma de violência sob dois ângulos: em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e opressão. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio [...]. (Chauí, 1985, p.35)

Essa inércia, passividade e silêncio foram vivências que permearam a vida da Sra. M quando vitimada por seu cônjuge, especialmente porque ela não possuía recursos sociais, emocionais e econômicos para superá-las: “e eu quietinha, só rezando, com medo [...] mas, não teve jeito, ele me deu uma pisa [...] Aí, minha vizinha disse: vá na delegacia! Mas, eu pensei: quem vai pagar aluguel e dar de comer a esses meninos? Eu não tinha emprego [...]”. Verificamos, nessa fala, que a violência doméstica - de modo especial no passado, e, ainda na atualidade - tem sido pouco denunciada, na defesa do segredo familiar vinculado à honra ou ao provimento familiar, visto que o agressor, muitas vezes, também é o provedor. O discurso da Sra. M nos revela, ainda, que essa forma de violência contra a mulher também está associada ao modo como homens e mulheres devem se comportar na vida “a dois” e em sociedade especialmente às crenças que se ligam à hierarquia existente entre o casal, onde o homem se situa no lugar de maior poder, podendo, portanto, definir as regras e o que é certo e errado na convivência conjugal: “[...] sua safada, se você queria se casar era pra tá em casa.” Nesse contexto, a violência constitui um ato corretivo ou disciplinar, um contínuo que passa “do corrigir pela conversa para a repreensão por meio da agressão física”. 886

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artigos

Na compreensão de Guedes, Silva e Coelho (2007), a violência contra a mulher pode ser explicada como um fenômeno que se constitui a partir da naturalização da desigualdade entre os sexos, que se assenta nas categorias hierárquicas, historicamente construídas como um dos mecanismos ideológicos capazes de legitimar o status quo, entre os quais se encontram as classificações sociais e, aqui, a classificação sexual. A classificação sexual permite que uma das partes do contrato conjugal exerça a dominação sobre a outra parte. Na dominação entre os sexos, na cultura, sobretudo latino-americana, o sexo masculino exerce a dominação física e psíquica, com legitimidade social. Essa dominação rebaixa as mulheres, desqualificando o “outro” da relação como algo “natural” e insuperavelmente inferior, porque biologicamente diferente (Guedes, Silva, Coelho, 2007). Independente dos seus determinantes, os efeitos relacionados com o trauma da situação de violência na vida e na saúde das mulheres são exacerbados pelo fato de o agressor ser alguém de sua intimidade, com quem divide uma relação permeada por sentimentos afetivos, o que eleva a sensação de vulnerabilidade e traição, conforme menciona a Sra. M: “eu não merecia”. Essa situação de desigualdade e de violência experimentada pelas mulheres idosas ao longo de suas vidas contribui para o fato de muitas delas admitirem que sua pouca força física representa uma inferioridade “natural”, fazendo com que algumas se reconheçam, especialmente a partir da dinâmica de suas relações conjugais ou de afeto/poder, num corpo mais fraco que aquele evidenciado pelos homens – crença que guarda consonância com aquela referida pelos homens: “o corpo do homem é mais resistente. A prova é que eu me casei com um homem de 75 anos, e eu tinha 52 anos, e ele era normal. Morreu normal. Talvez, se fosse uma mulher, fosse diferente”. (sra. C, 70 anos) “eu acho que o corpo do homem é melhor do que o da mulher. Quando o homem vem adoecer, é porque o negócio tá demais! Eles são sem-vergonhas, muitos só querem saber de caçar mulher nova. Só querem ser o tal. Muitos nem fazem nada! [...]. Por isso, eles têm problema na próstata, é porque eles vadiam demais quando são novos [...]. E nós, é o útero, né? As mulheres são tudo arrancadas [histerectomizadas], coisadas! Eu sou queimada, há muitos anos. Mas, fiquei boa, graças a Deus!”. (sra. O, 63 anos)

Segundo Le Breton (2007), as características físicas e morais não dependem de um gráfico que fixaria ao homem e à mulher um destino biológico, elas são construídas socialmente. Para Grosz (2000), o pensamento dicotômico (corpo masculino e corpo feminino) necessariamente hierarquiza e classifica os dois termos polarizados, de modo que um deles se torna o privilegiado, e o outro, sua contrapartida suprimida, negativa. A autora acrescenta que, no âmbito desse pensamento, procuram-se conter as mulheres no interior de corpos que são representados, até construídos, como frágeis. Essa concepção de fragilidade do corpo feminino também emerge de modo simbólico, por meio de uma visão místico-religiosa do corpo, em que a Sra. J associa o corpo da mulher ao de Nossa Senhora, sendo “a mama, o seio ou o busto” o órgão mais sublime, tanto por sua beleza como por sua função. “[...] Nós representamos Nossa Senhora, e nosso corpo é tão bonito que nós temos um seio pra amamentar nosso filho. É uma coisa que o homem não tem. O nosso corpo é tão perfeito que nosso rosto é lindo como o de Nossa Senhora [...]”. (sra. J, 73 anos)

A percepção do corpo feminino revelada pela Sra. J está fundada, segundo Scott (1990), em símbolos culturalmente disponíveis tidos como referência ou modelagem de comportamento, a exemplo de Nossa Senhora, na tradição ocidental, que representa a pureza, a abnegação, a santidade e a sexualidade contida. Além disso, sua vivência em um corpo que lhe possibilite a maternagem surge como um forte orientador de sentido para a sua vida enquanto mulher. Segundo Chodorow (1990), a capacidade da mulher para maternar e suas habilidades para retirar disto gratificação são fortemente internalizadas e psicologicamente reforçadas, sendo construídas ao COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.401-10, out./dez. 2010

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longo do seu processo de desenvolvimento, no interior da estrutura psíquica feminina. Não se trata de um “produto da biologia” nem de um preparo intencional para a função. A organização social de gênero afeta, por conseguinte, os processos e as estruturas inconscientes tanto de homens como de mulheres (Saffioti, 1992). A visão dualista que se perpetua sobre a compreensão do corpo, bem como a contribuição da igreja com a sua percepção como carne, em oposição ao espírito, e, no caso da mulher, destinado a procriar, orienta a representação da Sra. Q acerca do seu próprio corpo: “eu entendo assim: o corpo da mulher foi criado por Deus para a gestação, para ter os filhos [...], e o coração pra sentir, pra se livrar do perigo da carne. Acho que na velhice nós estamos mais perto de Deus porque nós passamos a ter mais sentimento, estamos mais calmas, mais longe das coisas do corpo, Assim, de contato [corporal], até com o marido! Pra mim, isso é uma virtude da velhice [...]”. (sra. Q, 66 anos)

Conforme enuncia essa fala, o corpo é fonte de pecado, sede dos prazeres carnais de que a mulher deve se abster, voltando-se a sua função reprodutiva. Para isso, precisa estar atenta à “voz do coração”. Para essa senhora, na velhice, a mulher, ante a finitude da função procriativa, tem maior possibilidade de se aproximar do Divino por estar mais ligada aos sentimentos, longe dos prazeres oriundos do contato físico com seu próprio corpo ou com outros corpos, especialmente, o masculino. Na análise da percepção do corpo envelhecido pelas mulheres, encontramos ainda o discurso da Sra. F, o qual se apropria de um posicionamento que, considerando o gênero, homogeiniza o corpo na velhice a partir de uma decrepitude genérica: “[...] eu acho tudo igual, porque vai despencando tudo por igual, né? Porque, na mulher, vai caindo os peitos; nos homens, vai caindo os testículos e aí vai caindo. A mulher, vai caindo o semblante; o homem, também. Então, eu acho que o corpo velho é igual. Velho é velho!”. (sra. F, 66 anos)

Esse sentimento, nada incomum, demonstra bem a dificuldade de construção de uma identidade positiva para o velho, sobretudo quando referida ao corpo. Sua aparência desgastada, permanentemente retocada – às avessas – pelo tempo, e sua funcionalidade, algumas vezes não sincronizada com a mente, imprime, nos indivíduos, dificuldade para aceitá-lo.

Considerações finais Os dados produzidos neste estudo revelam uma realidade que foi recortada e que traduz experiências e vivências que foram gestadas de modo particular, retratando, em parte, a realidade das mulheres idosas que nos falaram dos seus corpos no contexto da velhice. Apesar da intrínseca relação de gênero verificada nos dados encontrados nesta investigação, não podemos desconsiderar que eles também trazem uma delimitação de classe social, pois dela participaram mulheres de baixo nível socioeconômico e instrucional. Assim, a pesquisa remete a outra investigação, envolvendo idosas inseridas em classe social média e alta, o que poderá modificar as representações dos idosos no tocante a sua corporalidade, afetando, inclusive, as relações de gênero. Por fim, numa tentativa de síntese, ressaltamos que as reflexões acerca do corpo envelhecido aqui apresentadas refletem a perspectiva binária do mundo: o corpo não é velho senão em relação a um referente – o jovem. Segundo Swain (2003), a polarização de grupos, divididos em juventude versus velhice, retoma, de fato, a naturalização dos corpos, remetendo-os ao biológico, à evolução, à superfície pré-discursiva.

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FERNANDES, M.G.M.; GARCIA, L.G.

artigos

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas do manuscrito. Referências ATTIAS-DONFUT, C. Sexo e envelhecimento. In: PEIXOTO, C.E. (Org.). Família e envelhecimento. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p.89-105. BARROS, M.M.L. Envelhecimento, cultura e transformações sociais. In: PY, L. et al. (Orgs.). Tempo de envelhecer: percursos e dimensões psicossociais. Rio de Janeiro: Nau, 2004. p.39-60. BEAUVOIR, S. La force des choses. Paris: Galimard, 1963. BORDO, S.R. O corpo e a reprodução da feminilidade: uma apropriação feminista de Foucault. In: BORDO, S.R.; JAGGAR, A.M. (Orgs.). Gênero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p.19-38. BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. CHAUÍ, M. Participando do debate sobre mulher e violência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. CHODOROW, N. Psicanálise da maternidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990. DEBERT, G.G. Gênero e envelhecimento. Rev. Estud. Fem, v.2, n.3, p.33-51, 1994. DOURADO, M.C.N. A velhice e seus destinos. A Terceira Idade, v.17, n.37, p.7-15, 2006. ECO, U. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. ELIAS, N. A solidão dos moribundos: seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. FERNANDES, M.G.M. A velhice e o corpo envelhecido na percepção e vivência de homens e mulheres idosas: uma análise sob o olhar de gênero. 2009. Tese (Doutorado) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. 2009. FIORIN, J.L. Elementos de análise do discurso. 13.ed. São Paulo: Contexto, 2005. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes. 1987. GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Ed. Unesp, 1993. GOLDFARB, D.C. Corpo, tempo e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. GOMES, N.P. et al. Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias gênero e geração. Acta Paul. Enferm., v.20, n.4, p.504-8, 2007. GROSZ, E. Corpos reconfigurados. Cad. Pagu, n.11, p.45-86, 2000. GUEDES, R.N.; COELHO, A.T.M.C.S.; CARDOSO, E.A. Violência conjugal: problematizando a opressão das mulheres vitimizadas sob olhar de gênero. Rev. Eletron. Enferm., v.9, n.2, p.362-78, 2007. Disponível em: <http://www.fen.ufg.br/ revista/v9/n2/v9n2a06.htm>. Acesso em: 20 jun. 2008. HADDAD, E.G.M. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 1986. LE BRETON, D. A sociologia do corpo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2007. LIMA, A.M.M.; SILVA, H.S.; GALHARDONI, R. Envelhecimento bem-sucedido: trajetórias de um constructo e novas fronteiras. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.12, n.27, p.795-807, 2008.

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FERNANDES, M.G.M.; GARCIA, L.G.El cuerpo envejecido: percepción y vivencia de mujeres ancianas. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.879-90, out./dez. 2010. Este estudio, de naturaleza cualitativa, ha tenido como objetivo el de analizar la percepción y vivencia de mujeres ancianas acerca de sus cuerpos considerando la perspectiva de género. Se ha efectivado en el grupo de convivencia de ancianos Juventud Acumulada, localizado en el barrio popular de Cruz de Armas, en el municipio de João Pessoa del estado brasileño Paraíba. El material empírico se ha obtenido por medio de entrevistas individuales semi-estructuradas y talleres de reflexión, incluyendo a 18 mujeres ancianas y trabajando con el análisis de discurso. Los resultados señalan algunas ancianas ven sus cuerpos frágiles, modificados, enfermos y feos, trayéndoles vivencias negativas. Otras demuestran satisfacción con su dimensión corporal, considerándola todavía bonita y conservada. Referente a los determinantes de su envejecimiento físico, las declarantes se refieren a la maternidad, sobrecarga de trabajo doméstico y violencia conyugal.

Palabras clave: Envejecimiento. Vejez. Género. Cuerpo.

Recebido em 01/08/09. Aprovado em 14/05/10.

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artigos

Classificações interativas: o caso do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade infantil *

Fabíola Stolf Brzozowski1 Jerzy André Brzozowski2 Sandra Caponi3

BRZOZOWSKI, F.S.; BRZOZOWSKI, J.A.; CAPONI, S. Interactive classifications: the case of Attention-Deficit Hyperactivity Disorder in children. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.891-904, out./dez. 2010. The philosopher of science Ian Hacking writes that our world is one of classifications, and these classifications, or names, have a particular effect when they refer to the behavior of people. This article seeks to present what AttentionDeficit Hyperactivity Disorder (ADHD) is and how it appeared in children. Then, it discusses the conversion of undesirable behaviors into symptoms which underlies the identification of ADHD as a disease. From these considerations, a more general model about the interaction between classifications and classified people is proposed, based on Hacking’s distinction between indifferent and interactive kinds, and also on the concept of looping effect proposed by that author. Finally, the model is applied to ADHD, and some considerations are made regarding the concept of social control put forth by Peter Conrad.

Keywords: ADHD. Looping effect. Classifying people. Childhood medicalization.

O filósofo da ciência Ian Hacking diz que nosso mundo é um mundo de classificações e que essas classificações têm efeitos particulares quando se referem a comportamentos de pessoas. Neste trabalho, pretende-se discutir como o diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) infantil pode funcionar como uma classificação e, assim, afetar o comportamento das crianças diagnosticadas. Inicialmente, é realizada uma discussão sobre a função das classificações na ciência. A partir dessas considerações, um modelo mais geral sobre a interação entre classificações e classificados é proposto, tendo como base a distinção de Ian Hacking entre tipos indiferentes e tipos interativos, e também a noção de efeito de arco proposta por esse autor. Por fim, o modelo é aplicado ao TDAH, onde são realizadas considerações relacionadas às noções de controle social de Peter Conrad.

Palavras-chave: TDAH. Efeito de arco. Classificação de pessoas. Medicalização da infância.

Elaborado com base em Brzozowski (2009), pesquisa com financiamento do CNPq. 1 Doutoranda em Saúde Coletiva, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Rua Revoar das Gaivotas, 262. Campeche, Florianópolis, SC, Brasil.88063-265. fabijerzy@yahoo.com 2 Doutorando em Filosofia, UFSC. 3 Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Departamento de Saúde Pública, UFSC. *

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CLASSIFICAÇÕES INTERATIVAS: O CASO DO TRANSTORNO DO DÉFICIT ...

1 Introdução O mundo do homem ocidental é altamente sistematizado. Fenômenos, objetos, animais e pessoas são analisados, decompostos e reduzidos a conceitos gerais. A classificação de entidades com as quais os seres humanos não são capazes de se comunicar não gera interação alguma, mas fenômenos inesperados podem surgir quando os alvos das classificações são também pessoas. Toda classificação de pessoas gera uma resposta. Alguns grupos (por vezes determinados arbitrariamente) étnicos ou sociais acabam se tornando alvos de preconceitos, e mesmo as pessoas consideradas comuns ou normais recebem diferentes rótulos. Porém, existem classificações, institucionalizadas ou “oficiais”, que se difundem mais facilmente e possuem maior credibilidade perante a sociedade. O diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) pode ser considerado uma classificação oficial, e, para uma criança, ser classificada como um doente mental traz grandes implicações. Neste trabalho, pretende-se inicialmente apresentar, em linhas gerais, como Ian Hacking descreve as interações entre classificação e classificado e, a partir desse ponto, propor um modelo mais geral sobre essa interação, tendo como base a distinção entre tipos indiferentes e tipos interativos, e também a noção de efeito de arco proposta por esse autor (seção 2). Na seção 3, será apresentado o TDAH, como surgiu, seus critérios diagnósticos e possíveis causas atribuídas a essa classificação. A seguir (seção 4), é realizada uma discussão sobre a conversão de comportamentos indesejáveis em sintomas, que está por trás da identificação do TDAH como uma doença. Por fim, o modelo proposto por Hacking é aplicado ao TDAH na seção 5, onde são realizadas também considerações relacionadas às noções de controle social de Peter Conrad.

2 As classificações O filósofo da ciência Ian Hacking (2006) diz que nosso mundo é um mundo de classificações e que essas classificações, ou nomes, têm efeitos particulares quando se referem a comportamentos de pessoas. Conforme será detalhado nesta seção, um indivíduo pode estar consciente de sua classificação e, com isso, modificar seu comportamento. Para que se compreenda de que forma um nome, ou um diagnóstico, pode influenciar o comportamento dos indivíduos e, especialmente, de uma criança, faz-se necessário uma incursão sobre a distinção entre os tipos indiferentes e os tipos interativos de Hacking.

2.1 As classificações e a ciência De acordo com uma concepção realista da ciência, o mundo é composto de tipos de entidades, e a tarefa da ciência é realizar e refinar classificações, de modo a ter um retrato cada vez mais fiel dos “verdadeiros” tipos que constituem o mundo. Um exemplo de refinamento de classificação ocorreu na história da biologia quando, após muitos séculos tendo sido consideradas peixes, as baleias foram classificadas, por Lineu, como mamíferos. Nas palavras de Richard Boyd, um dos defensores dessa posição, a tarefa da ciência é realizar uma “acomodação da linguagem à estrutura causal do mundo” (Boyd, 1986, p.358, itálicos no original). A ciência, ao longo de seu trabalho, iria construindo uma imagem do mundo tal como ele é, cortando a natureza “em suas verdadeiras juntas”. Essa representação definitiva do mundo, da qual a ciência se aproximaria assintoticamente, estaria constituída de tipos, os tipos naturais, que corresponderiam às entidades que realmente existem. A discussão filosófica sobre os tipos naturais começou em meados do século XIX e ainda é cercada de controvérsias. É questionável, por exemplo, em que medida os termos para tipos naturais da linguagem comum (como “baleia franca”) correspondem aos termos científicos (como “Eubalaena australis”, o nome científico da baleia franca meridional). Pode acontecer que o nome de um animal na linguagem comum corresponda a mais de uma espécie biológica, assim como uma mesma espécie pode receber dois nomes na linguagem comum (se, por exemplo, macho e fêmea forem muito diferentes entre si). 892

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BRZOZOWSKI, F.S.; BRZOZOWSKI, J.A.; CAPONI, S.

4 Esse ponto é controverso, porém pertinente para o caso do TDAH. O tema será abordado em maiores detalhes na seção 5.

artigos

As espécies biológicas não são os únicos tipos naturais. Os exemplos mais clássicos são as formas geométricas (triângulo, pentágono etc.), as espécies químicas (ouro, água etc.), e as espécies geológicas (bauxita, pirita etc.). Análises filosóficas recentes (Hacking, 1991) tendem a reconhecer que esses objetos são tão diferentes entre si, a ponto de que não existe sequer um único conceito de tipo natural. O que dizer, por exemplo, das doenças? Condições como sífilis, dengue, e depressão, podem ser consideradas tipos naturais? Para discutir esse ponto, Hacking (1999) introduziu a distinção entre tipos indiferentes e tipos interativos. Os tipos naturais “clássicos” (formas geométricas, espécies químicas, biológicas e geológicas), de acordo com Hacking, são tipos indiferentes, na medida em que não interagem com a classificação que recebem. Para as baleias, nada mudou quando foram classificadas como mamíferos, e não peixes. Os tipos humanos, ou tipos de pessoas, por sua vez, reagem às classificações que lhes são impostas, e o fazem, argumenta Hacking (2006), estando ou não conscientes delas4. Uma pessoa que, de “bonita”, passa a ser classificada como “feia”, irá ter, drasticamente, seu comportamento alterado. Entretanto, Hacking parece considerar o ímpeto de classificar pessoas - tão profundamente enraizado em diversas culturas - uma continuação ou variante da atitude de classificar tipos indiferentes. Em uma revisão da literatura filosófica sobre os tipos naturais (Hacking, 1991), ao mesmo tempo em que rejeita a ideia de Boyd de que há apenas uma forma verdadeira de classificar a natureza, Hacking chama a atenção para o papel pragmático que as classificações tiveram na história das civilizações. São as disposições dos tipos naturais (isto é, o que eles são capazes de fazer ou o que podemos fazer com eles) que despertaram e mantêm o interesse dos humanos por eles. É importante ter bons critérios para identificar o cobre entre outros metais por causa de sua utilidade para a civilização (servir como condutor de eletricidade etc.). As disposições podem também ser fatores importantes no refinamento das classificações: basta mencionar a adoção de procedimentos que permitem diferenciar o ouro da pirita (ouro-de-tolo).

2.2 As classificações na biomedicina

5 É certo que a classificação de tipos naturais também requer instituições, mas, no caso dos tipos de pessoas, seu papel é mais saliente.

Quando o raciocínio que foi detalhado na seção anterior é estendido aos tipos de pessoas, fazem-se necessárias instituições (Hacking, 2007, 2006) para determinar quais serão as disposições importantes para a classificação5. Pode-se conjecturar que, nos primórdios das civilizações, as disposições humanas mais proeminentes eram as capacidades de trabalhar e procriar. Um indivíduo doente significa um a menos no contingente dos aptos e férteis; desse fato surge a necessidade da adoção de procedimentos que restituam as disposições perdidas. Além disso, as doenças também têm disposições: para citar exemplos, a raiva é uma doença fatal; derrames deixam sequelas psicomotoras; a hanseníase causa perda da sensibilidade nas extremidades, e assim por diante. Em outras palavras, as disposições das doenças são seus sintomas ou consequências deles. Por isso, como no caso dos tipos naturais, as disposições das doenças permitiram um refinamento de sua própria classificação e, consequentemente, do diagnóstico. O diagnóstico é o ponto central de divergência entre os tipos naturais e os tipos humanos, e é onde se dá a bifurcação entre indiferença e interação. Do ponto de vista prático que foi mencionado acima, realizar um diagnóstico significa rotular, impor uma marca, no mesmo sentido em que uma pepita suspeita pode ser marcada para inspeção, ou em que o gado é marcado para o abate. Nesse sentido, o diagnóstico é um bilhete de entrada para um procedimento padronizado e, especialmente, institucionalizado. Mas, enquanto o comportamento da pepita não irá mudar se ela for classificada como ouro ou pirita COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.891-904, out./dez. 2010

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(embora o procedimento seguinte será diferente em cada um dos casos), o de um indivíduo certamente muda diante de um diagnóstico de câncer. Agora, a própria doença pode ser um tipo indiferente, na medida em que não reage se é classificada como sarampo ou catapora. Essa questão é crucial, e está ligada ao que será referido, daqui em diante, como causas biológicas da doença6. Entende-se aqui a doença como um fenômeno complexo, com muitas causas, sendo que cada uma delas pode ser estudada em um nível relativamente autônomo de análise. As causas biológicas correspondem ao conjunto de causas comumente chamado de etiologia; são o avatar da doença no nível de análise biomédico. Para que uma doença tenha causas biológicas, é necessário que haja uma correspondência unívoca entre elas e o conjunto de sintomas, e que um conjunto de sintomas não tenha mais do que um conjunto de causas biológicas. Assim, da perspectiva biomédica, uma doença é um conjunto de sintomas univocamente causado por um conjunto de causas biológicas. Até aqui, com a possível exceção da depressão, foram mencionadas doenças com bases biológicas relativamente claras. No caso da sífilis, dengue, sarampo e catapora, as causas biológicas estão até mesmo corporificadas na forma de agentes etiológicos, ou, mais propriamente, na relação entre esses agentes e seus hospedeiros. No caso do câncer, as causas biológicas estão localizadas no próprio organismo do paciente (defeitos genéticos relacionados à divisão celular, sendo que “genético”, aqui, não quer dizer necessariamente “hereditário”). A depressão é um caso em que um conjunto de sintomas talvez tenha mais de um conjunto de causas biológicas, ou mesmo não tenha um conjunto de causas biológicas. Nesse caso, não seriam doenças no sentido estritamente biomédico definido acima. Hacking (1999) sugere ainda que alguns tipos — algumas doenças como a esquizofrenia e o autismo — são, ao mesmo tempo, indiferentes e interativos. O componente indiferente da doença são suas causas biológicas, enquanto o componente interativo é o estereótipo do portador daquela doença, que, na perspectiva biomédica, se refere ao conjunto de sintomas. Mas o estereótipo do portador da doença assume ainda um aspecto social, quando encarnado no comportamento do próprio paciente. Tem-se, assim, três elementos a partir dos quais se construirá a interação entre classificação e classificado: do lado biomédico, as causas biológicas e o conjunto de sintomas; do lado social ou extrabiomédico, o comportamento do paciente. No caso de haver essa interação, ocorre o que Hacking chama de efeito de arco [looping effect]. “As pessoas e sua classificação estão numa situação de plena interação e evolução bilateral”, escreve Hacking (2006, p.308). O efeito de arco é a espiral que ocorre quando a classificação altera o comportamento de um indivíduo, que, por sua vez, altera o estereótipo da classificação, e assim por diante. A modificação do comportamento do indivíduo, causada por uma classificação, pode apresentar um feedback positivo (o fato de o indivíduo saber que pertence a determinada classe fortalece os atributos que a caracterizam) ou negativo (indivíduos resistem ao conhecimento ligado à classificação) (Hacking, 2006). Hacking refere-se a feedback positivo ou negativo, não no sentido de qualificar a ação como positiva ou negativa, mas para dizer que o positivo amplifica os efeitos da classificação, enquanto o negativo os suprime. Conforme explica Hacking (2006, p.307-8): O nome de uma classe é portador de conhecimentos gerais sobre os membros da classe. A afirmação que eu estou numa classe, que sou um N [...] estabelece que tenho os atributos conhecidos da classe [...]. Isto pode me transformar. Talvez o conhecimento de que sou um N fortaleça esses atributos – um caso de feedback positivo. [...] Há

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6 O termo é emprestado de Hacking (1999, p. 116) em uma tentativa de sanar a dificuldade de encontrar um equivalente para a “estrutura escondida” proposta por Hilary Putnam. Estrutura escondida, de acordo com Putnam, é a “essência” que confere as propriedades de um tipo e que permite fixar referências a ele. Por exemplo, a estrutura escondida da água é sua fórmula química H2O; segundo Putnam, sempre que falamos “água”, estamos nos referindo ao tipo cuja estrutura química é H2O.


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também casos de feedback negativo. No caso mais simples os indivíduos resistem ao conhecimento ligado à classificação. Esforçam-se por se desfazer das características que lhes são atribuídas. [...] Este conhecimento, dizem as pessoas que são N, não é verdadeiro, não é verdade isto que se diz de pessoas que são N.

A transformação de comportamentos tidos como indesejáveis em sintomas de doenças é um dos principais geradores de efeitos de arco. A seguir, será proposto um modelo simples que pretende descrever como se dá essa transformação, e mostrar o porquê do processo estar sujeito ao efeito de arco.

2.3 Um modelo para a gênese de uma doença Um esclarecimento importante pode ser feito a respeito do efeito de arco, considerando-se os três elementos citados anteriormente (causas biológicas, conjunto de sintomas, comportamento do paciente), e o papel que cada um deles tem na identificação de uma doença. Inicialmente, considere-se um esquema (Figura 1) em que não haja efeito de arco. Na primeira etapa, um conjunto difuso de sintomas é percebido em um grupo de pacientes. A seguir, causas biológicas que expliquem uma parcela do conjunto inicial de sintomas são postuladas. A transição da etapa 1 para a 2 pode ser chamada de biologização. Por fim, apenas aquela porção do conjunto de sintomas que pode ser biologicamente embasada é utilizada para a realização do diagnóstico. A transição da etapa 2 para a 3 pode ser chamada de redução. Neste esquema, o efeito de arco é desconsiderado. A identificação de uma doença, que pode ser fruto de anos de pesquisa, termina por isolar um conjunto de sintomas relevantes para a realização do diagnóstico (etapa 3), e sobre eles se articularão os exames laboratoriais e outros testes para aquela doença. Esse esquema não pretende ser exaustivo: após a etapa 3, evidentemente, o trabalho da equipe de saúde continua. Um paciente que apresente um conjunto de sintomas que corresponda, grosso modo, ao conjunto da etapa 3, é marcado (no sentido discutido anteriormente) para a realização de testes que se destinam a identificar a presença das causas biológicas comumente associadas àquele conjunto de sintomas. Se o clínico concluir que os resultados confirmam a presença dessas causas, o diagnóstico é feito e o paciente é novamente marcado, desta vez para o processo de tratamento.

conjunto de sintomas conjunto de sintomas

S

Redução

Biologização

conjunto de sintomas

causas biológicas identificação

biologização

diagnóstico

Figura 1. Modelo para a identificação de uma doença. Ver texto para descrição detalhada das etapas.

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Considere-se, agora, o caso em que há efeito de arco (Figura 2). Note-se que, aqui, os “sintomas” são puramente comportamentais, e quaisquer bases biológicas encontradas para sustentá-los são sempre duvidosas. O efeito de arco acontece entre a passagem da etapa 3 para a 1, quando um diagnóstico faz com que o paciente altere seu comportamento e, assim, altere o conjunto de “sintomas” para aquela condição.

efeito de arco

conjunto de sintomas comportamentais conjunto de sintomas comportamentais

S

Redução

Biologização

conjunto de sintomas comportamentais

causas biológicas duvidosas identificação

biologização

diagnóstico

Figura 2. Modelo para o efeito de arco na identificação de uma doença. Ver texto para descrição detalhada das etapas.

Hacking (2007, 1999) afirma que, nesse caso, as pessoas classificadas serão “alvos móveis”, isto é, ao mudar seu comportamento, acabam mudando o próprio estereótipo da classficação e, portanto, não são objetos estáveis de conhecimento. Jonathan Tsou (2007) critica esse ponto, alegando que, por mais que um indivíduo mude seu comportamento, será incapaz de mudar as causas biológicas de sua condição. Tsou se refere, em particular, às causas biológicas da esquizofrenia (excesso de atividade dopaminérgica na via mesolímbica): por mais que um paciente esquizofrênico mude seu comportamento, não irá conseguir diminuir a concentração de dopamina em seu cérebro. É possível que Tsou considere esse tipo de efeito de arco tão absurdo quanto a ideia de que um paciente com câncer é capaz de remover o tumor somente pela “força do pensamento” ou, pelo menos, por se comportar como se tivesse removido o tumor. No entanto, deve-se considerar a hipótese de que certos conjuntos de sintomas descritos na literatura não tenham causas biológicas unívocas e, portanto, não constituam doenças no sentido biomédico. O próprio Tsou reconhece que esse talvez seja o caso de grande parte das desordens listadas no DSM-IV (Tsou, 2007). Muito provavelmente, o TDAH se enquadra nesse grupo (Timimi, 2002).

3 O TDAH Para que se possa pensar no significado do TDAH para a criança, primeiramente faz-se necessário entender o que é o transtorno, que critérios são utilizados para o seu diagnóstico e como se deu sua evolução histórica.

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O TDAH é considerado, em parte do meio acadêmico, como o diagnóstico psiquiátrico mais comum na infância, e se caracteriza por três categorias principais de sintomas, que são: desatenção, impulsividade e hiperatividade (Vasconcelos et al., 2003). O Quadro 1 lista os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais para o diagnóstico do TDAH (DSM-IV-Tr, 2002).

Quadro 1. Critérios diagnósticos do DSM-IV-TR para o TDAH. Critérios Diagnósticos para Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade A. Ou (1) ou (2) (1) seis (ou mais) dos seguintes sintomas de desatenção persistiram por, pelo menos, 6 meses, em grau mal-adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento: Desatenção: (a) frequentemente deixa de prestar atenção a detalhes ou comete erros por descuido em atividades escolares, de trabalho ou outras; (b) com frequência tem dificuldades para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas; (c) com frequência parece não escutar quando lhe dirigem a palavra; (d) com frequência não segue instruções e não termina seus deveres escolares, tarefas domésticas ou deveres profissionais (não devido a comportamento de oposição ou incapacidade de compreender instruções); (e) com frequência tem dificuldade para organizar tarefas e atividades; (f) com frequência evita, antipatiza ou reluta em envolver-se em tarefas que exijam esforço mental constante (como tarefas escolares ou deveres de casa); (g) com frequência perde coisas necessárias para tarefas ou atividades (por ex., brinquedos, tarefas escolares, lápis, livros ou outros materiais); (h) é facilmente distraído por estímulos alheios à tarefa; (i) com frequência apresenta esquecimento em atividades diárias. (2) seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade persistiram por, pelo menos, 6 meses, em grau maladaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento: Hiperatividade: (a) frequentemente agita as mãos ou os pés ou se remexe na cadeira; (b) frequentemente abandona sua cadeira em sala de aula ou outras situações nas quais se espera que permaneça sentado; (c) frequentemente corre ou escala em demasia, em situações nas quais isto é inapropriado (em adolescentes e adultos, pode estar limitado a sensações subjetivas de inquietação); (d) com frequência tem dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de lazer; (e) está frequentemente “a mil” ou, muitas vezes, age como se estivesse “a todo vapor”; (f) frequentemente fala em demasia. Impulsividade: (g) frequentemente dá respostas precipitadas antes de as perguntas terem sido completadas; (h) com frequência tem dificuldade para aguardar sua vez; (i) frequentemente interrompe ou se mete em assuntos de outros (por ex., intromete-se em conversas ou brincadeiras). B. Alguns sintomas de hiperatividade-impulsividade ou desatenção que causaram prejuízo estavam presentes antes dos 7 anos de idade. C. Algum prejuízo causado pelos sintomas está presente em dois ou mais contextos (por ex., na escola [ou trabalho] e em casa). D. Deve haver claras evidências de prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional. E. Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o curso de um Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outro Transtorno Psicótico, e não são melhor explicados por outro transtorno mental (por ex., Transtorno do Humor, Transtorno de Ansiedade, Transtorno Dissociativo ou um Transtorno da Personalidade).

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O TDAH já foi conhecido por vários nomes durante o século XX, dentre eles: “encefalite letárgica”, “dano cerebral mínimo”, “disfunção cerebral mínima”, “hipercinesia”, “doença do déficit de atenção” (DDA) e “transtorno de déficit de atenção com hiperatividade”. Para cada uma dessas categorias de doença, são descritos conjuntos de sintomas similares, que descrevem os desvios da infância. Alguns dos sintomas mais citados e comuns a todos esses nomes são: baixo desempenho na escola, extroversão extrema, comportamentos violentos, incapacidade de completar tarefas, ladroagem, distúrbios nos padrões de sono, moralidade inconsistente com a idade e esquecimento (Rafalovich, 2001). A ideia de que agitação, baixa concentração e impulsividade em crianças são fenômenos médicos é recente. O início do interesse por crianças que apresentavam baixa capacidade de atenção e hiperatividade data do início do século XX, quando um pediatra, Frederick Still, descreveu um grupo de crianças que possuíam uma incapacidade anormal de manter sua concentração, inquietação e irritabilidade (Still, 2006). As características de hiperatividade e falta de atenção em crianças foram relacionadas entre si somente com o surgimento do diagnóstico do dano cerebral mínimo, após as epidemias de encefalite, nas primeiras décadas do século XX (Timimi, 2002). Na década de 1930, foi descoberta a ação dos medicamentos psicoestimulantes na redução da inquietação, da hiperatividade e dos problemas de comportamento em crianças. E, nos anos 1940, Strauss sugeriu que a hiperatividade, na ausência de histórias de anormalidades na família, poderia ser considerada evidência suficiente para um diagnóstico de dano cerebral (Timimi, 2002). Entretanto, com o passar dos anos, não foram encontradas lesões orgânicas nessas crianças agitadas. Assim, a partir de 1960, o termo “dano cerebral mínimo” foi caindo em desuso. Apesar do abandono dessa hipótese, e com o aumento do interesse em síndromes definidas comportamentalmente, estudiosos passaram a acreditar que essa síndrome era causada por algum tipo de disfunção cerebral. Na segunda edição do DSM, a doença foi chamada de “reação hipercinética da infância” (Timimi, 2002). Nos anos 1980, surgiu a terceira edição do DSM, e o nome passou a ser “transtorno de déficit de atenção” (em inglês, ADD). O diagnóstico do problema poderia ser feito com ou sem os sintomas de hiperatividade, e foi definido utilizando-se três listas de sintomas: uma para déficit de atenção, uma para impulsividade e outra para hiperatividade. Na quarta edição do DSM (DSM-IV), os critérios para o diagnóstico mudaram novamente, agora em favor de um modelo com duas dimensões: déficit de atenção em uma subcategoria e hiperatividade e impulsividade na outra. É importante destacar que, em cada revisão, o número de crianças com características da doença aumentava. A mudança do DSM-III para o DSM-IV aumentou a prevalência do transtorno em aproximadamente dois terços (Timimi, 2002). A prevalênca do TDAH tem sido pesquisada em inúmeros países e, em geral, estudos que utilizam os critérios do DSM-IV tendem a encontrar prevalências de 3-6% em crianças em idade escolar, nos Estados Unidos. No Brasil, a taxa de prevalência, em estudos desse tipo, foi de 3,6 a 5% da população escolar (Andrade, Scheuer, 2004). A proporção do transtorno entre meninos e meninas, segundo estudos epidemiológicos, varia de 2:1 em estudos populacionais e de 9:1 em estudos clínicos, respectivamente (Rohde, Halpern, 2004). Apesar do grande número de estudos já feitos, as causas do TDAH ainda são desconhecidas. A ideia mais aceita pelos estudiosos do tema é de que existem fatores genéticos e ambientais que influenciam no desenvolvimento da doença. Em relação à genética, existem hipóteses que relacionam vários genes de pequeno efeito com uma vulnerabilidade ao transtorno, que poderia vir a se desenvolver, ou não, de acordo com as condições ambientais. O aparecimento do TDAH está relacionado ainda, segundo pesquisas atuais, a alterações de um ou mais neurotransmissores, como as catecolaminas, em particular, a dopamina e a noradrenalina. Entretanto, os dados existentes sobre a relação entre TDAH e neurotransmissores ainda são muito escassos (Rohde, Halpern, 2004). Em relação à alimentação, alguns estudos sugerem que determinados conservantes, como o benzoato de sódio, e corantes alimentares artificiais podem exacerbar o comportamento hiperativo em crianças pequenas (Barrett, 2007). Outro fator nutricional relacionado ao transtorno são os baixos níveis séricos de ferritina, que evidencia uma deficiência de ferro. Segundo os estudos sobre o assunto, o ferro modula a produção da dopamina e da noradrenalina, cujas quantidades se encontram em desequilíbrio em indivíduos com TDAH (Konofal et al., 2008). É importante salientar, entretanto que, quando se fala de desenvolvimento neuronal e de neurotransmissores, do ponto de vista neuroevolutivo, é aceitável certo nível de hiperatividade em 898

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crianças até, aproximadamente, os quatro ou cinco anos de idade, visto que a região pré-frontal, onde está o “freio-motor” do comportamento dos seres humanos, só se completa nessa faixa etária (Rohde, Halpern, 2004). O tratamento geralmente indicado pelos profissionais de saúde engloba intervenções psicossociais e/ ou psicofarmacológicas. Em se tratando de intervenções psicossociais, recomendam uma abordagem educacional, prestando informações claras e precisas à família sobre o transtorno. Além disso, defendem também um suporte escolar, por meio de rotinas diárias consistentes, atividade física e atendimento individualizado, sempre que possível (Zavaschi et al., 2004). Em relação ao tratamento farmacológico, os estimulantes são considerados, pela maior parte dos profissionais e dos pesquisadores, como as medicações de primeira escolha. No Brasil, o único estimulante aprovado e encontrado no mercado é o metilfenidato, cujos nomes comerciais são Ritalina®, do laboratório Novartis, e Concerta®, do laboratório Janssen-Cilag. Em casos de comorbidades, intolerância ou falta de resposta aos estimulantes, muitas vezes são utilizados também antidepressivos tricíclicos, como a imipramina (Zavaschi et al., 2004), cujo nome comercial é Tofranil®, do laboratório Novartis.

4 Comportamentos e sintomas Pode-se observar que o TDAH é um fenômeno recente e que, antes do século XX, características que hoje são consideradas sintomas - como agitação, impulsividade e hiperatividade - eram vistas como comportamentos normais. Percebe-se então que, atualmente, os conhecimentos científicos e as práticas em saúde têm tornado o limiar entre saúde e doença, entre o normal e o patológico, muito tênue. Basta adotar um comportamento indesejado pela sociedade em geral para que o indivíduo seja rotulado como “depressivo”, “ansioso”, “louco” ou mesmo “hiperativo”. Isso se dá porque os altos e baixos naturais da vida e comportamentos até então considerados normais são convertidos em estados patológicos (Blech, 2005). Para Georges Canguilhem (1982), a ciência descreve o ser humano normal como aquele que se encaixa em normas preestabelecidas, determinadas por médias. Porém, ele coloca uma questão: será que devemos considerar qualquer desvio como anormal? Os modelos que temos de indivíduos normais são produto de estatísticas, porém, para ele, os indivíduos reais que encontramos se afastam desse modelo e é isso que faz com que sejam diferentes uns dos outros. Quando se trata de crianças, é na escola que se pode ver a grande influência na determinação de metas de aprendizagem, estabelecidas para cada faixa etária, na tomada de posições. A maioria das crianças aprende a ler com determinada idade; aquela que não começa a ler juntamente com as demais pode ser facilmente considerada desviante. Geralmente é, na escola, que se notam as características do TDAH, e é de lá que saem os encaminhamentos das crianças aos profissionais de saúde. A fala de uma professora sobre uma “aluna problemática”, extraída do livro de Collares e Moyses (1996, p.250), ilustra esse ponto: [e]la é muito parada. Acho que deve ser encaminhada para a Saúde ou psicóloga, por que ela tem alguma coisa, ela é muito parada. Pelo tamanho dela, pela idade, acho que ela já devia ter aprendido. Ela está ainda na fase pré-silábica.

Uma condição necessária para que se tenha uma vida social é que todos compartilhem das mesmas normas, previamente estabelecidas. Quando uma regra é quebrada, como não aprender a ler dentro do “prazo normal”, são tomadas medidas restauradoras: “[o] fracasso ou o sucesso em manter tais normas têm um efeito muito direto sobre a integridade psicológica do indivíduo” (Goffman, 1988, p.138). De acordo com Collares e Moyses (1996), a escola é um local que abriga preconceitos sobre os alunos, suas famílias e o fracasso escolar; o fracasso em manter as normas institucionais recai sempre sobre o aluno e sobre os seus pais:

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Crianças não aprendem porque são pobres, porque são negras, porque são nordestinas, ou provenientes de zona rural; são imaturas, são preguiçosas; não aprendem porque seus pais são analfabetos, são alcoólatras, as mães trabalham fora, não ensinam os filhos... (Collares, Moyses, 1996, p.26)

A citação acima nada mais é que um repertório de explicações reducionistas para problemas de aprendizado. Para Richard Lewontin (Lewontin, Rose, Kamin, 2003), reducionistas são aqueles que tentam explicar as propriedades de sistemas complexos (como aprendizagem, por exemplo) focalizando apenas poucos aspectos. De acordo com a perspectiva reducionista, o problema da não-aprendizagem encontra-se em fatos isolados, como: cor da pele, nível socioeconômico, lugar de origem e existência de doenças. A doença vem sendo usada como fator explicativo para desvios de indivíduos dentro da sociedade, fenômeno este que pode ser chamado de biologização. Assim, as propriedades são reificadas, ou seja, ganham uma localização e são tratadas medicamente; quer dizer, são vistas como causadas por acontecimentos no cérebro dos indivíduos, associadas a modificações nas quantidades de algumas substâncias químicas (Lewontin, Rose, Kamin, 2003). Esse processo de biologização, sobretudo de questões sociais conflitantes, geralmente se dá em momentos de grande tensão social. Isso ocorreu, por exemplo, na década de 1960, quando a ciência “comprovou” que o homem branco era geneticamente superior ao homem negro, em termos intelectuais; que as mulheres e os homens apresentavam diferenças intelectuais em razão de uma diferença neurológica, também geneticamente determinada (Collares, Moysés, 1996). A biologização da não-aprendizagem é muito comum no meio escolar, fazendo com que a responsabilidade pelas reprovações e pela evasão escolar recaia sobre as doenças. Ao biologizar questões sociais, todo o sistema social se torna isento de responsabilidades. Na escola, desloca-se o eixo de uma discussão político-pedagógica para causas e soluções médicas, inacessíveis à educação (Collares, Moysés, 1996). Assim, para alguns professores, médicos e pais, além das próprias crianças, os indivíduos muito ativos, e que não prestam atenção como deveriam, possuem algum problema de saúde (Conrad, Schneider, 1992). Tratar esses comportamentos indesejáveis como um problema médico foi, e continua sendo, bemaceito na sociedade, e os motivos são diversos. Para os médicos, por exemplo, a terapêutica é relativamente simples (prescrição de um medicamento) e os resultados podem ser excelentes, do ponto de vista clínico. Por sua vez, o diagnóstico do TDAH indica uma doença possível de ser tratada, o que diminui a culpabilização dos pais e faz com que estes possam ver o diagnóstico com bons olhos. Além disso, o medicamento, frequentemente, torna a criança menos agitada na sala de aula e, muitas vezes, facilita a aprendizagem, resolvendo o problema também na escola (Conrad, Schneider, 1992).

5 O efeito de arco no TDAH Hacking (2007) escreve que, por trás de cada classificação, existe uma estrutura que engloba cinco aspectos primários: a classificação, os indivíduos, as instituições, o conhecimento e os especialistas. A classificação em si gera os tipos de pessoas. As crianças com TDAH são um tipo de pessoa, formado por indivíduos que compartilham o mesmo problema. Esse grupo de pessoas possui um nome e suas características são determinadas em função desse nome. Muitas vezes o indivíduo, ou a sua família, no caso do TDAH, passam a ver certas características da classe como problemas somente após o diagnóstico. As instituições confirmam a existência dessa classificação e são um meio de legitimar aquele tipo de pessoas. Um exemplo de instituição é, nesse caso, o DSM-IV, uma forma de legitimar e justificar o diagnóstico de transtornos mentais. O DSM-IV apresenta uma série de características de comportamento, como pode ser visto no item 3, que indica se a criança apresenta ou não o TDAH. Esses critérios são interpretados pelo especialista, por meio da descrição dos familiares e educadores da criança. Assim, o conhecimento e os especialistas detêm o poder de decidir quem é doente e quem não é, quem apresenta TDAH e quem é normal. O diagnóstico do transtorno é essencialmente clínico, não há 900

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exames laboratoriais ou de imagem que possam auxiliar nessa decisão. O especialista conta apenas com seus conhecimentos técnicos, os critérios do DSM-IV e as informações provenientes das pessoas ligadas à criança para traçar o diganóstico e indicar a terapêutica adequada para o caso. Com o diagnóstico dado e, geralmente, com um medicamento prescrito, a criança volta à sua casa e à sua escola com um transtorno psiquiátrico. Na seção 2.2, foi dito que as classificações interagem com os indivíduos classificados, e que essa interação se dá pelo efeito de arco. A tendência é pensar que esse efeito de arco ocorre somente em pessoas que tenham consciência do nome que lhes foi dado, ou seja, em pessoas que compreendem o significado da sua doença. E se o indivíduo não tem consciência da classificação, como pessoas que não compreendem a linguagem, bebês ou crianças pequenas (Hacking, 2006)? Muitas vezes as crianças são diagnosticadas com TDAH antes de terem condições de entender o seu significado. Bem, nesses casos, poderíamos dizer que o efeito de feedback é impossível. Porém, Hacking (2006) afirma que os efeitos de arco envolvem unidades muito mais amplas, como a família e, talvez, no caso específico do TDAH, envolva também a escola. É impossível acreditar que esse rótulo não vai ter influência em inúmeras decisões que a família e, posteriormente, o adulto diagnosticado com TDAH, na infância, irão tomar. A partir de um diagnótico bem estabelecido, qualquer comportamento inesperado da criança passa a ser justificado pela doença que ela apresenta. As atitudes das pessoas ao seu redor se modificam em função do diagnóstico e das características consideradas como devidas à doença. Essa mudança afeta a criança com TDAH, fazendo com que ela mesma se veja de uma forma diferente, e assim ocorre o efeito de arco. A fala de uma mãe, retirada do trabalho de Uribe e Roja (2007), ilustra como um diagnóstico, uma classificação, pode mudar o ambiente em que a criança vive: [Depois de receber o diagnóstico] já todos entendemos. Todos tentamos mudar as atitudes com ele. [...] Não é que se faz de surdo. [...] a professora nos disse que ele mudou cem por cento, na atitude com seus colegas, tudo. [...] [a professora] o tinha rotulado. Julgava-o por coisas que ele não havia feito. Ao saber que o menino tinha isso [TDAH], a professora também passou a vê-lo diferente. A não vê-lo mais como a criança que tem culpa de tudo, mas sim como uma criança hiperativa. [..] Não porque ele queira, digamos assim. O diagnóstico mudou a vida de Rodrigo. Bastante. (Uribe, Roja, 2007, p.279)

Como foi dito no item 2.2, o efeito de arco pode apresentar dois efeitos diferentes, que Hacking chamou de efeito feedback positivo e efeito feedback negativo (Hacking, 2006). Dessa forma, poderse-ia sugerir que a maior parte das crianças com TDAH acaba apresentando um feedback positivo, em resposta ao seu modo de vivenciar a condição e ao modo como a família e a escola passam a tratá-la após o diagnóstico. Esses comportamentos reforçam as características da doença, podendo fazer com que a criança se perceba como doente e aja como tal. A partir do momento em que alguém entra para o rol dos doentes deve haver um tratamento disponível para tratar essa condição. Em geral, acredita-se que a criança com TDAH deva receber um medicamento para corrigir seus comportamentos desviantes para continuar vivendo em sociedade e entrar novamente nas suas normas e regras. Peter Conrad (Conrad, Schneider, 1992) chama esse controle do desvio e a promoção da conformidade social de controle social. Aquele que foge das normas deve ser controlado, para que a sociedade, ou a família, ou a escola, voltem ao seu “estado normal”. Conrad sustenta que existe o nível formal e o nível informal de controle social. O controle informal abrange tanto o autocontrole (internalização de normas, crenças, morais e a chamada “consciência”) quanto o controle relacional (relações do dia a dia), e inibe o comportamento individual considerado desviante. Por exemplo, alguém pode sair de casa com vontade de brigar com a primeira pessoa que encontrar pelo caminho; porém não irá fazê-lo, tanto pelas suas crenças morais e consciência, quanto pelo que os outros vão pensar e dizer sobre esse ato. O controle social formal engloba as formas institucionalizadas de controle, como: o sistema jurídico, policial, educacional, de assistência social e até o sistema de saúde. São as formas “oficiais” de controle, aquelas que ninguém está apto a questionar se não for especialista na área. Por serem tão COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.891-904, out./dez. 2010

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aceitas e, no caso específico do sistema de saúde, por possuir um respaldo da ciência, suas consequências são geralmente muito mais profundas e duradouras, tanto para o indivíduo classificado quanto para a sociedade e o meio em que ele vive (Conrad, Schneider, 1992). Assim, ser diagnosticado com TDAH por uma instituição oficial leva a uma mudança de comportamento, não só nos indivíduos diagnosticados, assim como em toda a sua rede social, que, por sua vez, acaba também por influenciar esse indivíduo, e assim por diante. O que nos leva a sugerir um efeito de arco com feedback positivo é a aceitação e o reforço das características pelas quais foi feito o diagnóstico, que devem então ser tratadas para que o meio volte à normalidade.

6 Considerações finais É muito comum pensar que várias formas de sofrimento, mal-estar e distúrbios psíquicos podem ser causadas, tratadas e curadas unicamente por meio da biologia (Legnani, Almeida, 2004). A prática de transformar problemas sociais em patologias tira as responsabilidades pelos desvios das mãos do sistema, família, indivíduo e sociedade em geral, para torná-los doenças, passíveis de serem tratadas com uma “bala mágica”, para utilizar o termo de Lewontin (Lewontin, Rose, Kamin, 2003). Um comportamento agitado ou desatento de uma criança pode vir, eventualmente, a ser considerado desviante. A escola, sobrecarregada de alunos, não tem condições de lidar com essa situação e, muitas vezes, transfere a responsabilidade por uma criança considerada problemática, para o sistema de saúde. O sistema de saúde, por sua vez, está estruturado de forma a diagnosticar e tratar doenças e, por essa razão, geralmente dá aos que o procuram um diagnóstico e um medicamento. O ideal de saúde da medicina atual, dita científica (que define saúde como ausência de doença), concebe o corpo como uma máquina que pode ser consertada se, porventura, apresentar algum defeito. Esse modelo não leva em consideração o fato de que não existe uma máquina corporal perfeita, em relação à qual se poderia considerar outra defeituosa, ou seja, uma máquina perfeita a partir da qual as demais seriam comparadas (Martins, 2004). O crescimento das ansiedades e exigências culturais sobre o desenvolvimento infantil e seu bemestar, dos últimos anos, é o principal responsável, segundo Timimi (2002), pela construção do TDAH como uma doença biomédica. Quer dizer, além de expectativas sobre o funcionamento da “máquina”, existem também expectativas sobre seu comportamento. O ser humano perfeito seria aquele que obedece às normas, de forma submissa. A natureza altamente subjetiva da definição de TDAH possibilita uma série de interpretações, fazendo com que esse diagnóstico seja colocado como um depósito de uma variedade de problemas (Timimi, 2002), geralmente não solucionados no âmbito escolar. Por essa subjetividade, corre-se o risco de tratar uma criança “normal” como “doente”, levando a própria criança a incorporar essa doença e se considerar realmente doente, e se ver incapaz, mesmo depois de adulta, de realizar atividades do cotidiano como outra pessoa considerada “normal”. Apesar do efeito de arco com feedback positivo que ocorre no TDAH e do controle social decorrente dessa condição, o diagnóstico pode apresentar um lado benéfico, de “libertação” da culpa, tanto da criança quanto de sua própria família, que deixam de ser vistas como culpadas pelo comportamento indesejável. A criança sai do rótulo de malcriada para o de doente (Silva, 2009). Seu problema passa a ser localizado no cérebro, em neurotransmissores e, portanto, relativamente mais fácil de ser “curado” ou controlado. Nos parece que a tolerância social com os diferentes está muito baixa, a ponto de as pessoas preferirem serem chamadas de doentes mentais do que de preguiçosas ou desorganizadas. Pode estar ocorrendo um processo em que a doença é tolerada, pois pode ser tratada e controlada, e, por outro lado, se acredita que a personalidade, entendida como aquilo que gera o comportamento, é algo menos palpável, mais difícil de controlar. Para tratar indivíduos que tenham algum distúrbio psiquiátrico, atualmente, não se utiliza mais o internamento e o encerramento, mas sim a medicalização. Os corpos são docilizados não pelo encerramento físico, manicomial, mas pelo encerramento psíquico, pelo uso de psicofármacos que modelam condutas, hábitos e pensamentos (Caponi, 2009). 902

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BRZOZOWSKI, F.S.; BRZOZOWSKI, J.A.; CAPONI, S.

artigos

Colaboradores Fabíola Stolf Brzozowski foi responsável pela redação e organização do artigo. Jerzy André Brzozowski redigiu também parte do artigo. Sandra Caponi supervisionou o processo todo de trabalho. Além dos papéis específicos que cada autor desempenhou, os três contribuíram igualmente para a discussão e revisão do manuscrito. Referências ANDRADE, E.R.; SCHEUER, C. Análise da eficácia do metilfenidato usando a versão abreviada do questionário de Conners em transtorno de déficit de atenção/ hiperatividade. Arqu. Neuropsiquiatr., v.62, n.1, p.81-5, 2004. BARRETT, J.R. Hyperactive ingredients? Environ. Health Perspect., v.115, n.12, p.A578, 2007. BLECH, J. Los inventores de enfermedades: cómo nos convierten en pacientes: Colección Imago Mundi. Barcelona: Destino, 2005. v.65. BOYD, R. Metaphor and theory change: what “metaphor” is a metaphor for. In: ORTONY, A. (Org.). Metaphor and thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p.356-408. BRZOZOWSKI, F.S. Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade: medicalização, classificação e controle dos desvios. 2009. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2009. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CAPONI, S. Michel Foucault e a persistência do poder psiquiátrico. Cienc. Saude Colet., v.14, n.1, p.94-103, 2009. COLLARES, C.A.L.; MOYSÉS, M.A.A. Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez, 1996. CONRAD, P.; SCHNEIDER, J.W. Deviance and medicalization: from badness to sichness: with a new afterword by the authors. Philapelphia: Temple University Press, 1992. DSM-IV-TR. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2002. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. HACKING, I. Kinds of people: moving targets. Proc. Br. Acad. v.151, p.285-318, 2007. ______. O autismo: o nome, o conhecimento, as instituições, os autistas - e suas interações. In: RUSSO, M.; CAPONI, S. (Orgs.). Estudos de filosofia e história das ciências biomédicas. São Paulo: Discurso Editorial, 2006. p.305-20. ______. The social construction of what? Cambridge: Harvard University Press, 1999. ______. A tradition of natural kinds. Philos. Stud., v.51, p.109-26, 1991. KONOFAL, E. et al. Effects of iron supplementation on attention deficit hyperactivity disorder in children. Pediatr. Neurol., v.38, n.1, p.20-6, 2008. LEGNANI, V.N.; ALMEIDA, S.F.C. A construção da infância: entre os saberes científicos e as práticas sociais. Estilos Clín., v.9, n.16, p.102-21, 2004. LEWONTIN, R.C.; ROSE, S.; KAMIN, L.J. No está en los genes: racismo, genética e ideología. Barcelona: Romanyà/Valls, 2003.

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BRZOZOWSKI, F.S.; BRZOZOWSKI, J.A.; CAPONI, S. Clasificaciones interactivas: el caso del Trastorno de Déficit de Atención con Hiper-actividad infantil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.891-904, out./dez. 2010. El filósofo de la ciencia Ian Hacking dice que nuestro mundo es un mundo de clasificaciones y que estas clasificaciones tienen efectos particulares cuando se refieren comportamientos de personas. En este trabajo se pretende discutir como el diagnóstico del Trastorno de Déficit de Atención con Hiper-actividad (TDAH) infantil puede funcionar como una clasificación y así afectar el comportamiento de los niños diagnosticados. Inicialmente se realiza una discusión sobre la función de las clasificaciones en la ciencia. A partir de estas consideraciones un modelo más general sobre la interacción entre clasificaciones y clasificados se propone con base en la distinción de Ian Hacking entre tipos indiferentes e tipos interactivos así como también la noción de efecto de arco propuesta por este autor. Por fin el modelo se aplica al TDAH donde se realizan consideraciones relacionadas a las nociones de control social de Peter Conrad.

Palabras clave: TDAH. Efecto de arco. Clasificación de personas. Medicación de la infancia.

Recebido em 15/09/09. Aprovado em 13/03/10.

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artigos

Utilização dos weblogs e de comunidades do orkut como ferramentas pedagógicas em cursos da área da saúde * Fabio Maia1 Miriam Struchiner2

MAIA, F.; STRUCHINER, M. The use of weblogs and orkut communities as pedagogical tools in courses in the health area. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.35, p.905-18, out./dez. 2010. This article discusses possibilities of the pedagogical use of Web 2.0 tools in courses in the health area. A research was conducted to identify weblogs and orkut communities that could be used as learning objects. Based on this material, a study was carried out with a group of Medical Psychology professors to examine their perceptions about the contributions of these tools to the development of pedagogical strategies. The results showed that these tools have the potential for being used as pedagogical resources. It was possible to identify different applications of these resources to Medical education as well as positive and negative aspects related to their use in the educational process. Finally, we concluded that the use of these tools favors the development of activities that value subjectivity in medical practice and allows new ways of putting students in contact with illness and patients’ treatment experiences.

Keywords: Social software. Blogs. Educational technology. Medical education.

Este artigo discute as possibilidades de uso pedagógico das ferramentas da Web 2.0 em cursos da área da saúde. Foi realizada uma pesquisa para evidenciar a existência de weblogs e de comunidades do orkut que poderiam ser utilizadas como objetos de aprendizagem. A partir deste material, foi feito um estudo, com um grupo de professores da disciplina Psicologia Médica, para se analisarem as contribuições dessas ferramentas para o desenvolvimento de estratégias pedagógicas. Os resultados demonstraram que essas possuem potencial para serem utilizadas como recursos pedagógicos. Foi possível identificar diferentes propostas de seu uso na formação médica e os aspectos positivos e negativos relacionados à sua utilização no processo educacional. Por fim, concluiu-se que o uso dessas ferramentas favorece o desenvolvimento de atividades que valorizem a subjetividade na prática médica e permite novas formas de aproximação dos alunos com as experiências do adoecimento.

Palavras-chave: Software social. Blogs. Tecnologia educacional. Educação médica.

* Pesquisa submetida à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. 1 Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nutes/UFRJ). Rua Gustavo de Andrade, 65. Vila da Penha, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.235-500. fabiomaiasouza@ terra.com.br 2 Nutes/UFRJ.

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Introdução Tradicionalmente, as práticas médicas têm como foco a dimensão sintomatológica dos quadros clínicos e a descrição dos elementos relacionados ao adoecimento, em que os aspectos subjetivos e as experiências relacionadas ao estado de adoecimento e tratamento são, de certa maneira, descartados dos processos de decisão clínica (diagnóstico e terapêutica). Neste modelo, o médico é o detentor do conhecimento necessário para definir os problemas e as melhores formas de tratamento em prol da recuperação clínica, não havendo interesse e nem espaço para ouvir, daqueles que buscam cuidados à saúde, suas expectativas e preferências, isto é, sua experiência com a doença (Serpa Junior et al., 2007). Mostrando-se como um contraponto à abordagem tradicional, a abordagem da “Narrativa do Adoecimento e do Tratamento” coloca a experiência do sujeito como elemento central, por valorizar a dimensão subjetiva do processo de adoecimento e os seus aspectos relacionais e interpessoais. Esta abordagem reconhece a importância da criação de espaço para que as pessoas falem sobre suas experiências relacionadas ao adoecer, possibilitando, desta forma, a valorização da sua palavra e experiência, permitindo o desenvolvimento de uma relação dialógica entre médicos e pacientes, auxiliando os médicos a compreenderem o significado de “estar doente” para cada indivíduo em particular. Neste cenário, o médico é desafiado a: ampliar suas perspectivas, inserir-se em situações complexas, tornar-se mais exposto, confrontar-se com suas concepções e preconceitos e, consequentemente, repensar suas práticas e decisões clínicas (Serpa Junior et al., 2007). Alguns fatores, como o declínio dos índices de mortalidade relacionados a doenças infecciosas e o aumento de doenças crônicas e degenerativas, ainda demandam mudanças significativas nas práticas clínicas no que diz respeito à valorização dos sentimentos, experiências e percepções sobre o adoecimento. Como exemplo, pode-se citar o caso de médicos que valorizam a narrativa e a experiência do adoecer e do tratamento dos portadores de doenças crônicas e degenerativas durante o atendimento clínico, para melhor compreenderem como estes lidam com as limitações que comprometem a realização das suas atividades cotidianas (Grossman, Cardoso, 2006). Um outro fator que vem trazendo transformações na relação entre pacientes e médicos é o aumento no número de pessoas que utilizam a internet para buscar informações sobre problemas de saúde e suas formas de tratamento e prevenção, ocasionado pela maior oferta de conteúdos relacionados à área da saúde devido à evolução das tecnologias digitais, em especial a web 2.03 (Garbin, Pereira Neto, Guilam, 2008). As facilidades oferecidas pela web 2.0, no que diz respeito à publicação de conteúdos, ao compartilhamento de informações e às possibilidades de interação, vêm fazendo com que uma parcela significativa de médicos utilize ferramentas digitais para disponibilizar conteúdos relacionados à área da saúde. Além disso, os sujeitos que buscam cuidados à saúde também utilizam essas mesmas ferramentas para expressarem seus sentimentos e suas experiências do “estar doente”, para, desta forma, darem significado ao momento conturbado que vivenciam; para compartilhar suas experiências, suas angústias e seus sofrimentos do adoecer com outras pessoas, e para construírem conhecimentos sobre seus problemas de saúde, permitindo se sentirem mais seguros e confiantes durante o tratamento ao qual são submetidos (Manhattan Research, 2007; O’Reilly, 2005). De acordo com Garbin, Pereira Neto e Guilam (2008), o aumento da oferta de conteúdos relacionados à área da saúde e o maior interesse em buscar informações vêm trazendo mudanças na postura das pessoas durante o atendimento clínico, as 906

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3 “A segunda geração de serviços on-line se caracteriza por potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações, além de ampliar os espaços para a interação entre os participantes do processo”. (Primo, 2006, p.1).


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artigos

quais adotam uma postura mais crítica diante do diagnóstico e do tratamento sugeridos. Este fato tem levado alguns médicos não somente a se voltarem para as questões referentes ao diagnóstico e ao tratamento das doenças, mas também para as questões referentes à valorização da narrativa daqueles que buscam cuidados à saúde e à compreensão das necessidades cognitivas, sociais e emocionais (Garbin, Pereira Neto, Guilam, 2008). Neste contexto, torna-se essencial que os cursos de formação médica não somente se preocupem em desenvolver competências e habilidades para lidar com as questões técnicas, mas considerem a importância de preparar os futuros médicos para desenvolverem uma prática clínica baseada em abordagens que valorizem as experiências dos sujeitos, ou seja, a dimensão subjetiva que permeia os processos de adoecimento e tratamento (Serpa Junior et al., 2007; Lampert, 2001). O desenvolvimento de estratégias pedagógicas, mediadas por ferramentas de informação e comunicação da web 2.0, parece ser um dos possíveis caminhos a serem explorados neste processo. Isto porque a inserção das tecnologias digitais, segundo Struchiner (1998), tem potencialidades para promover mudanças significativas nos modelos educativos. Diante destas questões, este estudo objetivou discutir as possibilidades de utilização das ferramentas de informação e comunicação da web 2.0 como ferramenta pedagógica nos cursos de formação na área da saúde. Para atender este objetivo, o estudo investigou, com base nos princípios e orientações procedimentais da webometria e da cibermetria (Vanti, 2005), espaços digitais, em especial os weblogs e as comunidades do orkut, que apresentam assuntos relacionados a psicopatologias, objetivando confirmar a existência de artefatos que tenham potencial para serem utilizados como recursos de aprendizagem na disciplina Psicologia Médica. Além disso, foram analisadas as possíveis contribuições desses recursos para o desenvolvimento de atividades educativas que viabilizam a compreensão da subjetividade por meio da valorização da narrativa e do papel dos médicos tanto no contexto da formação quanto da prática, com base na visão de um grupo de professores desta disciplina no curso de Medicina da UFRJ. Os métodos escolhidos para a coleta e análise dessas informações foram, respectivamente, o Grupo Focal e a Análise de Conteúdo (Minayo, 1993).

Uso das ferramentas da web 2.0 no contexto da saúde As possibilidades de utilização das ferramentas da web 2.0 na área da saúde, segundo Boulos, Maramba e Wheeler (2005) e McLean, Richards e Wardman (2007), são bastante variadas. Em seus estudos, os autores apontam algumas possibilidades como, por exemplo: a utilização dos weblogs para discussão de casos clínicos, imagens clinicas e tópicos específicos da área médica; e o uso dos softwares sociais para interação e comunicação entre aqueles que buscam cuidados à saúde, seus familiares e equipe médica, como vem ocorrendo, por exemplo, em alguns hospitais universitários nos EUA. O weblog é um aplicativo da web que permite a inserção de informações, também conhecida como postagens. Essas informações são apresentadas em ordem cronologicamente inversa, isto é, as mais recentes são apresentadas antes das mais antigas. As postagens são constituídas por textos, imagens, vídeos, sons e/ou links. Além disso, existe um recurso denominado “área de comentários”, que permite que outras pessoas possam fazer considerações e observações sobre as informações inseridas, favorecendo a interação entre o proprietário do weblog e as pessoas que o visitam e, até mesmo, entre os próprios visitantes (Valente, Mattar, 2007; Boulos, Maramba, Wheeler, 2005). O software social é um aplicativo da web, que agrega diferentes tipos de ferramentas (fórum, chat, e-mail, recados ou mensagens instantâneas), que possibilita a interação, mediada pela internet, entre pessoas ou grupos de pessoas, e a criação de redes sociais e comunidades que possuem afinidades e interesses comuns, possibilitando o compartilhamento e a discussão de diferentes temáticas. Dentre os inúmeros softwares de relacionamentos existentes, o orkut é, no Brasil, o mais utilizado. Esta popularidade se deve às suas características de inovação tecnológica, que permitem o acesso a milhões de usuários, facilidade de utilização e oferta de inúmeras ferramentas para a comunicação e construção dos perfis dos participantes (Valente, Mattar, 2007; Primo, Brambilla, 2004). Apesar de compartilharem os princípios da web 2.0, essas ferramentas possuem características que as diferenciam e que, de certa forma, definem suas formas de utilização. No caso do weblog, a sua COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.905-18, out./dez. 2010

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principal característica está voltada para a publicação de informação na internet, que faz com que a ferramenta possa ser utilizada para a construção de espaços de expressão pessoal. No caso do software social, a principal característica é a interação, que faz com que ele seja mais utilizado para criação de comunidades de aprendizagem e estabelecimento de laços sociais (Valente, Mattar, 2007). A aplicabilidade das ferramentas da web 2.0 no contexto educacional, de acordo com Anderson (2007), possui quatro vertentes: pesquisa acadêmica, publicações, biblioteca e ensino-aprendizagem. No que se refere à pesquisa acadêmica, as ferramentas são utilizadas para: compartilhar, com a comunidade científica, os resultados obtidos nos estudos, difundir informações científicas junto ao público e ajudar os pesquisadores a armazenarem e organizarem os seus documentos acadêmicos. No caso das publicações, elas podem ser utilizadas como um meio mais rápido para a publicação de informações, quando comparadas às mídias tradicionais, tais como livros, revistas e periódicos, e para facilitar o acesso às informações publicadas. Nas bibliotecas, elas podem oferecer novas formas de indexação, que auxiliem a recuperação de informação e coloquem os usuários não somente como consumidores, mas também como produtores de conteúdo. Já no que se refere ao ensinoaprendizagem, o uso das ferramentas possibilita a realização de práticas educativas que valorizam a aprendizagem continuada e o desenvolvimento do espírito criativo e inovador dos alunos. Além disso, contribuem para: o desenvolvimento das habilidades voltadas para a reflexão, a investigação, o autoaprendizado, a negociação, o compartilhamento de ideias e o trabalho colaborativo (Anderson, 2007; Primo, 2006). O uso dos weblogs e dos softwares sociais no contexto da formação médica possibilita a criação de comunidades de aprendizagem, mediadas por tecnologias digitais, que permite aos alunos realizarem atividades colaborativas e compartilharem recursos e conhecimento. Tais possibilidades podem trazer novas perspectivas para o processo de aprendizagem envolvendo professores, alunos, sujeitos acometidos por patologias e diferentes especialistas. Além disso, essas ferramentas são adequadas para divulgar e transmitir informação relacionada à saúde, servir de apoio a consultas acadêmicas e capacitar profissionais da área da saúde que possuem dificuldades de acesso aos centros acadêmicos e hospitais de referência (McLean, Richards, Wardman, 2007; Boulos, Maramba, Wheeler, 2005). Mesmo diante das inúmeras contribuições que as ferramentas da web 2.0 oferecem para o processo de aprendizagem, Boulos, Maramba e Wheeler (2005) afirmam ainda que é extremamente necessária a realização de novos estudos que apontem estratégias adequadas para a utilização desses recursos nas práticas educativas nos cursos da área da saúde.

Materiais e métodos Nesta primeira etapa da pesquisa, o estudo foi desenvolvido em duas partes. A primeira parte é referente ao levantamento, identificação e classificação dos weblogs e das comunidades do orkut, que apresentam assuntos relacionados a psicopatologias, com objetivo de evidenciar a existência de um repertório de materiais que podem ser utilizados como recursos de aprendizagem na disciplina Psicologia Médica. A segunda parte objetivou analisar, com base na perspectiva de um grupo de docentes da disciplina Psicologia Médica, as contribuições oferecidas por esses recursos no desenvolvimento de estratégias de aprendizagem que valorizem a narrativa e as questões subjetivas que permeiam as práticas médicas. Considerando que alunos são elementos centrais do processo educativo, estudos posteriores levarão em consideração as percepções destes, objetivando ampliar o conhecimento sobre a utilização e o impacto da introdução das ferramentas da web 2.0 em práticas educativas. Além disso, incluirão levantamentos de outras psicopatologias e patologias que também são temáticas relevantes para a Psicologia Médica.

Levantamento, identificação e análise dos weblogs e das comunidades do orkut Optou-se por realizar um estudo exploratório dos weblogs e comunidades do orkut que apresentam, como temática, os assuntos relacionados a diferentes psicopatologias, baseados em alguns princípios e 908

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4 Motor de busca disponível em: http:// www.google.com.br/ blogsearch?hl=pt-BR

5 Software social disponível em: http:// www.orkut.com.br

Títulos e endereços (URL) dos weblogs que foram fornecidos como exemplo para os professores participantes do grupo focal: “Bipolar... ou Mente poderosa” (http://sfmentepoderosa. blogspot.com) e “Mais um diário de mais um bipolar” (http://maisumbipolar. blogspot.com). 6

Títulos e endereços (URL) das comunidades do orkut que foram fornecidos como exemplo para os professores participantes do grupo focal: “Síndrome do Pânico. Tem cura?” (http:// www.orkut.com.br/ Main#Community? cmm= 67689993) e “Síndrome do Pânico” (http:// www.orkut.com.br/ Main#Community. aspx? cmm= 33690625). 7

artigos

orientações procedimentais da webometria e da cibermetria, tais como: técnicas de coletas de dados recomendadas, frequência de distribuição e classificação dos espaços. A webometria e a cibermetria são campos de conhecimento que estão relacionados à análise quantitativa dos conteúdos disponibilizados na internet, da estrutura de links, do uso da internet e de suas ferramentas de informação e comunicação (Vanti, 2005). Para realizar o levantamento dos weblogs, foi utilizado o motor de busca google pesquisa de blogs4 e, no caso das comunidades do orkut5, foi o próprio motor de busca disponibilizado por este software social. A amostra ficou restrita aos espaços que apresentavam informações em língua portuguesa. Foram utilizados nove termos de busca: doença mental,esquizofrenia, fobia, psicose, psiquiatria, saúde mental, síndrome do pânico, transtorno bipolar e transtorno mental. Para escolha dos termos, foi previamente solicitado, a dois professores do departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRJ, envolvidos em um projeto de pesquisa sobre narrativas de adoecimento e tratamento, que indicassem termos relacionados às temáticas tratadas nas disciplinas que estavam sob sua responsabilidade. O levantamento dos espaços ocorreu em um único dia (27 de outubro de 2008). No caso dos weblogs, pesquisou-se aqueles que apresentavam, em seu título, os termos de busca já citados. Para pesquisar no orkut, foram utilizados, primeiro, os filtros de categoria e idioma, restringindo-se às comunidades pertencentes à categoria “Saúde, bem-estar e fitness”. Em seguida, buscou-se por aquelas que apresentavam, no título, os termos especificados pelos professores. Com base nos resultados obtidos, foi realizada a análise individual das informações presentes em cada um dos espaços digitais, com o intuito de se avaliar a adequação ou não destes à proposta da pesquisa. Diante da falta de informação que dificultava a definição dos objetivos de criação e o perfil das pessoas que criaram os espaços pesquisados, foram empregadas duas estratégias para se coletarem essas informações: a primeira foi a análise das postagens dos weblogs e das mensagens presentes nos fóruns de discussão das comunidades; e a segunda foi entrar em contato com os proprietários dos espaços digitais acessados, para se obterem dados que ajudassem a identificar o perfil dos donos e os objetivos que os levaram a criar esses espaços.

Contribuições pedagógicas dos weblogs e do orkut na perspectiva dos professores O grupo focal (Minayo, 1993) foi o método escolhido para coleta das informações que indicassem a visão dos professores sobre as possibilidades de utilização dos weblogs e do orkut como ferramentas pedagógicas nos cursos de graduação em medicina. Os participantes do grupo focal foram três professores da disciplina Psicologia Médica, sob responsabilidade do departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRJ. Dois dos professores eram do sexo feminino e um do masculino, suas faixas etárias variavam entre quarenta e cinquenta anos, e o tempo médio de magistério dos professores era de 13,3 anos. A seleção desses professores se deveu ao fato de a disciplina Psicologia Médica ser um espaço privilegiado em que se oferece ao aluno, durante sua formação, a oportunidade para refletir sobre os aspectos subjetivos que permeiam a prática médica e a relação entre médicos e pacientes (Nogueira-Martins, 2003). Dias antes do encontro com os professores, foi oferecida uma lista contendo dois weblogs6 e duas comunidades presentes no orkut7, com temáticas relacionadas às psicopatologias, com o objetivo de familiarizá-los com a estrutura e funcionamento COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.905-18, out./dez. 2010

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dessas ferramentas e permitir que estes tivessem acesso às narrativas apresentadas, possibilitando, desta forma, que adquirissem um conhecimento prévio sobre o assunto, facilitando assim as discussões sobre as possibilidades de uso das ferramentas no processo de aprendizagem. Para a escolha dos recursos, foram adotados os seguintes critérios: espaços mantidos por sujeitos que buscam cuidados à saúde, que veiculavam narrativas das experiências sobre psicopatologias, que se apresentavam em maior número durante o levantamento, e que possuíam a maior quantidade de postagens (weblogs) ou quantidade de membros (comunidades). Para auxiliar na condução das discussões, foi elaborado um roteiro com questões semiestruturadas relativas aos objetivos da pesquisa. No dia da reunião com os professores, foi solicitado, durante o encontro, que cada um se manifestasse livremente sobre: (a) sua experiência no uso da informática e da internet, tanto no contexto pessoal quanto no profissional e no educacional; (b) suas considerações pessoais sobre a importância das narrativas e da valorização da subjetividade para a formação médica; (c) as estratégias pedagógicas utilizadas em suas aulas para que os alunos tivessem contato com a narrativa e os aspectos subjetivos que permeiam a formação médica; e (d) sobre as possibilidades de uso dos weblogs e das comunidades do orkut na disciplina Psicologia Médica. Como se pode perceber, as questões apresentadas foram abrangentes, extrapolando perguntas pontuais sobre as contribuições dos weblogs e do orkut para o processo de aprendizagem. Entretanto, elas se mostraram essenciais para a compreensão da visão dos docentes sobre de que forma essas ferramentas podem contribuir para a valorização das questões subjetivas e da narrativa na formação médica e nas práticas clínicas, suas práticas de ensino e a utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) na educação. As falas e debates dos professores foram gravados, com devido consentimento, e, posteriormente, transcritos e analisados com base no método de Análise do Conteúdo (Minayo, 1993).

Resultados Análise dos resultados do levantamento dos weblogs e do orkut Os resultados obtidos durante o levantamento revelaram um total de 190 weblogs e 362 comunidades do orkut. Destes, somente 64 blogs e 187 comunidades foram consideradas válidas para o presente estudo, já que, após um exame minucioso, estes foram considerados como vinculados às temáticas pesquisadas. Foram excluídos aqueles espaços que: (a) não possuíam relação com as temáticas já citadas, (b) não apresentavam endereço (URL) válido, e (c) não apresentavam as datas das postagens ou não possuíam nenhuma postagem. A análise dos dados coletados indicou que, dos 78 weblogs analisados, 25,64% (20) deles foram criados por profissionais da área da Saúde; 23,08% (18) por pessoas acometidas por psicopatologias; 17,95% (14) por instituições que atuam na área da Saúde; 10,26% (8) por estudantes; 5,13% (4) por professores da área da Saúde, e 2,56% (2) por familiares de pessoas acometidas por psicopatologias. Já no caso das comunidades do orkut, percebeu-se que 33,69% (63) delas foram criadas por pessoas acometidas por psicopatologias; 24,06% (45) por profissionais da área da Saúde; 9,09% (17) por instituições que atuam na área da Saúde; 4,28% (8) por familiares de pessoas acometidas por psicopatologias; 1,07% (2) por estudantes, e 0,53% (1) por professores da área da Saúde. Cabe destacar que não foi possível identificar o perfil das pessoas que criaram os espaços digitais em 15,38% (12) weblogs e em 27,28% (51) comunidades pesquisadas (Figura 1).

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Weblog

40,00

Comunidade do orkut

35,00 30,00 25,00

artigos

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33,69% 25,64% 24,06%

27,28% 23,08%

20,00

17,95% 15,38%

15,00 9,09%

10,00

10,26% 5,13%

5,00

1,07%

0,00 Profissional da área da saúde

Usuário dos serviços de saúde

Instituição

Estudante da área da saúde

0,53% Professor da área da saúde

2,56%

4,28%

Familiar de usuário

Não identificado

Figura 1. Perfil dos proprietários dos weblogs e das comunidades do orkut.

Os resultados mostram a maior presença de espaços mantidos por pessoas acometidas por psicopatologias e profissionais da área da saúde. Essas informações corroboram os achados de alguns autores, como Manhattan Research (2007) e Garbin, Pereira Neto e Guilam (2008), sobre o aumento do interesse de médicos em veicular informação sobre saúde na internet e novas possibilidades de interação daqueles que buscam cuidados à saúde, objetivando a troca de informação sobre as patologias e formas de tratamentos; e, ainda, a busca por espaços que permitam a expressão dos seus sentimentos, angústias, medos e experiências sobre o adoecer. Em contrapartida, os resultados indicam que o número de espaços mantido por professores é bastante reduzido, tal fato deve-se, provavelmente, à falta de conhecimento e familiaridade dos docentes com o manuseio das ferramentas da web 2.0. O estudo também mostrou que 52,56% (41) dos weblogs analisados tinham, como principal objetivo, a apresentação de informações sobre as psicopatologias; 19,23% (15) a veiculação de narrativas de experiências relacionadas ao processo de adoecimento e tratamento; 12,82% (dez) o desenvolvimento de atividades educativas, e 11,54% (nove) a divulgação de serviços prestados na área da Saúde. Já com relação às comunidades, percebeu-se que 42,25% (79) delas foram criadas exclusivamente para apresentar informações sobre as psicopatologias; 26,74% (cinquenta) para divulgar simultaneamente informações sobre as psicopatologias e narrativas sobre a experiência do processo de adoecimento e tratamento; 17,65% (33) para veicular exclusivamente as narrativas das experiências relacionadas ao adoecer; 9,62% (18) para divulgar serviços prestados na área da Saúde, e 1,07% (dois) para o desenvolvimento de atividades educacionais. É necessário destacar que não foi possível identificar os objetivos de criação em 3,85% (três) weblogs e em 2,67% (cinco) comunidades analisadas (Figura 2).

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60,00 52,56%

Weblog

50,00

Comunidade do orkut

42,25% 40,00

30,00

26,74% 19,23%

20,00

17,65% 12,82%

10,00

11,54%

9,62% 3,85%

1,07%

0%

0,00 Informação

Informação e Narrativa de experiências

Narrativa de experiências

Atividade educativa

Divulgação de serviços

2,67%

Não identificado

Figura 2. Objetivo de criação dos weblogs e das comunidades do orkut.

A presença significativa de weblogs e comunidades com o objetivo de apresentar informação sobre as psicopatologias pode ser um indicador positivo da possibilidade de uso desses recursos como repositórios de informação em atividades pedagógicas, que podem ser utilizados não somente como fonte de conhecimento técnico, mas também como outros espaços que possibilitem a análise das narrativas para a observação dos aspectos subjetivos que permeiam o processo de adoecimento e tratamento. Ainda é possível observar a existência de um número significativo de espaços digitais voltados para a veiculação de experiências, sensações e angústias sobre o adoecimento. Mesmo que esses espaços não tenham sido concebidos exclusivamente para atender um propósito educacional, eles podem ser utilizados no desenvolvimento de atividades que promovam novas formas de acesso às experiências subjetivas do processo de adoecer, favorecendo a reflexão e a sensibilização dos alunos sobre a importância da valorização da narrativa e da subjetividade na prática médica.

Análise dos resultados sobre as contribuições pedagógicas dos weblogs e do orkut Com base na análise das verbalizações coletadas no grupo focal, foi possível identificar cinco núcleos temáticos nas discussões ocorridas no grupo focal: (1) relação entre prática médica e subjetividade, (2) relação entre formação médica e subjetividade, (3) estratégias pedagógicas utilizadas, (4) possibilidades de uso dos weblogs e do orkut, e (5) aspectos positivos e negativos relacionados ao uso das tecnologias no ensino médico. Como se pode perceber, as falas dos professores foram abrangentes, extrapolando questionamentos pontuais sobre as contribuições das ferramentas para o processo de aprendizagem. Os núcleos temáticos possibilitaram compreender a visão dos docentes sobre o uso das ferramentas da web 2.0 no contexto de suas práticas educativas, da formação médica e do atendimento à saúde. 912

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artigos

1) Relação entre prática médica e subjetividade Os resultados indicaram que, sendo a prática médica uma relação que envolve seres humanos (médicos e pacientes), é quase, ou até mesmo, impossível desassociar a subjetividade do exercício da Medicina, já que os sentimentos, as sensações e as experiências vivenciadas fazem parte de todas as relações humanas (Silva, Rocha, 2008). “[...] acho muito importante a noção de que o médico também é humano [...]. Tem alguns casos, que a gente se identifica demais, que é difícil, entende? Que a gente vira poste, encaminha para outro médico e até chora [...]. Quando a gente chora e faz cafuné [...]. Quando a gente não devia ter essa atitude [...]. Mas isso não devia ser a regra, a gente tem que buscar um equilíbrio”. (fala do professor A)

Na perspectiva destes professores, diferentes fatores podem dificultar a abertura de espaços e momentos para se trabalhar a questão da subjetividade na Medicina. Dentre eles, pode-se citar a exigência de maior disponibilidade de tempo e demanda emocional por parte dos médicos a fim de lidarem com essas questões durante o atendimento, além da necessidade de criação de artifícios com o objetivo de preservarem a sua saúde psíquica e emocional, diante de situações vivenciadas durante o acompanhamento daqueles que buscam cuidados à saúde (Silva, Rocha, 2008; Nogueira-Martins, 2003). “[...] há uns 15 dias, duas alunas me perguntaram como é que elas faziam para ficar menos tristes com os casos que estavam vendo nas enfermarias. Daí eu respondi: Não tem como ficar menos triste [...]. Disse que era uma escolha pessoal, que tinham que ver qual era o modelo para elas de boa prática médica, que realmente se envolver é muito difícil sim, que a tendência da gente é virar poste [...]. Mas talvez, entre virar poste, e aquele que chora a toda a hora, faz carinho, passa a mão na cabeça [do paciente] [...]. Tem aí um meio termo que você consegue. (fala do professor C)

2) Relação entre formação médica e subjetividade Para atender as demandas da prática médica, de acordo com as falas dos professores, a formação está voltada para o desenvolvimento de competências e habilidades que possibilitem aos alunos lidarem com os aspectos físicos do adoecer e as formas de tratamento das patologias, e não com os aspectos subjetivos do processo de adoecimento. “Nós falamos desse negócio da inserção da subjetividade no campo da medicina [...]. Se isso é possível ou não, é uma questão complicada [...] a questão é como incluir, dentro desse modelo médico hegemônico, algo que diz respeito ao sofrimento, angústia e dor. O médico é treinado a estudar a lesão, a encontrar a doença. O curso médico é para isso. É assim que os livros ensinam os alunos[...]. Por isso, a Medicina, metodologicamente e epistemologicamente, precisa ser como o conhecimento científico e não tem como ser de outro jeito [...]”. (fala do professor B)

Eles destacaram que poucos são os momentos reservados para a discussão das questões referentes à vivência, aos sentimentos e às experiências tanto de sujeitos que buscam cuidados à saúde quanto dos futuros médicos durante a formação e a prática médica (Silva, Rocha, 2008). É importante ressaltar que a fala do professor apresenta dilemas que não podem ser ignorados: a questão da relação entre conhecimento científico e subjetivo na prática e na formação médica. O conhecimento científico não pode ser colocado em segundo plano durante formação, pois irá comprometer a atuação no exercício profissional. Entretanto, a subjetividade estará sempre presente, já que esse aspecto é inerente a todas as áreas que envolvem seres humanos e, por isso, não teria por que ser diferente na área da Saúde. Normalmente, a disciplina Psicologia Médica se revela um momento privilegiado, durante todo o curso de Medicina, para a discussão dessas questões, tentando contribuir efetivamente para a formação de médicos mais sensibilizados às questões referentes à valorização dos aspectos subjetivos e da narrativa durante a prática médica (Nogueira-Martins, 2003). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.905-18, out./dez. 2010

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“Você vai chegar no paciente e ele vai ser melhor tratado, por um aluno mais sensível, um médico melhor, mais bem informado [...]”. (fala do professor C)

3) Estratégias pedagógicas utilizadas A análise dos resultados mostrou que estes professores fazem uso de diferentes estratégias pedagógicas para tratar da valorização da narrativa sobre o processo de adoecimento e de tratamento, sempre com o objetivo de levar os alunos a questionarem e a refletirem sobre os aspectos referentes a sentimentos, expectativas, sensações e emoções que permeiam a prática médica, tanto do ponto de vista dos próprios médicos quanto daqueles que buscam cuidados à saúde. Dentre as estratégias mais citadas, encontram-se: leitura de textos fictícios, apresentação de relatos, realização de debates, apresentação de casos clínicos e exibição de filmes. “[...] existem filmes ótimos como “Mar aberto” e “O escafandro e a borboleta” que apresentam muitas questões para discussão. Acho que isso gera uma coisa interessante para os alunos [...]. No momento que estão vendo o filme ou uma peça de teatro imbuídos do papel de médico, aquilo entra de outra maneira [...]. Já quando vai um paciente falar na sala de aula da sua experiência como doente, os alunos não precisam entrevistá-los, eles não são médicos naquele momento. Aquilo causa um impacto emocional mais forte [...]. Mas, além de tudo isso, o que eu acho que funciona mesmo é a discussão de casos em que os alunos falam da sua experiência. Além do ofício médico, da aprendizagem, da técnica, da habilidade [...]. Eles falarem como é complicado para acompanharem pacientes todos os dias... As pessoas internadas no HU são pacientes muito graves, o que gera uma exigência emocional muito grande. É um trabalho muito difícil, muito delicado para qualquer pessoa, ainda mais com 20 e 21 anos de idade [...]”. (fala do Professor B)

4) Possibilidades do uso dos weblogs e do orkut Em um contexto mais abrangente, segundo a visão desses professores, a utilização das ferramentas da web 2.0 pode trazer contribuições significativas para o processo de aprendizagem, pois a inserção das tecnologias no ambiente educacional permite o engajamento dos alunos na realização das atividades, os torna mais participativos e favorece a aproximação entre alunos e professores (Kenski, 2007). “O Professor B sugeriu usarmos mais audiovisual e propormos que os alunos apresentem os trabalhos no final da disciplina utilizando fragmentos de filmes [...]. É impressionante como os alunos começaram a gostar mais do trabalho [...]”. (professor A)

No que diz respeito ao uso dos weblogs e do orkut para o desenvolvimento de estratégias pedagógicas, com a finalidade de tratar as questões relacionadas à subjetividade, foram apresentadas duas propostas: (a) uso dos weblogs e das comunidades como repositório de informações (Gomes, Lopes, 2007), em que os espaços já existentes na internet poderiam ser utilizados pelos alunos como fonte de informação e consulta para realização de atividades e para complementar os assuntos tratados nas aulas; (b) criação de espaços que possibilitem alunos e professores discutirem sobre temáticas, trocarem informações e aprofundarem os assuntos tratados durante as aulas, permitindo novas oportunidades de compartilhamento de experiências, vivências e sentimentos, suscitados pelo contato com as pessoas que buscam cuidados à saúde, ao longo da formação médica (Forte, Rocha, 2007; Recuero, 2007). “Cada grupo de alunos escolhe um tema sobre qual eles querem trabalhar: eutanásia, câncer de mama, vocação médica e anorexia [...] os weblogs e as comunidades do orkut podem ser usados como bibliografias dos trabalhos dos alunos [...]”. (professor B) “No caso do orkut, seria interessante criar uma comunidade para discutir tópicos de Psicologia Médica [...]. Até mesmo a criação de uma comunidade que fosse um espaço que permitisse aos alunos trocar experiências entre eles de forma mais tranqüila [...]”. (professor C)

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artigos

Segundo os professores, as narrativas sobre o processo de adoecimento, apresentadas nos weblogs e nas comunidades, são mais espontâneas e próximas da realidade vivenciada do que aquelas apresentadas nos textos fictícios, livros biográficos e filmes. “Tem alguns exemplos que nós falamos da outra vez, como os livros autobiográficos de pessoas”. (professor A) “Mas eu tenho a impressão que nos weblogs e nas comunidades do orkut a coisa mais viva do que o livro. Porque o livro já é um processo de reflexão [...]. Uma coisa mais romanceada”. (professor C)

As observações apresentadas pelos professores sobre o potencial do uso dos espaços digitais para o desenvolvimento de atividades, juntamente com os resultados do levantamento realizado neste estudo, podem ser compreendidos como indicadores favoráveis para a utilização dos weblogs e do orkut no contexto educacional, para disponibilizar informações sobre as psicopatologias e para criar novas formas de aproximação dos alunos com diferentes experiências vivenciadas durante o adoecer, favorecendo a reflexão e a sensibilização sobre a importância da valorização da narrativa e da subjetividade na prática médica. Destaca-se que, apesar de os professores reconhecerem o diferencial das narrativas presentes nesses espaços, eles não cogitaram a possibilidade de seu uso para o desenvolvimento de atividades que permitam a análise das narrativas para a observação dos aspectos subjetivos que permeiam o processo de adoecimento e tratamentos. 5) Aspectos positivos e negativos relacionados ao uso das tecnologias no ensino médico Diferentes aspectos, de acordo com os professores, podem favorecer a inserção do weblog e do orkut como recursos de aprendizagem nos cursos de formação médica. Dentre esses, destacaram-se: o interesse, o domínio e a familiaridade sobre o uso das ferramentas digitais pelos alunos. “O Professor B sugeriu de usarmos mais audiovisual e propormos que os alunos apresentem os trabalhos no final da disciplina utilizando fragmentos de filmes [...] Os alunos pegam os filmes pela internet, fazem a edição e produzem um novo material [...]. Eles próprios usam a cena do filme para discutir a teoria”. (professor A)

Além disso, foram identificados desafios que devem ser superados para que se possa ter o uso efetivo dessas ferramentas no ambiente educacional, como: a falta de interesse, conhecimento e familiaridade dos recursos tecnológicos dos professores, as dificuldades para o manuseio das ferramentas que, consequentemente, levam à inibição do uso efetivo e ao receio de que a inserção das tecnologias venha substituir as estratégias tradicionalmente utilizadas e o contato face a face com os alunos. “Eu tenho que confessar que eu sou um pouco alérgica a essas coisas [orkut, weblogs e MSN] porque você perde muito tempo”. (professor A) “Se a gente está tratando de humanização, e humanização implica em sensorialidade, em cheiro e ir com a cara do outro. Tem que bater com o santo, tem que cruzar o santo ou não cruzar o santo. Como é que se cruza santo via internet? [...] Como é que vai com a cara do outro, ou não vai? [...] como é que a gente vai utilizar, se é que é o caso, um sistema como esse, para facilitar o ensino, para fortalecer o ensino, para que o estudante perceba que ele e os doentes são gente [...]. Isso não é uma contradição?” (fala do professor B)

Ressalta-se que estes desafios não estão restritos ao contexto da Educação em Saúde e das ferramentas de comunicação da web 2.0, já que diversos estudos apontam que esses são desafios presentes em todos os níveis educacionais (Ferreira, Ventura, 2008; Tonani, 2008; Kesnki, 2007). Isto é, indicam a necessidade de maior aprofundamento sobre estes ambientes oferecidos pelas TICs, como novos espaços sociais que não substituem o contato presencial, mas que podem enriquecer a experiência dos alunos na formação médica. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.905-18, out./dez. 2010

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Considerações finais Os resultados do levantamento dos espaços digitais e da análise das percepções dos professores sobre as contribuições dos weblogs e do orkut ao processo de aprendizagem permitiram constatar que diferentes profissionais da área da saúde estão utilizando essas ferramentas como um instrumento para veicular informação sobre psicopatologias. Além disso, percebeu-se que as pessoas tendem a utilizar esses espaços como mais um meio para buscar informações sobre a doença, para expressar seus sentimentos e suas experiências com o processo de adoecimento e para compartilhar suas angústias e sofrimentos com outras pessoas que também estão vivenciando este mesmo momento. No que se refere ao processo de aprendizagem, percebeu-se que os blogs e o orkut ainda são poucos utilizados no contexto da formação na área da saúde. Apesar disso, foi constatado, segundo a percepção dos docentes que participaram deste estudo, que eles podem ser utilizados como ferramentas pedagógicas para o desenvolvimento de estratégias que permitam aos alunos e professores discutirem sobre a importância da valorização da subjetividade tanto na formação quanto na prática profissional. Eles também podem ser usados com uma nova forma de aproximação dos alunos com as experiências relacionadas ao processo de adoecimento e tratamento, por meio das narrativas apresentadas nestes espaços. Além disso, podem servir como mais uma fonte de informação a ser utilizada para o desenvolvimento dos trabalhos e atividades. A análise das verbalizações mostrou que os professores participantes apresentam posicionamento ambíguo com relação ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação no contexto educacional. Apesar de reconhecerem as possibilidades e as contribuições da inserção de weblogs e comunidades do orkut no processo de aprendizagem, eles acreditam que as relações interpessoais mediadas pelas tecnologias digitais apresentam limitações na contemplação dos aspectos sensoriais, afetivos e emocionais. Diante disso, torna-se interessante o desenvolvimento de um trabalho junto a esses docentes para auxiliá-los na familiarização com as ferramentas da web 2.0, em especial o weblog e o orkut, objetivando a utilização desses recursos no contexto educacional (Moran, 2000). Isto possibilitará a esses professores vivenciarem situações e construírem relações, por meio desses espaços, permitindo que repensem seus pontos de vista sobre as limitações das ferramentas da internet para a valorização dos aspectos subjetivos. Torna-se importante frisar que a utilização das ferramentas da web 2.0 como um simples recurso didático não oferece garantias de que estas contribuirão de forma significativa para o processo de aprendizagem, no que se refere à importância da valorização da subjetividade durante a prática profissional. O uso de novos recursos por si só ou de uma forma isolada não é suficiente para as mudanças necessárias, e as estratégias pedagógicas propostas devem ir além da simples reprodução de conteúdos. É necessário o desenvolvimento de atividades que contemplem a solução de problemas, a realização de tarefas contextualizadas e que permitam ao aluno assumir papel ativo no processo de construção do conhecimento, favorecendo, assim, transformações substanciais do modelo de relação entre profissionais da área da saúde e paciente, atualmente adotado, para um modelo que valorize tanto os aspectos físicos quanto os aspectos subjetivos do adoecimento. Diante disso, as diferentes ferramentas da web 2.0 oferecem potencial para tais práticas educativas, já que elas podem ser utilizadas nas atividades pedagógicas tanto como repositórios de conteúdos, quanto como espaços de interação e colaboração. Os resultados estão restritos ao universo pontual desta pesquisa, já que apresentam a percepção dos docentes participantes sobre as contribuições do uso pedagógico dos weblogs e das comunidades do orkut. Já que esses professores, por causa da natureza da disciplina Psicologia Médica, possuem normalmente uma maior aproximação com os aspectos sensoriais, afetivos e emocionais dos sujeitos que buscam cuidados à saúde e dos médicos do que os professores das outras disciplinas que compõem as matrizes curriculares do curso de graduação em Medicina e de outros cursos na área da saúde. Diante disso, para avançar neste campo de investigação, são necessários: a ampliação desta pesquisa para englobar a visão de professores de outros cursos da área da saúde, o uso de outras ferramentas de comunicação da web 2.0 e a viabilização de estudos que envolvam experiências concretas com o uso destes recursos no processo de formação dos profissionais da saúde.

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artigos

Colaboradores Fabio Maia realizou a coleta dos dados, análise e discussão dos resultados, escrita e formatação do texto. Miriam Struchiner orientou todas as etapas do estudo. Referências ANDERSON, P. What is web 2.0? Ideas, technologies and implications for education. JISC Tech. Stand. Watch, fev. 2007. Disponível em: <http://www.jisc.ac.uk/media/documents/ techwatch/tsw0701b.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2007. BOULOS, M.N.; MARAMBA, I.; WHEELER, S. Wikis, blogs and podcasts: a new generation of Web-based tools for virtual collaborative clinical practice and education. BMC Med. Educ., v.6, n.41, p.1-8, 2005. EMIG, J. Embodied learning. Engl. Educ., v.33, n.4, p.271-80, 2001. FERREIRA, A.A.; VENTURA, P.C.S. Concepções de professores acerca da informática educacional. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA, 1., 2008, Belo Horizonte. Anais... Disponível em <http:// www.senept.cefetmg.br/galerias/Arquivos_senept/anais/terca_tema5/ TerxaTema5Artigo1.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2009. FORTE, G.M.S.; ROCHA, S.S.D. Quem você conhece? Discutindo as possibilidades pedagógicas do orkut. ETD – Educ. Temat. Dig., v.9, n.1, p.69-83, 2007. GARBIN, H.B.R.; PEREIRA NETO, A.F.; GUILAM, M.C.R. A internet, o paciente expert e a prática médica: uma análise bibliográfica. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.12, n.26, p.579-88, 2008. GOMES, M.J.; LOPES, A.M. Blogues escolares: quando, como e porquê? In: CONFERÊNCIA WEBLOGS NA EDUCAÇÃO - 3 TESTEMUNHOS, 3 EXPERIÊNCIAS, 2007, Setúbal. Actas... Setúbal, 2007. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/ 6487/1/gomes2007.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2008. GROSSMAN, E.; CARDOSO, M.H.C.A. As narrativas em medicina: contribuições à prática clínica e ao ensino médico. Rev. Bras. Educ. Med., v.30, n.1, p.6-14, 2006. KENSKI, V.M. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação. Campinas: Papirus, 2007. LAMPERT, J.B. Currículo de graduação e o contexto da formação do médico. Rev. Bras. Educ. Med., v.25, n.1, p.7-19, 2001. MANHATTAN RESEARCH. LLC. Physicians and web 2.0: 5 things you should know about the evolving online landscape for physicians, 2007. Disponível em: <http:// www.manhattanresearch.com/TTPWhitePaper.aspx>. Acesso em: 1 maio 2009. McLEAN, R.; RICHARDS, B. H.; WARDMAN, J.I. The effect of web 2.0 on the future of medical practice and education: darwikinian evolution or folksonomic revolution? Med. J. Austr., v.187, n.3, p.174-7, 2007. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1993. MORAN, J.M. Ensino e aprendizagem inovadores com tecnologias audiovisuais e telemáticas. In: MORAN, J. M.; MASETTO, M.T.; BEHRENS, M.A. (Org.). Novas tecnologias e mediação pedagógica. Campinas: Papirus, 2000. p.11-65. NOGUEIRA-MARTINS, L.A. Saúde mental dos profissionais de saúde. Rev. Bras. Med. Trabalho, v.1, n.1, p.56-68, 2003. O’REILLY, T. What is web 2.0. O’Reilly Media, 2005. Disponível em: <http:// www.oreillynet.com/pub/a/oreilly/tim/news/2005/09/30/what-is-web-20.html>. Acesso em: 20 jul. 2007. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.905-18, out./dez. 2010

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Palabras clave: Software social. Blogs. Tecnologia educacional. Educación médica. Recebido em 03/08/09. Aprovado em 20/04/10.

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espaço aberto

Implicações de redes temáticas em blogs na Análise de Redes Sociais (ARS): estudo de caso de blogs sobre autismo e síndrome de Asperger* Sandra Portella Montardo1 Liliana Maria Passerino2

Introdução Este estudo parte da hipótese de que a socialização on-line é fator de inclusão social de Pessoas com Necessidades Especiais (PNE) e de seus familiares via Tecnologia de Informação e de Comunicação (TIC), por permitir a troca de informação e de afeto entre os seus parentes, ao mesmo tempo em que se torna um espaço promotor do desenvolvimento sociocognitivo para PNE3. Essa discussão da relação entre Inclusão Social (IS) e Inclusão Digital (ID) via acessibilidade digital foi amplamente abordada em um estudo anterior (Montardo, Passerino, 2007). Nele, adotou-se um conceito que entende a IS como um processo contínuo em busca de qualidade de vida (Ladeira, Amaral, 1999), que consiste em atingir a autonomia de renda, desenvolvimento humano e equidade (Sposati, 1996). Esse processo teria, como contrapartida, uma redistribuição da riqueza social e tecnológica para os cidadãos (Azevedo, Barros, 2004). Nesse sentido, a ID é uma faceta da IS e, além de proporcionar o direito de acesso ao mundo digital para o desenvolvimento intelectual, pretende promover espaços para práticas culturais significativas que tornem os participantes letrados digitalmente, ou seja, não apenas com capacidade técnica de atuar na web, mas também com capacidade de criar e produzir significados e sentidos nela (Warschauer, 2006). No entanto, como é possível identificar inclusão social a partir da socialização on-line de familiares de/e dos próprios PNE em blogs? O aspecto estrutural das redes a serem analisadas se impõe. Na busca de um software que representasse, sob uma perspectiva inclusiva, uma rede temática sobre autismo e síndrome de Asperger, foram encontrados sistemas capazes apenas de identificar aspectos quantitativos das redes (Benkenstein, Montardo, Passerino, 2007), o que é insuficiente para a análise pretendida. Essa constatação levou à investigação da origem desses sistemas e, consequentemente, das limitações das teorias da Análise de Redes Sociais (ARS) com relação à representação e análise de redes temáticas. Questionando-se sobre a insuficiência desses modelos para uma análise qualitativa, Recuero (2005) propõe um modelo de análise de redes sociais na internet, constituída de três elementos principais: organização, estrutura e dinâmica. A organização se relaciona à interação social em um grupo. Já a

* Elaborado com base em artigo apresentado no GT Comunicação e Cibercultura, XVII Encontro da Compós, Unip São Paulo, em junho de 2008. Resultado de pesquisa parcial do Projeto “Inclusão Social via socialização on-line de Pessoas com Necessidades Especiais”, com apoio do CNPq. 1 Mestrado em Inclusão Social e Acessibilidade, Universidade Feevale. Rua Ramiro Barcelos, 1522, ap. 84. Bairro Independência, Porto Alegre, RS, Brasil. 90.035-002. sandramontardo@feevale.br 2 Programas de PósGraduação em Informática na Educação e em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Estudos desenvolvidos no NIEE/UFRGS desde 1985 comprovam especialmente estes indícios. Podem ser consultados os estudos no site http:// www.niee.ufrgs.br

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IMPLICAÇÕES DE REDES TEMÁTICAS EM BLOGS...

estrutura se refere ao resultado das trocas empreendidas em um grupo, em termos de laços sociais e de capital social. Por fim, a dinâmica trata das modificações sofridas por uma rede com o passar do tempo. A análise que aqui se pretende fazer se concentrará no item estrutura, que, por sua vez, pressupõe a análise de laços sociais e de capital social, já que se busca a visualização dessas redes e os tipos de conexão que as formam. Segundo Recuero (2005), laço social refere-se à interação social e, de acordo com Breiger (1974), pode ser relacional (voluntário) ou associativo (pertencimento). Na tentativa de descobrir como as pessoas conseguem empregos, Granovetter propõe o artigo “A força dos laços fracos” (1973). Com o objetivo de demonstrar que o nível macro da sociologia está relacionado com o que acontece em nível micro (individual), Granovetter (1973) constatou que são apenas os conhecidos, e não os amigos, os responsáveis por indicações a novos empregos. Barabási (2003) percebe, nessa teoria, uma visão de sociedade constituída por pequenos grupos em que todos se conhecem entre si. Trata-se, então, de muitos conjuntos de nós conectados a todos os outros dentro de um cluster (grupo de atores ligados por laços fortes), que se ligam a outros clusters por meio de laços fracos. Portanto, laços fracos representam “nossa ponte para fora do nosso mundo, já que em lugares diferentes freqüentemente as pessoas obtém suas informações a partir de diferentes fontes além dos seus amigos mais próximos” (Barabási, 2003, p.43). Para Granovetter (200), então, laços fortes são aqueles que indicam uma relação linear entre tempo, intensidade emocional, intimidade (confiança mútua) e serviços recíprocos entre os atores de um mesmo cluster, enquanto os laços fracos se caracterizam por contatos irregulares (em frequência e em intensidade) que ocorrem nas relações sociais. Justamente por conta disso, no entanto, os laços fracos constituem fonte alternativa de informações e, com isso, de provável mobilidade dentro da sociedade. Sabe-se que Granovetter (2000) não estudou redes sociais on-line. Nesse caso, a presença de um link entre dois blogs representa necessariamente o estabelecimento de um laço? E se isso for considerado, de que tipo seria esse laço? Basta situar-se em um webring para entender um link entre dois blogs como laço forte, tal qual parece sugerir Granovetter (2000)? Na medida em que as ligações entre blogs podem se dar por mais de um link entre apenas dois atores (no blogroll, postagens e comentários), poderia haver laços fracos e fortes entre os mesmos dois atores da rede temática? Como identificar tempo, intensidade emocional, intensidade (confiança mútua) e serviços recíprocos, tal qual propõe Granovetter (2000), em uma rede temática, em blogs, para classificar um laço em webring temático como forte? As questões de conteúdo podem ser resolvidas com a proposta do capital social, uma das vertentes dos estudos de ARS e categoria presente no modelo proposto por Recuero (2005). O capital social diz respeito às conexões e tem como elemento a reciprocidade e a confiança, afirma Recuero (2005). Ao comparar os conceitos de Putnam (2000) e Bourdieu (1983), a autora conclui que “o capital social constitui-se em um conjunto de recursos de um determinado grupo obtido através da comunhão dos recursos individuais, que pode ser usufruído por todos os membros do grupo, ainda que individualmente, e que está baseado na reciprocidade” (Recuero, 2005), sendo que se deve considerar, para tanto, o conteúdo das mensagens. Para Bertolini e Bravo (2004), citados por Recuero (2005), existem cinco tipos de capital social: relacional, normativo, cognitivo, confiança no ambiente social e institucional. Ainda que, de acordo com esse modelo, laços sociais e capital social façam parte da estrutura das redes, em trabalhos posteriores da autora (Recuero, 2008, 2006), verifica-se amplamente a análise de capital social empreendido em redes sociais na web dispostas em diferentes suportes (softwares de redes sociais, blogs, fotologs etc.). Já os laços sociais não foram objeto de problematização, talvez pelo fato de as redes analisadas terem sido constituídas independentemente de uma temática específica. Ao que parece, o caráter temático de um webring4 requer adaptações para que se analise seu caráter inclusivo. Nesse caso, uma rede em blogs de PNE e de seus familiares pressupõe, mais do que a análise do conteúdo das postagens e dos comentários para identificação do tipo de capital social alocado, o contexto de sua proposição. Esse é o ponto de partida deste estudo.

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MONTARDO, S.P.; PASSERINO, L.M.

5 Na literatura, denominam-se de autismo clássico aqueles casos semelhantes aos primeiros 11 casos identificados por Kanner (1997).

6 A Síndrome de Asperger foi descoberta em 1944 pelo pediatra alemão Hans Asperger, que descreveu um conjunto de sintomas, e que se assemelhavam à descrição feita por Kanner, pai do autismo, em 1943. Acredita-se que, por causa da II Guerra Mundial, o artigo de Asperger, publicado em alemão, permaneceu desconhecido na literatura internacional até a década de 1970 e, por esse motivo, todos os estudos americanos e ingleses seguiram a linha traçada por Kanner. Porém, Asperger descreveu o que ele chamava de “psicopatologia autista” como mais ampla que a descrição original de Kanner (Cuxart, 2000; Sigman, Capps, 2000).

A vida profissional de pessoas com autismo é rara, porém é possível que aqueles que são considerados de alto desempenho (autismo leve) ou Asperger consigam ter uma vida profissional.

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Definição da temática do webring

espaço aberto

Recuero (2003) propõe que, a partir de blogs, podem se estabelecer webrings, ou seja, círculo de relações entre autores de blogs a partir das ferramentas de comentários e das postagens nos mesmos. 4

Na medida em que se propõe verificar de que modo a socialização on-line estimula e proporciona o IS em redes temáticas, um dos primeiros pontos a serem verificados é o tema em questão.

Autismo e síndrome de Asperger O autismo constitui parte das síndromes conhecidas como Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD). O termo global significa que o transtorno ou desordem afeta profundamente o processo de desenvolvimento, especialmente nas áreas de cognição, linguagem, motora e social. Segundo Hobson (1993), uma pessoa com autismo é “[...] um ser estranho que se movimenta num plano diferente de existência, [...] uma pessoa com a qual não podemos conectar” (Hobson, 1993, p.16). Dados europeus e norte-americanos indicam que o autismo ocorre em número de quatro ou cinco casos em cada dez mil nascimentos, sendo quatro vezes mais frequente no gênero masculino. Acredita-se que, no Brasil, existam aproximadamente seiscentos mil indivíduos afetados pela síndrome (Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência Corde, 2003). Até o momento não foi possível encontrar um padrão neurológico específico da disfunção psicológica que seja, ao mesmo tempo, específica do autismo e universal em todos os casos diagnosticados (Hobson, 1993). Hoje é aceito que a etiologia do autismo deve-se a uma diversidade de fatores, que variam entre fatores genéticos e fatores relativos a condições ambientais, mas desconhece-se o peso de cada um deles. Muitos pesquisadores (Bauer, 2003; Lord, 1999; Munro, 1999; Schopler, 1985 apud Bloch-Rosen, 1999; Wing, 1998) consideram o autismo como um continuum denominado “espectro autista”, conceito proposto por Wing e Gould (1979 apud Rivière, 2001) num estudo realizado em Londres, onde se identificou um número três vezes maior de crianças com características de autismo (dois em cada dez mil). Assim, dentro desse espectro, Wing e Gould identificaram diferentes “níveis” ou categorias, que variam do autismo clássico5 ao autismo de alto desenvolvimento ou síndrome de Asperger6 (AS). Um aspecto que diferencia pessoas com síndrome de Asperger de pessoas com autismo é que as primeiras, em geral, não apresentam problemas de aprendizagem. Na busca pelos webrings sobre autismo e síndrome de Asperger, foram localizados blogs de autoria de pais e mães de portadores dessas síndromes, em função de não ter sido identificado nenhum blog desenvolvido pelos próprios sujeitos. Essa ocorrência não surpreende, visto que um dos maiores déficits de autismo e síndrome de Asperger encontra-se na área de interação social, o que se repete em termos de socialização no ciberespaço. O próximo item trata desse ponto. Sobre a família de autistas Relações sociais são importantes para o desenvolvimento de todas as pessoas. Porém, a socialização de pessoas com autismo é restrita, em geral, ao círculo familiar e profissional7. Segundo Lopes e Gauderer (1997), a maioria das famílias procura associações de pais e amigos do autismo não somente para encontrar locais onde seus filhos possam ser atendidos, mas também para aprender como lidar com eles e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.921-31, out./dez. 2010

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IMPLICAÇÕES DE REDES TEMÁTICAS EM BLOGS...

encontrar apoio emocional. Percebe-se que os pais têm necessidade de conhecer outras pessoas que passaram pela mesma experiência, em busca do que Goffman denomina de “grupo de informados” (Goffman, 1988, p.37). Em geral, é a mãe quem primeiro percebe, ainda na fase bebê da sua criança, que existe algo de incomum em seu comportamento. Nessa etapa, muitos não procuram ajuda, tentando continuar com uma vida o mais normal possível. Já na fase de escolarização, a situação se acentua e acontecem os primeiros conflitos entre escola, pais e sujeito com autismo. A partir dessa tríade surge um processo de busca que, em muitos casos, caracteriza-se por uma “peregrinação” entre médicos, psicólogos e terapeutas até se obter um diagnóstico. Esse processo é de muita solidão da família e, no seu transcurso, criam-se muita insegurança, frustração e dúvidas. Daí a necessidade de compartilhamento de angústias, medos e, também, de seus acertos, fato que justifica também a proposição de espaços on-line para tal prática. Segundo Lopes e Gauderer (1997), podem-se detectar algumas fases pelas quais os pais de autistas passam ao lidarem com seus filhos: . resistência na busca de diagnóstico e informações, esperando que o tempo solucione os problemas de comportamento do filho ou idealizando as situações. Somente quando as evidências se tornam fortes demais é que os familiares passam para a etapa seguinte; . negação: é a primeira reação frente ao diagnóstico; . raiva: é a segunda reação e, em geral, é acompanhada por um sentimento de culpa. Isso acontece, em geral, no momento da aceitação do diagnóstico; . as seguintes fases compreendem: sentimentos de culpa, frustração, medo, impotência, solidão, ressentimento, rejeição e fantasia, ansiando-se por um milagre; . aceitação: processo doloroso de aceitar seu filho com suas limitações, percebendo que ele tem também características positivas para além dos seus déficits; . esperança: nesta fase, alguns pais se “aferram” a uma utopia de cura e de superação que dificilmente acontece. Em trabalho realizado pela Associação dos Amigos da Criança Autista (AUMA)8 com grupo de pais, Lopes e Gaudarer (1997) apresentam alguns dados relevantes para essa pesquisa. Um deles é de que, por meio da discussão em grupo e do melhor conhecimento por parte dos pais da síndrome em questão, o sentimento de culpa e da negação são superados, sendo esta última etapa fundamental para a aceitação do diagnóstico. Porém, o que os autores destacam é o alívio no sentimento de solidão que as famílias experimentam ao participarem do grupo de pais (1997). Após um longo compartilhamento com o grupo, chega-se, finalmente, à aceitação, deixando para trás sentimentos como impotência e angústia. Frente a isso, consideram-se todas as ferramentas de socialização on-line como alternativas aos grupos desse tipo, sobretudo se os pais não têm condições (falta de tempo, impossibilidade de deslocamento) de frequentá-los. Os blogs são objeto dessa pesquisa por permitirem: a disponibilização de muitas informações dispostas sob forma de postagens, organizadas por título e em ordem cronológica inversa, arquivo de postagens, fotos, e a possibilidade de diálogo a partir da ferramenta de comentários, o que pode ser acessado pelos familiares ou PNE sempre que for conveniente.

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8 Entidade sem fins lucrativos fundada na cidade de São Paulo (SP), em 25 de janeiro de 1990, que tem por objetivo criar programas educacionais de adaptação social de crianças autistas. Fonte: Site da Associação dos Amigos da Criança Autista (AUMA). Disponível em: <http:// www.autista.org.br/ historia.php>.


MONTARDO, S.P.; PASSERINO, L.M.

Essa busca foi feita utilizando-se palavras como: “autismo”, “tenho autismo”, “sou mãe de um autista”, “sou pai de autista”, “síndrome de Asperger” etc. Por conta disso, nossa amostra é formada apenas por blogs escritos em português (brasileiros e portugueses). 10

Estudo de caso: webring sobre autismo e síndrome de Asperger

espaço aberto

Para Hine (2005, p.8), etnografia é uma sistematização em dados da experiência de observações face-a-face, visando captar uma “performance de comunidade”. Goetz e Lecompte (1988) indicam que não somente a recriação do cenário é importante como resultado de pesquisa, mas também o próprio método utilizado. Segundo Hine (2005), a internet se oferece, ao mesmo tempo, como contexto cultural e artefato cultural, justificando a aplicação da etnografia virtual em grupos que ali se estabelecem. Kozinets (2002) propõe uma adaptação da etnografia para a netnografia, indicando as ressalvas e as oportunidades que devem ser observadas em função de se estarem analisando grupos na web, predominantemente à distância. Montardo e Passerino (2006) promovem adaptações desse modelo de netnografia (2002) aos blogs, contemplando análise de outros recursos possíveis nessa ferramenta além dos apontados por Kozinets (2002), que fala da web em geral. 9

A netnografia aplicada a blogs é a metodologia que viabilizou este estudo. Uma exploração detalhada dessa metodologia foi proposta em estudo anterior (Montardo, Passerino, 20069). Em novembro de 2006, fez-se um levantamento de blogs no site do Google (Pesquisa Google de Blogs) e chegou-se ao número de 17 blogs relacionados a autismo e síndrome de Asperger10. Seguindo as ideias de Kozinets (2002) a respeito da ética em netnografia, contatamos os autores de blogs via comentários em seus próprios blogs. Ainda que seja uma forma de comunicação pública, quando alguém cria um blog, não o faz para ser objeto de pesquisa. Esse comentário explicava o objetivo da pesquisa, solicitava permissão para observar o blog em questão e disponibilizava o endereço do blog desta pesquisa e um endereço de e-mail para contato com os pesquisadores. De 17 blogs contatados, 13 autores entraram em contato (via e-mail), concordando em participar da amostra selecionada, perfazendo, portanto, 74,5% dos blogs encontrados sobre o assunto. Diante da ausência de um software de ARS que identificasse a localização dos links (blogroll, comentário, postagens) que unem essa rede, optou-se por se elaborar um mapa da mesma no software CMap Tools11 para esse fim. É importante destacar que foram elaborados diversos mapas e versões para permitir uma análise aprofundada. Optou-se por separar o mapa de links do de comentários, já que um mapa completo apresenta uma complexidade visual que dificulta sua análise. A versão final de cada mapa foi disponibilizada em uma página wiki12. Foi feita uma análise de todas as postagens e comentários de dez dos blogs selecionados de janeiro a setembro de 2007. Nessa análise, privilegiou-se a estrutura dessa rede, conforme Recuero (2005). Para tanto, organizou-se uma tabela que identificava postagem (data e autoria), comentário (data e autoria) e tema geral abordado em cada uma dessas partes constituintes do blog. Feita a análise do tipo de capital social envolvido entre os atores desta rede em postagens e em comentários, identificou-se o tipo de laço social existente. Para tanto, consideraram-se laços fortes e fracos a partir de Granovetter (1983, 1973), combinando-se este aspecto com o do tipo de capital social alocado. Este ponto, por sua vez, permitiu perceber diferenças entre as postagens feitas por homens (dois) e por mulheres (oito) nesse webring, o que coincide com alguns estudos sobre blogs e gênero. Quanto ao estilo de escrita e conteúdo de blogs selecionados por gênero e por idade, Scheler et al. (2005) concluíram que homens falam sobre tecnologia, política e dinheiro em blogs, enquanto mulheres preferem postar sobre suas vidas pessoais. De forma similar, os autores de blogs da amostra postam de forma diferente sobre o autismo. Enquanto os homens (pais) falam predominantemente de aspectos objetivos ligados às necessidades especiais indicadas (descrição de rotina, congressos, descobertas, tratamentos, leis), as mulheres (mães) privilegiam o aspecto subjetivo em suas falas a respeito desses mesmos tópicos. Porém, há uma ênfase em sua angústia com as dificuldades e a esperança decorrente das vitórias na educação de seus filhos. Para que se chegasse à tabela a seguir, uma hipótese foi descartada. Ela pressupunha que o fato de haver um link disponível no blogroll era garantia de estabelecimento de laço forte em uma rede temática em blogs, perspectiva que guarda alguma similaridade com a teoria de Granovetter (1983, 1973). Porém, observou-se que há vários autores de blogs nessa condição que não comentam nos demais blogs, limitando-se à postagem em seus próprios blogs. Percebe-se, com isso, mais uma intenção de delimitação de uma rede específica do que de real socialização. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.921-31, out./dez. 2010

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IMPLICAÇÕES DE REDES TEMÁTICAS EM BLOGS...

A partir disso, chegou-se ao entendimento de que se estabelece um laço forte quando o autor de uma postagem encontra ressonância no comentário dessa postagem. Ou seja, se o autor de um blog propõe postagens que privilegiam informações sobre tratamento de sintomas ligados ao autismo ou à síndrome de Asperger, ou novas descobertas nesse sentido (capital social cognitivo) em suas postagens, e recebe feedback desse mesmo tipo em comentários, identifica-se um laço forte. Se, por outro lado, as mensagens recebidas em comentários para esse tipo de postagem (capital social cognitivo) forem em tom de pedido ou oferecimento de apoio (capital social relacional), obtém-se um laço fraco. O contrário também é válido: os blogs de mães de autistas invariavelmente privilegiam aporte de capital social relacional em postagens cujos comentários normalmente têm o mesmo propósito, configurando-se o que se entende por laços fortes. No entanto, elas não deixam de receber comentários sobre livros ou sobre dicas médicas ou pedagógicas de vários tipos de profissionais, caracterizando o estabelecimento de laço fraco. A Tabela 1 explicita algumas dessas conclusões.

Tabela 1. Análise de blogs temáticos sobre autismo e síndrome de Asperger. Blogs analisados Blog Blog Blog Blog Blog Blog Blog Blog Blog Blog

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Blogs analisados Blog Blog Blog Blog Blog Blog Blog Blog Blog Blog

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Nº de postagens em 2007 (até setembro)

Nº de comentários em Nº de links que partem do blog no blogroll 2007 (até setembro)

11 20 6 2 29 3 Nenhuma postagem em 2007 30 Nenhuma postagem em 2007. Nenhuma postagem em 200713.

Nº de links no blogroll em blogs do webring 6 4 1 3 1 1 3 2 -

23 de 17 pessoas 274 de 13 27 de 15 pessoas 18 de 17 pessoas 92 de 35 pessoas 2 de 2 pessoas. 819 de 113 pessoas -

Tipo de capital social que indica laço forte Cognitivo Cognitivo Relacional Relacional Relacional Relacional Relacional. -

31 20 4 8 12 12 8 35 9 2

Tipo de capital social presente nos comentários que indica laço fraco Relacional Relacional Cognitivo Cognitivo Cognitivo Cognitivo Cognitivo -

A princípio, pensou-se que o estabelecimento de laços fortes definiria as condições de potencial de inclusão do blog. No entanto, quando se trata de inclusão numa rede temática, verificou-se que laços fracos são tão importantes quanto os fortes. Nesse sentido, o que pode ser discernido é quem propõe a IS em rede temática (em postagem ou em comentários de seu próprio blog) e quem 926

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O CMap Tools é um software destinado à elaboração de mapas conceituais, que são diagramas bidimensionais com a finalidade de representarem conceitos e suas respectivas proposições. O CMap Tools serve como instrumento apenas de visualização da rede de blogs de PNE, pois não possui ferramentas específicas para ARS capazes de isolar variáveis e gerar rotinas baseadas em dados extraídos da rede. Sua adoção é necessária porque se busca uma representação gráfica capaz de representar não só grafos, mas também gráficos que indicassem a diferenciação entre links do blogroll dos links dos comentários (Benkenstein, Montardo, Passerino, 2007). 11

12 Essa página foi criada para organizar os dados preliminares da pesquisa e tem por função aglutinar as informações sobre as diversas redes temáticas a serem analisadas pela equipe de pesquisa. Portanto, por não se tratarem de dados já analisados, essa página wiki é restrita apenas à equipe do projeto que, por sua vez, trabalha em duas instituições de Ensino Superior diferentes: Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Centro Universitário Feevale.

Há uma postagem em 19 de outubro de 2007, portanto, fora de nosso período de análise.

13


MONTARDO, S.P.; PASSERINO, L.M.

espaço aberto

usufrui desse processo (comentários). Vale destacar que essas posições não são excludentes entre si, isto é, um autor de blog pode, ao mesmo tempo, promover e usufruir desse processo, ainda que isso não seja a regra observada neste estudo. Na tentativa de visualizar o potencial inclusivo do webring em questão, foram sistematizadas as relações entre postagens e comentários nos blogs analisados da maneira exposta na Tabela 2.

Tabela 2. Relação entre postagens, comentários e comentadores na rede temática analisada em blogs. Número de postagens entre janeiro e setembro de 2007 Média de comentários por postagem Média de comentários por pessoa

Blog 1

Blog 2

Blog 3

Blog 4

Blog 6

Blog 7

Blog 8

11

20

6

2

Blog 5 29

3

-

30

2,1 1,3

13,7 21,1

4,5 1,8

9 1,1

3,2 2,6

0,7 1

-

27,3 7,2

-

Poder-se-ia afirmar que o blog com mais postagens e com maior número de leitores por comentário apresenta um potencial de inclusão maior? Não necessariamente. Por exemplo, o Blog 1 é o hub desta rede. Porém, a existência de um link para uma lista de discussão sobre autismo nesse blog, moderada pelo autor, bem como a disponibilização do seu e-mail ao lado do link para os comentários, sugerem que o autor não restringe a socialização sobre o tema no blog. Esse autor não comenta em nenhum outro blog da rede mapeada. Já no Blog 2, o autor comenta praticamente cada comentário feito em seu próprio blog. O Blog 4, por sua vez, tem uma média de nove comentários por pessoa, porém, tem apenas duas postagens no período considerado. O Blog 5 é um dos mais ativos nesta rede, apresentando postagens semanais comentadas e comentando em outros blogs, mas sua média é de 3,2 comentários por postagens e de 2,6 pessoas por comentário. Há também as pessoas que usufruem dos conteúdos disponíveis nesta rede apenas pela leitura. O item que segue contextualiza algumas dessas impressões.

Considerações finais Para responder à pergunta “como se dá a IS de pais de PNE em blogs temáticos?”, propôs-se uma interpretação de laços fracos e fortes que combina a sua definição com a noção de capital social. É a partir dela que, no caso das mulheres autoras dos blogs dessa amostra, detectou-se a predominância de aporte de capital social relacional. Nesse caso, links que trazem apoio, emoção e identificação serão considerados fortes. Já para os homens, serão fortes os laços provenientes de socialização em torno de capital social cognitivo. É importante notar que laços fracos também têm sua importância: para homens, trazem apoio e elogios à iniciativa de manter um blog, apesar de os autores dos blogs analisados não a solicitarem; e para mulheres, que expõem sua força e fragilidade pela rede temática, trazem informações. A partir disso, de modo diferente do que se supunha inicialmente, tanto laços fortes quanto laços fracos constituem a IS em blogs. O que chama a atenção é a motivação das pessoas que compõem esse webring quanto à socialização, distinguindo-se promotores de IS de usuários desse processo, posições que podem ser alternadas entre si. Nesse sentido, percebe-se que alguns blogs apresentam postagens frequentes condizentes com o tema dessa rede. No entanto, raramente esses mesmos autores comentam os outros blogs da amostra. Conclui-se daí que muitos desses promotores de IS se colocam em uma posição mais de doadores do que de receptores de informação (capital social cognitivo) e de apoio (capital social relacional) na rede considerada. Portanto, esses atores mais promovem do que usufruem a IS em seus blogs. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.921-31, out./dez. 2010

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IMPLICAÇÕES DE REDES TEMÁTICAS EM BLOGS...

Ao contrário do que se pensou a princípio, a presença de links no blogroll pode ser importante para apontar um fluxo possível de navegação e de socialização entre pessoas interessadas no tema discutido. Porém, não sinaliza necessariamente a socialização nesses blogs. Já a presença de links em comentários, seja gerando laços fracos ou fortes, parece dar forma concreta à IS de PNE e de seus familiares em blogs, podendo ser considerada uma extensão on-line de associações de pais de autistas e de pessoas com síndrome de Asperger. Como limite deste estudo, destacamos que analisamos apenas os blogs dessa rede, enquanto os participantes dela mantêm estreita relação em outros suportes de socialização on-line (listas de discussão, softwares de redes sociais, e-mail), além dos encontros presenciais. Essa constatação é importante porque muitos autores de blogs podem preferir esferas mais privadas de relacionamento online ao invés dos blogs, enquanto este pode funcionar apenas como suporte para indicação da motivação para a socialização dos autores dos blogs. Frente a isso, uma observação possível é a de que suportes diferentes permitem análises variadas conforme forem consideradas na sua especificidade de tipo de ocupação de nó (perfil em sites de relacionamento, autoria de blogs e fotologs, visitante de blogs e fotologs etc.) na rede considerada. Em outras palavras, acredita-se que o aspecto qualitativo da socialização on-line pode ser favorecido também por esse tipo de critério. Por fim, entende-se que as considerações decorrentes deste estudo, que se destina a identificar o aspecto inclusivo em socialização on-line em blogs de PNE e de seus familiares, podem ser úteis ao estudo de redes temáticas on-line em geral, desde que se enfatizem os limites e as possibilidades para tanto em determinado tipo de suporte.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AZEVEDO, P.H.; BARROS, J.F. O nível de participação do Estado na gestão do esporte brasileiro como fator de inclusão social de pessoas portadoras de deficiência. Rev. Bras. Cienc. Mov., v.12, n.1, p.77-84, 2004. BARABÁSI, A.-L. Linked: how everything is connected to everything else and what it means for business, science, and everyday life. Cambridge: Plume, 2003. BAUER, S. El síndrome de Asperger. 2003. Disponível em: <http://www.autismo.com/ scripts/articulo/smuestra.idc?n-=bauer>. Acesso em: 18 ago. 2003. BENKENSTEIN, A.; MONTARDO, S.P.; PASSERINO, L. Análise das redes sociais em blogs de Pessoas com Necessidades Especiais (PNE). Novas Tecnol. Educ., v.5, n.2, p.1-11, 2007. BLOCH-ROSEN, S. Síndrome de Asperger, autismo de alto funcionamento y desórdenes del espectro autista. Disponível em: <http://www.autismo.com/scripts/ articulo/smuestra.idc?n=blochrosen>. Acesso em: 21 abr. 1999.

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MONTARDO, S.P.; PASSERINO, L.M.

espaço aberto

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IMPLICAÇÕES DE REDES TEMÁTICAS EM BLOGS...

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espaço aberto

MONTARDO, S.P.; PASSERINO, L.M.

Neste estudo objetiva-se apontar especificidades de redes temáticas em blogs de familiares de Pessoas com Necessidades Especiais (PNE) com relação à Análise de Redes Sociais (ARS). Nosso objeto de estudo são as redes sociais em blogs de familiares de pessoas com autismo e com síndrome de Asperger. Sob o prisma da Inclusão Social (IS) e da Inclusão Digital (ID), percebe-se que a especificação da temática em torno das quais essas redes se formam é condição sine qua non para o seu estabelecimento. Esse foco sugere uma problematização do conceito de laços fracos e laços fortes. A netnografia é a metodologia utilizada para análise dos blogs selecionados. Frente a isso, a análise de capital social e de laços sociais de forma interdependente - o que consiste numa adaptação a um modelo de estrutura de redes proposto - revelou-se pertinente para a identificação da IS em redes temáticas na web.

Palavras-chave: Blogging. Inclusão social. Internet. Pessoas com deficiência. Síndrome de Asperger. Implications of thematic networks in blogs in the Social Network Analysis (SNA): a case study of blogs on autism and Asperger syndrome This article aims to indicate some specificities of thematic networks in blogs of relatives of People with Special Needs (PSN) with respect to Social Network Analysis (SNA). Our object is social networks in blogs on autism and Asperger syndrome. In light of Social Inclusion (SI) and Digital Inclusion (DI), we can notice that the topic is the main condition for setting such networks. This focus shows a problematization of the concepts of weak and strong ties. Netnography is the methodology used to analyse these blogs. Thus, it is important to analyse both social capital and social ties as interdependent elements, which requires adaptations to a proposed model of network structure, as this analysis is relevant to the identification of SI in thematic networks on the web.

Keywords: Blogging. Social inclusion. Internet. Disabled persons. Asperger syndrome. Implicaciones de redes temáticas en blogs en la Análisis de Redes Sociales (ARS): estudio de caso de blogs sobre autismo y síndrome de Asperger En este estudio se objetiva apuntar especificidades de redes temáticas en blogs de familiares de Personas con Necesidades Especiales (PNE) con relación al Análisis de Redes Sociales (ARS). Nuestro objetivo de estudio son las redes sociales en blogs de familiares de personas con autismo y con síndrome de Asperger. Bajo el prisma de la Inclusión Social (IS) y de la Inclusión Digital (ID) se percibe que la especificación de las temáticas en torno de las cuales estas redes se forman es condición sine qua non para su establecimiento. Este foco sugiere colocar el problema del concepto de lazos débiles y lazos fuertes. La “netnografía” es la metodología que se utiliza para el análisis de los blogs seleccionados. Ante esto el análisis de capital social y de los lazos sociales de forma interdependiente, que consiste en una adaptación a un modelo de estructura de redes propuesto, se ha revelado pertinente para la identificación de la IS en redes temática en la WEB.

Palabras clave: Blogging. Inclusión social. Internet. Personas con discapacidad. Síndrome de Asperger. Recebido em 06/04/09. Aprovado em 09/12/09.

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Uma terceira via para a gente aprender as coisas femininas... perspectivas sobre o desenvolvimento de um projeto de promoção de saúde e cidadania de meninas* Silvana Nair Leite1 Lirya Liz Monteiro Tonolli2

Introdução Prevenir a violência contra a mulher e a criança é um objetivo que precisa ser trabalhado por diversas frentes, com: leis assertivas, punição exemplar, promoção de condições socioeconômicas dignas e educação emancipadora para a formação de cidadãos. Com este norte, um programa universitário de extensão, chamado Univali Mulher, foi criado em 2005 como resposta aos resultados de uma pesquisa que propunha o desenvolvimento de uma metodologia inclusiva de educação em uma comunidade identificada, no estudo de Elsen et al. (2005), com baixo nível de qualidade de vida e com alto índice de exclusão social, na cidade de Itajaí-SC. O Univali Mulher objetiva promover a saúde e a cidadania de meninas, crianças e adolescentes entre sete e 15 anos e suas famílias, mediante processo dialógico e interdisciplinar de ensino/aprendizagem. Atua em duas escolas públicas municipais da cidade de Itajaí. O programa adota, como eixos teórico-motodológicos, a interdisciplinaridade e a promoção da saúde. As meninas são indicadas pelas escolas para participarem do Programa. Utiliza estratégias cotidianas, que são operacionalizadas semanalmente pelas equipes designadas como Grupos de Trabalho de Base, sob a orientação de professores de diversas áreas do conhecimento, especialmente da saúde. São desenvolvidas atividades lúdicas e educativas, como: teatro, fantoches, história de vida, maquetes, jogos educativos, trabalho com plantas medicinais, passeios. Uma vez por semana, cada grupo promove encontros de três horas de duração em uma instituição pública de apoio escolar. Todas as atividades desenvolvidas com meninas, crianças e adolescentes, pais e grupos de extensionistas são registradas e avaliadas semanalmente pela equipe do programa. Os programas sociais, em regra, carecem de avaliações periódicas, tanto amplas quanto focadas em alguns aspectos especialmente relevantes para os seus objetivos. Para Minayo (2005), a avaliação de projetos e programas sociais pode ser resumida em compreender o que contribui para o seu êxito, o que possibilita seu alcance e questiona seus limites. Para a autora, na avaliação deste tipo de programa, as abordagens qualitativas têm uma função específica e de grande valor, uma vez que “referem-se à necessidade de levar em conta a participação e as percepções dos sujeitos envolvidos na criação e na implementação dos programas sociais [...]” (Minayo, 2005, p.27).

* Texto elaborado com base em Tonolli (2008), pesquisa financiada pelo programa Probic/ UNIVALI. 1 Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Farmácia Escola - UFSC/PMF, Departamento de Ciências Farmacêuticas, Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Universitário, Trindade. Florianópolis, SC, Brasil. 88.040-900. silvana.nair@hotmail.com 2 UNIVALI.

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UMA TERCEIRA VIA PARA A GENTE APRENDER...

O estudo aqui relatado teve o propósito de identificar as expectativas e percepções das meninas participantes das atividades em 2007, bem como de seus familiares, sobre o Programa UNIVALI Mulher, retratando os significados da participação e das atividades desenvolvidas, no intuito de inquirir os envolvidos sobre o seu desenvolvimento e seus reflexos, permitindo avaliá-lo e aperfeiçoá-lo. Contempla, desta forma, a intersecção entre o aprender a fazer acadêmico e o aprender a aprender, de forma articulada, questionadora e aplicada.

Referencial teórico-metodológico O referencial teórico é o da promoção da saúde. Para o estudo, foi utilizada a abordagem qualitativa, que, conforme Minayo (2002), enfoca o problema fundamental que é o próprio caráter específico do objeto de conhecimento; o ser humano e a sociedade foram a base da coleta e análise dos dados (Minayo, Assis, Souza, 2005). Para tanto, a coleta de dados foi realizada em três diferentes meios: a) análise dos relatórios de atividade de campo do grupo, procurando reconstruir o histórico de formação do grupo, sua trajetória, seus objetivos específicos, temas e estratégias utilizadas nos encontros; b) observação participante das atividades dos grupos, examinando, com todos os sentidos, o evento, o grupo, dentro do contexto, descrevendo-o e compreendendo-o (Victora, Knauth, Hassen, 2000); c) entrevistas semiestruturadas, com as meninas individualmente e seus familiares, separadamente, após o encerramento do programa UNIVALI Mulher. No presente estudo, relata-se pesquisa realizada com um dos grupos de meninas formados pelo Programa, com nove meninas, entre sete e 14 anos, que frequentaram regularmente as atividades desenvolvidas no Programa UNIVALI Mulher desde o início do ano de 2007, estudantes de uma mesma escola municipal de Ensino Fundamental, e seis familiares por elas responsáveis, totalizando 15 informantes, uma vez que dois responsáveis não puderam ser contatados e duas meninas pertenciam à mesma família. Todas as famílias participantes são residentes nas áreas de menor qualidade de vida e maior exclusão social do município de Itajaí (de acordo com estudo de Elsen et al., 2005) e com renda familiar de um a quatro salários-mínimos. A pesquisadora de campo, responsável pela coleta de dados, é bolsista de pesquisa, e a professora responsável é membro do Programa de Extensão UNIVALI Mulher. A pesquisa faz parte do projeto do Programa de Extensão, e seus resultados são incorporados em sua avaliação e nos relatórios. O projeto foi inscrito no Sistema Nacional de Ética em Pesquisa (SISNEP) e submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UNIVALI/Itajaí-SC. Os pais assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) desde o início das atividades de extensão e, novamente, para o estudo. Por fim, se procedeu à análise dos dados por meio da análise temática do conteúdo, que é dividida em três etapas: pré-análise, descrição analítica e interpretação inferencial.

Apresentação e discussão dos dados A análise resultou em duas discussões: primeiramente sobre o Programa como um todo e, logo, sobre as atividades realizadas especificamente. Estas categorias não são mutuamente excludentes e são detalhadas a seguir:

O programa: Um suporte/apoio no processo educacional... O programa Univali Mulher foi identificado tanto pelas meninas participantes, como por seus pais, como uma ferramenta de aprendizagem, como um meio extraclasse de educação relacionado com a saúde e sexualidade, e com o seu foco voltado especificamente para o gênero feminino. Neste sentido, as falas foram registradas:

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LEITE, S.N.; TONOLLI, L.L.M.

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“Pra aprende mais sobre o certo e o errado. Para aprender a se cuidar”. (D.F./10a) “Para agente aprender as coisas... mais para frente”. (R.D.J./12a) “[...] É só pras meninas”. (L.G.R.) “Acho que é pra ajuda a educar, né? Não deve ser isso daí?”. (N./avó – C.C.O./13a)

Assim, paralelamente à educação familiar e à educação oferecida pela escola – incluindo o tema educação sexual - o programa serviu como instrumento de preenchimento das lacunas deixadas por aquelas duas formadoras, sobretudo no que tange a temas que não costumam ser tratados, por se constituírem tabus socialmente construídos, como sexualidade e gênero. O grupo familiar é o primeiro espaço de educação da criança, onde a criança, desde que nasce, começa a interagir, a se socializar e a aprender (Chaves, 2008). Contudo, “a evolução demográfica, social e econômica modificou, substancialmente, nas últimas décadas a organização familiar, fruto de mudanças concretas” (Relatório da Oecd, 2000 apud Chaves, 2008, p.2). Assim, a partir do final do século XIX, como explica Maria Eulina Carvalho (2004), a educação escolar passou a ser a principal configuração de educação para a sociedade, pois, diante do capitalismo e seu modo de produção, ocasionando drásticas mudanças na vida familiar, a escola surge como um lugar separado e especializado de educação formal. Com a separação da vida pública e privada, as famílias e lares (de acordo com o modelo das classes médias) ficaram responsáveis estritamente pela reprodução sexual, física e psíquica, no campo exclusivo do afeto e da intimidade, e, por outro lado, as escolas, caracterizadas como o lugar da educação pública, foram incumbidas da reprodução da cultura letrada, dos valores sociopolíticos e da qualificação para o trabalho (Carvalho M.E.P., 2004). No entanto, gradualmente, à medida que as famílias foram sofrendo os impactos do sistema atual de produção - desta forma reduzindo os seus papéis reprodutivos culturais e sociais - a escolarização tornou-se o principal contexto do desenvolvimento individual das crianças e jovens, assumindo também a responsabilidade das funções sociais e emocionais suplementares (Carvalho, M.E.P., 2004). Desta forma, “a tão falada crise da família – divórcios, pais e mães estressados, mães trabalhadoras, mães chefes-de-família sobrecarregadas, falta de tempo (em quantidade e qualidade) para convivência com os/as filhos/as [...]” (Carvalho, M.E.P., 2004, p.53) - reduziu o seu papel somente ao cuidado físico e emocional, e, às vezes, nem isso, tendo as escolas que assumirem vários aspectos de assistência biopsicossocial. Todas estas transformações no seio familiar, transferindo responsabilidades, sobretudo no que tange aos aspectos referentes à orientação sexual e moral de seus filhos, foram percebidas nas entrevistas com os pais das meninas quando questionados sobre em que o programa pode ajudar na educação das filhas: “Por que agora tá numa idade de perigos .... Namoro, doenças, prevenir. De certo as escolas já estão ensinando, né? As vezes a gente acha ruim, por que eu acho assim, que ela é muito novinha pra já tá aprendendo! Só que... eu acho que é melhor mesmo, aprende agora do que fica sem sabe e faze coisa que não deve!”. (J.R.P./mãe - T.R.P./12a) “Porque, eu não sou assim muito de conversar com minha filha, não! Porque eu tenho vergonha assim de pergunta as coisas a ela... ai eu não sei... É por que eu não tenho muita coragem de fala”. (M.E.S/mãe – T.S.A/13a)

Especificamente sobre a sexualidade, tema que mais se sobressaiu tanto nas entrevistas com pais como com as meninas, ensina Siqueira (2003, p.2) que ela é “construída, basicamente, a partir das primeiras experiências afetivas do bebê com a mãe e com o pai ou com quem cuida ele. Seguem-se as relações com a família, amigos, e as influências do meio cultural”. Desta forma, a criança, ao chegar à escola, já transporta, em termos de desenvolvimento de sua sexualidade, um registro familiar e social, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.933-42, out./dez. 2010

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UMA TERCEIRA VIA PARA A GENTE APRENDER...

pois a educação sexual se faz no dia a dia da criança, por meio das atitudes das pessoas que a circundam, especialmente os pais. A autora explica, ainda, que a informação sobre a sexualidade tem a sua importância, mas a confiança tem seu grau de importância muito mais elevado; assim, desde as primeiras idades, deve-se evitar que a sexualidade seja um tema oculto no seio familiar. Contudo, o que se percebe, é que muitos pais, por inibição ou comodismo, a colocam no plano do não dito ou do silêncio, para não terem de lidar com o assunto (Siqueira, 2003). Esse comodismo e o silêncio puderam ser observados nas entrevistas com os pais, como se observa nas transcrições acima, passando a delegar tal função à escola ou ao programa de extensão. Segundo Siqueira, para os pais que entendem a educação sexual somente como informação, “delegá-la à escola é uma escapada feliz, pois os alivia de suas responsabilidades por um lado e, por outro, sentem-se mais tranqüilos pelo fato de que seus filhos não estarão entregues unicamente às forças ocasionais que os atingem pelas contingências do meio” (Siqueira, 2003, p.4). A escola passou a ter também a responsabilidade de tratar de assuntos que antes eram apenas pertinentes à família, inclusive a inclusão do tema orientação sexual nos Parâmetros Curriculares Nacionais como tema transversal. Portanto, assim como na família deve existir um espaço apropriado para que a criança exponha seus questionamentos naturalmente, a escola também deve oportunizar condições para que as crianças tragam suas inquietações, para que não sejam jogadas à clandestinidade. Contudo, como explica Siqueira (2003, p.3), lograr na escola estas condições é tarefa árdua, uma vez que decorre [...] da própria maneira como a escola está organizada, das relações interpessoais que se desenvolvem [...] da maneira como os professores vivem, aceitam e exprimem a sua própria sexualidade [haja vista que o] lidar com a sexualidade da criança remete o adulto à sua própria sexualidade, à maneira como este tem resolvido para si as questões que lhe são colocadas.

Como bem adverte Zagury (2006), o que representa avanços para a educação – como a educação sexual – também expõe as fragilidades das condições para executá-los, colocando, ao professor, responsabilidades para as quais não está preparado. É neste contexto que o Programa Univali Mulher surge com a função de atenuar a ansiedade por informação das meninas, se constituindo em um espaço de discussão, diálogo e reflexão sobre o tema sexualidade, afetividade e gênero. Tal assertiva pode ser observada, sobretudo, no decorrer das oficinas, quando as próprias meninas mencionam a falta de informação e diálogo sobre assuntos relacionados com a sexualidade, tanto no seio familiar como na escola. Concordando com Catrib et al. (2003) que o papel da escola na educação em saúde deve estar pautado pela construção da consciência crítica de seus alunos e com a conquista da cidadania, as práticas educativas no espaço escolar devem contemplar estratégias pedagógicas que propiciem discussão, problematização, reflexão das consequências das escolhas no plano individual e social e decisão para agir, integrando os temas que verdadeiramente geram as angústias e as necessidades dos educandos. No mesmo norte, também, a identificação do programa como ‘terceira via’ educacional, relativo ‘às coisas femininas’, pode ser percebida no próprio desejo das meninas de ingressarem no projeto, pois estas, ao saberem dos temas abordados, por suas colegas que já participavam, ou por haverem despertado a curiosidade em razão do nome do programa, resolveram participar em virtude da necessidade de informações sobre o universo feminino. É importante aclarar que, para alguns pais e mães, a participação de suas filhas no Programa não havia sido avaliada até o momento da entrevista e alguns tampouco sabiam dizer sobre o que se tratava a atividade: “Ai, eu não sei assim o que significa mesmo, realmente. Porque, eu não sou assim muito de conversar, não!”. (M.E.S/mãe – T.S.A/13a)

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LEITE, S.N.; TONOLLI, L.L.M.

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Explorando mais o tema nas entrevistas, os pais puderam refletir sobre o tema, relembrar algumas falas das filhas e formular, então, alguma opinião. Apresentam-se, pois, contradições entre as falas das meninas e pais, devendo se constituir em questão a ser trabalhada pelo programa, posto que este almeja a multiplicação das ações e informações adquiridas e/ou construídas. Também é essencial recordar que as escolas perceberam o programa como um espaço destinado à correção de ‘alunas problemas’, aquelas que apresentavam, segundo professores e orientadores pedagógicos, condutas desajustadas ou problemas familiares, sendo, deste modo, as alunas indicadas e selecionadas para deste participarem. Tal afirmativa pode-se abstrair das seguintes colocações feitas pelas meninas e familiares acerca da questão quanto à forma de ingresso ao programa: “[Você sabe por que foi escolhida para participar do programa?] Não sei! Foi a minha professora que me colocou. Não sei se é por causa que eu converso, que eu brigo com a minha avó. [Você sabe por que a sua menina foi escolhida para participar do Programa Univali Mulher?] Não... eles que colocaram ali da escola, sabes? É porque ela é era muito arteira, né? Acho que ela era arteira, bagunceira na escola, conversava”. (N./avó – C.C.O./13a) “Deve se por que é muito levada... porque aquilo de lá é levada! Por isso que eu acho que a escola escolheu ela, por que ela era terrível”. (J.R.P./mãe - T.R.P./12a)

Apesar de o programa não ter o viés coercitivo, corretivo, ele significou, de alguma maneira, um instrumento de adequação das condutas das meninas às necessidades das escolas, ajustando o comportamento destas ao moralmente apropriado segundo a perspectiva da escola e família: “Pra aprende mais sobre o certo e o errado”. (T.S.A./13a) “Não incomodo mais!”. (D.F./10a) “Aprendi a me comportar direito”. (C.C.O./13a)

Segundo Saud e Tonelotto (2005, p.48), “os comportamentos sociais podem se manifestar de formas positiva ou negativa”. Assim, as manifestações positivas são denominadas de comportamentos prósociais e incluem requisições, gratificações, presentes; por outro lado, as manifestações negativas são chamadas de comportamentos antissociais, incluídas: as agressões, censuras, ameaças, roubos. Observou-se que o programa é significado por parte das meninas e seus familiares como um recurso extra de readequação social, governado para uma educação moldada às exigências sociais de comportamento, padrões e modos socialmente aprovados pelo meio. Neste sentido, compreendem Prust e Gomide (2007, p.55), “o comportamento moral como prática educativa é [...] como o processo de modelagem de papéis sociais no que se relaciona principalmente à transmissão de normas e valores mediante modelo fornecido pelos pais [ou escola ou sociedade]”. Assim, apesar de o programa se orientar por um processo dialético, seguindo os ensinamentos freireanos, acreditando lograr romper com a alienação social e promover a soberania popular, de tal modo a superar a cultura densamente autoritária presente em todas as relações humanas (Candau et al., 1995 apud Tavares, Lira, 2001), com vistas ao empoderamento das meninas, ainda não tem logrado vencer as barreiras das padronizações culturais do certo e do errado, das condutas moralmente exigidas. O empoderamento requer, como assevera Sérgio Carvalho (2004), mais do que simplesmente impregnar as pessoas com informações e conduzi-las a determinados comportamentos. O ‘empowerment comunitário’ propõem sustentar pessoas e coletivos a concretizarem suas próprias avaliações para que decidam sobre o que considerem apropriado, desenvolvendo a consciência crítica e a capacidade de interferência sobre a realidade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.933-42, out./dez. 2010

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Fazer parte de um grupo: vínculo e diálogo afetivo No olhar, expressão corporal e falas de cada menina, percebia-se, a cada dia, a felicidade e contentamento de participar das oficinas, de fazer parte de um grupo, de estar perto da professora e bolsistas, e percebido pelas famílias: “Ela chegava em casa mais alegre, mais disposta, entende?”. (N./avó – C.C.O./13a)

O programa, além de um espaço considerado educativo, significava, para as meninas, a participação em um espaço de construção de laços de amizade e confiança por meio de diálogo e projeções de sonhos, fantasias, valores, realizações pessoais e relacionamentos sociais considerados ‘ideais’. Neste sentido, Tavares e Lira (2001) comentam que o grupo representa um agrupamento, mais ou menos durável, de várias pessoas que interagem e se influenciam entre si, com a finalidade de conseguir certas metas comuns, e onde os seus integrantes se identificam como membros pertencentes ao grupo e dirigem seus comportamentos com base em normas e valores construídos ou modificados por todos. Aliás, com a necessidade de se dividir angústias e unificar atitudes e concentrações, o grupo acaba se transformando em um espaço privilegiado para as pessoas uniformizarem comportamentos, pensamentos e hábitos considerados por aquelas saudáveis (Lepre, 2003). O participar do grupo significava ‘pertencer a’, fazer parte de um espaço distinto e privilegiado, em que o vínculo se construía com amor, respeito, escuta, diálogo e confiança entre meninas, bolsistas e professoras. Neste sentido, os assinalamentos dos bolsistas e professoras, extraídos dos relatórios parciais I, II e III - 2007, afirmam que, no decorrer das oficinas, houve a formação de vínculo da equipe, evidenciado por meio da troca de afetividade, carinho, abraços, beijos, conversas e mimos, como desenhos e bilhetinhos (Univali, 2008a, b, c). Vale ressaltar que é neste norte que se orienta o processo dialógico freireano, o qual constitui a base teórica e instrumental do programa, uma vez que, segundo Freire, não há diálogo “se não houver um profundo amor ao mundo e aos homens. [...] O amor é também diálogo e é compromisso com os homens, compromisso porque é amoroso, é dialógico” (Potel, 2007, p.49), implica respeito mútuo. Deste modo, “o diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos” (Freire, 1983, p.28). Com base e respeito nas lições de Freire, ao assinalar que o ensinar exige o respeito aos saberes do educando, a aceitação do novo e a rejeição à discriminação e o reconhecimento da identidade cultural, é que se logrou, com o tempo, que essas meninas adquirissem identidade no grupo (Potel, 2007). Pode-se observar que as conversas, diálogos e aconselhamentos eram encarados como momentos sérios de escuta e de expressão de suas opiniões. Constituíam-se num lugar de resolução de dúvidas sobre sexualidade, drogas, família, escola, comunidade e violência. Era aqui que sentimentos de segurança e confiança em relação a bolsistas e professores podiam ser facilmente perceptíveis, pois o conversar com adultos sobre assuntos ‘proibidos’ e ‘de adultos’ representava uma forma de satisfazer as incertezas, ‘tabus’ e um meio de quebra de padrões impressos, ademais era o meio que possibilitava o seu amadurecimento mental.

Atividades realizadas: um momento de ser quem sou e idealizar um futuro... Para Baleeiro (2007), o brincar é normal, não tem tempo nem local, invade o físico e agrada, além disso, possui uma prática que denota uma função e segue distintas nuances, dependendo do momento em que o sujeito se localiza na sua estrutura subjetiva. Tavares e Lira (2001, s/p) interpretam que as atividades educativas recebem acepção pelos participantes, por facilitarem um aprender ludicamente, o qual “[...] adquire significado quando os participantes sentem-se sujeitos, construtores do 938

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conhecimento, numa relação dialógica, que envolve o educando e o educador, ambos compartilhando saberes e experiências de vida”. As brincadeiras, para as meninas, significaram um momento expressivo e libertador, um espaço para serem criança, para criarem, divertirem-se e para expressarem sua imaginação, espaço este que quase já não possuíam, uma vez que, desde pequenas, já tinham obrigações, problemas e conflitos de pessoas adultas, tendo de limpar, cozinhar, cuidar de irmãos menores etc. Neste sentido são as observações de Potel (2007), em estudo sobre as meninas e famílias que participam do Programa Univali Mulher, em relação ao contexto social em que se desenvolvem, o qual retrata uma “[...] parte de um mundo social onde o sofrimento pessoal/ familiar, a falta de condições sócio-econômicas e o quadro de violências fazem parte do cotidiano, interferindo no desenvolvimento bio-psico-social de indivíduos, grupos e comunidade” (p.121). Winnicott, citado por Felice, explica que “a brincadeira ocorre na área intermediária entre a realidade externa e a interna, ou pessoal, o que equivale a dizer que os objetos e fenômenos oriundos da realidade externa são usados a serviço de alguma mostra derivada da realidade interna” (Winnicott, 1975 apud Felice, 2003, p.73). Igualmente, para Cerisara et al. (1998, p.126), “quando a criança brinca, ela assume uma situação imaginária [de tal modo que] a realidade assume um papel junto ao mecanismo psicológico da imaginação e da atividade criadora que com ela se relaciona [...]”. Segundo a autora, estas ‘situações imaginárias’ estão conectadas com a capacidade de ‘imitação’, trazendo consigo regras de comportamentos implícitas, sobrevindas das relações interpessoais com as quais as crianças convivem. Ainda, o brincar possibilitou a criação de vínculo e a construção do grupo entre bolsistas, professores e meninas. Representou uma maneira de construção do conhecimento e meio de informação, um instrumento de ensino e aprendizagem. Em suma, as atividades lúdicas contribuíram e oportunizaram às meninas momentos de expressão, criação e troca de informação, pois, por meio da troca de experiências, da criatividade e busca de soluções, lograram construir seu próprio conhecimento. Dentre as atividades propostas, as que mais se destacaram foram as brincadeiras e jogos, as conversas e as saídas de campo. “As atividades, a gente brincava de vôlei, de queimada, a gente fazia vasos de botar flores, a gente foi na UNIVALI ver os esqueletos, os bebês com defeitos, essas coisas!”. (T.A.B.) “Ah, foi tantas... foi a gincana, o amigo secreto, teve o filme a procura da felicidade, teve sobre a mulher [...]!”. (R.D.J/12a)

Do mesmo modo, as atividades intercederam no diálogo em casa, propiciando a troca de conhecimento e o inter-relacionamento dos envolvidos. “Eu só sei que sobre plantas, ela falou um dia pra mim, que era sobre plantas, sabes?”. (N./ avó – C.C.O./13a) “Ah... de vez em quando ela chegava... Ah, hoje nos fizemos brinquedo, dança... é... Ah, meu Deus eu não me lembro direito... sempre uma coisa diferente, assim, né?”. (M.S./mãe – D.F/ 10a)

Quanto às saídas de campo, especialmente a que foi feita à universidade, estas possibilitaram contatos com outras realidades e se consubstanciam como um meio de projeção e construção dos sonhos e de planejamento do futuro. “No dia que a gente foi ver os corpos estudados pelas pessoas! Sempre queria estudar pra se médica! Como lá! Naquele negócio de corpo lá! No primeiro dia que eu fui, eu gostei! Ai eu pedi pra minha mãe me bota para se médica!”. (M.N.S.)

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Conclui-se, pois, que, para estas meninas, o programa significou um espaço em que se aprendia, formado por um meio agradável à discussão, onde o diálogo fornecia o acolhimento de suas curiosidades e a satisfação de uma conclusão para os temas relacionados aos seus universos.

Considerações finais No que concerne às percepções das meninas e dos familiares sobre participar do Programa, este foi identificado como um suporte/apoio no processo educacional, sobretudo no sentido de uma terceira via educacional. Em relação às atividades específicas desenvolvidas, as meninas e familiares as percebem como um momento expressivo e libertador, arquitetado num espaço para ser criança, para criar, se divertir, aprender sobre temas que elas têm interesse e para expressar a sua imaginação. Ou seja, um momento de ser quem sou e idealizar um futuro ou, ao mesmo tempo, fazer parte de um grupo com vínculo e diálogo afetivo, sucessivamente construído e proporcionado no ambiente das oficinas. Quanto à identificação de possíveis reflexos do programa na vida das meninas e da família, este significou um recurso extra de readequação social, governado para uma educação moldada às exigências sociais de comportamento, padrões e modos socialmente aprovados pelo meio. Tal constatação será motivo de reflexão para a equipe do Programa de Extensão, para avaliação frente aos objetivos de empoderamento das meninas e de que forma este significado de readequação ao padrão socialmente esperado pode ser um viés nos seus resultados práticos. Verifica-se que o processo de empoderamento é lento, que ocorre em longo prazo, que requer esforço, valentia, seriedade e paciência dos que o conduzem e dele participam, uma vez que o empoderamento assume os indivíduos e grupos socialmente excluídos como cidadãos de direitos, sobretudo, cidadãos possuídos de ‘direito a ter direitos’, afastando-se da concepção behaviorista que aspira conceber os marginalizados como pessoas dependentes e que devem ser ajudadas, socializadas e habilitadas para a vida em sociedade (Carvalho, S.R., 2004). Desta forma, Sérgio Carvalho (2004, p.1093) compreende que o ‘empowerment’ transforma-se, neste contexto, “em um ato político libertador que se contrapõe à concepção bancária de educação”.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BALEEIRO, M.C. Brincar: aquém e além do carretel. Cogito, v.8, p.15-9, 2007. CARVALHO, M.E.P. Modos de educação, gênero e relações escola-família. Centro de Educação e Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação sobre a Mulher e Relações de Sexo e Gênero – Universidade Federal da Paraíba. Cad. Pesqui., v.34, n.121, p.41-58, 2004. CARVALHO, S.R. Os múltiplos sentidos da categoria “empowerment” no projeto de promoção à saúde. Cad. Saude Publica, v.20, n.4, p.1088-95, 2004. CATRIB, A.M.F. Saúde no espaço escolar. In: BARROSO, M.G.T.; VIEIRA, N.F.C.; VARELA, Z.M.V. (Orgs.). Educação em saúde no contexto da promoção humana. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003. p.39-46. CERISARA, A. B. et al. O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 1998.

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O estudo teve como objetivo identificar as percepções de meninas e seus familiares sobre o Programa Univali Mulher. O Univali Mulher visa à promoção da saúde, é voltado para meninas de duas escolas de Itajaí/SC e objetiva prevenir a violência contra a mulher e fortalecer/promover seu empoderamento por meio de um processo dialógico de ensino. Trabalhando com a abordagem qualitativa de pesquisa, os dados foram levantados por três meios distintos (análise de relatórios, observações e entrevistas semiestruturadas). Pode-se extrair que o Programa significa um meio extraclasse de educação que propicia a formação de um grupo com vinculo afetivo, cujas atividades representam um momento expressivo e libertador, porém, regulador de comportamentos “desajustados”, não logrando, assim, a plenitude do processo de empoderamento.

Palavras-chave: Educação. Promoção da saúde. Cidadania. Violência contra a mulher. A third way to learn about female things... perspectives on the development of a project for the promotion of health and social awareness among girls The objective of this research was to identify the perceptions of girls and their families in relation to Programa Univali Mulher (Univali Women’s Program). The program, which aims at promoting health, focuses on girls of two schools in the city of Itajaí, southern Brazil, with the proposal of preventing violence against women and promoting their empowerment through a dialogic teaching process. The qualitative methodology was used in this research, with data collected from three sources: analysis of reports, observation, and semi-structured interviews. It can be concluded that the Program is a means of education which goes beyond the classroom, enabling the formation of a group of girls in which friendship is established, and whose activities represent an expressive and liberating phase of their lives. However, it also regulates inappropriate behaviors, thus preventing the girls from fully benefiting from this process of empowerment.

Keywords: Education. Health promotion. Social awareness. Violence against women. Un tercer camino para aprender las cosas femeninas... perspectivas sobre el desarrollo de un proyecto de promoción de salud e ciudadanía de niñas El estudio ha tenido como objetivo el de identificar las percepciones de niñas y sus familiares sobre el Programa Univali Mujer. El Univali Mujer trata de la promoción de la salud, se dirige a las niñas de los escuelas de Itajaí en el estado de Santa Catarina, Brasil, y objetiva prevenir la violencia contra la mujer fortaleciendo y promoviendo su apoderamiento por medio de un proceso dialógico de enseñanza. Trabajando con un planteamiento cualitativo de investigación, los datos se han obtenido por tres medios distintos (análisis de informes, observaciones y entrevistas semi-estructuradas). Se puede observar que el Programa significa un medio extra-clase de educación que propicia la formación de un grupo con vínculo afectivo cuyas actividades representan un momento expresivo y libertador aunque regulador de comportamientos “desajustados”, no logrando así la plenitud del proceso de apoderamiento.

Palabras clave: Educación. Promoción de la salud. Ciudadanía. violencia contra la mujer. Recebido em 21/03/09. Aprovado em 17/12/09.

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O uso de portfólios na pedagogia universitária: uma experiência em cursos de enfermagem*

Mara Regina Lemes Sordi1 Margarida Montejano Silva2

Introdução A crítica à ineficácia dos processos de avaliação da aprendizagem universitária tem crescido, e o esforço de oferecer alternativas mais consistentes e fecundas do ponto de vista pedagógico tem levado os educadores a experimentarem novos formatos de avaliação capazes de produzir e captar os avanços dos estudantes, tomando-os como tradutores da qualidade do trabalho pedagógico executado. Freitas, Sordi e Malavazi (2004) recuperam a necessária compreensão da avaliação como categoria importante, porém insuficiente para produzir aprendizagens, e reforçam a ênfase no trabalho pedagógico. Cabe retirar a centralidade da avaliação como meta primeira do esforço de alunos e professores, o que tem distorcido a importância da cena pedagógica em sua integralidade. A avaliação coroa o trabalho desenvolvido pelos atores nos diferentes cenários educativos que propiciam a aprendizagem significativa. Este é seu lugar dentro de um território mais amplo que é o da pedagogia universitária. Os desafios da contemporaneidade tem ampliado a complexidade da formação universitária e exposto a fragilidade da configuração tradicional da sala de aula e, por conseguinte, da avaliação. Esta, artificialmente concebida, parece reinar absoluta na escola e, inadvertidamente, auxiliamos a perpetuá-la. Las políticas educativas de los últimos años, tomando nota de esa necesidad de romper con el modelo hegemónico homogéneo típico del momento fundacional de los sistemas educativos modernos, reconocen que es preciso encontrar soluciones pedagógicas diversas y adecuadas (en este sentido “racionales”, es decir, adecuadas al fin que se persigue); y con ese objetivo se han explorado diversas estrategias: diversificación de la oferta (multiplicación de modalidades, recorridos, secuencias y métodos pedagógicos, etc.); fortalecimiento de las iniciativas de las instituciones para adecuarse a las particularidades (aliento a proyectos institucionales, autonomia pedagógica de los agentes y las instituciones etc.) y despliegue de políticas compensatorias para darle más a quienes más las necesitan y que pretenden romper con los clásicos criterios “igualitaristas” (los

* Texto inédito, sem financiamento ou conflitos de interesse, parte de experiência docente em curso de enfermagem. 1 Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rua Monte Alto, 165. Campinas, SP, Brasil. 13.090-763. maradesordi@uol.com.br 2 Laboratório de Observação e Estudos Descritivos, Unicamp.

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O USO DE PORTFOLIOS NA PEDAGOGIA UNIVERSITÁRIA ...

mismos recursos para todos y en igual proporción) de asignación de recursos escolares y extraescolares. (Fanfani, 2008 p.189)

Parece compreensível que, frente às denúncias destes limites, professores questionem os processos de avaliação que colocam em prática e que espelham algo sobre os valores educativos que estão em jogo. Isso tem gerado campo propício ao esforço de inovação dos processos de avaliação e apontam o portfólio como uma alternativa interessante, pois implica a apropriação da avaliação como componente de um trabalho pedagógico que se quer reflexivo e participativo. Hernández (1998, p.100) se refere ao portfólio como um [...] continente de diferentes tipos de documentos (notas personales, experiencias de clases, trabajos puntuales, control de aprendizaje, conexiones con otros temas fuera de la escuela, representaciones visuales que proporcionan evidencias del conocimiento que fue construido, de las estrategías utilizadas y de la disposición de quien elabora en continuar aprendiendo.

Sobre algumas características que avaliam o uso de tal recurso, Villas Boas (2005, p.295) ressalta: [...] o professor e o próprio aluno avaliam todas as atividades executadas durante um largo período de trabalho, levando em conta toda a trajetória percorrida. Não é uma avaliação classificatória nem punitiva. Analisa-se o progresso do aluno. Valorizam-se todas as suas produções: analisam-se as últimas comparando-as com as primeiras, de modo que se perceba o avanço obtido. Isso requer que a construção do portfólio se baseie em propósitos de cuja formulação o aluno participe, para que se desenvolva o sentido de “pertencimento”.

Para Klenowski (2005), a autoavaliação, a reflexão e a oportunidade de o aluno revelar o processo pelo qual o trabalho foi construído estão expressas no portfólio, constituem a centralidade do portfólio: o que significa que os alunos tornam-se capazes de internalizar esta nova forma de verificação da aprendizagem de forma mais crítica, aprendendo, com isso, a analisar o processo vivido, suas ações e contextos com maior responsabilidade (autocorreção). Aprendem, também, a pensar sobre o próprio pensamento ressignificando-o (metacognição), além de acurarem a criatividade, pois o processo vivido exige superação (autotranscendência). Estas características em conjunto podem elevar o potencial dos sujeitos a um nível de reflexão superior e de produção de um trabalho mais significativo. Por sua potencial capacidade de produzir novas formas de pensar nos futuros profissionais, habilitando-os a se inserirem em um mundo do trabalho com qualidade social, este recurso pode contribuir para uma formação socialmente competente (Sordi, Silva, 2008). Conforme Sordi e Silva (2008), “[...] a formação universitária que temos é afetada por microdecisões que tomamos e que revelam a coerência e o compromisso com o projeto coletivo do qual somos parte”. Será que o docente universitário tem consciência da totalidade da obra que ajuda a construir? Com base nestas ideias apresentar-se-á parte da experiência vivida num curso de Licenciatura em Enfermagem cuja avaliação da aprendizagem envolveu a produção de portfólio pelos alunos. Pretendese examinar a potência da matriz avaliativa fornecida pelo docente que subsidiou o processo de construção do material, explicitando os critérios adotados na disciplina, visando garantir maior transparência dos valores pretendidos no trabalho pedagógico proposto. Finalmente, serão destacadas algumas aprendizagens e considerações sobre o vivido.

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Um olhar avaliativo para os portfólios dos estudantes: aprendizagens necessárias para uma mediação pedagógica competente O crescente interesse no uso dos portfólios, experimentado em cursos de todas as áreas e níveis de ensino, expôs fragilidades no seu manejo tanto no segmento estudantil como por parte dos professores, que admitem certa insegurança quer na orientação e monitoramento do processo como na confecção do mesmo, o que subtrai a possibilidade de extração dos bons resultados dele decorrentes. Mas, afinal, o que caracteriza um bom portfólio? Como avaliar sua qualidade? Como respeitar/interpretar e ajuizar as diferentes formas de elaboração dos alunos, expressão da criatividade e autenticidade que se quer valorizar? Como evitar que o subjetivismo deslegitime a avaliação da aprendizagem, culturalmente pensada sob a ótica positivista? Entende-se que a educação crítica necessita superar a fase da denúncia daquilo que lhe parece disfuncional para atingir outro patamar, sem o que a ação de transformação não se concretiza. Este raciocínio se repete no uso do portfólio. Não basta sinalizar os problemas que o circundam. O que se requer é uma ação capaz de oferecer subsídios que qualifiquem o seu uso. Logo, examinar como vem ocorrendo a avaliação dos portfólios parece fazer sentido. Esta empreitada iniciou-se com base em uma reflexão sobre um fazer pedagógico que culminou na realização de uma minipesquisa junto a professores universitários de diferentes áreas de conhecimento, mestrandos em educação matriculados em nossa disciplina, questionando-os sobre as dificuldades sentidas na confecção de seus portfólios. Este estudo envolveu a análise de 24 portfólios construídos no período de 2005 a 2007. Observou-se, nas produções dos estudantes, a preponderância de abordagens descritivas, sustentadas teoricamente ou baseadas no senso comum, em detrimento de marcas reflexivas e contextualizadas. O estudo evidenciou as fragilidades tanto comunicacionais (dificuldade de entendimento da proposta e de expressão de significados por linguagens alternativas) como organizacionais (disciplina no registro das impressões e gestão do tempo), como também a existência de uma cultura de avaliação pautada no padrão de um certo/errado tornado natural e que interferia na livre expressão dos alunos, preocupados em satisfazer as eventuais expectativas do professor, tomadas de modo absolutizado. Estes dados, ao serem problematizados, geraram aprendizagens mútuas e múltiplas, as quais buscouse incorporar no planejamento da disciplina Prática de Ensino em Enfermagem, ministrada em 2007. Decidiu-se construir uma matriz de monitoramento do trabalho dos estudantes relativa ao portfólio visando evitar o espontaneísmo na produção ou na correção do material, o que dificultaria a objetivação do processo de avaliação. Negociou-se a introdução da matriz avaliatória, que foi aplicada nos 13 alunos matriculados no curso. Em uma experiência de meta-avaliação do trabalho docente, este estudo retrata as contribuições da matriz no uso do portfólio por meio da reflexão sobre a forma de mediação pedagógica executada no processo de avaliação da produção dos alunos. Pautou-se pelo entendimento da avaliação como ato de comunicação interessado na produção de novos sentidos tanto para estudantes como para docente, enfim, para o grupo envolvido no processo de ensino-aprendizagem (Hadji, 2001). Assumiu-se, ainda, a concepção de conhecimento como construção social, coletiva, subtraindo o viés individualista que tem marcado as atividades de avaliação. Outro marco referencial assumido na condução do processo foi o de descaracterizar o portfólio como recurso de avaliação e fortalecer seu potencial formativo incorporandoo no trabalho pedagógico. A matriz de avaliação foi arquitetada focando diferentes dimensões: 1 capacidade de descrição dos eventos educativos selecionados para integrar o portfólio (potência) e as razões explicativas apontadas pelo estudante que espelhassem as aprendizagens pretendidas; 2 capacidade reflexiva frente ao material; 3 capacidade de articulação do aluno no manejo do material, correlacionando com as bases teóricas indicadas na disciplina e/ou incorporadas por busca ativa de informação complementar e os links profissionais realizados. Também foi priorizada uma análise do material nos aspectos formais (clareza e pertinência das linguagens utilizadas, cumprimento de prazos e adesão responsável ao protocolo de aperfeiçoamento). Igualmente, foi valorizada a capacidade de o estudante socializar a obra construída e publicamente COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.943-53, out./dez. 2010

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defender seus pressupostos. O uso da matriz auxiliou o grupo a manter-se afinado aos propósitos da inovação e, dividida em distintas fases, denominadas estações de aprendizagem, permitiu que a práxis dialógica estivesse presente, inclusive e, sobretudo, nos processos formais de avaliação. Observou-se que a existência destes referenciais induziu à firmação de alguns princípios organizadores do processo de trabalho docente, que se constituiu em aprendizagem complementar, aparentemente subliminar ao processo.

Alguns resultados: novas e múltiplas aprendizagens Explorando um pouco mais os sentidos da experiência, pretendeu-se, nesta parte, explicitar as ênfases das fases da matriz de gestão e avaliação do portfólio. Além disso, e por meio do diálogo com alguns teóricos e com a realidade da prática em construção, intencionou-se evidenciar as contribuições que esta matriz trouxe ao trabalho desenvolvido na disciplina, tornando mais claros os termos do contrato pedagógico. Desta forma, foi selado um pacto de qualidade negociada com os estudantes (Bondioli, 2005), o que potencializou seu envolvimento com a inovação pretendida, permitindo-lhes situarem-se no processo. Na Fase 1, ocorre o convite à explicitação do itinerário pessoal e profissional e suas conexões, conforme se observam: Matriz de gestão e avaliação de portfólio Fase 1 - Memorial de entrada - 0,5 ponto . Explicitação do itinerário pessoal e profissional e suas conexões . Capacidade de exposição de sentimentos /valores . Extrapolação dos aspectos formais da apresentação pessoal . Uso de linguagens alternativas . Disposição de adesão à proposta A intenção está em demandar, para o estudante, a possibilidade de compartilhar a sua trajetória, explicitando-a e materializando, por meio da escrita, aquilo que o compõe enquanto sujeito do mundo do trabalho. Ao mesmo tempo, a atividade o provoca a transpor, para a realidade, as interfaces visíveis e invisíveis entre o que foi, o que é e o que pretende ser. Por outras palavras, ele próprio percebe que suas ações presentes e passadas não estão descoladas umas das outras e, tampouco, dos contextos que o rodeiam. Escrever sobre elas significa traduzir seus múltiplos sentidos. Tem esta fase uma pretensão localizadora do estudante na disciplina e permite, por contraste, recuperar, ao final, os avanços obtidos, servindo como subsidio para retomada, tanto para o aluno, como para o docente. Como uma coisa está relacionada a outra, sobre a capacidade de exposição de sentimentos e valores, entende-se que o cerne da atividade está na questão do reconhecimento do sujeito para si e para o outro, em relação a sua atuação no mundo - ou seja, aquilo que dá sentido a sua existência. Marx, sobre isso, ensina que “Todas as vezes que eu olho o que fiz como não sendo eu, ou não me pertencendo, eu me alieno. E, a alienação nos conduz ao afastamento de tudo aquilo que é movimento, que é dinâmico, que é vivo” (Marx, 1974, p.28). Na mesma direção, Cortella (2008, p.21) completa: “Todas as vezes que aquilo que você faz não permite que você se reconheça, seu trabalho se torna estranho a você. As pessoas costumam dizer: ‘não estou me encontrando naquilo que eu faço’ porque o trabalho exige reconhecimento – conhecer de novo”. Neste sentido, expor os sentimentos e valores com a liberdade que a escrita permite, dará ao sujeito condições de, ao lê-la, conhecer-se ou estranhar-se com a possibilidade de reconstruí-la. Ao mesmo tempo, dará ao leitor a chance de entender o ponto de vista do qual parte e quanto tem de subjetivo na objetividade das palavras. Evidentemente, esta liberdade é construída no processo de trabalho que se inicia com o cuidado pedagógico do docente de criar o vínculo com o grupo-classe e manter-se coerente com o discurso e os compromissos do uso de uma avaliação processual, formativa e emancipatória. 946

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Na evolução do processo de escrita, o sujeito se localiza, encontra seu lugar no grupo e tem, na extrapolação dos aspectos formais da apresentação pessoal, a oportunidade de criar vínculos, de ser parte, tomar parte e fazer parte, com responsabilidade, do trabalho coletivo. Este, por sua vez, não se realiza apenas teoricamente, há que se vivê-lo sob uma outra concepção de trabalho, de respeito e de atitude ética nas relações humanas. Requer novas aprendizagens, como por exemplo, a do trabalho colaborativo. Gramsci (1975, p.37), nesta perspectiva, enfatiza: “[...] a colaboração para uma boa e útil produção desenvolve a solidariedade, multiplica laços de afeto e fraternidade. Cada um é indispensável, cada um está em seu lugar e cada um tem uma função e um lugar”. Com isso, o sujeito, ao escrever seu material de entrada, é estimulado e vê ampliado o campo de possibilidades no uso de linguagens alternativas. Pode extrapolar os próprios limites e acrescentar jogos de imagens, de poesia, de sons no sentido de ressignificar a palavra, o trabalho e a si próprio. Tem, nesta escrita, condições de viver a interlocução com o leitor; de expressar-se criativamente, e, ao utilizar outras formas na comunicação, acrescenta o cuidado e o desejo de fazer-se entendido. [...] o texto aberto recebe àqueles que ele convoca, oferece hospitalidade. [...] hospitalidade do texto e disponibilidade dos leitores. Mútua entrega: condição de um duplo devir. [...] Na leitura não se busca o que o texto sabe, mas o que o texto pensa. Ou seja, o que o texto leva a pensar. (Larrosa, 1999, p.139)

Por fim, e com igual zelo, a escrita da Fase 1 do portfólio implica incondicional disposição de adesão à proposta. Pois, se não houver tal disposição, todo trabalho estará comprometido. Nesta direção, os pactos não se firmam, os sujeitos não se dão a conhecer e os vínculos não se constituem, o que compromete o todo, inviabilizando a natureza do trabalho coletivo e a possibilidade de se reconhecer enquanto produtor de sentidos, enquanto construtor de conhecimento. Mais que isso, emperra o processo de emancipação e da conquista da autonomia, confirmando o pensamento de Gramsci (1975), quando diz que a liberdade para todos é a única garantia para as liberdades individuais. Assim se manifestam alguns estudantes: “Escrever o memorial me ajudou a repensar minha opção pela licenciatura e o que significa ser educador em saúde”. “De repente me vi obrigada a parar e pensar sobre minha trajetória e me assustei, pois nem sabia o que escrever sobre mim”.

Na Fase 2 da matriz avaliativa, o foco do processo de ensino e aprendizagem concentra-se na escritura dos estudantes considerada reveladora de suas aprendizagens. Fase 2 - A obra em construção: escritura reveladora das aprendizagens - 6 pontos a seleção do material a.1 sensibilidade para seleção dos eventos com forte conteúdo formativo a.2 existência de articulação do evento com o trabalho pedagógico em foco b habilidade descritiva e contextualizadora frente ao evento b.1 apresentação de evidências que justificam a inclusão do material b.2 exposição clara e didática das ideias b.3 correlação micro e macro b.4 articulação do evento com o processo de trabalho profissional c capacidade interpretativa c.1 análise do material superando o senso comum c.2 uso de base teórica para sustentar raciocínios e argumentações COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.943-53, out./dez. 2010

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c.3 expressão na escritura da base valorativa do posicionamento c.4 mobilização de competências estéticas para explorar e situar o sentido da experiência para si e para os outros c.5 compreensão e problematização do evento selecionado c.6 capacidade de indagação frente ao evento e suas repercussões ético-epistemológicas (formulação de perguntas) d capacidade de intervenção na realidade d.1 formulação de plano de ação para lidar com a situação visando aprimorá-la ou solucioná-la. d.2 realização de projeções exequíveis e contingenciadas com a realidade d.3 indicação das alianças necessárias para lidar com o evento d.4 pertinência social das reflexões e qualidade da escritura do texto e.1 exatidão e.2 lógica interna e externa e.3 coerência com pressupostos do curso e.4 uso adequado das linguagens alternativas e.5 maturidade das ideias f postura diante da obra em construção f.1 compromisso com prazos fixados f.2 respeito à natureza processual da elaboração f.3 espírito de abertura e de crescimento f.4 autonomia intelectual f.5 competência coletiva Nesta fase, objetiva-se dar concretude à obra de modo que se percebam os progressos dos estudantes devidamente mediados pela leitura do portfólio, tornado instrumento de comunicação docente/discente. Não se trata de apenas examinar a capacidade de o estudante realizar compilação de materiais, mas sua sensibilidade para selecionar os materiais com maior potencial formativo e que se revelaram proveitosos para a realização de sínteses aproximativas dos objetivos da disciplina, capazes de revelar seu trânsito também pelos referenciais teóricos. “Professora... o que você quer exatamente que a gente faça? Me sinto insegura para escolher o que colocar na pasta”.

Embora esta estação de aprendizagem esteja dividida em 6 partes e a estas correspondam seis pontos na composição da nota do estudante/grupo, estas partes não podem ser interpretadas de forma dissociada. O processo de trabalho intelectual do aluno vai sendo sedimentado pela teia de relações que este estabelece no cumprimento metódico, porém, não mecânico deste itinerário. Cabe destacar que, neste movimento, a apropriação dos saberes não pode se distanciar dos valores e dos afetos que tornam significativa a experiência fazendo com que esta “toque”, de modo especial, os estudantes. “O importante não é que se fale ou explique bem os conteúdos: o importante é como eles são entendidos, organizados e integrados em um conjunto significativo de conhecimentos e habilidades novas” (Zabalza, 2004, p.156). Enfim, tenta-se deslocar o eixo da “formação centrada no ensino” para uma “formação centrada na aprendizagem”. Certamente, desta mudança outras podem se originar, entre as quais a produção de uma nova relação dos estudantes e professores com a avaliação, entendendo-a como recurso de mediação entre seus pontos de saber e seus pontos de “não-saber ainda”, devidamente enriquecidos pelas trocas intersubjetivas favorecidas pela forma de trabalho pedagógico pactuada (Sordi, 2008). 948

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“Me surpreendi quando fui pensando o que via no estágio e a forma como no bacharelado ia aprendendo o trabalho em equipe. No fundo, senti a precariedade da formação dos técnicos de enfermagem em função do jeito como o enfermeiro pensa sua função na equipe. Eu mesma tinha um jeito de olhar para eles que menosprezava sua capacidade de pensar”.

Com a preocupação de que esta experiência na disciplina, via produção de portfólio, ensine a produzir aprendizagens significativas e, tanto quanto possível, reforce o espírito de colaboração entre estudantes com a “obra“ em construção, a mediação pedagógica que se realiza vai gradativamente fomentando, nos alunos, uma linha de raciocínio frente ao material compilado, em um esforço de articular: teoria/prática; razão/ sensibilidade; níveis micro e macro de análise. Entende-se que alguma instrumentalização é necessária para que estudantes possam operar neste outro paradigma superando a cultura escolar, que tem sido a da fragmentação, e a base utilitarista dos saberes. Inspirados em Merhy (2002), considera-se importante subsidiá-los para a gestão do processo de aprendizagem individual e coletiva que vivenciam. O autor ensina que se pode dispor de, pelo menos, três ferramentas: rede analisadora do processo de trabalho; rede explicativa dos problemas e dos nós críticos, e rede de cogestão do processo decisório frente aos problemas. A rede analisadora procura explorar o sentido do trabalho em termos de sua finalidade, explicitando seus destinatários, as formas de operação e resultados obtidos. Permite identificação das forças restritivas e propulsoras ao desenvolvimento do trabalho e das ações sociais, com base na revelação das motivações e posições entre os atores envolvidos. Postos em situação de reflexão, os estudantes aprendem, a partir de sua própria prática de trabalho, a problematizar a natureza dos problemas, compreender os nós críticos como condicionantes, construir explicações, alargadas pela contribuição grupal que faz circular informações, saberes e valores, ajudando a construir os pactos que organizam as ações sobre a realidade de modo mais profissional. Constrói-se uma rede explicativa dos problemas que legitimam a seleção das prioridades e sustentam a formulação de estratégias que levem em conta que cada ator se conheça e reconheça na ação coletiva, considerando a interação entre atores aliados, oponentes e/ou indiferentes. Como a colocação da ação em movimento não depende somente de um único ator, é fundamental saber analisar a governabilidade, e, por isso, a discussão em coletivo tende a ampliar o êxito da ação, dando-lhe maior concretude, com capacidade de produzir efeito positivo para a diminuição dos pontos de desconforto priorizados. “Não esperava pela devolutiva do professor e isso me ajudou a pensar e a lidar melhor com meus conflitos. O debate na sala de aula me mostrou que muitos problemas são comuns e há diversidade de soluções para eles”.

Estes movimentos articulados possibilitam mobilizar saberes e práticas acumuladas, negociar conflitos, perceber fatores não controláveis associados ao problema, mas que são importantes para o trabalho. Aciona-se a terceira ferramenta, que implica a rede de cogestão, que envolve a construção de um cenário em que é possível se elaborarem referências coletivas, que aumentam as possibilidades de compreensão solidária intelectual, e que qualifica a intervenção sobre a realidade social. Observa-se aí, conforme Santos (2006), o compromisso com uma mediação orientada pelo uso edificante do conhecimento, superando o viés tecnicista que oculta os impactos de opções na vida das pessoas. Observa-se que o trabalho de construção do portfólio acrescenta aprendizagens colaterais à disciplina, e que isso potencializa a ação ético-política dos estudantes, dando qualidade social à formação universitária. Ressalta-se que se busca desenvolver e avaliar, formativamente, a capacidade de os alunos realizarem projeções exequíveis e contingenciadas com a realidade, de modo que sua capacidade de crítica sobre os problemas seja capaz de sustentar ações concretas e que se aproximem do inédito viável descrito por Freire, respeitando o princípio da historicidade que permite viver uma pedagogia da esperança. Prosseguindo na explicação da matriz, observa-se que esta indica a estação da aprendizagem denominada “exposição da obra”: sínteses compartilhadas que despertam e desafiam o aluno para a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.943-53, out./dez. 2010

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socialização pública de seu processo de aprendizagem, ampliando seus horizontes pela incorporação de outras visões e reações frente ao exposto. Esta etapa finaliza com a instalação da avaliação da disciplina, o que, por sua vez, implica o uso de recursos quaisquer, exceto o da exposição oral convencional, para evidenciar as repercussões da disciplina sobre os estudantes. De algum modo, os remetem ao memorial de entrada, revelando os valores que foram agregados. Fase 3 - Exposição da obra: sínteses compartilhadas - 2 pontos a.1 recursos de apresentação a.2 criatividade do recorte a.3 propriedade das sínteses a.4 compromisso com a aprendizagem coletiva Fase 4 - Instalação da sessão de avaliação - 1,5 ponto a.1 criatividade da cena avaliatória a.2 capacidade de autocorrigir-se, demonstrando onde e quando percebeu a superação a.3 entrevista individual de avaliação e firmação de termo de compromisso com educação permanente vivenciada. As vulnerabilidades do processo são tomadas como objeto de reflexão do grupo (estudantes e professor), informando-os e municiando-os para as transformações qualitativas necessárias. Nesta direção, a formatividade da avaliação se revela, igualmente, no momento somativo do processo que exige a materialização de uma nota para cumprimento das exigências de certificação. Pela fecundidade do processo vivido e ressignificado via registros reflexivos dos estudantes no portfólio, devidamente trabalhados ao longo do tempo pela mediação do docente, amplia-se a possibilidade de se afetar a relação dos sujeitos com a avaliação, retirando-a da centralidade da cena pedagógica. Constróise, assim, uma cultura de avaliação comprometida com as aprendizagens, e não apenas com a aquisição da nota. Uma vez mais, nota-se que esta experiência só é possível quando se preservam as relações intersubjetivas. Deste cuidado, decorre boa parte do êxito da tarefa de inovação da avaliação que, via de regra, é reconhecida como atividade meramente de controle sobre os sujeitos, com vistas à classificação e hierarquização. A transparência valorativa, que deve ser a marca da relação entre os sujeitos educativos, assegura a possibilidade de um olhar diferenciado para a avaliação, recuperando sua dimensão educativa. Ressalta-se que esta experiência de oferecer uma matriz capaz de traduzir, ao aluno, as intenções do docente, antecipando os valores e expectativas que subjazem à proposta, trouxe mais clareza e segurança aos estudantes. Inicialmente, estes insistiam em querer saber de que jeito deveriam fazer, não faltando indagações sobre o modo correto de execução do trabalho. Surpreendidos pela leveza do trabalho pedagógico, os mesmos foram ganhando segurança e espaço no processo, emprestando suas ideias, colorindo com diversos matizes as discussões e as reflexões, o que enriqueceu os resultados. O trabalho docente também foi otimizado com a utilização da matriz, pois esta, ao tornar inteligível, simultaneamente, suas intenções educativas, permitiu que este pudesse acompanhar e avaliar o desenvolvimento de seu próprio trabalho, além de possibilitar o controle social da mesma pelo grupoclasse. Cabe reconhecer que a aprendizagem é o resultado de um processo em que participa o aprendiz e que inovações pedagógicas são importantes. Porém, além das condições escolares, é preciso contar com as condições sociais. E estas interdependências que existem entre o desenvolvimento educativo, o desenvolvimento social e o desenvolvimento econômico das sociedades obrigam rever as formas de reflexão que os alunos fazem e as formas de reflexão que podem ser apresentadas mediadas pelos portfólios que produzem. Os estudantes necessitam refletir e, por meio de sua escrita no portfólio, podem aprender a ler outras dimensões que envolvem sua realidade pessoal e a realidade social. Só uma estratégia integral de desenvolvimento (por que não voltar à ideia de plano estratégico de desenvolmento integral com as necessárias adequações dos tempos atuais?) pode favorecer o desenvolvimento de uma sociedade mais 950

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rica, mais igualitária e, também, mais livre (Fanfani, 2008). Trocar o processo de avaliação implica, também, reconhecer quais motivos econômicos e políticos são responsáveis por uma cultura de avaliação tão excludente e positivista. Democratizar o processo implica explicitar aos alunos, especialmente aos universitários, as contradições históricas que atravessam esta prática apresentada como neutra e que não pode seguir sendo pensada assim.

Considerações finais Freire (1998, p.71) diz que “o ideal é que, cedo ou tarde, se invente uma forma pela qual os educandos possam participar da avaliação”. Compartilhando do pensamento deste autor, o trabalho do professor é o trabalho do professor com os alunos, e não do professor consigo mesmo. O uso da matriz auxiliou a mediação pedagógica a manter-se coerente e objetivada. Permitiu intervenções planejadas e intencionalmente orientadas pelo compromisso de gerar aprendizagens aos estudantes. Gerou uma base concreta para que o ato de comunicação entre professor/aluno se mantivesse pautado em evidências. A avaliação assim orientada pôde ser executada de modo preciso, incorporando a riqueza dos aspectos qualitativos, porém sem abrir mão da base concreta que sustenta processos de avaliação rigorosos. Assim como reforçou a ideia de que o uso do portfólio tem potência para auxiliar os alunos a produzirem autonomia e um pensar de nível superior, pois aciona as características do pensamento crítico (autocorreção) e do pensamento criativo (autotranscendência) e, ainda, do pensamento complexo (metacognição), constituindo a base de gestão e avaliação do portfólio. Crê-se que estas características do pensamento crítico também se constituíram em aprendizagens para o docente, acrescentando-lhe saberes para desenvolver um outro olhar avaliativo, qualificador da mediação pedagógica que se quer socialmente competente. Sem uma nova cultura de avaliação, dificilmente haverá superação do medo de arriscar sair dos lugares já conhecidos, tão conhecidos que nos levam aos mesmos destinos de sempre. É tempo de travessia e isso implica a exorcização do medo de errar. Implica a capacidade de releitura da cartografia de uma inovação, para evitar tomá-la como coisa tão simples que desconheça a complexidade do real, ou como algo tão difícil que justifique o socialconformismo que parece estar introjetado em boa parte dos docentes, levando-os a subestimarem sua possibilidade, como ator social, de produzir mudanças capazes de melhorar a sociedade em que vivemos.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas da produção do manuscrito.

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Descreve-se experiência de construção de matriz para análise de portfólios em um curso de licenciatura em enfermagem, com destaque para as aprendizagens mútuas e múltiplas do processo. Um dos desafios é potencializar o uso de portfólios evitando que este padeça de um subjetivismo que dificulte a sustentação do diálogo que se trava entre aluno/professor, que não pode prescindir de evidências sem as quais se enfraquece a dimensão educativa da avaliação. O estudo sistematiza princípios que garantem uma lógica de avaliação inovadora, constituindo-se recurso de formação tanto para docente quanto discentes envolvidos, contribuindo para o exercício da reflexão sobre o material produzido e compilado no portfólio.

Palavras–chave: Avaliação. Portfólio. Trabalho pedagógico em saúde. Formação de professores. Pedagogia universitária. Enfermagem. The use of portfolios in university teaching: an experience in nursing courses This paper describes the experience concerning the construction of a matrix to analyze portfolios developed by Nursing students, emphasizing the mutual and multiple learning that occurs in this process. One of the many challenges is to potentialize the use of portfolios, preventing it from presenting a subjectivism that hinders the dialogue established between professor and student, which must take into account the evidences that maintain the educational dimension of evaluation. The study systematizes principles that guarantee an innovative evaluation logic, constituting an education resource for teachers and learners, and contributing to the exercise of reflection on the material produced and compiled in the portfolio.

Keywords: Evaluation. Portfolio. Pedagogical work in health. Teacher education. University teaching. Nursing. El uso de portafolios en la pedagogía universitaria: una experiencia en cursos de enfermería Se describe la experiencia de la construcción de matriz para análisis de los portafolios en un curso de licenciatura en enfermería destacando los aprendizajes mútuos del proceso. Uno de los desafíos es potenciar el uso de portafolio evitando que padezca de un subjetivismo que dificulte la sustentación del diálogo entre alumno/profesor, que no puede prescindir de evidencias sin las cuales se debilita la dimensión educativa de la valoración. El estudio sistematiza principios que garantizan una lógica de valoración innovadora, constituyendo recurso de formación tanto para docente como para discente; contribuyendo para el ejercicio de reflexión sobre el material producido y compilado en el portafolio.

Palabras clave: Valoración. Portafolio. Trabajo pedagógico en salud. Formación de profesores. Pedagogía universitaria. Enfermería. Recebido em 24/10/09. Aprovado em 27/01/10.

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entrevista

Desafios à Educação Médica contemporânea: uma conversa com Thomas Maack Challenges for contemporary medical education: a dialogue with Thomas Maack Desafío de la educación médica contemporánea: una conversación con Thomas Mack

Eliana Goldfarb Cyrino1 Antonio Pithon Cyrino2

25 de maio de 2010: Primeiro dia do 7º Congresso Paulista de Educação Médica, com sede na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), em São Paulo. A abertura oficial do Congresso a cargo do professor Thomas Maack, da Weill Cornell Medical College, trata do tema: “Integração Vertical do Currículo Médico”.

O Prof. Thomaz nos concedeu esta entrevista numa fria tarde paulistana, pouco antes de sua conferência, expressando muita calma e a transformando numa conversa gostosa, carregada da sabedoria de quem já viveu quase cincoenta anos de experiência de ensino médico. Curiosamente, sua vida profissional, como professor, teve início na Faculdade de Medicina da USP, de onde foi retirado pelas forças repressivas nas primeiras semanas que sucederam ao golpe militar de 1964 e encarcerado por seis meses. Em 1991 publicou texto na Revista da USP (Maack, 1991), relatando o triste contexto político-institucional em que se deu sua prisão e de outros professores da FMUSP no início da ditadura militar contribuindo, assim, com a construção de nossa memória coletiva.

1 Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Unesp. Distrito de Rubião Jr, s/n. Botucatu, SP, Brasil. 18.618-000. ecyrino@fmb.unesp.br 2 Departamento de Saúde Pública, FMB/Unesp.

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Thomas Maack iniciou sua vida profissional como professor da Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, em 1962. Na manhã de 8 de junho de 1964 foi levado do laboratório de Fisiologia por agentes do Departamento da Ordem Pública e Social (Dops) e militares à paisana. Permaneceu preso por seis meses em navio atracado no porto de Santos. Durante o tempo em que esteve nessa embarcação cuidou dos presos que adoeciam. Três dias após receber um habeas corpus, nova prisão preventiva foi decretada. Aos 29 anos, viu-se obrigado a deixar o país, com a mulher, professora Isa Tavares Maack, e a filha Marisa, de 18 meses. Já nos Estados Unidos, lecionou na Universidade Estadual de Siracusa (Nova York), de 1965 a 1969, quando foi contratado como professor da Escola Médica da Universidade de Cornell, também em Nova York. Anos mais tarde tornou-se titular dos departamentos de Fisiologia e de Medicina. Nos Estados Unidos teve mais uma filha, Márcia. Dedicou seu trabalho à pesquisa e à formação médica. Nos últimos trinta anos desenvolve pesquisa pioneira sobre fator natriurético atrial, hormônio produzido pelo coração que regula a excreção de sal do organismo e a pressão arterial. Publicou mais de cem artigos em revistas científicas, além de capítulos de livros. Desde 1979 tem atuado como professor visitante em diversas universidades públicas brasileiras. Foi consultor da Capes em 1999 e 2001. De 1998 a 2001 apoiou e assessorou reformas curriculares em cursos de Medicina no Brasil, como o da Universidade Estadual de Campinas (Melo, 2003).

Eliana: Fale um pouco da sua trajetória profissional e sua experiência com a educação médica. Prof. Thomas: Eu nasci na Alemanha em 1935 e meus pais, refugiados do regime nazista, emigraram para o Brasil. Saí da Alemanha com alguns meses de vida, com destino ao Brasil. De maneira que eu, que, aliás, nem falo alemão e nem tenho uma relação muito profunda com a Alemanha, cresci aqui, no Brasil, fiz toda a minha educação aqui e me formei em medicina pela Faculdade de Medicina da USP, em 1961. Eu gostava muito de praticar a medicina, mas eu gostava mais ainda de fazer pesquisa em ciência. Então, sempre tive um conflito, por assim dizer, profissional, e me decidi pela ciência, numa cadeira básica na FMUSP, inicialmente em Histologia, por um ano, e depois em Fisiologia. Em 1964, com o golpe de Estado, fui demitido, juntamente com outros seis docentes da faculdade, por um decreto do então governador Ademar de Barros. Fiquei preso por uns seis meses, a maior parte deles em um navio ancorado em Santos, chamado Raul Soares. Fui liberado com um habeas corpus do Supremo Tribunal Civil, o último caso de habeas corpus julgado, antes do Tribunal ser fechado pelos militares. Tive uma nova prisão preventiva decretada e tivemos de sair do país. A idéia inicial era ir para o Canadá, pois eu não queria voltar para a Europa, de onde os meus pais saíram refugiados, e também não queria ir para outro país da América Latina porque suspeitava que pudesse ocorrer o mesmo que se deu no Brasil, o que de fato aconteceu. Então, com a minha esposa e a minha filhinha, à época com um ano e meio, resolvemos ir para o Canadá. Mas para ir para o Canadá, nós saímos pelo Paraguai, fomos retirados pelo Paraguai. Precisávamos de um visto americano, então nós paramos em Nova York, e aí decidi deixar a minha esposa e minha filha com uma tia que eu tinha em Siracusa e procurar emprego no Canadá. Em Siracusa me ofereceram um emprego de pós-doutorando no Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina. Consegui esse emprego em uma semana, graças à recomendação do 958

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Professor Michel Rabinovitch e de meus dois trabalhos publicados no Brasil quando ainda estudante de medicina, sob a orientação daquele magnífico professor e cientista. E essa foi a razão de ficamos nos Estados Unidos. Então, eu fiz toda a minha carreira, por assim dizer profissional, exceto por três anos na FMUSP, nos Estados Unidos. Em 1969, fui recrutado pela Cornell, onde progredi de professor assistente a professor titular nos Departamentos de Fisiologia e Biofísica e Medicina. Este ano, 2010, faço 41 anos na Cornell. A minha dedicação fundamental foi pela ciência e pelo ensino médico. Tenho mais de cem artigos publicados, com mais de sete mil citações. O meu campo é a endocrinologia cardiovascular e renal. Eu sempre gostei muito de ensino, do ensino médico. Em 1995, fui convidado pelo diretor da Faculdade de Medicina, na Cornell, para ser um dos organizadores da reforma educacional. Essa reforma consistia essencialmente em abolir o ensino por departamentos, criar cursos de ciências básicas integrados horizontalmente, introduzir alguns métodos, como o aprendizado baseado em problemas, mas não como uma forma exclusiva de ensino, e introduzir cadeiras clínicas nos primeiros anos e cadeiras básicas avançadas nos últimos anos da graduação médica. Essa foi essencialmente a base da reforma na Cornell. Eu organizei o primeiro piloto dessa reforma curricular, um curso que chamamos de Estrutura e Função do Corpo Humano, que integra as disciplinas de anatomia, radiologia, histologia, embriologia e fisiologia. Trabalha-se com todos os órgãos, exceto o sistema nervoso, que é lecionado em um curso independente, chamado Cérebro e Mente. Esse curso piloto de três semanas teve muito sucesso e o instituímos de forma permanente em 1997. Foi quando o diretor da escola me pediu para ser o chefe do comitê, que supervisiona todas as cadeiras básicas, na Cornell. Esta é, essencialmente, a minha carreira no ensino médico. Eu também dirigi outro curso de ciências básicas, que se chama Base da Doença, um curso integrado de fisiopatologia, patologia, farmacologia e os sistemas, todos os sistemas, de novo excluindo o sistema nervoso, que é lecionado separadamente. Em 1979, depois de quinze anos fora do Brasil, eu pude voltar para cá pela lei da anistia. E aí nós tentamos, com mais uma filha, voltar permanentemente para o Brasil. Foi realmente difícil... Eu fiquei um ano no Brasil... Realmente eu teria que recomeçar a minha carreira, porque não fiz nada do que é habitual no Brasil. Eu não tinha um doutoramento. Toda a minha carreira nos Estados Unidos foi feita com o meu grau de médico. Eu não tinha feito doutorado aqui. Acabei fazendo, em 1980, o doutorado na Escola Paulista, quando fiquei, por um ano, na divisão de nefrologia. O mesmo ocorreu com a minha esposa, que fez uma carreira acadêmica de historiadora nos Estados Unidos. Foi então que nós resolvemos voltar de uma forma, por assim dizer, permanente, para os Estados Unidos. Eu só queria adicionar que, durante a minha carreira fora do Brasil, uma forma de colaborar com o Brasil foi formando brasileiros em meu laboratório. Mais de dez pesquisadores brasileiros se formaram em meu laboratório e exceto dois deles, todos os demais voltaram para o Brasil, onde construíram carreiras acadêmicas importantes. Eliana: Então, eu queria que nos contasse um pouco sobre o relatório Flexner e depois sobre o relatório “Flexner 2”. Como vê esta história dos relatórios? Prof. Thomas: São cem anos do relatório inicial de Flexner, de 1910. Não dá para contar cem anos de história, mas dá para dar um esboço, levantar algumas questões que vou apresentar na conferência hoje. Em 1910, nos Estados Unidos, havia cerca de 166 escolas médicas, com nome de escola médica. Grande parte eram escolas médicas privadas com fins lucrativos, poucas eram ligadas a uma universidade. O aprendizado de medicina era essencialmente, o que o Flexner chamava de “aprendizado por tradição médica”. O estudante era realmente um aprendiz, aprendiz de médicos que se consideravam bem sucedidos na época. Não tinha padronização nenhuma, não havia uma cultura universitária no ensino médico e as escolas não eram acreditadas por órgão governamental ou privado. Se um grupo de médicos desejasse ter uma escola médica, se reuniam e criavam a escola. Assim era essencialmente a grande parte das escolas médicas, com algumas poucas exceções. Então, a Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching (Fundação Carnegie para o Avanço do Ensino) pediu ao Flexner, que não era médico, era um educador, para fazer um estudo sobre a educação médica americana. E o que ele fez? COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.957-66, out./dez. 2010

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Flexner usou como modelo fundamental, para as suas recomendações a educação médica que era praticada na Faculdade de Medicina da Johns Hopkins University. Ele fez um grupo de propostas extremamente concretas que são a nossa herança da educação médica nos Estados Unidos e em grande parte no Brasil. Por exemplo, para resolver o problema da falta de padronização do ensino médico, na época, ele propôs criar um currículo profissional de 2+2: dois anos de ciências básicas e mais dois anos de ciências clínicas. Para o problema da heterogeneidade da educação médica americana recomendou que todas as escolas médicas fossem acreditadas por entidades de classe. Em relação à falta de base científica da educação médica, em uma época em que a prática médica já possuía base científica, ele recomendou que todas as escolas fossem ligadas a universidades, que seguissem a tradição universitária. Uma frase de seu relatório que eu considero lapidar é “que médicos têm que aprender a pensar como cientistas”. Essa foi a reforma proposta por Flexner, em 1910, que teve uma aplicação quase que imediata. Em dez anos, todas as escolas médicas privadas e com fins lucrativos ou desapareceram ou se transformaram em escolas médicas sem fins lucrativos ligadas as universidades. O número de escolas médicas diminuiu em um terço. Instituiu-se um processo de acreditação para todas elas por uma entidade que era uma combinação da sociedade médica americana com a associação das escolas médicas dos Estados Unidos, que corresponde à ABEM no Brasil. Esse processo de acreditação se repetia para cada escola a cada sete anos e persiste assim até hoje. E, como eu disse, desapareceu uma grande quantidade de escolas médicas. Hoje nós temos cerca de 120 escolas, com quase o triplo da população, talvez, mais do que o triplo da população. Havia 166 escolas em 1910, hoje nós temos só 120 escolas médicas. Bem, isso foi há cem anos. O que esses anos trouxeram foram essencialmente duas mudanças fundamentais, na minha opinião e na opinião de muitos: uma é a expansão vertiginosa do conhecimento de ciências biomédicas, principalmente nos últimos cinqüenta anos, o que estabeleceu definitivamente as bases científicas da medicina; a outra é a conscientização de que o atendimento médico é um direito humano, um direito do cidadão, com um enorme aumento da demanda por essa assistência. A combinação desses dois aspectos trouxe para a educação médica uma nova crise, o que levou a mesma entidade (Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching) que patrocinou em 1910 o estudo de Flexner, a patrocinar um novo estudo para a educação médica dos Estados Unidos. O relatório completo do estudo ainda não foi publicado, mas seus autores publicaram um resumo e suas conclusões no Academic Medicine3. Nós denominamos esse novo estudo, eufemisticamente, de Flexner 2. O mais marcante do “Flexner 2”, que nos surpreende e que o diferencia do Flexner original, é o quão vagas são as propostas deste estudo atual. O reconhecimento dos problemas é o que todos nós já sabemos. Quer dizer: falta acompanhamento dos estudantes; o estudante não aprende medicina onde deveria praticar; ele não tem uma forma de progredir no estudo médico de acordo com as suas habilidades; não existe individualização e não há uma integração com o papel não médico do médico; ele também não aprende a trabalhar em equipe e a permanentemente acompanhar os progressos da medicina. Essencialmente os problemas são mais ou menos reconhecidos por todos. Ao contrário de Flexner, em 1910, que tinha um modelo concreto como base de sua proposta, os autores do “Flexner 2” não têm um modelo em que se 960

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3 Irby, D.M.; Cooke, M.; O’Brien, B. Calls for reform of medical education by The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching: 1910 and 2010. Acad Med., v.85, n.2, p.220-7, 2010.


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basear. Daí suas recomendações serem tão vagas. Flexner não era médico, era diretor de escola secundária, mas ele tinha um modelo, o ensino médico da Johns Hopkins University. O grupo atual do Flexner 2 não tem um modelo. Que eu saiba, não existe faculdade no mundo que tenha resolvido concretamente, de forma genérica, a educação médica atual. Por exemplo, “Flexner 2” recomenda integrar as ciências básicas, clínicas e sociais. Mas como é que se faz isso? Não tem um exemplo. Tem exemplos parciais pequenos aqui e ali, com algum sucesso. Em geral, por exemplo, o problema de integração que eu conheço mais, é o problema de integração de ciências básicas e clínicas. Para isso, a recomendação do “Flexner 2”, é fazer uma imersão clínica nos primeiros anos da faculdade e ter atividades de ciências básicas nos anos clínicos. Isso é uma transposição de currículo, não uma integração de ciências básicas e clínicas propriamente dita. Nós da Cornell, por exemplo, temos uma experiência bastante grande com esse tipo de transposição. Há quinze anos nós temos cursos de prática médica, nos primeiros anos, e cursos de ciências básicas avançadas nos últimos anos. Eles têm diversos objetivos e alguns deles são alcançados, mas na realidade são atividades praticamente independentes. A herança Flexneriana do 2+2 não acaba simplesmente fazendo uma transposição de atividades. Uma integração real é a minimização conceitual e, ao mesmo tempo, permite a percepção de que as ciências básicas e as clínicas são parte de uma mesma moeda. E isso até agora não foi conseguido. Há exemplos parciais de integração real entre ciências básicas e clínicas. Um deles é o nosso curso “Cérebro e Mente”, que integra a anatomia e fisiologia do sistema nervoso com a neurologia clínica, a psiquiatria, o diagnóstico neurológico e a entrevista psiquiátrica num curso único. É um curso que corre por onze semanas, por vinte horas semanais. É o único curso daquele período e o primeiro curso do segundo ano. Não é uma integração perfeita, mas é uma indicação do caminho a seguir na integração das disciplinas de neurociências, neurologia e psiquiatria. Existem problemas logísticos enormes para se fazer isso no currículo como um todo, de uma forma genérica. E, nos Estados Unidos, pelo menos, isso é agravado por que o curso médico é curto demais, são só quatro anos de graduação. E, o último ano, em grande parte, é dedicado à competição por residência. Os estudantes vão ser entrevistados por todos os lados do país e estão preocupados com a residência, não estão mais preocupados, por assim dizer, com a educação médica. Além disso, os Estados Unidos perderam o que o Brasil felizmente ainda conserva - o internato rotatório - que praticamente desapareceu nos Estados Unidos. Eu acho uma perda enorme. Esta é uma coisa que o Brasil não deve perder na educação médica. O Brasil está há milhares de quilômetros adiante dos Estados Unidos, neste aspecto. Fundamentalmente, para se pensar a integração das ciências básicas e clínicas tem o que eu chamo de frase lapidar do Flexner: “O médico precisa aprender a pensar como cientista”, com a contrapartida que “o cientista básico, docente de cadeira básica, precisa começar a pensar como médico”. Ele não precisa ser médico, ele precisa ter uma educação médica, que é uma coisa diferente, do que ter uma formação médica. A minha colega que organizou o curso “Cérebro e Mente”, a que me referi antes, tem doutorado em neurofisiologia, não tem grau de médico, nunca estudou medicina. Mas, ela se sente absolutamente confortável de ter adquirido com o tempo uma cultura médica, em poder conversar com os neurologistas e psiquiatras, organizar e dar exemplos de medicina neurológica ou psiquiátrica, quando ela dá aulas de neurofisiologia. Diversos dos meus colegas que são cientistas básicos e doutores em ciências básicas ganham prêmios de reconhecimento dos estudantes como melhores professores, sem serem médicos, mas eles adquiriram uma cultura médica. É da combinação “do médico pensar como cientista e do cientista e docente de cadeiras médicas pensar como médico” que vai eventualmente, na minha opinião, sair uma integração vertical melhor do curso médico. Eliana: Que mudanças julga mais relevantes nestes mais de quarenta anos de experiência como professor de medicina? Prof. Thomas: Eu acho que foi, em parte, a perda de modelos. Tanto na clínica, quanto nas ciências básicas. Quando eu passei pela minha educação médica na FMUSP, apesar de ter, francamente, sérias COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.957-66, out./dez. 2010

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críticas a respeito de minha formação, eu tinha modelos pessoais de professores que me marcaram por toda vida. Eu tinha modelos de ciências básicas, modelos de prática clínica. E isso, em grande parte, tende a desaparecer pelas pressões sofridas tanto pelos clínicos, quanto pelos cientistas básicos ao assumirem outras tarefas. Estas referem-se aos atendimentos médicos para os clínicos, que geram, pelo menos nos Estados Unidos, rendas substanciais para as faculdades, e os cientistas básicos com seus “grants”, grandes projetos de pesquisa, que geram muito dinheiro, provenientes de salários e custos indiretos para as faculdades. Faltam modelos pessoais éticos e profissionais e isso foi a maior mudança que vi nesses mais de quarenta anos. Antonio: Houve, nesse processo, certo afastamento dos professores de uma vivência mais próxima de seus alunos... Prof. Thomas: Claro! Por exemplo, uma vez, quando estava dando plantão, telefonei para o meu professor de clínica, em sua casa, às três horas da manhã, para perguntar “como eu devia tratar uma paciente em crise hipertensiva devido à eclampsia pós-parto”. Perguntei: “não sei como tratar essa paciente, o que eu devo fazer?”. Ele me explicou como proceder na intervenção apropriada, pelo telefone, e sua única queixa não foi ter sido acordado às três horas da manhã, mas o fato de eu não ter aprendido o suficiente para poder tratar o caso da paciente. Como eu disse, ele se orgulhava em dizer “eu faço médicos”, ele se orgulhava dessa sua atividade profissional. Eu não sei em relação ao Brasil, nesses últimos cinqüenta anos, mas nos Estados Unidos essa possibilidade de comunicação entre estudante e professor praticamente desapareceu. Antonio: Eu acho que há uma grande proximidade nessa perda de modelo... Eliana: Acho que aqui também se perderam os modelos. Prof. Thomas: Isso é relevante. Outra coisa no Brasil, que talvez seja importante, não é o caso, talvez de Botucatu, mas é o caso, por exemplo, de muitas escolas médicas, e entre as melhores do país. Houve uma separação física, quase que completa, entre a parte clínica e a parte básica, por meio dos Institutos de Biociências. O Instituto de Biociência é uma batalha e uma conquista da minha geração e me orgulho de ter participado dela. Foi muito importante para o desenvolvimento da pesquisa biomédica no Brasil. Sem o Instituto de Biociências, na minha opinião, o Brasil não teria progredido na ciência, em particular, nas ciências biológicas, como progrediu. Todavia, essa separação criou um problema para a educação médica e certamente eu não tenho soluções. Mas, tenho certeza de que se vocês sentarem juntos e começarem a discutir e pensar como resolver isso, uma solução vai sair. Antonio: Em Botucatu, também, há a separação física. Quando foi criada a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, em 1963, o grupo de professores das ciências básicas ensinava para a agronomia, medicina, biologia e veterinária. Era uma concepção de certa racionalização do corpo docente. Prof. Thomas: Mas, isso obviamente traz problemas, não é? Porque o agrônomo tem que pensar diferente do médico, necessariamente é assim. Eliana: O ensino médico, há um longo tempo, concentra-se no hospital e, atualmente, há um grande esforço em se estruturar o ensino nos diferentes níveis de atenção à saúde... Prof. Thomas: Acho um progresso. Isso é um progresso... Eliana: E, nos Estados Unidos, como isto tem se dado? Prof. Thomas: Em menor escala, pela forma como lá a medicina é organizada. Todo médico que trabalha em seu consultório ou em um centro de saúde, nos Estados Unidos, está sujeito a uma 962

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vigilância legal muito grande. Então, ter estudantes junto com ele é um problema. O valor do seguro aumenta. Há possibilidade de processos. Vou dar um exemplo de como hoje é possível encontrar algumas iniciativas para se fazer isso, como se pode contornar um pouco esses problemas. Mas, quero dizer, é necessário que o médico aprenda a trabalhar onde ele vai trabalhar. Antonio: Ao comentar a entrada do clínico no básico, já desde os primeiros anos, comentou que o aluno da Cornell tem uma vivência clínica, não sei se dá para falar em vivência clínica, mas ele tem uma vivência. Queria que contasse um pouco da experiência da Cornell a este respeito. Esta atividade está estruturada em hospital ou em ambulatórios? Prof. Thomas: Em parte, é no hospital, mas a maior parte é em consultórios médicos. Nós recrutamos médicos para isso. Eles gostam porque podem colocar uma placa no consultório dizendo que ali é um centro de ensino da Cornell. Os pacientes também gostam, pois se sentem mais seguros. O estudante acompanha esse médico, em geral, em clínicas privadas, uma tarde por semana, por dois anos. Antonio: O aluno acompanha o mesmo médico nesse período? Prof. Thomas: Não necessariamente. Mas, também, há centros comunitários onde ele pode trabalhar e o estudante vai acompanhar. E em alguns casos, em ambulatórios de hospital. É uma boa experiência, mas infelizmente o estudante não gosta dessa atividade. Na realidade ele detesta (risos). Antonio: Estes são os paradoxos... Prof. Thomas: Os paradoxos da vida. Ele detesta por uma razão muito simples. Ele considera a disciplina, que nós chamamos de “Médico, Medicina e Sociedade” como um curso leve. Essa disciplina vai desde o primeiro, segundo ano... É um curso leve se comparado com os cursos pesados de ciências básicas. Então, por exemplo, quando ele tem que ir ao consultório na quinta-feira e tem um exame de anatomia na sexta, ele detesta. Acha uma perda de tempo. A outra crítica é que o curso não é estruturado e não é comparável, pois alguns médicos são muito bons, outros não são tão bons; alguns estudantes têm boas experiências, outros não. Como eu digo, há falta de integração completa com o que está acontecendo nas ciências básicas. Eu tentei, junto com o coordenador do curso “Médico, Medicina e Sociedade”, fazer ações combinadas, por exemplo, quando nós estivéssemos ministrando a fisiologia cardíaca, os médicos (nos consultórios) deveriam fazer eletrocardiograma, aferir a pressão, auscultar um sopro cardíaco e coisas desse tipo. Antonio: Não funcionou? Prof. Thomas: Logisticamente nós tentamos, mas não funciona, porque a experiência é heterogênea. Por exemplo, um grupo de estudantes pode acompanhar um médico cuja especialidade não inclui o eletrocardiograma, o outro vai com um médico que está fazendo. É extremamente difícil organizar desse jeito. É necessário fazer uma reestruturação geral do currículo para os quatro ou seis anos para poder integrar efetivamente. Mas a coordenação é difícil, nesses cursos. A minha crítica sobre os cursos de ciências básicas avançadas é mais ou menos do mesmo nível. Os tópicos são maravilhosos. Eu participo, no quarto ano, do último curso dos nossos estudantes de medicina. E realmente os tópicos estudados referem-se a temas abrangentes e importantes, de AIDS a diabetes. Mas os estudantes detestam, porque atrapalham o treinamento clínico deles, não estão relacionados esse treinamento clínico. Os alunos, como já disse, estão preocupados com o treinamento clínico por causa da residência e acham que a posição do curso no currículo é totalmente inconveniente. Não é que não gostam do curso, eles acham que deveriam aprender isso em outro momento. Então também há essa crítica. Os estudantes também têm uma experiência de pesquisa básica ou clínica por nove semanas, em tempo integral, durante o curso médico, que ocorre no quarto ano. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.957-66, out./dez. 2010

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Antonio: Que tipo de pesquisa os alunos desenvolvem? Prof. Thomas: Qualquer pesquisa. O estudante encontra um tutor e faz uma pesquisa. A queixa deles é a de que nove semanas não é tempo suficiente para terem uma experiência suficiente de pesquisa. Ou seja, pode ser clínica, pode ser básica, pode ser de bancada, desde que seja pesquisa, não é? E também eles se queixam. É uma experiência inconclusiva, por assim dizer. Muitos estudantes (cerca de 30% da classe) que desejam ter uma experiência maior pedem um ano de licença para trabalhar em pesquisa. Esses são os problemas para a integração vertical, por isso eu acho que simplesmente mudar de um lugar para outro não é o que integra, na verdade. Antonio: E como têm sido as experiências de integração disciplinar, como a do curso “Mente e Cérebro”? Prof. Thomas: Nós fazemos avaliação de todos os cursos e esta é obrigatória. Os estudantes quase “morrem” de tanto fazer avaliação, eles têm de fazer, senão nós seguramos as suas notas... Cérebro e Mente é, de longe, o nosso curso com a melhor nota de avaliação dada por parte dos estudantes. E isso eu acho muito significativo. Ainda não é uma completa integração, em grande parte por falta de tempo. O curso médico nos Estados Unidos dura só quatro anos. E a minha opinião, bastante impopular, é que não precisa de quatro anos de college, dois anos já chegariam. Dois anos e aumentaríamos a escola médica de quatro para seis anos. Aqui no Brasil proponho o contrário. Eu acho que deve se instituir um curso universitário pré-profissional de dois anos. Eliana: Antes dos seis, o senhor diria? Prof. Thomas: Antes dos seis. Porque eu acho que não dá para integrar verticalmente o curso médico, sem isso. Um dos problemas da não integração vertical no Brasil é que o professor de cadeira básica, essencialmente, tem que suprir primeiro a deficiência científica do aluno do curso médico. Então ele gasta muito tempo, os cursos gastam muito tempo numa atividade de preparação ao invés de formação. O curso universitário pré-profissional além de outras vantagens corrigiria isso. Ciências básicas em curso médico deveriam ser diretamente ligadas à medicina; por exemplo: fisiologia médica, genética médica, bioquímica médica. Isso não é possível no Brasil porque os estudantes do ensino médio têm uma preparação insuficiente e os docentes das cadeiras básicas precisam supri-las. Um curso universitário pré-profissional corrigiria essa deficiência. Antonio: Esta parte não está incluída no ensino médio? Prof. Thomas: Eu acho que o ensino médio faz o que pode fazer. O ensino médio tem que pensar mais na formação em geral do que simplesmente preparar o estudante para faculdade de medicina ou engenharia ou outras profissões. Eu sou a favor de um curso universitário pré-profissional para todas as profissões no Brasil. O que, aliás, não é proposta minha e sim do professor Alaor Chaves, que é membro da Academia Brasileira de Ciências. Infelizmente, a academia mesmo desistiu de batalhar por esse tópico... Antonio: Aqui no Brasi há algumas experiências, como a da Universidade Federal da Bahia. Prof. Thomas: Eu considero extremamente produtivo por diversas razões. Ela permite um amadurecimento importante. Também permite ao candidato da medicina testar melhor a sua vocação. Se ele realmente tem vocação para medicina. E o curso universitário pré-profissional pode oferecer cursos científicos rigorosos para que, quando o aluno entrar na faculdade de medicina, os cursos realmente sejam focalizados na parte médica, os cursos básicos eu estou dizendo, seja fisiologia, seja genética, seja biologia molecular, seja qualquer uma das ciências básicas que são dadas no curso 964

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médico. E aí teria a possibilidade de verticalização, mas sem isso, eu acho muito difícil. Além disso, eu tenho críticas ao vestibular como instrumento único de seleção. Vestibular é um processo que deforma a educação, mas provavelmente isso não vai mudar tão cedo, mas poderiam se introduzir métodos auxiliares de seleção. Um curso universitário pré-profissional poderia permitir selecionar os estudantes em parte pelas notas que obtêm nesses cursos, e também pela sua experiência durante o curso. Se o estudante, por exemplo, quer estudar medicina, tem de ter alguma experiência de contato com o paciente, para saber se é isso mesmo que ele quer. E isso ele pode fazer como voluntário em hospital, em centros de saúde, durante o curso, durante o college. Nenhum candidato vem para nós sem fazer isso, porque eles sabem que nós não vamos aceitar. Quero dizer que motivação para a profissão é uma coisa muito importante. Eliana: Isso é muito importante, realmente! Prof. Thomas: A primeira vez que eu propus isso foi em um congresso da ABEM, em Vitória. Quase me penduraram pelo meu dedão lá! (risos)... De tanto antagonismo que a minha proposta suscitou. E as razões dadas tanto nos Estados Unidos para diminuir o college, quanto aqui para aumentar, eu considero artificiais, não têm nada a ver com educação. Aqui os argumentos dados é que o menino do interior, a menina do interior, vem para uma universidade para ser médico (ou médica), tem de ter o avental branco, tem de ter o estetoscópio no bolso logo. É verdade que o curso universitário pré-profissional seria mais oneroso para o país. Todavia, deve-se considerar que o país tem um enorme gasto humano e material com as constantes repetições em vestibulares. Eu tenho parentes, sobrinhos e netos, que estão a dois, três, quatro anos, tentando entrar em uma faculdade de medicina. É um gasto econômico que ninguém está contando. E, segundo lugar, em medicina não acontece muito, mas em diversas outras profissões, a turma desiste no meio do curso, faz outro vestibular, para outra escola. Assim o aluno vai testando as profissões até achar uma para a qual esteja motivado. Então, te preciso pensar um pouco se realmente esse gasto não é maior do que a despesa em um curso universitário pré-profissional. Outro problema também difícil de superar no Brasil, na educação médica, é o problema das cargas horárias excessivas e falta de área verde no currículo. O estudante está na sala de aula ou no laboratório das oito da manhã às seis da tarde. Quando é que ele tem tempo de pensar, de estudar, de aprender? É impossível organizar qualquer curso médico moderno sem dar a oportunidade para o estudante estudar por ele mesmo, de fazer atividades por ele mesmo. Eu acho isso muito difícil. Alguém me falou que isso acontece em parte porque os docentes têm de justificar o número de aulas pelo salário. Um outro argumento é que o estudante vai jogar futebol, vai fazer sua vida social durante o período da área verde. Não vejo diferença entre muitos estudantes de medicina brasileiros, que eu conheço e os estudantes dos Estados Unidos, em termos de esforço profissional. Eu posso estar enganado, porque não conheço bem aqui, mas para mim esse argumento não é válido. Além disso, há os exames para verificar se o estudante está aprendendo o que é necessário. Antonio: As áreas verdes estão distribuídas nos quatro anos? Prof. Thomas: Não, nos dois primeiros anos. E nós acabamos toda atividade formal até a uma hora da tarde. Exceto aquele dia em que o estudante vai para o consultório médico. Nos anos clínicos é um pouco mais difícil porque ele tem que acompanhar o paciente. Mas certamente não se pode dar aula o dia todo. Aliás, praticamente nos cursos clínicos não há aulas.

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DESAFIOS À EDUCAÇÃO MÉDICA CONTEMPORÂNEA...

Eliana: Estamos encerrando... Queremos agradecer muito esta oportunidade única de estarmos aqui aprendendo tanto com o senhor no começo de nosso congresso... Prof. Thomas: quem deve agradecer a oportunidade sou eu! Falei demais. Jornalista, em geral, não permite isso (risos).

No final do dia, reencontramos o professor Thomas, na avenida Dr. Arnaldo, a pé, despedindo-se do professor Fernando de Almeida, um dos docentes que estagiou com ele e realizou seu pós-doutorado na Cornell, alguns anos atrás. Agradecemos mais uma vez a brilhante palestra, a transparência ao nos mostrar todas as dificuldades e as contribuições de integrações tão ricas e lembramos a professora Denise Leite ao afirmar que “é pela crítica constante que se pode garantir o avanço do conhecimento.” Perguntamos ao professor Thomas se não quer que o levemos ao seu hotel e ele, como um típico paulistano, responde que quer ir a pé e caminhar um pouco por ali. Ficamos com uma sensação de coração apertado ao perceber que ali está caminhando um grande brasileiro, com tantas inserções distintas, contribuindo para a ciência e a educação médica do nosso mundo contemporâneo.

Referências MAACK, T. Casa de Arnaldo, circa 1964. Rev. USP, n.10, p.121-34, 1991. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/10/SUMARIO-10.html>. Acesso em: 6 nov. 2010. MELLO, L.M. Thomas Maack, médico e preso do Raul Soares. A Tribuna. Santos, 2 nov. 2003. Disponível em: <http://movebr.wikidot.com/maackt:navio-prisao#toc4>. Acesso em: 6 nov. 2010.

Recebido em 17/09/2010. Aprovado em 30/09/2010.

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PASSOS, I.C.F. Reforma psiquiátrica: as experiências francesa e italiana. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.

João Leite Ferreira Neto1

Fruto de uma pesquisa realizada há dez anos, agora publicada como livro, este importante trabalho conserva um frescor de atualidade. Afinal, o bemsucedido percurso da reforma psiquiátrica no Brasil mantém laços assumidos com a psiquiatria democrática italiana. Contudo, o estudo comparativo realizado pela autora indica que nossa identidade com a experiência italiana não é tão forte como supomos, e que nossa distância da experiência francesa não é tão grande como gostaríamos. Permitir um olhar sobre nossa reforma psiquiátrica a partir dessas experiências internacionais é uma das razões da importância dessa publicação em nosso País: apontar que não somos exatamente o que imaginamos ser. Contudo, podemos vir a ser, como experiência de reforma psiquiátrica, de outras maneiras ainda a se inventar, tal como preconiza o adágio de Rotelli: negar, desconstruir e inventar. Como não possuímos, em língua portuguesa, muitos estudos feitos, com tal detalhamento, das experiências europeias de reforma psiquiátrica, a leitura deste livro e sua disseminação mostra-se como algo importante. Escrito em linguagem clara e agradável, o livro combina pesquisa histórica, teórica e empírica, com base

em visitas técnicas ao setor francês e estágios voluntários em La Borde e em Trieste, feitos pela autora e analiticamente narrados com a tonalidade própria da etnografia. Exemplo acabado disso é o capítulo sobre La Borde - a meu ver o mais belo do livro -, intitulado com uma pergunta: “acolhimento da diferença ou prática extemporânea?” Nele a autora narra, em primeira pessoa: sua chegada à estação de trem em Cour-Cheverny, sua acolhida pelo automóvel da clínica, dirigido por um paciente-interno, as percepções afetivas produzidas por um ambiente onde há um clima de liberdade, suas conversas com internos e trabalhadores, a descrição das rotinas, dos processos de vida e de trabalho, com suas riquezas e paradoxos... e constroi uma análise histórico-teórica da defesa que essa clínica faz do asilo como “abrigo”, dentro da tradição da psicoterapia institucional. Mergulhada no clima de mistura e liberdade entre internos e não-internos, entre as variações de tarefas e funções envolvendo ambos, a cogestão coletiva da clínica e definição das atividades, a autora reconhece: “não é possível passar imune por La Borde”. Oury, proprietário da clínica, defende o ponto de vista de que ninguém trata de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Programa de Pósgraduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Av. Itaú, 525, Bairro Dom Cabral, Belo Horizonte, MG, Brasil. 30.535-012. jleite.bhe@terra.com.br

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LIVROS

ninguém e que o cuidado é sempre uma via de mão dupla. Não há técnico de referência, a psicoterapia é secundária e o eixo principal do tratamento é a própria convivência coletiva. Contudo, não deixa de avaliar que a experiência superestimada pelos estagiários, impressionados com a ausência de rigidez e normas, tem outras facetas que devem ser vistas. Como no comentário de um monitor: “Que liberdade? De ficar drogado? Aqui todo mundo vive entupido de remédio...”. Ou na não-participação dos médicos da vida comunitária da clínica. Ou, ainda, na permanência de pacientes crônicos com mais de quarenta anos de residência lá. E o mais complicado da experiência: a tradição da psicoterapia institucional na qual a clínica La Borde se insere, em sua defesa do bom asilo. A autora nos apresenta uma revisão histórica da Psicoterapia Institucional, desde Tosquelles, com seu objetivo de estabelecer uma “proteção do exterior” e criar “zonas de liberdade”; e indica os limites sociopolíticos dessa prática. Isso tudo leva-me, como leitor, a perguntar: como Guattari, que lá residiu e trabalhou até o fim de sua vida, grande conhecedor da experiência italiana, se contentou com uma prática transversalizada intramuros? A Psiquiatria de Setor Francesa foi experiência de planificação nacional e racionalização administrativa. Por conseguinte, não teve um caráter de ruptura ou contestação do manicômio. Ao contrário, era uma proposta de modernização dos hospitais psiquiátricos, chegando a estimular a abertura de novos hospitais (ainda que conseguisse certa diminuição das internações). Não havia uma politização da ação profissional, e nos dizeres de Castel (p.66), “os profissionais franceses eram alérgicos à contestação político-social”. Outra característica da psiquiatria francesa era a supervalorização da clínica em detrimento da dimensão política dessa prática. A influência da psicanálise lacaniana apenas fortaleceu esse viés, sem nunca assumir um embate contra as dimensões institucionais do poder psiquiátrico. Na medida em que a discussão técnica privilegiava o debate teórico-clínico, nada foi feito para conter o avanço da lógica de mercado e a privatização da prática psiquiátrica. Cabe ressaltar que, na época, a psiquiatria francesa era essencialmente pública, com pouco espaço para o exercício profissional privado. Somente com a implantação do Setor é que haverá um súbito crescimento da psiquiatria 968

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privada. Enfim, na medida em que o núcleo da Psiquiatria de Setor era a racionalidade administrativa, sua ação foi pouco criadora de alternativas à psiquiatria fármacoclínica tradicional. Na Itália também temos um contexto de supremacia da psiquiatria pública, ao contrário do Brasil, onde sempre tivemos um forte segmento psiquiátrico privado, e fortemente financiado pelo Estado. A Psiquiatria Democrática Italiana – PDI – sempre teve como foco o embate político. Seu foco era o combate ao manicômio e pela revisão do estatuto jurídico do doente mental, por entender que esses dois aspectos estão intimamente relacionados. Ao contrário da França e do Brasil, a reforma italiana surge de bases municipais, para depois produzir impactos no nível nacional. Após uma experiência abortada em Gorizia, Basaglia e sua equipe conduzem o experimento mais importante e conhecido de reforma psiquiátrica na cidade de Trieste. Foge ao escopo desta resenha detalhar esse processo, mas vale salientar dois aspectos. O primeiro é a organização do trabalho por meio de uma lógica que atenda às necessidades da população, e não por intermédio do critério administrativo da territorialização dos serviços que “não cumpre mais que uma função assistencialista, escondendo mal uma ideologia de controle” (Basaglia, p.144). A autonomia municipal italiana permitiu-lhes ter, como ponto de partida, experiências locais exitosas, ao contrário da França e do Brasil, que partem de um planejamento e organização nacional dos serviços, ainda que, em nosso caso, a gestão seja municipalizada. O segundo aspecto é o alto investimento em recursos humanos. Em 1995, havia duzentos e sessenta mil habitantes e 23 psiquiatras, cento e oitenta enfermeiros, nove assistentes sociais e nove psicólogos (em regime de horário integral), além de cinquenta operadores de uma cooperativa social que geriam residências e duas dezenas de voluntários (muitos funcionam como ATs). Na Itália, a desinstitucionalização se deu de modo cabal nas cidades mais ricas ao norte, e de forma precária nas cidades mais pobres no sul. Num comparativo local, o Distrito Centro-Sul do município de Belo Horizonte, considerado como um dos mais bem-sucedidos programas municipais de saúde mental do País, com população atual igual à de Trieste em 1995, possui seis psiquiatras e vinte técnicos superiores de saúde, além de contar com o apoio de um CAPS

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de outro Distrito anexo. Sem dúvida, desafortunadamente, nosso Sistema Único de Saúde é subfinanciado. Evidentemente, não significa que a reforma tenha seu norte principal no investimento financeiro. Em Milão, uma das mais abastadas cidades da Itália, a reforma é represada por razões profissionais, teóricas e ideológicas. Contudo, é inegável que o investimento público faz diferença na qualidade dos serviços oferecidos. A autora encerra seu livro resgatando o sempre presente impasse entre política e clínica. Nesse aspecto teria algumas ponderações a fazer sobre quanto ainda dependemos de um modelo de clínica psicanaliticamente inspirado e nos falta outra alternativa para problematizarmos as práticas clínicas, especialmente no âmbito de sua gestão coletiva, como é realizado em La Borde, por exemplo. Mas esta é uma conversa para outra ocasião.

Recebido em 30/05/10. Aprovado em 10/06/10. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.35, p.967-9, out./dez. 2010

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Construindo o currículo no cotidiano de um curso de graduação em medicina Building the undergraduate medicine course curriculum La construcción de una innovación curricular de un curso de pregrado en medicina

O curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba, a exemplo de outros cursos, estava empenhado em discussões para a alteração do seu projeto pedagógico desde a nomeação de uma comissão de reforma curricular, em 2001. Pouco tempo depois, em março de 2002, os Ministérios da Educação e da Saúde convidaram as escolas de medicina a responderem o edital para seleção dos melhores projetos de reforma curricular, iniciativa que deu origem ao Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (PROMED). A escolha final ocorreu no início de novembro de 2002, e vinte instituições de ensino superior foram selecionadas, entre elas a Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba. Em outubro de 2005, a proposta de reformulação do projeto pedagógico é apresentada aos alunos e professores da faculdade. Com a proposta concluída, começou a tramitação formal nas instâncias acadêmicas da universidade onde foi aprovada no final do ano de 2005. Em 2006, ela foi implementada para os alunos ingressantes naquele ano. O objetivo dessa pesquisa foi investigar o processo de formulação e implementação da nova proposta curricular para o curso de Medicina de Sorocaba. Ao decidir perscrutar o processo de inovação curricular, procurei apoiar-me em pesquisas que consideram que há possibilidade de conhecermos a escola a partir do seu cotidiano, e que, para isso, é necessário mergulhar na vida cotidiana considerando a relevância dos elementos que a constituem, acreditando que a possibilidade de ruptura com nossos saberes prévios, nossas certezas, nossos pré-conceitos a respeito da realidade poderá nos fazer compreender o currículo real, aquele que se constrói no cotidiano de cada uma das escolas de medicina. Investigar o processo de implementação do novo currículo da Faculdade de Medicina de Sorocaba demandou a escolha de uma abordagem de avaliação entendida, essencialmente, em sua função

formativa, cujo objetivo foi abrir espaço de diálogo e trocas. A opção metodológica pela pesquisa qualitativa nos permitiu analisar os significados que os indivíduos, sujeitos dessa pesquisa, deram às suas ações. Sendo assim, ela pode ser caracterizada como um estudo de caso do tipo etnográfico, que privilegiou, como técnicas para a coleta de dados: a observação participante, a entrevista e a utilização de fontes documentais. A análise do Discurso do Sujeito Coletivo foi o recurso metodológico escolhido para analisar os depoimentos coletados nas entrevistas. Também utilizei outras fontes de dados, como o diário de campo e fontes documentais, visando a um processo de triangulação. O produto de um processo de mudança curricular é tanto o currículo materializado em um plano, como a sua construção cotidiana e a aprendizagem permanente de alunos, professores, administradores, enfim, de todos os participantes, visando ao aperfeiçoamento contínuo da ação educativa. Produto que foi sendo tecido no cotidiano da faculdade, no enfrentamento das dificuldades e dos desafios que uma reformulação curricular desse porte ocasiona. Maria do Carmo Abib de Moraes Polimeno Tese (Doutorado), 2010 Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo mariado@uol.com.br

Palavras-chave: Educação médica. Inovação curricular. Avaliação. Keywords: Medical education. Curricular innovation. Assessment. Palabras clave: Educación médica. Innovación curricular. Evaluación.

Texto na íntegra disponível em: <http://www.sapientia.pucsp.br/>

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Mulheres, saúde e grupalidade: estudo do grupo de Convivência Reviver, Botucatu, SP Women, health and group: study of Reviver social group, Botucatu, SP Mujeres, salud y grupo: estudio de grupo de convivencia Reviver, Botucatu, SP As atividades grupais estão presentes em várias áreas do conhecimento e têm sido uma importante ferramenta na Atenção Primária à Saúde. Quando entendido como processo, o grupo pode representar a resistência aos modos individualizantes, pode atuar como um dispositivo capaz de construir modos de subjetividade singulares. O presente trabalho descreveu e analisou a experiência de um grupo de vivência de mulheres enquanto espaço de produção de desejos, desmistificando modos de ser e de viver. A investigação, de natureza qualitativa, foi conduzida com as integrantes do grupo de convivência Reviver, constituído por senhoras na faixa dos 50 anos ou mais. O grupo começou em 1999, tendo como público-alvo usuárias da área de saúde mental do Centro de Saúde Escola (CSE), da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (UNESP); e, como proposta, ser um espaço de promoção da saúde e de lazer. Inicialmente, eram encaminhadas pelo CSE, mas, com o fortalecimento do grupo, as próprias participantes começaram, também, a convidar amigas e familiares. As técnicas de coleta utilizadas foram: observação participante, entrevista com formuladores do grupo, e entrevistas baseadas nas histórias de vida de cinco mulheres. As histórias de vida foram transcritas e estudadas mediante análise temática de conteúdo. Os núcleos temáticos foram identificados segundo os diferentes ciclos da vida, tendo como mais relevantes: na infância e juventude (as dificuldades financeiras e a violência) e na vida de casada (“o lugar de mulher é dentro de casa”, laços sociais fragilizados, dificuldades financeiras, experiências de violência e a ajuda profissional). Reconheceram-se, ainda, os núcleos temáticos significativos relativos à vivência do grupo Reviver, quais sejam: as experiências que levaram ao grupo, “ser bem recebida”, “estar junto”, a solidariedade, o “lidar melhor com o sofrimento mental”, o “medo de ficar sem o grupo” e o 972

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“experimentar o novo”. As narrativas mostraram quanto o fato de ser mulher, em determinado contexto social, limitou-as em relação às suas escolhas pessoais. Essas mulheres ficaram isoladas no ambiente familiar, dedicando-se às tarefas domésticas ou ao trabalho até que os filhos estivessem crescidos. Entretanto, o que se pôde constatar, depois que começaram a frequentar o Reviver, foi uma transformação em suas vidas. Isso pode ter ocorrido porque o grupo operou como um dispositivo, produzindo novas possibilidades de experimentação. Ao fazer funcioná-las, o grupo rompeu com formas enrijecidas de ser e viver, de mulheres silenciadas e homogeneizadas. Elas encontraram um local onde puderam participar de atividades culturais e de lazer diversas (passeios, festa de carnaval, Dia das Mães etc.). Um espaço em que elas puderam desenvolver a criatividade, vivendo situações novas e desafiadoras: ser artista de teatro, dançar, publicar um livro, passear com amigas, resgatar a alegria e o prazer de viver com o outro. Não serem apenas expectadoras, mas, sim, subirem ao palco e serem protagonistas de suas próprias vidas. No grupo, elas experimentaram outros modos de subjetividade que contribuíram para desmanchar territórios cristalizados.

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Andrea Langbecker Dissertação (Mestrado), 2010. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. alangbecker@hotmail.com

Palavras-chave: Processo grupal. Grupo dispositivo. Histórias de vida. Saúde. Keywords: Group process. Group device. Stories of life. Health. Palabras clave: Grupo de procesos. Grupo de dispositivos. Historias de vida. Salud.




criação

Adriana Ferreira Sousa1 Andréa Zemp Santana do Nascimento2 Juliana Araújo Silva3 1 Arquiteta, MPA Pedreira de Freitas Arquitetos Associados. Rua Fiação da Saúde, 128, Bloco C1, apto. 38. Jardim da Saúde, São Paulo, SP, Brasil. 04.144-020. afsous16@yahoo.com.br 2 Pós-graduanda em Arte-educação, Universidade de Artes de Zurique. 3 Mestranda em Psicologia Clínica, Universidade Estadual Paulista, Unesp, campus de Assis.

Projeto financiado pelo Fundo de Cultura e Extensão Universitária da USP (FCEx), bolsas e recursos materiais, ago/2007 a abr/2008.

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TEREMOS UM TÍTULO? MOVIMENTO 0 -S0 (posição inicial)-

Andréa Zemp

O MST convidou a Faculdade de Arquitetura da USP a pensar/estruturar conjuntamente com os moradores do assentamento Dom Pedro Casaldáliga o Sistema de Espaços Livres, atividade que constitui disciplina optativa. Fez parte desse encontro a interação entre algumas arquitetas, ou quase, e as crianças do assentamento, para que estas também se envolvessem na ação de transformação de seus ambientes. Objetivos-prazos da disciplina e a escolha “do que interessava” nessa interação se distanciaram... e aumentaram a abrangência do plano e o prazo para sua realização.

ENCONTRAM-SE - Estudantes de Arquitetura, Pedagogia e Terapia Ocupacional da USP - Moradores, sobretudo as crianças e os membros do setor de Educação, de um assentamento do MST. Objetivo: Construir? Constituir? de forma conjunta um brinquedo-espaço, ou seja, uma estrutura espacial que abrigasse diversas possibilidades de apropriação, e que tivesse efeito potencial de intensificar relações sociais no espaço coletivo em geral, introduzindo o lúdico como um aspecto do cotidiano.

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“Movimento é a ação dos bailarinos quando usam o corpo para criar formas ordenadas; a energia fornece a força necessária para executar o movimento; ritmo é o padrão de tempo em torno do qual se realiza o movimento e a criação está relacionada com a forma visual apresentada pelo movimento do corpo do bailarino.” (http://www.edukbr.com.br/artemanhas/tiposdedanca.asp)

O projeto em debate com os adultos se estendia para uma escala mais ampla – os espaços de produção e moradia do assentamento todo – e se tornava abstrato demais para as crianças, temporal e espacialmente. Com as crianças, o que seria executado não se sabe quanto tempo depois, era vago e não permitia ligações entre este abstrato e o concreto, inibindo uma possível experiência de conquista de autonomia. Sem possibilidade técnica para intervir em tal plano, estas teriam sempre uma posição coadjuvante em sua elaboração, quase como uma presença supérflua, por conta das variáveis que afligiam os adultos. Era latente a tomada de poder pelo efêmero, pelo fazer, pelo aqui-agora no processo com as crianças. Era preciso criar um outro espaço-tempo em sintonia com elas. Esta forma de conduzir o processo – forçando uma relação entre os processos com adultos e crianças e colocando as últimas em uma falsa posição de protagonistas – estava sendo prejudicial politicamente para as crianças, e, de certa forma, traduzia-se em submissão delas aos adultos. Nesse momento, também, percebíamos já a tensão: como nos posicionarmos em pensamento e em ação com relação às formas de infância produzidas socialmente?

MOVIMENTO 1 A quase composição... Deixamo-nos levar por aqueles pequenos, para que nos mostrassem o espaço. Fazer “nada” como possibilidade de fazer muitas coisas… improvisar, escorregar, abrir caminhos… Corpos agindo x projeto no papel… imaterialidade do brinquedo e do espaço. Momentos livres, que foram a determinado tempo e por referências sociais entendidos como “caóticos” e “soltos”. Tateamentos iniciais. Todos juntos no mesmo espaço, de formas diferentes.

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Andréa Zemp

MOVIMENTO 2 A sede de “ordem” e “foco”, em resposta ao sentimento anterior de “caos”. Planejamento de atividades, com previsão de crescimento linear da interação com as crianças e de sua intervenção sobre seu espaço. Ritual fixo a cada dia, com controle de tempo e agrupamento de todas as crianças, a mesma atividade para todos (naquela igualdade homogeneizante), roda pra começar, roda pra fechar... Oops! Escorregando para o modelo escolar… andando em linha reta. Momentos gostosos? Sim! Mas...

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criação Helena Rios

Areia, terra, argila, água… objetos, bichos, frutas,máscaras, personagens surgindo de paredes coloridas e do fundo do rio… crianças sumindo na areia e ressurgindo em malabarismos e saltos… Helena Rios

Helena Rios

Helena Rios

Helena Rios

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Andréa Zemp

MOVIMENTO 3 Uma certa ruptura ao perceber as contradições do movimento anterior. Potencializou-se o diálogo criativo que já estava ali. Voltamos à exploração livre junto às crianças, mas agora pretendendo assumir a plenitude disto: parceiros descobrindo e criando brincadeiras, relações, espaços, conflitos e soluções, porque vivendo. Exploração de nossas próprias singularidades... cada um com seus conflitos, questões, ideias. De [animadoras/coordenadoras de atividades] + [crianças que seguiam nossas propostas] + [jovens e adultos do Setor de Educação], fomos passando a brincantes. E então, identificando afinidades e diferenças, mais e mais conexões entre pessoas e atividades se construíam, como desejos, e se desconstruíam, e tornavam a dar lugar a novas construções. Esparramamo-nos por mais espaços e diferentes tempos, mas uma certa sintonia permitia que compartilhássemos os diferentes experimentos. Contagiamo-nos e instigamo-nos uns aos outros; ou não - há que se ter resistências e dissonâncias. E tudo cabia.

MOVIMENTO 4 Meses depois... as vivências e brincadeiras começam a se repetir... E agora? Será que estamos nos colocando de menos? Vamos brincar só de esconde-esconde? Sempre? Entendíamos como latente nossa interferência com materiais e propostas, que aglutinasse as experiências vividas até ali, potencializando caminhos e também assumindo vontades nossas. Agora sim, e assim: tínhamos construída uma outra relação, com poderes revistos. Planejamentos rígidos tinham perdido qualquer sentido. Desta interferência, surgiria uma multiplicidade de experimentações com vários graus de efemeridade. Pneus rodando ladeira abaixo, cordas e mais cordas, tecidos, tubos de papel... Corda-bamba, cipó de Tarzan, balanços, túneis, crianças entubadas, escadas, tirolesa, redes, piruetas e cambalhotas, circo, cabanas, crianças perdidas na floresta, mamães e filhinhas, homens da floresta, casinhas de pano quase suportando uma chuva de granizo!!!!, tubos destruídos por outrem, noivas, modelos e bandidos, cordas roubadas do assentamento…

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Helena Rios

-”Não era assim que eu tinha imaginado não!”… - “ela poderia estar presa no chão”… - “ela poderia ser deitada!”… - “e se ela fosse uma escada para uma casinha lá em cima?” v.14, n.35, p.975-80, out./dez. 2010


Existia uma sinergia que foi se construindo entre nós aos poucos para a materialização de um marco físico de nossas vivências. Esta sinergia se potencializou num passeio que fizemos juntos ao SESC Itaquera, onde encontramos consolidadas algumas idéias esboçadas no imaginário, ainda sem forma, e outras que já tínhamos começado a materializar no assentamento. Uma casinha na árvore, com escadinhas, uma rede horizontal, pneus e outros elementos começavam a procurar lugar para instalação no nosso habitat comum. Uma plantação de bambu existia próximo ao assentamento. Unindose a tudo isso a versatilidade deste material e relativa facilidade de sua manipulação, tomou força no grupo a realização de uma oficina para todos do assentamento, que fosse uma ferramenta para futuras construções, lúdicas ou não. Agenciamos o arquiteto que poderia ensinar técnicas e organizamos o dia juntamente com o assentamento. Fez-se assim uma finalização neste processo, que poderia ter desdobramentos imprevisíveis.

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criação

Andréa Zemp

MOVIMENTOS QUE FICARAM POR VIR


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