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editorial No mês de agosto, quando comemoramos 12 anos do lançamento de nosso primeiro fascículo, em 1997, nossos leitores passaram a contar com mais uma novidade: o acesso livre ao conteúdo integral de toda a coleção de Interface – Comunicação, Saúde, Educação, na Biblioteca SciELO Brasil. Para tanto, contamos com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo – Fapesp, bem como do Programa de apoio a periódicos científicos da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Estadual Paulista – Unesp. É, também, positivo para nossos autores, pois seus artigos terão seu acesso ampliado, dada a relevância que a Biblioteca SciELO tem alcançado internacionalmente como uma das mais importantes bases de acesso livre a documentos científicos. Os editores científicos brasileiros e ibero-americanos que integram as diferentes bibliotecas SciELO sabem do impacto positivo que a entrada nesta base produz em nossos periódicos, seja pelo incremento das submissões, seja pela ampliação das citações dos artigos em outros periódicos. Neste fascículo de Interface dois artigos, com enfoques distintos, tomam a mídia impressa como campo de análise. Oliveira et al. avaliam a qualidade científica de revistas semanais brasileiras de atualidades ao tratarem da saúde da mulher; Campos, Vieira e Mota, por sua vez, discutem a noticiabilidade jornalística do crime de exploração sexual de crianças e adolescentes. Terapêuticas convencionais e não-convencionais no tratamento do câncer são discutidas no trabalho de Spadacio e Barros, que enfocam questões relacionadas à educação popular em saúde e sua importância no tratamento oncológico. Pitiá e Furegato apresentam, na forma de revisão, uma reflexão sobre o acompanhamento terapêutico na saúde mental como forma de consolidação de uma rede de atenção que considere o sujeito e seu contexto social. Nesta mesma interface, a saúde do trabalhador é abordada a partir da reflexão sobre a experiência de adoecimento narrada por trabalhadores com LER/DORT, no texto de Neves e Nunes. Na seção Espaço Aberto, Moreira, Silva e Martins discutem o uso de drogas por adolescentes, a necessidade de implementação de políticas públicas de saúde, com desdobramentos na assistência. A educação continuada também é enfocada por Peduzzi et al., analisando a prática de atividades educativas de trabalhadores da saúde, e por Nicoletto et al., que apresentam a dinâmica do processo de vivência dos atores sociais em Polos de Educação Permanente em Saúde. O olhar minucioso, profundo e reflexivo sobre práticas de cuidado, presente neste fascículo, marca o encontro entre profissionais, usuários dos sistemas de saúde, docentes e discentes para implementar processos de mudança. A educação permanente mostra toda sua potência, como prática transformadora e ferramenta efetiva para a transformação dos profissionais na atenção primária, inovação de práticas e fortalecimento do SUS. Esperamos que todas as interfaces apresentadas contribuam para mudanças significativas nas formas de comunicação, saúde e educação. Vera Lúcia Garcia Editora assistente

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editorial In the month of August, when we celebrated the 12th anniversary of the publication of our first issue, in 1997, one more novelty was provided for our readers: free access to the integral content of the entire collection of issues of Interface: Comunicação, Saúde, Educação in the SciELO Brasil (Brazilian Scientific Electronic Library Online). To achieve this, we had the support of Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp - the State of São Paulo’s Research Foundation), as well as the aid of the program that supports scientific journals of the Pro-Rectorate of Research of Universidade Estadual Paulista – Unesp. This is also positive to our authors, as the access to their papers will be expanded, in view of the relevance that the SciELO has reached internationally as one of the most important databases that grants free access to scientific documents. The Brazilian and Iberian-American scientific editors who are part of the different SciELO Libraries know about the positive impact that being included in this database produces on our journals, due to the increase in the number of submitted papers and in the number of papers’ quotations by other journals. In the present issue of Interface, two papers with different focuses concentrate on printed media as their field of analysis. Oliveira et al. evaluate the scientific quality of Brazilian weekly news magazines when they deal with women’s health, and Campos, Vieira and Mota discuss the journalistic “reportability” of the crime of sexual exploitation of children and adolescents. Conventional and unconventional therapies in the treatment of cancer are discussed by Spadacio and Barros, who focused on questions related to popular health education and its importance to oncologic treatment. Pitiá and Furegato present, in the form of a review, a reflection on therapeutic follow up in mental health as way of consolidating a care network that takes the subject and his/her social context into account. In this same interface, workers’ health is approached from a reflection on the experience of becoming ill narrated by workers suffering from RSI (Repetitive Strain Injury), in the text by Neves and Nunes. In the Open Space section, Moreira, Silva and Martins discuss drug abuse by adolescents, and the need to implement public health policies, with consequences for assistance. Continuing education is also focused by Peduzzi et al., who analyze health workers’ practice of educational activities, and by Nicoletto et al., who present the dynamics of the experience process of social actors at Centers for Permanent Health Education. The detailed, deep and reflective look over care practices that is present in this issue marks the encounter between professionals, health system users, teachers and students with the aim of implementing processes of change. Permanent education shows all its power as a transforming practice and effective tool for the transformation of primary care professionals, innovation of practices and strengthening of SUS (Sistema Único de Saúde - Brazilian National Health System). We hope that all the interfaces presented here contribute to promote significant changes in the forms of communication, health and education. Vera Lúcia Garcia assistant editor

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artigos

Saúde da mulher na imprensa brasileira: análise da qualidade científica nas revistas semanais

Mariella Silva de Oliveira1 Lucia Helena Costa Paiva2 José Vilton Costa3 Aarão Mendes Pinto-Neto4

OLIVEIRA, M.S. et al. Women’s health in the Brazilian press: analysis of scientific quality in weekly magazines. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.7-16, jul./set. 2009.

This cross-sectional study evaluated the scientific quality of informative texts on women’s health in nationally circulating magazines and described the topics covered. Over a consecutive 12-month period, texts on women’s health were collected from the principal Brazilian weekly current affairs magazines (Veja, Época and IstoÉ). Eighty texts were selected and were independently analyzed by two physicians and two journalists, by means of the Index of Scientific Quality, which had been adapted for use in Portuguese and subjected to pilot testing and retesting. The instrument consisted of eight items that ranged from one to five points and measured applicability, opinion versus fact, validity, scope, precision, coherence, consequence and an overall item. The overall item summarized the other items and its median was used for evaluations. The median scientific quality of the texts, relating to the overall item, was three. This demonstrated that the material published was of moderate nature.

Este estudo, de corte transversal, avalia a qualidade científica de textos informativos sobre saúde da mulher em revistas de circulação nacional e descreve os temas abordados. Durante 12 meses consecutivos, foram coletados textos sobre saúde da mulher nas principais revistas semanais brasileiras de atualidades: Veja, Época e Isto É. Foram selecionados oitenta textos, analisados de forma independente por dois médicos e dois jornalistas, por meio do questionário Index Of Scientific Quality, adaptado para o português e submetido a prova-piloto e reteste. O instrumento possui oito itens que variam de um a cinco pontos e medem: a aplicabilidade, opinião versus fato, validade, alcance, precisão, coerência, consequência e um item global, que resume os outros itens e cuja mediana foi considerada para avaliação. A mediana da qualidade científica dos textos referente ao item global foi igual a três, demonstrando caráter moderado em relação às matérias publicadas.

Keywords: Women’s health. Scientific journalism. Periodicals. Mass communication media. Scientific and technical publications.

Palavras-chave: Saúde da mulher. Jornalismo científico. Publicações periódicas. Meios de comunicação de massa. Publicações científicas e técnicas.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Política Nacional de Humanização, Ministério da Saúde. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Departamento de Tocoginecologia. Rua Alexandre Fleming, 101 - Barão Geraldo Cidade Universitária 13083-970 Campinas, SP - Brasil mariellajornalista@ gmail.com 2 Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 3 Departamento de Tocoginecologia, Unicamp. 4 Departamento de Tocoginecologia, Unicamp.

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Saúde da mulher na imprensa brasileira:...

Introdução A imprensa tem um papel fundamental na transmissão de informações em saúde uma vez que ela aproxima o discurso científico e o faz mais acessível e interessante, além de ser a principal fonte de informações de ciência e tecnologia (incluindo aí as informações de saúde) da população (Radfort, 1997). Estudo com 12 jornais de nove países da América Latina e Caribe (entre eles, o Brasil) encontrou que medicina e saúde são temas predominantes na maioria das colunas de ciência e tecnologia (Massarani, Boys, 2007). Pesquisa nacional mostra que mais de 80% de 162 entrevistados acreditam que o cuidado com a saúde é a principal justificativa para que a população participe nas questões da ciência, sendo que 71% se consideram pouco informados (Vogt, Polino, 2003). A mídia pode inclusive afetar a direção da pesquisa e desenvolvimento do país (Nelkin, 1995), pois os governantes se inteiram muito mais dos avanços em saúde por meio da imprensa que dos veículos especializados. A população também se interessa pelo tema, pois estudo qualitativo sobre a percepção pública da ciência e tecnologia, realizada com 2.004 pessoas no fim de 2006, mostrou que: 60% dos brasileiros entrevistados têm muito interesse por medicina e saúde; 40% se informam muito sobre esses temas, e, para 56%, os principais benefícios dos avanços científicos estão na saúde e proteção contra doenças, sendo que os jornalistas (42%) e médicos (43%) foram apontados como confiáveis para informá-los (Brasil, 2007). Informação de qualidade nessa área é, então, fundamental para melhor qualidade de vida, em forma individual ou coletiva (Coe, 1998). Porém isso nem sempre acontece. Há limitações a serem consideradas, como o fato de a imprensa nem sempre recorrer a especialistas nacionais, preferindo fontes internacionais para legitimação do assunto saúde (Barata, 1990), ou cobrir somente a epidemia em si, em detrimento da prevenção (França, Abreu, Siqueira, 2004). A cobertura na área de medicamentos, por exemplo, é considerada automaticamente como notícia, sem necessidade de se demonstrar sua importância, pois faz parte da agenda social. Porém, a propaganda comercial que muitas vezes está por trás dos textos jornalísticos pagos pela indústria farmacêutica, contribui para que parte da população acabe se automedicando sem necessidade. Além disso, há um descompasso entre o que é publicado na mídia e o perfil epidemiológico do consumo de psicotrópicos no país (Noto et al., 2003). De acordo com Lefévre (1999), a imprensa prepara o leitor para a “consumização da saúde”; que é preocupante, pois as pessoas têm direito a receber informações sobre saúde objetivas, verdadeiras, válidas e contextualizadas de tal modo que possam ser compreendidas (Calvo Hernando, 1997). O alcance de uma descoberta, a precisão dos dados, a coerência e consequência das informações para cada segmento da população deveriam, portanto, constar nos textos jornalísticos sobre saúde.

Saúde da mulher e mídia No que se refere à saúde da mulher, foram encontrados poucos estudos nacionais relacionando o tema aos meios de comunicação, ao contrário da literatura internacional. Nos Estados Unidos, por exemplo, estudo com dez anos de revistas femininas descobriu que a maior parte delas focava o tema saúde em dieta, exercícios e nutrição, em detrimento de outros temas relevantes (Weston, Ruggiero, 1986). A cobertura nesse país nem sempre coincide com os temas das principais revistas médicas nem com a epidemiologia ou as preocupações femininas (Moyer, Vishnu, Sonnad, 2001). Quando a análise centra-se em temas específicos em saúde da mulher, o resultado mostra também disparidades entre o que é publicado e a realidade. Millers (1996) observou o tema aborto na imprensa e concluiu que, de 1986 a 1992, os meios de comunicação deixaram de lado o aspecto sanitário em saúde da mulher para focarem-se na legalidade do tema. Outro assunto analisado, a histerectomia, foi apresentado pelos meios de comunicação de forma ingênua, com linguagem entusiasta, sem destaque aos riscos e efeitos colaterais. Em análise de jornais e revistas de 1986 a 1992, foi relatado que há desequilíbrio entre benefícios e riscos desse procedimento de retirada do útero (Sefcovic,1996). O mesmo aconteceu com o tema relacionado às tecnologias reprodutivas, pois a imprensa americana, no período, deixou 8

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OLIVEIRA, M.S. et al.

artigos

os leitores pouco informados sobre procedimentos mais baratos e menos invasivos que a fertilização in vitro, sem trazer muita informação sobre riscos, além de mascarar o alto custo do processo (Condit, 1996). Outros temas como menstruação e menopausa tiveram relevante cobertura na mídia americana no início dos anos 90, porém, a imprensa retratou o ciclo menstrual mais como um problema a ser tratado com medicamentos do que como um evento natural, apegando-se mais às más noticias (Kalbfleish, Bonnell, Harris, 1996). Na Europa, uma análise sobre gênero e saúde, com amostra dos principais jornais espanhóis entre 1997 e 2001, também traz a saúde da mulher bastante relacionada a temas como sexualidade, beleza, estética e fitness, e pouco debate de outros temas (Revuelta et al., 2003). Apesar de as mulheres viverem mais que os homens em todo o mundo, elas sofrem mais enfermidades e utilizam a maioria dos serviços médicos com maior frequência (Kramarae, Spender, 2006; Travassos et al., 2002; Aquino, Menezes, Acoedo, 1992). No Brasil, correspondem a mais da metade da nação (50,78%) (Brasil, 2000a) e sua expectativa de vida – que, na primeira década do século passado, era de 34,6 anos (Barroso, 1985) –, atualmente, chega a 75,93 anos (Brasil, 2006a). A população masculina no Brasil, por sua vez, tem longevidade de 68,35 anos (Brasil, 2006b). Com sua crescente entrada no mercado de trabalho, as mulheres correspondem hoje a 43,10% da população economicamente ativa (Brasil, 2006b) e demandam grande quantidade de informações sobre sua saúde, devido a sua exposição a fatores de risco antigamente restritos aos homens, atividade sexual precoce e livre, e novo estilo de vida (Brasil, 2000b). Mesmo diante desse quadro, os meios de comunicação nacionais nem sempre trazem as informações necessárias sobre a saúde da mulher. Em 1997, em 28 dias de acompanhamento de seis veículos impressos brasileiros (quatro jornais e duas revistas), foram coletados 433 textos sobre saúde e constatou-se que a mídia destina, em média, 8% do espaço para a saúde da mulher (Simões, 2000). Outro estudo analisou, em quatro meses, o conteúdo sobre saúde da mulher de três revistas femininas publicadas no ano 2000, encontrando 188 textos sobre o tema; e revelou que até mesmo em veículos específicos para as mulheres, permanecem lacunas na epidemiologia, enquanto textos sobre beleza, consumo e com pautas superficiais têm considerável espaço (Brito, 2001). Há períodos em que o tema não é sequer abordado por um dos principais jornais brasileiros, a Folha de São Paulo (Mendonza, Santos, 2001). Se a imprensa nem sempre cumpre seu papel de promoção da saúde, é preciso avaliar os textos produzidos, pois com eficiente divulgação de saúde, é possível melhorar a qualidade de vida das mulheres e evitar que muitas sigam vivendo com sua saúde debilitada, além de diminuir os gastos do governo com ações curativas e alertar aos governantes e a comunidade científica sobre os temas que merecem espaço na agenda pública. Nesse sentido, este trabalho analisa a qualidade científica das informações veiculadas durante 12 meses consecutivos nas três principais revistas semanais de circulação nacional - Veja, Época e IstoÉ. Não se tem conhecimento de estudos com essa abordagem no país, e a validade da pesquisa se reafirma ainda quando é sabido que 57% do público leitor de revistas são constituídos por mulheres (Grupo de Mídia, 2007).

Material e métodos O presente estudo foi de corte transversal. A amostra se compõe de textos sobre saúde apresentados em três revistas semanais de alcance nacional publicadas entre agosto de 2005 e julho de 2006, coletados em duas bibliotecas públicas e fotocopiados. Ao todo, as revistas Veja, Época e IstoÉ alcançam tiragem total de mais de 1,8 milhões de exemplares (Grupo de Mídia, 2007). A escolha por este veículo se justifica pelo fato de que a revista traz o texto contextualizado, descompromissado com o factual e analisa as consequências do fato, devendo ser rica em detalhes e informações diferenciadas (Lustosa, 1996), além de ser veículo que mais espaço dedica a textos de saúde (16%) (Epstein, 1998). A revista Veja é a maior revista semanal de atualidades, a mais lida no país e a quarta mais vendida no mundo, e sua tiragem obteve no ano de 2006 a média de um 1,1 milhão de exemplares por edição. O perfil do leitor desta publicação da Editora Abril é feminino em sua maioria (53%), grande parte tem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Saúde da mulher na imprensa brasileira:...

entre 20 e 39 anos (45 %) e 73% pertencem às classes A e B (Editora Abril, 2007). Editada pelas organizações Globo, a revista Época também possui maioria de mulheres no seu público leitor (51%), 43% têm entre 18 e 34 anos, e a maioria com nível de instrução médio (40%). Seus leitores classe A e B correspondem a 62% e sua tiragem semanal gira em torno dos 433,6 mil exemplares (Editora Globo, 2006). A revista IstoÉ, da Editora Três, possui tiragem de 351,2 mil exemplares por edição e 53% dos leitores são homens; 67% são da classe AB e 39% têm entre 30 e 49 anos (Oliveira, 2007). Para garantir a homogeneidade da amostra, textos publicitários, opinativos e notas foram excluídos, juntamente com os que tratavam do simples relato do estado de saúde de celebridades sem ampliar a questão para a população, bem como os que continham palavras e expressões do campo semântico “saúde” (por exemplo, dor, cura), mas relatavam fatos de outra natureza. As notas têm como característica a superficialidade da informação, e o gênero opinativo, por sua vez, é uma forma de apresentação dos acontecimentos de acordo com a posição ideológica do veículo ou jornalista - nesse tipo de texto é explícita a opinião do autor que, com um fundo persuasivo, busca convencer o leitor sobre sua posição em relação ao fato (Mesa, 2004). A coleta dos dados foi feita pela pesquisadora principal e o instrumento utilizado foi o questionário Index of Scientific Quality, adaptado para a língua portuguesa e criado para estudos descritivos sobre a saúde nas reportagens (Oxman et al., 1993). Ele é composto por oito itens em formato Escala de Likert, que vão de um (baixa qualidade) a cinco (alta qualidade), e está validado para o espanhol (Biondo, Khoury, 2005). Seus itens medem as seguintes características: aplicabilidade (mede o grau de clareza do texto em relação a seu público-alvo), opinião versus fato (analisa a distinção clara de opiniões e informações), validade (mede o nível de evidência e credibilidade das fontes utilizadas no texto), alcance (se o texto explicita o impacto da descoberta), precisão (se há bom fundamento em relação a estimativas e probabilidade); coerência dos dados (se há referência a outros estudos), consequência (se apresenta os benefícios, riscos e custos em relação ao tema principal do texto), e um item global que, baseado nas pontuações anteriores, dá uma avaliação geral do texto como sendo de boa, moderada ou baixa qualidade científica. O questionário foi aplicado por dois médicos pesquisadores atuantes em saúde da mulher e dois jornalistas com experiência na área de saúde da mulher, em tabelas individuais, sem consulta entre os avaliadores. Foram selecionados quatro avaliadores para diminuir o grau de subjetividade que um observador apenas traria à pesquisa. Para a análise estatística, foi criado um banco de dados no Excel com as respostas de cada avaliador e, após a verificação da consistência dos dados e limpeza do arquivo, eles foram transportados para o software SAS versão 9.1.3 (SAS Institute Inc., Cary, USA) onde foi calculada a mediana de cada item. Para a avaliação da qualidade, somente a mediana do item global do questionário foi considerada. O artigo original do questionário não traz um score, mas indica que o item global assume esse papel, por ser um resumo dos outros itens (Oxman et al., 1993).

Resultados e discussão O objetivo do estudo foi analisar a qualidade científica em saúde da mulher nas revistas semanais brasileiras de generalidades. A amostra foi composta por oitenta textos, sendo que a revista Veja trouxe 37 unidades, Época apresentou 26 e IstoÉ, 17. A mediana dos itens da qualidade científica total do conjunto dos avaliadores dos textos variou de dois a quatro em sete itens do questionário (Tabela 1). A análise centrada no conjunto dos avaliadores, sem considerar as medianas individuais, possibilita que se minimize a subjetividade do estudo, dando uma avaliação a partir de quatro observadores independentes. A mediana total do item global dos quatro avaliadores foi três, com pequena porcentagem tanto de mínima como máxima pontuação (7,2 e 11,6%, respectivamente), o que denota qualidade científica moderada aos textos da amostra. No estudo de validação do instrumento para o idioma espanhol, as medianas foram calculadas entre dois avaliadores, e os valores obtidos foram mais baixos (um e dois) (Biondo, Khoury, 2005). 10

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OLIVEIRA, M.S. et al.

Item

Aplicabilidade

Avaliador 1

Avaliador 2

Mediana

% teto

% piso

4 (1 - 5)

31,3

2,5

Avaliador 3

Mediana

% teto

% piso

5 (1 - 5)

83,8

Avaliador 4

Mediana

% teto

% piso

3,8

3 (1 - 5)

2,5

3,8

artigos

Tabela 1. Qualidade científica dos textos sobre saúde da mulher (n=80). Total

Mediana

% teto

% piso

4 (2 - 5)

47,5

.

Mediana

% teto

% piso

4 (1 - 5)

41,3

2,5

Opinião X fato

2 (1 - 5)

2,5

22,5

3 (1 - 5)

32,5

10

3 (1 - 5)

5

6,3

4 (2 - 5)

7,5

.

3 (1 - 5)

11,9

9,7

Validade

2 (1 - 5)

1,3

38,8

1 (1 - 5)

5

63,8

2 (1 - 5)

1,3

15

3 (2 - 5)

6,3

.

3 (1 - 5)

3,4

29,4

Alcance

2 (1 - 5)

2,5

35

3 (1 - 5)

28,8

12,5

3 (1 - 5)

5

18,8

3 (2 - 5)

6,3

.

3 (1 - 5)

10,6 16,6

Precisão

2 (1 - 5)

2,5

37,5

1 (1 - 5)

1,3

67,5

2 (1 - 5)

3,8

45

3 (2 - 5)

7,5

.

2 (1 - 5)

3,8

Coerência

2 (1 - 4)

.

43,8

1 (1 - 5)

7,5

70

2 (1 - 5)

3,8

40

3 (1 - 5)

3,8

1,3

2 (1 - 5)

3,8

38,8

Consequência

2 (1 - 4)

.

35

4 (1 - 5)

30

6,3

2 (1 - 5)

3,8

16,3

3 (1 - 5)

5

1,3

3 (1 - 5)

9,7

14,7

Global

3 (1 - 5)

7,5

27,5

3 (1 - 5)

5

6,3

3 (1 - 5)

5

11,3

3,5 (1 - 5)

11,3

1,3

3 (1 - 5)

7,2

11,6

37,5

O item que maior pontuação obteve foi o referente à aplicabilidade, com mediana quatro, e demonstra que os textos mostram com clareza a que público se destinam, de acordo com os avaliadores. Os itens precisão e coerência (cinco e seis, respectivamente) tiveram as menores pontuações, com mediana de valor baixo, igual a dois. De fato, detalhes como a significância estatística dos dados e o tamanho da amostra, ou o fato de serem ainda estudos experimentais, não impedem que a mídia divulgue os eventos, pois o que importa é a novidade, mesmo que se tenha testado em poucos pacientes, ou seja, por exemplo, ainda estudo em andamento apresentado em congressos. O que é preocupante, pois pode alarmar a população sem necessidade (Woloshin, Schwartz, 2006). Em relação à coerência, também se percebe que boa parte dos textos se concentra em só um estudo, sem que o jornalista se preocupe em avaliar estudos anteriores sobre o mesmo tema ou, mesmo, discutir o estudo. Essa baixa mediana pode ser justificável pela própria autoridade do discurso científico, que faz com que o jornalista acredite e aceite o que o pesquisador afirma, sem buscar outras fontes ou o contraditório (Fog, 2002). O que é um tanto errôneo, uma vez que o jornalista pode se posicionar de forma crítica perante a área médica (Kuscinski, 2000). O item dois, referente à distinção entre os fatos e opiniões obteve mediana três e pode indicar que, na amostra, os textos apresentam certa ambiguidade na apresentação das informações. Uma vez que as opiniões devem somente reforçar uma informação (Barros, 2003), este resultado não era esperado, sobretudo porque os textos do gênero opinativo foram excluídos da análise. Essa ambiguidade também pode ser devida à necessidade de supressão de informações e dados importantes, em função do pouco espaço editorial. Os jornalistas se centram mais nas conclusões das pesquisas e aplicação dos resultados no cotidiano das pessoas, e não nas observações que geraram hipóteses ou na metodologia da pesquisa (Gomes, 2003) – ponto central de avaliação do item três do questionário, que talvez, por isso, obteve menor percentagem de textos com pontuação máxima (3.4%), de onde pode-se inferir certa dificuldade dos produtores da notícia em avaliar a validade dos estudos. Porém mesmo que ele não cite os métodos, o fato de avaliar criticamente a pauta e, por si só, definir se ela merece espaço no jornal já faria com que sejam veiculadas evidências socialmente relevantes. O item referente ao alcance complementa o anterior, e sua mediana com valor três indica que o leitor pode estar recebendo informações de forma ambígua ou incompleta. Considera-se fundamental que o jornalista verifique não só a metodologia utilizada, mas também explicite a origem dos recursos da pesquisa, para detectar conflitos de interesse e vínculos empresariais, além de contextualizar o estágio da descoberta em outros países, por exemplo, bem como consultar outras fontes sobre o mesmo tema que podem auxiliar no entendimento da pesquisa por parte do público leitor (Caldas, 2003). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Saúde da mulher na imprensa brasileira:...

A precisão dos dados e coerência das evidências (item cinco e seis, respectivamente), ambos com mediana dois, pode estar revelando certa dificuldade do jornalista em expressar em seu texto tanto a significância estatística como as comparações do tema com outras pesquisas e estudos na mesma área. O que é verdade para o pesquisador é relacionado ao grau de certeza que ele tem em relação àquela informação, mas esse conceito pode ter interpretações diferentes quando se ouve, por exemplo, um “outro lado” da ciência, sob a voz de outros estudiosos da área (Monteiro, 2003). No que se refere às consequências da informação, o resultado do item sete, com mediana três, oferece a possibilidade de se inferir que nem todas as consequências importantes são reveladas. Porém os dados que são pontos-chave deste item do questionário (benefícios, riscos e custos) são essenciais para que a população tome atitudes em saúde de forma consciente e não alienada. Cabe ressaltar que, apesar de muitas vezes ser ofuscada pelo entretenimento e propaganda nos meios de comunicação, a informação em saúde tem um valor político, pois o jornalismo tem um ethos, que se baseia no dever de informar, levantar polêmicas, garantir a vigilância da cidadania e da justiça que o cidadão comum não consegue exercer diretamente (Kuscinski, 2000).

Saúde da mulher e a mídia brasileira No que se refere aos conteúdos, a maioria dos textos teve como foco a saúde reprodutiva (22.5%). Outros temas em saúde da mulher observados na amostra foram: beleza e estética (13,75%); temas de saúde geral, cuja prevalência é maior em mulheres1 (13,75%); sexualidade (11.25%); prevenção, riscos e cuidados (11.25%); políticas e direito à saúde (8.75%); menopausa (8.75%); violência (6.25%), e saúde mental (3.75%) (Oliveira, 2008). O próprio foco das pesquisas nessa área poderia ser uma das explicações para o maior número de textos relacionados à saúde reprodutiva, já que os periódicos científicos em saúde da mulher trazem predomínio de temas como concepção, gravidez e parto (Gannon, Stevens, Stecker, 1997). E uma vez que esse tema é uma das principais causas de internação no país (Brasil, 2006c), é de se esperar que a imprensa lhe dedique mais atenção, assim como acontece na imprensa internacional. Nos Estados Unidos, uma análise de conteúdo envolvendo revistas femininas na década de 1970 levantou 157 exemplares entre revistas tradicionais e novas da época, obtendo que 30,2% dos textos das publicações novas faziam referência à saúde reprodutiva, que ocupava 11,9% das publicações tradicionais (Weston, Ruggiero, 1986). Na amostra deste estudo, a saúde da mulher também teve enfoque em saúde reprodutiva e pouco espaço para temas também relevantes, como a menopausa. Em outros estudos, o tema menopausa também ocupou pouco espaço (Amaral, 2005). Apesar de ser um processo natural, o climatério é um período onde a mulher precisa repensar vários temas que afetam a sua saúde, como: saúde do coração, força dos ossos, dieta, quantidade de exercícios, sono e, inclusive, a qualidade dos relacionamentos. Atualmente, as mulheres passam um terço da vida após a menopausa e demandam informações referentes aos cuidados com as mudanças no organismo feminino (Wingert, Kantrowitz, 2006). Nota-se que as revistas de generalidades no período analisado pouco difundiram esse tipo de informações. Em contrapartida, o assunto estética ocupa o segundo lugar do ranking, o que pode se dever ao fato de que a imagem da mulher na nossa cultura e sociedade se coloca ao lado de beleza, saúde e juventude. A estética está 12

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Os temas de saúde em geral abordados foram: a infertilidade feminina como doença psicossomática mais comum; uso de remédios para emagrecer; aumento das doenças de tireóide; distúrbios alimentares; compulsão por compras; hipertensão pulmonar; problemas com a libido na velhice; maior procura por estética dental; maior tendência a sentir dor, e maior autonomia delas na velhice.

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vinculada à sociabilidade e regula boa parte de contextos e formas sociais. Para as mulheres, a beleza é um dever cultural e, atualmente, o discurso é que ela pode ser bela se quiser, basta se esforçar (comprar, consumir, imitar, malhar e até se mutilar), reproduzindo a beleza como uma questão de escolha e vontade (Novaes e Vilhena, 2003). Claro que muitas mulheres não sofrem a influência desse discurso, porém, ele pode explicar a grande quantidade de referências ao tema, afinal, as revistas trazem as notícias como produtos e ofertam temas que são vendáveis - como partem de empresas de comunicação, todas as publicações objetivam também o lucro. Na amostra analisada, percebe-se ainda que o pouco espaço para políticas e direito à saúde pode significar um distanciamento em relação a esse papel atribuído ao jornalismo na construção da democracia, já que cabe ao jornalista o papel de socializar as discussões como um dos principais instrumentos de conquista dos direitos de cidadania.

Considerações finais A mídia não deve se limitar a ser somente ferramenta para lazer, mas ser também porta-voz para reivindicar a preocupação social pelos temas de saúde. Uma vez que os itens do questionário são detalhistas em relação a informações para se mensurar a qualidade científica, o resultado com a amostra brasileira mostra uma qualidade científica moderada e a necessidade de se melhorarem ainda mais os textos sobre saúde na imprensa brasileira. Consideramos que uma qualidade científica moderada foi um resultado, até certo ponto, esperado, pois em nosso meio são poucos os profissionais com desenvoltura e formação específica na área. Como em outros países, a saúde reprodutiva ocupou a maior parte do noticiário, seguida de temas relacionados à beleza, em detrimento de outros temas relevantes da saúde feminina, como, por exemplo, a menopausa. Finalmente, ressaltamos a originalidade do método para os estudos em comunicação, uma vez que o Index of Scientific Quality já é utilizado em outros países e pode ser aliado às metodologias já consolidadas no Brasil, como a análise de conteúdo e discurso. O questionário pode ser solicitado aos pesquisadores principais, por e-mail.

Colaboradores A autora Mariella Silva de Oliveira participou da concepção do tema, planejamento da pesquisa, coleta, análise dos dados, revisão e redação do artigo; Lucia Helena Costa Paiva participou da revisão metodológica; José Vilton Costa realizou os testes estatísticos, e Aarão Mendes Pinto-Neto participou da concepção do tema, planejamento da pesquisa, análise dos dados e revisão.

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OLIVEIRA, M.S. et al. Salud de la mujer en la prensa brasileña: análisis de calidad científica en las revistas semanales. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.30, p.716, jul./set. 2009. Este estudio, de corte transversal, evalúa la calidad científica de textos informativos sobre salud de la mujer en revistas de circulación nacional y describe los temas planteados. Durante 12 meses consecutivos se colectaron textos sobre salud de la mujer en las principales revistas semanales brasileñas de actualidades: Veja, Epoca e Isto é. Se han seleccionado 80 textos analizados de forma independiente por dos médicos y dos periodistas por medio del cuestionario Index of Scientific Quality adaptado al portugués y sometido a prueba piloto y nuevo test. El instrumento consta de ocho items que varían de uno a cinco puntos y miden la aplicación, opinión en relación al hecho, validad, alcance, precisión, coherencia, consecuencia y un item global que resume los otros items y cuya mediana se considera para evaluación. La mediana de la calidad científica de los textos referente al item global fue igual a tres, demostrando caracter moderado en relación a las materias publicadas.

Palabras clave: Salud de la mujer. Periodismo científico. Publicaciones periódicas. Medios de comunicación de masas. Publicaciones científicas y técnicas. Recebido em 09/06/2008. Aprovado em 07/12/2008.

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artigos

A infância sem segredos:

a noticiabilidade jornalística do crime de exploração sexual de crianças e adolescentes* Maria Amélia Tostes Filgueiras Campos1 Carmen Dulce Diniz Vieira2 Joaquim Antônio César Mota3

CAMPOS, M.A.T.F.; VIEIRA, C.D.D.; MOTA, J.A.C. Childhood without secrets: the journalistic newsworthiness of the crime of sexual exploitation of children and adolescents. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.17-29, jul./set. 2009.

By selecting the ordinary events that society needs to know about and the ones that it can ignore, and through coding these events in news format, journalism makes a type of experience of the surrounding world available to the public. Increasingly, communication tools are the means with which civilized man experiences events. Knowledge of the nature of this experience is one way in which society can relate to its own functioning and condition. In this study, we examined 15 reports published in the “Estado de Minas” newspaper in 2004, focusing on a special report on “Stolen Childhood”. Through a strategy of esthetic deconstruction and studying the news narrative relating to stolen childhood, along with content analysis on the material, it became evident that the news value of the transgression was what determined the journalistic newsworthiness of the sexual crimes committed against children and adolescents.

Ao selecionar os acontecimentos ordinários que a sociedade deve conhecer e os que ela deve ignorar, e ao codificar esses acontecimentos sob a forma de notícia, o jornalismo disponibiliza para a coletividade um tipo de experiência com o mundo que a cerca. Cada vez mais, os dispositivos comunicativos são os meios de experiência do homem civilizado. Conhecer a natureza dessa experiência é uma forma de a sociedade se apropriar do seu próprio funcionamento e de sua própria condição. Esta pesquisa trabalha com 15 reportagens publicadas pelo Jornal Estado de Minas, em 2004, especialmente com a grande reportagem Infância Roubada. Por meio da estratégia de desconstrução estética e da narrativa noticiosa de Infância Roubada, bem como da análise de conteúdo do material, fica evidenciado que o valornotícia da transgressão é o que justifica a noticiabilidade jornalística dos crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes.

Keywords: Sexual violence. Child sexual maltreatment. Communication media. Child. Adolescent.

Palavras-chave: Violência sexual. Maus-tratos sexuais infantis. Meios de comunicação. Criança. Adolescente.

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* Elaborado com base em Campos, 2008. 1 Doutoranda, Programa de Saúde da Criança e do Adolescente, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Rua Aimorés, 156, apto. 1402 Bairro Funcionários, Belo Horizonte, MG, Brasil. 30.140-070. mameliatostes@uol.com.br 2 Departamento de Comunicação Social, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG. 3 Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, UFMG.

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Sobre os campos da saúde e da comunicação Saúde e Comunicação são dois campos sociais que muito têm em comum, mas nem sempre reconhecem essa afinidade e essa necessidade de se entrelaçarem para poderem, cada qual, desempenhar melhor seu papel em sociedade. O campo da saúde, se quiser dialogar com a sociedade e ser eficiente sob o ponto de vista social, necessita que seus princípios, estratégias, regras e conceitos sejam entendidos pela coletividade. A instância capacitada e autorizada socialmente a promover esse entendimento é, fundamentalmente, a da comunicação social. Esta, por sua vez, só existe para, pelo e por causa do público. A saúde é gênero de primeira necessidade para a sociedade e, portanto, é essencial às finalidades comunicativas, cujos dispositivos necessitam de ter sempre um canal aberto com o campo da saúde. O campo da comunicação se notabiliza por ser um campo especialista e credenciado socialmente a traduzir significados e sentidos de outros campos, como os da saúde, da política, da educação. Isso porque o campo comunicativo só existe se relacionado a outros campos. A comunicação é um dispositivo que funciona nas relações sociais, promovendo interações, essa é a sua natureza. Não bastasse isso, o campo comunicacional e o sistema público nacional de saúde possuem afinidades fundamentais em seus princípios de universalidade, equidade, integralidade, descentralização, hierarquização e participação, como enfatizam Araújo e Cardoso (2007), uma vez que esses dois campos perseguem os mesmos ideais como democracia e bem-estar público. À comunicação interessa que todos tenham direito à informação; na saúde, a luta é pela universalização do atendimento; para a comunicação e para a saúde, é fundamental fazer circular os dispositivos de produção informativa e de saúde, hierarquizando e descentralizando essa produção; bem como promover a participação e a articulação com outros saberes. A aproximação entre comunicação e saúde não só é legítima como necessária para o desenvolvimento e o aprimoramento dos dois campos, pois a ambos cabe defender e lutar pelos mesmos interesses. Comunicação e saúde se entendem em seus fundamentos, necessitando, portanto, “de novos aportes, outros atores, outras perspectivas [...] de mais reconhecimento, pois sem essa dimensão simbólica, tudo o mais se fragiliza” (Araújo, Cardoso, 2007, p. 130). Aproximar esses dois campos de saberes, em uma pesquisa acadêmica, foi, portanto, desde o início, uma ideia animadora e, nesse sentido, a decisão de seguir o viés da noticiabilidade no jornalismo pareceu oportuna, uma vez que a noticiabilidade - estudada especialmente pela corrente teórica do newsmaking, mas abordada por todas as teorias do processo comunicativo de massa - é um dos eixos de estudo do jornalismo que melhor esclarece o processo noticioso e que mais variáveis angaria ao longo do percurso trilhado pela notícia. Demonstrar os processos internos de produção da notícia a partir de um tema atual e de interesse para a saúde, como a exploração sexual da criança e do adolescente, foi um desafio e uma maneira de estabelecer um diálogo profícuo e promissor entre os dois campos. A análise da noticiabilidade acaba por desembocar na relação cotidiana e sintonizada que existe entre a sociedade e os dispositivos comunicativos. Ao nos debruçarmos sobre o modo como o jornalismo seleciona os acontecimentos e os transforma em notícias, estamos, no final das contas, nos intrometendo na conversa ininterrupta que os veículos de comunicação estabelecem com a sociedade. No caso deste trabalho, o tema da conversa é a exploração sexual infanto-juvenil. Aqui, o que se objetiva é ampliar essa conversa para o campo da saúde, a fim de que os seus especialistas possam se familiarizar com alguns dos conceitos e dos valores comunicativos. O terreno da noticiabilidade, no jornalismo, é vasto. Ele começa na seleção do acontecimento arregimentando inúmeras variáveis objetivas e subjetivas -, passa pela confecção propriamente dita da notícia e pela sua divulgação para o público, envolvendo até o seu consumo pela sociedade e as possíveis consequências advindas por esse consumo, ou seja, a sua repercussão social. Definiu-se que essa pesquisa se ateria às análises da noticiabilidade jornalística pertinentes ao processo seletivo e produtivo da notícia. Por produção noticiosa está-se referindo aqui à rotina cotidiana que a notícia percorre a partir do momento em que ela é selecionada: a definição de pauta, o período de apuração, o momento da redação, o trabalho de edição e a atividade de diagramação (disposição visual) na página do jornal, 18

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aprontando o jornal para a impressão e o consumo. Compreendendo que os critérios utilizados pelo jornalismo para informar a sociedade são expedientes que acompanham todo o percurso noticioso e se modificam ao longo das fases pelas quais passa a notícia, há que se ressaltar, entretanto, que as investigações sobre o assunto são um esforço sempre débil e sem garantias. Isso porque os agentes de noticiabilidade que interferem nos momentos de seleção, de produção e de consumo da notícia não são apenas objetivos, mas também subjetivos. E mais: o encadeamento noticioso, embora possua, sim, linearidade produtiva, não acontece, na prática, linearmente, ou seja, cada fase da notícia é perpassada e influenciada sempre por todas as suas outras fases, fazendo da produção noticiosa um processo global e não fragmentado em sua execução.

As estratégias de análise do objeto de estudo

Estado de Minas, Diário da Tarde e Hoje em Dia (Belo Horizonte); O Tempo (Contagem); Tribuna de Minas (Juiz de Fora); Correio (Uberlândia); Diário do Aço (Ipatinga) e Diário do Rio Doce (Governador Valadares). 4

Para cumprir com as finalidades da pesquisa, foram selecionadas as 15 principais reportagens publicadas, ao longo do ano de 2004, pelo Jornal Estado de Minas (JEM) - sediado em Belo Horizonte, e com o maior índice de circulação em Minas Gerais -, que tratavam do tema da exploração sexual de crianças e adolescentes. Esse recorte noticioso resultou da utilização do banco de dados da Organização Não-Governamental Oficina de Imagens, braço mineiro da Rede ANDI Brasil (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) e localizada na capital mineira, que, diariamente, varre eletronicamente os principais jornais impressos do Estado4, selecionando todas as inserções noticiosas sobre crianças e adolescentes. O material de pesquisa foi investigado sob os parâmetros gráficos e de edição próprios do jornalismo, levando em consideração o grau de evidência da noticiabilidade para o leitor. Foi conceituada como “A noticiabilidade ao alcance do olhar”. Para essa análise, lançou-se mão de duas categorias: a categoria visual - que corresponde ao que, no jornalismo, se denomina de diagramação - e a categoria editorial. A categoria visual foi denominada de “Aspectos da diagramação” e a categoria editorial, de “Aspectos da edição”. A primeira categoria compreendeu sete subcategorias: espaço ocupado na página; fotografia; cor; destaque; box; capa do Caderno Gerais e localização espacial das matérias que ocuparam menos de uma página inteira. A segunda categoria se subdividiu em quatro outras subcategorias: assinatura de matéria; versal; fontes e menções aos Estatuto da Criança e do Adolescente. A idéia norteadora dessa análise é a de que a matéria jornalística organizada e estampada na página do jornal, para ser consumida pelo público, possui códigos específicos do jornalismo que podem ser decodificados com razoável facilidade por um leitor que está acostumado a ler jornais diariamente e, portanto, familiarizado com a estética da notícia. É uma noticiabilidade que o leitor reconhece tão logo ele abre o jornal. Afinal, o que motivou esse trabalho, antes de mais nada, foi a intenção de fazer de todo cidadão um bom decodificador de informações jornalísticas. A página de jornal é o lugar mais simples e evidente da noticiabilidade. Era fundamental levar a estética das notícias para a análise da noticiabilidade jornalística. Pode-se dizer também que essa é a face mais visível e menos controversa da noticiabilidade. O modo como a notícia se apresenta para o público diz muito sobre os seus valores-notícia e seus critérios de noticiabilidade. A análise do conjunto das 15 reportagens sob o referencial estético da notícia foi uma oportunidade de desvendar alguns dos fundamentos que o jornalismo utiliza para fazer da notícia um produto específico e único. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Já as investigações sobre os critérios de noticiabilidade e os valores-notícias utilizados pelo jornalismo na seleção e na produção textual das notícias sobre o crime de exploração sexual infanto-juvenil tomaram por base não mais a totalidade das matérias selecionadas, mas apenas uma reportagem, eleita como a reportagem que culminou o processo noticioso sobre o tema de estudo na imprensa mineira, no ano de 2004: Infância Roubada.5 Entendida como acontecimento capaz de propiciar conhecimento e experiência ao leitor, a grande reportagem Infância Roubada foi analisada com a finalidade de demonstrar por que o jornalismo elege o crime de exploração sexual de crianças e adolescentes como acontecimento noticiável, e como ele produz e exibe esse tipo de matéria para o público. Na medida em que a notícia é resultado de um processo objetivo, mas também subjetivo, a pesquisa se ocupou ainda da análise dos questionários respondidos pela equipe de sete jornalistas responsável pela produção de Infância Roubada. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido submetido e aprovado pelo Comitê de Ética. As reportagens selecionadas para a pesquisa abordam um assunto que confronta a sociedade consigo mesma; trazem à luz o que, em princípio, não deveria ser mostrado, revelam um mundo que seria preferível que não saísse da escuridão. A exploração sexual de crianças e adolescentes é um problema social que evidencia uma inadequação do funcionamento social. Minas Gerais é o Estado com maior número de “pontos” de exploração sexual de crianças e adolescentes do país. Em 2004, a Polícia Rodoviária Federal apresentava um levantamento inédito, no qual relatava que o Estado detinha 74 (13,3%) de um total de 553 “pontos” existentes ao longo de sessenta mil quilômetros de estradas federais (Odilla et al., 2004). No mês de maio de 2007, novo relatório da PRF e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) atualizava esses números. Minas Gerais continuava a deter o maior mercado de sexo infanto-juvenil do país, agora com nada menos do que 290 pontos de um total de 1.819 pontos instalados na malha rodoviária federal. Em troca de suco, coxinha, pastel, um saco de bolacha, um prato de comida ou cobrando preços que variam entre R$ 0,50 a R$ 10,00, crianças de dez anos de idade vendem seu corpo a clientes - caminhoneiros, em sua maioria - que, mesmo casados e pais de filhos, não sentem o menor constrangimento pelo que fazem. Ao contrário, vangloriam-se por encontrarem crianças que cobram tão pouco por um programa em sua companhia. Sob o seu ponto de vista, este é um sinal de que eles “valem a pena” e, portanto, não representam nenhum sacrifício para as meninas. Depoimentos nesse sentido foram registrados, em 2004, pela cobertura jornalística do Jornal Estado de Minas investigada pela pesquisa (Odilla et al., 2004). O que todos nós gostaríamos é de que não houvesse crimes desse tipo em nossa sociedade. E a tendência da coletividade é afastar de si qualquer ameaça a sua condição de harmonia e bem-estar. Por que será que reportagens dessa natureza são produzidas pela imprensa? Por que o jornalismo ousa revelar o que a sociedade prefere esconder e, assim mesmo, a imprensa se sustenta como uma instância social autorizada, respeitada e com credibilidade perante a coletividade?

Noticiabilidade: do que se trata No transcorrer de um dia, muita coisa acontece no mundo inteiro, no nosso país, na nossa região, na nossa cidade, na nossa rua, na nossa comunidade, 20

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Reportagem publicada pelo Caderno Gerais do JEM, em 02 de maio de 2004 (Odilla et al., 2004).

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e apenas alguns desses acontecimentos chegam até o nosso conhecimento. Isso quer dizer que existe uma instância de comunicação social - a imprensa - que seleciona o que deve ser informado à sociedade. Se há uma seleção anterior àquela operacionalizada por nós que é feita, cotidianamente, pelos dispositivos comunicativos, e se essa seleção define o que a coletividade deve saber e o que ela deve ignorar, estabelecendo, em última análise, a que tipo de experiência a sociedade vai poder ter acesso ou não, então é muito importante que conheçamos o modo como a mídia e, especialmente, a imprensa, efetua essa escolha e produz as informações. A noticiabilidade se constitui da propriedade-habilidade-capacidade que o jornalismo detém de transformar algumas ocorrências em notícias com base em requisitos específicos exigidos dos acontecimentos ordinários. A noticiabilidade é então a condição de notícia de um evento sob a ótica do jornalismo. Na noticiabilidade, interferem variados fatores relacionados à produção noticiosa, que vão desde a qualidade do acontecimento (seus valores-notícia), passando pela percepção individual e de classe do jornalista, bem como pelo conjunto de características do veículo informativo ao qual pertence o profissional, até as condições técnicas de apuração e de confecção da notícia, nas redações. Um processo extremamente complexo e situado em um horizonte histórico, político, econômico e social. A noticiabilidade corresponde então ao conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os aparatos de informações enfrentam a tarefa de escolher cotidianamente, de um número imprevisível e indefinido de acontecimentos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias. (Wolf, 2005, p.195-6)

Os critérios utilizados pelo jornalismo para conferir noticiabilidade a determinados acontecimentos são denominados de critérios de noticiabilidade. Esses critérios atravessam todo o processo de produção da notícia - da seleção ao consumo - e são mais ou menos prevalentes de acordo com a fase por que passa a notícia no seu encadeamento produtivo. Selecionar o fato como noticiável requer determinados critérios. Apurar e produzir a notícia envolve critérios específicos. Tornar pública a informação jornalística já arregimenta outros critérios. A importância e o interesse gerados por um acontecimento são, de acordo com Wolf (2005), os critérios substantivos da notícia, isto é, os critérios que mais proximidade estabelecem com os atributos próprios dos acontecimentos. Que atributos seriam esses? São os valores portados pelos acontecimentos, os quais lhe possibilitam condições de serem noticiados: os valores-notícia. Trata-se da bagagem própria que cada evento porta consigo e que, sob a égide dos critérios substantivos do jornalismo, classifica ou desclassifica o acontecimento como noticiável. Os valores-notícia são “um componente da noticiabilidade”. Tais valores, embora apareçam listados, destacados e individualizados, “operam na prática de modo complementar” e funcionam “em maços” (Wolf, 2005, p.202). Além do mais, são valores que permeiam todo o processo de produção informativa e se ajustam completamente à rotina do trabalho jornalístico de forma a facilitála ao invés de complicá-la. Os valores-notícia, ainda que apresentem “uma forte homogeneidade” dentro do campo jornalístico, possuem, de acordo com Wolf, uma “natureza dinâmica”. Isso quer dizer que os valoresnotícia são reajustados e redefinidos em função das necessidades sociais e da capacidade de os aparatos informativos responderem a elas (Wolf, 2005). Há que se ponderar que quanto maior a quantidade de valores-notícia de um acontecimento referendados pelos critérios substantivos, maior a sua autonomia em relação aos demais critérios de noticiabilidade, pois a importância social de que ele se reveste o torna menos vulnerável às avaliações e pontos de vistas dos profissionais da mídia, bem como às condições de natureza operacional impostas pelos veículos de informação para a sua transformação em notícia. Certamente que o caráter substantivo de um fato está sempre relacionado a um determinado horizonte social. De acordo com Traquina (2005), os valores-notícia adotados pelos critérios substantivos são: a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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morte; a notoriedade (o nome e a posição da pessoa em sociedade são importantes como fatores de noticiabilidade); a proximidade (tanto geográfica quanto cultural); a relevância (qual o impacto que o acontecimento tem sobre a vida das pessoas); a novidade; o tempo (enquanto atualidade, enquanto demarcação de uma data significativa e enquanto duração/persistência do acontecimento); a notabilidade (capacidade de o acontecimento ser visível ou tangível às pessoas, podendo ser registrada na quantidade de pessoas envolvidas no fato; na inversão, ou melhor, no modo de contrariar o normal; no insólito ou na capacidade de surpreender as pessoas; nas falhas e nos acidentes; no excesso ou na escassez); o inesperado; o conflito ou a controvérsia; a infração (violação ou transgressão das regras); e o escândalo (Traquina, 2005). Diante dos valores-notícia reconhecidos pelo jornalismo, os critérios substantivos são os mais consensuais de um acontecimento, uma vez que eles já estão respaldados pelo senso comum de uma determinada sociedade e elegem fatos que normalmente não necessitam que a imprensa os selecione; eles se impõem por si mesmos à cobertura informativa dos veículos midiáticos, e qualquer negligência da mídia, nesses casos, pode custar a sua credibilidade junto ao público. Ao comportarem valores em si mesmos que são respaldados e endossados, consensualmente, pela sociedade, os critérios substantivos são também os mais duradouros de um acontecimento porque, se eles carregam consigo o senso comum de uma sociedade, eles não mudam da noite para o dia e nem mudam homogeneamente. Essa durabilidade dos critérios substantivos é o que garante um elevado grau de conservadorismo dos valores-notícia através dos tempos. Assim, os acontecimentos ricos em valores-notícia reconhecidos pelos critérios substantivos atravessam os anos sendo, em maior ou menor grau, noticiados pela imprensa. Os valores-notícia dos acontecimentos contemplados pelos critérios substantivos do jornalismo são os responsáveis, em grande medida, pela sua noticiabilidade, e esses valores são mais endossados pela imprensa na sua interação com a sociedade do que propriamente criados por ela. O que a imprensa faz com muita habilidade é superestimar ou subestimar, valorizar ou desvalorizar o caráter substantivo de um fato de acordo com: seu formato midiático (se é jornal, rádio, tv etc.), seu público, os veículos que lhe fazem concorrência, a sua estrutura física e sua capacidade de cobertura e, mesmo, sua linha editorial e ideológica. Pode-se afirmar que a noticiabilidade de um evento se apóia, por um lado, nas expectativas sociais a ele relacionadas e, por outro, nas especificidades da produção informativa.

Notícia: um produto socialmente consensual e consonante As notícias são moldadas dentro de uma relação consensual estabelecida com a sociedade, ou seja, os jornalistas ou os media não são especialistas em criar notícias, eles normalmente as produzem a partir da relação por eles mantida com o consenso social. Hall (1993) explica a natureza consensual de uma sociedade como uma espécie de “assunção de fundo” ou de “quadros de referência de fundo”, a partir dos quais se torna possível obter o que ele denomina de “mapa cultural” dessa sociedade, isto é, seu “mapa de significados” (p.226). O “mapa de significados” de uma sociedade é, para esse autor, a sua base referencial de valores e de comportamentos: como essa sociedade se constrói como tal; como ela se pensa; seus parâmetros de normalidade e, consequentemente, de anormalidade; enfim, o que essa sociedade é, e como ela funciona. Funcionando como decodificadores sociais dos fatos fora do comum, invulgares, imprevisíveis, conflituosos e problemáticos, os media absorvem e constroem, ao mesmo tempo, o consenso social. A sociedade necessita entender o seu entorno, cada vez mais segmentado, especializado e complexificado. Esse entendimento é que lhe garante uma condição, pelo menos imaginária, de harmonia e homogeneidade. Não haveria sociedade se as discrepâncias sobressaíssem mais do que as semelhanças. É, portanto, fundamental ao funcionamento social essa idéia de que existe um consenso, isto é, um entendimento

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geral e amplo sobre o mundo que nos cerca, partilhado por todos os membros de uma sociedade e capaz de promover uma sensação de que tudo está sob controle. Essa familiaridade e essa proximidade proporcionadas pelo jornalismo à sociedade, sobre os acontecimentos ordinários, é obtida pela condição de consonância estabelecida entre o fato novo e os fatos antigos. Traquina (2005) analisa a consonância como uma estratégia de construção da notícia destinada a inserir o acontecimento em uma narrativa já estabelecida. Com isso, ele quer dizer que a consonância aproveita o conhecimento que o público possui sobre o assunto e, consequentemente, o interesse já despertado em sociedade, para tratar do tema com base em uma ótica inovadora. A consonância no jornalismo ocorre então quando “o ‘novo’ acontecimento é inserido numa ‘velha’ estória” (Traquina, 2005).

A noticiabilidade do crime Na medida em que a sociedade requisita, por uma questão mesma de sobrevivência, entender a si própria e manter o seu funcionamento sob controle, afastando tudo o que possa ameaçar a sua noção de corpo homogêneo e consistente, o crime surge como um desvio social a ser combatido e repelido. A lei incorpora a vontade de uma sociedade e lhe fornece “a definição básica de quais são as ações que são aceitáveis ou não” (Hall, 1993, p.237); estabelece as fronteiras entre a normalidade e a anormalidade, entre o comum e o incomum, entre a ordinariedade e a extraordinariedade dos acontecimentos sociais. Partindo da noção de que a notícia se instala justamente naquilo que rompe com a normalidade das coisas, “o crime é, quase por definição, ‘notícia’” (Hall, 1993, p.237). O crime, ao ser noticiado, evoca as ameaças que a sociedade tanto teme e, ao mesmo tempo, “reafirma a moralidade consensual da sociedade” (p.237). A violência não é uma prerrogativa de qualquer um, mas apenas do Estado, que a ela recorre sempre que o indivíduo, a propriedade e o próprio Estado sofram quaisquer abalos, lembra Hall (1993). Sob esse ponto de vista, esse autor considera impossível que a violência não seja, portanto, um tema social extremamente valorizado pelos media. Os que se queixam de que as notícias contêm demasiada violência “não compreendem o que são as notícias” (Hall, 1993, p.239). Os relatos noticiosos sobre crimes se relacionam também com o gosto do público pelo que é negativo. Traquina (2005) informa que, no ano de 1600, quando as “folhas volantes” - forma prémoderna do jornal - predominavam na Europa e até na América Central, os assuntos noticiáveis eram os assassinatos, os quais representavam 1/3 das notícias. Segundo ele, havia um fascínio, na época, pelos homicídios e pelos enforcamentos. O insólito – àquela altura representado pelos milagres, o aparecimento de monstros, as práticas feiticeiras e as guerras - e as celebridades dominavam o restante do espaço noticioso das “folhas volantes” (Traquina, 2005). Em 1965, um estudo da dupla Johan Galtung e Marie Holmbose Ruge (apud Traquina, 2005) destacou a negatividade dos acontecimentos como um dos principais fundamentos das notícias. De acordo com o autor, esses estudiosos explicam a preferência da imprensa por acontecimentos negativos pelo que eles portam de inesperado, de imprevisível e de raro e pelo que esses acontecimentos possuem de consensual e inequívoco em sociedade. Em outras palavras, a negatividade concilia mais a sociedade do que a positividade. Há uma melhor possibilidade de a sociedade acordar entre si sobre o que é ruim, triste, indesejável, impraticável, imoral e revoltante para os seus membros do que essa mesma sociedade se entender sobre o que lhe é bom, justo, normal e moral. O crime encarna o lado negativo do funcionamento social; ele revela que nem tudo está sob controle em uma sociedade e que a lei pode ser transgredida, ameaçando a harmonia desejada pela coletividade. A transgressão social figura entre os principais fatores desencadeadores de notícias, no jornalismo. Tal fenômeno se justifica, por um lado, pelo valor de novidade portado pelos atos transgressivos sempre alvos de curiosidade e interesse social, e, por outro, pela disposição do jornalismo de reiterar as condutas preconizadas como apropriadas e edificantes pela sociedade.

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A transgressão como valor de notícia Em seu texto clássico, “O Mal-Estar na Civilização”, Freud (1990, p.144-5) afirma que a “agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente” e “ela é o maior impedimento à civilização”, a qual, essa sim, “constitui um processo a serviço de Eros”. O homem freudiano é um ser violento que só é domesticado à custa de regulações sociais impostas pela civilização que, dessa forma, se torna a maior fonte do sofrimento humano, uma vez que ela lhe impõe sacrifícios enormes no exercício de sua sexualidade e de sua agressividade. E, como o homem é impedido de exercer a sua natureza agressiva em sociedade, essa agressão se volta para o seu próprio ego e é assumida pelo superego. O superego faz com o ego o que este gostaria de fazer com os outros indivíduos (Freud, 1990). Uma vez que o homem, para viver em sociedade, não pode dar vazão a sua carga de energia sexual, pois isso o levaria a sua própria destruição e inviabilizaria a construção e a solidificação cultural, esse potencial energético pulsional do ser humano tem de se dirigir a outros propósitos que não os explicitamente relacionados a sua sexualidade. A essa substituição do viés sexual pelo viés cultural, Freud (1990) denomina de sublimação. Nem todos os indivíduos são capazes de sublimar suas pulsões, mas, ainda que o façam, eles não eliminam totalmente as suas inclinações primitivas e subsistentes de natureza sexual. O fato de o homem não poder exercer a sua sexualidade da forma como ele gostaria não quer dizer que não subsista nele a vontade de fazê-lo. Em outras palavras, por mais que a sociedade se incumba de atrofiar a natureza sexual e agressiva do homem, mediante normas de condutas morais que impeçam quaisquer possibilidades de satisfação plena nesse sentido, ela não consegue obter o sucesso que ela gostaria de ter nesse seu intento. Assim, se o homem, por um lado, é obrigado a portar um sentimento de culpa constante manifestado na forma de “uma espécie de mal-estar” (Freud, 1990, p.60) cultural - porque ele deseja o que lhe é proibido -, por outro, a sociedade valida uma “moral sexual ‘dupla’”, isto é, permite a transgressão de suas normas, o que, segundo Freud, é “a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos” (Freud, 1990, p.200). Os padrões de civilização, segundo Freud, exigem de todos uma idêntica conduta sexual, a qual, se por alguns indivíduos, ela pode ser seguida sem dificuldades, para outros, ela impõe “os mais pesados sacrifícios psíquicos”. Para sanar essa injustiça é que o homem desobedece às junções morais, tornando-se um criminoso, um outlaw (fora da lei) diante da sociedade ou, excepcionalmente, um grande homem, um herói (Freud, 1990). O destino do homem que não se torna um outlaw (fora da lei) nem um herói é se contentar, então, em satisfazer as suas inclinações transgressoras nas suas fantasias. A fantasia ajuda o homem a suportar as suas frustrações com essa sociedade opressora. A fantasia é livre. O homem não necessita pagar nenhum preço à cultura por fantasiar. É na fantasia humana, então, que a transgressão se instala de forma mais confortável e menos arriscada. Em seu Seminário 10, sobre a Angústia, Lacan (2005, p.60) afirma que “a fantasia do neurótico está inteiramente situada no lugar do Outro.” Segundo Lacan, quando nos deparamos com essa fantasia, ela se apresenta a nós como perversão. Mas, embora os neuróticos tenham fantasias perversas, isso não é a mesma coisa que a perversão, explica Lacan, para quem as fantasias perversas dos neuróticos lhes servem “para se defender da angústia, para encobri-la” (Lacan, 2005, p.60). A transgressão do outro já me serve: eu não preciso transgredir também. É esse o raciocínio que embasa a fantasia de transgressão do homem em sociedade. Assim, me é interessante que o outro rompa com a lei para que eu não necessite romper; já me satisfaz ver a transgressão do outro ou, mesmo, apenas saber da sua existência. Eu projeto no outro os meus anseios perversos. Podemos localizar aí a curiosidade do ser humano pelas estórias transgressoras, e consiste precisamente nesse ponto o motivo de o jornalismo dotar de noticiabilidade os acontecimentos que transgridem as normas, as convenções, as leis, as condutas, a “moral sexual ‘civilizada’” (Freud, 1990, p.187).

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Valores-notícia e valores sociais A compreensão sustentada pela pesquisa é a de que os valores-notícia dos acontecimentos são uma decorrência particular e específica dos valores sociais conferidos aos fatos pela sociedade. Em outras palavras, entende-se aqui que a imprensa reifica o consenso social, reconhecendo-o, atualizando-o e devolvendo-o para a sociedade em forma de produto noticioso, de tal modo que os valores-notícia e os critérios substantivos das notícias reiteram os valores sociais em voga. Esse atrelamento entre valores-notícia e valores sociais ocorre como uma consequência do lugar ocupado pela imprensa em sociedade: a imprensa está no meio das relações sociais nas quais ela tanto interfere como sofre delas interferências. O consenso social é, assim, fruto da atuação e da presença da imprensa na sociedade, sendo, portanto, uma construção ativa e ordinária do corpo social do qual a mídia é parte integrante. A imprensa tende a conferir noticiabilidade aos fatos que, de alguma forma, já são valorizados pelo senso comum social o qual, com isso, pode reconhecer os valores-notícia da imprensa. É dessa forma que os critérios de noticiabilidade utilizados pelos jornalistas na sua função diária de produzir notícias são expedientes próprios da imprensa para responder: às necessidades, aos costumes, à moral, aos valores, à cultura, e também aos desejos, às fantasias, às curiosidades, aos medos, às inseguranças, enfim, de uma sociedade. Revelar esses critérios é desvendar a conversa que ela estabelece, rotineiramente, com o corpo social.

A noticiabilidade do crime de exploração sexual infanto-juvenil A exploração sexual infanto-juvenil é um assunto que desperta a atenção da imprensa porque se enquadra dentro dos critérios substantivos relacionados à negatividade do acontecimento, os quais, para tanto, arregimentam os valores-notícia de transgressão, violação ou infração da ordem estabelecida. Tais características estão presentes em praticamente todos os tipos de crimes ou de práticas desviantes em sociedade e, quando se trata de um desvio que tem como alvo crianças e adolescentes, esse caráter transgressivo é ainda mais valorizado pela coletividade. Reportagens que tratam de crimes cometidos contra crianças e adolescentes se substantivam na transgressão humana. Trata-se aí de uma transgressão social generalizada: a do agressor e a da vítima do crime de exploração sexual, obviamente, mas também a do leitor, a da imprensa e a da sociedade em geral. Estão todos de alguma forma imbricados na transgressão das normas, na extrapolação dos limites, ainda que em graus e de maneiras diferentes. Enquanto o acontecimento em si é transgressor porque, basicamente, desconhece qualquer lei, a imprensa é especialmente transgressora porque avança em direção ao novo, ou seja, possibilita uma (re) visão inovadora da questão por parte da sociedade, a qual, por sua vez, transgride também ao (re) avaliar o problema noticiado pela mídia, sob uma nova ótica e, quem sabe, a partir de um outro lugar social. Ao mesmo tempo, toda a sociedade, quando trata do tema da exploração sexual de crianças e adolescentes, se envolve na trama freudiana e lacaniana da transgressão, no sentido de que torna possível assistir à transgressão do outro sem dela necessitar participar diretamente. Essa não deixa de ser uma equação perversa realizada pela sociedade, mas que, de acordo com os pressupostos psicanalíticos, compensa e equilibra o funcionamento social. A noção de que as transgressões humanas são notícias já está completamente introjetada no jornalismo. Não é por acaso que os teóricos da comunicação classificam a “transgressão” como um valor-notícia encampado pelo critério substantivo de noticiabilidade, ou seja, um valor duradouro, centralizador e de grande reconhecimento e respaldo social. Então, esse tipo de crime é notícia não porque os jornalistas assim o querem e o selecionam, numa iniciativa unidirecional, mas porque os jornalistas reconhecem nesse tipo de acontecimento um valor conferido socialmente.

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A seleção feita pelo jornalismo, no caso dos acontecimentos de significativo valor substantivo, é uma reiteração do que a sociedade, consensualmente, já selecionou como fato relevante. O que o jornalismo faz é evidenciá-lo, atualizá-lo para o conhecimento do público, denunciá-lo, endossando esse consenso social. Afinal, a mídia não existe separada da sociedade. Uma e outra se entendem sobre os valores, crenças, tradições e transformações sociais. É graças a essa condição que ela consegue repercutir os fatos sociais de forma sintonizada com o senso comum e se fazer reconhecida por este. Tomando como referência o disposto por Freud sobre a condição bárbara subsistente no homem civilizado, pode-se dizer que, de um modo geral, todas as informações jornalísticas noticiadas com base no valor-notícia da transgressão social, ao municiarem a sociedade de material que lhe possibilite transgredir na fantasia - e, com isso, sublimar o desejo de uma transgressão real -, contribuem para a estabilidade do funcionamento da sociedade no que diz respeito às suas regras de conduta de comportamento sexual. Ou seja: as reportagens sobre crimes sexuais endossam e reforçam o consenso social sobre o que é permitido e o que não é permitido em sociedade a respeito do exercício da sexualidade dos indivíduos, possibilitando à imprensa ficar moralmente consoante com os valores defendidos pela sociedade, numa clara demonstração de harmonia entre os critérios de noticiabilidade da imprensa e os valores fundamentais definidos pela sociedade. A imprensa não se coloca na contramão social. A sua função é, basicamente, fortalecer os pressupostos considerados importantes socialmente e, assim, ajudar a cumprir com os dispositivos legais e morais que embasam o funcionamento da sociedade.

Conclusões Nas estradas que cortam o estado de Minas Gerais, uma parcela de crianças e adolescentes comercializam seus corpos, perdem sua inocência, dilaceram seus sonhos, abandonam toda a sua esperança, experimentam o que de pior a vida pode oferecer-lhes: a degradação generalizada. Uma degradação que é física e moral; individual, íntima e particular, mas também coletiva e social, uma vez que a degeneração que lhes atinge envergonha e humilha toda uma sociedade que permite tal realidade. Essa realidade é o resto, o resíduo social que preferimos não enxergar, tampouco tomar conhecimento de sua existência, mas que está ali, bem perto de nós, nos postos de gasolina, restaurantes, boates e prostíbulos de beira de estrada. Há um entendimento social sendo aperfeiçoado - pelo menos junto à parcela da sociedade brasileira que tem acesso à informação - de que a exploração sexual infanto-juvenil é um crime que merece ser denunciado e punido. O campo comunicacional tem tido um papel fundamental no processo de denunciar o problema, responsabilizando o poder público na busca por soluções e contribuindo para a conscientização da sociedade sobre a questão. Concorre, para a construção desse consenso social, a vigência, no país, desde 13 de julho de 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que reflete e ampara, na lei, uma nova noção jurídica sobre a infância e a adolescência, tornando-a uma responsabilidade do Estado, da família e da sociedade. O lugar da criança e do adolescente na sociedade brasileira passou a ser, em conformidade com o ECA, de sujeitos de direitos exigíveis em lei. Submetida que é à sina da atualidade e, portanto, à condição de necessária sintonia com a sociedade em que se acha inserida, a instância comunicacional brasileira tem conferido noticiabilidade à realidade experimentada pelas crianças e adolescentes porque o universo infanto-juvenil tem conquistado importância e relevância sociais, ou seja, tem se arregimentado de critérios substantivos capazes de, cada vez mais, se impor à cobertura cotidiana da imprensa nacional. Dados da Rede ANDI Brasil – uma agência voltada para o monitoramento da cobertura da imprensa dos diversos temas pertinentes ao universo infanto-juvenil – informam que, entre 1996 e 2004, houve um aumento de 1.148,74% no número de notícias sobre crianças e adolescentes publicadas por 45 veículos de comunicação impressa (jornais e revistas) nacionais (ANDI, 2005). 26

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6 Dados informados pelo Relatório Infância na Mídia – a criança e o adolescente no olhar da imprensa brasileira. Relatório 2003/2004.

7 Dados informados pela pesquisa “A criança e o adolescente na mídia – MG” (Oficina de Imagens, 2006).

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Foi auferido pela Rede ANDI Brasil que, em 1996, enquanto 55 jornais produziram 10.700 notícias referentes ao universo infanto-juvenil, em 2000, esse número saltou para 64.396 inserções produzidas por cinquenta veículos impressos, chegando, em 2004, a um total de 161.706 inserções informativas realizadas por setenta meios de comunicação impressa: sessenta jornais e dez revistas.6 Em Minas, a ONG “Oficina de Imagens” apurou que, entre 2001 e 2004, houve um crescimento de mais de 80% na quantidade de matérias publicadas sobre crianças e adolescentes em oito jornais pesquisados, de modo que a mídia impressa mineira, em 2004, publicou, de acordo com os dados da Oficina, pelo menos 14.887 textos referentes ao universo infanto-juvenil.7 Dessa forma é que se pode afirmar que a consensualidade sobre o tema da exploração sexual infanto-juvenil está diretamente relacionada com a sua noticiabilidade jornalística, e ambos se encontram em processo de construção e fortalecimento impulsionado pela vigência e implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente. As análises da noticiabilidade das reportagens selecionadas para a pesquisa nos permitem concluir que elas são consideradas e reconhecidas publicamente como reportagens porque se enquadram dentro de um formato gráfico e textual especificamente jornalístico; que elas são todas reportagens oportunas socialmente, isto é, foram realizadas dentro de uma ambiência social familiar, conectada aos acontecimentos ordinários, e não impostas ao público de modo aleatório, maquiavélico ou na contramão das expectativas da sociedade; e que, na condição de reportagens que tratam de um tema negativo e transgressor, por excelência, como é o caso da exploração sexual infanto-juvenil, elas transgridem duplamente. A dupla transgressão operacionalizada por esse tipo de notícia ocorre na medida em que toda notícia é um produto jornalístico naturalmente transgressor, uma vez que ela se instala sempre no que rompe com a normalidade do funcionamento social. Quando a notícia, para além de sua natureza imperiosamente transgressora, aborda um acontecimento também transgressor, ela se torna transgressora em dobro. O jornalismo transgride ao noticiar a transgressão humana mas, nem por isso, ele se envolve na transgressão das leis sociais. Ao selecionar como noticiáveis acontecimentos relativos ao crime de exploração sexual infanto-juvenil, o jornalismo atende a uma necessidade básica e subsistente do ser humano, que é a da transgressão sob todas as suas formas. Assim, ao reportar a transgressão sexual, o jornalismo acaba por reafirmar as fronteiras entre o que é consensualmente aceitável e o que deve ser condenável socialmente em se tratando do comportamento sexual humano. Ou seja, a notícia transgride para apaziguar, normalizar, ajustar o funcionamento social às suas leis e às suas normas. Esse deslocamento de sentido e de função social operacionalizado pelo jornalismo e objetivado especialmente nas notícias sobre acontecimentos transgressores, é possibilitado pelo fato de a notícia ser, ela própria, um outro acontecimento que porta do acontecimento originário apenas alguns poucos elementos, pois a notícia se faz acontecer socialmente de uma maneira própria e única. A notícia, como um produto que opera com a consensualidade social, transforma os acontecimentos transgressores em acontecimentos-notícia que acontecem para reforçar as convenções aceitas e defendidas em sociedade. Isso quer dizer que a notícia rompe com a normalidade do cotidiano não para tumultuar ainda mais esse cotidiano, mas para normalizá-lo, para torná-lo inteligível e possível de ser assimilado pela coletividade. 27


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No caso das reportagens analisadas pela pesquisa, o crime de exploração sexual de crianças e adolescentes é abordado sob a ótica da lei, ou seja, de que existem vítimas - as crianças e adolescentes abusados - e culpados - os abusadores. Pautando-se pelo entendimento jurídico e legal, a imprensa dá a sua quota de contribuição para a construção do consenso social sobre o assunto. As investigações sobre a noticiabilidade das reportagens selecionadas para a pesquisa demonstraram que o processo de seleção e produção da notícia é um processo sempre contextualizado no social, que leva em conta os costumes, a moral, os valores, a cultura, enfim, de uma coletividade, e que também responde aos desejos, às fantasias, às curiosidades, aos medos e às inseguranças próprias do ser humano. Assim, a noticiabilidade é um processo noticioso humanizador do jornalismo, a despeito de ser também um expediente técnico operado por especialistas que são os jornalistas. Ademais, é justamente porque a noticiabilidade é operacionalizada por jornalistas e destina-se a alcançar o público, que ela se caracteriza, sobretudo, como um processo humanizado.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências Agência de Notícias dos Direitos da Infância. Pauta para novos tempos: infância na mídia - a criança e o adolescente no olhar da imprensa brasileira. Relatório 2003/2004, v.10, n.14, p.5, 2005. ARAÚJO, I.; CARDOSO, J. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. CAMPOS, M.A.T.F. A infância sem segredos: a noticiabilidade jornalística do crime de exploração sexual de crianças e adolescentes. 2008. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2008. FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: STRACHEY, J. (Ed.). Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 3.ed. Rio de janeiro: Imago, 1990. p.75-171. ______. A negativa, o ego e o id. In: STRACHEY, J. (Ed.). Trad. Vera Ribeiro. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 3.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p. 23-76. ______. Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna. In: STRACHEY, J. (Ed.). Trad. Maria Aparecida Moraes Rego. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 3.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p.185-208. HALL, S. et al. A produção social das notícias: o mugging nos media. In: TRAQUINA, N. Jornalismo: questões, teorias e estórias. Lisboa: Vega, 1993. p.224-8. LACAN, J. Angústia: além da angústia de castração.In: MILLER, J.A. (Ed.). Trad. Vera Ribeiro. O seminário. Livro 10. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p.53-65. ODILLA, F. et al. Infância roubada. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 2 maio 2004. Caderno Gerais, p.25-9. OFICINA DE IMAGENS. Infância consolida espaço na imprensa mineira. A criança e o Adolescente na Mídia-MG, v.5, n.5, p.9, 2006. Especial ECA 15 anos.

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CAMPOS, M.A.T.F.; VIEIRA, C.D.D.; MOTA, J.A.C.

artigos

TRAQUINA, N. Teorias do Jornalismo: a tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2005. v.2. WOLF, M. Teorias das comunicações de massa. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CAMPOS, M.A.T.F.; VIEIRA, C.D.D.; MOTA, J.A.C. La infancia sin secretos: el noticiario periodístico del crimen de explotación sexual de niños y adolescentes. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.17-29, jul./set. 2009. Al seleccionar los acontecimientos ordinarios que la sociedad debe conocer y los que debe ignorar y al codificar estos acontecimientos en forma de noticia, el periodismo coloca a disposición de la colectividad un tipo de experiencia con el mundo que la cerca. Cada vez más los dispositivos comunicativos son los medios de experiencia del hombre civilizado. Conocer la naturaleza de tal experiencia es una forma de que la sociedad se apropie de su propio funcionamiento y de su propia condición. Esta investigación trabaja con 15 reportajes publicados por el periódico Jornal Estado de Minas, Brasil, en 2004; especialmente con el gran reportaje Infancia Robada. Por medio de la estrategia de desconstrucción estética y de la narrativa noticiosa de Infancia Robada, así como del análisis de contenido del material, se pone en evidencia que el valor-noticia de la transgresión es lo que justifica la condición de noticiable en los periódicos de los crímenes sexuales cometidos contra niños y adolescentes.

Palabras clave: Violencia sexual. Malos tratos sexuales infantiles. Medios de comunicación. Niño. Adolescente. Recebido em 15/05/2008. Aprovado em 19/12/2008.

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artigos

A compreensão jurídica, médica e “leiga” do embrião em Portugal: um alinhamento com a biologia? *

Susana Silva1 Helena Machado2

SILVA, S.; MACHADO, H. Legal, medical and lay understanding of embryos in Portugal: alignment with biology? Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.31-43, jul./ set. 2009.

Our aim is to contribute towards the debate about the processes through which knowledge and meanings regarding the status of human embryos circulate among experts and laymen in Portugal. Expectations and concerns expressed regarding the reliability, quality, safety and efficacy of medical technologies for assisted reproduction were assessed. This study is based on data from individual interviews that sought to explore the complexities, similarities and differences among the views and values of jurists, doctors and couples involved in in vitro fertilization treatments. It consists of a qualitative analysis on a case study. If jurists and doctors frame the status of embryos as categories of a biological, technical and/or legal nature, couples establish between themselves a variety of ontological relationships of a moral, affective and social nature. Through these, they can be represented as ethical beings, thus contrasting with the medical-legal biologization of the embryos.

Pretende-se contribuir para o debate em torno dos processos de circulação de conhecimentos e sentidos entre especialistas e “leigos” no que concerne ao estatuto dos embriões humanos em Portugal. Reflete-se sobre as expectativas e preocupações manifestadas quanto à confiança, qualidade, segurança e eficácia das tecnologias médicas de reprodução assistida. O estudo assenta na realização de entrevistas individuais, com vistas a explorar as complexidades, similitudes e diferenças entre as visões e os valores de juristas, médicos e casais envolvidos em tratamentos de fertilização in vitro. Trata-se de uma análise qualitativa em um estudo de caso. Se os juristas e os médicos enquadram o estatuto dos embriões em categorias de índole biológica, técnica e/ou jurídico-legal, já os casais estabelecem com os mesmos diversas relações ontológicas de índole moral, afetiva e social, pelo que estes podem ser representados como seres éticos face à biologização médico-legal dos embriões.

Keywords: Embryo research. Legalization. Biologization. Moralization.

Palavras-chave: Pesquisas com embriões. Legalização. Biologização. Moralização.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

* Elaborado com base em Silva (2008a). 1 Departamento de Higiene e Epidemiologia, Unidade de I&D Cardiovascular, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Alameda Prof. Hernâni Monteiro, Porto, Portugal. susilva@med.up.pt 2 Departamento de Sociologia e Centro de Investigação em Ciências Sociais, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Portugal.

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A compreensão jurídica, médica e “leiga” do embrião...

Introdução Neste artigo pretende-se contribuir para o debate em torno dos processos de circulação de conhecimentos e de sentidos entre médicos, juristas e “leigos” em diversos contextos socioecológicos de utilização de tecnologias médicas de reprodução assistida, com base na análise dos discursos produzidos por estes atores sociais em torno do estatuto dos embriões humanos. Pondera-se, em particular, o papel da incerteza e dos princípios morais associados à construção e percepção social do estatuto dos embriões humanos in vitro e as respectivas articulações com as bases socioculturais e político-ideológicas que sustentam a confiança nas instituições de índole médico-científica e jurídico-legal. A biomedicalização no âmbito da reprodução medicamente assistida produziu um novo ator e identidade coletiva tecnocientífica, uma entidade inédita pósmoderna de parentesco cada vez mais familiar - o embrião in vitro, o qual está a ser transformado numa entidade anônima que se torna parte de um compromisso partilhado em prol do progresso humano, científico e tecnológico, atendendo sobretudo às novas linhas de investigação usando embriões humanos (Luna, 2007b; Svendsen, 2007). Este é um debate simultaneamente científico e ideológico, uma vez que tanto envolve discussões sobre as reais possibilidades de regeneração de tecidos humanos, como reflexões sobre a curialidade de utilizar embriões humanos nesta pesquisa (Ramalho-Santos, 2003). A estas promessas científicas estão ainda associadas diversas questões éticas, nomeadamente: a legitimidade da destruição de embriões; o “turismo científico”; a potencial mercadorização de tecidos humanos; e a instrumentalização das mulheres e dos homens como fontes de embriões humanos (Haimes, Luce, 2006; Scully, Rehmann-Sutter, 2006). Apesar das incertezas e ambiguidades que caracterizam os debates públicos em torno da definição, estatuto, proteção e destinos do embrião humano (Serrão, 2003; Luna, 2001; Nunes, Melo, 2001; Andrews, Elster, 2000; Mulkay, 1997; Salem, 1997), estes tendem hoje a afastar-se dos discursos em torno da imagem da pessoa potencial e da criança que não vai nascer (Mulkay, 1997) em direção à criança saudável (Ettorre, 2002), à redefinição da noção biológica de embrião (Findlay et al., 2007) e à eliminação do próprio conceito de embrião, propondo-se a designação de human generative material or tissue, com o objetivo de alinhar o direito com a biologia (Johnson, 2006)3. As narrativas em torno do estatuto jurídico, ético, biológico e moral do embrião humano colocam novas questões acerca dos tipos de cidadania íntima (Plummer, 2001), científica (Irwin, 2001) e biológica (Rose, Novas, 2005) que ocorrem no contexto dos tratamentos de reprodução medicamente assistida. Uma outra discussão possível diz respeito ao escrutínio público das expectativas e dos receios em torno do papel da tecnologia e da ciência na sociedade, num domínio que joga com algumas preocupações humanas fundamentais, como o nascimento, a regeneração e a qualidade (Luna, 2007b; Svendsen, 2007). O embrião humano configura-se como um “objecto de fronteira” que tem se transformado num objeto híbrido de conhecimento e intervenção, fusão entre biologia e tecnologia e ambientes laboratoriais e reprodutivos (Williams et al., 2008). Este embrião cyborg está envolvido numa rede cada vez mais complexa de protagonistas e simboliza o redirecionamento da biomedicina e da biotecnologia para os idiomas da imortalização, regeneração e totipotência, num percurso para uma visão genética pós-molecular, que Sarah Franklin (2006) designa de transbiologia e Charis Thompson (2005) de modo de reprodução biomédico. A consolidação desta nova concepção depende 32

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O argumento mais usado para justificar a reconfiguração do estatuto e da definição de embrião consiste na alegação da possibilidade de serem criadas entidades “embrionárias” através de outros meios que não envolvem a fertilização de um óvulo por um espermatozóide, como por exemplo a transferência nuclear de células somáticas e a partenogénese induzida (Findlay et al., 2007).

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SILVA, S.; MACHADO, H.

artigos

da transgressão de fronteiras, o que a torna simultânea e inseparavelmente objeto de domínio do conhecimento das ciências da vida, das ciências sociais e das humanidades, num contexto em que os cidadãos “leigos” se configuram como participantes ativos nos processos decisórios e na mobilização das tecnologias médicas desde o seu desenvolvimento inicial (Thompson, 2005; Ramalho-Santos, 2003; Webster, 2002). Numa outra óptica problematiza-se a emergência de novos deveres e responsabilidades parentais orientados para o futuro (Luna, 2005; Strathern, 2005), os quais refletem uma das mais interessantes descontinuidades potenciadas pelas tecnologias de reprodução medicamente assistida - a extensão espaço-temporal das fronteiras da vida (Brown, Webster, 2004). Os laços sociais entre os embriões e os seus (esperados) beneficiários devem ser mantidos num primeiro momento por meio da assinatura de um prévio consentimento, supostamente livre e esclarecido. O consentimento informado emerge como um instrumento que parece simbolizar a importância da escolha e da autonomia do casal (Andrews, Elster, 2000); a potencial disponibilidade de algum tipo de relação de parentesco e a reconfiguração da mesma numa relação técnico-científica (Salem, 1997); e a transformação dos embriões em objetos de conhecimento e intervenção fora de rede de parentesco e familiar (Mulkay, 1994b), numa tentativa de renegociar o significado dos termos filho (Franklin, 2006) e pessoa (Luna, 2007a, 2001). No âmbito do presente texto recuperam-se algumas das orientações das perspectivas anteriormente referidas: reflete-se sobre as atribuições de sentidos e significados veiculadas nas narrativas médicas, jurídicas e “leigas” em torno do estatuto dos embriões humanos, destacando-se, em particular, as complexidades e ambiguidades que as caracterizam, assim como as respectivas similitudes e diferenças. Tenta-se aqui mostrar como as atuais políticas desenvolvidas no âmbito da reprodução medicamente assistida se consubstanciam num projecto técnico-genético e biopolítico que assenta, sobretudo, na socialização da compreensão pública da ciência e da tecnologia a partir da biologização e genetização dos valores sociais. A emergência de novas formas de cidadania, paradoxalmente privatizadas e reconfiguradas como formas de cidadania íntimas e apolíticas, podem contribuir para a diluição e individualização das responsabilidades sociais no que concerne à gestão dos riscos e das incertezas associados aos usos sociais dos embriões humanos, o que pode restringir alguns dos direitos fundamentais dos cidadãos. Num primeiro momento, analisa-se o atual enquadramento jurídico-legal português no que concerne aos usos sociais dos embriões humanos, destacando-se a necessidade de se incluírem as visões e as experiências “leigas” na regulação das tecnologias médicas de reprodução assistida. Com base na análise qualitativa e interpretativa dos discursos de juristas, médicos e casais com experiências de índole pessoal e/ou profissional no âmbito da reprodução medicamente assistida em Portugal, procura-se, num segundo momento, esboçar um mapeamento sintético das principais implicações pessoais, culturais e ideológicas associadas à compreensão jurídica, médica e “leiga” do estatuto dos embriões humanos.

A regulamentação dos usos sociais de embriões humanos em Portugal A lei que regula as tecnologias médicas de reprodução assistida em Portugal lida com duas categorias diferentes de embriões humanos: (a) os embriões viáveis envolvidos num projeto parental, que deverão ser criopreservados para utilização em novo processo de transferência embrionária, no prazo máximo de três anos, pela mulher que lhes deu origem ou, no caso desta opção não ser possível, ser doados a outro casal mediante o consentimento dos beneficiários originários; (b) e os embriões sem possibilidade de envolvimento num projeto parental, cujo destino será a investigação científica, desde que haja um consentimento expresso, informado e consciente dos beneficiários aos quais se destinavam (art. 25.º e art. 9.º, n.º4 e n.º5 da lei n.º 32/2006) (Portugal, 2006). No entanto, os formulários de consentimento informado usados nos centros de medicina da reprodução portugueses destinam-se, sobretudo, a registrar a autorização dos casais para a criopreservação de embriões (o que implica o reconhecimento mais ou menos explícito da inevitabilidade da existência de embriões excedentários) e confirmar a anuência dos casais quanto ao destino privilegiado dos mesmos (a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A compreensão jurídica, médica e “leiga” do embrião...

respectiva implementação no útero da mulher que lhe deu origem para uma nova tentativa de gestação), o que pode afigurar-se como uma estratégia de supressão dos riscos envolvidos na criopreservação de embriões e de privatização das responsabilidades pelos embriões in vitro (Silva, 2008b). A forma como a lei portuguesa regula os usos sociais de embriões humanos permite evidenciar duas retóricas distintas: a alegação dos benefícios presentes e futuros para a humanidade e a possibilidade de aperfeiçoamento da mesma; e a necessidade de se controlarem as suas utilizações. O enquadramento legal português prevê que a produção de embriões in vitro só possa acontecer com o objetivo de contornar ou superar a infertilidade ou para evitar a transmissão de doenças graves, proibindo a criação de embriões por meio da reprodução medicamente assistida com o propósito deliberado de serem utilizados na investigação científica. A experimentação em embriões carece de autorização do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e só deverá ser permitida desde que “seja razoável esperar que daí possa resultar benefício para a humanidade”, como, por exemplo, a “prevenção, diagnóstico ou terapia de embriões, o aperfeiçoamento das técnicas de PMA, a constituição de bancos de células estaminais para programas de transplantação ou quaisquer outras finalidades terapêuticas” (art. 9.º da Lei n.º 32/2006) (Portugal, 2006). Apesar do reconhecimento da necessidade de se protegerem os direitos dos cidadãos em face do desenvolvimento científico e tecnológico no âmbito dos usos sociais de embriões humanos, a ponderação relativa destes elementos em inter-relação carece de regulamentação mais específica. As decisões do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida quanto à legitimidade dos projetos de investigação em embriões humanos e aos critérios de ponderação de bens jurídicos nos casos concretos assumirão especial relevo na contextualização dos enunciados normativos e dos significados morais da experimentação em embriões humanos (Svendsen, Koch, 2008) em Portugal. Em abril de 2008, a Sociedade Portuguesa de Células Estaminais e Terapia Celular lançou um desafio ao Governo português - legislar sobre a investigação científica com células estaminais (Machado, 2008). Restringir o debate público à regulação jurídico-legal das novas tecnologias médicas de reprodução assistida pode promover a imagem de que as questões relativas à respectiva legitimidade e aceitabilidade moral e ética já foram respondidas (Scully, Rehmann-Sutter, 2006). A investigação científica em embriões humanos depende da existência de casais que consintam em doar seus embriões excedentes para esse efeito. Engloba, portanto, visões e experiências que não surgem no debate público, nos discursos éticos e nos processos de decisão política. Urge desenvolver novas formas de regulamentação dos usos sociais de embriões humanos que incorporem as contribuições da medicina e do direito em articulação com diversas modalidades de participação pública, e mobilizem as experiências e os conhecimentos “leigos” e locais dos atores sociais que são afetados ou expostos nas suas implicações atuais e futuras (Haimes, Luce, 2006), num percurso para uma biopolítica democrática (Nunes, 2003). Defende-se a criação de um novo movimento social no âmbito das tecnologias médicas de reprodução assistida, constituído a partir de uma experiência comum - a tentativa de conceber por intermédio destas tecnologias, e não com base na inexistência de filhos biológicos e/ou de um diagnóstico médico. As experiências de vivência pessoal destas tecnologias consubstanciam-se como um importante elemento agregador de interesses, conhecimentos e ações capaz de proporcionar uma mobilização coletiva destes cidadãos. A compreensão pública deste movimento social em termos de tecnossociabilidade (Oudshoorn, 2004, p.353), e não de biossociabilidade (Rabinow, 1991), poderá configurar uma modalidade de cidadania cognitiva de base científica e tecnológica, mas com capacidade de incorporar a heterogeneidade de formas de conhecimentos e de práticas e de proporcionar a expressão dos cidadãos “leigos” em diversos espaços públicos, nomeadamente no Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.

Considerações metodológicas Esta pesquisa foi aprovada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Portugal), sendo cumpridas as regras e orientações éticas que constam 34

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SILVA, S.; MACHADO, H.

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artigos

dos Códigos Deontológicos da Associação Portuguesa de Sociologia e da International Sociological Association, assim como as normas da lei de proteção dos dados pessoais (Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro) (Portugal, 2006). Foram enviadas cartas de apresentação do projeto que enquadra esta investigação a cada um dos grupos-alvo deste estudo (juristas, médicos e “leigos”) solicitando a concessão de uma entrevista. No caso das mulheres e dos homens que conceberam ou tentaram conceber por meio do recurso de tecnologias médicas de reprodução assistida, esta carta foi enviada a um conjunto de vinte colegas e amigos da primeira autora, pedindo a sua difusão junto de outras pessoas, numa lógica de bola de neve. Quanto aos médicos, foram endereçadas 19 cartas a responsáveis clínicos de centros de medicina da reprodução existentes em Portugal em outubro de 2005. Dirigiram-se, ainda, 13 cartas a juristas selecionados por três especialistas em Direito da Saúde e Direito da Família em Portugal a partir da enumeração de todos os juristas que tinham publicações na área das tecnologias médicas de reprodução assistida neste país. O recrutamento dos entrevistados finalizou quando não emergiram novos elementos básicos nos meta-temas previamente definidos (Guest, Bunce, Johnson, 2006). Realizaram-se 33 entrevistas semiestruturadas com amostra em nível nacional, distribuídas da seguinte forma: (a) 15 entrevistas a mulheres e homens com, pelo menos, uma experiência pessoal de tratamentos que envolvessem tecnologias médicas de reprodução assistida - dez entrevistas foram individuais (nove mulheres e um homem) e cinco foram com casal, tendo decorrido entre julho de 2005 e fevereiro de 2006; (b) nove entrevistas com responsáveis clínicos das unidades de medicina da reprodução existentes em Portugal (três médicas e seis médicos), que ocorreram entre novembro de 2005 e fevereiro de 2006; (c) e nove entrevistas com juristas que tinham trabalhos publicados sobre tecnologias reprodutivas (três mulheres e seis homens), ocorridas entre janeiro e março de 2007. As entrevistas tiveram uma duração média de sessenta minutos e realizaram-se na casa ou no local de trabalho dos entrevistados. Todas as entrevistas foram gravadas e integralmente transcritas. Trata-se de entrevistas semiestruturadas, cujo roteiro de questões abertas tinha quatro partes: (a) descrição das contingências e (in)certezas associadas às tecnologias médicas de reprodução assistida e à sua execução; (b) interpretação das estratégias retóricas médicas, jurídicas e “leigas” em torno do estatuto do embrião humano e respectivos processos de articulação e demarcação; (c) explicação das principais modalidades de oferta, acesso e utilização das tecnologias médicas de reprodução assistida em Portugal; e (d) percepção das repercussões da criopreservação de embriões humanos ao nível da reconfiguração dos direitos e deveres de cidadania. Os participantes “leigos” eram portugueses, heterossexuais e casados. A faixa etária variava entre trinta e 43 anos, sendo o limite inferior das idades correspondente a trinta anos para uma mulher e, o limite superior, a um casal, ambos com 43 anos. Os grupos etários mais representados foram os dos indivíduos de 35 a 39 anos (n=9) e de 30 a 34 anos (n=8). Relativamente ao nível de escolaridade, as categorias mais representadas foram a graduação (n=11), o 1.º ciclo (n=3) e o 2.º ciclo (n=3), havendo dois homens com o mestrado e um homem com doutorado. Cinco entrevistados são profissionais de nível intermédio, havendo ainda cinco indivíduos que pertencem ao pessoal dos serviços e vendedores, seguidos dos quadros superiores da administração pública (n=4) e pelos dirigentes e quadros superiores de empresas (n=3). Há ainda três homens especialistas das profissões intelectuais e científicas. Os rendimentos líquidos mensais dos quinze agregados familiares distribuemse da seguinte forma: dois agregados tinham um rendimento situado entre mil e dois mil euros; sete encontravam-se entre dois mil e três mil euros; e seis usufruíam de mais de três mil euros por mês. A análise de conteúdo das entrevistas, a interpretação dos resultados e a elaboração de conclusões basearam-se numa abordagem eminentemente qualitativa, tentando associar a análise substantiva à elaboração teórica (Becker, Bryman, 2004). Os dados recolhidos foram sistematicamente codificados e sintetizados por meta-temas, selecionando-se as expressões mais ilustrativas das relações, práticas e imagens sociais dos entrevistados em torno do estatuto dos embriões humanos. Este é um estudo de caso, portanto as conclusões apresentadas são válidas apenas no contexto em que se encontram inseridas. Os nomes indicados nos excertos transcritos não correspondem aos dos entrevistados, de modo a garantir o anonimato dos mesmos.

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A compreensão jurídica, médica e “leiga” do embrião...

Tabela 1. Algumas características dos entrevistados “leigos”, segundo o sexo.

Mulheres

Homens

TOTAL

Grupo etário 30-34 anos

6

2

8

35-39 anos

6

3

9

40-44 anos

2

1

3

Doutoramento

1

1

Mestrado

2

2

Nível de escolaridade

Graduação

11

2.º ciclo

1

2

11 3

1.º ciclo

2

1

3

3

3

Profissão Profissões intelectuais e científicas Dirigentes e quadros superiores de empresas

3

3

Quadros superiores da administração pública

4

Pessoal dos serviços e vendedores

4

1

4 5

Profissionais de nível intermédio

3

2

5

Resultados Os discursos jurídicos Os discursos produzidos pelos juristas entrevistados em torno do estatuto do embrião ilustram, de forma particularmente elucidativa, o estabelecimento de fronteiras nítidas entre o domínio científico e o domínio jurídico, sobretudo a partir da enunciação de uma das principais características do paradigma científico moderno - a distinção entre natureza e pessoa humana (Santos, 2000; Salem, 1997), a qual parece definir os limites tênues em que começa a intervenção do ponto de vista jurídicolegal. À estranheza inicial manifestada pelos juristas entrevistados perante a questão “como é que define um embrião”, tende a suceder-se uma invocação de elementos de cunho biológico, os quais são usados como uma justificativa para remeter a responsabilidade desta definição para a comunidade científica (Mulkay, 1994a), sendo tarefa do direito tutelar a personalidade jurídica das pessoas a partir do “nascimento completo e com vida”, conforme se constata no seguinte trecho de entrevista: Como é que eu defino um embrião? Posso ir ao dicionário? […] Do ponto de vista científico? É o início do ser humano. […] Agora do ponto de vista jurídico, o embrião não é o início de um ser humano. A pessoa só é pessoa com nascimento completo e com vida, só aí é que tem personalidade jurídica. (Entrevista com uma jurista)

Os juristas entrevistados entendem que o embrião humano merece proteção por parte do direito, apesar de este não ter personalidade jurídica. De acordo com o discurso destes atores sociais, o direito respeita a dignidade dos embriões humanos ao reafirmar a necessidade de se evitar a criação de embriões excedentários e ao estipular as normas que regulam os seus destinos, as quais privilegiam os destinos que envolvem um projeto parental. 36

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SILVA, S.; MACHADO, H.

artigos

Os discursos médicos À semelhança dos juristas, também os médicos entrevistados tendem a estabelecer uma associação direta entre a definição de embrião e a definição de pessoa e vida humana. Em termos sintéticos, a posição da grande maioria dos médicos entrevistados a propósito do estatuto do embrião consiste em considerar o embrião como uma entidade que tem um hipotético potencial de vida e que merece respeito, mas não num sentido absoluto, uma vez que não é uma “pessoa humana”: O meu entendimento é que estes embriões devem ser muito respeitados. É material biológico, são células humanas, evidentemente, é um ser vivo já. Agora um ser humano? O ser humano que eu tenho à minha frente são os elementos do casal. A partir daí, o meu entendimento é de que deve haver respeito pelo embrião, mas de modo algum desvalorizar o papel da pessoa em relação ao embrião, ou seja, privilegiar estas células em detrimento do casal. (Entrevista com médico)

O trecho de entrevista acima transcrito subordina o respeito médico pelos embriões aos interesses e direitos dos casais a partir do estabelecimento de uma diferença entre o que são “células humanas” ou “seres vivos” (os embriões) e “pessoas humanas” ou “seres humanos” (o casal). Esta distinção assenta sobretudo em referências de cunho biológico, em especial o recurso aos conceitos de embrião viável e inviável, ou seja, à promoção da ideia de que nem todos os embriões humanos, sejam eles in vivo ou in vitro, conseguem desenvolver-se até se transformarem em seres humanos, havendo por isso embriões inviáveis que, apesar de poderem vir a ser pessoas humanas, a sua natureza parece impedi-los de concretizar tal potencialidade. A noção de viabilidade é muitas vezes articulada com a concepção de continuidade da vida humana, segundo a qual o indivíduo surge gradualmente e, com ele, a valorização dos seus direitos, conforme atesta o seguinte trecho de entrevista: A partir do momento em que há a fusão do material genético, há um embrião. […] Agora o momento exacto… isso não posso dizer. Se quer abordar a outra questão, que é o conceito de vida, são coisas que, para mim, são muito claras. A vida não começa, a vida continua. […] Claro que esse valor é máximo quando a gente nasce; será menos enquanto está a ser gerado; menos ainda enquanto está na fase dito pré-embrião; menos ainda quando está na fase de óvulo fecundado; com certeza menos ainda quando está na fase de gâmeta. […] Para mim, é o conceito biológico de continuidade da vida. (Entrevista com médico)

A conjugação eventualmente complexa e contraditória entre os conceitos de vida, de pessoa e de embrião humano parece ser resolvida pelos médicos entrevistados a partir da reconfiguração dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos como elementos que simbolizam o respeito da medicina e da tecnologia, quer pelo embrião humano, quer pela vida humana (onde se incluem os casais). Uma posição minoritária entende que a criopreservação de “ovócitos fecundados” soluciona esta problemática, uma vez que estes ainda não são perspectivados como embriões. O trecho de entrevista que se apresenta a seguir sintetiza o discurso da maioria dos médicos entrevistados em face desta questão, os quais recorrem à imagem da criopreservação de embriões, ao prolongamento da cultura in vitro de embriões e ao aprofundamento dos conhecimentos médicos no âmbito da indução da ovulação como os procedimentos médicos e técnicos que atestam a preocupação dos médicos com os embriões humanos e com a vida humana, em simultâneo: A minha posição é a de congelar os [embriões] que são de qualidade. […] E, portanto, a ideia é minimizar, de acordo com as características que se conhecem do casal, dos gâmetas, dos óvulos, etc., minimizar os riscos de haver embriões excedentários, mas inevitavelmente, uma vez ou outra, há mais embriões. […] Mas depois, numa futura tentativa, [existe] a possibilidade de ir fazendo transferências sem ter que passar pelo que não é um conjunto de incómodos ligeiros, é um conjunto de incómodos e de pesos psicológicos e físicos e económicos [o preço dos medicamentos] razoável. (Entrevista com médico) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A compreensão jurídica, médica e “leiga” do embrião...

De acordo com os médicos entrevistados, a criopreservação de embriões possibilita uma futura concretização do seu potencial de vida e contribui para atenuar os custos psicológicos, físicos e econômicos suportados pelas mulheres e pelos homens que recorrem a tecnologias médicas de reprodução assistida; a expansão do prolongamento da cultura in vitro de embriões humanos até ao quinto dia favorece uma seleção mais apurada entre os embriões viáveis e os inviáveis (uma vez que estes últimos vão deixando de evoluir) e proporciona uma avaliação mais adequada da qualidade dos embriões; e o aprofundamento do conhecimento médico sobre as características dos gâmetas, em particular dos óvulos, e dos procedimentos envolvidos na estimulação da ovulação, podem contribuir para restringir o número de embriões excedentários e/ou supranumerários. Os médicos entrevistados entendem ainda que o destino preferencial dos embriões humanos in vitro que parecem não ter a possibilidade de serem envolvidos num projeto parental deve ser a sua utilização em prol da humanidade e de outros casais, como, por exemplo, na formação dos profissionais em biologia ao nível do diagnóstico genético pré-implantação: Estamos a treinar pessoal para começar a fazer o diagnóstico pré-implantatório e estamos a usar os [embriões] […] que têm muitas mais células do que aquelas que deviam ter. […] De resto, só os que já estavam aí há mais de cinco anos e que foram dados como abandonados é que foram também usados, mas eram pouquinhos, esses; por acaso, tinha dado jeito que fossem mais. (Entrevista com médica)

Na procura do equilíbrio entre uma perspectiva técnico-científica e uma perspectiva humanista, os discursos dos médicos entrevistados tendem a enfatizar algumas estratégias de reparação dos potenciais riscos produzidos pelos procedimentos médicos e técnicos em torno dos embriões, que parecem simbolizar a garantia de presença de humanismo em todas as intervenções médicas e técnicas (Carapinheiro, 1991).

Os discursos “leigos” O seguinte trecho de entrevista refere-se a um casal que decidiu inseminar apenas o número de ovócitos equivalente ao número de embriões a serem transferidos para o útero da mulher, e ilustra de forma exemplar a complexidade das visões em torno dos embriões humanos e a eventual tensão entre as representações médicas, jurídicas e “leigas” neste domínio. O elemento masculino entrevistado refere-se à “pressão” que sentiu, por parte da equipe médica, para que trabalhassem com a perspectiva de existência de embriões excedentários como consequência “normal” das aplicações das técnicas de reprodução medicamente assistidas, que parece ter como principal objetivo o aumento da probabilidade de “sucesso” por meio da seleção dos “melhores” embriões: Nós perguntamos e eles [os médicos] disseram ‘ai nós não podemos implantar mais de três, por causa das gravidezes de gémeos, que hoje em dia não deixam e não sei quê’. E nós dissemos ‘está bem; então nós não queremos que fecundem mais de três’. Aí houve um bocadinho de pressão para que não fosse assim. [E: Pressão da parte de quem?] Da parte dos médicos. […] E eles depois respeitaram isso, mas houve ali um bocadinho tentativa de ‘ah, mas já que vai estimular, porque é que não estimula mais, depois tem mais, escolhem-se os melhores e a probabilidade aumenta’. […] Porque pode haver pessoas informadas que nessa relação médicodoente se sintam tão menos que, apesar de tudo, dizem que o senhor doutor é que tem razão. E chegamos a comentar isso, achamos um bocadinho incrível esta pressão. Percebemo-la e a nossa leitura era ‘ele [o médico] quer ter mais sucesso’. (Leandro, 36 anos, doutoramento, gestor numa empresa de biotecnologia)

Esta descrição ilustra um discurso alternativo minoritário que questiona o desenho da intervenção clínica proposta ao querer limitar o número de ovócitos inseminados com vistas a evitar a existência de embriões excedentários. Nas entrevistas realizadas, registra-se, ainda, um outro caso de socialização 38

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SILVA, S.; MACHADO, H.

artigos

da implementação clínica (Webster, 2002, p.448) com o mesmo objetivo: trata-se de um aluno de doutoramento em ciências econômicas que propôs, à médica que acompanhava o casal, a realização de uma fertilização in vitro sem estimulação ovárica de forma a evitar os embriões excedentários. Estas modalidades de participação no delineamento das estratégias de intervenção médica advêm de dois homens com níveis de escolaridade elevados (um com doutorado e um outro em doutoramento), e parecem exigir procedimentos adequados aos valores culturais e às expectativas sociais dos entrevistados. No entanto, a maioria dos entrevistados “leigos” concorda com a criopreservação de embriões, de preferência com vistas à sua utilização posterior por parte da mulher que lhes deu origem, e considera-a como uma necessidade inevitável (Silva, 2008b). O relato de uma das mulheres entrevistadas sobre a sua decisão de criopreservar os embriões excedentários evidencia a forma como esta opção pode ser reconfigurada como uma solução que elimina um “problema prático” (a existência de embriões excedentários) e contribui para adiar uma eventual tomada de decisão sobre um outro destino que não a utilização posterior por parte da mulher que lhes deu origem: A minha intenção era essa [criopreservar embriões excedentários]. Quer dizer, a gente na altura nem pensa muito. […] É um assunto para se decidir depois. Mas a ideia era sempre essa: se resultasse, um dia que eu quisesse ter mais filhos, ia ali buscar. Mas também me passava pela ideia a situação: imagine que eu tinha dois gémeos e depois vou querer ou não? E se eu não quisesse? Mas nunca procurei a resposta, porque não estava a pensar nisso. (Ana, 37 anos, licenciatura, engenheira civil)

As decisões dos casais sobre o destino dos embriões tendem a ser emocional e moralmente desafiadoras e normalmente envolvem diversos estados cognitivos ao longo de um certo período de tempo, sendo que as opções dos casais são sobretudo descritas como uma consequência inevitável da decisão de não querer optar pelos outros destinos possíveis, atendendo quer às suas crenças em relação aquilo que deve ser feito, quer às suas representações sobre a valorização relativa dos laços biogenéticos e/ou sociais na relação entre pais e filhos (Remoaldo, Machado, 2008; Lacey, 2007). De acordo com uma das mulheres entrevistadas, mãe de uma criança e grávida de dois gêmeos, as suas percepções sobre o destino dos embriões que estão criopreservados já sofreu diversas mudanças ao longo do tempo, e a decisão final ainda não foi tomada; mas o discurso em torno da mesma é construído por comparação relativa entre as alternativas disponíveis e enquadrado nas dificuldades que sente em poder vir a assumir uma posição pessoal que pode ser interpretada como uma recusa em ter um filho seu, ainda que esta se vislumbre como a única alternativa diante dos incomportáveis custos econômicos e da difícil reorganização da vida do casal se viesse a ter quatro filhos: Eu é que falo ao meu marido ‘depois, quando vier o quarto [filho]’ e ele diz que eu sou maluca […], porque não há verba, não há financiamento, não há capacidade de gestão. […] Eu não consigo dizer, mas gostava de lhe dizer assim ‘eu não quero’ [usar os embriões criopreservados]. […] Acho que não conseguia [doar]. No fundo, é um filho meu, não é? Acho que preferia ter que dizer ‘olhe, eu não quero, destruam ou para investigação’. Se me perguntasse enquanto estava a fazer o tratamento, se calhar eu dizia ‘não dá, deita-se fora’. (Custódia, 35 anos, licenciatura, economista)

A construção “leiga” do estatuto dos embriões humanos resulta de processos sociais complexos e heterogéneos, os quais estão associados a múltiplas atribuições de sentidos e significados quanto às suas decisões sobre o destino dos embriões excedentários. Nas narrativas sobre os estatutos e destinos dos embriões humanos feitas por casais envolvidos em tecnologias médicas de reprodução assistida, as suas ações e decisões são enquadradas em princípios morais que enunciam o que deve ser feito, o que aponta para a construção de uma representação destes casais como seres éticos (Haimes, WhongBarr, 2003).

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A compreensão jurídica, médica e “leiga” do embrião...

Ser ético em face da naturalização médico-jurídica do embrião humano Se os médicos e juristas enquadram o estatuto dos embriões humanos em categorias de índole biológica, técnica e/ou jurídico-legal (Luna, 2007a), já os potenciais pais estabelecem com os mesmos diversas relações ontológicas de índole afetiva, moral e social (Lacey, 2007; Svendsen, 2007; Parry, 2006; Mulkay, 1994a). Os embriões humanos in vitro não parecem diferir biologicamente dos embriões gerados pelo processo de concepção sem intervenção médica, mas localizam-se fora do corpo feminino na fase inicial da sua existência, podendo ser manipulados; e é precisamente o grau de controle que pode ser exercido sobre eles que produz incertezas éticas, jurídicas, morais e sociais (Mulkay, 1997). A fusão entre os corpos embrionários, a tecnociência e a biomedicina afigura-se como um dos exemplos mais recentes que ilustra o esforço ontológico na insistência de um mundo natural ou biológico (Franklin, 2006), ao qual o direito e a medicina parecem estar cada vez mais vinculados e subordinados. Este esforço ontológico reflete-se nas imagens sociais sobre o embrião humano, cujo estatuto médico e legal assenta, cada vez mais, na ideia de que há uma distinção entre a natureza e a pessoa humana, o que é sustentado pelas representações sociais sobre o estatuto objetivo, racional e desinteressado da tecnociência e da biomedicina, o que pode contribuir para que os embriões sejam cada vez mais submetidos a uma medicalização prematura associada à extensão espaço-temporal das fronteiras da vida. A compreensão da crescente complexidade do enredo científico, tecnológico, jurídico-legal e cívico em que está envolvido o embrião humano in vitro revela as heterogeneidades, incertezas e contingências associadas à emergência de novos atores e de novos coletivos, que articulam humanos e não-humanos, tecnologias e instituições e que, sob a égide da biologia, tendem a obscurecer as relações sociais e familiares envolvidas na produção de embriões humanos. As unidades de reprodução assistida emergem como espaços dinâmicos e plurais de saberes, práticas e atores, que se constituem como conjuntos de natureza sociotécnica que podem ser reinventados de modo complexo em diferentes contextos socioecológicos de utilização, refletindo as relações sociais e as redes heterogêneas que envolvem a sua construção. Será possível combinar complexidade com equidade desde que as representações e as experiências “leigas”, as desigualdades no acesso à medicina e à tecnologia e as respectivas limitações, incertezas e riscos se tornem problemáticas centrais no biodireito e na bioética médica. A democracia da gestão passa ainda pelo delineamento de intervenções solidárias adequadas às necessidades e aos valores dos indivíduos concretos, pela resistência à privatização dos cuidados de saúde e pela garantia da sua qualidade e segurança.

Agradecimentos Aos juristas, médicos, mulheres e homens que entrevistamos e que conosco partilharam suas visões e experiências, nosso sincero obrigada. À Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Portugal), pelo apoio financeiro concedido a esta investigação mediante bolsa de doutoramento (SFRH/BD/10396/2002) e bolsa de pós-doutoramento (SFRH/ BPD/47020/2008).

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SILVA, S.; MACHADO, H.

artigos

Colaboradores Susana Silva responsabilizou-se pela preparação, condução e transcrição das entrevistas. Susana Silva e Helena Machado trabalharam juntas em todas as outras etapas de produção do manuscrito. Referências Andrews, L.B.; Elster, N. Regulating reproductive technologies. J. Legal Med., v.21, n.1, p.35-65, 2000. Becker, S.; Bryman, A. (Eds.). Understanding research for social policy and practice: themes, methods and approaches. Bristol: Policy Press, 2004. BROWN, N.; WEBSTER, A. New medical technologies and society: reordering life. Cambridge: Polity Press, 2004. Carapinheiro, G. Médicos e representações da medicina. Sociol. Probl. Prat., n.9, p.27-41, 1991. Ettorre, E. Reproductive genetics, gender and the body. London: Routledge, 2002. Findlay, J.K. et al. Human embryo: a biological definition. Hum. Reprod., v.22, n.4, p.905-11, 2007. Franklin, S. The cyborg embryo. Theory Cult. Soc., v.23, n.7-8, p.167-87, 2006. Guest, G.; BUNCE, A.; JOHNSON, L. How many interviews are enough?: an experiment with data saturation and variability. Field Methods, v.18, n.1, p.59-82, 2006. Haimes, E.; Luce, J. Studying potential donors’ views on embryonic stem cell therapies and preimplantation genetic diagnosis. Hum. Fertil., v.9, n.2, p.67-71, 2006. Haimes, E.; Whong-Barr, M. Competing perspectives on reasons for participation and non-participation in the North Cumbria Community Genetics Project. In: Knoppers, B.M. (Ed.). Populations and genetics: legal and socio-ethical perspectives. Leiden: Brill Academic Publishers, 2003. p.199-216. Irwin, A. Constructing the scientific citizen: science and democracy in the biosciences. Public Underst. Sci., n.10, p.1-18, 2001. Johnson, M. Escaping the tyranny of the embryo? A new approach to ART regulation based on UK and Australian experiences. Hum. Reprod., v.21, n.11, p.2756-65, 2006. Lacey, S. Decisions for the fate of frozen embryos: fresh insights into patients’ thinking and their rationales for donating or discarding embryos. Hum. Reprod., v.22, n.6, p.1751-8, 2007. Luna, N. A personalização do embrião humano: da transcendência na biologia. MANA, v.13, n.2, p.411-40, 2007a. ______. Células-tronco: pesquisa básica em saúde, da ética à panacéia. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.11, n.23, p.587-604, 2007b. ______. Natureza humana criada em laboratório: biologização e genetização do parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Hist. Cienc., Saude - Manguinhos, v.12, n.2, p.395-417, 2005. ______. Pessoa e parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Rev. Estud. Fem., v.9, n.2, p.389-413, 2001. Machado, A. Sociedade portuguesa de células estaminais pede ao Governo para legislar sobre investigação nesta área. Público, 23 abr. 2008. Disponível em: <http://ww2. publico.clix.pt/print.aspx?id=1326783&idCanal=undefined>. Acesso em: 2 jan. 2009.

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A compreensão jurídica, médica e “leiga” do embrião...

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SILVA, S.; MACHADO, H.

artigos

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SILVA, S.; MACHADO, H. La comprensión jurídica, médica y “lega” del embrión en Portugal: ¿en línea con la biología? Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.3143, jul./set. 2009. Se pretende contribuir para el debate en torno de los procesos de circulación de conocimientos y sentidos entre especialistas y “legos” en lo que concierne al estatuto de los embriones humanos en Portugal. Se reflexiona sobre las expectativas y preocupaciones manifestadas respecto a la confianza, calidad, seguridad y eficacia de las tecnologías médicas de reproducción asistida. El estudio se basa en la realización de entrevistas individuales con la intención de explorar las complejidades, similitudes y diferencias entre las visiones y los valores de juristas, médicos y parejas implicados en tratamientos de fertilización in vitro. Se trata de un análisis cualitativo en un estudio de caso. Si los juristas y los médicos encuadran el estatuto de los embriones en categorías de índole biológica, técnica y / o jurídico-legal, las parejas establecen con ellos diferentes relaciones ontológicas de índole moral, afectiva y social; por lo que pueden ser representadas como seres éticos frente a la consideración médico-legal de los embriones.

Palabras clave: Estatuto del embrión humano. Legalización. Biología. Moralización. Recebido em 12/06/2008. Aprovado em 30/12/2008.

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artigos

Terapêuticas convencionais e não convencionais no tratamento do câncer: os sentidos das práticas religiosas

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Cristiane Spadacio1 Nelson Filice de Barros2

SPADACIO, C.; BARROS, N.F. Conventional therapeutics and non-conventional therapeutics for cancer treatment: the meanings of religious practices. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.45-52, jul./set. 2009.

It was sought to learn about the meanings within complementary and alternative medicine (CAM) use among patients undergoing treatment at the oncology service of the Clinical Hospital of Unicamp. For this, the following were analyzed: 1) how patients dealt with health/ disease; 2) the motivations and processes underlying the decision to use CAM; and 3) the sociability networks that influenced decisions regarding conventional and/ or unconventional cancer treatments. From the discourse of the eight patients interviewed, it was seen that CAM and religious services were important for constructing meanings for the following: the biological dimension of the illness, possibilities for cure, filling the void promoted by the biomedical model and searching for expanded care. Thus, religious practices were experienced by patients such that they constituted a strategy that legitimized and softened the uncertainty regarding questions of a moral, personal, social and physical nature, in relation to chronic oncological conditions.

Keywords: Cancer. Complementary therapies. Religiousness. Biomedicine.

Buscou-se apreender os sentidos do uso de Medicinas Alternativas e Complementares (MAC) por pacientes em tratamento do câncer no Serviço de Oncologia do HC/ Unicamp. Para tanto, analisou-se: 1) como os pacientes lidam com a saúde/doença; 2) as motivações e os processos subjacentes à decisão do uso das MAC; e 3) as redes de sociabilidades que influenciam na decisão pelo tratamento convencional e o não convencional do câncer. Verificou-se, com base no discurso de oito pacientes entrevistados, a importância do dispositivo e dos serviços religiosos para a construção dos sentidos sobre: a dimensão biológica da doença, as possibilidades de cura, o preenchimento do vazio promovido pelo modelo biomédico e a busca por cuidado ampliado. Assim, a prática religiosa foi vivenciada pelos pacientes constituindo-se como estratégia que legitima e ameniza a incerteza diante das questões de caráter moral, pessoal, social e, também, físico, relativas à condição oncológica crônica.

Palavras-chave: Câncer. Terapias complementares. Religiosidade. Biomedicina.

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* Elaborado com base em Spadacio (2008), pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas (processo no. 0127.0.146.000-07), financiada pelo CNPQ. 1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (DMPS/ FCM/Unicamp). Rua Tessália Vieira de Camargo, 126. Cidade Universitária, Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13.083-970. cris. spadacio@gmail.com 2 DMPS/FCM/Unicamp.

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Terapêuticas convencionais e não convencionais...

Introdução Este artigo apresenta parte dos resultados de uma dissertação de mestrado realizada com pacientes em tratamento do câncer no Ambulatório de Oncologia do Hospital Universitário da Universidade Estadual de Campinas (HC/Unicamp). O tema da pesquisa se insere num contexto mais amplo, o das Medicinas Alternativas e Complementares (MAC) e sua relação com o modelo médico dominante da biomedicina. De acordo com estudos internacionais, embora seja inegável o progresso científico e tecnológico da medicina moderna ocidental, contraditoriamente nota-se o crescimento exponencial do uso de práticas terapêuticas não biomédicas. É nesse contexto de ampliação de possibilidades terapêuticas que as medicinas alternativas e complementares vêm despertando o interesse de acadêmicos, profissionais, gestores de serviços de saúde, que buscam estudos com abordagem qualitativa, expandindo as fronteiras das informações quantitativas, quase sempre empenhadas em descrever: o uso das técnicas, a população consumidora e a evidência científica produzida sobre essas práticas (Tovey, 2007). Segundo Luz (2008), quando se pretende avançar na direção de práticas, valores e representação de saúde, é preciso levar em conta a multiplicidade e a diversidade de modelos e práticas ligadas tanto a saberes tradicionais ou constituintes da atualidade, quanto a sistemas médicos complexos. Nas palavras da autora, “diversidade, fragmentarismo, colagem, hibridismo e sincretismo, características culturais atribuídas à pós-modernidade, estão seguramente presentes no grande mercado social da saúde contemporânea” (Luz, 2008, p.10). Nesse contexto de diversificadas possibilidades terapêuticas e tendo em vista o crescimento no uso de MAC, inclusive por pacientes oncológicos, desenvolvemos a pesquisa intitulada: “Os sentidos das práticas terapêuticas convencionais e não convencionais no tratamento do câncer”. O objetivo foi apreender os sentidos do uso de MAC construídos por pacientes em tratamento do câncer no Serviço de Oncologia do HC/Unicamp. Para tanto, foram analisados: 1) como os pacientes lidam com o binômio saúde/doença na situação de doença oncológica; 2) as motivações para o uso das MAC no tratamento do câncer e os processos subjacentes à decisão do uso das MAC: sua seleção, interpretação, aquisição da informação sobre essas técnicas, que delimitam os sentidos; e 3) as redes de sociabilidades que influenciam na decisão pelo tratamento convencional e o não convencional do câncer. É na relação entre as medicinas alternativas e complementares e a biomedicina que algumas tensões podem ser evidenciadas. Tomamos a noção de campo no sentido bourdiano de espaço de disputas, no qual são delimitadas relações de poder e busca por legitimidade (Bourdieu, 2006). Nessa “disputa” temos, por um lado, o modelo da biomedicina, do saber médico-científico que faz parte da construção social e cultural de um saber instituído oficialmente; e, por outro lado, as MAC, um modelo em “paralelo” que se instaura como saber instituinte (Barros, 2002). É importante observar o fato de que um determinado sistema médico corresponde à expressão dos valores e da estrutura de uma sociedade, “portanto, os diversos tipos de sociedade produzem tipos diferentes de sistemas médicos e de comportamentos distintos com relação à saúde e à doença, conforme a ideologia dominante” (Helman, 2004, p.83). Assim, a biomedicina, alopática ou medicina científica, é o sistema médico oficial da cultura ocidental, sendo o setor de assistência à saúde sancionado legítima e legalmente, e caracterizado pela incorporação de alta tecnologia, por sua íntima relação com a indústria farmacêutica e contínuo processo de medicalização da sociedade (Mbongue et al., 2005). O sistema biomédico constitui-se, no Brasil, por profissionais médicos e de outras 13 carreiras, como: biologia, biomedicina, educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia, psicologia, terapia ocupacional e serviço social. Há, contudo, outros dois setores de assistência à saúde sobrepostos e interligados ao setor “profissional” do sistema biomédico, que são o setor “informal” e o “popular (folk)”. No setor informal, a principal arena da assistência à saúde é a família, caracterizando o setor como leigo, não profissional e não especializado na sociedade. No setor popular encontram-se os profissionais das medicinas tradicionais, que são sistemas formados por conhecimento técnico e procedimentos baseados nas teorias, crenças e experiências tradicionais usados para a manutenção da saúde e, também, para: prevenção, diagnose e tratamento de doenças físicas e mentais (OMS/WHO, 2000). 46

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SPADACIO, C.; BARROS, N.F.

artigos

No passado, as medicinas alternativas e complementares foram identificadas com as medicinas tradicionais, mas há algumas décadas vêm sendo diferenciadas, de forma que medicina complementar é aquela utilizada junto com a medicina convencional. Um exemplo de medicina complementar é a aromaterapia, usada para ajudar a diminuir o desconforto de pacientes em fase de pós-operatório; no Brasil, esse conceito ganha força a partir dos anos de 80, cujo significado busca a produção do conhecimento entre os polos oficial e alternativo (Barros, Nunes, 2006). A medicina alternativa é usada no lugar da medicina convencional. Um exemplo é o uso de dieta especial pelo paciente, em vez de se submeter à cirurgia, radioterapia ou quimioterapia, técnicas recomendadas pela medicina convencional. Esse conceito identifica um modelo de prática médica pautado na lógica da oposição ao modelo biomédico hegemônico, contudo, como definição polar, não foi feita, simplesmente, para contradizer a biomedicina. Esse movimento, delineado de fora da oficialidade, amplia as margens do pensamento no campo da saúde, deixando ver além da perspectiva restrita da biomedicina. Segundo Barros (2002), uma única definição de MAC é impossível, [...] primeiro porque a medicina alternativa quer dizer muitas coisas diferentes para muitas pessoas, segundo porque é composta de diferentes técnicas, modalidades e sistemas médicos e, finalmente, porque pode ser considerada como um conceito/ código que sinaliza várias mudanças no campo da saúde. (Barros, 2002, p.20)

Assim, as MAC adquirem diferentes significados, muitas vezes imprecisos, produzindo novas racionalidades e disputas de capitais que conformam políticas, serviços e práticas de cura. Isso fica mais evidente no estudo realizado por Barros e Nunes (2006), que identificou a seguinte tipologia: “tipo científico”, formado por um conjunto de conceitos que é tido, no campo da saúde, como oficial e que traz para a discussão o conceito de biomedicina; “tipo antitético”, identificado, no campo da saúde, como alternativo, pois sua prática é menos formalizada e está mais focada no universo simbólico do processo saúde-doença; e “novos sistemas terapêuticos”, conceitos que representam um conjunto de termos relacionados a práticas terapêuticas ou racionalidades médicas. No mesmo estudo, os autores destacam, ainda, que as MAC têm promovido a identificação e a construção de identidades sociais, orquestrando três conjuntos de atores: os que se opõem e lutam contra, os que se identificam e defendem, e os que estão/são indiferentes. De maneira geral, se a biomedicina tem seu paradigma pautado na redução biológica, as MAC trazem contribuições para: a reposição do sujeito doente como centro do paradigma médico; a relação médico-paciente passa a ser fundamental para a terapêutica; busca de meios terapêuticos simples, ou seja, não baseados em grandes tecnologias; busca da autonomia do paciente; busca da saúde, e não mais a doença como centro do paradigma médico (Tesser, Luz, 2002; Barros, 2000). Segundo Tovey (2007), esses são elementos da tensão dialética intrínseca à relação entre biomedicina e MAC, uma vez que, por um lado, há uma individuação proposta pelas MAC e, por outro, o processo de despersonalização trazida pelo cuidado biomédico. Atualmente, a discussão sobre as medicinas alternativas e complementares extrapola a esfera médica e instala-se no campo da saúde, com a sua multiplicidade e diversidade de profissionais, modelos, representações, saberes, técnicas e práticas. Sendo, portanto, plausível a substituição daquela terminologia pela das “práticas alternativas e complementares”, que inclui, por exemplo, as práticas religiosas entre aquelas voltadas para o cuidado e a cura. Dessa maneira, a proposta deste artigo é refletir sobre interfaces que auxiliam na reflexão teórica e metodológica da existência de práticas religiosas nos serviços de saúde, enquanto processos de negociação dos sujeitos frente a um evento de doença crônica.

Metodologia Os sujeitos desta pesquisa foram selecionados com base nos resultados de um estudo quantitativo, realizado em 2004 no Serviço de Oncologia do HC/Unicamp, que teve como intuito identificar, nos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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pacientes em tratamento do câncer, as práticas não ortodoxas mais utilizadas e qual o perfil dos pacientes que as utilizam. Dos 89 pacientes entrevistados anteriormente, foram selecionados 21 que: declararam utilizar MAC, estavam em acompanhamento no HC/Unicamp e tinham diagnóstico de cura por dois anos. Entre os 21 possíveis entrevistados, foi detectado que oito haviam falecido, dois não aceitaram ser entrevistados e outros três não foram encontrados. De forma que restaram oito pacientes para serem entrevistados. Para apreender os sentidos construídos por pacientes em acompanhamento do tratamento do câncer, sobre sua experiência terapêutica e o uso de práticas diferentes das preconizadas no tratamento convencional, foi utilizada a entrevista em profundidade, que é uma “técnica privilegiada de comunicação” e permite identificar a trajetória e as modificações desenvolvidas pelos pesquisados (Minayo, 2006). Da análise do material coletado emergiram as seguintes categorias analíticas: a) Itinerários pelos serviços de saúde; b) Saúde-doença: construções e percepções; c) O tratamento; d) Serviço de Saúde da Unicamp; e) Outros tratamentos – práticas religiosas e alimentares; f) Redes de Sociabilidade. Em um segundo momento, após a identificação das categorias nos discursos originais dos pacientes, procedeu-se à construção de novas narrativas, agora compostas pelos discursos dos pacientes, das interpretações analíticas e das observações da pesquisadora. Julga-se que esse exercício foi crucial, pois propiciou a imersão da pesquisadora nos dados coletados, de onde emergiu o próprio exercício da escrita (Goldman, 2003). O uso da técnica de construção e análise de narrativas nos estudos sobre enfermidades crônicas é fundamental, pois permite a compreensão do outro e de seus projetos de vida. Porém, essas narrativas pessoais não podem ser descoladas das grandes narrativas proporcionadas pela ciência médica, enquanto uma lógica operatória de ordenação da experiência cotidiana e de resposta à doença na modernidade tardia (Guidens, 2002). Assim, nesta pesquisa, foram construídas narrativas na intenção de dar voz ao sujeito, fornecendo possibilidades discursivas emancipatórias para além do discurso biomédico, propiciando a construção dos sentidos da experiência, do sofrimento e das escolhas terapêuticas, por parte dos pacientes que trazem à tona outros significados da saúde e do próprio adoecimento, com ou apesar do discurso da biomedicina. O estudo foi elaborado de acordo com os princípios éticos enunciados na declaração de Helsinki III (2000) e o protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FCM/Unicamp (processo no. 0127.0.146.000-07).

Resultados e discussão Este artigo pretende-se um trabalho qualitativo que, com uma pequena população selecionada, busca aprofundar a experiência do uso de MAC no tratamento do câncer, contribuindo para o debate sobre a importância das práticas religiosas e da espiritualidade no campo da saúde brasileiro. Os entrevistados são quatro homens e quatro mulheres; a maioria professa a religião evangélica (três pacientes), dois são católicos e dois são espíritas, sendo que um dos entrevistados relatou não ter religião, embora acredite em Deus e em outras “energias” cósmicas. Seis dos oito pacientes são casados, sendo um solteiro e um divorciado. As idades variam entre 36 e 75 anos, e a grande maioria encontra-se na faixa dos cinquenta anos. Quanto à ocupação, cinco pacientes são aposentados (devido à doença, em todos os casos) e três pacientes declaram-se do lar. Refletir acerca dos dispositivos religiosos enquanto prática de cuidado e cura é fundamental neste trabalho, pois, de acordo com os pacientes entrevistados, eles integram o tratamento, embora não façam parte nem da biomedicina, nem das MAC. Antes de desenvolver a relação entre religião e cura, gostaríamos de chamar atenção para a doença crônica e suas especificidades. De maneira geral, cronicidade tem algumas características peculiares, que acabam influenciando no comportamento e na vida das pessoas acometidas. A doença crônica e a experiência que ela representa vão além da esfera médica e cumprem um determinado papel em todos os lugares da vida social, criando novas sociabilidades. 48

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O “câncer”, por sua vez, é o nome genérico de uma série de doenças distintas com uma multiplicidade de causas e formas de tratamento e prognósticos. Há todo um universo simbólico que permeia o processo de construção social desta doença, uma vez que sua vivência e experiência não se esgotam na dimensão natural ou biológica do fenômeno. Historicamente, o câncer é visto como uma doença que leva fatalmente à morte e, apesar dos avanços na medicina, ainda carrega o estigma de ser uma doença fatal. Segundo Sontag (1984, p.9), “é o câncer que desempenha o papel de enfermidade cruel e furtiva, um papel que conservará até que, algum dia, sua etiologia se torne tão clara e seu tratamento tão eficaz quanto se tornaram a etiologia e o tratamento das tuberculoses”. Nesse sentido, a experiência da enfermidade crônica pode ser apreendida de diversas maneiras: nas percepções e estratégias de convivência; no processo de perda do self, promovido pelas mudanças na autoimagem e no corpo; na ruptura biográfica; nas experiências estigmatizantes; e, também, no âmbito da construção de identidade coletiva da doença crônica (Canesqui, 2007). No caso específico da doença oncológica, há o que Bury (1982, apud Canesqui, 2007) chama de “ruptura biográfica”, processo pelo qual as estruturas da vida cotidiana, seus significados e seus saberes passam por rupturas, o que faz, segundo o autor, com que o paciente busque diferentes recursos para enfrentar uma nova situação. A prática religiosa é, portanto, um dos recursos acessados a partir da “ruptura biográfica”, que permite ao paciente ampliar sua capacidade de negociação, constituindo-se como estratégia que legitima e ameniza a incerteza diante da enfermidade crônica. Isso foi observado, por exemplo, no discurso de um dos entrevistados, quando, embora estivesse em um dos melhores serviços oncológicos do país, atribui sua possível cura não ao médico, mas a Deus. Eu falei algumas coisas com Deus quando eu tava no Hospital, isso eu confesso pra você: “Deus, ou o Senhor me leva pra eternidade, sei lá, ou então o Sr. me deixa são nessa terra pra eu continuar a minha missão aqui”. Porque na verdade ninguém quer sofrer. Foi o que eu falei pra minha esposa, o câncer... Câncer é difícil, é quase igual AIDS, tem tratamento mas não é todo mundo que volta a viver. Se é câncer a gente vai encarar e vai ver até onde vai dar. (OD)

Como três dos pacientes entrevistados são evangélicos, dois católicos, dois espíritas e um relata não ter religião, mas muita fé em Deus, pode-se afirmar que todos os pacientes, com suas lógicas religiosas específicas, podiam identificar na religião uma referência para ajudar no tratamento do câncer. Essa relação direta foi identificada, de forma que a religião e a cura apareceram imbricadas. Ressalta-se que essa relação direta se faz por ser uma doença da magnitude do câncer e na forma de uma estratégia de reinterpretação da experiência da doença que modifica a maneira de o doente e a comunidade perceberem o problema. Assim, de maneira geral, as terapias religiosas curam ao impor ordem sobre a experiência caótica do sofredor e daqueles diretamente responsáveis por ele (Rabelo, 1999; Csordas, 1983; Comaroff, 1980; Kleinman, 1980; Kapferer, 1979; Lévi-Strauss, 1967; Turner, 1967). Minayo (1998) também chama atenção para este aspecto ao formular que o fenômeno religioso cumpre o papel de facilitar às pessoas a compreensão do inexplicável e a aceitação do que nunca fora imaginado, em caso de situações limites, como podemos verificar no caso do câncer. Assim, a autora recorre a Berger (1996) para assinalar que “toda ordem sagrada é uma reafirmação contra o caos [e que em] sua ótica, o ser humano, através da religião, é levado a aceitar o sofrimento e até a morte, na medida em que possa ter um significado convincente para os momentos cruciais da vida” (Minayo, 1998, p.58). Como é evidente para os nossos entrevistados que a prática religiosa possui caráter curativo no tratamento do câncer, é interessante notar como consideram o recurso religioso como uma “prática terapêutica de cura”, identificada com “outras formas de tratamento” e crucial para o sucesso no tratamento convencional e superação da doença. Assim, ficou evidenciado que imputam no sagrado um caráter terapêutico, como no extrato: “A religião trouxe muitas coisas. Ela me ajudou a enfrentar a doença, me ajudou muito. Ela me deu tranqüilidade pra enfrentar tudo isso, fosse o que fosse. E se preparando para o que der e vier!” (JP). Os caminhos religiosos percorridos pelos pacientes encontram-se em conformidade com as especificidades de cada religião. Assim, os dois pacientes espíritas utilizam-se primeiramente de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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uma “cirurgia espiritual”, de caráter curativo, passando, num segundo momento, para tratamentos como a cromoterapia e a meditação, a fim de ajudar a controlar os efeitos colaterais do tratamento convencional. No caso dos pacientes evangélicos, as práticas de cura são evocadas cotidianamente, durante os cultos ou em eventuais visitas dos “irmãos” de igreja para uma oração de cura domiciliar, sempre evocando a presença de “Deus”, como fica claro no extrato a seguir: “[...] então é essa hora aí que a gente tem que se apegar mais em Deus, porque é só Deus mesmo” (JF). Os entrevistados desta pesquisa são pessoas imersas no contexto do atendimento médico de um hospital universitário onde: “suas queixas são reduzidas a um mal fisiológico desagregado do paciente portador de uma experiência histórica e existencial e que traz em si um significado” (Valença, Fonseca, 2006, p.106). Desta forma, os pacientes relataram, por um lado, buscar o tratamento biomédico, embora sintam que ele os “esvazia” de seus vários significados sociais, circunscrevendo todo o processo em rota apenas ao corpo e à doença. Por outro lado, todos os pacientes entrevistados relataram experiência com as práticas alternativas e complementares, na medida em que elas operam com uma lógica que inclui a espiritualidade, ou com as práticas tradicionais, que reconhecem e reforçam o uso das práticas religiosas enquanto reordenadoras do mundo e produtoras de sentidos. Assim, pode-se afirmar que o sentido do uso dos dispositivos religiosos pelos pacientes em tratamento de condições crônicas em geral e do câncer especificamente é de preenchimento do “vazio de significados” promovido pelo cuidado biomédico. Em outras palavras, se o conceito de cura entra no vocabulário médico alopático apenas como uma das etapas do cuidado reduzido ao corpo; a cura simbólica é promovida pela força da sugestão e da fé, por meio do cuidado das questões de caráter moral, pessoal, social e, também, físico, relativos ao processo de saúde e doença.

Considerações finais Com base na articulação de conceitos e metodologias já consagrados pelas Ciências Sociais, desenvolvemos a construção dos sentidos das práticas terapêuticas convencionais e não convencionais no tratamento de pacientes com uma enfermidade crônica: o câncer. Verificou-se como, a partir da fala dos pacientes entrevistados, os dispositivos religiosos e os serviços religiosos fazem parte da construção dos sentidos do aparecimento biológico da doença e das possibilidades de cura; além dos condicionantes sociais e pessoais que determinam as escolhas terapêuticas desses pacientes. Constatou-se que o modelo biomédico “esvazia” uma esfera fundamental do cuidado para os pacientes, que buscam, conforme seu arcabouço sociocultural, experiências em práticas não biomédicas, pois, assim, alcançam uma perspectiva ampliada do cuidado. A sociologia das MAC abre-se, portanto, como um campo de debates sobre a necessidade da coexistência de diferentes práticas de cuidado e cura e sua importância para os serviços públicos de saúde. Sobretudo, a partir de problemáticas que devem ser consideradas na área da saúde coletiva, como: a pluralidade terapêutica, a autonomia dos pacientes, a integralidade do cuidado e a formação de profissionais em diferentes práticas não convencionais, entre muitas outras. O campo de conhecimento que se abre com a condição crônica e o uso de práticas convencionais e não convencionais é de fundamental importância para os serviços públicos de saúde e deixa ver que muito ainda deve ser investigado em relação: à escolha terapêutica dos pacientes; aos itinerários pelos serviços de saúde; à delimitação de conceitos que sistematizem a pletora de práticas novas e velhas de cuidado e cura; e ao desenvolvimento de políticas públicas de saúde fundadas na inclusão social e na diferença.

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artigos

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ADAM, P.; HERZLICH, C. Sociologia da doença e da Medicina. Bauru: Edusc, 2001. ALVES, P.C.; SOUZA, I.M. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: RABELO, M.C.; ALVES, P.C.; SOUZA, I.M. (Orgs.). Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p.125-38. (Série Antropologia e Saúde). BARROS, N.F. Da medicina biomédica à complementar: um estudo dos modelos da prática médica. 2002. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. 2002. ______. Medicina complementar: uma reflexão sobre o outro lado da prática médica. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2000. BARROS, N.F.; NUNES, E.D. Complementary and alternative medicine in Brazil: one concept, different meanings. Cad. Saude Publica, v.22, n.10, p.2023-8, 2006. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. CANESQUI, A.M. Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2007. COMAROFF, J. Healing and the cultural order: the case of Barolong boo Ratshidi. Am. Ethnol., v.7, p.637-57, 1980. CSORDAS, T. The rethoric of transformation in ritual healing. Cult. Med. Pschiatr., v.7, p.333-75, 1983. GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. GOLDMAN, M. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Rev. Antropol., v.46, n.2, p.445-76, 2003. HELMAN, C.G. Cultura, saúde & doença. São Paulo: Artmed, 2003. KAPFERE, B. Entertening demons. Sociol. Anal., v.1, p.108-52, 1979. KLEIMAN, A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press, 1980. LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. LUZ, M.T. As novas formas de saúde: práticas, representações e valores culturais na sociedade contemporânea. Rev. Bras. Saude Familia, v.9, p.8-19, 2008. MBONGUE, T.B. et al. “Medicamentation” of society, non-diseases and non-medications: a point of view from social pharmacology. Eur. J. Clin. Pharmacol., v.61, n.4, p.309-13, 2005. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2006. ______. Representações da cura no catolicismo popular. In: ALVES, P.; MINAYO, M.C.S. (Orgs.). Doença e saúde: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p.57-73. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE – OPAS. Estrategía de la OMS sobre Medicina Tradicional 2002-2005, 2005. Disponível em: <http://www.opas.org.br>. Acesso em: 11 jun. 2008. RABELO, M.C. Religião e cura: algumas reflexões sobre a experiência religiosa das classes populares urbanas. Cad. Saude Publica, v.9, n.3, p.316-25, 1993. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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SAADA, J.F. Ser afetado. Cad. Campo, n.13, p.155-61, 2005. SPADACIO, C. Os sentidos das práticas terapêuticas convencionais e não convencionais no tratamento do câncer. 2008. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2008. SPADACIO, C.; BARROS, N.F. Uso de medicinas alternativas e complementares por pacientes com câncer: revisão sistemática. Rev. Saude Publica, v.42, n.1, p.158-64, 2008. Doi: 10.1590/S0034-89102008000100023. SONTAG, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1984. TESSER, C.D.; LUZ, M.T. Uma introdução às contribuições da epistemologia contemporânea para a medicina. Cienc. Saude Coletiva, v.7, n.2, p.363-72, 2002. TOVEY, P; CHATWIN, J.; BROOM, A. Tradicional, complementary and alternative medicine and cancer care: an international analysis of grassroots integration. London: Routledge Traylor & Francis Group, 2007. TURNER, V. The forest of simbols. Ithaca: Cornell University Press, 1967. VALENÇA, J.; FONSECA, A.B. Processos e percepções de cura a partir do levantamento da produção acadêmica brasileira sobre religião e saúde. Meditações – Rev. Cienc. Soc. Antropol. Saúde, v.11, n.2, p.99-112, 2006. WORLD HEALTH ORGANIZATION – WHO. Traditional medicne strategy. Geneva: WHO, 2002. Disponível em: <http://www.who.int>. Acesso em: 11 jun. 2008.

SPADACIO, C.; BARROS, N.F. Terapéuticas convencionales y no convencionales en el tratamiento del cáncer: los sentidos de las prácticas religiosas. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.45-52, jul./set. 2009. Se ha buscado aprehender los sentidos del uso de Medicinas Alternativas y Complementarias (MAC) por pacientes en tratamiento del cáncer en el Servicio de Oncología del Hospital Clínico de la Universidad de Campinas, estado de Sao Paulo, Brasil. Para tanto se ha analizado: 1) como los pacientes afrontan la salud / enfermedad; 2) las motivaci0nes y los procesos subyacentes a la decisión del uso de las MAC; y 3) las redes de sociabilidades que influencian en la decisión por el tratamiento convencional y el no convencional del cáncer. Se ha verificado, a partir del discurso de ocho pacientes entrevistados, la importancia del dispositivo y de los servicios religiosos para la construcción de los sentidos sobre la dimensión biológica de la enfermedad, las posibilidades de cura, la ocupación del vacio promovido por el modelo bio-médico y la busca por el cuidado ampliado. Así, la práctica religiosa fue adptada por pacientes, constituyéndose como estrategia que legitima y ameniza la incertidumbre ante las cuestiones de carácter moral, personal, social y también físico relativos a la condición oncológica crónica.

Palabras clave: Cáncer. Terapias complementarias. Religiosidad. Bio-medicina. Recebido em 19/06/2008. Aprovado em 05/02/2009.

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artigos

Incapacidade, cotidiano e subjetividade: a narrativa de trabalhadores com LER/DORT

Robson da Fonseca Neves1 Mônica de Oliveira Nunes2

NEVES, R.F.; NUNES, M.O. Disability, everyday life and subjectivity: the narrative of workers with RSI/WMSD. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.55-66, jul./ set. 2009.

The aim was to examine how workers with repetitive strain injuries (RSIs)/ work-related musculoskeletal disorders (WMSDs) experience sickness, by drawing upon the notions of “experience of illness” and “disease narratives”. The narrative interview technique and thematic analysis were used to understand the categories emerging from the discourse of the eight participants in this study. The results indicated that “body inefficiency” for work was shown by the mismatch between the production required for the work and what the workers’ bodies produced. The body played a sign-supporting role regarding changes in behavior and body structure, thereby helping to consolidate the imagery of disability. Thus, metaphors publicly attested to professional decline and discredited the condition of illness. It was concluded that although the disability was expressed early among the perceptions of the workers’ inefficiency within the productive process, it seemed to be legitimated later, at the cost of the workers’ chronic disease and disability.

Objetivou-se conhecer a experiência de adoecimento de trabalhadores com Ler/ Dort, apoiando-se nos pressupostos da “experiência de enfermidade” e nas “narrativas da doença”. Foram utilizadas a técnica de entrevista narrativa e a análise temática para se apreenderem as categorias que emergiram do discurso dos oito sujeitos participantes desta pesquisa. Os resultados apontam que a “ineficiência do corpo” para o trabalho foi evidenciada pelo descompasso entre a produção exigida pelo trabalho e a produzida pelo corpo do trabalhador. O corpo funciona como um “suporte de signos” das mudanças no comportamento e nas estruturas do corpo, ajudando a consolidar o imaginário de incapacidade. “As metáforas” representam o atestado público de declínio profissional e o descrédito quanto à condição de enfermo. Conclui-se que a incapacidade se manifesta precocemente na percepção de ineficiência do trabalhador no processo produtivo, porém sua legitimação parece ser tardia, custando o preço da cronificação e da invalidez para o trabalhador.

Keywords: Illness experience. Disability. RSI/WMSD. Occupational diseases.

Palavras-chave: Experiência de enfermidade. Incapacidade. Ler/Dort. Doenças profissionais.

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Departamento de Fisioterapia, Universidade Federal da Paraíba. Rua José Tavares Benevides, 213, apto. 104. Jardim Oceania, João Pessoa, PB, Brasil. 58.037-745. robsonfisio@ig.com.br 2 Programa de PósGraduação, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. 1

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Incapacidade, cotidiano e subjetividade:...

Introdução No mundo globalizado e capitalista o imaginário sobre a incapacidade para o trabalho é emblemático e, por vezes, estigmatizante. O estado de invalidez tem em seu bojo uma série de significados com representações mais amplas para a sociedade e seus membros. As Lesões por Esforços Repetitivos/Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (Ler/Dort)3 parecem personificar bem o ideário de incapacidade, na medida em que se apresentam como uma síndrome complexa, multifatorial e de grande magnitude. Vários fatores configuram as Ler/Dort como um grande problema socioeconômico e de saúde pública da atualidade no Brasil: a magnitude da prevalência da população acometida, a ampla abrangência de setores da economia impactados, a complexidade clínica que resulta no alto custo da terapêutica, ou mesmo os frequentes afastamentos do trabalho por incapacidade temporária ou permanente. No ano de 2005, cerca de 492 mil acidentes de trabalho foram registrados no INSS. Comparado com o ano anterior, o número de acidentes de trabalho registrados aumentou 5,6%. A assistência médica simples cresceu 16,7%, a incapacidade temporária aumentou 2,8% e a incapacidade permanente subiu 5,4%. Dentre as doenças do trabalho, as mais incidentes foram sinovite, tenossinovite, lesões no ombro e dorsalgia - enfermidades comumente relacionadas com Ler/Dort (Brasil, 2005). Pelo prisma do trabalho e das instituições biomédicas que lidam com trabalhadores adoecidos, a incapacidade laborativa no Brasil é cotidianamente referida como deficiência e limitação, mas, sobretudo é comumente chamada de invalidez, termo que é aplicado a todo aquele que é considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência (Assunção, Almeida, 2003). Magalhães (1998) já apontava para o grande hiato existente entre a experiência do trabalhador doente e o que é descrito nos manuais técnicos e acadêmicos sobre a incapacidade provocada pela Ler/Dort. Em uma recente revisão, Minayo-Gomez e Thedim-Costa (2003) trataram de questões pertinentes ao adoecimento de trabalhadores e abordaram a práxis social dos trabalhadores, o sentido que conferem ao cotidiano do trabalho, suas formas de ser, sentir, perceber e agir, além de destacarem o trabalhador como sujeito que, ao interagir com as condições objetivas, elabora categorias próprias de pensamento e ação, o que nos remete a novos olhares sobre o tema. Merlo et al. (2003) estudaram o sofrimento psíquico dos portadores de Ler e afirmaram que existe uma complexa relação que vincula a dor às vivências subjetivas e à identidade social do trabalhador doente. Os autores fazem uma conclusão que parece bastante útil para o presente estudo: “Pensar os efeitos das Ler/Dort na saúde dos trabalhadores implica pensar no lugar atribuído ao trabalho em nossa sociedade, a importância que este assume na produção da subjetividade e também nos modos de adoecer dos trabalhadores” (Merlo et al., 2003, p.134). Portanto, parece claro que racionalidade biomédica pura não dá conta de explicar toda a complexidade que circunda a incapacidade laborativa (Rocha, 1989). No campo da saúde do trabalhador, já se reconhece a necessidade de se investir no conhecimento da subjetividade do trabalhador e das suas relações de trabalho, pois a mediação da linguagem é considerada essencial para apreender os significados que ele dá a sua vivência e para apreender a dinâmica dos processos mórbidos pela confrontação do sujeito com a realidade do trabalho (Dejours, Abdoucheli, Jayet, 1994). 56

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No Brasil, Ler/Dort foram definidas, pelo Ministério da Saúde, como “afecções que podem acometer tendões, sinóvia, músculos, nervos, fáscia, ligamentos, isolada ou associadamente, com ou sem a degeneração dos tecidos, atingindo principalmente, porém não somente, os membros superiores, região escapular e pescoço” (Lima et al., 2002, p.171).

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NEVES, R.F.; NUNES, M.O.

artigos

Parece razoável, então, lançar mão de outras compreensões para tentar traduzir o fenômeno da incapacidade entre trabalhadores com diagnóstico de Ler/Dort, a fim de tornar clara a trajetória de adoecimento desses sujeitos. O entendimento dessas dimensões pode trazer luz para os processos diagnósticos, terapêuticos e de reabilitação desses doentes. Neste estudo objetivou-se conhecer a experiência de adoecimento de trabalhadores com diagnóstico de Ler/Dort. E o foco centrou-se nos enredos em torno da produção de significados sobre a incapacidade, desde a sua mais incipiente percepção até o processo de reconhecimento social da condição de doente. Estratégia teórico-metodológica Trata-se de um estudo que se apoiou nas noções de “experiência da enfermidade” e nas suas narrativas para dar sentido ao adoecer por Ler/Dort. Entendendo que o corpo não é só um objeto físico ou fisiológico, mas é também uma parte essencial do “eu”, e que não está dissociado da consciência, da subjetividade e do mundo vivido (Good, 1994a). Rejeitando o reducionismo do entendimento da doença restrito ao corpo físico e fisiológico, autores como Huhn (1995), Good (1994b), Kleinman (1988), Young (1982) e Mechanic (1961) entendem a illness como percepções e experiência da pessoa acerca de certos estados socialmente desvalorizados, incluindo a doença, mas não limitado a ela. Kleinman (1988) esclarece que as expectativas convencionais sobre a illness são alteradas por meio de negociações em diferentes situações sociais, em redes particulares de relações e, por fim, também diferem devido as nossas biografias individuais singulares, o que leva a crer que a experiência da illness é também distintiva ou individual. Amparados nesses pressupostos, Alves e Rabelo (1999, p.171) compreendem a experiência da enfermidade como “a forma pela qual os indivíduos situam-se perante ou assumem a situação de doença, conferindo-lhe significados e desenvolvendo modos rotineiros de lidar com a situação”. Esses autores falam do “sentir-se mal” como uma referência à corporeidade, contudo não se referindo unicamente a alterações ou disfunções orgânicas, mas também ao corpo vivido, indissociável da subjetividade. Com isso não se quer afirmar que a enfermidade se constrói apenas com base em atitudes reflexivas destacada do fluxo de vivências. Mais que isso, ela também se substancia como significados por meio da construção intersubjetiva, isto é, a partir de processos comunicativos de definição e interpretação reconhecidos e legitimados socialmente (Alves, Rabelo, 1999). O conceito de experiência da enfermidade se estabelece como categoria analítica, e serviu de eixo para orientar o tratamento do material coletado, no intuito de capturar um sentido compartilhado entre o plano teórico e o empírico, o que parece bastante apropriado para o contexto da Ler/Dort e da incapacidade, visto que a perturbação provocada pela incapacidade assimila o curso da história de vida dos trabalhadores acometidos. Questiona-se: como é dada, ao indivíduo, a capacidade de expressar, interpretar e comunicar a sua experiência de sofrimento? Respondendo a esse questionamento, as narrativas de enfermidade podem desempenhar um papel central nos casos de incapacidade devido à Ler/Dort, uma vez que elas têm a propriedade de organizar uma experiência e fazer com que esta tenha sentido (Helman, 2003). Good (1994a) acredita que as narrativas ou histórias com enredos são uma das tentativas de dirimir a dissolução do mundo da vida e uma forma também utilizada pelos sofredores e pela sociedade para reconstruir o mundo desestruturado pela doença. O enredo, entendido aqui como aquilo que dá ordem a uma história, representa mais do que uma estrutura de relações sequenciais: o enredo é criado pelos leitores momento a momento, na tentativa de extrair a estrutura e o significado dos eventos. Com isso, entende-se que a incapacidade comporta componentes subjetivos originados no ato individual de perceber o sentido do mal-estar, mas também se adensa e se completa nos processos intersubjetivos adquiridos na vida cotidiana, onde a doença é legitimada e objetivada. Portanto, é dessa dialética que nascerão os primeiros rudimentos de uma compreensão dos significados da incapacidade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A heterogeneidade de características pessoais e profissionais dos trabalhadores e a saturação das informações foram critérios importantes para a seleção e determinação do número final de sujeitos desta pesquisa. O estudo contou com oito trabalhadores com diagnóstico de Ler/Dort há mais de um ano, sob regime de beneficio da Previdência Social do Brasil por “auxílio-doença”4 ou “aposentadoria por invalidez”5. Esses diagnósticos foram dados após criteriosa investigação clínica e laborativa, com o estabelecimento do nexo feito pelos peritos do CESAT (Centro de Estudo de Saúde do Trabalhador), órgão público do estado da Bahia, com notória experiência em doenças ocupacionais e vigilância em saúde do trabalhador. Os informantes são de ambos os sexos, pertencentes a classes sociais e inserções religiosas diferentes, com variados níveis de gravidade da lesão e causas do adoecimento, pertencentes a regimes diferenciados de trabalho: operários da indústria, comércio e do setor de serviços. A produção dos dados foi realizada no período de julho a outubro de 2005. Os instrumentos adotados foram o roteiro de entrevista e o diário de campo. Neste último foram registrados: as interpelações, pedidos de observação e exame de anomalias presentes no corpo dos trabalhadores entrevistados, solicitações de apreciação de exames de imagem e relatórios de especialistas. Todos esses eventos ocorridos no transcurso das entrevistas. Durante as entrevistas, com base no seguinte tópico central: “Destaque as repercussões provocadas pela doença, contando detalhadamente quando e como você começou a trabalhar e como essa doença entrou na sua vida”, vários temas foram explorados, desde a inserção do entrevistado no mundo do trabalho, passando pela história da percepção inicial do adoecimento, caminhos trilhados para o tratamento e o reconhecimento social da doença. Corin et al. (1993,1990) apud Rabelo (1999) afirmam que a coleta de narrativas sobre a doença possui nítidas vantagens sobre outras técnicas, pois o saber médico não profissional está embutido em contextos de ação e as narrativas permitem que se mantenha este elo fundamental entre saber e contexto. Escolheu-se a entrevista narrativa, pois, dentre os modelos de entrevista em profundidade existentes, é o que busca reconstruir acontecimentos sociais com base na história narrada dos sujeitos; além disso, permite ao entrevistado relembrar o que aconteceu, fornece uma sequência para sua experiência, ajuda a encontrar explicações para os fatos e eventos e, por fim, modela os acontecimentos que compõem a vida individual e social, atribuindo sentido às experiências (Jovchelovitch, Bauer, 2002). Emergiram, do trabalho de campo, sentidos compartilhados sobre a experiência da incapacidade, que circularam em torno do sentir-se normal, da ineficiência do corpo, dos signos do corpo e do nome para a incapacidade. Essas categorias agregaram conteúdos úteis para se apreender melhor a produção de significados que o adoecimento relacionado a Ler/Dort traz no bojo de seu curso enunciado pelas narrativas de construção da incapacidade no trabalho e no cotidiano dos trabalhadores entrevistados. O material empírico obtido da entrevista narrativa foi analisado sob a ótica da análise temática, considerada pertinente para a presente pesquisa, visto que constitui uma interpretação das entrevistas, juntando estruturas de relevância dos sujeitos da pesquisa com as do entrevistador (Jovchelovitch, Bauer, 2002). Foram adotados os procedimentos éticos conforme a Resolução n.º 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e suas complementares e, a fim de preservar a identidade dos participantes do estudo, foram utilizados nomes fictícios no corpo deste texto. 58

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Ver artigos 71 e 80 do Decreto nº 3.048/99 do Regulamento da Previdência Social. 5 Ver artigos 43 a 50 do Decreto nº 3.048/99 do Regulamento da Previdência Social. 4


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Resultados e discussão O sentir-se normal Good (1994a), ao tratar das representações da experiência do adoecimento dos que sofrem por dor crônica, chama atenção para que se focalize como as dimensões do mundo percebido são desestruturadas, dilaceradas, interrompidas, como resultado de uma enfermidade séria. Essa orientação torna-se útil no presente estudo, visto que a experiência de normalidade precede a vivência de incapacidade, tanto para o trabalho quanto para a vida. Para Donnangelo (1979, p.23), “A condição de normalidade constrói-se no desenrolar da própria vida, a qual é, em si, normativa, capaz de instituir normas e modificar as normas que institui.”. Com isso, para averiguar o que é normal ou patológico para o corpo, é necessário olhar para além do próprio corpo na perspectiva anatomofisiológica. É percebê-lo também como dotado de um conjunto de ações, habilidades e competências que retratam sua instrumentalidade disposta na sociedade para agir no cotidiano, sobretudo como agente do trabalho. Os informantes desta pesquisa destacam como elementos visíveis de suas atuações no mundo do trabalho e da vida: eficiência, agilidade, precisão, capacidade de liderança, versatilidade, experiência acumulada, dedicação, interesse de crescimento, disponibilidade, disposição incessante, equilíbrio emocional, dentre outros. Todos esses adjetivos traduzem-se no fazer e no agir, que operam na dimensionalidade da participação e do engajamento na vida social: [...] eu trabalhava com a supervisão das linhas de rede; era toda sobre minha responsabilidade, eu tinha que estar dando, era assim tipo uma monitoria, tá? Já pagou? Não pagou? Se não pagou, eu tenho que entrar em contato com o cliente, então, era pra mais de, vamos dizer, na época era pra mais de duzentas linhas de rede [...] ah, eu tinha uma vida social assim maravilhosa, graças a Deus! Eu tive um casamento maravilhoso de 18 anos de casada, ta entendendo? E com quatro filhos, né? E eu tinha vida muito sossegada, muito equilibrada financeiramente, certo? (Mara- secretária)

Mas, subjazem também outros sentidos compartilhados como próprios da dimensão do trabalho e da vida, como: companheirismo, solidariedade, validação da competência, responsabilidade, honestidade, ética profissional, competição, integridade física e fascínio por sentir-se útil - adjetivos que, em última análise, parecem conferir a noção de moral para esses trabalhadores: Minha mãe não trabalhava e meus outros irmãos todos eram de menor e não trabalhavam, então, quando eu trabalhei no banco foi um momento que melhorou bastante a situação da gente, financeira, entendeu? Então, meu salário era muito importante naquele momento, aí eu tinha medo. Eu pensava: “poxa, se eu for demitida, como é que vai ser lá em casa? (Margareth – digitadora) [...] E no dia que eu não ia, quando a chuva estava de mais que eu não ia. Era como se tivesse uma cobrança dentro de mim. Eu não tinha tido responsabilidade. Lá não ia coordenadora, não ia ninguém. Eu nunca gostei de falhar. Só se fosse um caso de muita necessidade. (Mathildes – cabeleireira)

Com isso, não se deseja propor a existência de um “ethos” que norteia o mundo da vida desses trabalhadores, mas sim, criar uma base inicial de entendimento sobre suas concepções de vida e trabalho. Não se pretende também fazer um estudo mais aprofundado dos construtos de normalidade e de moralidade, mas sim, trazer à tona proposições como a de Helman (2003, p.130) quando afirma que “[...] as narrativas emergem em momentos de ruptura inesperada no fluxo da vida diária. Isso implica o conceito de um estado prévio de normalidade, que, por sua vez, pode ser amplamente definido em termos culturais”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Portanto, a falha moral apresenta-se como uma quebra na possibilidade de continuar reproduzindo símbolos sociais tão caros à existência humana em coletividades como: responsabilidade, capacidade de competição, manutenção da subsistência, dentre outros já citados acima. Esses achados refletem a ideia de que, nas sociedades capitalistas, o corpo adquire significado na estrutura histórica da produção, expresso no modo como são utilizados e nos padrões de ação física e cultural a que deverão ajustar-se. Tomando como base esse complexo de ações, funções, competências e habilidades na relação que o corpo faz com o mundo da vida e do trabalho, torna-se claro que o estado de normalidade do corpo depende não só da estrutura anatômica e fisiológica, mas também das qualificações e determinações que adquire no plano da existência material e social (Donnangelo, 1979).

A ineficiência do corpo para o trabalho A percepção de que alguma coisa não está bem para os trabalhadores entrevistados passa pela dimensão do corpo que serve ao trabalho, na expressão do descompasso entre a produção exigida pelo trabalho e a produzida pelo corpo do trabalhador, evidenciadas pela diminuição da produção, das constantes advertências dos superiores hierárquicos, da detecção da queda do rendimento nos processos de avaliação da empresa e a perceptível diminuição da agilidade para o trabalho. Esses desarranjos são percebidos pelos indivíduos, porém não se traduzem inicialmente como doença ou como incapacidade: [...] eu via todo mundo dando produção e eu não conseguia chegar, né? Eu fazia somente as coisas pela metade, eu comecei a fazer as coisas pela metade e isso já estava me incomodando. E lá na empresa eles têm um processo de avaliar de seis em seis meses e minhas avaliações estavam começando a cair, tá entendendo? E isso começou a me chamar a atenção [...]. (Margareth – digitadora)

A inquietação por não poder atender aos anseios da produção no trabalho também contribui para os primeiros indícios de uma identidade de incapacidade, precocemente marcada pelas incertezas quanto ao desempenho funcional no trabalho e pelo sofrimento psicológico gerado. Essas insatisfações se manifestam por meio da autoavaliação do próprio rendimento e da qualidade do trabalho: “Eu não conseguia produzir, aquilo estava me matando, tá entendendo? E aí eu comecei a tomar antidepressivo, fui pra psiquiatra pensando que eu estava com problema na cabeça [...]” (Mara secretária). Sobre os relatos acima, Good (1994a) argumenta que as categorias propostas por Schutz, para a análise da ‘realidade do senso comum’, podem ser bastante eficazes para se entender essas percepções iniciais como uma desestruturação do mundo da vida diária, onde o trabalho é parte integrante. Dentre essas categorias, duas proposições parecem delinear satisfatoriamente os achados empíricos. A primeira está pautada no princípio de que “No dia a dia, o ‘eu’ é tido como autor das ações, portanto, total e não dividido” (Good, 1994a, p.124). Ou seja, nós agimos no mundo por intermédio dos nossos corpos, e nossos corpos são sujeitos de nossa ação. Nas falas, acima, percebemos os trabalhadores estranhando seus corpos, diferenciando-os do “eu” que estava agindo e vivenciando. A segunda proposição está baseada na ideia de tempo, ou seja, numa perspectiva de tempo que o sofredor compartilha com as outras pessoas. O descompasso apresentado pelos trabalhadores e seus anseios não correspondidos de produção denunciam uma diacronia entre o tempo interior e o tempo exterior. Como corolário, afirma Good (1994a, p.126): “O mundo privado não apenas perde sua relação com o mundo em que as pessoas vivem, mas também a sua própria dimensão organizadora começa a se desestruturar”. Os reflexos desses eventos estão para além do mundo do trabalho, pois se pronunciam também nas atividades da vida diária. Para Good (1994a, p.131), “A experiência vivida é organizada em um ritmo social natural, que se move da atividade para o repouso, do trabalho para o lazer, da concentração para o relaxamento. A dificuldade em se envolver em um ou outro desses aspectos é sinal de patologia, ou uma falha moral”. A desestruturação do mundo da vida mediada pela falha moral dá lugar a um imaginário de incapacidade, 60

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que ganha força nas constatações das limitações para a realização das atividades da vida diária - como atividades domésticas, lazer, atividade esportiva - e na ideia da deformidade progressiva das estruturas do corpo que vai se instalando. Com isso o ritmo normal da vida vai se quebrando, pois o homem vai se submetendo, aos poucos, aos ritmos vitais do seu corpo que adoece: É horrível o psicológico. Na verdade eu me sentia inútil, porque eu não podia mais fazer nada dentro de casa. Eu sempre fui ativa, sempre! Eu nunca fiquei parada, dentro de casa eu não fico parada. Então, eu me via assim numa situação que eu tinha que ficar quieta num canto, eu não podia ler porque o movimento de passar a página me incomodava. (Margareth – digitadora) 6 Expressão extraída do texto de Ferreira (1994).

O corpo “suporte de signos”6 Concordando com o trabalho de Magalhães (1998), o presente estudo mostrou que mudanças no comportamento, nas atitudes e nas estruturas do corpo ajudam a consolidar o imaginário de incapacidade por meio: da reclusão, da tristeza, da ideia fixa na possibilidade de ficar inútil, na perda de confiança no corpo, no nervosismo que subitamente toma o ser, na maneira como vê o seu corpo físico e o coloca no mundo, e nas mudanças de hábitos e práticas próprios da vida cotidiana. Estes parecem condensar-se na fala destas trabalhadoras: Eu tinha vergonha de meu corpo, eu tinha vergonha de usar blusas decotadas, né? Meus braços eram monstruosamente cheios de nódulos, né? Aqui, essa parte do braço eram cheios de nódulos; isso daqui meu eram horrorosos, meus dedos eram horrorosos, tudo em mim era feio, né? (Mara – secretária) [...] primeiro eu comecei a sentir esse negocio aqui esticando [região do bíceps do braço], esticando mesmo parecendo que minha veia tava esticando, ai eu disse a Chica, oh Chica eu não aguento mais. Chica também tem esse problema tanto que ela é com essa mão dela, ela mexia mais com essa mão, então até quando indo lá desligar a máquina ela suspendia o corpo todo assim pra desligar porque ela já não levantava, aí até hoje ela tá trabalhando, não sei como [...]. (Maura – operadora de corte e solda)

Em certa medida, foi angustiante perceber que, no momento das entrevistas, os informantes ao se referirem às marcas das possíveis lesões, modificações de contornos nas estruturas dos seus corpos, na presença de nodulações dolorosas, no rubor da pele e na temperatura desigual dos segmentos corporais, solicitavam insistentemente, do entrevistador, a atenção total à localização exata, o esforço imaginativo do que havia se sucedido na sua anatomia e fisiologia, mesmo que não houvesse mais indícios de que algo acontecera ali; e, muitas vezes, requeriam a palpação solícita das estruturas corporais acometidas ou em processo de acometimento. Para Merleau-Ponty (1999), os estados e sensações corporais experimentadas pelos indivíduos e as interpretações feitas fazem parte de códigos e de grupos sociais específicos. Nessa perspectiva, o corpo pode ser entendido como “suporte de signos”. Leach (1976) apud Ferreira (1994, p.102) indica que “a função do signo é comunicar ideias por intermédio de mensagens, ou COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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seja, o signo tem o objetivo de transmitir uma informação, fazendo parte assim de um processo de comunicação”. Tomando como base essa ideia do corpo como signo, para pensar a formulação da incapacidade, pode-se supor que, por intermédio das mensagens emitidas pelo corpo na forma das experiências da enfermidade e dos sinais objetivos advindos das estruturas, sistemas e funções corporais, chegar-se-á a um significado: a incapacidade. Essa formulação encontra bases sólidas na fenomenologia da percepção trabalhada por MerleauPonty (1999), na medida em que tenta entender o mundo experiencial do sofredor por meio da tomada de consciência a partir da experiência corporificada em todas as suas modalidades sensoriais. Com base nesses princípios, a compreensão da incapacidade não depende unicamente da moldagem cognitiva da experiência, mas também da apreensão de informações do corpo sensorial. Kleinman (1988) adensa a discussão acima trazendo, para dentro do domínio da enfermidade, a experiência dos processos de monitoramento corporal. Isso fica patente nos acometidos por Ler/Dort, por meio das mudanças anatômicas e fisiológicas do corpo, caracterizadas por inchaços, nodulações, diminuição da amplitude do movimento articular, déficit de sensibilidade e força, bem como alterações do estado de humor e outras funções cognitivas experimentadas por esses sujeitos. Esses sinais, quando percebidos, categorizados e analisados pelas lentes do senso comum, numa linguagem acessível a todas as pessoas ligadas ao grupo social do trabalhador acometido, traduzemse em formas de angústia causadas pelo processo de adoecimento. Assim, pode-se concluir que as percepções embrionárias de incapacidade se dotarão de significado na medida em que se estabeleçam e sejam visíveis e palpáveis para os indivíduos e para os membros da sociedade.

O nome para a incapacidade Metáforas como: “você se sente um lixo, um nada!”, “ah, você está é de lerdeza”, “você sente inútil”, comumente aparecem nos relatos de experiência dos trabalhadores em processo de adoecimento, como forma de comunicar a experiência da enfermidade adotada pelos narradores dessas histórias. No entanto, se faz necessário retomar a conceituação e a crítica à definição clássica de metáfora para que se entendam as proposições acima como metáforas da incapacidade. Aristóteles (1457), apud Sontag (1989), diz, em sua Poética, que a metáfora ‘consiste em dar a uma coisa o nome de outra’. Porém, muitos teóricos da literatura e filósofos têm criticado a proposição de que ao se reduzir a metáfora a uma mera substituição de palavras não se dá conta da dimensão de sentido potencial dela. Com base nessa afirmação, Ricoeur (1987) apud Alves, Rabelo (1999, p.177) compreende que o lugar específico da metáfora é a frase, e não a palavra, uma vez que “as metáforas dizem respeito à função de predicação da frase: operam, inicialmente, instituindo uma tensão, no seio do enunciado, entre duas interpretações opostas; é o conflito entre ambas que sustenta a metáfora”. É com base nesse rompimento criativo com o uso comum da linguagem metafórica que se permite apostar em outros sentidos fora daqueles amarrados pela interpretação literal e se obtém uma nova informação oriunda de estruturas internas do enunciado. Partindo desse pressuposto, algumas falas que deram origem às metáforas de incapacidade, acima, serão retomadas em seus contextos a fim de atribuir-lhes sentido: [...] você se sente um lixo, um nada! Sabe? Porque você está dizendo pra pessoa que você está sentindo dor, que você não está aguentando, e a pessoa diz assim: “não, mas você fisicamente, você não tem nada”, porque você não tem um defeito, entendeu? Você tem as mãos, os braços, tudo, então ele acha que você não tem nada. (Margareth – digitadora) [...] naquela época a gente até brincava com isso, né? Hoje eu não brinco (ri). O pessoal falava ‘ah, to de LER’ e não sei o quê, e a gente: ‘ah, você está é de LERdesa’ [...] porque era uma dorzinha assim que você até ligava até a alguma coisa. (Matheus – bancário)

São representações embutidas nas metáforas, empregadas pelos trabalhadores, nesta pesquisa, para dar sentido ao seu sofrimento: o sentimento de desvalorização integral do ser, a percepção do 62

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desperdício dos anos de vida por conta do adoecimento, a discriminação e rejeição para o mundo do trabalho, a sensação de não mais ser reconhecido dentro do seu próprio ambiente de trabalho, o atestado público de declínio profissional, o descrédito quanto à condição de enfermo, e o desengano quanto à possibilidade de melhora. Sontag (2002, 1989), em suas publicações, explora os sentidos compartilhados das metáforas relacionadas à tuberculose, ao câncer e à aids, mostrando que a falta de conhecimento mais aprofundado sobre a tuberculose, no passado, e sobre o câncer e a aids, atualmente, tornam o contexto em torno dessas moléstias obscuro, o que tende a sobrecarregá-las de significação. Essa constatação é particularmente compatível com a incapacidade por Ler/Dort, pois sendo enfermidade que se acredita ter múltiplas causas, reúne as maiores possibilidades de ser usada como metáfora para o que se considera social ou moralmente deturpado. As metáforas referentes às enfermidades não são enunciados estanques que se perpetuam ao longo dos anos, elas podem se modificar na medida do grau de compreensão do adoecimento e, também, na proporção da evolução da cura. Assim, o mais importante é compreender o uso das metáforas nos momentos em que elas se estabelecem. Nesse sentido, as metáforas da incapacidade por Ler/Dort parecem revelar, como significados: a insuficiência do sistema biomédico em produzir modelos explicativos coerentes com intervenções eficazes e a falha da sociedade capitalista em construir um modelo industrial avançado que regule a produção adequadamente. Portanto, existe um potencial revelador sobre o qual Alves e Rabelo chamam atenção ao dizer que: Nas narrativas de aflição, as metáforas desempenham um papel central: constituem estratégia de inovação semântica, que estendem sentidos habituais para domínios inesperados, oferecendo assim uma ponte entre a singularidade da experiência e a objetividade da linguagem, das instituições e dos modelos legitimados socialmente. (Alves, Rabelo, 1999, p.173)

As narrativas de enfermidade não são povoadas unicamente pelas metaforizações, as substantivações também aparecem nesses discursos, inicialmente, como significado cultural particularmente poderoso, frequentemente de um tipo estigmatizador e, posteriormente, vão se dotando de valores legitimadores reconhecidos pela sociedade sob a identidade de inútil, incapaz ou inválido: “Quando [meu sobrinho] viu como era minha aposentadoria por invalidez ele disse: ‘minha tia, se você for se meter a querer voltar, vai ser uma complicação tão grande que não aconselho de jeito nenhum” (Martha – bancária). A atribuição de um nome a uma enfermidade é largamente explorada pela literatura, e autores como Kleinman (1988) e Good (1994a) reconhecem o caráter muitas vezes estigmatizador do nome atribuído às enfermidades, mas colocam essa nomeação como um divisor de águas, pois a doença que era um domínio perceptual da mente do sofredor agora ganha uma outra dimensão. Nesse sentido, dar um nome para a origem do sofrimento é conseguir poder para aliviá-lo, é também um passo importante para a reestruturação do mundo da vida, mais ainda, confere poder para tornar o “eu” integrado no contexto mais amplo do sofrimento (Good, 1994a). Kleinman (1988) defende o fato de que a ação de nomear uma enfermidade é realizada pela pessoa doente e pelo seu círculo com o objetivo de superar uma determinada ocorrência considerada normal ou desestruturante, como é o caso da incapacidade em Ler/Dort. Para isso, o sofredor e as pessoas do seu meio social transformam a experiência da enfermidade em algo domesticado e controlado, ou seja, em uma experiência cultural. Dessa forma, o nome atribuído confere uma teia de possibilidades: dá um caráter de veracidade e legitimação ao evento, credencia para outras ações terapêuticas, abre canais de entendimento sobre a doença e outros aspectos relacionados a ela, possibilita a tomada de decisões e a luta por direitos. Good (1994, p.131) sintetiza bem esses achados ao afirmar que “similarmente, o nomeamento simbólico das fontes do sofrimento servem para formular o objeto do tratamento e, portanto organizar uma série de respostas sociais e de atividades terapêuticas”. As narrativas sobre a incapacidade parecem cumprir um importante papel na medida em que evidenciam a força no sentido negativo e pejorativo contida nas metáforas, na conotação que ganham COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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no mundo do trabalho, bem como a capacidade de (re)significação que o adoecimento adquire em face da nomeação legitimadora para um infortúnio estranho e estigmatizador que é a Ler/Dort.

Considerações finais Então, incapaz por quê? Inválido para quê? O enredo apresentado neste artigo mostra que é, na dinâmica do dia-a-dia e do trabalho, que se percebem os primeiros indícios de instalação da incapacidade em Ler/Dort; e que o imaginário de invalidez traz com ele o reconhecimento de que o mundo da vida está se desestruturando, e isso é revestido por situações de sofrimento em vários planos da vida. A narrativa de experiência e as metáforas de incapacidade podem funcionar como recursos importantes para o reconhecimento inicial dos sentidos da incapacidade e dos seus significantes. Kleinman (1988) afirma que avaliar o sofrimento requer mais do que simplesmente adicionar algumas questões a um formulário de autorrelato ou a uma entrevista padronizada. A avaliação do sofrimento requer informação diferente e válida das narrativas da experiência do adoecimento. Nesse sentido, a etnografia, a biografia, a história e a psicoterapia são métodos de pesquisa apropriados para criar conhecimento sobre o mundo pessoal do sofrimento. Esses métodos nos permitem captar, por trás dos simples sons da dor corporal e sintomas psiquiátricos, a linguagem interior complexa da dor moral, do desespero e do sofrimento. A atenção à saúde dos trabalhadores tidos como inválidos para o trabalho precisa ser revista por meio de uma lente mais ampliada, uma perspectiva holística de cuidado, de modo que se atente para a necessidade de restabelecimento do mundo da vida dos sujeitos utilizando-se de manejos mais positivos, ou seja, intervenções com bases dialógicas e que primam pela valorização da fala dos sujeitos acometidos por Ler/Dort. Essas reflexões parecem bastante pertinentes para o campo da saúde do trabalhador, visto que depositam sobre a questão da experiência da incapacidade outras bases de entendimento, que podem ser úteis para o processo que vai da prevenção do adoecimento à reabilitação do trabalhador doente, e lançam, nessa discussão, a necessidade de se refletir de forma mais profunda sobre os questionamentos feitos anteriormente.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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NEVES, R.F.; NUNES, M.O. Incapacidad, cotidiano y subjetividad: la narrativa de trabajadores con LER/DORT. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.55-66, jul./set. 2009. Se ha objetivado conocer la experiencia de enfermar en trabajadores con LER/DORT con apoyo en los presupuestos de la “experiencia de enfermedad” y en las “narrativas de la enfermedad. Se utilizaron la técnica de entrevista narrativa y el análisis temático para aprehender las categorías que emergieron del discurso de los ocho sujetos participantes de esta investigación. Los resultados indican que la “ineficiencia del cuerpo” para el trabajo se evidenció por el descompás entre la producción exigida por el trabajo y la producida por el cuerpo del trabajador. El cuerpo funciona como un”soport e de signos” de los cambios en el comportamiento y en las estruoturas del cuerpo ayudando a consolidar lo imaginario de Incapacidad, “Las metáforas” representan el certificado público de declinio profesional y el descrédito en cuanto a la condición de enfermo. Se concluye que la incapacidad se manifiesta precozmente en la percepción de ineficiencia del trabajador en el proceso productivo pero su legitimación parece tardía, costando el precio de cronicidad y de la invalidez para el trabajador.

Palabras clave: Experiencia de enfermedad. Incapacidad. LER/DORT. Enfermedades profesionales. Recebido em 15/09/2008. Aprovado em 20/02/2009.

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O Acompanhamento Terapêutico (AT): dispositivo de atenção psicossocial em saúde mental*

Ana Celeste de Araújo Pitiá1 Antonia Regina Ferreira Furegato2

PITIÁ, A.C.A.; FUREGATO, A.R.F. Therapeutic Accompaniment (TA): tool for psychosocial care within mental healthcare. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.67-77, jul./set. 2009.

This paper discusses the clinical practice of Therapeutic Accompaniment (TA), incorporated into the psychosocial care model within mental healthcare and into other such models. The aim was to discuss the process of psychosocial rehabilitation and this type of therapeutic action within mental healthcare, in relation to TA clinics. For this, the paradigms of the asylum and psychosocial care models that are the reference points for intervention practices in mental healthcare were examined from a theoretical viewpoint. These reflections showed the importance of consolidating a care network that makes it possible for patients with mental suffering to have prospects within their lives. This is a challenge to be faced, and the priority should be the subjects involved in this and their context of social immersion.

Keywords: Therapeutic accompaniment. Psychosocial rehabilitation. Psychiatric nursing. Mental healthcare.

Este artigo aborda a prática clínica do Acompanhamento Terapêutico (AT), incorporado ao modo de atenção psicossocial em saúde mental e seus outros dispositivos. Objetiva-se discutir o processo de reabilitação psicossocial e este tipo de ação terapêutica na saúde mental, com base na clínica de AT. Para tanto, realizouse uma reflexão teórica, considerandose os paradigmas dos modos asilar e psicossocial de atenção, que referenciam as práticas de intervenção terapêutica em saúde mental. As reflexões conduzem à importância da consolidação de uma rede de atenção que possibilite perspectiva de vida aos portadores de sofrimento psíquico como um desafio a ser enfrentado que considere prioritariamente o sujeito aí implicado e seu contexto de imersão social.

Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico. Reabilitação psicossocial. Enfermagem psiquiátrica. Saúde mental.

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* Trabalho realizado com apoio da Capes/ PRODOC - Projeto 0126/05-5 1 Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo (EE/USP). Rua Itacolomi, 466. Ribeirão Preto, SP, Brasil. 14.025-250. anaceleste2006@ gmail.com 2 Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, EE/USP.

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Introdução O impacto do transtorno mental, avaliado, notadamente, pela sobrecarga sobre o indivíduo, a família e a sociedade, indica a relevância do tema para a agenda internacional (World Health Organization, 2002). A Organização Mundial da Saúde divulgou, em um relatório, que até países desenvolvidos se esquecem de cuidar da mente humana. Ressalta que, apesar dos transtornos mentais atingirem cerca de 450 milhões de pessoas, ainda estão longe de receber a mesma relevância dada à saúde física, sobretudo nos países em desenvolvimento. Comparando-se os transtornos mentais com as principais doenças que afetam a população, estes respondem por 12% das condições de saúde que sobrecarregam os países pobres e médios em riqueza Os serviços e as estratégias de promoção e proteção da saúde mental precisam ser coordenados entre si e articulados com outros serviços, tais como: a segurança social, a educação, o emprego e a habitação. As ações para a saúde mental devem ser monitoradas e analisadas para que as decisões possam ser constantemente ajustadas para responderem aos desafios que se apresentam (Organización Panamericana de la Salud, 2003). No Brasil, o Estado tem assumido papel decisivo na reestruturação da atenção psiquiátrica, desde 1987, com a 1a.Conferência Nacional de Saúde, recebendo reforços com a Declaração de Caracas, na Venezuela de 1990. Desde então, os países latino-americanos vêm envidando esforços para a promoção de serviços comunitários - substituindo o manicômio -, integrados à rede de serviços de saúde em atenção primária à saúde e suas redes sociais, priorizando a manutenção do doente em seu meio social (Brasil, 2004). A principal repercussão desta proposta é que a rede básica de saúde passa a ser o principal meio para o atendimento de portadores de transtornos mentais que adoecem ou que estão em algum tipo de acompanhamento, e o profissional da saúde passa a se ocupar de um contexto ampliado onde ocorre o cuidado. A assistência em saúde mental propõe a atenção descentralizada, interdisciplinar e intersetorial, bem como vincula o conceito de saúde mental aos conceitos de cidadania e produção de vida, gerando transformações nas concepções e práticas de saúde mental, na organização dos serviços, na formação e na capacitação dos profissionais da área. No sentido instrumental, o processo de reabilitação psicossocial representa um conjunto de meios (programas e serviços) que se desenvolvem para facilitar a vida das pessoas com problemas mentais severos e persistentes. Esse processo destina-se a restaurar o melhor nível possível de autonomia do indivíduo, no exercício de suas funções sociais (Pitta, 2001). As práticas de atenção psicossocial são tributárias de diferentes movimentos sociais e científicos em vários campos teóricos, articulados de forma complexa e exigindo incursões pelas teorias da análise política de instituições, da análise institucional e da constituição subjetiva. Incluem elementos de análise da história dos principais movimentos institucionais internacionais no campo da saúde mental e suas repercussões no contexto brasileiro: psiquiatria de setor e psicoterapia institucional na França; antipsiquiatria e comunidades terapêuticas na Inglaterra; saúde mental comunitária nos EUA, e o movimento democrático da desinstitucionalização na Itália (Costa-Rosa, 2000). Deixando de se ocupar apenas com a doença, com a prescrição de medicamentos e aplicação de terapias, os profissionais da atenção psicossocial passam a se ocupar dos sujeitos que precisam de tratamento e com a qualidade do cuidado oferecido. Passam a ocupar-se também do cotidiano, do tempo, do espaço, do trabalho, do lazer, do ócio, do prazer e da organização de atividades conjuntas. Em consonância com o processo de reabilitação, espera-se que os profissionais trabalhem enfatizando as partes mais sadias e as potencialidades do indivíduo, mediante uma abordagem compreensiva, oferecendo suportes: vocacionais, sociais, recreacionais, residenciais, educacionais, ajustados às demandas singulares de cada indivíduo (Pitta, 2001; Furegato, 2000; Amarante, 1999).

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O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão sobre a clínica AT, baseada na experiência das autoras com a clínica do Acompanhamento Terapêutico (AT)3 e na literatura sobre o tema, bem como levantamentos bibliográficos sobre as políticas, papéis e funções dos serviços de saúde mental, por intermédio do SIBI – Sistema de Bibliotecas da USP, do site do Ministério da Saúde e OPAS, da BIREME e da biblioteca da USP – Ribeirão Preto. Foi considerado, como pano de fundo para esta reflexão, o questionamento sobre o modo asilar em contraste com o modo psicossocial, contexto contemporâneo de reformulações dos paradigmas da atenção em saúde mental. Dessa maneira, discute-se a clínica do Acompanhamento Terapêutico (AT) como um dos dispositivos de ação terapêutica que se incorpora à atenção em saúde mental, procurando promover a reintegração psicossocial dos portadores de sofrimento psíquico, tendo por base a experiência vivenciada em Ribeirão Preto, que gerou uma tese de doutorado (Pitiá, 2002) e cursos de formação em AT na Escola de Enfermagem da USP. Para contextualização, tomam-se, como referência, os dispositivos do modo psicossocial, a exemplo dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), convergentes com a idéia de se configurarem em modos estratégicos para reversão do modelo centrado no hospital, conforme descrito por OnockoCampos e Furtado (2006).

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Utiliza-se, como convenção, a denominação AT (Acompanhamento Terapêutico) para a prática clínica, e at (acompanhante terapêutico) quando se tratar do profissional que exerce a prática. 3

O modo asilar e o modo psicossocial de atenção em saúde mental O saber sobre a loucura, até o final do século XIX, era, em essência, baseado no conhecimento sobre a doença, e não sobre o homem doente. O guia do processo terapêutico era o quadro sintomatológico e a intervenção era marcada pela alienação social do sujeito referenciada para o contexto hospitalar. Nesse período, o homem era apenas um terreno onde se instalava a doença, onde evoluíam os sintomas e sobre o qual o poder de controle era exercido. No processo histórico das mudanças de paradigmas das práticas em saúde mental e, sob as influências da Sociologia, da Antropologia, da Filosofia e da Psicanálise, a abordagem sobre a loucura mudou de foco – passando da doença para o doente – sendo, então, o homem visto em sua fala e corporificando a doença. Dessa forma, o contexto da Reforma Psiquiátrica apresenta um conjunto de medidas que objetivam desospitalizar o atendimento em saúde mental e a desconstrução do modo asilar de atendimento, provocando a transformação da concepção do hospital psiquiátrico como única forma de cuidado. Assim, a exclusividade das decisões e das ações terapêuticas deixa de se concentrar nas mãos do médico, passando a ser da responsabilidade de todos os profissionais (médicos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos), como também de grupos da comunidade não-psiquiátricos, tais como os grupos de autoajuda e os religiosos e clérigos (Amarante, 1999; Lobosque, 1997). Os princípios da desconstrução assistencial e cultural do manicômio vêm provocando o rompimento do paradigma hospitalar de atenção em saúde mental, marcado por momentos de maior e menor intensidade de ações transformadoras, tal como ocorre em todos os processos de mudança. O resultado da reorientação do modelo assistencial em saúde mental no país implica reorganização da estrutura dos serviços, composição das equipes de saúde de nível superior e médio, bem como de portadores de transtornos mentais e seus familiares, usuários dos serviços de saúde mental. Estas mudanças estão COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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marcadas pela responsabilização do Ministério da Saúde neste movimento, por meio de leis, portarias e regulamentações (Aranha Silva, Fonseca, 2005; Brasil, 2004). Os conceitos sobre as abordagens terapêuticas relativas à doença mental e ao sofrimento psíquico vão sendo recriados no processo de subjetivação destes tratamentos. Pela concepção que vem sendo construída sobre os atendimentos, o sujeito doente tem a possibilidade de ser avaliado e atendido por meio de um modo de atenção mais singular e ético. O foco passa a ser a saúde mental e, nesse sentido, a escuta passa a ser valorizada, sustentando-se a possibilidade de se acolherem diferentes formas de subjetivação, representadas pelas maneiras singulares de se estar no mundo (Bronz et al., 1997). Este processo de transformação é lento e irregular, pois, apesar da criação dos serviços, da regulamentação das equipes e da normatização das ações, há a necessidade de serem desconstruídas concepções manicomiais, instaladas nas mentalidades dos próprios profissionais, o que influencia, em grande medida, a qualidade do atendimento prestado aos usuários. Como formas alternativas ao manicômio e à internação total, são implementados espaços de atendimento como: ambulatórios, centros de atenção (CAPS), hospitais-dia, unidades psiquiátricas de internação e de emergências em hospitais gerais, além de outros recursos - como oficinas terapêuticas, grupos de convivência, lares abrigados, cooperativas de trabalho e a prática clínica do AT. Estes recursos vão ao encontro do processo de subjetivação e de transformação não apenas da assistência, mas da própria concepção de transtorno mental e de sofrimento psíquico. No contexto atual das transformações da assistência em saúde mental, é importante uma reflexão sobre os dois modos das práticas de atenção que se opõem: o modo asilar e o modo psicossocial (Costa-Rosa, 2000). Estes modelos têm características peculiares que contextualizam historicamente as práticas de tratamento em saúde mental, onde se pode destacar o AT. O modo asilar é caracterizado pela presença do manicômio, tecnicamente sustentado pela contenção química abusiva que favorece o ambiente de clausura do “louco”, um personagem social discriminado, excluído e recluso, limitado à loucura e à desrazão. Na lógica manicomial, os hospitais psiquiátricos tendem a uma política assistencial que se baseia em princípios de verdade exclusiva, de incurabilidade e de segregação (Sampaio, Santos, 2001). Essa concepção de doente mental tem sua origem em meados do século XVII, no mesmo processo em que foram excluídos todos os que subvertiam a ordem pública - como os pobres, velhos, inválidos, mendigos que transgrediam as leis -, ou seja, enquadravam-se no segmento da população a quem se podia aplicar castigos públicos, destinados a “corrigir” a ociosidade e a desrazão, que desorganizava a ordem vigente (Amarante, 1995; Foucault, 1993). Na literatura sobre a história clássica da loucura, o hospital se constituiu no instrumento terapêutico pautado em saberes e discursos que fundaram a psiquiatria, a partir do final do século XVII. Foi inventado por meio de dispositivos disciplinares da prática médica, com a classificação e sistematização das doenças, o que levou ao desenvolvimento do atendimento psiquiátrico clássico, resumido em internação em ambientes “apropriados” aos loucos e suas manifestações psíquicas. Essa proposta encerra um poder institucional com o mandato social da assistência e tutela do louco. A instituição trouxe consigo as funções de controle/exclusão social, ordem institucional, racionalização e objetivação de recursos (Aranha Silva, Fonseca, 2005; Foucault, 1993). Em suma, o modelo asilar tem sido tradicionalmente custodial, médico-centrado, subsidiado pela ação dos demais profissionais, especialmente da enfermagem (Stefanelli, 2008); conformando uma organização técnica do trabalho que divide a atenção coletiva, com a finalidade de “cura”, considerando apenas a adaptabilidade social do sujeito portador do transtorno mental, tornando-o objeto de intervenção, e deixando, nas mãos do médico, a posse exclusiva da condução das medidas terapêuticas para essas pessoas (Aranha Silva, Fonseca, 2005). Assim, no duro regime asilar, os hospitais psiquiátricos caracterizam-se pelo aspecto de grandes estruturas físicas e fechadas, com capacidade crescente para abrigarem todos os sujeitos que se enquadram nos princípios do asilamento/confinamento. O hospital psiquiátrico tornou-se uma instituição onde se estabelecem relações de dominação/submissão, gerando sofrimento a todos e, em especial, ao enfermo (Pitiá, 1997). Por estes motivos, os últimos cinquenta anos têm sido palco de intensas transformações na concepção da saúde e da doença mental, bem como de seus tratamentos. 70

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Na política dessas transformações, muitas mudanças vêm ocorrendo, e “desinstitucionalizar” emergiu como um conceito que tem norteado o processo da Reforma Psiquiátrica. Baseando-se nos pontos principais da Declaração de Caracas, Alves (2001) sinaliza para a diversificação das possibilidades de oferta de serviços, superando a crença do hospital psiquiátrico como ideal para tratamento e única opção. O hospital deve oferecer tratamento de fato, e não confinamento, tendo, assim, maneiras de se respeitarem e ampliarem os direitos das pessoas com transtornos mentais, incorporando-as como sujeitos ao processo de superação de suas dificuldades. Ao mesmo tempo, pressupõe-se a desconstrução do arcabouço teórico da psiquiatria clássica, introduzindo novas formas de lidar com o indivíduo portador de transtorno mental. Abre-se espaço para outro paradigma de atendimento, que considera o sofrimento psíquico e a rede de relações da pessoa, pensando o seu espaço social como contexto das subjetividades. O modo psicossocial passa a ser o novo paradigma de atendimento em saúde mental. Nele, o processo de reabilitação constitui uma estratégia que implica algo mais do que, simplesmente, passar um usuário/paciente de um estado de “desabilidade” a um estado de “habilidade” e/ou de um estado de incapacidade para um estado de capacidade. A reabilitação psicossocial é uma estratégia global, múltipla, ética e de solidariedade, que ajuda os sujeitos a lidarem com sua doença em meio aos seus afazeres cotidianos, sua contratualidade afetiva, social, econômica, e viabiliza o melhor nível possível de autonomia para a vida em comunidade (Pitta, 2001; Saraceno, 1998). O modo psicossocial de atenção pode ser conceituado com base em quatro parâmetros: 1) pelas formas de divisão do trabalho interprofissional que preconizam a implicação subjetiva do usuário como condição básica para maior aproximação nas relações dos profissionais com os usuários e a população da área atendida; 2) pelas formas de organização das relações intrainstitucionais, convergentes com as relações interprofissionais, preservando-se o poder decisório de origem políticooperacional, quando há que se estimular a comunicação entre profissionais dos serviços no teor de deliberações das ações executáveis na rede de atendimento; 3) pelas modalidades de relacionamento com os usuários e a população, preconizando a integralidade das ações no território; 4) pelas implicações éticas dos efeitos das práticas em saúde mental e quanto consideram o desejo do sujeito e a dimensão dos ideais pretendidos pela pessoa do usuário, considerando-se seus projetos de vida (Costa-Rosa, Luzio, Yasui, 2001; Costa-Rosa, 2000). As práticas do modo psicossocial são decorrentes de diferentes movimentos sociais e científicos e de vários campos teóricos que fizeram eco às propostas de transformação do modelo (Costa-Rosa, 2000; Amarante, 1999; Saraceno, 1999). É no contexto do modo psicossocial de atenção à saúde que se insere a prática clínica do AT, como um instrumento de ação terapêutica que considera o portador de transtornos mentais em seu contexto sócio-histórico-psíquico-biológico e cultural, com vistas a contribuir com o processo de inclusão das diferenças, do bizarro, das dificuldades humanas.

Dispositivos de ação terapêutica na saúde mental Atualmente, o modelo hospitalocêntrico é ainda hegemônico no Brasil e o grande desafio é reorientar esse modelo de atenção para além dos hospitais psiquiátricos, desconstruindo saberes arraigados há vários séculos. Como já foi dito, a perspectiva é a criação de novas culturas de convivência com o doente mental, devolvendo-lhe o direito à vida, à liberdade e à cidadania (CostaRosa, Luzio, Yasui, 2001). Dessa forma, o atendimento hospitalar passa a ter uma função restrita aos aspectos impactantes da crise dos portadores de sofrimento psíquico, possibilitando seu rápido acesso ao próprio contexto social. Isto impõe eficiência terapêutica e agilidade nos procedimentos técnicos. Representando uma forma de assistência que nasce para contrapor o modelo hospitalocêntrico, o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) se configura como espaço de atendimentos realizados por uma equipe multiprofissional, destinada a atender os problemas de saúde mental, individuais e coletivos (Vianna, Barros, 2005). Distingue-se, especialmente, pela horizontalidade de ações interdisciplinares e terapêuticas, que favorecem a inclusão do sujeito portador de um transtorno mental em seu contexto social, aliviando o seu sofrimento. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O CAPS é parte do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2004). Sampaio e Santos (2001) descrevem suas características como: a) integração de sistemas primários e secundários de atenção; b) acessibilidade local (distrital ou municipal) e integração a sistemas de política social com interação direta e cotidiana com as famílias; c) prática multiprofissional e articulação de saberes da Enfermagem, Medicina, Psicologia, do Serviço Social e da Terapia Ocupacional, voltados ao atendimento e solução dos problemas pessoais, grupais e sociais, determinantes e determinados por alterações de comportamento e da afetividade; d) multiplicidade de práticas e críticas às práticas por meio de pesquisas sistemáticas, sempre reinventando, sem dogmatismos, sem uma teoria única de tratamento; e) processo de supervisão sistemática, institucional e técnica da organização, dos programas e das integrações profissionais; f) centro dinâmico das políticas de saúde mental, revolucionando a atitude dos profissionais de saúde mental e da sociedade frente às concepções de doença mental e dos direitos de cidadania. Nos municípios de maior porte, além dos CAPS, para atendimentos de adultos, e CAPS infantis, a rede de serviços públicos também conta com ambulatórios de saúde mental, cuja principal função é a assistência aos usuários, portadores de transtornos mentais, e seus familiares, incluindo: análise, diagnóstico, tratamento, cuidado e reabilitação, objetivando sua reinserção na comunidade. Atende todas as patologias psiquiátricas e do comportamento, com exceção dos portadores de farmacodependências, os quais são atendidos em serviços denominados de CAPS-AD (Brasil, 2004). Os Ambulatórios de Saúde Mental oferecem atendimento médico, de enfermagem e psicológico, bem como visita domiciliar aos portadores e grupos de familiares, coordenados pela enfermeira e pela assistente social, a exemplo do Ambulatório Regional de Saúde Mental do município de Ribeirão Preto (Osinaga, Furegato, Santos, 2005). Em municípios onde não há ambulatórios psiquiátricos, tais intervenções terapêuticas são realizadas nos CAPSs. Outras unidades de atendimento em Saúde Mental conformam-se em estruturas institucionais de semi-internação durante o dia, denominadas de Hospitais-dia, e descritas como locais que oferecem, ao portador de transtorno mental, a possibilidade de manter vínculos familiares e com a comunidade que o cerca. As atividades focalizam: os atendimentos clínicos, cuidados de enfermagem, atendimentos psicológicos, grupos terapêuticos, oficinas terapêuticas, esportes, terapia corporal, trabalho nas redes sociais, atividades comunitárias (passeios externos, atividades culturais e artísticas, festas e celebrações de datas comemorativas), grupos de chegada e saída, além das reuniões e atendimentos que incluem os familiares. Na atenção básica, pelas políticas públicas atuais, procura-se fomentar experiências de atendimento em saúde mental, nos serviços das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e pela Estratégia de Saúde da Família (ESF). As equipes ocupam os vários espaços extrainstitucionais, de acompanhamento dos tratamentos do portador de transtorno mental, detecção e encaminhamento de casos suspeitos, indo ao encontro da família e suas dificuldades, procurando incluir todos os problemas relativos ao sofrimento psíquico. Quando a ESF se responsabiliza pelos portadores de sofrimento psíquico severo, podem ser observados resultados como: a diminuição no número de reinternações psiquiátricas das pessoas acompanhadas, promoção da saúde mental e reintegração para pacientes psicóticos. Nas intervenções domiciliares nos períodos de crise, o profissional que atende a família dá ênfase à capacidade de escuta, resolução de problemas e favorecimento da reinserção psicossocial (Souza, 2004), fazendo, muitas vezes, a função de terapeuta de AT. Essa maneira de se prestar o atendimento na ESF tem compatibilidades com a prática clínica no AT, no que diz respeito, tanto à predominância do trabalho extrainstitucional, estando ao lado do sujeito e suas dificuldades, dentro do seu contexto de vida, bem como pela ênfase na capacidade de escuta, promovendo-se o acolhimento às próprias possibilidades de saídas para o sofrimento, que tenham significado para o sujeito.

A ação terapêutica do Acompanhamento Terapêutico (AT) A ação terapêutica nos dispositivos extra-hospitalares, por meio da estratégia global do processo de reabilitação psicossocial, engloba todos os profissionais e todos os atores do processo saúde-doença, 72

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4 Utiliza-se a convenção de se denominar at (acompanhante terapêutico) para o profissional que exerce a prática.

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ou seja, os usuários (portadores e familiares) e a comunidade inteira (Saraceno, 1999). O modelo de referência da reabilitação é o poder de contratualidade, resgatado pelo cidadão em meio ao cenário de seu habitat, cenário do mercado e o cenário do trabalho. A contratualidade inclui o poder de se realizarem trocas afetivas, sociais e econômicas (Pitta, 2001). Nos dispositivos extra-hospitalares, então, incluem-se as práticas de atendimento psicossocial que não se limitam às paredes institucionais. Destaca-se aqui a origem da clínica do AT, ideologicamente influenciada pela movimentação política das reformas psiquiátricas pela tentativa de supressão dos manicômios na Europa Ocidental, nos anos 60. Na América do Sul, na década de 1970, a Argentina utilizou o atendimento da abordagem múltipla em uma clínica de atendimento a pacientes psicóticos e dependentes químicos. Por meio dessa abordagem, os pacientes e familiares recebiam atendimento de equipe multiprofissional, aparecendo, pela primeira vez e de uma maneira sistematizada, a prática do AT, sendo o profissional acompanhante terapêutico um dos membros dessa equipe (Mauer, Resnizky, 1987). O AT é um tipo de atendimento clínico que se caracteriza pela prática de saídas pela cidade, ou estar ao lado da pessoa em dificuldades psicossociais com a intenção de se montar um guia terapêutico que possa articulá-la novamente na circulação social, por meio de ações sustentadas numa relação de vizinhança do acompanhante com o sujeito e suas limitações, dentro do seu contexto histórico. O profissional, acompanhante terapêutico (at)4, não está atrelado a uma profissão em particular, mas necessita de qualificação específica para exercício dessa prática profissionalmente (Pitiá, Santos, 2005; Berger, 1997). No Brasil, no final dos anos 70, essa prática seguiu dois trajetos: Porto Alegre, depois Rio de Janeiro, com a figura dos auxiliares psiquiátricos, e São Paulo, com os chamados “amigos qualificados”, sob influência direta da Argentina. Esses antigos “auxiliares psiquiátricos”, na clínica de Vila Pinheiros, na cidade do Rio de Janeiro, por volta do início da década de 1980, recebiam curso de 24 meses dentro da própria instituição, sendo constituída de estudantes das várias áreas da saúde (Reis Neto, 1995). Com o objetivo terapêutico de inclusão social, congruência com os princípios da Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial, o AT é uma atividade clínica, em movimento, que procura desinstalar o indivíduo de sua situação de dificuldade para poder recriar algo de novo na sua condição. O projeto terapêutico não é aleatório, apesar da vivência de cenas inesperadas. Há a importância de um guia, de uma proposta terapêutica, que procura articular a pessoa em seu espaço social. É um processo de reinvenção e se faz presente a partir da própria condição do sujeito(s) acompanhado(s) (Pitiá, Santos, 2005). O AT constitui-se em uma atividade clínica porque, pela relação terapêutica entre o profissional (acompanhante terapêutico) e o acompanhado, a ação ocorre em sintonia com a execução do projeto terapêutico que favorece o processo de reabilitação psicossocial do sujeito atendido. Considerando a produção de um novo projeto de atendimento, voltado para os princípios antissegregacionistas, o dispositivo clínico do AT tem a marca da interdisciplinaridade, podendo se associar como uma estratégia a mais em serviços tais como os Centros de Atenção Psicossocial (os CAPS) e os Ambulatórios de Saúde Mental, e, mesmo, os serviços de internação (Pitiá, Santos, 2005) - caracterizados pela prática multiprofissional e articulados a saberes de Enfermagem, Medicina, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional voltados ao atendimento e solução dos problemas pessoais, grupais e sociais, determinantes e determinados por alterações do comportamento e da afetividade. 73


O Acompanhamento Terapêutico (AT):...

A interdisciplinaridade é marca característica da ação terapêutica contemporânea, promotora do processo de inclusão social de sujeitos em dificuldades psicossociais. Nesse eixo, giram os diversos saberes, encontrando-se campo fértil para o processo terapêutico em saúde mental (Sampaio, Santos, 2001; Maia, Pirim, 1997). O AT pode ser reconhecido e incluído como mais um dispositivo de atendimento nos serviços de saúde, em vista de que trabalha com projetos terapêuticos que favorecem o resgate do poder de contratualidade social, sob os princípios psicossociais de reabilitação. Pelliccioli e Bernardes (2003) confirmam essa idéia, entendendo a prática do AT como dispositivo complementar que contribui para a efetivação dos princípios da Reforma Psiquiátrica, em que o espaço público é compreendido como alargamento do campo possível de tratamento para pacientes portadores de transtorno mental e sofrimento psíquico. Mauer e Resnizky (1987) sistematizaram pela primeira vez a prática do AT, referindo-se à importância interdisciplinar e sua inclusão na equipe de saúde mental. Posteriormente, Maia e Pirim (1997) evidenciaram o aspecto da singularidade que se busca no processo de reinserção psicossocial – o que é considerado no AT. Estudos, como os de Barreto (2005) e Pitiá e Santos (2005), corroboram a aplicabilidade e a expansão da prática do AT, por meio de pesquisas que trazem novas perspectivas para o tratamento de portadores de sofrimento psíquico, consoante com os princípios do modo de atenção psicossocial. Os atendimentos em AT podem ocorrer uma, duas ou mais vezes por semana e duram entre uma a três horas. Nesse espaço de tempo, o acompanhante terapêutico (at) e a pessoa acompanhada realizam atividades que promovam o alcance dos objetivos terapêuticos, para restabelecimento da conexão da pessoa com o mundo circundante, demandada pelas suas necessidades de inclusão no espaço social. Assim, ir ao supermercado, ir ao banco, ir à padaria, à lanchonete, procurar um emprego, e assim por diante, são exemplos de ações cotidianas realizáveis neste projeto que mobiliza o resgate de ações que foram bloqueadas pela dificuldade instalada na pessoa, para as quais ela necessita de ajuda. O significado dessas ações é trabalhado pelo profissional at, durante os atendimentos, o que exige um nível de maturidade profissional para apreender a complexidade da realização de atividades, aparentemente simples, em meio à proteção do setting terapêutico, que se constitui na própria relação entre o at e o acompanhado. Profissionais que tenham a intenção de trabalhar com a prática AT, necessitam de formação e estudos que os preparem para esta atividade clínica. No âmbito dessa formação específica (a função de acompanhantes terapêuticos), os profissionais das diversas categorias devem ser levados a refletirem e agirem, na prática, em consonância com os princípios transformadores da forma clássica dos atendimentos psiquiátricos. Além disso, as diversas abordagens teóricas que procuram dar conta das análises dos atendimentos devem considerar os vários campos de ação terapêutica, seja o biopsíquico, o político, o social e o cultural do portador de transtorno mental em acompanhamento. O desafio é a consolidação de uma rede de atendimentos que possibilite perspectivas de vida aos portadores de sofrimento psíquico, levando-se em conta o sujeito aí implicado e o contexto em que se encontra imerso (Palombini, 2004). As práticas em saúde mental, com destaque para o AT, contam também com o desafio da interdisciplinaridade, ou seja, é necessário um esfumaçamento dos limites e atribuições específicas de cada disciplina ou profissão, o que diversifica e amplia os espaços de atuação de cada profissional, criando regiões novas no saber e o intercruzamento dos diversos conteúdos em saúde.

Considerações finais Os atuais dispositivos de atendimento na rede pública de saúde mental facilitam o engendramento das ações dos diversos profissionais voltados para a singularidade como princípio de uma clínica antimanicomial. Quando a intervenção clínica for pertinente, a concepção do singular deverá ser tomada em consideração e, sua interpelação, levará o sujeito atendido a sustentá-la com seu estilo pessoal. 74

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artigos

Esta proposta é contrária à visão de uma simples adaptação do indivíduo à sociedade. É necessário que uma intervenção terapêutica o convide a sustentar sua diferença, sem precisar excluir-se do social. Daí, a consideração de que o trabalho clínico no AT deva conduzir o tratamento de forma tal que o sujeito siga o caminho que lhe seja próprio – mantendo-o, ao mesmo tempo, dentro dos limites cabíveis da cultura. A rede de atendimentos - quais sejam os dispositivos hospitalares, quando for o caso, e os comunitários (ambulatórios, CAPS, hospitais-dia, oficinas etc..), voltados para a concepção de uma clínica antimanicomial -, exige transformações sociais para além de questionamentos sobre a exclusão. Os princípios antimanicomiais, por si só, não se constituem em processos de inclusão do sujeito que apresenta dificuldades psicossociais. É necessária a mudança de atitude dos profissionais da saúde e sua efetivação nas práticas. A clínica do Acompanhamento Terapêutico, inserida no contexto das práticas do modo contemporâneo de atenção psicossocial, por sua característica interdisciplinar e antissegregacionista, exige formação específica do profissional na direção de mudanças de concepções, de atitudes e de comportamentos e mentalidade para melhor eficácia nos atendimentos em saúde mental. É preciso enfrentar o desafio da participação colaborando na construção de uma nova rede de atendimento em saúde, contribuindo com estudos associados às práticas clínicas comunitárias, nas quais o AT, interdisciplinarmente, vem se consolidando em consonância com as transformações das políticas públicas em saúde, baseadas na atenção psicossocial e seus vários dispositivos de intervenção terapêutica.

Colaboradores Ana Celeste de Araújo Pitiá foi responsável pela elaboração do texto, prática e pesquisa no tema. À autora Antonia Regina Ferreira Furegato coube a orientação teórica e coelaboração do texto. Referências ALVES, D.S.N. Por um programa brasileiro de apoio à desospitalização. In: PITTA, A. (Org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2001. p.27-30. AMARANTE, P. Manicômio e loucura no final do século e do milênio. In: FERNANDES, M.I.(Org.). Fim de século: ainda manicômios? São Paulo: IPUSP, 1999. p. 47-56. ______. (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Panorama Ensp, 1995. ARANHA E SILVA, A.L.; FONSECA, R.M.G.S. Processo de trabalho em saúde mental e o campo psicossocial. Rev. Latino-Am. Enferm., v.3, n.13, p.441-9, 2005. BARRETO, K.D. Ética e técnica no acompanhamento terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. 3.ed. São Paulo: Unimarco/Edições Sobornost, 2005. BERGER, E. Acompanhamento terapêutico: invenções. In: EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS DE A CASA (Org.). Crise e cidade: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Educ, 1997. p.71-82. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em saúde mental: 1990-2004. 5.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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PITIÁ, A.C.A.; FUREGATO, A.R.F. El Acompañamiento Terapéutico (AT): dispositivo de atención psico-social en salud mental. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.67-77, jul./set. 2009. Este artículo aborda la práctica clínica del Acompañamiento Terapéutico (AT) incorporado al modo de atención psico-social en salud mental y sus otros dispositivos. Se trata de discutir el proceso de rehabilitación psico-social y este tipo de acción terapéutica en la salud mental a partir de la clínica de AT. Para ello se realizó una reflexión teórica considerando los paradigmas de los modos de asilar y psico-social de atención que hacen referencia a las prácticas de intervención terapéutica en salud mental. Las reflexiones conducen a la importancia de la consolidación de una red de atención que posibilite perspectiva de vida a los portadores de sufrimiento psíquico como un desafío a enfrentar que considere prioritariamente el sujeto implicado y su contexto de inmersión social.

Palabras clave: Acompañamiento terapéutico. Rehabilitación psico-social. Enfermería psiquiátrica. Salud mental. Recebido em 29/01/2008. Aprovado em 22/12/2008.

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artigos

Planografias em pesquisa: mapas e fotografias na saúde mental*

Rafael Diehl 1 Cleci Maraschin 2 Jaqueline Tittoni 3

DIEHL, R.; MARASCHIN, C.; TITTONI, J. Planographs in research: maps and photographs within mental healthcare. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.79-91, jul./ set. 2009.

The production and use of inscription within research at a unit caring for children and adolescents at the São Pedro Psychiatric Hospital, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, is discussed. Workshops on maps and photography were proposed, with the aim that the young people could produce a plan with differentiated legitimacy in relation to the existing plans for their hospitalization (medical files and occurrence books). The differences in the production of maps and photographs made it possible to specify the epistemological notion of inscription plans, from which three fields of analysis were established: a position from which to observe the plan, the technical conditions for producing it and the position of such plans in truth games. The need to question the techniques involved in knowledge production was shown, since the use of technical artifacts specifically connects the field of discourse and the material issues that support it.

Discute-se a produção e uso de inscrições no percurso de uma pesquisa junto à unidade de atendimento de crianças e adolescentes do Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre, RS, Brasil. Oficinas de mapas e de fotografia foram propostas com o intuito de os jovens produzirem um plano com legitimidade diferenciada quanto aos planos existentes em sua internação hospitalar (prontuários, livro de ocorrência). As diferenças entre a produção de mapas e de fotografias permitiram especificar a noção epistemológica plano de inscrição, na qual estabelecemos três campos de análise: uma posição de observação frente ao plano, as condições técnicas de sua produção e a posição destes planos nos jogos de verdade. Evidenciou-se a necessidade de um questionamento sobre as técnicas envolvidas na produção de conhecimento, já que o uso de artefatos técnicos articula de maneira específica o campo do discurso e as materialidades que o suportam.

Keywords: Photography workshops. Map workshops. Mental health. Research methodology.

Palavras-chave: Oficinas de fotografia. Oficinas de mapa. Saúde mental. Metodologia de pesquisa.

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Elaborado com base em Diehl (2007), dissertação com bolsa Capes. 1 Doutorando, Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 201d. Porto Alegre, RS, Brasil. 90.035-003. diehlrafael@yahoo. com.br 2, 3 Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia, UFRGS. *

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Planografias em pesquisa:...

Introdução Este artigo propõe-se a realizar uma análise da produção e uso de inscrições no contexto de uma pesquisa no Centro Integrado de Atenção Psicossocial (CIAPS) do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP) em Porto Alegre. Com base em oficinas desenvolvidas no serviço, buscou-se investigar quais diferenças eram passíveis de observação pelo uso de artefatos digitais na produção de inscrições em relação às que eram produzidas sem esses artefatos. Para essa análise não tomamos as inscrições de modo isolado, mas referidas às superfícies que as suportam. Definimos superfícies de inscrição como qualquer superfície capaz de suportar traços com caráter simbólico para um grupo humano, tais como: paredes pichadas, folhas de papel, tela de computador e tela da TV. Escolhemos usar esse termo para reforçar o caráter material das produções simbólicas e sua relação com as condições de reconhecimento por um coletivo. Dessa forma, o objetivo deste artigo é propor uma análise da relação dos sujeitos da pesquisa com as superfícies de inscrição, levando em consideração três aspectos: a especificidade técnica dos suportes; a condição humana enquanto observador e os tensionamentos políticos daí emergentes. Trabalharemos com dois níveis de referência: o percurso de pesquisa enquanto fonte dos questionamentos teórico-metodológicos e uma proposição conceitual que articula campos teóricos heterogêneos, que se pretende justificar por sua operacionalidade no decorrer do trabalho. Nomeamos planografias ao conjunto de superfícies de inscrição e suas condições de inteligibilidade e legitimidade em determinado recorte empírico. A análise presente neste artigo utiliza uma articulação teórica entre a noção de inscrição de Latour (2004), poder-saber de Foucault (2002) e o conceito de observador em Maturana (2001) para abarcar a proposição metodológica utilizada, que consistiu em oferecer a máquina fotográfica para que os sujeitos da pesquisa produzissem fotografias. A fotografia foi escolhida por tratar-se de artefato técnico de produção de superfícies de inscrição que pode ser considerado como marco importante na relação entre humanos e a produção de inscrições. A fotografia tem sido utilizada de diversos modos em contextos de pesquisa, constituindo-se como parte significativa da metodologia e colocando questões importantes quanto ao seu uso e divulgação nos meios científicos. Em uma extensa revisão da literatura, Neiva-Silva e Koller (2002) identificam quatro funções da fotografia em uso nas pesquisas em psicologia: registro, modelo, feedback e autofotografia. Como suposto registro objetivo de dados, era utilizada para fazer comparações entre a inteligência dos sujeitos e a fotografia dos mesmos; como recurso semântico, utilizava-se a fotografia como modelo de algum conceito, sendo escolhida por ser mais facilmente reconhecida do que uma descrição verbal. Como exemplo de feedback, mostravam-se aos sujeitos fotos de si mesmos, com avaliações antes e depois, procurando avaliar efeitos sobre a autoestima por meio da mudança nos escores de testes. Nesses exemplos, podemos perceber que a fotografia encontrou os mais diversos usos, que tanto explicitam a atitude exploratória dos pesquisadores referente ao instrumento que utilizavam, como as concepções epistemológicas dos mesmos. O método autofotográfico (Ziller, Smith, 1977 apud Neiva-Silva, Koller, 2002), que consiste no pedido para que os sujeitos da pesquisa façam suas próprias fotos com base em um tema sugerido ou em resposta a uma pergunta, inaugura o uso da máquina fotográfica pelos sujeitos da pesquisa, mesmo que ainda dependente do contexto discursivo no qual ocorre. O que nos interessa nessa modalidade metodológica é que ela põe em ação uma torção nas posições frente à máquina, podendo acarretar implicações epistemológicas e políticas, uma vez que aquele que é capaz de fotografar é o mesmo que, muitas vezes, é despotencializado frente a outras superfícies de inscrição. Apesar de diversos usos metodológicos, tais como o de Achutti (2004) na antropologia visual e de Kirst (2000) na psicologia social, nos quais os autores fazem uma problematização quanto ao instrumento, a câmera ainda é manipulada pelo pesquisador. A pesquisa a que nos referimos se situa próxima a experiências nas quais a câmera é entregue para os sujeitos de pesquisa (Maurente, Tittoni, 2007; Maurente, 2005; Neiva-Silva, 2003; Wals, 2003; Tacca, 1991), com a peculiaridade de que a torção nas posições frente à máquina teve como objetivo explicitar as diferenças técnicas na produção de superfícies e sua articulação com o modo de leitura das planografias no local.

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Projeto com apoio financeiro do CNPq. 4

artigos

O campo da pesquisa e sua planografia A pesquisa de dissertação de mestrado que serviu de referência para este artigo inseriu-se no projeto de pesquisa e extensão denominado Oficinando em Rede4, por meio de uma parceria entre o Instituto de Psicologia e a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o CIAPS/HPSP. O Oficinando em Rede constituiu um campo de pesquisa e intervenção a partir da realização de oficinas com o apoio das tecnologias da informação e comunicação (TIC) no laboratório equipado com computadores e acesso à internet instalado no CIAPS. O CIAPS é a unidade de internação e ambulatório de crianças e adolescentes do Hospital Psiquiátrico São Pedro, que encontra-se em uma situação híbrida em relação à reforma psiquiátrica ao oferecer serviços de internação para parte dos usuários do estado do Rio Grande do Sul e atendimentos ambulatoriais para a população de seu território dentro do município. Foi criado a partir de uma ação judicial do Ministério Público destinada à observância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois os adolescentes eram internados no hospital junto com os adultos. Inicialmente, conteve a proposta de ser um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) conforme a influência do movimento antimanicomial, mas pela presença marcante das internações teve, por decisão da equipe técnica, seu nome modificado de CAPS para CIAPS. Os jovens em atendimento na internação do CIAPS são identificados predominantemente sob o diagnóstico de transtornos mentais e de comportamento devido ao uso de substância psicoativa (F10-19), seguido de categorias como transtorno de humor e diagnósticos identificados às psicoses (Scisleski, 2006). Na avaliação dos encaminhamentos, o CIAPS parece funcionar como último recurso em uma espécie de errância desses jovens, que, não encontrando situações ou instituições que os acolham ou deem continência a eles, chegam por via judicial ou via conselho tutelar para a internação psiquiátrica, havendo um predomínio percentual de internações por ordem judicial (Scisleski, Maraschin, Silva, 2008; Scisleski, 2006). O mote inicial do percurso investigativo partiu da observação de que as paredes da sala de atividades de grupo da internação de adolescentes se encontravam repletas de inscrições de nomes de pessoas e de cidades de proveniência dos jovens, apesar das constantes reprimendas quanto ao ato de nelas escrever. Ao mesmo tempo, percebiam-se restrições quanto à possibilidade de os jovens produzirem inscrições em superfícies institucionalmente legitimadas. Uma dessas manifestações podia ser percebida na atividade de “Leitura do Livro”, que consistia em um livro de ocorrências que era lido diariamente e servia de referência “oficial” para os acontecimentos na internação, mesmo que os jovens relatassem outras versões para esses acontecimentos. Além disso, na semana seguinte às primeiras observações, as inscrições nas paredes da sala de atividades foram cobertas por uma nova camada de tinta. Antes mesmo da instalação do laboratório, a equipe do projeto já havia escolhido a modalidade oficina como instrumento metodológico; e, a partir da observação das inscrições nas paredes, propusemos uma oficina de desenho de mapas, na qual eram levados mapas do estado do Rio Grande do Sul e da cidade de Porto Alegre como disparadores de comentários a respeito da origem dos jovens. Em seguida, pedíamos que desenhassem um mapa com aquilo que julgavam importante. A escolha do mapa como tipo peculiar de inscrição sobre uma superfície procurava relacionar a superfície produzida com experiências dos jovens que não estivessem reduzidas ao âmbito da escrita ou da produção pictórica já desenvolvidas em outras oficinas. Apostávamos que, frente a um mapa, os jovens teriam mais autoridade sobre as inscrições produzidas do que se estivessem, por exemplo, convocados a escrever, pois o mapa situa-se a meio COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Planografias em pesquisa:...

caminho entre a escrita e a fotografia, no sentido de que torna mais objetiváveis as inscrições sobre a superfície ao enfraquecer a figura do autor, que está melhor estabelecido num texto escrito, levandonos a considerar que, no mapa, já há uma posição de observação estabilizada frente ao plano. Essa oficina buscava oferecer aos jovens a possibilidade de produzirem inscrições nas quais estivessem ocupando uma posição mais legítima, pois, ao desenharem os mapas, referiam-se a um espaço que eles conheciam muito bem, mesmo que os mapas levados adquirissem um valor de modelo a serem seguidos, e apesar de muitos dizerem que não sabiam desenhar. Procurando avaliar quais diferenças a tecnologia digital colocaria para a produção de inscrições pelos jovens, propusemos, na sequência, uma oficina de fotografia na qual perguntávamos se os jovens queriam fotografar, apenas oferecendo uma máquina fotográfica digital sem propor um tema específico. A proposição causou estranhamento nos jovens ao serem convocados a assumirem a posição de produtores das fotografias e, complementarmente, parte da equipe sentiu-se incomodada com o fato de os jovens empunharem uma câmera e de se encontrarem na posição de objeto para as fotografias. Os efeitos provocados no local pelo fato de os jovens empunharem uma câmera fotográfica nos levaram a interromper as oficinas e propor uma nova modalidade na qual todos os envolvidos foram convidados a participar e dar seu consentimento para a organização de uma exposição dentro dos limites da internação. Essa proposta ocorreu no período de uma semana devido à rotatividade dos jovens na internação, pois queríamos que participassem de todas as etapas do processo. O comitê de ética do hospital não permitiria que os jovens aparecessem nas fotografias expostas fora do âmbito da internação. As fotografias não permaneceram mais do que uma semana nas paredes da mesma sala em que haviam as pichações sobre as cidades, ao contrário dos mapas e outras produções pictóricas que os jovens faziam em oficinas. Quando questionados sobre o destino das fotografias, ninguém na internação soube informar o que acontecera com elas, ficando apenas o livro de visitas que foi colocado junto da exposição, que continha recados semelhantes aos deixados pelos oficineiros.

Metodologia e análise Duas peculiaridades metodológicas são expostas neste artigo para situarmos as planografias no contexto da pesquisa em ciências humanas: a torção produzida pelo oferecimento da câmera fotográfica para os jovens acostumados a ocuparem a posição de objetos do conhecimento, e a decisão do percurso de pesquisa aqui reportado de deslocar o foco do conteúdo das planografias para as condições de sua produção, o que justifica o estranhamento de um artigo que fala de fotografias sem mostrá-las. Metodologicamente, escolhemos trazer para o plano da divulgação científica apenas inscrições referentes ao diário de campo porque é ele que permite, em nosso caso, acompanhar o processo de produção de planografias no CIAPS, deslocando nossa atenção do possível conteúdo dos mapas e fotografias produzidos para as condições de sua produção. Tal escolha implica não só a exposição do que foi relatado no diário de campo, mas exige algumas considerações epistemológicas, já que nossa pergunta refere-se às diferenças que a técnica de produção de uma superfície de inscrição coloca para o campo discursivo relacionado à leitura das planografias. A passagem da oficina de mapas para a de fotografias baseou-se na condição de que as duas modalidades de planografias mantêm uma estabilidade de compartilhamento de inscrições possibilitada por um plano que estabiliza uma posição de observação frente a ele, permitindo que diferentes sujeitos possam ocupar uma posição frente à superfície. Essa posição de observação estabilizada frente ao plano torna-se mais marcada num mapa do que na escrita, por exemplo, porque a relação das inscrições do plano com o referente abdicam da centralidade do autor ou narrador encontrado no texto, criando um efeito de objetividade que encaminha o mapa a um modo de planografia que a fotografia vai concretizar com o auxílio do artefato da câmera escura. Essas diferenças estão intimamente relacionadas ao campo discursivo de cada planografia, pois sua afiliação a uma maior objetividade coloca a fotografia como instrumento diferenciado no contexto do CIAPS, motivo pelo qual propomos concentrar nossa análise nas condições de produção das planografias. No domínio da produção de conhecimento científico, Latour (2004) denomina “central de cálculo” 82

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5 Para Maturana (2002), a linguagem é um efeito recursivo de coordenações de ações consensuais, o que a torna sempre dependente do contexto e da articulação entre ações e inscrições.

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o tipo de superfície plana que o cientista tem ao domínio do olhar e que permite fazer previsões e relações em referência a outro domínio de realidade sem necessariamente estar imerso nele. Um exemplo é o trabalho do cartógrafo frente a um mapa, pois a possibilidade de o cartógrafo trabalhar com inscrições sobre o mapa só é possível porque outros cartógrafos estiveram no território e articularam inscrições produzidas in loco com outras estabilidades que permitiram estabelecer o desenho do mapa que pode ser contemplado na calma de um gabinete. Essa “mobilidade imutável” das inscrições permite que o observador, diante de uma central de cálculo, aumente seu poder preditivo ao multiplicar sua possibilidade de relacionar inscrições. Um exemplo da estabilização da posição de observação em campo pode ser vista na utilização de uma tabela que contenha diferentes matizes de cores de solo e seus respectivos códigos. De posse dessa classificação, um pesquisador pode aproximar o pedaço de solo que tem em mãos e os orifícios em cada matiz, podendo assim anotar o código da cor mais próxima do solo encontrado (Latour, 2001). Essa condição de central é mantida com a estabilização de uma posição de observação que exige a diminuição das singularidades de cada observador ao tratar com as inscrições, pois a consistência da central é dependente desse acordo entre diversos observadores. Por esse motivo, o mapa é um tipo de planografia que situa seu produtor na posição de um observador legítimo, desde que consiga articular, com os códigos de inscrições de mapas, sua experiência relativa ao espaço. Nós nos aproximamos da questão central da metodologia ao percebermos que a tensão encontrada na produção de planos no CIAPS refere-se à posição em que os jovens estão acostumados a serem colocados diante de uma central de cálculo que se refere a eles mesmos. A diferença metodológica é que o objeto a que se referem as centrais de cálculo do hospital são os próprios pacientes que se encontram impossibilitados de participarem na definição das inscrições válidas para figurarem na central, ou, quando participam, o fazem como testemunho ou prova dos argumentos oficiais. Acreditamos que essa é, também, uma peculiaridade da pesquisa nas ciências humanas, pois ao se utilizar de superfícies de inscrição que configuram as centrais de cálculo para produzir conhecimento sobre o humano, a própria posição de observação frente ao plano legível deve ser recolocada como problema de pesquisa. Os critérios de conduta que definem um diagnóstico sofrem uma determinação importante de fatores históricos e do próprio modo de funcionamento de instituições psiquiátricas, o que vai ao encontro do que Hacking (2001) define como classes interativas, ou seja, objetos que, ao serem classificados, sofrem modificações resultantes da própria ação de estarem classificados sob determinado traço. Como essas classes dizem respeito, sobretudo, ao domínio da conduta humana, entendido como domínio de coordenações de ações entre sujeitos linguajantes (Maturana, 2001), a atividade de produção de centrais de cálculo num campo de conhecimento que tem o humano como objeto fica mais sensível à dimensão política. A condição de observador, teorizada pela Biologia do Conhecer (Maturana, 2002, 2001; Maturana, Varela, 2001), possibilita compreender a emergência da linguagem com base na convivência entre humanos, estabelecendo a condição dinâmica do linguajar como coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações5 (Maturana, 2002), na qual as possibilidades de ações estão codeterminadas pela convivência com outros organismos da mesma espécie. Esse domínio, por ser constituído de ações, é dependente do acordo entre os vários agentes sobre as ações pertinentes para cada situação e aquelas válidas como passíveis de se referirem à realidade. É nesse ponto que a política, no sentido de correlações de força entre diversos agentes, participa da constituição dos modos de representação do mundo. 83


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A dimensão política refere-se ao campo de ações e de relações entre agentes que estabelecem as ações possíveis e legítimas em determinadas condições em articulação com cristalizações técnicas, o que inclui agentes humanos e não-humanos. No que se refere às planografias, essa tensão pode ser percebida no tipo de assunção que um sujeito toma para si em relação ao que pode produzir sobre uma superfície, como pode ser percebido no trecho a seguir. Pedro era um jovem que nas primeiras oficinas de mapas apenas circulou dizendo que não sabia desenhar. Outras vezes desvalorizava a oficina. Desenvolveu comigo uma relação na qual parecia esperar a minha aprovação, apesar de que na minha chegada fazia um comentário de desprezo ao fato de eu estar ali de novo. Em uma das oficinas, pede que eu escreva uma carta de amor para sua namorada, pergunto porque ele não faz, ele diz que prefere que eu escreva como se fosse para minha namorada, mas quando espero que ele dite, ele diz que eu devo escrever. Acabo dizendo que não posso escrever uma carta por ele. Em outro dia em que me pede para escrever uma carta para sua mãe, escrevo a seu pedido o nome dela, sendo que depois ele completa com mais alguns nomes de sua família. Circula pela oficina sempre sem se dedicar aos mapas e diz, em uma ocasião em que me perguntam onde guardo os mapas, que eu os deixo largados lá na sala. Em uma das oficinas, quando ele ouve eu dizer que moro na mesma cidade que ele, me pergunta porque eu não havia dito isso antes, e pede para eu ir na casa da avó dele que ficaria perto da minha casa. Ele se dispõe a desenhar um mapa das proximidades, e posso reconhecer no mapa a localidade a que se referia. Falo com a assistente social para que conseguissem entrar em contato com sua avó, mas nas semanas seguintes ele ainda me cobra a visita e parece desanimado com minha negativa. Depois disso, algumas vezes o encontraria pelas ruas da cidade e nos cumprimentaríamos, tangenciando os assuntos que diziam respeito a sua estada nas ruas. (Diário de Campo)

Fica claro nesse episódio que a relação do jovem com as superfícies de inscrição disponibilizadas na oficina era marcada pela desvalorização de sua possibilidade enunciativa, seja na escrita ou no endereçamento dela para sua namorada. Quando ele percebe uma operacionalidade efetiva que o mapa teria para localizar a casa de sua avó, pode perfeitamente ocupar a posição de observação e articular as inscrições de modo efetivo. Assim, podemos perceber que o jovem dominava as condições técnicas de desenhar um mapa legível mas que, em sua relação com o pesquisador e os planos usados na internação, não se sentia legítimo em produzi-los. Essa condição de articulação entre posições de observação, planos e legitimidades quanto ao ato de produzir inscrições reconhecíveis num coletivo levou-nos a delimitar uma questão teóricometodológica: quais determinantes no domínio da conduta humana - que por emergir da dinâmica das relações também se refere à política - eram provocados ou explicitados no uso de uma máquina fotográfica no contexto da pesquisa? A análise destina-se a compreender os motivos pelos quais o oferecimento da máquina fotográfica aos sujeitos da pesquisa produziu uma torção nas posições de observação frente ao plano de inscrição muito mais potente do que as que foram observadas em outras circunstâncias existentes na própria pesquisa, como foi o caso das oficinas de mapas. Para compararmos um mapa desenhado pelos jovens com uma fotografia feita por eles, os definiremos como dois tipos de plano de inscrição. Acompanharemos as diferenças de cada plano em seus três campos de análise: (1) condições técnicas de produção do plano (ou os determinantes do meio fotográfico), (2) a posição de observação frente ao plano, e (3) a posição nos jogos de verdade (ou política de distinções).

Os determinantes do meio fotográfico Ao produzir um plano que é resultado do sucesso da fixação das imagens produzidas pelo artefato da câmara escura, a fotografia, desde o seu surgimento, suscita constantes discussões a respeito do seu estatuto. Segundo Dubois (1994), a teorização da fotografia passou por três tempos: inicialmente, teve 84

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sua manifestação no discurso da mimese, em que a fotografia era o espelho do real e deixava para a pintura o estatuto de arte, pois prescindia da participação subjetiva do operador. Em seguida, houve o movimento contrário de apontar quanto a fotografia era codificada e, dessa forma, determinada culturalmente. O terceiro tempo permite ressurgir o primado do referente, sobretudo com Barthes (1988, p.115), em sua “Câmara clara”, no qual “a referência é a ordem fundadora da fotografia”; e, com o próprio Dubois (1994), inicia a conceituação da fotografia como traço de um real, em que o conceito de índice de Peirce (1984) vai sustentar uma abordagem que procura se aproximar de uma pragmática semiológica na fotografia. Essa variação na ênfase explicativa da fotografia explicita uma tensão na própria concepção de percepção do mundo. Assim como no conceito de central de cálculo de Latour (2004), as inscrições na superfície de uma fotografia exigem uma explicação de sua relação com o mundo, recebendo sua ênfase conforme o caráter mais realista ou construtivista daquele que a explica. A aproximação do conceito de índice permite uma abordagem semiótica que explicita melhor as relações entre as inscrições e suas condições de produção, introduzindo a problemática da relação entre determinantes técnicos e condições de leitura. O que buscamos definir para este trabalho é justamente o contexto em que surgem os determinantes técnicos da fotografia, não como configurações da matéria alheias ao campo discursivo, mas como articulação entre práticas tecnológicas e práticas discursivas. Seguindo a problematização proposta por Batchen (2004), que consiste em perguntar por que a fotografia só tem seu nascimento atestado em 1839 com Daguerre, mesmo existindo as condições técnicas da câmara escura e os desenvolvimentos da química muito antes desta data, queremos situar os determinantes do meio fotográfico a partir do surgimento de uma técnica no contexto histórico e político de sua gênese. Dessa forma, pensar a fotografia como técnica de produção de uma superfície de inscrição requer buscar as suas condições de surgimento como prática, situando-a tanto em relação aos determinantes mais “duros”, como o tipo de substância química necessária para a fixação das imagens no papel, e, também, as condições políticas de sua rápida proliferação, como artefato de produção de superfícies de inscrição. Como resultado da fixação em uma superfície das imagens produzidas pela câmara escura, a fotografia agrega não só uma descoberta da óptica, relativa às propriedades de refração da luz e dos compostos químicos colocados na placa sensível, mas se situa como uma forma de representação herdeira da perspectiva renascentista, que centraliza tudo no olho de quem vê (Berger, 1999). Além disso, é contemporânea do pintoresquismo, forma de apreensão estética muito em voga na época do seu surgimento, que tinha, no enquadramento das paisagens representadas, a constituição “de un personaje, una figura que observa con discernimiento a la vez que se constituye como discerniente por ‘el habito de ver’” (Batchen, 2004, p.81). Temos, assim, um movimento que apontava não só uma maneira de representar, mas também uma maneira de ser observador à época da busca pelas primeiras fotografias, mostrando a indissociabilidade das formas técnicas de representar e os modos de percepção do mundo. Ao inaugurar a possibilidade de imagens planas muito próximas ao que o olho humano percebe, a fotografia, para Flusser (2002), pode ser tomada como modelo de todas as outras imagens técnicas posteriores, constituindo, para o autor, uma revolução em nossa cultura comparável à invenção da escrita linear. Para Flusser (2002), o caráter de magia das imagens foi substituído pela linearidade dos conceitos dois séculos antes de Cristo, o que possibilitou a noção de história, uma vez que as imagens foram decompostas em linhas e passaram a ser representadas de forma linear, ao invés de circular, como nas imagens que contemplamos. Com o advento das imagens técnicas, temos imagens que são transcodificações de conceitos em cenas, produzindo um tipo de percepção de imagens atravessada pela codificação técnica, o que nos aproxima da problemática da participação do discurso nas formas de produção de materiais que informam. Essa importância da fotografia no desenvolvimento das imagens técnicas nos auxilia a determinar as diferenças técnicas na produção de planos de inscrição, uma vez que a análise de Flusser (2002) parece indicar essa diferença, pois tanto a escrita linear como as imagens técnicas se estabelecem como formas peculiares de produção de inscrições em uma superfície plana. Ao inserir um artefato 85


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técnico na produção do plano, a fotografia produz novas relações entre o plano e seus produtores e leitores. É essa modificação que vai produzir os discursos em torno do estatuto da fotografia na linguagem e como categoria epistemológica, já que, ao produzir um plano que supostamente prescinde da participação da subjetividade do operador, a relação entre a natureza (photo) e a cultura (grafia) adquire outra conotação quando do uso do plano que a fotografia inaugura. Essas diferenças podem ser percebidas na experiência das oficinas quando oferecemos a possibilidade de os jovens produzirem um plano que não necessita do domínio de um código complexo, como no caso da escrita linguística, mas que exige apenas a manipulação da máquina facilmente reconhecida em nossa cultura. Para Flusser (2002, p.31-2): A manipulação do aparelho é gesto técnico, isto é, gesto que articula conceitos. O aparelho obriga o fotógrafo a transcodificar sua intenção em conceitos, antes de poder transcodificála em imagens. Em fotografia não pode haver ingenuidade. Nem mesmo turistas ou crianças fotografam ingenuamente. Agem conceitualmente porque tecnicamente.

Mesmo com essa aparente capacidade técnica de manipular o aparelho, os jovens não se sentiam autorizados a empunharem a câmera e produzirem um plano fotográfico, e, ao primeiro convite, entenderam que era para eles se posicionarem como objetos para serem fotografados. Este fato aponta que o uso da máquina fotográfica articula não apenas determinantes técnicos, relativos às especificidades da matéria de expressão utilizada, mas coloca em jogo determinantes de ordem política, no sentido de tensionamentos relativos ao uso da máquina no contexto da instituição. Esses tensionamentos políticos, entendidos como correlações de força no domínio da conduta, articulam não só os agentes envolvidos, mas implicam uma dimensão epistemológica, que, no caso da fotografia, se refere a uma posição de observação que o artefato da fotografia estabiliza, deslocando o estatuto do plano que produz em direção a um realismo. A constituição de uma posição de observação frente ao plano, como condição de reconhecimento de inscrições, pode ser situada em um contexto histórico e discursivo específico, mas a consideração epistemológica do ser humano como observador sem acesso a uma realidade exterior serviu-nos como pressuposto epistemológico e estratégia de pesquisa.

Uma posição de observação frente ao plano Um dos jovens vê a máquina, diz que uma dessas ele vende por trezentos reais. Quando oferecemos para que ele tire fotos, ele parece indeciso, e tira rapidamente três poses das dez que dissemos que podia fazer. Fala depois que não é viciado, que os amigos dele, quando roubam uma câmera, ficam deslumbrados, e daí os brigadianos (policiais) pegam. (Diário de campo)

A posição de observação que a máquina fotográfica explicita pôde ser utilizada como tática de empoderamento dos jovens, mas essa posição não pode ser confundida com a condição epistemológica do observador para Maturana (2001). Para esse autor, a condição de observador não se refere ao fato de cada um ocupar uma posição no espaço que justificaria a noção de ponto de vista, mas ao fato de não sermos capazes, como organismos vivos, de diferenciar entre o que consideramos uma ilusão de uma percepção verdadeira sem recurso a outras experiências próprias ou de outro observador. Tal condição enfatiza a participação das distinções feitas por um observador como necessárias para a constituição daquilo que consideramos verdadeiro. Como “tudo o que é dito é dito por um observador a outro observador que pode ser ele ou ela mesma” (Maturana, 2001, p.37), a validade de um enunciado só pode ser estabelecida na relação com outras experiências e estabilidades na linguagem, sendo que a participação de suportes para marcas simbólicas encontra um papel importante no estabelecimento da cultura humana. A questão então é a de como estas marcas adquirem valor de verdade numa comunidade de observadores. Dessa forma, como cada observador é autoridade no que diz respeito ao que percebe, o estabelecimento de critérios de realidade e verdade ocorre por reformulações da experiência com o 86

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auxílio de suportes como as centrais de cálculo. No caso das centrais de cálculo das ditas ciências da natureza, a validade das inscrições na central são mantidas pelo rigor na conduta de cada observador singular que produz os dados, e o erro, nesse caso, acontece quando o observador singular não segue a conduta de pesquisa de acordo com a comunidade científica. Mas a noção de erro assume outra conotação quando o objeto da ciência é o ser humano e seu domínio de conduta, pois a manipulação das centrais de cálculo não situa todos os possíveis observadores na mesma posição de cientista ou observador-padrão. Assim, o erro pode ser associado não mais à conduta de observador-padrão, mas à inclusão-exclusão em classes determinadas pela conduta e usadas para classificar observadoresobjeto nas centrais. Uma vez que a definição de pertencimento a uma classe depende do enunciado de um observador legitimado, o uso das superfícies de inscrição como suporte de centrais de cálculo nas ciências da conduta humana sofre uma determinação importante das condições políticas de cada observador frente ao plano de inscrição. É por esse motivo que as superfícies produzidas pela fotografia adquirem o valor de uma central de cálculo das ciências da natureza, pois a posição de observador estabilizada pelo artefato técnico funciona como um observador-padrão, já que, na fotografia, é como se a centralidade do olho do observador inaugurada com a perspectiva pudesse encontrar estabilidade técnica além da mão do desenhista. Os jovens saem da sala de atividades com a câmera, a reação inicial da equipe que estava no posto de enfermagem é de um incômodo seguido de uma pergunta sobre a razão do jovem estar segurando a câmera. Quando um dos jovens surpreende os auxiliares de enfermagem dentro da sala, há um estranhamento logo suplantado por uma disponibilidade e organização das poses. (Diário de campo)

O que o uso da máquina fotográfica, pelos jovens, tornava explícito era a condição de que as posições frente aos planos de inscrição do hospital são fixadas não por uma conduta científica ou não, mas por tensionamentos políticos que especificam quem tem legitimidade de fazer marcas em planos legítimos. A diferença da máquina fotográfica é que ela restabelece a condição de qualquer observador poder ocupar a posição de observador-padrão da ciência. Isso pode ser visto pelas diferenças entre as oficinas de mapas e de fotografia, pois a posição de observação na fotografia parece prescindir da ocupação de um observador singular, já que os objetos nela registrados forçam a dimensão da máquina fotográfica em direção a um realismo, enquanto, nos mapas, a participação de um subjetivismo no desenho dos mesmos poderia sempre ser um álibi para a refutação de sua condição de verdade. Nas oficinas, a posição de observação que os jovens ocupam ao empunhar a câmera não era tão visível na produção de mapas, pois estes eram tomados como produções mais ligadas à subjetividade dos produtores e facilmente poderiam ser relacionadas à sua condição psíquica. Apesar de os códigos para tornar um mapa legível estabilizarem, de certa maneira, uma posição de observação, a posição explicitada pelo uso da câmera é muito mais potente, pois além de os jovens ocuparem uma posição de observação objetivada pelo artefato técnico, também as superfícies produzidas pela fotografia se relacionam de uma maneira diferenciada com os objetos que representam. Essa identidade entre a imagem produzida pela fotografia e as imagens que temos dos objetos por nossos próprios olhos é um dos efeitos que Flusser (2002) aponta como característica de nossa sociedade tomada pelas imagens técnicas. O que se torna necessário levar em consideração é o caráter codificado das imagens técnicas, o que, no contexto da pesquisa, exige que as questões de posse e identidade do plano da foto sejam dialogadas com todos os participantes na produção das superfícies.

Política de distinções O que a proposta das oficinas procurou colocar em questão no âmbito do CIAPS, sobretudo por meio da torção, foi menos os possíveis conteúdos dos planos que os jovens poderiam produzir do que as possibilidades de ocupação de uma posição de observação legitimada capaz de produzir COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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superfícies que adquiram valor de verdade. Quando Foucault (2002) busca definir o discurso como um tipo de determinação que escapa do campo meramente formal das matérias de expressão, ele acaba por relacionar essas produções ao que chama de jogos de verdade, pois não se trata de encontrar no discurso um acesso privilegiado ao mundo, mas justamente situar o discurso como campo pelo qual e no qual se luta (Foucault, 1996), já que, no que se refere ao domínio do poder, a verdade ocupa posição privilegiada. Dessa maneira, quando se estabilizam formas de compartilhamento de inscrições, como no caso dos planos de inscrição - seja um mapa, uma fotografia, uma tela de computador -, o campo do sentido das inscrições lidas está articulado aos modos de constituição técnica daquela superfície, o que explica as diferentes considerações quanto ao conteúdo das superfícies produzidas. Assim, tal característica exige, no contexto de pesquisa, uma pergunta sobre a articulação entre as condições técnicas dos materiais de pesquisa e o campo discursivo, uma vez que a especificidade técnica modifica o domínio da conduta humana onde podemos situar a política. Quando uma posição de observação é cristalizada com o advento da capacidade técnica de fixar imagens em um plano, temos um artefato que, ao ser estabilizado, opera num domínio independente do campo discursivo enquanto máquina já produzida, mas na sua invenção e no momento em que nos oferece uma superfície de leitura, o domínio da conduta humana e da política na linguagem passam a operar também no uso desse artefato. Os efeitos dessas considerações no campo da pesquisa podem ser avaliados tanto do ponto de vista metodológico como no de intervenção. A própria proposta de torção se apóia em um posicionamento político e epistemológico capaz de indicar a diretriz da intervenção, pois no âmbito dessa pesquisa tornou-se mais importante especificar os determinantes técnicos e discursivos na produção de um plano como o fotográfico, do que utilizar estes artefatos para a produção de superfícies que serviriam de suporte para sentidos sobre os sujeitos da pesquisa. Além disso, somado ao fato de não podermos mostrar as fotos nas quais os jovens apareciam fora dos limites da internação, sustentamos a postura de não utilizar, no âmbito da divulgação científica, as superfícies produzidas pelos jovens justamente para deslocar a atenção do campo de sentido das planografias para as condições técnicas e discursivas de sua produção. Se as planografias adquirem outro tipo de validade na pesquisa no domínio da conduta humana, pois o objeto a que se referem são muitas vezes os sujeitos e seus comportamentos, o modo como as utilizamos torna-se uma questão crucial para as ditas ciências humanas. Além de serem usadas como suporte para transferir dados do campo para uma central de cálculo na universidade, por exemplo, elas precisam ser pensadas como campo de disputas políticas, em seu sentido discursivo, já que a função de estabilidade de um observador-padrão frente ao plano tem de considerar a posição dos sujeitos da pesquisa frente a esse mesmo plano. Quando as posições frente ao plano não são potencialmente equiprováveis, a posição do pesquisador frente aos seus materiais de pesquisa deve levar em consideração as possíveis relações de seus sujeitos de pesquisa com os planos de inscrição com os quais trabalha.

Considerações finais Levando em conta que, apesar do consentimento de todos os que apareciam nas fotos da exposição, as fotografias produzidas pelos jovens não conseguiram permanecer por muito tempo na sala em que foram fixadas por sobre as inscrições na parede; que a atividade de os jovens fotografarem causou efeitos intensos nos modos de se relacionarem com os planos produzidos dentro do CIAPS; e que suas imagens não poderiam aparecer fora dos limites da internação, podemos tecer alguns comentários sobre esses limites experimentados nesta proposição de pesquisa. O conjunto de limitações encontradas na atividade de produção e exposição das fotografias feitas pelos jovens se referem, no nosso entendimento, não só à posição que os jovens ocupam frente aos planos de inscrição do local, mas também aos tensionamentos colocados pela atividade de pesquisa. Isso porque, na medida em que as posições frente aos planos implicam não só os jovens, mas os 88

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pesquisadores e os trabalhadores do local, a atividade de pesquisa precisa levar em consideração todas as posições dos agentes frente aos planos que utiliza, pois a não permanência das fotos na parede não pôde ser exaustivamente analisada porque o esclarecimento de tais condições teria de envolver um trabalho com toda a equipe do CIAPS, o que fugia dos limites da proposta. Por nos concentrarmos em questões de cunho epistemológico, essas limitações nos interessam na medida em que mostram as relações entre um domínio que seria dependente do discurso e outro não dependente, pois, quando se cristalizam procedimentos sob a forma de objetos técnicos, eles alcançam autonomia em relação às determinações discursivas, pois operam de forma independente do domínio da conduta humana. Isso não quer dizer que o discurso não esteja presente, mas que ele opera no limite entre uma estabilidade alcançada pela técnica e que modula o campo dinâmico das relações a partir do que foi cristalizado. Assim, nem tudo é determinado pelo discurso, como nem tudo é determinado por uma operatividade causal encontrada nos objetos técnicos, mas há uma articulação entre essas duas dimensões. Essa articulação e o presente trabalho permitem afirmar que os limites impostos à loucura, outrora feitos com o auxílio dos muros e grades, hoje estão mais relacionados aos suportes que comportam matéria informativa, tornando a relação entre discurso e práticas de segregação mais dependente das tecnologias de informações e comunicação e dos modos estabilizados de perceber. Nesse sentido, a atividade de pesquisa nesse campo precisa assumir a condição constitutiva dos usos das tecnologias da informação e comunicação em suas práticas, pois o posicionamento político do uso de tais artefatos tem papel importante na constituição de práticas de cuidados na saúde que considerem a relação entre os saberes da população e as tecnologias empregadas em um serviço. Com base no modo de produção de superfícies no percurso da pesquisa, pudemos explicitar que as determinações discursivas do uso da máquina fotográfica se encontram potencializadas no espaço do CIAPS, provavelmente por sua localização em um antigo hospital psiquiátrico. As possibilidades de rupturas parecem ter de passar pelos modos de perceber, já que o uso da máquina fotográfica nesta proposta demonstrou um ponto de fragilidade na configuração de saberes, apontando para a necessidade de questionarmos as formas de perceber recorrentes que produzem as distinções do louco, do marginal e do perigoso. Mas, por outro lado, as determinações que o campo do discurso sofre com as mudanças tecnológicas nos permitem apostar no uso destas tecnologias como ferramentas para a afirmação da condição de construção coletiva do conhecimento, sobretudo no campo da saúde mental, onde os sujeitos precisam ser potencializados com essa construção, e não presos em categorias que os acompanharão ao longo da vida.

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Colaboradores O autor Rafael Diehl participou de todas as etapas da elaboração do artigo. Cleci Maraschin e Jaqueline Tittoni participaram como coorientadoras da pesquisa, supervisoras e revisoras do artigo, contribuindo com reformulações e sugestões para sua versão final.

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DIEHL, R.; MARASCHIN, C.; TITTONI, J. Planografías en investigación: mapas y fotografías en la salud mental. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.79-91, jul./set. 2009. Se discute la producción y el uso de inscripciones en el curso de una investigación junto a la unidad de atención de niños y adolescentes en el Hospital Psiquiátrico São Pedro, en Porto Alegre, estado de Rio Grande do Sul, Brasil. Talleres de mapas y de fotografías se propusieron con la intención de que produzcan un plano con legitimidad diferenciada en relación a los planos existentes en sus internaciones en el hospital. Las diferencias entre la produccón de mapas y de fotografías han permitido especificar la noción epistemológica plano de inscripción en la cual esteblecemos tres campos de análisis: una posición de observación frente al plano, las condiciones técnicas de su producción y la posición de estos planos en los juegos de verdad. Se ha evidenciado la necesidad de discusión de las técnicas involucradas en la producción de conocimiento ya que el uso de artefactos técnicos articula de manera específica el campo de discurso y las materialidades que lo soportan.

Palabras clave: Taller de fotografía. Taller de mapas. Salud mental. Metodología de investigación. Recebido em 01/07/2008. Aprovado em 16/10/2008.

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Education for type 2 diabetes mellitus self-care: from compliance to empowerment*

Antonio Pithon Cyrino1 Lilia Blima Schraiber2 Ricardo Rodrigues Teixeira3

CYRINO, A.P.; SCHRAIBER, L.B.; TEIXEIRA, R.R. A Educação para o autocuidado no diabetes mellitus tipo 2: da adesão ao “empoderamento”. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.93-106, jul./set. 2009.

Through a critical review of the literature on education for diabetes self-care and self-management, it was sought to point out the inappropriateness of traditional approaches towards compliance with treatment and transmission of information, considering the complexity of self-care under chronic conditions. The influence of the social sciences on the field of studies on chronic degenerative diseases in general, and diabetes in particular, was explored. From this perspective, it can be recognized that the fields of anthropology and sociology have been incorporated into research focusing more on individuals as patients, and on the experience gained through this process. Recently, there has been a slight change within the field of health education research relating to diabetes, with the introduction of strategies that seek to value the experience and autonomy of patients as self-care agents. This paper discusses the strategy for empowerment in education for diabetes self-care and self-management, as a dialogue-focused practice that respects patients’ moral and cognitive autonomy.

Em revisão crítica da literatura sobre a educação para o autocuidado e autocontrole no diabetes, procura-se apontar a inadequação das abordagens tradicionais da aderência ao tratamento e da transmissão de informações frente à complexidade do autocuidado em condições de cronicidade. Explora-se a influência das Ciências Sociais sobre o campo de estudo das doenças crônico-degenerativas, em geral, e do diabetes, em particular. Nesta perspectiva, pode-se reconhecer uma incorporação dos campos disciplinares da Antropologia e Sociologia em pesquisas mais orientadas para o indivíduo, em sua condição de portador, e a experiência que desenvolve nesse processo. Há certa inflexão, mais recente, no campo de pesquisas em educação em saúde no diabetes, com a introdução de estratégias que buscam valorizar a experiência e a autonomia dos pacientes como sujeitos de seu cuidado. Neste artigo, discute-se a estratégia do “empoderamento” na educação para o autocuidado e autocontrole no diabetes, como uma modalidade de prática de natureza mais dialógica e de maior respeito à autonomia moral e cognitiva do portador.

Keywords: Type 2 diabetes mellitus. Selfcare. Health education/methods. Chronic degenerative disease. Social sciences.

Palavras-chave: Diabetes mellitus tipo 2. Autocuidado Educação em saúde/métodos. Doenças crônico-degenerativas. Ciências sociais.

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*The study of which this article forms part was funded by The State of São Paulo Research Foundation (Fapesp) (procedure no. 03/12970-2) and by the UNESP Development Foundation (Fundunesp) (procedure no. 00114/03). 1 Department of Public Health, Botucatu School of Medicine, Unesp. Distrito de Rubião Jr. - Cx. Postal: 549, Botucatu, SP, Brazil. 18618-970. acyrino@ gmail.com 2 Department of Preventive Medicine, School of Medicine, USP. 3 Department of Preventive Medicine, School of Medicine, USP.

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“Because I know what I’m supposed to do and sometimes we… just don’t do it, do we? Because I’ve been told what I have to do. What I have to avoid to have a better life. What I have to do for my diabetes “not to go up”. And sometimes, I overdo things! I don’t know if it’s when I’m angry… when I’m anxious… Then you look for everything you have… that you can’t eat and you go and eat it!”

The interesting excerpt shown above, taken from a statement by a patient with diabetes (Cyrino, 2009), is a clear and explicit expression of the distance that separates knowledge and action in diabetes care. However, only in the 1990s did the international literature on education for diabetes self-care and self-management start to give more emphasis to evidence indicating that simply to pass on information to such individuals is not enough to be able to predict that effective self-care practices will be adopted. In other words, it can be said that although knowledge is a prerequisite, it does not in any way ensure that patients will implement care that results in strict blood glucose control (Snoek, 2002; Coates, Boore, 1996; Bloomgarden, 1987). Thus, exemplifying this point, it needs to be noted that the publication Patient Education and Counseling has highlighted this question in the editorial of a special issue devoted to the topic of diabetes education, with the title: Improving self-management in patients with diabetes: knowledge is not enough (Herbert, Visser, 1996) This introductory observation draws attention to the hiatus that separates theoreticalmethodological development within the fields of Education and Communication from the approaches that are still adopted in professional practices aimed at diabetes education. In the educational strategies in daily use in care services, prescriptive approaches centered on transmitting information to achieve behavioral change still predominate. With this concern in mind, the aim established for this paper was to present a brief critical review of the international literature, with emphasis on the last two decades (1985-2005), in which comprehension of the main trends in knowledge production within education for type 2 diabetes mellitus self-care and self-management would be sought. The bibliographic search was conducted in the databases of Medline and Latin American and Caribbean Literature on Health Sciences (Lilacs). The text has been structured such that it outlines the panorama of knowledge production aimed at education and communication for type 2 diabetes mellitus self-care and self-management. It seeks, especially, to highlight some questions that we deem essential: the inappropriateness of the traditional approach of obedience to/compliance with treatment and transmission of information/knowledge for self-care, given the complexity involved in diabetes care; and the contributions that the social sciences have made to the study of chronic diseases in general and to diabetes in particular, as a possibility for overcoming the limitations of an approach at the limits of biomedicine. Finally, it seeks to pick up possible movements towards excelling and innovating within the strategies for supporting diabetes self-care, among which the strategy of patient empowerment can be highlighted.

Complexity of type 2 diabetes mellitus care: criticism of the traditional focus on obedience/compliance and transmission of information for its management Diabetes mellitus is a disease characterized notably by dysfunction of glucose metabolism. Hyperglycemia associated with insulin deficiency (total, partial or relative, when there is insulin resistance) is the element common to all forms of the disease. The two forms that are most widespread are type 1 (which generally but not always affects children and adolescents) and type 2 (which generally develops after the age of 40 years). Type 2 accounts for around 90% of diabetes cases. The prevalence of type 2 diabetes has increased significantly in many countries around the world because of aging of the population, increasing average weight and sedentarism. This is a consequence of the patterns of life in large cities, among other conditioning factors (Scherwin, 2001). A multicenter study on the prevalence of diabetes mellitus in Brazil (Ministério da Saúde, 1992) showed a rate of 7.6% among the population aged 30 to 69 years. This would represent more than five million individuals with the disease, among whom more than half would be unaware of their condition. There are also indications that the prevalence in Brazil may be increasing, just as it is in other developing countries (Sartorelli, Franco, 2003). 94

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4 Lutfey e Wishner (1999) surveyed more than 11,000 papers on compliance and adherence to treatment that were published in English up to 1999, of which 700 were in 1994 alone.

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In the light of the evidence available, it is almost unanimously believed that there is a direct relationship between prolonged exposure to high blood glucose levels and the chronic complications (both microvascular and macrovascular) of diabetes. Likewise, it is believed that blood glucose control (keeping it as close to normal levels as possible) has a role in possibly preventing or delaying the development of these complications (UKPDS, 1998; The DCCT Research Group, 1993). The belief that the better the blood glucose control is, the lower the risk of complications will be, in association with the availability of instruments for home monitoring of blood glucose levels and new therapeutic resources, has led to clinical emphasis on strict control over blood glucose levels (Olefsky, 2001), i.e. to keep them as close as possible to normal values. This has led healthcare professionals, especially physicians, to direct their clinical practices predominantly towards blood glucose control. Nevertheless, despite the evidence presented regarding the positive relationship between better blood glucose control and lower risk of complications, many studies including some with a more clinical orientation have reported enormous difficulty in attaining rigorous blood glucose control within day-to-day self-management (Frewer, Salter, Lambert, 2001; Wolpert, Anderson, 2001). The problem is such that it is often taken by healthcare professionals and even by researchers to be one of non-observance of what was prescribed. In other words, it is taken to be patients’ disregard for the prescription and medical recommendations (Estupinán, Anderson, 1999). On other occasions, such nonobservance is taken to be due to patients’ incompetence and irresponsibility (Roter, Stashefsky-Margalit, Rudd, 2001). This is therefore the traditional perspective of obeying the physician’s instructions. The expression “obeying the physician” provides a good representation of the dominant negative sense of the term “compliance”, i.e. yielding to other people. Within healthcare, compliance is generally defined as: “the extent to which a person’s behavior in terms of taking medication, following diets, or executing lifestyle changes coincides with medical or health advice” (Vermeire et al., 2001, p.332). The increasingly frequent criticisms of this notion of obeying the physician have pointed out its negative nature, especially its connotation that the patient should submit to objectives that are defined by exclusively clinical criteria and to orders from physicians. Such criticism is made in the light of the complexity of the dimensions involved in caring for chronic diseases. To achieve control over such diseases, heavy patient involvement is required. In short, the major absentee within the traditional view is an essential participant: the other side relative to medical knowledge, i.e. the perspective and experience of the person experiencing the disease (Vermeire et al., 2001; Lutfey, Wishner, 1999). This separation of the other party makes it possible for professionals to establish a moral judgement regarding non-obedience (non-compliance) and thus to label such patients as difficult or unsuitable. In this respect, in Brazilian healthcare services, the use of certain pejorative expressions of regional nature to refer to such patients can be noted. For all these reasons, it has been proposed over the last 15 years that the use of this notion of obeying the physician (compliance) should be definitively abandoned. This challenge will not be easily achieved, given the widespread use of compliance in Medicine, as well expressed through the volume of papers published on this topic every year4. As an alternative to the notion of obedience, despite a certain closeness to it, the concept of adherence has been put forward. The idea here is that even if it does not work as a strategic passage from a vertical relationship to another that is constructed based on cooperation and partnership between professionals and 95


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patients, it will at least disrupt the strong dominance of the notion of obedience in the medical-therapeutic vocabulary (Vermeire et al., 2001; Wishner, Lutfey, 2000; Lutfey, Wishner, 1999). This effort marks out a difference, albeit subtle, within the gradient of power and autonomy that is present in the professionalpatient relationship. Through this, it is sought to reduce the expression of medical power and patient submission and to move from “obedience to” the physician to “acceptance of” the treatment. However, this recommendation has been criticized because it takes the understanding that the notion of adherence would also continue to reinforce patients’ submissive behavioral role, as if this were the only question involved in this complex, dynamic and multidimensional process (Glasgow, Anderson, 1999). “Diabetes self-management education” has become recognized over the last few decades as essential for diabetes patients to achieve positive results from self-care. With this recognition, interest in and concern about the possible relationships between patients’ knowledge, their control practices and the results thus attained and measured using different laboratory parameters (such as blood glucose and glycated hemoglobin) have increased. Many studies have sought to investigate the relationships between these spheres (knowledge, control practices and results). However, analysis on these studies through systematic reviews and meta-analyses has shown serious methodological problems, both in the instruments used and in the interpretation of the results. This has been especially true in relation to studies that sought direct linear linkages between these dimensions (Coates, Boore, 1996). Over recent decades, 70% of what has been published on education and diabetes has been limited to application of before and after tests to measure the level of knowledge among groups of patients (Brown, 1999). This not only well emphasizes the fragility of what has been produced but also, especially, exposes the assumptions underlying these studies. They took the problem of non-adherence or lack of self-management to be probably due to patients’ lack of knowledge of the measures needed for them to achieve “good blood glucose control” and thus to benefit from a lower risk of developing complications. These studies sought to measure the results obtained from supplying the patients with “deposits” of information, in terms of the “stock” available to them before and after the educational intervention that was implemented5. When better-structured studies sought to investigate whether the guidance supplied by professionals would result in effective control, they demonstrated that interventions that expanded patients’ knowledge about the disease and its care did not produce any results regarding blood glucose parameters. This draws attention to the complexity of connecting from knowledge to care practices (Bloomgarden, 1987; Coates, Boore, 1996). Recognition of these problems does not mean disregarding the value of the technical-scientific knowledge available and the possibility that professionals could share this knowledge with their patients, for them to be able to make informed choices in the light of their problems and needs. On the other hand, it indicates the insufficiency and fragility of snippets of information for enabling patients to grasp the whole picture. This may simply be because such knowledge passed on by physicians to their patients will never be “experience gained” by the patients themselves but, rather, knowledge from “transmitted experience”. These patients would have to diligently receive, memorize and repeat, as observed well by Paulo Freire (1975) in relation to traditional teacher-student dynamics. As already commented, in relation to the notion of adherence, the great absentees in this “education for diabetes control” are again patients: the 96

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The expressions “deposits” and “stock” are used here in the sense taken by Paulo Freire (1975), in his conceptual criticism of traditional education (or “banking education”, as he called it).

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ones who are experiencing the problem. Moreover, it has to be mentioned that such experience often occurs within contexts of conflict between the recommendations, patients’ needs and desires and the existence of social or cultural mechanisms that might at least balance the dynamics between the preceding terms. From the perspectives of obedience/adherence and knowledge/practice relationships that are more linear, the knowledge produced has been insufficient to overcome the perception of failure felt by professionals and patients when faced with the limited results achieved and the difficulties that have been described. Furthermore, and of no less concern, there are the ethical repercussions, given the devaluation of the subjects, their substantive contexts and their knowledge. However, even though a significant number of studies are still looking into these questions, a recent reorientation within this field can be discerned. There are increasing efforts towards placing value on individuals’ own experiences and notions about diabetes, in order to gain a better grasp of the richness and subtlety of the questions involved in self-care (Anderson, Robins, 1998). Faced with these challenges, many investigators have sought methodological resources that would allow them to better pick up the nuances and singularities of these subjects, and to better understand the discourse produced. These new trials have been constructed through incorporation of different types of qualitative research and a closer approach to different disciplines within the social sciences, in view of the aim of finding out about individuals and the experiences that they develop as subjects and patients. If on the one hand, turning towards the other party in the educational process has been due to contributions from critical pedagogy, such as that of Paulo Freire; on the other hand, this approach that values patients’ subjective perspectives is the result from important contributions made by the social sciences, especially anthropology and sociology, in studies on chronic diseases in general and on diabetes in particular. Study of chronic diseases: from biomedicine to the social sciences. When an acute health complaint is experienced, even if only a simple cold or the flu and of short duration, it gives rise to physical and mental feelings of illness. These often lead people to interrupt part of their activities or stop working for a few days, while expecting understanding and sympathy from others. These brief experiences contrast with the experiences of individuals with chronic diseases that, by definition, are long-duration conditions or permanent features in their lives and therefore have different repercussions (Nettleton, 1995). One phenomenon that has already been studied within both the social sciences and psychology is the impact on the course of individuals’ lives when they start to present a chronic disease: a time when there may be a “biographical disruption” (Bury, 1982), i.e. a break in the way that their lives had been progressing until that time (Canguilhem, 1990). The manifestation of chronic disease within individuals’ social lives can be examined from at least two perspectives: its consequences on day-today routines and its significance for such individuals and for society and the interrelations between these (Bury, 1991). This opens up the possibility of recognizing that the health-disease phenomenon may have cultural pluralism of expression within different social settings (Laplantine, 1991). The transformations in the day-to-day lives of individuals with chronic illnesses go beyond the dimensions that more directly relate to the discomfort of their symptoms and body feelings. Thus, for some individuals, for example, what makes them worry is the lack of symptoms, expressed as “silent diabetes”, from which complications appear without warning.1 If “health is life in the silence of the organs”, as put forward by Leriche (apud Canguilhem, 1990, p.67), then a situation in which an individual is shown by his physician to have hyperglycemia, even without manifestation in the body, transforms the “silent diabetes” into discomfort for the patient and brings it closer to this same author’s notion of disease as something that disturbs the normal course of people’s lives (p. 67). The manifestations of chronic diseases will also be perceived, like in cases of diabetes, through the burden consequent to the requirements for controlling it, which the individual with the disease will have to shoulder. Although professionals prescribe medications, and recommend and guide care measures for patients, it is up to patients to organize these measures within their everyday lives. This requires enormous adaptive effort by patients, for them to be able to deal with these 97


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recommendations within daily routines that have already been structured through their established habits of family and social relationships. In this situation, individuals with chronic diseases will be faced with new problems that will require them to develop skills for dealing with a wide range of activities that have been foreseen through medical (clinical) knowledge. The factors involved include medication, diet, monitoring of capillary blood glucose, physical exercise, foot care, etc. Furthermore, there may be other such activities not foreseen through this clinical knowledge, especially with regard to possible situations that cause difficulty in achieving such control, in view of patients’ sociocultural contexts, as mentioned earlier. Although patients generally know about (and even fear) the chronic complications of diabetes, many of them will have enormous difficulty in following these recommendations, in view of the habits, choices and priorities that they have already instituted within their lives. It is not unusual for patients to say that they are ashamed of or to blame for their disease and their difficulties in undertaking their self-care, especially in relation to a condition that demands so many lifestyle changes. According to the field of studies on “social representations”, the care practices adopted by individuals are an expression of the meanings produced in relation to their identities and self-esteem, and in relation to their own ideas about their state of health and the individual manifestation of their disease. Nonetheless, such expressions are rooted in their sociocultural context, as a semantic network relating to becoming ill and being healthy (Adam, Herlich, 2001). The explanatory framework of “representations” provides theoretical and methodological backing that has made it possible to broaden the understanding of many dimensions of this process of configuration of senses and conformation of this network of meanings, through which individuals will acknowledge that they present a chronic disease. Hence, this is an important advance in how the question of knowledge is approached, compared with the dominant approaches within medicine, especially as applied to patient education (obedience/ adherence and transmission of information), which was dealt with in the preceding section. The limitations of biomedicine are shown up in the light of the need to grasp the complexity of becoming ill and living with a chronic disease. This results from some of the characteristics of biomedicine, such as: the body-mind dualism of medicine; the mechanistic view of the human body; the excessive value placed on “technological tools”; the notion of disease centered on its biological expression, thereby neglecting its social and psychological dimension (“biologicism”); and finally, the accentuation of this reductionism through the dominance of unicausality as the logic for etiological explanations of diseases (Nettleton, 1995). The representation of the disease elaborated through subjective experiences of illness does not fit in with the notion of disease “as scientifically observed and objectified” through biomedicine. Practices within biomedicine have the effect of reducing illness to disease. Thus, it is precisely “within this inadequacy that psycho and sociomedical interpretations of disease are set up” (Laplantine, 1991, p.17). Nevertheless, this field of tension is also a space for clinical medicine (the meeting place between the physician, i.e. the provider of care, and the patient, i.e. the one who is suffering), since clinical medicine puts physicians in contact with complete and substantive individuals and not with their organs and functions (Canguilhem, 1990, p.65). As Bury (1991) highlighted, biomedicine is not the only approach that is inadequate for recognizing the multidimensional nature and complexity of this universe. Other approaches may also be inadequate, including the field of social sciences, if they latch onto restrictive explanatory models that fail to consider the diversity and richness of individual experiences of facing up to these problems. These are just some of the complex questions relating to the impact of chronic diseases such as diabetes on day-to-day life and to the difficulties of self-care. Additionally, there are the difficulties in capturing the essence of these issues that have been faced within different focuses.

Current trends within education and communication for self-care and selfmanagement of type 2 diabetes Among the diversity of recent movements that have sought to challenge the limitations of the biomedical care model, one that has achieved great dissemination in the international literature, and especially in the English-language literature, can be highlighted: patient-centered medicine. 98

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Under this name, there are many proposals for reorienting care practices, and especially medical care practices. With prominent influence from psychology and the social sciences (anthropology of health, medical anthropology and sociology of disease and medicine), these proposals have the common element of a perception of the limitations of the traditional medical model. Within this heterogeneity, concepts and formulations going from the work of Balint in the 1950s to the most recent and broadest notions of shared decision-making can be identified. While Balint proposed that “patients should be understood in their entirety as human beings”, the most recent proposals have added to this through a biopsychosocial approach to patients’ problems. They have placed value on patients’ experiences and have sought to establish professional-patient relationships in which judgement and responsibility is shared with greater patient autonomy, such that an alliance between physician and patient is constructed around the treatment (Bower, Mead, 2000). Within the scope of diabetes care, this focus has stimulated the professionals and researchers to seek a new basis for the work of attention and education aimed at self-care and self-management. From this perspective, Wolpert e Anderson (2001) recognized that if strict blood glucose control is taken to be the main care objective, this ends up transmitting to patients (albeit implicitly) the idea that good control consists of a type of control in which flexibility and the possibility of making choices within diabetes care are relinquished. This means letting life be controlled by the disease, i.e. the diabetes. This is because the focus of such patients’ care and consequently the focus of their lives will be organized around a routine of measuring blood glucose levels, insulin doses and numbers of administrations per day, etc. In seeking to surmount this focus, these authors recommended that the guidance given to patients should include recognition of the tools available for self-management as means for expanding patients’ freedom and autonomy within their daily lives. The implicit message is that good control over diabetes can be achieved without letting it dominate life. Thus, self-care and self-management should be performed flexibly, such that patients can adapt the treatment to the demands of their daily routines. These proposals have been backed by different investigations of qualitative nature that were designed to recognize the experiences of people living with diabetes. Among these studies, the one developed by Campbell et al. (2003) with a certain degree of conceptual innovation can be highlighted. This sought to integrate different qualitative studies into an overall picture, through meta-ethnography. This investigation revealed new points through the synthesis produced, such as the importance of “strategic non-compliance” adopted by some individuals, who do not blindly adhere to medical advice in their daily lives but, instead, they thoughtfully and selectively apply it. Through this, they seek to achieve a balance between the demands of diabetes control and the way they want to lead their lives, even by means of “strategic cheating”. The study showed that such individuals had feelings of confidence about how they were implementing diabetes care, with less guilt, greater acceptance of their condition and better blood glucose control. In the following, a panorama of the production of knowledge relating to education for diabetes self-care and self-management is presented. The aim was to pick up these recently delineated trends better, and review studies and meta-analyses were useful in this respect. From this examination of the literature, a more general view was then sought through examination of experiences that were more “patient-centered” and that explicitly or implicitly took up an ethical stance aimed at ensuring that individuals participated more actively in their care, with greater respect for their autonomy. Slight signs of this trend can already be discerned from the adoption of the terms “self-care” and “self-management”. These new terms were introduced through initiatives within the field of “diabetes self-management education”, as it has been more widely named (Roter, StashefskyMargalit, Rudd, 2001). A review by Brown (1999), on intervention studies relating to “diabetes self-management education” covering the period from 1980 to 1998, recognized a change in focus from one decade to the next. While studies aimed at measuring patients’ knowledge of the disease and its control before and after an educational intervention predominated in the first decade (1980s), the next decade showed greater production of interventions that, in addition to this “focus on knowledge”, presented strategies aimed at supporting effective attainment of self-care. The author called them “behavioral 99


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strategies” and they involved empowerment, “support groups”, “problem-solving” (Brown, 1999, p.56) and, furthermore, “autonomy-supportive motivation” (Williams, Freedman, Deci, 1998). Some brief comments on these strategies need to be made here, with the exception of empowerment, which is dealt with more fully later on. “Self-help group” or “support groups” grew significantly in North American and European countries in the 1960s. They involved mutual assistance practices that were organized and directed by individuals who shared the same health problem, such as alcoholism, cancer, diabetes etc. (Roter, 2001; Dean, 1986). In Brazil, the most notable expansion of such groups, without links to healthcare institutions, initially occurred through associations for alcohol-dependent individuals. Today, this strategy is widely present in primary healthcare services, given the expansion of the Family Health Program in this country. It includes so-called “diabetes groups” or “hypertension groups”, which are organized from different educational perspectives with new types of self-help group. With the spread of new communication technologies like the internet, experiences of these new groups, i.e. “self-help online communities” have been multiplying around the world (Ziebland, 2004). “Problem-solving” and “autonomy-supportive motivation” strategies are applications coming from the field of cognitive psychology. In seeking to expand the skills required for self-care, the former aims at amplifying the “problem-solving skills”. Through these, patients become able to control the difficulties regarding care that they face in their daily routine. Four components of problem-solving relating to disease self-management have been identified, which may be manifested positively or negatively: problem-solving skills; guidance for problem-solving; specific knowledge of the disease; and capacity to use acquired experience for solving future problems (Hill-Briggs, 2003; Hill-Briggs et al., 2003). In turn, “autonomy-supportive motivation” is based on the theory of human motivation, in which two type of motivation are recognized: autonomous and controlled. Autonomous motivation is believed to be the only type that is capable of ensuring rigorous blood glucose control over long periods, as required for diabetes (Williams, Freedman, Deci, 1998). Other studies have showed that maintaining the trend towards incorporating the above practices is aimed more towards strengthening the role of patients in their care, with greater emphasis on activities to be performed at home, and also greater use of computers as support for glucose control, among other matters. There are several studies that have presented evaluations on the use of software or websites for supporting patients in their self-care (Ralston, 2004; Boisen et al., 2003). In a review (Fain et al., 1999) covering the period from 1985 to 1999 that had greater interest in characterizing the theoretical-methodological reference point adopted in the literature regarding “diabetes education”, it was found that only 6% of the studies made reference to the theoretical orientation adopted. Moreover, in most of these, there was disconnection between the theoretical framework and the concepts used in the study. Another limitation observed related to the short time that was set in most studies between the intervention and the subsequent measurement of the possible results (three months). A longer time would be desirable, in order to find out whether the results obtained would be sustained over a longer period. However, different authors (Loveman, 2003; Fain et al., 1999; Glasgow, 1999) highlighted important limitations in their results, insofar as their measurements were limited to laboratory parameters for blood glucose control, while disregarding other relevant dimensions of clinical and psychosocial nature. In addition to the problems cited, some authors (Brown, 1999; Fain et al., 1999) have recognized a question that seems to be very important: “in the end, what in fact are the educational practices for diabetes?” This doubt arises because the descriptions of the interventions are very scanty in the published articles. Thus, the possibility of analyzing and perhaps reproducing the results, and particularly the possibility of examining different experiences as support for diabetes care practices, is impaired. From all of the above, despite the large number of limitations relating to various studies, including the precarious basis of many of them, it can be said that there is a certain tendency for the proposals to turn towards the patients with diabetes. In addition, the strategy established around the notion of empowerment within each of these studies needs to be examined. This is because of the prominence given to empowerment by different authors, regarding its innovative nature in relation to traditional education for diabetes control. 100

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“Empowerment” as a support strategy for diabetes self-care Empowerment was introduced within “diabetes self-care education”, at the start of the 1990s, inspired by the contributions of Paulo Freire that were applied to healthcare education (Wallerstein, Bernstein, 1988) and community psychology (Roter, Stashefsky-Margalit, Rudd, 2001; Feste, Anderson, 1995). This concept is today used in different fields with different meanings. Within healthcare, great value has been placed on it by the healthcare promotion movement, and it has become one of the seven principles of healthcare promotion, (Sícoli, Nascimento, 2003; Anderson, 1996) even though its use is highly polemical (Carvalho, 2004). Within diabetes self-care education, empowerment has been defined as “the discovery and development of one’s inherent capacity to be responsible for one’s own life” (Funnell, Anderson, 2003, p.454). In the sense of placing value both on autonomy and on individual responsibility, with emphasis on the latter, this concept comes close to what has been conceptualized as “psychological empowerment”: the “feeling [experienced by individuals] of greater control over their own lives” (Carvalho, 2004, p. 1090). This process will be successful if it results in an “empowered” individual: one with “sufficient knowledge to make rational decisions, sufficient control and resources to implement their decisions, and sufficient experience to evaluate the effectiveness of those choices” (Funnell, Anderson, 2003, p.454). In this definition, overvaluation of the more rational dimensions of decision-making and control within the self-care process is evident. The idea underlying this notion is that, with support from healthcare professionals, individuals can develop their capacities and skills to recognize their own needs and solve their own problems, through mobilizing the resources to have control over their lives (Anderson, 1996). The criticism that has been made regarding this individualist focus is that it minimizes (or ignores) the constraints imposed by the social structure (Carvalho, 2004; Anderson, 1996) and the vulnerability resulting from this, including in relation to the quality and availability of the care services, i.e. programmatic vulnerability (Ayres et al., 1999). It needs to be noted that this individualistic ideology has been strengthened within the international situation of controlling fiscal deficits and reducing the expenditures on social policies. This has influenced the emergence of new public policies of autonomist nature that make a “broad appeal to mutual help and solidarity among the population, so that it can, as far as possible, solve their own health problems” (Nogueira, 2003, p.17). It should be noted, in this proposal for empowerment, that patients’ experiences are given great value since, as its proponents affirm: while “health professionals are experts on diabetes care, patients are the experts on their own lives” (Funnell, Anderson, 2004, p.124). Within this perspective, the possibility highlighted is that diabetes care becomes a collaboration between equals; professionals bring knowledge and expertise about diabetes and its treatment, and patients bring expertise on their lives and what will work for them. To effectively implement this approach, patients need education designed to promote informed decision-making, and providers need to practice in ways that support patient efforts to become effective self-managers. (Funnell, Anderson, 2004, p.124)

Therefore, the value placed on experience attests to “the ability of participants to determine an approach to diabetes self-management that will work for them”, and provides recognition for “the innate capacity of patients to identify and learn to solve their own problems”, insofar as “the person with diabetes is responsible for and in control of the daily self-management of diabetes” (Funnell et al., 2005, p.56). In the above sense and in a complementary manner, looking at this proposition now from a more practical perspective, the example of the program of the Michigan Diabetes Research and Training Center from the University of Michigan in the United States was chosen as a set of experiences to be examined. The aim was to investigate how empowerment was put into operation within the scope of a particular and substantive experience of diabetes self-care education. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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The intervention and research program of the University of Michigan was developed through activities among small groups of patients in six weekly two-hour sessions, with questionnaires applied to make a variety of measurements. Among the topics dealt with in these meetings were the following: wellbeing, which was worked on in such a way as to encourage people to identify their values, needs and objectives; self-image, which was explored in the light of its power to influence behavior and attitudes; problem-solving, as a process developed in stages to overcome day-to-day questions; and patient support. These were examined regarding their significance for individuals: who they could count on; who they liked to receive support from; and what they needed for this. Motivation, adaptability and stress control were also worked on (Feste, Anderson, 1995). Three tools were used to develop the strategy of empowerment: valuing questioning, storytelling and working on behavioral language (Feste, Anderson, 1995). As to the first two dimensions, some proximity to the process of “reflective action” of Paulo Freire can be identified, insofar as questioning seeks to induce expression of and reflection about one’s own daily experience. Likewise, storytelling is a tool that aims to facilitate the process of self-discovery regarding values and beliefs (Funnell, Anderson, 2004; Feste, Anderson, 1995). Thus, these tools open the possibility of reflective action regarding the narrative of experience. From examination of two papers evaluating the University of Michigan program, with a ten-year interval between them (Funnell et al., 2005; Anderson et al., 1995), it can also be seen that, on the second occasion, although the basic structure of the group activities was preserved, the researchers had ensured freer and more active participation by the patients. The sessions were guided by questions presented by the participants. Thus, the content of the group sessions on the second occasion was better connected with the questions and demands raised by the participants. They were also encouraged, at the end of each meeting, to present their aims and the steps that they planned to take within their self-management (Funnell et al., 2005). This proposal for empowerment, despite the bias of the “individualistic ideology”, can be recognized as adhering to a more dialogic form of education. This is not only because it incorporates certain elements of “problem-setting pedagogy” from the experiences of support groups and selfhelp groups of interactive nature, but also because of the ethical stance of greater respect for the moral and cognitive autonomy of the other party. The effect produced is a communication scenario of dialogic and nonlinear nature. In this process, it can be said that healthcare education encompassess communication, thereby forming a sphere of healthcare education/communication as the practice for relationships between healthcare professionals and patients.

Final considerations The approach taken towards this topic of education for diabetes self-care and self-management was also shown to be useful for picking up the more general dynamics of the innovations that have been sought, especially in relation to chronic diseases. In this respect, it was possible to recognize a certain inflection within this field of practices and research, which has traditionally been guided by biomedicine. This was recognized thanks to the contributions that the social sciences have provided to studies on chronic diseases in general and diabetes in particular. A certain degree of reorientation in the international scientific production directed towards diabetes self-care education that has been published over the last two decades can now be identified. As seen, there is a recognition that education centered on transmission of information is insufficient to ensure effective self-care and self-management, thereby reinforcing the perception of the complexity involved in the relationship between knowledge and care practices. In addition, there is the strengthening of an ethical stance that is more oriented towards patients with diabetes, and this is expressed through criticism of the perspective of adherence to treatment, either because of its nature centered on patients’ behavior, or because of its conformity with a predominantly medical view of the problems of self-care. In this respect, the influence of critical pedagogy, such as that of Paulo Freire, together with 102

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the backing from the social sciences, strengthens the reorientation of researchers’ viewpoints towards incorporation of the subjects of care into care practices. Among the new approaches proposed for diabetes self-care education, guided by the perspective of “patient-centered medicine”, the strategy of “empowerment” seems to be the one most influenced by the formulations criticized, as mentioned above. Even though very many advances have been recognized with regard to developing strategies that are more dialogic, such as empowerment, many questions still present challenges relating to organizing healthcare education practices guided from the perspective of placing value on subject autonomy, for the reasons laid out earlier. Within the inexhaustible field of production of problems and possibilities, there can still be discussion about how to move forward with regard to recognizing the difficulties experienced by subjects in their everyday routines, as exemplified in the epigraph that opens this article. Likewise, there can be discussion about how to recognize the knowledge produced within day-to-day self-care (“knowledge through experience”), which shapes the competence produced within the continual process of overcoming obstacles and making choices about how to lead one’s life. The extent to which these problems and knowledge can be applied in constructing care practices that place value on ties of solidarity and mutual help between patients can also be questioned. Furthermore, it has to be borne in mind that, within the gradation of possible focus going from healthcare professionals (physicians) to patients, there are other approaches within a more immediately relational perspective, which could be called “meeting-centered”. Some elaborations that have not yet been fully developed are very promising in this respect. Among these are “expanded clinical medicine” (Campos, 2003), “welcoming as a conversation network” (Teixeira, 2003) and “narrative-based medicine” (Launer, 2002). Nevertheless, as already stated, these are formulations that are still generic and they are only mentioned here because of the potential of this focus and because of the innovation that they may represent with regard to the topic of health education/communication and, in particular, with regard to diabetes self-care.

Collaborators Antonio Pithon Cyrino was responsible for reviewing the literature and preparing the text; Lilia Blima Schraiber and Ricardo Rodrigues Teixeira collaborated in different aspects of constructing and reviewing the text. References ADAM, P.; HERLICH, C. Sociologia da doença e da Medicina. Bauru: Edusc, 2001. ANDERSON, J.M. Empowering patients: issues and strategies. Soc. Sci. Med., v.43, n.5, p.697-705, 1996. ANDERSON, R.M. et al. Patient empowerment: results of a randomized controlled trial. Diabetes Care, v.18, n.7, p.943-9, 1995. ANDERSON, R.M.; ROBINS, L. How do we know? Reflections on qualitative research in diabetes. Diabetes Care, v.21, n.9, p.1387-8, 1998. AYRES, J.R.C.M. et al. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. In: BARBOSA, R.M.; PARKER, R.G. (Orgs.). Sexualidades pelo avesso: direitos, identidade e poder. São Paulo: Editora 34, 1999. p.49-72. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Palabras clave: Diabetes mellitus tipo 2. Auto-cuidado. Educación en salud/métodos. Enfermedades crónico-degenerativas. Ciencias sociales. Recebido em 13/06/2008. Aprovado em 10/11/2008.

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artigos

A Promoção da Saúde a partir das situações de trabalho: considerações referenciadas em uma experiência com trabalhadores de escolas públicas

Edil Ferreira da Silva1 Jussara Brito2 Mary Yale Neves3 Milton Athayde4

SILVA, E.F. et al. Health promotion from work situations: points relating to an experience among public school workers. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.107-19, jul./set. 2009.

The objective of this paper was to present and discuss what we are calling “health promotion from work situations”. For this, an experience developed in the state of Rio de Janeiro and in the municipality of João Pessoa, Paraíba, was used: the “Health, Gender and Work Training Program for Public Schools”. The start and end points for this experiment were tangible work situations. From an ergological perspective, this experiment involved synergic dialogue between the “poles” of experience and concepts, mediated by the ethical-epistemological pole, through forming expanded research communities. Performing the experiment gave rise (and has been giving rise) to the production of a variety of health promotion events, encompassing tangible modifications to the organization and work environment, changes in the ways to fight for healthcare and even modifications in the way that work and life are regarded.

Keywords: Health promotion. Work. Public school. Workers’ health. Ergology.

O objetivo deste artigo é apresentar e discutir o que está sendo por nós denominado Promoção da Saúde a partir das Situações de Trabalho (PSST). Para isto faz-se uso de uma experiência desenvolvida no estado do Rio de Janeiro e no município de João Pessoa/ PB: o Programa de Formação em Saúde, Gênero e Trabalho nas Escolas Públicas. Tal experimentação teve, como ponto de partida e chegada, as situações concretas de trabalho, e envolveu, numa perspectiva ergológica, o diálogo sinérgico entre os polos da experiência e dos conceitos, mediado pelo polo ético-epistêmico, pela constituição de Comunidades Ampliadas de Pesquisa (CAP). Sua realização propiciou (e vem propiciando) a produção de vários eventos promotores de saúde, englobando modificações concretas na organização e no ambiente de trabalho, mudanças nas formas de luta pela saúde e, mesmo, transformações no modo de olhar o trabalho e a vida.

Palavras-chave: Promoção da saúde. Trabalho. Escola pública. Saúde do trabalhador. Ergologia.

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1 Departamento de Psicologia, Universidade Estadual da Paraíba. Rua Dr. Ephigênio Barbosa da Silva, 450, bloco A, apto. 203. Jardim Cidade Universitária, João Pessoa, PB, Brasil. 58.052-310. edilsilva@uol.com.br 2 Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 3 Departamento de Psicologia, Universidade Federal da Paraíba. 4 Programa de PósGraduação em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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A Promoção da Saúde a partir das situações de trabalho:...

Introdução Neste artigo - que se insere na interface do campo da Promoção da Saúde com o da Saúde do Trabalhador - visamos apresentar e discutir o que estamos denominando “Promoção da Saúde a partir das Situações de Trabalho” (PSST). Utilizamos, como referência, um dispositivo de formação-pesquisa-intervenção em rede que vimos desenvolvendo, desde 2000, no sudeste (estado do Rio de Janeiro) e no nordeste (município de João Pessoa/PB): um Programa de Formação articulado a um Programa de Pesquisas, voltados para a análise e a ação transformadora. Essa experimentação de longa duração - denominada “Programa de Formação em Saúde, Gênero e Trabalho nas Escolas Públicas” (Brito, Athayde, Neves, 2003a, 2003b) – buscou, simultaneamente, melhor compreender e transformar o trabalho em suas relações com a saúde, por meio de uma proposta de formação do conjunto de trabalhadores de escola interessados na experimentação (professores, diretores, merendeiras e auxiliares de serviço, vigilantes etc.) para coatuar neste empreendimento. Nossos pontos de partida e chegada foram as situações concretas de trabalho, o que envolveu, numa perspectiva ergológica (Schwartz, Durrive, 2007; Schwartz, 2000a), o debate sinérgico entre os polos5 da experiência (da prática operacional) e dos conceitos (das disciplinas acadêmico-científicas), mediado pelo polo ético-epistêmico, gerando acontecimentos e fluxos produtores de saúde. A proposta foi desenvolvida após uma avaliação de que, para o tratamento da problemática em foco, seria necessário que se conjugassem pesquisas sistemáticas, debates contínuos entre pesquisadores e trabalhadores de escola e ações cotidianas nos locais de trabalho. Cabe ainda acrescentar que esta iniciativa teve como demanda inicial o pedido de socorro que emergiu do movimento dos trabalhadores de escola do Rio de Janeiro, por meio do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE-RJ). Em seus fóruns, buscavam entender o que estava em curso com a saúde deste coletivo nas escolas, pois os próprios trabalhadores percebiam o crescente número de colegas afastados ou em vias de adoecimento. Tal proposta de experimentação foi, em seguida, negociada com o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa (SINTEM). Tivemos, portanto, a parceria com os dois sindicatos representantes dos diferentes segmentos profissionais do trabalho em escola, em ambas as regiões. A implementação desta modalidade de formação-pesquisa-intervenção foi antecedida por um conjunto de investigações (Athayde et al., 2001; Souza, 2000; Nunes, 2000; Neves, 1999; Brito, Athayde, Neves, 1998). Não obstante o patrimônio presente na comunidade científica sobre as relações entre condições de vida, trabalho e saúde dos trabalhadores de escola, entendemos que nos faltavam materiais de outra qualidade, em que a trama que se tecia para chegar a transformar as condições de trabalho em curso exigia outro tipo de dispositivo. A linhagem da psicologia ergonômica e da ergonomia da atividade francofônica (para quem a exigência de respeito à saúde sempre foi um determinante destacado), desde os anos 50 (Ombredane, Faverge, 1955), já sinalizava a importância das relações entre análise do trabalho e formação. Nos anos 70, a questão da formação já apresentava, neste campo, um perfil consistente, tendo destaque figuras como Catherine Teiger e Antoine Laville. Esta modalidade de “formação pela e para a ação” (Lacomblez, 1995; Teiger, Laville,1991) propõe que a aprendizagem da análise do trabalho desenvolva, simultaneamente, a tomada de consciência e confiança no engajamento da ação. Por um lado, trata-se de reconstituir - rigorosamente e com detalhes, incorporando neste processo os protagonistas da atividade (especialmente via verbalização e formas 108

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Na perspectiva ergológica aqui operada, o vocábulo polo está associado à ideia de saberes que se atraem sinergicamente, de forma heurística. Em verdade, fazemos aqui alusão ao dispositivo de três polos da ergologia, que viabiliza uma metodologia na busca da contribuição das disciplinas científicas e da experiência dos “interlocutores da atividade”. O primeiro é o polo das disciplinas científicas, cujo objeto de estudo é o trabalho. Diversas disciplinas contribuem na compreensão da atividade. É “o pólo dos conceitos que comporta materiais para o conhecimento”. O segundo é o polo das forças de convocação e validação que estão na origem das demandas e na transformação das situações em cada contexto histórico. Pode fazer parte deste polo qualquer ator social. O terceiro é o polo das exigências éticas e epistemológicas no campo da produção de conhecimento. É o lugar de discussão e entendimento, onde são definidos “os objetivos e os interesses” de um trabalho conjunto, que pressupõe um respeito mútuo entre estes dois registros de conhecimento (Schwartz, Durrive, 2007; Schwartz, 2000a, 2000b).

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de autoconfrontação) - como se realizam, de fato, as tarefas, para além do prescrito. Por outro lado, a formação se torna meio de ação ergonômica transformadora, pois procede de uma mudança de ponto de vista, de uma abertura perceptual e conceitual. Assim, a consistência da mudança encontra-se tanto na fecundidade das análises efetuadas, quanto na compreensão e confiança dos trabalhadores pertinentes e responsáveis pelo empreendimento. Não se trata, é claro, de uma fórmula de conscientização pedagogizante, mas de mútua aprendizagem (envolvendo cultura/incultura recíproca, assim como o desconforto intelectual), inclusive por parte dos profissionais da ciência envolvidos. Neste sentido, o primeiro pressuposto era o de que o patrimônio de conhecimento já produzido precisaria ser socializado e colocado em debate de modo sistemático e com propósitos determinados (o principal deles: compreender-transformar positivamente o trabalho). Por outro lado, percebia-se a necessidade de uma atualização permanente das informações relativas às situações concretas de um número maior de escolas (e regiões do estado, no caso do Rio de Janeiro), para que fossem geradas propostas e teorizações generalizáveis, voltadas à promoção da saúde. A elaboração de um projeto, no início de 2000, aprovado e financiado pelo Fundo de Igualdade de Gênero da Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional (FIG/CIDA), permitiu a sistematização de um método e sua experimentação, inicialmente no estado do Rio de Janeiro e no município de João Pessoa/PB, desenvolvendo-se também, posteriormente, no Espírito Santo, além de em outros lugares de que não temos acompanhamento. Um método que poderíamos definir como de Promoção da Saúde a partir das Situações de Trabalho (PSST), e que foi sistematizado em duas publicações para uso no referido Programa. A primeira é relativa à preparação metodológica: Caderno de Método e Procedimentos (Brito, Athayde, Neves, 2003a). A outra reúne um conjunto de textos propostos para discussão, o Caderno de Textos (Brito, Athayde, Neves, 2003b). Ambos estão baseados em estudos que antecederam a realização do próprio Programa, sendo atualizados e reelaborados a partir da aquisição de maior conhecimento sobre uma determinada perspectiva de compreensão da atividade humana: a perspectiva ergológica (Schwartz, Durrive, 2007; Brito, Athayde, 2003; Schwartz, 2000a), que desde a década de 1980 vem explorando heuristicamente as descobertas e experimentações da linhagem da ergonomia da atividade, seja nos países francofônicos (Daniellou et al., 2004; Guérin et al., 2001; Wisner, 1994), seja na Itália (com Oddone, Re, Brianti, 1981, e o Movimento Operário Italiano de luta pela saúde). Neste artigo nos empenhamos especialmente em mostrar que tal tipo de experimentação pode se constituir em uma importante ferramenta de promoção da saúde, cuja especificidade é dar pertinência estratégica ao trabalho concreto, às situações em que ele se desenvolve. Assim, inicialmente, problematizaremos a proposta de Promoção da Saúde nos Locais de Trabalho (PSLT), por meio do suporte fornecido pela literatura que segue essa tradição. Este caminho permitirá que formulemos a proposição de Promoção da Saúde a partir das Situações de Trabalho (PSST), um modo particular de realizar ações neste campo. Após a apresentação desta ideia, nos dedicaremos à caracterização do método empregado no desenvolvimento do Programa de Formação em Saúde, Gênero e Trabalho nas Escolas Públicas. Na parte final do artigo, elencaremos alguns resultados desta experimentação, discutindo-os à luz da Promoção da Saúde a partir das Situações de Trabalho.

Da “Promoção da Saúde nos Locais de Trabalho” (PSLT) à “Promoção da Saúde a partir das Situações de Trabalho” (PSST) A proposta de PSLT foi elaborada pela Organização Panamericana de Saúde – OPAS, e anunciada em março de 2000. Tal documento, intitulado “Estratégia de Promoção da Saúde nos Locais de Trabalho da América Latina e Caribe”, é dirigido às autoridades governamentais, lideranças empresariais, sindicatos, associações profissionais, organizações não-governamentais e à comunidade em geral, explicitando o objetivo da proposta: Contribuir para a melhoria do ambiente físico e psicossocial, o estado de saúde, a capacidade para ter valores e estilos de vida e trabalho mais saudáveis e o bem-estar geral dos trabalhadores, com o fim de avançar em direção ao desenvolvimento sustentável com equidade e justiça social (OPAS, 2000, p.9). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Com esta proposição, a OPAS pretendia sensibilizar todos os envolvidos de maneira direta e indireta acerca da importância da questão. Buscava ainda fortalecer a capacidade técnica e institucional dos países para formular, executar e avaliar políticas e programas eficazes que tornassem os ambientes de trabalho mais saudáveis. Ou seja, a PSLT envolveria uma série de políticas e atividades nos locais de trabalho, desenhadas para ajudar aos empregadores e trabalhadores em todos os níveis, a aumentar o controle sobre sua saúde e a melhorá-la, favorecendo a produtividade e a competitividade das empresas e contribuindo ao desenvolvimento econômico e social dos países. (OPAS, 2000, p.4)

Não temos dúvida de que essa iniciativa é muito importante e, por esse motivo, deve ser problematizada e desenvolvida. A nosso ver, um dos problemas da proposta é seu caráter ainda genérico - o que talvez não pudesse ser muito diferente, uma vez que se trata de uma declaração de intenção. Mas, na medida em que busca contribuir com “a capacidade para ter valores e estilos de vida e trabalho mais saudáveis”, entendemos que identifica a saúde a um capital a ser mobilizado (Surateau, 2000), independente do contexto social, com suas contradições e especificidades. A definição de local de trabalho saudável também não nos parece algo simples. Em primeiro lugar, porque os processos produtivos não são estáveis, implicando permanentes mudanças do ambiente de trabalho. Em segundo lugar, porque certamente há concepções diferenciadas de ambiente saudável entre os atores pertinentes, ou seja, devemos considerar a existência de um debate de valores sobre esta questão: quem define que o ambiente é saudável, com que critérios, em que conjuntura? (Schwartz, 2007, 2000a). Parece-nos fundamental, ainda, considerar que há situações que privam os indivíduos de sua capacidade de criticar mais incisivamente os meios de vida com os quais interagem, como indica Surateau (2000) ao discutir a obra de Canguilhem. A nosso ver, propostas formuladas em uma visão de exterioridade em relação às situações concretas, objetivando sua aplicação no local de trabalho, sempre apresentarão um descompasso em relação à experiência compartilhada por homens e mulheres em determinada situação concreta - experiência que envolve inclusive saberes ligados à própria luta pela saúde. Logo, iniciativas como essa serão melhor sucedidas se autorizadas (no sentido clínico) pelos trabalhadores. Neste sentido, uma questão importante diz respeito à defasagem sempre existente entre o trabalho prescrito e o trabalho real, evidenciada pela ergonomia da atividade - campo do conhecimento que, desde o pós-guerra, já apontava a necessidade de adaptar o trabalho às pessoas, invertendo e revolucionando a lógica taylorista predominante de adequar os homens ao trabalho (Daniellou et al., 2004; Guérin et al., 2001). O trabalhar envolve uma dimensão sempre enigmática e simbólica, em que a atividade possui um volume de negociações - cognitivas, afetivas e sociais - que excedem o que é diretamente observável e mensurável (Dejours, 2004; Schwartz, 2000a). Deste modo, na adoção de ações dirigidas à promoção da saúde vinculadas aos locais de trabalho, torna-se imprescindível incorporar e desenvolver a experiência e o pensamento sobre o trabalho dos protagonistas da atividade situada. Ou seja, para se avaliar se um ambiente é saudável, revela-se indispensável levar em conta os atores (individuais e coletivos) da situação e o modo como estruturam sua atividade, sob pena de a intervenção em direção às mudanças pretendidas não ter sucesso. O esforço aqui é por entender o trabalho como uma relação social que não é somente heterodeterminada, mas produto de homens e mulheres concretos que mobilizam a si e às redes sociais pertinentes para desenvolver sua atividade. Trabalhar pode configurar-se como um desafio, enfrentamento, e, nesse processo, contribuir para a conquista de sentido e de uma economia psicossomática adequada, tornando-se uma aventura humana na direção da sua “realização” (sempre inacabada) enquanto ser vivo individual e coletivo (Dejours, 2004). Assim, o trabalho, para que se o compreenda-transforme, tem de ser analisado em sua complexidade, como um campo de contradições e determinações múltiplas, de (in)culturas, de valores e de relações sociais de produção com trajetórias diversas. Em síntese, um campo mediado pela história singular e social desses agentes. Dejours, partindo das descobertas da ergonomia da atividade, busca ir adiante e assim define trabalho: “é a atividade coordenada desenvolvida por homens e mulheres para enfrentar aquilo que, 110

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em uma tarefa utilitária, não pode ser obtido pela execução estrita da organização prescrita” (Dejours, 1997, p.43). Explorando o conceito de atividade subjetivante, ele cria novos conceitos para dar conta da complexa produção psíquica e cultural que procede da experiência da prática - uma inteligência astuciosa, corporal, que está à frente da consciência e que exige passar por julgamento de outrem, transformando-se em sabedoria da prática (Dejours, 2004). Verifica-se então o que aí se denomina psicodinâmica do reconhecimento, decisiva para o fortalecimento da identidade, ossatura da saúde, em termos psicossomáticos. Uma parte do real resiste - o real do trabalho - irredutível ao domínio intelectual vigente, desafiando-nos individual e coletivamente no curso do trabalho, mobilizando corpo e alma. Clot (2008, 2006), com base em referenciais diferentes de Dejours, vem também enriquecendo o conceito de atividade, desdobrando-o em: atividade realizada e real da atividade. Em sua leitura, a atividade realizada é aquilo que se faz, no sentido do que se apresenta no plano comportamental (dos modos operatórios diretamente observáveis). Na verdade, uma parte ínfima do que se pode vir a fazer (trata-se apenas de uma atualização de uma das atividades possíveis na execução da tarefa). Com o conceito de real da atividade, Clot pretende também envolver aquilo que não se faz, o que se procura fazer sem lograr êxito. Explorando a concepção vigotskiana, ele assinala que as atividades contrariadas, suspensas ou impedidas devem também ser admitidas na análise, pois não estão ausentes da vida do trabalho, ao contrário, emergem aí com destaque. Trata-se de uma linhagem já explorada também por Oddone com o Modelo Operário Italiano de luta pela saúde - MOI (Oddone, Re, Brianti, 1981) -, críticos de uma visão pejorativa (predominante) do homem no trabalho, mesmo entre os críticos do capitalismo, que o veem como inteiramente subordinado à exploração-dominação. Com esse conjunto de argumentos, operamos um deslocamento na direção de uma proposta de promoção da saúde a partir das situações de trabalho, cujas bases principais são: - O entendimento de saúde por meio de um conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas; algo multidimensional que vai muito além da ausência de doença, ou limitado a temas de estilo de vida e comportamento. - O caráter situado do trabalho (a atividade situada), com suas limitações e possibilidades. - O desenvolvimento da experiência (Clot, 2006) e a busca da expansão do poder de agir dos trabalhadores (Clot, 2008) tendo em vista condições de vida e trabalho mais adequadas à sua saúde. A noção de situação está diretamente relacionada com a concepção de centralidade do trabalho. Seja como abordada por Freire (1983), que envolve tempo-espaço e ação, seja pela ergonomia da atividade (Rabardel et al., 2007), neste caso a ela referindo-se como contexto concreto (físico, técnico e histórico) em que os homens realizam uma produção material ou imaterial, em condições de trabalho e segurança dados, podendo também ser entendida como um sistema constituído de numerosos elementos - dispositivo técnico e material, organização do trabalho, trabalhadores e suas competências. A valorização da atividade de trabalho (o ponto de vista da atividade) envolve a dialética sempre presente entre as diversas formas de atividade, enfatizando sua potência transversal em relação às outras. Em consequência, tudo que for pensado em termos locais deve também ser pensado em termos globais: novas convocações/validações dos trabalhadores; propostas de políticas públicas; mudanças na legislação; articulações intersetoriais, com os clientes/usuários do serviço (diferentes setores da sociedade) etc. (Schwartz, Durrive, 2007). A concepção de centralidade do trabalho, calcada no Modelo Operário Italiano de luta pela saúde (MOI), sob a influência de Gramsci (Vicenti, 1999; Athayde, 1988), indica que é somente no interior de cada estabelecimento que se pode exercer, de modo contínuo, eficiente, uma ação de real defesa do trabalho e da saúde do homem (Oddone et al., 1986). Portanto, remete também ao desenvolvimento do sentido do trabalho por meio do reconhecimento da atuação concreta dos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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trabalhadores. Trabalhar permite, ao fazer uso de si, por si e por outrem (Schwartz, 2007, 2000a), buscar um ciclo virtuoso, uma heurística psicodinâmica do reconhecimento, em que a visibilidade do seu fazer, passando pelo julgamento deste fazer – por intermédio do reconhecimento da hierarquia (diretores de escola, por exemplo), de seus pares (colegas de trabalho) ou da clientela (dos alunos e familiares) - conduz à retribuição de sua contribuição ao trabalho, por meio do reconhecimento de seu esforço pela hierarquia (diretores de escola, por exemplo), de seus pares (colegas de trabalho) ou da clientela (dos alunos). Como afirma Dejours “o reconhecimento é a forma específica da retribuição moral-simbólica dada ao ego, como compensação por sua contribuição à eficácia da organização do trabalho, isto é, pelo engajamento de sua subjetividade e inteligência” (Dejours, 1997, p.55). A PSST deve considerar a capacidade de criação de novas normas de vida (Canguilhem, 1995) e valorizar as normas efetivamente geradas na atividade, muitas vezes não traduzidas em palavras, reconhecendo a experiência dos trabalhadores como fundamental no processo de compreendertransformar-compreender. Aqui, experiência não se limita ao vivido, mas ao seu modo de desenvolvimento. A dramática cotidiana dos trabalhadores é mais que um conjunto de fatos; é uma trama tecida - horizontal e verticalmente, transversalmente – que, na maioria das vezes, não é plenamente consciente para eles, além de escapar à observação dos especialistas. É preciso que esta experiência dos trabalhadores seja mobilizada, já que a consideramos decisiva, incontornável fonte de conhecimento da relação trabalho-saúde. Não para esta experiência ser cristalizada, como um passado a ser recuperado intacto, mas para que, por meio de um dado tipo de mobilização, tal patrimônio de experiência propicie o desenvolvimento de outras experiências (Clot, 2004; Clot, Faïta, 2000). Para isto é necessário que se opere com um dispositivo que contribua para o diálogo sinérgico deste polo da experiência com o polo dos conceitos, das disciplinas científicas (Schwartz, Durrive, 2007; Schwartz, 2000b). Ou seja, a experiência dos trabalhadores tem de ser não só reconhecida em sua importância, mas tornar-se um meio para engendrar outras experiências, ela própria transformando-se. Explorando os materiais vigotskianos, pode-se dizer que, por um lado, um fenômeno só pode ser investigado em seu movimento (Vigotski, 1999a); por outro, que a consciência é a experiência vivida de experiências vividas (Vigotski, 1999b apud Clot, Faïta, 2000). Assim sendo, o patrimônio de experiência dos protagonistas da atividade de trabalho só pode ser apreendido de modo fértil quando muda de estatuto, no curso de sua própria transformação. É na medida em que o trabalhador se desloca de sua própria experiência de trabalho que ela se disponibiliza, se torna um meio de fazer outras experiências. Esta sinergia entre a experiência dos trabalhadores e o conhecimento cientificamente elaborado tem um valor heurístico na medida em que pode resultar na produção de um novo conhecimento e, também, no desenvolvimento de outras experiências no trabalho, mais pertinentes às características singulares da nova situação. Além do mais, as experiências que lograram êxito devem ser traduzidas em indicações, técnicas e métodos veiculados inclusive na forma escrita. Deste modo, lembrando Dejours (1997), estamos no plano do reconhecimento da contribuição do trabalhador à organização real do trabalho. Cabe ressaltar que a participação do polo das ciências neste processo é fundamental, por possibilitar que os conceitos espontâneos (no vocabulário vigotskiano) possam fluir em uma dinâmica ascendente-descendente com os conceitos científicos, serem debatidos e sistematizados, gerando novos conhecimentos. Sua função não é apenas colocar a serviço do polo da experiência o conhecimento cientificamente estabelecido, mas estar aberto à convocação dos trabalhadores e procurar, por meio deste tipo de diálogo, mutuamente crítico, encontrar respostas, inclusive a partir de um retrabalho no interior das disciplinas científicas. A nosso ver, esta abordagem, herdeira de outras experimentações respeitadas no campo da Saúde do Trabalhador, procura ir adiante. A metodologia utilizada no “Programa de Formação em Saúde, Gênero e Trabalho nas Escolas” está assentada nessas bases, conforme veremos em seguida.

Programa de formação em saúde, gênero e trabalho nas escolas - características metodológicas No decorrer das pesquisas que vinham sendo realizadas (já referidas na Introdução), avaliamos que nos faltava um dispositivo que radicalizasse a incorporação daqueles que vivenciam a situação 112

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real de trabalho, com o fim de compreender-transformar o trabalho. Faltava-nos um dispositivo que colaborasse para a emergência dos saberes da prática, viabilizando o diálogo sinérgico com conceitos, métodos e resultados de pesquisas científicas, de modo que ambos os polos (do conceito e da experiência) pudessem se desenvolver. Ele foi desenhado de forma a viabilizar uma expansão (multiplicação) do número de trabalhadores “capacitados”, com informações advindas dos polos da ciência e da própria experiência (neste caso retirando-o de sua individualização e naturalização), para uma ação mais fecunda na luta pela transformação das condições geradoras de nocividade e da afirmação dos potenciais de saúde. Seu desenho buscou, também, mobilizar as experiências dos participantes, considerando a transversalidade das relações sociais de gênero, isto é, sua presença/ influência em todos os espaços sociais (Kergoat, 2002, 1996, 1986; Hirata, 2002, 1993; Brito, 1996). Implicaria, assim, uma vigilância constante sobre as nocividades do local de trabalho e na construção de um Observatório sobre as relações saúde-trabalho. A proposta de desenvolvimento deste Programa de Formação ocorreu no momento que acreditávamos ser o mais pertinente para darmos início ao que, neste processo, denominamos Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP), um espaço de confrontação-cooperação entre saberes científicos e práticos (Brito, Athayde, 2003; Brito, Athayde, Neves, 2003a). Em termos metodológicos, este Programa foi organizado em ciclos, cada um deles com duas fases. O primeiro ciclo tem uma especificidade, pois se inicia com a formação dos primeiros multiplicadores, que não só participam do ciclo seguinte, como deveriam fazê-lo cada vez mais, assumindo as responsabilidades por tal processo. Os ciclos seguintes concernem à reprodução (não mecânica) ampliada da formação. Cada ciclo envolve duas fases, planejadas porque a proposta do Programa de Formação é possibilitar que a experiência - concreta, singular, de cada trabalhador, de cada coletivo, de cada escola - venha à tona para todos (produzindo-se nos planos linguageiro e do pensamento) e se desenvolva. Sim, pois é no diálogo e no debate coletivo que poderá ocorrer o desenvolvimento dessa experiência, ampliando a capacidade dos coletivos de trabalho de compreender-transformar.

Fase 1 - curso, com carga horária prevista inicialmente de vinte horas, para a qual previmos o encadeamento dos seguintes momentos: a) primeiro, a exposição de “temas geradores” (Freire, 1989, 1967) por profissionais de pesquisa (nos ciclos seguintes incorporando os multiplicadores, trabalhadores que já participavam do Programa e já tinham uma certa compreensão da abordagem científica sobre o assunto específico), com o objetivo de informá-los sobre o que consideramos mais relevante no campo científico. Ao final das exposições, o debate não ocorre imediatamente em seguida, propomos que se aproveite a presença dos especialistas expositores apenas para esclarecimentos sobre os temas; b) em seguida, a leitura em duplas (ou individualmente, ou em pequenos grupos) do Caderno de Textos, previamente elaborado com base em estudos anteriormente realizados, a propósito dos temas geradores apresentados; c) em um terceiro momento, discussão em grupos menores sobre os temas tratados (já apresentados e lidos). Inspirados em uma “Pedagogia da Pergunta” (Freire, Faúndes, 1985), vaise produzindo um movimento dialógico, cujo efeito é o maior envolvimento, comprometimento (Freire, 1989) e desenvolvimento dos participantes (individual e coletivo). Neste trabalho em grupo, o papel da coordenação não é validar esta ou aquela compreensão, mas estritamente colaborar para o questionamento do tema, assim como das formulações inicialmente apresentadas pelo expositor e pelo texto. d) ao final, reunidos todos os participantes, socialização do que foi discutido nos grupos menores, seguida por novo debate, sem a busca de síntese, visando-se com este encaminhamento - uma espécie de “fazer grupo como obra aberta” -, o desenvolvimento, o devir outro (Benevides de Barros, 2007).

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Para fechar esta fase, as três últimas sessões do curso são reservadas para a discussão e programação da continuidade do Programa de Formação – o que implica a definição de focos de atenção para os exercícios de estudo de campo (segunda fase). A proposta de focos de estudo se baseia na análise das discussões realizadas nos subgrupos e no grupo. Esta é apresentada aos participantes do curso, que passam a debatê-la e aprimorá-la. Definidos os focos, os participantes elegem coletivamente um dos focos para dar início aos “exercícios de estudo de campo” e, em subgrupos, discutem os elementos que o envolvem e suas interfaces. Em seguida, passam ao momento de definição das estratégias e procedimentos de estudo a serem utilizados no exercício.

Fase 2 - alternâncias entre estudos de campo e debate na CAP: - momento 1: após o curso, retorno às escolas para exercícios de estudos de campo sobre os focos; - momento 2: encontros sistemáticos do que denominamos Comunidade Ampliada de Pesquisa – CAP (na qual circula uma comunidade dialógica, cf. França, 2007), após cada exercício, para discussão sobre a experiência, os achados e as possíveis mudanças a serem experimentadas e eventualmente reivindicadas para toda a rede de ensino. Durante estas duas fases espera-se que possam ir se forjando as alianças com os trabalhadores das escolas, caminhando na direção de construção permanente do que Schwartz (2007b) denomina terceiro polo (em seu dispositivo dinâmico de três polos), de cunho ético-epistêmico, conforme já assinalado anteriormente, ganhando em grandeza a CAP. Esta, por seu lado, iria possibilitando o diálogo/confronto entre os polos das disciplinas científicas e da experiência da prática, abrindo novas linhas de investigação e intervenção, engendrando assim sua ampliação e consolidação como instrumento. Dessa forma, a CAP é um dispositivo metodológico (na perspectiva ergológica) que tem no seu interior uma técnica de encaminhamento do processo ensino/aprendizagem - o curso -, técnicas de investigação/ação, calcada nos exercícios de estudo de campo e técnicas de discussão, análise e validação dos materiais produzidos (sempre registrados e transcritos), baseadas no diálogoconfronto entre experiência e conceito - os Encontros sobre o Trabalho. Entre os anos de 2000 e 2007, 186 trabalhadores de diversas escolas (141 do estado do Rio de Janeiro e 45 do município de João Pessoa) participaram diretamente dos ciclos de formação, distribuindo-se entre 156 mulheres e trinta homens. Se considerarmos que as atividades de exercício de pesquisa de campo envolveram a construção de relações sociais nas escolas - o que configura uma sensibilização dos trabalhadores não diretamente envolvidos no Programa - aumenta muito o número de pessoas que já vêm se engajando e/ou com potencial para o monitoramento das condições de trabalho (em um Observatório). Este conjunto de trabalhadores foi composto, sobretudo, por: professores, merendeiras e serventes (auxiliares de serviço), havendo um número reduzido de diretores, técnicos em educação, inspetores de alunos, vigilantes, agentes administrativos e outros profissionais de nível superior (psicóloga e assistente social).

Resultados e discussão Em função do escopo e objetivo deste artigo - apresentar para discussão as possibilidades de promoção da saúde a partir das situações de trabalho por meio de um dispositivo de formaçãopesquisa-intervenção em rede com as características anunciadas - destacaremos aqui somente alguns resultados concernentes ao desenvolvimento da experiência dos trabalhadores. Não trataremos aqui das análises efetuadas sobre os movimentos discursivos, fazendo uso de método dialógico inspirado em Bakhtin (2003), Faïta (2005) e França (2007), efetuadas após transcrição dos registros dos debates em áudio e que se constituem em material importante para compreensão dos problemas. Em primeiro lugar, podemos afirmar que, na trama da CAP, foi se tecendo um tipo de sociabilidade que reuniu horizontalmente os diversos tipos de profissionais de escola. Esta forma de parceria colaborou para a emergência sistemática de uma diversidade de olhares, de concepções de homens

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e mulheres acerca dos problemas do mundo do trabalho escolar, das questões de saúde e gênero, possibilitando sua objetivação e desnaturalização (Costa, 2004; Silva, 2003). Os debates sobre saúde (enquanto valor e conceito) - em sua relação com o trabalho empreendidos no processo de formação dos trabalhadores participantes do Programa, parecem-nos ter permitido (re)pensar o trabalho, as atividades e suas implicações sobre o processo saúde/doença, abrindo-se um leque de possibilidades para a transformação da vida no trabalho em prol da saúde. Pudemos observar que uma das mudanças mais importantes ocorridas no percurso da formação esteve relacionada à superação da naturalização do adoecimento, na medida em que os trabalhadores sinalizaram que a participação no Programa de Formação veio despertá-los para as profundas relações que o trabalho tem efetivamente com a sua saúde. Além das mudanças no plano pessoal, percebemos o surgimento de pequenos focos não só de reação ao processo de trabalho instituído nas escolas, como também de proposição de mudanças e a criação de estratégias (individuais e coletivas) em prol da saúde e da afirmação da vida. Mas, como o quadro de participantes tinha como marca a diversidade de segmentos profissionais, percebemos formas diferenciadas de colocar em prática encaminhamentos que favorecessem a saúde nas situações e ambientes de trabalho. O nível de envolvimento e compreensão do processo de formação não se efetivou de forma homogênea (nem era essa a expectativa). Durante este processo, algumas mudanças, de naturezas diversas - englobando modificações concretas na organização e no ambiente de trabalho, mudanças nas formas de luta pela saúde e, mesmo, transformações no modo de olhar o trabalho e a vida - já aconteceram em várias escolas do estado do Rio de Janeiro e do município de João Pessoa. Podemos dar alguns exemplos. No que tange à organização e condições de trabalho, um dos grupos conseguiu implementar a divisão de horários do recreio por faixa etária dos alunos, após a avaliação dos benefícios que isso traria naquele contexto específico, considerando a atividade ali desenvolvida, com suas singularidades. O processo de trabalho das merendeiras de uma escola desprovida de refeitório foi parcialmente modificado, após perceberem, confrontadas com fotos, que seria menos desgastante se os próprios alunos buscassem suas refeições na cozinha, localizada no piso inferior. Houve também relatos de mudanças na própria estrutura de alguns prédios visando espaços mais adequados, assim como adaptação de equipamentos tendo em vista a segurança e um maior conforto. Foi o caso da colocação de rodinhas no fogão para evitar que as merendeiras de uma escola continuassem a levantar panelas pesadas. Assim como a diminuição das pernas dos fogões de outras escolas, para tornar sua altura mais adequada e menos prejudicial à saúde dessas trabalhadoras. No que concerne ao debate nos sindicatos, podemos dizer que houve um aumento significativo de exposições sobre a relação saúde-trabalho nos eventos dos trabalhadores realizados tanto no Rio de Janeiro, quanto em João Pessoa. Do mesmo modo, no decorrer do Programa, o movimento sindical decidiu criar o Coletivo de Gênero, Saúde e Etnia, como parte da estrutura do Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Município de João Pessoa - SINTEM. Nesse período vimos também a criação da Secretaria de Saúde no Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação - SEPE/RJ. Consequentemente, houve uma ampliação das formas de luta pela saúde. O SEPE/RJ realizou uma campanha de valorização profissional, denunciando a falta de profissionais e suas doenças mais comuns em painéis colocados nos out-bus e nas escolas. A campanha foi estendida também para os locais de trabalho, onde foram distribuídos adesivos em todas as escolas com os seguintes dizeres: “se não é minha função não faço” (dirigida aos funcionários administrativos) e “em salas super lotadas não dou aula” (dirigida aos professores). O Programa teve ainda efeitos sobre a adoção de políticas públicas. Em João Pessoa, uma decisão importante da Secretaria de Educação foi a de substituir os quadros-negros por quadros brancos nas escolas, eliminando a nocividade do pó de giz, entre outros ganhos. Outra medida importante foi pertinente à licença por motivo de doença. Até então, os trabalhadores, ao se licenciarem por motivo de adoecimento, perdiam os 25% de adicional de produtividade a que tinham direito. O governo municipal passou a conceder a licença, para determinados tipos de doenças (asma, problemas neurológicos, cardiológicos, cânceres etc.), sem perda da gratificação.

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Acompanhando os trabalhadores nessa travessia, fomos percebendo que as mudanças éticoestéticas aconteciam também na aparência física, na forma de se expressar, de cuidar da sua saúde e da saúde de sua família (Costa, 2004). Além disso, ao se introduzirem as relações sociais de gênero como um dos eixos transversais, o Programa de Formação tinha como objetivo buscar construir, junto com os trabalhadores de escola, processos de conhecimento não mais “sexualmente cegos”, mas produzir novas formas de pensar, sentir e agir em relação às questões de gênero, saúde e trabalho na escola. Pudemos registrar resultados dessa ordem em todos os ciclos e fases do Programa, o que configura o caráter de pesquisa-intervenção desta experimentação. Ao longo dos exercícios de estudo de campo, os trabalhadores foram desenvolvendo sua capacidade de visibilizar certas situações do trabalho na escola que costumam escapar ao olhar do profissional de pesquisa, sempre estranho e estrangeiro ao trabalho em análise. Com efeito, para se aprofundar o conhecimento acerca do real do trabalho e do real da atividade, deve-se enfatizar a contribuição indispensável dos protagonistas da atividade. À medida que os trabalhadores de escola foram se apropriando das informações sobre seu trabalho e suas implicações em termos de saúde/doença, foram, neste processo, provocando alterações em sua própria atividade e de seu coletivo, sempre que possível. Os exercícios de pesquisa que os multiplicadores realizaram na escola, mesmo aqueles que envolviam algum tipo de mensuração objetiva, atraíam a atenção dos colegas, que, diante do resultado, em certos casos, passavam a integrar-se à CAP, agindo em conjunto para melhorar as situações de trabalho. É importante sinalizar ainda que a experimentação que apresentamos resultou na constituição de Comissões de Saúde em algumas escolas públicas, que vêm elaborando mapas de risco e realizando um monitoramento sistemático dos problemas de saúde dos trabalhadores (com vistas a um Observatório). Enfim, uma série de eventos promotores de saúde foram sendo e continuam a ser produzidos, tendo como ponto de partida um olhar à lupa sobre as situações singulares de trabalho e a experiência dos protagonistas da atividade. Talvez nem seja possível inventariar tudo que vem acontecendo, pois, como temos constatado, este tipo de abordagem metodológica propicia o desencadeamento de vários movimentos em direção à saúde, dado que, nesta dinâmica, os trabalhadores potencializam sua capacidade normativa, (re)criando novas normas de vida (Canguilhem, 1995).

Considerações finais A “Promoção da Saúde a partir das Situações de Trabalho” (PSST) pode ser entendida como o processo continuado de compreensão/apreensão, por parte de trabalhadores e pesquisadores profissionais, do real das situações de trabalho, em sua relação com a saúde-doença, com o fim de - a partir dos locais de trabalho - monitorar a organização e as condições de trabalho para atuar preventiva e propositivamente nas fontes potencialmente causadoras de danos à saúde, afirmando e validando as formas de luta eventualmente já em curso. O caminho que estamos apontando aqui, em grande parte, já é conhecido. O que propomos é um pequeno deslocamento, indicando uma nova referência na compreensão e transformação das situações de trabalho, que é a incorporação estratégica e fundamental dos saberes gerados na atividade. Isso significa considerar o trabalho em sua complexidade, em seu caráter sempre enigmático, sem reduzilo e sem fragmentá-lo, considerando-o especialmente como uma atividade situada, com atores cujos modos de trabalhar são sempre, em alguma medida, singulares; com adversidades, frequentemente pesadas, mas também como um espaço de possíveis sempre negociáveis (Schwartz, 2007). Acreditamos que a ideia aqui apresentada é pertinente, primeiramente porque contribui para a apreensão dos determinantes múltiplos da saúde, não enfocando somente a doença, nem unicamente os riscos clássicos do trabalho. Por outro lado, porque tem uma perspectiva de continuidade (não é estanque) e porque engendra uma participação direta e efetiva dos trabalhadores, seu comprometimento, condição necessária para compreender-transformar positivamente as situações de trabalho (e a vida). O fato de ter como referência a atividade também nos parece importante, seja porque cada realidade é singular, seja porque as ações implementadas geram novos conhecimentos que podem (re)orientar, em novas bases, as reivindicações do movimento dos trabalhadores em termos de políticas públicas. 116

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SILVA, E.F. et al.

artigos

Colaboradores Os autores Edil Ferreira da Silva, Jussara Brito, Mary Yale Neves e Milton Athayde participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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SILVA, E.F. et al. La promoción de la Salud a artir de las situaciones de trabajo: consideraciones referenciadas en una experiencia con trabajadores de escuelas públicas. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.107-19, jul./set. 2009. El objeto de este artículo es el de presentar y discutir lo que denominamos Promoción de la Salud a partir de las Situaciones de Trabajo (PSST). Para tal hacemos uso de una experiencia desarrollada en el estado de Rio de Jlaneiro Y en el municipio de Joao Pessoa, estado de Paraiba, ambos en Brasil: el Programa de Formación en Salud, Género y Trabajo en las Escuelas Públicas. La experimentación ha tenido como punto de partida y de llegada las situaciones concretas de trabajo e involucró, en una perspectiva ergológica, el diálogo sinérgico entre los polos de la experiencia y de los conceptos mediado por el polo ético-epistémico, por la constitución de Comunidades Ampliadas de Pesquisa (CAP). Su realización propició (y sigue propiciando) la producción de varios eventos promotores de salud, englobando modificaciones concretas en la organización y en el ambiente de trabajo, cambios en las formas de lucha por la salud e inoluso transformaciones en el modo de ver el trabajo Y la vida.

Palabras clave: Promoción de la salud. Trabajo. Escuela pública. Salud del trabajador. Ergología. Recebido em 19/08/2008. Aprovado em 22/12/2008.

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artigos

Atividades educativas de trabalhadores na atenção primária: concepções de educação permanente e de educação continuada em saúde presentes no cotidiano de Unidades Básicas de Saúde em São Paulo*

Marina Peduzzi1 Débora Antoniazi Del Guerra2 Carina Pinto Braga3 Fabiana Santos Lucena4 Jaqueline Alcântara Marcelino da Silva5

PEDUZZI, M. et al. Educational activities for primary healthcare workers: permanent education and inservice healthcare education concepts in the daily life of primary healthcare units in São Paulo. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.121-34, jul./set. 2009. The objective of this study was to analyze the educational activity practices among healthcare workers in primary healthcare units (PHUs) according to the concepts of permanent healthcare education (EPS) and continuing education (CE), healthcare and nursing work processes, teamwork and comprehensiveness. This was a cross-sectional study conducted in 10 PHUs in the municipality of São Paulo, through structured interviews with 110 key informants who represented all professional categories and teams at the PHUs. The interviews covered educational activities developed in 2005. The information was classified according to operational categories for each study variable, based on the theoretical framework. The workers reported 396 educational activities that demonstrated the complementary nature of the concepts of CFHE and CE. In accordance with the perspectives of the Brazilian Unified Health System (SUS) and the transformation of healthcare practices, there is a need to expand the debate relating to CFHE as public policy.

Esta pesquisa tem o objetivo de analisar a prática de atividades educativas de trabalhadores da saúde em Unidade Básica de Saúde (UBS) segundo as concepções de educação permanente em saúde (EPS) e de educação continuada (EC), processo de trabalho em saúde e enfermagem, trabalho em equipe e integralidade. Estudo do tipo transversal, realizado em dez UBS do Município de São Paulo, por meio de entrevista dirigida com 110 informantes-chave, representantes de todas as categorias profissionais e equipes das UBS, sobre as atividades educativas desenvolvidas em 2005. As informações foram classificadas segundo categorias operacionais para cada variável de estudo, com base no referencial teórico. Os trabalhadores relataram 396 atividades educativas, que revelam a complementaridade das concepções de EPS e EC. De acordo com a perspectiva do Sistema Único de Saúde (SUS) e da transformação das práticas de saúde, coloca-se a necessidade de ampliação do debate em torno da EPS como política pública.

Keywords: Continued formal healthcare education. Continuing education. Work. Healthcare human resources. In-service education.

Palavras-chave: Educação permanente em saúde. Educação continuada. Trabalho. Recursos humanos em saúde. Educação em serviço.

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* Texto inédito de pesquisa realizada com auxílio da Fapesp e da Organização PanAmericana da Saúde/ Ministério da Saúde – Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde, Estação de Trabalho Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP (EE/USP) - Processo n. 423/2004/CEP-EEUSP - e pelo CEP da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de São Paulo - Parecer n. 034/2005 - CEP-SMS. 1 Departamento de Orientação Profissional, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo (EE/USP). Av Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419, Cerqueira César, São Paulo, SP, Brasil. 05.403000. marinape@usp.br 2 Graduada em Enfermagem. 3e4 Programa de Saúde da Família, Associação Saúde da Família, município de São Paulo. 5 Departamento de Orientação Profissional, EE/USP.

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Atividades educativas de trabalhadores na atenção primária:...

Introdução Os trabalhadores da saúde - componente indispensável para se alcançarem os objetivos dos serviços e a finalidade dos processos de trabalho - precisam buscar e acessar constantes espaços de reflexão sobre a prática, a atualização técnico-científica e o diálogo com usuários/população e demais trabalhadores que integram os serviços. O acompanhamento de processos de capacitação de trabalhadores da saúde demonstra que o aspecto menos desenvolvido é a avaliação (Davini, Nervi, Roschke, 2002), e os estudos que contribuem nessa direção apontam a fragilidade do impacto das capacitações na qualidade dos serviços de saúde (Viana et al., 2008; Merhy, Feuerwerker, Ceccim, 2006; Peduzzi et al., 2006; Torres, Andrade, Santos, 2005; Ceccim, Feuerwerker, 2004). Assim, destaca-se a implantação da educação permanente em saúde (EPS) como política nacional para formação e desenvolvimento de trabalhadores da saúde, tendo em vista a articulação entre as possibilidades de desenvolver a educação dos profissionais e a ampliação da capacidade resolutiva dos serviços de saúde. Essa política pública propõe que os processos de capacitação dos trabalhadores tomem como referência as necessidades de saúde das pessoas e das populações, da gestão setorial e do controle social em saúde (Brasil, 2007, 2004a, 2004b). Recentemente, a Portaria 1996/07 (Brasil, 2007) estabeleceu novas diretrizes e estratégias para a implementação dessa política, de modo a adequá-la às diretrizes operacionais e ao regulamento do Pacto pela Saúde (Brasil, 2006), que define a política de recursos humanos para o Sistema Único de Saúde (SUS) como eixo estruturante que deve buscar a valorização do trabalho e dos trabalhadores da saúde. O referido documento também define que a condução regional da política nacional da EPS se dará por meio dos Colegiados de Gestão Regional, com a participação das Comissões Permanentes de Integração Ensino-Serviço (CIES), instâncias previstas no regulamento do Pacto pela Saúde que participam da formulação, execução, acompanhamento e avaliação de ações da EPS. A proposta da EPS foi lançada pela Organização Pan-Americana da Saúde no início dos anos 80, com a finalidade de reconceituar e reorientar os processos de capacitação de trabalhadores dos serviços de saúde. Essa proposta toma como eixo da aprendizagem o trabalho executado no cotidiano dos serviços, organizando-se como processo permanente, de natureza participativa e multiprofissional (Haddad, Roschke, Davini, 1994). Pautada na concepção pedagógica transformadora e emancipatória de Paulo Freire, a proposta da EPS vem sendo construída com base nas noções de aprendizagem significativa e de problematização difundidas pelo autor, constituindo-se, assim, em processos educativos que buscam promover a transformação das práticas de saúde e de educação (Faria, 2008; Ceccim, 2005b). Assim concebida, a EPS reconhece o caráter educativo do próprio trabalho, que passa a ser compreendido não apenas em seu sentido instrumental da produção de resultados, da ação dirigida a um dado fim já definido a priori, mas também como espaço de problematização, reflexão, diálogo e construção de consensos por meio dos quais se torna possível promover mudanças e transformações na perspectiva da integralidade da saúde (Ceccim, 2005b, 2005c; Ceccim, Feuerwerker, 2004; Paim, 2002). Segundo Pedroso (2005), nos serviços de saúde, a área de recursos humanos ainda é fortemente marcada pelos procedimentos de administração de pessoal, e as respostas às demandas de desenvolvimento são pontuais, centradas nas capacitações técnico-científicas, desarticuladas e fragmentadas, frequentemente desvinculadas das necessidades de saúde. Contudo, o autor destaca que essas atividades de educação continuada (EC) são importantes para a consolidação do SUS, visto que podem, em alguma medida, “aproximar o vácuo existente entre a formação e a real necessidade do sistema de saúde” (Pedroso, 2005, p.92). A concepção de EC, consagrada na gestão de recursos humanos nos diversos setores de produção, inclusive no setor de saúde, também vem passando por mudanças e ampliação, pois alguns autores associam a ela possibilidades de transformação da organização, bem como da construção de conhecimentos que retornem para a própria organização e para as profissões, a partir da consideração da dimensão subjetiva dos trabalhadores (Peres, Leite, Gonçalves, 2005). Observa-se que a perspectiva 122

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PEDUZZI, M. et al.

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artigos

de transformação da EC está dirigida às organizações, aos indivíduos e às profissões, e não às práticas sociais, como apontado pela EPS. As concepções de EPS e de EC são, portanto, distintas e suas diferenças são apreendidas em publicação do Ministério da Saúde (Brasil, 2004a) e na literatura sobre EPS (Faria, 2008; Saupe, Cutolo, Sandri, 2008; Viana et al., 2008; Ceccim, 2005a, 2005b, 2005c; Ceccim, Feuerwerker, 2004; Paim, 2002; Haddad, Roschke, Davini, 1994), que permite diferenciá-las na medida em que a EPS está fundamentada na concepção de educação como transformação e aprendizagem significativa, centrada: no exercício cotidiano do processo de trabalho, na valorização do trabalho como fonte de conhecimento, na valorização da articulação com a atenção à saúde, a gestão e o controle social, e no reconhecimento de que as práticas são definidas por múltiplos fatores; voltada à multiprofissionalidade e à interdisciplinaridade, com estratégias de ensino contextualizadas e participativas, e orientada para a transformação das práticas. A EC é pautada pela concepção de educação como transmissão de conhecimento e pela valorização da ciência como fonte do conhecimento; é pontual, fragmentada e construída de forma não articulada à gestão e ao controle social, com enfoque nas categorias profissionais e no conhecimento técnico-científico de cada área, com ênfase em cursos e treinamentos construídos com base no diagnóstico de necessidades individuais, e se coloca na perspectiva de transformação da organização em que está inserido o profissional. A EPS está relacionada à concepção de integralidade, que é analisada por Mattos (2004, 2003) em três eixos de sentidos: o primeiro aplicado às características das políticas de saúde no sentido de articular ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde; o segundo, ligado à apreensão ampliada e contextualizada das necessidades de saúde; e o terceiro, ao modo de organização dos serviços de saúde, que busca a articulação dos diferentes níveis de complexidade da atenção à saúde, a interdisciplinaridade, a multiprofissionalidade e a intersetorialidade. Embora o trabalho em saúde tenda a ser individualizado e fragmentado, desde a década de 1970 preconiza-se o trabalho em equipe, que configura uma alternativa de recomposição dos trabalhos especializados na direção da integralidade (Peduzzi, 2007a, 2001). Entende-se que as equipes são construídas no transcorrer do processo coletivo de trabalho e têm uma plasticidade, podendo variar sua composição, duração e dinâmica de trabalho em função de maior eficácia e efetividade dos cuidados e da qualidade da prestação de serviço. O trabalho coletivo, atualmente, caracteriza-se pelo seu parcelamento e pela produção de estranhamento do trabalhador em relação ao próprio processo de trabalho, a seu contexto e seus resultados. Contudo, em que pesem os fatores de alienação, há que se considerar que a unidade rompida entre concepção e execução do trabalho, tomada de decisão e ação pode ser recomposta no processo de trabalho pela utilização contínua da capacidade de avaliação e julgamento do trabalhador. Assim, para além da reiteração de modelos de trabalho já dados e dominantes, podem se configurar espaços de mudança nos processos de trabalho em saúde. A educação no trabalho insere-se, portanto, num contexto tenso, em que há possibilidade tanto de meramente reproduzir a tecnicidade e a normatividade do trabalho como de configurar oportunidades de recomposição dos processos de trabalho, de modo que os trabalhadores da saúde possam reconhecer, negociar e responder de forma mais pertinente às necessidades de saúde dos usuários e da população, buscando assegurar direitos e qualidade na prestação de serviço, na perspectiva do fortalecimento do SUS. Entende-se que, de certa forma, as atividades educativas de trabalhadores devem ter sua origem e execução próximas à realidade de trabalho, para que estimulem sua problematização de forma contextualizada e promovam o diálogo entre as políticas públicas e as singularidades dos lugares e pessoas (Brasil, 2004a). Entretanto, pesquisa recente de avaliação dos recursos humanos na atenção primária no Estado de São Paulo demonstra que a sede do Município é o local em que mais ocorrem processos de capacitação, e que a própria Unidade Básica de Saúde (UBS) é pouco utilizada com esse objetivo (Viana et al., 2008). No contexto das políticas públicas de saúde do SUS e do quadro teórico adotado, estudaram-se as atividades educativas de trabalhadores da rede básica na perspectiva microssocial, isto é, do exercício cotidiano de trabalho, com o objetivo de analisar a prática de atividades educativas de trabalhadores da saúde em UBS segundo as concepções de EPS e EC. 123


Atividades educativas de trabalhadores na atenção primária:...

Metodologia Estudo do tipo transversal, vinculado à pesquisa maior intitulada “Análise das atividades educativas dos trabalhadores e equipes de saúde e de enfermagem: características, levantamento de necessidades e resultados esperados” (Peduzzi, 2007b). O estudo foi realizado em uma região central do Município de São Paulo, que conta com 14 UBS para aproximadamente quatrocentos mil habitantes, representando uma rede de ações e serviços de saúde com resolubilidade para a atenção básica e de média complexidade. Dessas UBS, 13 estão sob responsabilidade da Coordenadoria Regional de Saúde Centro-Oeste e respectivas Supervisões Técnicas de Saúde, e uma está ligada a uma universidade pública. Desse total de UBS, foram registradas quatro perdas. Uma dessas perdas decorreu de recusa, e as outras três decorreram de: reforma do prédio de uma dessas unidades, outra UBS que receberia os profissionais da unidade em reforma, e uma UBS que estava implantando a estratégia de saúde da família no período da pesquisa de campo. Assim, a amostra final foi composta por dez UBS, identificadas por letras (A, B, C, D, E, F, G, H, I, J), que se diferenciavam pela presença de equipes de saúde da família (ESF) em quatro dessas UBS. As ESF foram implantadas a partir de 2001 em situações diversas: UBS-A, com duas ESF articuladas ao modelo das ações programáticas; UBS-C e UBS-E, com seis ESF; e UBS-J, com três ESF e duas equipes de agentes comunitários de saúde, pertencentes ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)1. A UBS-E e a UBS-J são denominadas unidades mistas, por contarem com ESF e um conjunto de profissionais da saúde não inseridos nas equipes. A Tabela 1 apresenta a distribuição dos trabalhadores da saúde e das equipes de trabalho de acordo com as respectivas UBS2, com o objetivo de caracterizar as unidades estudadas. Essas informações demonstram a heterogeneidade do porte das unidades, que varia de 121 (18,9%) a 31 (4,8%) trabalhadores. As equipes de trabalho estão presentes apenas nas quatro UBS com implantação das ESF (A, C, E, J) e na UBS-D, que conta com uma equipe de saúde mental. Tabela 1. Distribuição dos trabalhadores da saúde e das equipes de trabalho nas Unidades Básicas de Saúde estudadas – São Paulo, 2005/2006.

Unidade

Total

124

Trabalhadores da saúde

Equipes de trabalho

n

%

n

%

A

121

18,9

107

43,3

B

56

8,7

-

-

C

80

12,5

42

17

D

50

7,8

4

1,6

E

101

15,8

55

22,3

F

48

7,5

-

-

G

33

5,1

-

-

H

31

4,8

-

-

I

48

7,5

-

-

J

73

11,4

39

15,8

641

100

247

100

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Essa era a situação da UBS-J no período de coleta de dados, mas a partir de 2007, a unidade passou a contar com cinco ESF completas.

1

As informações sobre o número de trabalhadores e de equipes de trabalho em cada UBS, extraídas da pesquisa mais ampla a qual este estudo está vinculado, têm como objetivo caracterizar o perfil desses trabalhadores da saúde e dessas equipes de trabalho da região de estudo.

2


PEDUZZI, M. et al.

artigos

A coleta de dados foi realizada em três UBS (A, E, J), entre julho e novembro de 2005, com levantamento de dados das atividades educativas que ocorreram no período de julho de 2004 a junho de 2005. Após obtenção do apoio de agência de fomento e da Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde (ROREHS), a coleta foi estendida para as demais UBS no período de abril a novembro de 2006, referente aos dados de todo o ano de 2005. Foram realizadas cento e dez entrevistas dirigidas, em média 11 por UBS, com informantes-chave indicados pelos dirigentes das unidades. Esses informantes eram representantes de todas as categorias profissionais e das equipes de trabalho de cada local. O instrumento foi composto por questões como: tipo de atividade educativa, incluindo o(s) conteúdo(s) abordado(s), público-alvo, estratégias de ensino, local de realização da atividade, origem da demanda, e duração (em horas). Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas, e as informações foram sistematizadas em categorias operacionais. Optou-se pelo mapeamento das atividades educativas dos trabalhadores da saúde das UBS a partir de entrevistas com informantes-chave, visto que até meados de 2006 não se tinha contato com o registro sistematizado dessas atividades. Somente nesse período conseguiu-se localizar, por meio de integrantes da equipe do Centro de Formação e Desenvolvimento dos Trabalhadores da Saúde (CEFOR) da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, o registro das atividades educativas dos trabalhadores da saúde do Município, que teve início com os dados de 2005. Tendo em vista a abordagem da EPS quanto à perspectiva do cotidiano de trabalho e a distinção entre EPS e EC, buscou-se compreender se as atividades educativas de trabalhadores da saúde estavam ancoradas ao processo de trabalho. Para isso, foram elaboradas categorias operacionais para cada variável de estudo, com base no referencial teórico. A elaboração dessas categorias teve como objetivo tornar possível a análise das atividades educativas de trabalhadores da saúde em UBS a partir de pesquisa empírica (Quadro 1). Essa classificação foi realizada inicialmente pelo pesquisador de campo de cada UBS, seguida da apresentação em reunião de pesquisa com a coordenadora do projeto para discussão e validação. Quadro 1. Variáveis e respectivas categorias operacionais de análise. Variável

Categorias operacionais

Tipo de atividade educativa

Integralidade (promoção, prevenção e recuperação da saúde; promoção e prevenção; prevenção; prevenção e recuperação; recuperação da saúde) Emergiram do campo Reuniões entre trabalhadores Gerenciais Congressos, simpósios e similares

Público-alvo

Área específica Trabalhadores de enfermagem e médicos Todos os trabalhadores do serviço Equipes de trabalho Comunidade

Estratégias de ensino

Tradicionais Participativas

Local de realização da atividade

Interno (no serviço) Externo (fora do serviço) Externo/comunidade (fora do serviço, na comunidade)

Origem da demanda

Interna (no serviço) Externa (fora do serviço)

Duração

Curta (< 20 horas) Média (21 a 60 horas) Longa (> 61 horas)

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A categorização quanto ao ‘tipo de atividade educativa’ foi realizada com base no nome da atividade e no respectivo conteúdo abordado. Em um primeiro momento, foram classificadas, na categoria operacional ‘integralidade’, as atividades cujos nomes e conteúdos remetiam a algum grau de articulação de ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde. Tendo em vista a correlação entre integralidade e EPS, essas atividades foram agrupadas como expressão da EPS. Na categoria ‘emergiram do campo’ ficaram as atividades relatadas espontaneamente como ‘atividades educativas, com o usuário, que são educativas para o trabalhador’, ‘atividades assistenciais, com o usuário, que são educativas para o trabalhador’ e ‘a presença de alunos na unidade como processo educativo para o trabalhador’. Considerando que essas atividades estão ancoradas diretamente no processo de trabalho, foram interpretadas como expressão da concepção de EPS. As atividades referidas como reuniões com abordagem de conteúdos relacionados à atenção à saúde, à gerência da UBS ou a ambas (atenção e gerência) foram categorizadas como ‘reuniões entre trabalhadores’ e compreendidas como próximas à EPS, visto que esta valoriza a articulação com a atenção à saúde e a gestão, e está voltada à multiprofissionalidade e à interdisciplinaridade. Aquelas de cunho administrativo/gerencial foram classificadas como ‘gerenciais’, e as que faziam referência a eventos científicos, como ‘congressos, simpósios e similares’. Essas atividades foram interpretadas como afinadas com a EC, pois esta se pauta na valorização da ciência como fonte do conhecimento e no conhecimento técnico-científico. A variável ‘público-alvo’ foi classificada em: ‘área específica’, ‘trabalhadores de enfermagem e médicos’, ‘todos os trabalhadores do serviço’, ‘equipes de trabalho’ e ‘comunidade’. As duas primeiras categorias operacionais foram consideradas próximas à EC, e as outras três, afinadas com a EPS, por ser voltada para a multiprofissionalidade e a interdisciplinaridade, além de expressar a articulação dos processos educativos de trabalhadores ao controle social e à participação da população. Vale destacar que o público-alvo foi denominado ‘área específica’ para as atividades educativas voltadas para cada uma das áreas profissionais da saúde, bem como, em separado, para agentes comunitários da saúde, trabalhadores de enfermagem (enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem) ou, genericamente, para profissionais da saúde. A classificação ‘estratégias de ensino’ considerou como ‘participativas’ as estratégias que estimulam a participação dos trabalhadores (como discussão em grupo, oficinas de trabalho, aula expositiva e discussão, e aulas expositiva e prática), com potencial para implantação da EPS no serviço. Aulas expositivas, painéis, seminários e similares foram considerados estratégias ‘tradicionais’, mais afinadas com a EC. As atividades com origem na própria UBS e que ali são realizadas têm maior possibilidade de contar com a participação dos trabalhadores, visto que estes podem ser atores diretos tanto dos processos de identificação de necessidades de capacitação como de sua execução, além de se expressar de forma mais próxima às necessidades dos usuários/população, gerentes e trabalhadores. Assim, o ‘local de realização da atividade’ foi categorizado como ‘interno’, ‘externo’ e ‘externo/comunidade’ e a ‘origem da demanda’ foi classificada como ‘interna’ e ‘externa’. O local e a origem da demanda ‘internos’ ao serviço foram considerados próximos da concepção de EPS e os ‘externos’ ao serviço estão mais afinados com a EC. Finalmente, a ‘duração’ foi categorizada em curta (< 20 horas), média (21-60 horas) e longa (> de 61 horas).

Análise estatística As variáveis foram distribuídas em frequências e proporções. Para verificar a existência de associação entre as variáveis e as unidades estudadas, empregou-se o teste de Fisher (Armitage, Berry, 1994), adotando-se o nível de significância de 5%. Entre as variáveis com associação estatisticamente significativa, foram calculados os resíduos padronizados expressos em unidades de desvio padrão. A análise desses resíduos possibilita verificar quais categorias estão contribuindo para a associação, pois representam valores de relação biunívoca com probabilidade de ocorrência. Nesses casos, valores maiores que 1,96 ou menores que -1,96 têm pequenas chances de ocorrência (+ 2,5%) e podem instruir pontos de corte para um nível de significância de excesso ou falta de ocorrências, respectivamente (Pereira, 1999). 126

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O banco de dados foi estruturado no Excel, versão 2.0, e a análise estatística foi realizada por meio do Statistic Package for Social Science (SPSS), versão 12.0. O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Todos os sujeitos de pesquisa foram consultados e concordaram em participar, com assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados Os trabalhadores da saúde das UBS pesquisadas relataram 396 atividades educativas. Os resultados são apresentados para cada variável, iniciando com a exposição da frequência de cada categoria operacional para o conjunto das unidades estudadas, seguida pela análise do comportamento das UBS, que demonstram resultados associados (Tabela 2).

Tabela 2. Distribuição de frequências, proporções de cada variável de estudo e resíduos, com valores em excesso e falta nas dez Unidades Básicas de Saúde pesquisadas – São Paulo, 2005/2006. Serviços (resíduos) Variável

Categoria operacional

Tipo de atividade educativa

Integralidade: promoção, prevenção e recuperação da saúde

Subtotal

TOTAL

TOTAL

Excesso

Falta

40 (10,1)

---

---

Integralidade: promoção e prevenção

32 (8,1)

---

---

Integralidade: prevenção

11 (2,8)

---

---

Integralidade: prevenção e recuperação da saúde

21 (5,3)

---

---

Integralidade: recuperação da saúde

17 (4,3)

---

---

Integralidade

121 (30,6)

J (2,9)

D (-3,6)

Emergiram do campo

68 (17,2)

B (3,4)

F (-2,0)

Reuniões entre trabalhadores

54 (13,6)

C (2,4)

J (-3,0)

Gerenciais

45 (11,4)

F (3,6)

A (-2,6)

Congressos, simpósios e similares

27 (6,8)

D (4,6)

---

Outras

81 (20,5)

---

---

192 (53,9)

G (2,4)

E (-2,3)

Equipes de trabalho

32 (9,0)

A (2,8)

---

Trabalhadores de enfermagem e médicos

31 (8,7)

---

---

Comunidade

28 (7,9)

B (4,2)

A (-2,5)

Todos os trabalhadores do serviço

19 (5,3)

A (4,3)

---

Trabalhadores/comunidade

13 (3,7)

E (3,2)

---

Outros

41 (11,5)

---

---

396 (100,0)

*

Público-alvo

Área específica

356 (100,0)

*

Estratégias de ensino

N (%)

Participativas

199 (60,9)

A (2,0)

F (-2,4)

Tradicionais

98 (30,0)

F (3,3)

C (-2,6)

Outras

30 (9,1)

C (2,3) J (4,6)

---

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TOTAL*

327 (100,0)

Local

Externo

217 (61,6)

I (2,1) J (3,1) F (3,4)

C (-2,8) A (-6,8)

Interno

124 (35,2)

C (3,3) A (6,3)

F (-3,1) J (-4,4)

Externo/comunidade

5 (1,5)

J (4,5)

---

Outros

6 (1,7)

A (3,2)

---

352 (100,0)

TOTAL* Origem da demanda

Externa

194 (58,1)

J (4,6)

A (-7,2)

Interna

134 (40,1)

A (7,2)

J (-4,4)

6 (1,8)

---

---

Interna/externa TOTAL

334 (100,0)

*

Duração

Curta

178 (56,2)

H (2,1) F (2,5) J (2,7)

B (-2,3) A (-2,4)

Média

80 (25,2)

B (2,6)

F (-2,5)

Longa

59 (18,6)

E (2,0) D (2,5) A (3,3)

---

317 (100,0)

TOTAL*

p<0,001 * As diferenças nos totais destas variáveis são devido à falta de informação no momento da entrevista.

Tipo de atividade educativa Quanto ao tipo de atividade educativa, 121 (30,6%) atividades foram classificadas na categoria ‘integralidade’, que representa a maior proporção no conjunto dos processos educativos, com excesso na unidade J e falta na unidade D. A seguir, 68 (17,2%) atividades correspondem àquelas denominadas ‘emergiram do campo’, com a unidade B em excesso e a F em falta. Nas atividades denominadas ‘reuniões entre trabalhadores’, 54 (13,6%) são maiores na unidade C e menores na J; nas ‘gerenciais’, 45 (11,4%) estão na unidade F, que apresentou excesso, e a unidade A apresentou falta dessa atividade. Em menor proporção encontram-se as atividades denominadas ‘congressos, simpósios e similares’, com 27 (6,8%), em que na unidade D há excesso e nenhuma unidade em falta.

Público-alvo Do total de público-alvo, a ‘área específica’ foi a mais frequente, com 192 (53,9%), apresentando excesso na unidade G e falta na unidade E. A seguir, 32 (9,0%) correspondem a ‘equipes de trabalho’ (assistencial, gerencial); 31 (8,7%), a ‘trabalhadores de enfermagem e médicos’; 28 (7,9%), a ‘comunidade’; 19 (5,3%), a ‘todos os trabalhadores do serviço’; 13 (3,7%), a ‘trabalhadores/ comunidade’; e 41 (11,5%), a ‘outros’. Nessa categoria foi observado excesso de ‘equipes de trabalho’ e de ‘todos os trabalhadores do serviço’ na unidade A, e de ‘comunidade’ e ‘trabalhadores/ comunidade’ nas unidades B e E, respectivamente. Somente na unidade A foi observada falta, na variável ‘comunidade’.

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Estratégias de ensino Quanto às estratégias de ensino, 199 (60,9%) foram ‘participativas’, com excesso na unidade A e falta na F, seguidas de 98 (30,0%) ‘tradicionais’, com excesso e falta nas unidades F e C, respectivamente, e, por último, 30 (9,1%) em ‘outras’, com excesso observado em duas unidades (C e J).

Local Em relação ao local em que foram desenvolvidas as atividades educativas, 217 (61,6%) aconteceram no meio ‘externo’ e 124 (35,2%), no meio ‘interno’ ao serviço. No meio ‘externo’, foram registrados excesso nas unidades I, J e F e falta nas unidades C e A, ao passo que no meio ‘interno’ foram registrados excesso nas unidades C e A e falta nas unidades F e J. Nos locais com menores proporções, ‘externo/comunidade’ com cinco (1,5%) e ‘outros’ com seis (1,7%), foi observado excesso nas unidades J e A, respectivamente. Nenhuma UBS apresentou falta dessas duas categorias.

Origem da demanda No que se refere à origem da demanda para a realização da atividade educativa, houve predomínio de 194 (58,1%) de origem ‘externa’ e de 134 (40,1%) de origem ‘interna’. Na categoria ‘externa’ foram observados excesso na unidade J e falta na unidade A. Inversamente, na categoria ‘interna’ foram observados excesso na unidade A e falta na unidade J.

Duração Ao analisar a duração das atividades educativas nas dez UBS, 178 (56,2%) atividades foram de ‘curta’ duração, seguidas de oitenta (25,2%) atividades de ‘média’ duração e de 59 (18,6%) de ‘longa’ duração. Os dois extremos, ‘curta’ e ‘longa’, apresentaram excesso nas unidades H, F e J e nas unidades E, D e A, respectivamente. A ‘curta’ duração estava com falta nas unidades B e A, e não foram registradas unidades com falta nas atividades de ‘longa’ duração. Na categoria de ‘média’ duração, foram observados excesso e falta nas unidades B e F, respectivamente.

Discussão Os resultados da variável tipo de atividade educativa na categoria integralidade, considerada em suas diferentes combinações de ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde, corroboram com a organização de serviços de atenção primária à saúde, segundo a qual a integralidade constitui eixo estruturante, visto que as UBS buscam construir uma relação com a população do território e usuários que lhes permita o reconhecimento como referência para a atenção à saúde, que apreende e responde às necessidades de saúde de forma abrangente e contextualizada (Mattos, 2004; Campos, 2002; Schraiber, Mendes-Gonçalves, 1996). Contudo, justamente por ser a integralidade considerada marca da atenção primária, cabe questionar o fato de apenas 10,1% das atividades educativas de trabalhadores estarem orientadas para a articulação das ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde. Também merecem ser questionados o modo e a finalidade com que as ações de promoção e prevenção vêm sendo realizadas, ou seja, se efetivamente buscam a ampliação da concepção de saúde e a intervenção sobre seus determinantes, o que se refere à segunda acepção de integralidade (Mattos, 2004) apresentada anteriormente, mas que foge ao escopo deste estudo. As atividades educativas orientadas para a integralidade (30,6%), somadas àquelas classificadas como emergiram do campo (17,2%), segundo as quais o próprio exercício cotidiano do trabalho é educativo para os trabalhadores, configuram 47,8% das ações educativas de profissionais diretamente

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relacionadas à atenção à saúde. O destaque para essas atividades está adequado, visto que a atividade fim dos serviços ou a finalidade dos processos de trabalho em saúde referem-se à atenção às necessidades de saúde dos usuários e da população. As ações educativas relatadas, como reuniões entre trabalhadores, assinalam na direção da EPS e das equipes de trabalho, por constituírem ferramentas aplicadas por meio da comunicação e da interação entre os profissionais - construção de espaços de troca, negociação e busca de consensos. Entende-se pertinente que tanto as reuniões como as atividades de cunho gerencial apareçam em menor proporção que aquelas relacionadas diretamente à atenção à saúde, que constitui sua finalidade. O público-alvo das atividades educativas nos serviços estudados é compreendido como expressão da concepção da educação de trabalhadores vigente no local, e pode ser, por um lado, mais próximo da EPS quando as ações orientadas para equipes de trabalho e trabalhadores/comunidade predominam, e, por outro lado, da EC, ao prevalecerem atividades voltadas para as áreas específicas (Viana et al., 2008; Merhy, Feuerwerker, Ceccim, 2006; Ceccim, 2005b; Haddad, Roschke, Davini, 1994). Predominam atividades educativas voltadas para o público-alvo de uma área profissional específica, aspecto que se refere à fragmentação das ações de saúde e a tradição do trabalho individualizado por categorias no modo de organização do processo de trabalho em saúde. Nesse sentido, pesquisa de avaliação das ações voltadas aos recursos humanos na atenção primária demonstra que a capacitação para áreas profissionais específicas, centrada em técnicas, não garante a compreensão das situações cotidianas do processo de trabalho das equipes, havendo escassez de processos educativos voltados para todos os trabalhadores das UBS (Viana et al., 2008). Contudo, a presença de atividades educativas voltadas para equipes, mesmo que minoritárias, estimula a articulação dos trabalhadores e a integração das práticas de saúde em torno de um projeto comum (Peduzzi, 2007a, 2001), o que assinala, mesmo que de forma incipiente, para mudança da organização das práticas de um trabalho fragmentado, individualizado, verticalizado e hierarquizado para um trabalho com interação social (Ceccim, 2005a). Resultados de pesquisas recentes revelam que o trabalho em equipe vigora em UBS com modelo de atenção primária implementado, que se volta às necessidades de saúde dos usuários e da população da área de referência (Peduzzi, 2007a), e que, nesse tipo de serviço, o público-alvo com audiência preferencial deveria ser composto por equipes de trabalhadores (Saupe, Cutolo, Sandri, 2008). A presença da participação dos trabalhadores/comunidade em atividades de educação em saúde e de EPS aponta para o desenvolvimento da responsabilização do usuário por sua condição de saúde, a participação no cotidiano do serviço, a importância da relação trabalhador/usuário, assim como a organização dos serviços públicos mediante análise, apresentação e defesa de seus interesses em conselhos deliberativos nas instâncias municipais, estaduais e federais (Kleba, Comerlatto, Colliselli, 2007; Crevelim, Peduzzi, 2005; Cortes, 2002). As atividades educativas de trabalhadores estruturadas a partir das peculiaridades da organização do trabalho e das necessidades da comunidade podem possibilitar a mudança das práticas de saúde. A EPS se relaciona aos aspectos mencionados e se desenvolve a partir da reflexão sobre o processo de trabalho (Ceccim, Feuerwerker, 2004). Nessa mesma direção entendem-se as estratégias de ensino a partir do pressuposto de que a aprendizagem é dinâmica e modifica comportamentos, tendo grande importância o sujeito da aprendizagem, o objeto a ser apreendido, o conhecimento que resulta da interação entre sujeito e objeto, e o instrutor que facilita esse processo (Souza et al., 1999). O sujeito pode, por meio de estratégias participativas e a partir de seu referencial de realidade, construir novos conhecimentos e alcançar o objeto em sua totalidade. Os resultados demonstram o predomínio de tais estratégias para o conjunto das unidades estudadas, o que corrobora com outros estudos sobre EPS em atenção primária (Saupe, Cutolo, Sandri, 2008; Silva, Ogata, Machado, 2007). Observa-se também que a maioria das atividades educativas de trabalhadores é realizada externamente ao serviço, o que corrobora com os resultados de recente pesquisa de avaliação das práticas referentes aos recursos humanos na atenção primária no Estado de São Paulo (Viana et al., 2008). O Relatório Mundial da Saúde de 2006 (OMS, 2007) também aponta para o fato de que cursos isolados, ministrados fora do ambiente de trabalho, têm histórico pobre como modificadores das práticas correntes dos trabalhadores. 130

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A origem da demanda por atividades educativas é, da mesma forma, predominantemente externa ao serviço. Entende-se que as demandas de processos educativos para trabalhadores da saúde devam surgir da problematização da prática concreta dos profissionais, e não das necessidades individuais de atualização, nem exclusivamente de orientações de níveis centrais e regionais, mas a partir da organização do trabalho, considerando a responsabilidade em prestar assistência integral, humanizada e de qualidade aos usuários (Ceccim, Feuerwerker, 2004). Nesse sentido, o resultado mostra a dificuldade de as UBS pesquisadas gerarem suas próprias demandas de atividades educativas, por meio da identificação de suas necessidades, em termos locais. A presença marcante de demanda externa pode ser atribuída, em parte, à organização do processo de trabalho e, também, à estrutura e ao porte das UBS, que contam com reduzido pessoal de apoio direto à gerência do serviço, o que dificulta a operacionalização da educação no trabalho como um instrumento do processo de trabalho gerencial. Esse resultado corrobora com o apresentado anteriormente sobre o local de realização das atividades educativas de trabalhadores, pois ambos demonstram o predomínio da origem e do local externo às UBS. No tocante ao aspecto da atividade educativa de trabalhadores da saúde, observase uma prática que se afasta da concepção de EPS, pois a demanda e o local externos podem não expressar as necessidades do serviço e de seus trabalhadores. Mesmo considerando que as CIES sejam um espaço adequado de pactuação das atividades educativas de trabalhadores para a respectiva região, entende-se que ainda é preciso um tempo para que isso se consolide, visto que pesquisa recente aponta para o fato de que os coordenadores da atenção primária reconhecem o distanciamento entre a realidade e as necessidades do Município no que se refere à capacitação dos trabalhadores da saúde (Viana et al., 2008). É necessário que haja investimento na articulação das instâncias central, regional e local, ao passo que o local e a origem da demanda internos ao serviço tendem a favorecer o planejamento participativo e a possibilidade de maior correspondência com o trabalho cotidiano. Embora, neste estudo, as atividades de longa duração (> 61 horas) apareçam em menor proporção, vale destacar que estudo recente sobre a capacitação de trabalhadores na atenção primária indica que a longa duração das atividades educativas prejudica a adesão dos trabalhadores (Silva, Ogata, Machado, 2007), o que pode estar relacionado à intensa dinâmica do trabalho no setor da saúde, impedindo que muitos trabalhadores participem de atividades educativas de longa duração durante o horário de trabalho (Viana et al., 2008).

Considerações finais O estudo avança no conhecimento da temática EPS com a elaboração de categorias operacionais para cada uma das dimensões que permitem distingui-la da EC, isto é: concepção e pressupostos pedagógicos, público-alvo, estratégias de ensino, local de realização da atividade, origem da demanda e finalidade. Isso permitiu a realização de pesquisa empírica sobre o tema para análise das atividades educativas de trabalhadores na atenção primária à saúde, fundamentada nas diferenças entre EPS e EC. As limitações do estudo referem-se à caracterização do tipo de atividade, em particular sua orientação pela integralidade da saúde, pois apenas a articulação das ações de promoção, prevenção e recuperação puderam ser analisadas, deixando de contemplar a polissemia desta, uma das principais características da atenção primária. Contudo, a caracterização do tipo de atividade permitiu identificar as atividades que foram denominadas ‘emergiram do campo’ e que expressam o sentido da EPS que este estudo tomou como recorte, o processo de trabalho como espaço de aprendizado e ressignificação do próprio trabalho. A presença majoritária de estratégias de ensino participativas também assinala na direção da EPS, que preconiza a reflexão sobre as práticas de saúde em espaços de discussão coletiva. Por outro lado, nos demais aspectos analisados, verifica-se uma prática pautada na concepção de EC, em especial no público-alvo, cuja maioria é composta pelas áreas específicas em detrimento de atividades educativas destinadas às equipes de trabalho e ao conjunto dos trabalhadores do serviço e na predominância da origem externa da demanda e do local externo de realização das atividades educativas. Estas últimas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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expressam, além da presença da EC, as dificuldades de as UBS aproveitarem o trabalho cotidiano como espaço de apreensão e resposta às necessidades de educação dos trabalhadores inseridos nos serviços, necessidades que vão desde a atualização técnico-científica até a reflexão crítica sobre a prática. Isso ressalta a necessidade de as UBS ampliarem as ações educativas de trabalhadores no próprio espaço cotidiano de trabalho. Assim, o estudo evidencia a convivência das concepções de EPS e EC nas ações educativas de trabalhadores de UBS na região estudada. Ambas são importantes para o desenvolvimento dos trabalhadores na atenção primária à saúde, pelo seu caráter complementar: a EPS, caracterizada pela problematização das práticas de saúde, com a participação multiprofissional dos trabalhadores para corresponder às necessidades de saúde da população, pode ser articulada à EC, que preconiza os fundamentos técnico-científicos das áreas profissionais específicas para promover o desenvolvimento das instituições. Entretanto, no tocante ao fortalecimento do SUS e da transformação das práticas de saúde, coloca-se a necessidade de ampliação do debate em torno da EPS como política pública implementada nos níveis local, regional, municipal, estadual e federal. Entende-se que esforços articulados dos diversos níveis da política de EPS, incluindo o nível local das UBS, permitirão avanços na transformação das práticas educativas de trabalhadores, evitando que a EPS se reduza a uma mera mudança de denominação relacionada ao desenvolvimento dos trabalhadores da saúde.

Colaboradores O primeiro autor é responsável pela redação da introdução, metodologia e análise do material empírico da pesquisa. Os demais autores participaram da coleta de dados, da análise e da redação final do manuscrito. Referências ARMITAGE, P.; BERRY, G. Statistical methods in medical research. Oxford: Blackwell, 1994. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Nº 1.996/GM, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da política nacional de educação permanente em saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 ago. 2007. Seção 1. ______. Portaria Nº 399/GM, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 - Consolidação do SUS e aprova as diretrizes operacionais do referido pacto. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 fev. 2006. ______. Política de educação e desenvolvimento para o SUS: caminhos para a educação permanente em saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004a. ______. Portaria Nº 198/GM, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Brasília: Ministério da Saúde, 2004b. CAMPOS, G.W.S. Saúde paidéia. São Paulo: Hucitec, 2002. (Saúde em Debate). CECCIM, R.B. Onde se lê “recursos humanos em saúde”, leia-se “coletivos organizados de produção em saúde. Desafios para a educação. In: PINHEIRO, R.; MATTOS R.A. (Orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: Cepesc, 2005a. p.161-80.

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PEDUZZI, M. et al.

artigos

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PEDUZZI, M. et al. Actividades educativas de trabajadores en la atención primaria: concepciones de educación permanente y de educación continuada en salud presentes en el quehacer cotidiano de Unidades Básicas de Salud en Sao Paulo, Brasil. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.121-34, jul./set. 2009. Investigación con el objeto de analizar la práctica de actividades educativas de trabajadores de salud en Unidad Básica de Salud (UBS) según las concepciones de educación permanente en salud (EPS) y de educación continuada (EC), proceso de trabajo en salud y enfermería, trabajo en equipo e atención integral. Estudio del tipo transversal realizado en diez UBS del municipio de São Paulo, por medio de entrevista dirigida con 110 informantes clave representantes de todas las categorías profesionales y equipos de las UBS, sobre las actividades educativas desarrolladas en 2005. Las informaciones se clasificaron según categorías operacionales para cada variable de estudio con base en el referencial teórico. Los trabajadores relataron 396 actividades educativas que revelan la complementariedad de las concepciones de EPS y EC. De acuerdo con la perspectiva del Sistema Unico de Salud (SUS) y de la transformación de las prácticas de salud se plantea la necesidad de ampliación en el debate en torno de la EPS como política pública.

Palabras clave: Educación permanente en salud. Educación continuada. Trabajo. Recursos humanos en salud. Educación en servicio. Recebido em 13/05/2008. Aprovado em 17/12/2008.

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artigos

Concepções de docentes e discentes acerca de metodologias de ensino-aprendizagem:

análise do caso do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual Vale do Acaraú em Sobral - Ceará Tiago José Silveira Teófilo1 Maria Socorro de Araújo Dias2

TEÓFILO, T.J.S.; DIAS,M.S.E. Teachers’ and students’ notions regarding teaching-learning methodologies: analysis on the case of the nursing course at the State University of Vale do Acaraú, in Sobral, Ceará. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.137-51, jul./set. 2009. This study sought to ascertain the notions of teachers and students of the nursing course of the State University of Vale do Acaraú regarding teachinglearning methodologies. Data collection took place by means of focus groups of students and teachers and participant observation in classrooms, between June and July 2006. The analysis was guided by hermeneutic-dialectic reference points. The discourse revealed that manifestations of power permeated the pedagogical relationship. Analysis on the divergences and convergences between the discourse revealed that the divergences were within the epistemological field while the convergences came from daily practices. It was inferred that there is a need to incorporate active methodologies and a relationship of dialogue that makes it possible to overcome the established power and the dissonance between theory and practice.

Keywords: Higher education. Nursing education. Teaching-learning methodologies.

Este estudo buscou conhecer a concepção de docentes e discentes do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual Vale do Acaraú acerca de metodologias de ensino-aprendizagem. A coleta de dados deu-se por meio de grupos focais com estudantes e professores e observação participante em sala de aula, entre junho e julho de 2006. A análise foi orientada pelo referencial da hermenêutica-dialética. Os discursos revelaram que manifestações de poder permeiam a relação pedagógica. A análise de divergências e convergências entre os discursos revelou que, enquanto as primeiras se inserem no campo epistemológico, as segundas advêm do cotidiano das práticas. Inferiuse a necessidade de incorporação de metodologias ativas e de uma relação dialógica que permita superar o poder estabelecido e a dissonância entre teoria e prática.

Palavras-chave: Ensino superior. Educação em Enfermagem. Metodologias de ensinoaprendizagem.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Residência Multiprofissional em Saúde da Família, Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Sabóia, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Rua Jor Deolino Barreto, 746, Ed. Fco. Xavier, apto. 102. Centro, Sobral, CE, Brasil. 62.010-150. tiagojosest@yahoo. com.br 2 Universidade Estadual Vale do Acaraú.

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Concepções de docentes e discentes...

Introdução A Reforma Sanitária Brasileira representa, desde a década de 1970, um pensamento contrahegemônico que objetiva a transformação/construção do sistema de saúde vigente. Nesse movimento, com a democratização e otimização da Conferência Nacional de Saúde (CNS), em sua oitava edição de 1986, discutiu-se fortemente sobre: a saúde como direito de cidadania, a reforma do Sistema Nacional de Saúde e o seu financiamento. Isto culminou com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituição de 1988, onde se iniciou uma “reformulação institucional e ideológica” da saúde no Brasil. Assim, ao estabelecer a “saúde como direito de todos e dever do Estado”, o princípio central da Reforma Sanitária passa a ser garantido pela Constituição Federal (Andrade, 2002; Brasil, 1988; Conferência Nacional de Saúde, 1986). Nesta Constituição que ainda vigora, tem-se como atribuição do SUS, no artigo 200, a “ordenação e formação de trabalhadores na área da saúde e o incremento em sua área de atuação ao desenvolvimento científico e tecnológico” (Brasil, 1988, p.145). Contudo, somente na Lei Orgânica da Saúde no 8.080, de setembro de 1990, é que se observa legitimamente um projeto para a formação de profissionais de saúde. Por esta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios participarão na formulação e na execução da política de formação e desenvolvimento dos trabalhadores da saúde no Brasil (Brasil, 2004, 1990). Desde então, por intermédio das CNS, a ordenação da formação de trabalhadores para a saúde passou a se desenvolver como dispositivo estratégico para a construção/efetivação do SUS. Desta forma, foram criados: programas de capacitação, escolas de saúde pública, sistemas de acompanhamento institucional de projetos de mudança curricular, redes de integração ensino-serviçosociedade, polos de educação permanente em saúde, entre outras ações (Brasil, 2004). Nesse contexto, ao discorrer sobre a construção histórica do ensino em saúde, limitamos nossa busca à formação de enfermeiros, que, no Brasil, tem seu início de forma sistematizada, apenas na década de 1920. Até essa data, o ensino básico de enfermagem ainda não tinha caráter de formação superior. Existem registros de atividades de ensino de enfermagem no país apenas no final do século XIX. Contudo, até o início do século XX, essa formação era mormente baseada na necessidade de se constituírem corpos de profissionais de saúde para a guerra, para melhoraria do atendimento hospitalar, e na demanda social de erradicação de doenças da Era Campanhista, a qual buscava garantir o saneamento nos portos. Portanto, o ensino formal de enfermagem é introduzido no Brasil com forte valorização do ensino prático atrelado aos hospitais e de caráter coadjuvante da prática médica (Bonetti, 2004; Kruse, 2002; Germano, 1985). De acordo com Bonetti (2004), esse sistema hospitalocêntrico de ensino permaneceu hegemônico até meados de 1980, quando ocorreu uma grande mobilização da categoria para construção de um currículo mínimo, que não limitasse o ensino de enfermagem apenas à prática do hospital. Porém, apenas em 1994/5, quando o Ministério da Educação e Cultura propôs os Parâmetros Curriculares Nacionais, este currículo entrou em vigor. O novo currículo, todavia, ainda apresentava muita fragilidade, mantendo o ensino centrado no modelo médico-assistencialista de desarticulação entre conteúdos e disciplinas, de práticas pedagógicas tradicionais de reprodução do conhecimento e de dicotomia entre teoria e prática (Brasil, 1995). Logo, em 2001, por meio da instituição da Política de Sustentabilidade pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) e pelo Ministério da Saúde, articulou-se um movimento nacional de formulação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos, faculdades e escolas de enfermagem. Essa articulação baseou-se numa multiplicidade de propostas construídas ao longo dos últimos anos, assim como nas propostas de outras áreas (Brasil, 2001). A formulação das DCN para o Ensino Superior em enfermagem fundamentou-se nas concepções de que tipo de profissional de enfermagem era desejado pela sociedade, pois, tinha-se, até então, a detecção de enfermeiros com perfil inadequado. Isso se deveu, sobretudo, às influências do forte investimento na incorporação de tecnologia e na centralidade do hospital para o desenvolvimento das práticas de saúde e, consequentemente, do ensino das profissões de saúde. Com as mudanças 138

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TEÓFILO, T.J.S.; DIAS,M.S.E.

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dos perfis epidemiológicos e a ampliação dos serviços de atenção básica no SUS, avigorava-se a necessidade de um novo perfil profissional, para além da atenção hospitalar e do uso de equipamentos técnicos (Henriques, Rodrigues, 2003). Com base nestas diretrizes, os cursos de enfermagem deveriam reformular suas concepções político-pedagógicas em busca de novas construções coerentes com os perfis socioeconômicos e epidemiológicos. Contudo, poucos processos reais de reformulações dos projetos político-pedagógicos, para a formação desse profissional desejado, foram observados no Brasil. Neste processo de qualificar a formação do enfermeiro, acredita-se que deve-se tomar em consideração que se trata da educação de adultos e que, portanto, pressupõe a utilização de metodologias ativas de ensino-aprendizagem. Tais procedimentos propõem concretamente desafios a serem superados pelos estudantes e docentes, que lhes possibilitem ocupar o lugar de sujeitos na construção dos conhecimentos, participando da análise do próprio processo assistencial em que estão inseridos e que coloquem o professor como orientador e facilitador desse processo (Brasil, 2004; Rede Unida, 2000). O processo pedagógico dá-se intimamente entre relações interpessoais e intersubjetivas (as dos estudantes e as dos professores) no processo de educação de adultos. Para entendermos as simetrias e assimetrias destas relações, dialogamos com o conceito de poder de Michel Foucault (2005). Para o autor, o poder não é algo que se possa possuir. Portanto, não existe em nenhuma sociedade divisão entre os que têm e os que não têm poder. “O que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente porque ele não pesa só como uma força que diz não, mas ele permeia, produz coisas, induz ao pensar, forma saber [...]” (Foucault, 2005, p.12). Pode-se dizer que poder se exerce ou se pratica e o que há são relações e práticas de poder. Essas práticas circundam o processo de interação entre docentes e discentes, ocorrendo interferência de poder nas relações entre estes, acusando que, na cotidianidade das relações sociais, ocorre corporificação do poder pelas atitudes e, também, por meio dos discursos (Medeiros, 2001). Corroborando com este ideário, Paulo Freire, em sua extensa obra sobre a Educação (Pedagogia do Oprimido, 1970; Pedagogia da Esperança, 1992; Pedagogia do Diálogo e Conflito, 1995; Pedagogia da Autonomia, 1996), nos direciona para um processo embasado pelo princípio da imunização do bancarismo e da autonomia do ser do educando. Sobre o ensino bancário, Freire (1998, p.25) nos adverte: “quanto mais se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve o que venho chamando de ‘curiosidade epistemológica’, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto [...]”. Dessa forma, esta curiosidade nos leva à recusa do ensino “bancário”, definido pelo autor como uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens expectadores e não criadores do mundo. Concebe a sua consciência como algo especializado e não aos homens como corpos conscientes. A consciência como se fosse alguma seção ‘dentro’ dos homens, mecanicisticamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a irá ‘enchendo’ de realidade. (Freire, 1994, p.36)

Em relação à autonomia do ser do educando, os pressupostos freireanos revelam que o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético [...] o professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia [...] transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. (Freire, 1998, p.59-60)

Dessa forma, os papéis compartilhados entre educandos e educadores conduzem a uma relação dialogicamente verdadeira, quando os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença. No processo de ensinar e aprender em saúde, o contexto da supervalorização da técnica tem ocasionado uma aprendizagem superficial, pois muitas vezes esta é posta como um fim em si mesmo. Sendo assim, acredita-se que a memorização de dados embasados na prática da técnica não garante a formulação do pensamento em sua totalidade. Para que ocorra uma aprendizagem significativa é COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Concepções de docentes e discentes...

necessário criar-se um “processo de interação”, um “ambiente pedagógico” e um “jogo pedagógico” onde se consiga ensinar e aprender por meio da formação de sujeitos (Medeiros, 2001). Percebe-se, então, que, para a formação de enfermeiros ocorrer em consonância com as DCN, é necessário que haja uma mudança no modelo pedagógico utilizado nas escolas de enfermagem. Destacamos, ainda, dois conceitos estudados por diversos autores como objetivos fundamentais na aprendizagem de um curso de graduação: aprender a aprender, que envolve o desenvolvimento de habilidades de busca, seleção e avaliação crítica de dados e informações disponibilizadas em livros, periódicos, bases de dados locais e remotas, além da utilização de fontes pessoais de informação, incluindo, com particular destaque, a informação advinda da própria experiência; e aprender fazendo, que pressupõe a inversão da sequência clássica teoria/prática na produção do conhecimento, e assume que ela ocorre de forma dinâmica por meio da ação-reflexão-ação (Rede Unida, 2000). Para enriquecer ainda mais a análise proposta neste estudo, buscou-se, na literatura e na pedagogia universitária de forma geral, a compreensão da docência como atividade dialógica. Trabalhando com o processo de ensino universitário, Anastasiou (2003) cria o termo ensinagem para indicar uma prática social complexa efetivada entre os sujeitos, professor e estudante, que engloba tanto a ação de ensinar quanto a de aprender, em processo contratual, de parceria deliberada e consciente para o enfrentamento na construção do conhecimento escolar, resultante de ações efetivadas na / e fora da sala de aula. A autora complementa que uma ação de ensino da qual resulta a aprendizagem do estudante deve superar o simples dizer do conteúdo por parte do professor, pois é sabido que, na aula tradicional, que se encerra numa simples exposição de tópicos, somente há garantia da citada exposição, e nada se pode afirmar acerca da apreensão do conteúdo pelo aluno. Nessa superação da exposição tradicional, como única forma de explicitar os conteúdos, é que se inserem as estratégias de ensinagem. O Curso de Enfermagem da Universidade Estadual Vale do Acaraú, lócus de atuação dos autores deste estudo, não se desvia deste percurso traçado pelas escolas de enfermagem no Brasil. Ao se perceberem fragilidades nos processos de mudança político-pedagógica no referido curso, buscou-se, com este estudo, analisar as concepções e práticas dos estudantes e professores no que concerne às metodologias de ensino-aprendizagem. Como objetivo, teve-se o desafio de contribuir com o processo de mudança na orientação políticopedagógica deste curso, a partir do entendimento de que, ao mesmo tempo em que se conhecem as concepções, logra-se refletir, de forma direta e/ou indireta, com os participantes desse estudo, sobre a socialização-construção de idéias inovadoras e transformadoras.

Metodologia Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, estratégico, do tipo estudo de caso. É fundamentado por princípios da pesquisa por triangulação de métodos, tendo, como cenário, o Curso de Enfermagem da Universidade Estadual Vale do Acaraú em Sobral - CE. A definição do objeto, bem como do lócus desta investigação, baseou-se nas experiências dos autores, quer como professor quer como estudante deste Curso. Na verdade, ao experimentar-se o processo de ensino-aprendizagem ocorrido no mesmo, inquietou-se com a diversidade de pensamentos e atitudes a respeito do modelo pedagógico utilizado, sendo, portanto, necessário compreender quais as reais concepções de docentes e discentes a respeito das metodologias utilizadas. Para compreensão de tais concepções, utilizou-se a técnica de grupo focal, também denominada de entrevista grupal. Minayo (1999) refere-se a esta como um excelente método de cunho qualitativo. Para a autora, com o grupo podemos conseguir opiniões relevantes e os valores dos entrevistados. Diferindo, por isso, da observação participante, que focaliza mais o comportamento e as relações. Portanto, acreditou-se que estas duas técnicas se complementavam e, pensando assim, é que se integraram as duas na abordagem do objeto em pauta. No processo de seleção ou identificação dos sujeitos do grupo focal, buscou-se garantir o que 140

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artigos

nos orienta Minayo (1999, p.146): “valorizar aqueles que podem dispor de informações ímpares, cujo potencial explicativo tem que ser levado em conta”. Dessa forma, foram adotados os seguintes critérios de inclusão para os sujeitos do grupo focal: aleatoriamente foram convidados dois grupos de sujeitos: professores e estudantes que integram o curso em questão, sendo, (a) para os discentes – um representante para cada semestre letivo, dos quais se podem encontrar discursos a respeito de todo o processo pedagógico ocorrido nos nove semestres do curso, totalizando nove estudantes; e (b) oito professores, sendo quatro do ciclo básico e quatro do ciclo profissionalizante. Para a escolha dos professores, considerou-se a quantidade de participantes prevista para o grupo focal de, no mínimo, oito e, no máximo, dez participantes. Portanto, acreditou-se que o número oito fosse ideal para este grupo de implicados, de forma que fosse garantida a qualidade da coleta. Em relação às disciplinas ministradas pelos professores convidados, entendeu-se que era necessário conhecer tanto as concepções daqueles que lecionam as disciplinas práticas como as teóricas, pois, buscou-se desvelar singularidades e peculiaridades das abordagens do processo de ensinoaprendizagem nas aulas teóricas e práticas. Estes requisitos subsidiaram a formação dos grupos focais. Ressaltamos que reconhecemos como sujeitos desta investigação todos os docentes e discentes do Curso de Enfermagem, uma vez que durante a fase de observação participante in loco – espaço da sala de aula –, o quantitativo destes segmentos observados foi próximo da totalidade. Ressalvamos, porém, que depois de definidos os critérios e convidados os participantes (foram convidados 1/3 a mais do número previsto), e estes expressarem o livre consentimento de participação, deparamo-nos com número inferior ao previsto. Portanto, na vivência do grupo focal com os discentes, se fizeram presentes sete estudantes, e, no grupo focal com os professores, tivemos a participação de seis. Porém, apesar destas ausências, consideramos relevantes e representativos os discursos dos participantes. Foram realizados, ao todo, dois grupos focais, sendo um para cada categoria de sujeitos. Com vistas a ampliar as possibilidades de se apreenderem as concepções dos docentes e discentes, a observação participante foi outra técnica de coleta de dados eleita durante todo o processo investigativo. Para Minayo (1999), durante a observação participante é preciso: Observar o aspecto legal e o aspecto íntimo das relações sociais; ao lado das tradições e costumes, o tom e a importância que lhe são atribuídos; as idéias, os motivos e os sentimentos do grupo na compreensão da totalidade de sua vida, verbalizados por eles próprios, através de suas categorias de pensamento. (Minayo, 1999, p.137-8)

Para realização da observação, não se pretendeu construir um roteiro fechado com questões a serem apreendidas, pois, para a compreensão dos sentimentos, das idéias e dos motivos dos implicados é necessário manter-se aberto a novas nuances que surgem no andar da vida dos mesmos. É com este intuito que se buscou desenvolver apenas uma rotina de trabalho durante a observação participante, mediante notas e manutenção do diário de campo em vista de autodisciplina. Esta técnica permitiu realizar inferências sobre atitudes dos professores e estudantes durante o processo de ensino-aprendizagem no espaço da sala de aula. A observação não foi orientada por um roteiro sistematizado, esta destinava-se, basicamente: à descrição do processo pedagógico por meio do registro das reações dos estudantes em relação ao método utilizado pelos docentes; ao posicionamento do professor sobre a sua metodologia de ensino e das evidências e limitações de integração/interação docente-discente. Vale destacar que esses pressupostos foram considerados na pesquisa de campo, embora a presente pesquisa não se configure como etnográfica. Para a concretude desta técnica, elegeram-se seis disciplinas, escolhidas aleatoriamente, sendo três do ciclo básico e três do profissionalizante, pelos mesmos critérios de escolha das disciplinas ministradas pelos docentes do grupo focal. Dessa forma, buscou-se investigar os processos pedagógicos ocorridos tanto nas aulas teóricas como nas práticas. A observação foi realizada nos meses de junho e julho de 2006 nos turnos da manhã, tarde e noite, somando 12 horas por disciplina. Contudo, esta só ocorreu após o consentimento livre do professor e dos estudantes. Vale lembrar que, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Concepções de docentes e discentes...

como os autores são membros deste Curso, ao longo do texto, considerar-se-ão as percepções da sua condição na realização da análise. Para a análise dos resultados, buscou-se aproximação com o referencial da hermenêutica-dialética. Esse método proposto por Minayo (1999, p.245) busca um “caminho do pensamento” com uma via de encontro entre as ciências sociais e a filosofia. Nesse sentido, os passos percorridos após ordenação dos dados empíricos foram: análise linguística dos textos dos autores, identificação dos núcleos de sentidos, interpretação verbal e intelectual dos autores às explicações, além da análise crítica das explicações e interpretações no contexto macroestrutural, no sentido de avançar para um processo de transformação. Deste modo, com base nos dados empíricos, abstraíram-se dos discursos expressões consideradas como núcleos de sentido, para então se processar a análise. Neste exercício, compreendendo que o texto é mais que um conjunto de partes, buscou-se a explicação e a interpretação da comunicação expressa pelos atores sociais por meio desses núcleos, para, em seguida, se analisarem os espaços extradiscursivos, socioeconômicos e culturais, nos quais estão inseridos os discursos dos diferentes atores sociais (Dias, 2006). O material obtido pela observação participante foi analisado separadamente, buscando-se descrever situações vivenciadas pelos atores e explicitar determinantes dos comportamentos. Para tanto, discutiram-se os conceitos de alguns dos autores (Foucault, 2005; Medeiros, 2001; Freire, 1994 etc.) escolhidos para diálogo neste estudo. Declaramos que esta pesquisa atendeu aos procedimentos previstos na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovada previamente pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Vale do Acaraú.

Compreendendo os sentidos dos discursos dos docentes Entendendo que nosso objeto de estudo possui consciência histórica, acreditamos que o grupo social que o constitui - professores e estudantes - é mutável, ou seja, eles estão em constante dinamismo e potencialmente tudo está para ser transformado. Contudo, o pensamento e a consciência são frutos da necessidade, eles não são um ato ou entidade, integram um processo que tem como base a própria construção histórica. Apresentam-se, no quadro a seguir, os textos dos professores e, em seguida, segue a análise (Minayo, 1999).

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TEÓFILO, T.J.S.; DIAS,M.S.E.

Núcleo de Sentido

Textos

Síntese

• É aquela focada no aluno (...) mas só existe preocupação do professor, pois não existe entendimento por parte dos alunos que ainda estão naquela metodologia reprodutivista, (...) os alunos apenas pegam os textos com preocupação em notas e não no processo de aprendizagem. (...) o professor é um orientador, (...) ficamos muito angustiadas porque não percebemos o aluno crítico que lê o texto e se pergunta “o que é isso?” (...) Talvez eu não consiga ser esse professor focado no aluno com essas novas metodologias, mas eu tento – professor do ciclo profissionalizante –; • A metodologia deve ser pautada na ética, na pesquisa e na educação, integrar o aluno desde o inicio junto à comunidade, jogando ele na pesquisa, também na comunidade e as outras profissões. (...) o ensino deve ser voltado para esse tema – professor do ciclo básico –;

As metodologias ativas de ensino-aprendizagem

artigos

Quadro1. Textos dos professores sobre o significado de metodologias de ensino-aprendizagem.

• Eu acho que essa é a grande chave para a mudança que deve ocorrer, no dia que o aluno entender que o responsável pelo seu aprendizado é ele mesmo (...) o que nós observamos e eu até entendo que somos filhos de uma tradição reprodutiva. Mudar isso (...) é uma tarefa difícil. O que eu não entendo é essa grande crítica que muitos alunos fazem a alguns professores (...) não há colaboração deles para a utilização de novas ideologias. Eu já tentei por demais utilizar a metodologia facilitadora. Eu tive 10% de êxito. Então, você colocar um grupo de 10 alunos para refletir sobre um determinado texto é extremamente difícil., (...) temos que colocar o aluno na situação de pensar e de ver a necessidade do conhecimento – professor do ciclo profissionalizante –; • Não uso apenas uma metodologia, não temos como fazer isso, então devemos usar a transdisciplinaridade. O aluno é que deve mudar sua posição em sala de aula. Porque não adianta trazermos uma aula focada no aluno quando os alunos ficam parecidos com múmias, ou seja, demonstram pouca expressão, participação – professor do ciclo profissionalizante –; • (...) eu uso algumas metodologias diferenciadas nas minhas aulas (...) Porque ao assistir a aula expositiva o aluno não consegue visualizar aquilo na prática. (...) não é só usar todos os recursos tecnológicos sem se preocupar se aluno aprendeu ou não. Precisamos de uma reciclagem (...). Porém, o que atrapalha é que quando o aluno passa para outro semestre alguns professores não utilizam esse tipo de metodologia. Precisa-se de uma filosofia de ensino metodológica, onde todos os professores sejam preparados para trabalhar com o mesmo tipo de metodologia. (...) Se essa mudança ocorrer, o aluno já vai saber que ele deve cumprir aquilo, que ele vai passar para um próximo semestre e é tudo igual – professor do ciclo profissionalizante –.

• A metodologia ativa é aquela focada no aluno, há entendimento da necessidade de se ter um aluno crítico. • O aluno ainda está adequado à metodologia da reprodução. • O professor é um orientador, facilitador, monitor do processo de ensino-aprendizagem; • Associam as metodologias ativas com outros aspectos da formação como a integração ensino-serviçocomunidade, interdisciplinaridade e pesquisa. • Compreendem que se o aluno entender que ele é responsável pela sua formação encontrar-se-á a chave para a mudança; • Referem que os alunos não colaboram com o professor quando este busca utilizar novas metodologias; • Compreendem que o professor deve buscar colocar o aluno na situação de ver a necessidade do conhecimento; • Compreendem que é necessário haver um redimensionamento na filosofia de ensino institucionalmente; • Compreendem que o aluno deve se acostumar a cumprir determinada regra quando esta for implementada pela instituição, por todos os docentes.

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Os discursos docentes, de modo geral, pautam-se, sobretudo, em questões singulares vivenciadas em sua prática individual, porém, identificamos também textos referentes às necessidades institucionais. Compreende-se, dessa forma, que os discursos são ricos de significados, nos quais se puderam encontrar tanto situações particulares dos professores como da instituição da qual fazem parte, ou seja, o Curso de Enfermagem. Em relação às metodologias de ensino-aprendizagem, observou-se que as concepções docentes se encaminham para a crítica, ou seja, buscam incorporar algumas tendências que impulsionam a transformação. As expressões: focada no aluno; aluno crítico; visão construtivista, e posição de pensar e de ver a necessidade do conhecimento denotam a busca docente pela “imunização do bancarismo”, na qual o educador busca construir uma verdadeira aprendizagem significativa (Freire, 1998, p.19). Isso pode ser observado também nos discursos a respeito da responsabilidade do professor no processo de ensinar e de aprender, como vemos nos seguintes enunciados: o professor é um orientador; o professor é um monitor [...] um instrutor. Estes revelam que os docentes sinalizam referenciais norteadores de práticas inovadoras, mas reconhecem o seu papel de orientador de um processo e não expressam considerar determinados sistemas de correlações de forças. Para Medeiros (2001), aprender a ser crítico, independente e autônomo, equivale a dizer tornar-se capaz de realizar aprendizagens significativas situadas em uma ampla gama de situações e circunstâncias. Para a autora, o compromisso das instituições universitárias no processo de emancipação de sujeitos é o de outorgar a aprendizagem da aquisição de estratégias cognitivas, que, por sua vez, são formadas por esquemas de aprender a aprender em suas diferenças. Mesmo reconhecendo ser a proposta de construção de sujeitos a ideal para a formação de enfermeiros, os professores relatam se deparar com muitas dificuldades no processo de incorporação desses pressupostos. Para os docentes, essas dificuldades se devem, sobretudo, à resistência discente ou, mesmo, ao ideal “reprodutivista” destes, como se observa nas falas: não entendo [...] essa grande crítica que muitos alunos fazem a alguns professores [...] não há colaboração deles para a utilização de novas ideologias; não adianta trazermos uma aula focada no aluno quando alguns alunos ficam parecidos com múmias, ou seja, demonstram pouca expressão e participação.

Tentando compreender o “contexto” existente no “texto” dos docentes, entende-se como desafiador o processo vivenciado por um estudante, que teve sua formação escolar baseada, sobretudo, no ensino bancário, em um sujeito participante do seu próprio processo de aprendizagem. Infere-se ainda que, de certa forma, é atribuída, ao estudante, a “culpa” pelo fracasso nas interações pedagógicas que se destinam à construção de sujeitos por meio de metodologias ativas. Nesse sentido, acredita-se que os docentes se contradizem em seus discursos, pois, como poderão facilitar a aprendizagem de sujeitos que consideram rígidos para a mudança, se os sujeitos não se corresponsabilizarem pelo processo de ensino-aprendizagem? Acredita-se que existam limitações nas proposições progressistas de ensinar e de aprender adotadas pelos docentes, por não tentarem visualizar, também, a aprendizagem das emoções, dos limites e, certamente, das potencialidades. Tornar o estudante capaz de aprender a aprender é tarefa árdua, porém, Freire (1998, p.29) mostra que isso só é possível na “presença de educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes”. O autor enriquece essa discussão mostrando que o ensinar exige convicção de que a mudança é possível, pois o mundo não é o mundo, está sendo, e não somos somente objetos da história, mas seu sujeito igualmente. A compreensão dos pressupostos referentes às críticas à formação dos profissionais de saúde é essencial para se almejar a utilização de metodologias ativas de ensino-aprendizagem. São primordiais: o entendimento da necessidade de se ampliarem os espaços de ensino-aprendizagem (integração ensino-serviço); a participação da comunidade no processo de formação; as abordagens integradoras com outras áreas do conhecimento, e a indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Este entendimento é explicitado, ainda que superficialmente, no seguinte discurso: a metodologia deve ser 144

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pautada na ética, na pesquisa e na educação, integrar o aluno desde o início junto à comunidade, [...] e às outras profissões. Outro fator importante nos discursos docentes se refere às necessidades institucionais de organização que se destinam à efetivação de ideais metodológicos em busca da crítica. Os textos seguintes sinalizam nesta direção de construção de sujeitos: [...] não é só usar todos os recursos tecnológicos sem se preocupar se aluno aprendeu ou não, precisa-se de uma filosofia de ensino [...] onde todos os professores sejam preparados para trabalhar com o mesmo tipo de metodologia. Observa-se também que, neste mesmo discurso, existe fragilidade na proposta, pois o modo “impositivo” com que o professor se expressa, ou seja, à medida que percebe a necessidade de mudança, ao acreditar que “todos” devem se adequar rigidamente a determinados pressupostos metodológicos, exclui a importância do individual, ou limita os espaços de construção crítica e reflexiva no coletivo. O recorte discursivo, a seguir, reforça a idéia de submissão dos estudantes ao método, na concepção docente: [...] o aluno já vai saber que ele deve cumprir aquilo, que ele vai passar para um próximo semestre, e é tudo igual. Assim, a solução encontrada para o problema da não adesão dos estudantes seria impor-lhes uma maneira de ser, e não construir com estes o caminho. A complexidade de um processo de mudança de concepções é imensa e exige, dos sujeitos interessados, paciência e perseverança, pois são as pessoas que devem ter suas práticas ressignificadas. Sendo assim, essa nova forma de pensar o conhecimento, por meio do modelo de ensino pressupõe uma nova “cultura” pedagógica a ser incorporada pelas pessoas que constituem a instituição. Os estudantes são membros da instituição de ensino e devem fazer parte desse processo ativamente. Neste sentido, concordamos com Medeiros (2001), quando refere que o compromisso de exercer o ensinar e o aprender pode permanecer nas relações distantes e rígidas onde, neste caso, a reprodução social está garantida. Porém, se esse compromisso eclodir em formas criativas, os caminhos não condenarão as possibilidades do desenvolvimento das capacidades humanas.

As concepções discentes: adentrando nos discursos de quem é formado, se forma e forma Ingressando no mundo dos estudantes, percebemos nos contextos dos discursos, revelações enriquecedoras para a compreensão das concepções do “novo” no processo de ensinar e aprender a partir de suas visões de mundo. O quadro a seguir traz recortes dos discursos discentes.

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Quadro 2. Textos dos estudantes sobre o significado de metodologias de ensino-aprendizagem. Núcleo de Sentido

Textos

Síntese

• A metodologia é a forma como você chega a uma determinada coisa, ou seja, quais os procedimentos necessários para você atingir seu objetivo; • Na metodologia tradicional, o professor fala e o estudante só escuta, não há um debate do tema (...) a metodologia ativa é muito importante porque além de ser mais fácil para o aprendizado (...) pois não é aquela que você só escuta e se cansa, não aprende, não discute, não expõe suas idéias, porque todo mundo tem um consentimento prévio sobre qualquer assunto (...) o professor como orientador deve conduzir o estudante nesse caminho (...). • O contato professor-aluno é muito importante (...) o professor também deve aprender com o aluno, assim, essas metodologias de discussão, de debate, são muito interessantes, pois agente tem liberdade para perguntar o que quiser. O significado de metodologias de ensino-aprendizagem

• Alguns professores tentam utilizar essas metodologias, mas ainda usam de uma forma, não errada, mas de uma forma acomodada, (...) não existe aquela troca (...) às vezes parece que o professor está enchendo lingüiça (...). • existem professores que sabem muito, mas não sabem repassar por que não tem uma boa didática (...) a metodologia ativa combina mais com as disciplinas práticas (...). • existe um professor que tem uma forma tradicional de ensinar, usando aulas expositivas, algumas pessoas até reclamam porque não se consegue fazer perguntas, pois o professor é desagradável, mas eu considero esse professor o melhor da faculdade, embora sua metodologia seja tradicional, ele usa uma didática excelente (...) ele passa os assuntos importantes (...) eu não mudaria em nada sua forma de dar aula (...).

•Compreendem que a metodologia tradicional se baseia em aulas expositivas e ausência de participação dos estudantes; • Compreendem as metodologias ativas de ensino-aprendizagem como aquelas que são dinâmicas, dão espaço ao estudante, buscam o diálogo e destinam-se à troca. • Compreendem a importância das relações / interações professor-estudante no processo de ensino-aprendizagem; • Compreendem que existem professores que tentam incorporar as metodologias ativas, mas se acomodam no processo e não permitem que o estudante se expresse significativamente. • Compreensão de que a didática do professor é importante para o processo de ensinar e aprender. • Valorizam aspectos das metodologias tradicionais, como a maneira de dar aulas expositivas e didática particular de determinados professores.

• Alguns professores são ruins, talvez porque não se qualifiquem (...) eles têm suas aulas prontas para todos os semestres e não tentam inovar, buscar atualidades (...) a metodologia tradicional não está totalmente errada, temos que ver os acertos e modificar apenas os erros (...).

Nos discursos dos estudantes, as concepções de metodologias de ensino-aprendizagem se baseiam na diferenciação entre as tradicionais e as ativas. Para as metodologias ativas, os protocolos de discurso trazem novas perspectivas para a aprendizagem significativa. Ocorre que, para os estudantes, estas metodologias utilizam meios democráticos de interação pedagógica, como podemos perceber nos textos: as metodologias de discussão, de debate, são muito interessantes, pois a gente tem liberdade para perguntar o que quiser; o contato professor-aluno é muito importante; a metodologia ativa [...], o professor como orientador deve conduzir o estudante nesse caminho. 146

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Pode-se visualizar que os estudantes acreditam que as metodologias ativas geram espaços democráticos. Nestes, os mesmos são considerados sujeitos que compartilham informações e buscam a aprendizagem significativa por meio da discussão e da troca de saberes. Identificou-se, nos argumentos discentes, uma consciência da necessidade de estratégias que se destinem à interação entre professor-estudante e o objeto do conhecimento em sua razão de ser, seu significado. Os estudantes expressam que as metodologias tradicionais têm cumprido o papel da transmissão de conteúdos por intermédio de aulas expositivas, pois estes não têm espaço para construir seu próprio conhecimento. Todavia, nos argumentos dos estudantes investigados, fica clara certa valorização dada a alguns aspectos das metodologias tradicionais, como a maneira de dar aulas expositivas e a didática particular de alguns professores, a qual eles mesmos reconhecem: existe um professor que tem uma forma tradicional de ensinar [...] mas eu considero esse professor o melhor da faculdade [...] ele usa uma didática excelente. Compreende-se, por meio destes discursos, que os estudantes avaliam, como importantes, os espaços de transmissão de conteúdos, pois mesmo criticando-os e reconhecendo outras maneiras de conduzir o processo de ensino-aprendizagem, relatam ser esse um momento onde os docentes, com suas didáticas “mágicas”, conseguem expor os conteúdos de forma que o estudante, calado, interiorize as informações. Para explicar tal fenômeno, Anastasiou (2003) mostra que, mesmo numa situação que tradicionalmente seja considerada “uma boa aula”, em geral, explicita-se o conteúdo da disciplina com suas definições ou sínteses, desconsiderando-se os elementos históricos e contextuais, muitas vezes tomando suas sínteses temporárias como definitivas, desconectando-as de afirmações técnicas das pesquisas científicas que as originaram. Além disso, toma-se, assim, a simples transmissão da informação como ensino, e o professor fica como fonte de saber, tornando-se o portador e a garantia da verdade. Parafraseando Reboul (1982, p.27), a autora supracitada acredita que o estudante habitua-se a crer que existe uma ‘língua do professor’, a qual tem de ser aceita, mesmo sem ser compreendida, e a contentar-se, dessa forma, com as fórmulas mágicas ditadas pelo professor. Nesse processo, ficam excluídas as historicidades, os determinantes, os nexos internos, a rede teórica, enfim, os elementos que possibilitaram aquela síntese obtida; a ausência desses aspectos científicos, sociais e históricos deixa os conteúdos “soltos”, fragmentados, com fim em si mesmo. Para Bordenave (1984 apud Sena-Chompré, Egry, 1998), a concepção pedagógica de transmissão tem como elementos principais, no processo educativo, a experiência fundamental que o estudante deve viver para alcançar seus objetivos: o recebimento do que o professor e os livros lhe oferecem, o que esvaece o verdadeiro papel do docente e do discente e dificulta a atitude de mudança de comportamento para as concepções problematizadoras (ativas), onde a pessoa é considerada em sua totalidade como um agente de transformação. Ao se vislumbrar, porém, a totalidade dos discursos discentes, compreende-se que a idéia central trazida pelos estudantes, sobre a construção do saber por meio de metodologias ativas, deposita-se na compreensão da importância dos processos de discussão, advindos das intervenções e interações pedagógicas e na efetivação de um processo de ensinagem. Essa postura tranquilizadora, de certa forma prevalente, remete ao fato de haver entre os estudantes espaço para a crítica e, ao mesmo tempo, denuncia a valorização da técnica que ainda transita livremente no cotidiano do ensinar e aprender (Anastasiou, 2003; Medeiros, 2001). Em síntese, a compreensão de metodologias de ensino-aprendizagem pelos discentes perpassa por questões clássicas, como a necessidade: de incorporação de novos conhecimentos pedagógicos por parte dos docentes, da redefinição dos papéis dos estudantes e docentes, da valorização da transmissão de conteúdos prontos, e da limitação da aprendizagem por meio de estruturas rígidas nas relações interpessoais.

O processo pedagógico vivenciado: a práxis no espaço da sala de aula O desafio de encontrar, nas arestas da complexidade da vida humana, as atitudes que denotam a determinação social dos fatos é uma tarefa difícil. Ao se realizar observação participante nas salas de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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aula, nas quais os autores deste estudo também são atores, buscou-se, por meio da visualização das relações interpessoais, vincular os fatos às suas representações e contradições. Por intermédio do espaço da sala de aula, visualizaram-se diversas situações que ajudam a compreender a ideologia que fundamenta a prática pedagógica usada para a formação de profissionais de enfermagem. Mesmo concordando com a necessidade de se ampliarem os espaços de ensinoaprendizagem, acredita-se, porém, que a sala de aula representa um lugar que possibilita uma relação pedagógica capaz de gerar momentos de aprendizagem significativa. Para Medeiros (2001), as práticas exercidas nas salas de aula estão solidificadas em relações cristalizadas, muito especialmente pela saliência histórica do imperar da técnica em detrimento da crítica. No âmbito da sala de aula, o desenvolvimento de processos interativos/interpessoais constitui, por meio da linguagem, o fato pedagógico. Sendo assim, o espaço da sala de aula é um meio social que define e (re) define profundamente a efetivação das idéias comunicadas. Nos espaços da sala de aula, encontramos diferentes momentos de interação social docentediscente que sinalizam mais para o fortalecimento de estruturas rígidas - onde o docente determina sozinho como se dará o processo e qual o papel de cada um - do que espaços de interação democrática efetiva. Em poucos momentos evidenciamos interação eficaz, ou seja, a interação foi percebida apenas no aspecto pedagógico. Os fenômenos observados, que geram essa inferência, estão baseados, por exemplo: no desconhecimento dos nomes individuais dos estudantes, nas atitudes autoritárias por parte dos docentes diante dos conflitos, na definição das atividades e na forma como os conteúdos deveriam ser estudados e compreendidos. Medeiros (2001) nos esclarece que é, dessa forma, que o professor tradicional se isenta de riscos, porque o estudante não expõe suas idéias e fragilidades em função da inocuidade da relação pedagógica que desencoraja a crítica, o crescimento e o desenvolvimento intelectuais. Nessa relação, o estudante deve respeito ao professor, se quiser gozar de uma falsa liberdade. Diante disso, as aulas expositivas, os métodos pedagógicos de transmissão - com as transparências, os slides e o volume excessivo de conteúdos - prevalecem definindo a prática pedagógica tradicional, positivista. Acredita-se que este modelo, porém, em sua essência, é incapaz de construir competências efetivas de modo a garantir o entendimento do ser humano em sua integralidade, para a intervenção no processo saúde-doença. Compreende-se que o cuidado oportuno deve ser livre de risco, integral e contínuo, a todas as pessoas, independente de sua classe social, raça ou etnia, dando-lhes direito à felicidade. Portanto, diante do imenso desafio do ensinar a cuidar, faz-se necessário ampliarem-se os horizontes pedagógicos incorporados na prática dos docentes e profissionais de enfermagem, balizando uma visão ampla na compreensão dos determinantes sociais do processo saúde-doença (Sena-Shompre, Egry, 1998). Poucas vezes os docentes, por meio do diálogo aberto, tentam trazer problemas que são essenciais para a construção de um conhecimento com totalidade. Nestas poucas tentativas, a divisão da turma em pequenos grupos, para discussão em torno de problemas comuns, mostra uma libertação do mero preparo de conteúdos para exposição. A busca pela funcionalidade do que é aprendido, dessa forma, torna-se mais palpável. Porém, uma das explicações para a fragilidade observada nesta iniciativa está na inexistência de discussões acerca da abordagem pedagógica com os estudantes. Por sua vez, os estudantes tornam-se alheios aos pressupostos epistemológicos construtivistas de ensino-aprendizagem. Acredita-se que, por isso, ainda haja resistência, por parte de alguns estudantes, na aceitação das metodologias ativas, já que as verdadeiras mudanças não se efetivam sem resistências, dúvidas, medos e conflitos. No espaço da sala de aula, ocorre o que Medeiros (2001) considera de “jogo pedagógico”. Na vivência deste jogo no curso de graduação em questão, as movimentações cotidianas dos sujeitos são concretamente infindáveis e cheias de significado. São geradoras de simetrias e assimetrias, mas as singularidades e peculiaridades de cada indivíduo vão definindo o controle de divergências pelo / e no coletivo, embora alguns ainda exerçam controle e submissão sobre os outros, interferindo e rebuscando os atos de aprendizagem.

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O convergente e o divergente entre os discursos: proposições para um processo de transformação A busca pelo entendimento dos contextos expressos nos discursos discentes cruza por questões relacionadas aos discursos docentes, e vice-versa, por meio dos sentidos expressos por ambos. Encontramos, nesses discursos, profundas manifestações das relações de poder que permeiam a sala de aula, onde os estudantes, mesmo reconhecendo que os docentes pouco interagem, não dão espaço e não sinalizam para a mudança, se mostram valorizadores de estruturas pedagógicas bancárias. Esse aspecto converge com algumas proposições dos discursos docentes ao relatarem haver uma resistência por parte dos discentes na incorporação de metodologias ativas de ensino-aprendizagem. Porém, acreditamos que há divergência em parte dessa proposição. Ocorre que os professores visualizam os estudantes, que possuem consciência histórica, como pessoas isentas de crítica e de proposições acerca do processo de ensinar e aprender. Por este fato, os docentes não estão levando em consideração que, embora alguns discentes valorizem aspectos reprodutivistas - muito provavelmente presentes em suas histórias desde o Ensino Fundamental -, muitos buscam mudanças, pois, como observado em seus discursos, acreditam nos espaços democráticos de construção do conhecimento. Neste ínterim, inferiu-se a necessidade de incorporação de metodologias ativas e de uma relação dialógica que permita superar o poder estabelecido e a consequente dissonância entre teoria e prática. Após a realização dessa busca de sentidos nos discursos e na vivência dos sujeitos que formam o Curso de Enfermagem, apresenta-se uma discussão sobre o processo de transformação, que se acredita representar apenas um pequeno passo para a real mudança que deve ocorrer na formação de enfermeiros. Compreende-se que os discursos são constituídos com base em construções históricas, com influências do modelo sociopolítico, econômico e cultural das contradições sociais, e, por isso, no campo da educação, a realidade tem sido vista, muitas vezes, de forma objetiva e neutra, onde o ser humano é considerado uma “ferramenta” a ser “lapidada”, o que compõe o pensamento positivista. Acredita-se, dessa forma, que a mudança na formação de enfermeiros deve ocorrer de maneira interligada com as transformações do processo de construção do SUS, onde as representações do processo saúde-doença são percebidas como fenômenos sociais historicamente determinados. Sabese que essa mudança de paradigma não pode se dar apenas nas instituições e escolas de saúde, pois a ressignificação da saúde e da doença perpassa por todos os homens, que, possuindo consciência histórica, estão condicionados aos fatores sociais, políticos e econômicos. A formação de um profissional comprometido com a efetivação dessa mudança é um desafio com o qual as políticas públicas de saúde no Brasil têm se deparado. Neste sentido, a reconfiguração dos processos de ensino-aprendizagem nas escolas de enfermagem está intimamente ligada à própria construção histórica dessa área na saúde. A enfermagem, em muitos aspectos, tem caminhado junto aos conceitos “modernizantes” de saúde, por meio do incremento de tecnologias duras, em detrimento do cuidado com as tecnologias leves. Este modelo ideológico tradicional conserva as relações verticalizadas entre os profissionais e a população, e por isso a profissão necessita repensar seu fazer construindo e sistematizando as novas práticas que incorporam a totalidade das ações de promoção e prevenção, combinadas às ações de controle do estado de saúde destinadas à reabilitação. Na verdade, uma proposição para a mudança que se restrinja apenas às discussões a respeito do ato pedagógico não pode ser efetiva. Acreditamos que as práticas pedagógicas tecnificadas estão presentes nas relações entre os sujeitos nas escolas de enfermagem, e que tal fato se deve à resistência, à alienação e à ingenuidade de docentes, pois julgam que suas técnicas rígidas podem superar os problemas historicamente constituídos. Sendo assim, para concluir, lembramos que a transformação da educação dos profissionais de enfermagem, que não está limitada às mudanças apenas no fator pedagógico mediado entre docentes e discentes, perpassa por muitas outras atitudes inovadoras, que, como podemos visualizar na totalidade da formação, se complementam e se adicionam. Referimos-nos à necessidade de mudanças nas relações entre serviços, universidade e comunidade, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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onde devem ocorrer efetivamente os momentos de formação de profissionais de saúde. Para tanto, não podemos nos limitar a discutir e rediscutir o processo de ensino-aprendizagem sem adentrarmos nos espaços dos serviços de saúde e da comunidade. Esse adentramento deve ultrapassar os objetivos que vêm sendo postos pela extensão e pelos estágios e aulas práticas, ou seja, uma parceria concreta entre a universidade, comunidade e serviços, que gera reflexão, que gera ação transformadora. Portanto, se as interações intersubjetivas considerarem o ser humano em sua integralidade, o modelo de ensinar o aprender a aprender se transforma por meio dessas parcerias. Essa transformação pode ocorrer à medida que são reconcebidas as concepções de vida, sociedade, homem, saúde, doença, educação, cultura, intersetorialidade, integração, poder, solidariedade e democracia.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ANASTASIOU, L.G.C. Ensinar, aprender, e processos de ensinagem. 2003. Disponível em: <www.fcf.usp.br/Ensino/Graduacao/Disciplinas/Exclusivo/Inserir/Anexos/ LinkAnexos/CAPÍTULO%201%20LeaAnastasiou.pdf>. Acesso em: 12 set. 2008. ANDRADE, L.O.M. Sistema de salud de Brasil: normas, gestión y financiamiento. São Paulo: Hucitec, 2002. BONETTI, O.P. A formação que temos e a formação que queremos: discursos acerca da formação em enfermagem. 2004. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Enfermagem) - Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2004. BRASIL. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Educar SUS: notas sobre o desempenho do Departamento de Gestão da Educação na Saúde - período de janeiro de 2003 a janeiro de 2004. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. ______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3, de 07 de novembro de 2001. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. ______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: versão preliminar. Brasília: Ministério da Saúde, 1995. ______. Lei Orgânica da Saúde. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990. Disponível em: <http://www010.dataprev.gov.br/ sislex/paginas/42/1990/8080.htm>. Acesso em: 12 dez. 2005. ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: MP Editora, 1988. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8. Relatório final. Brasília: 10-12 de Outubro de 1986. Disponível em: <conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/ relatorioIconferencianacionaldesaudebnucal.doc>. Acesso em: 23 abr. 2006. DELLAROZA, M.S.G.; VANNUCHI, M.T.O. O currículo integrado do curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina: do sonho à realidade. São Paulo: Hucitec, 2005. 150

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Palabras clave: Educación superior. Educación en Enfermería. Metodologías de enseñanza - aprendizaje. Recebido em 03/07/2008. Aprovado em 13/10/2008.

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artigos

Complexidade em Saúde da Família e formação do futuro profissional de saúde Rodrigo Otávio Moretti-Pires1

MORETTI-PIRES, R. O. Complexity in Family Healthcare and the training of future healthcare professionals. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.153-66, jul./set. 2009.

The characteristics of the Unified Health System (SUS) and the Family Healthcare Strategy (ESF) bring them close to complex thought, a term that refers to the theoretical and epistemological framework rather than to an adjective describing phenomena with multiple features. Indications of inadequacy in the training of healthcare professionals, for them to work within family healthcare, led to a proposal to survey the training of these professionals for the expanded approach to healthcare implicated in SUS/ESF. Focus groups among undergraduate nursing, medical and dental students at the Federal University of Amazonas were conducted, with analysis from a hermeneutic-dialectic perspective. The data indicated that the training for these three professions was reductionist and biomedical, focusing on individual work rather than on multi-professional teamwork. This is an inadequate framework for SUS/ESF, for which professional action focusing on the complexity of the socioeconomic and anthropological context of the system’s users is recommended.

As características do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Estratégia de Saúde da Família (ESF) os aproximam do pensamento complexo, termo que não se refere à adjetivação de fenômeno de aspectos múltiplos, e sim ao marco teórico e epistemológico. Indícios de inadequação da formação dos profissionais de saúde para a atuação em Saúde da Família levaram a proposta de levantar a formação desses profissionais para a abordagem ampliada de saúde implicada no SUS/ESF. Foram realizados grupos focais com acadêmicos de Enfermagem, Medicina e Odontologia da Universidade Federal do Amazonas, analisado sob a perspectiva hermenêutica dialética. Os dados apontaram para a formação reducionista/biomédica nas três profissões assim como o foco no trabalho individual, e não em equipe multiprofissional, quadro inadequado ao SUS/ESF, que preconiza atuação profissional focada na complexidade do entorno sócioeconômico e antropológico dos usuários do sistema.

Palavras-chave: Formação de recursos humanos em saúde. Atenção primária à saúde. Teoria da complexidade.

Keywords: Training of healthcare human resources. Primary healthcare. Complexity theory.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Universitário, Trindade, Florianópolis, SC, Brasil. 88.040-900. rodrigomoretti@ccs. ufsc.br

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Introdução A realidade é complexa e, como ser imerso na realidade, o ser humano traz em si a complexidade. Este é o ponto de partida para o presente trabalho: a complexidade implicada na interação entre ser humano e arcabouço/mundo em que se insere. Ressalta-se, no entanto: é recorte de um contexto particular, pretendendo que se articulem os pressupostos da Estratégia de Saúde da Família (ESF) ao processo formal de profissionalização dos acadêmicos enfermeiros, médicos e odontólogos. No presente trabalho o termo “complexo” não se refere à adjetivação de determinado fenômeno de aspectos múltiplos, mas sim à “complexidade” enquanto referencial teórico-filosófico e epistemológico. O complexo origina-se do emaranhado de eventos, interações, retroações, incidentes, que constituem o mundo dos fenômenos (Morin, 1996). Não pressupõe eliminação da simplificação, mas uma perspectiva integradora, assumindo lacunas que surgem entre as explicações do paradigma da simplificação quando este não se mostra suficiente perante dificuldades empíricas e dificuldades lógicas. As primeiras se referem ao fato de que tudo está em relação no Universo, enquanto a última “[...] aparece quando a lógica dedutiva se mostra insuficiente para dar uma prova num sistema de pensamento e surgem contradições que se tornam insuperáveis” (Morin, 1996, p.275). Deve-se ressaltar que o pensamento complexo não tem pretensão de ser completude (Morin, 2001, 1996). As disciplinas - categoria organizacional do conhecimento científico - se pautam na especialização do trabalho. São delimitadas em si mesmas e revestem-se de autonomia nas suas técnicas de condução, elaboração e utilização, circunscrevendo-se à(s) teoria(s) a que se refere(m). Paradoxalmente, “o homem é simultaneamente biológico e não-biológico” (Morin, 1996, p.281) e a segregação de ambas as dimensões “[...] nos impõe sempre uma visão mutilada. Mas, além disso, o homem não é somente biológico-cultural. É também espécie-indivíduo, sociedade-indivíduo; o ser humano é de natureza multidimensional” (Morin, 1996, p.282). Inicialmente como Programa, a ESF originou-se na reformulação das prioridades do Ministério da Saúde em relação à Atenção Primária, sendo proposta como caminho para reorganização da atenção à saúde no Brasil, com vistas a tornar efetivo o Sistema Único de Saúde (SUS) (Mendonça, Vasconcellos, Vianna, 2008). Compromete-se em prestar atenção pautada no atendimento integral, contínuo, com equidade e resolutividade, por meio de prática humanizada, e desenvolver ações de prevenção e promoção de Saúde. Parte de um processo de trabalho em equipe multiprofissional, que deve: conhecer as famílias do território sob sua abrangência; identificar problemas de saúde e situações de risco desta comunidade; exercer planejamento local com base e imerso na realidade que planeja, pautando-se no rompimento da lógica biomédico-curativo-medicalizada, para um enfoque em ações educativas e intersetoriais, fazendo valer o princípio da integralidade na atenção, em um continuum com os demais níveis de assistência, buscando criar vínculos entre os profissionais e usuários, por intermédio da corresponsabilização na resolução dos problemas de saúde (Brasil, 2007). O usuário deve ser ressignificado no processo de trabalho, dimensão complexa ao dar ênfase à coparticipação no planejamento da assistência, com enfoque na valorização de saberes e do entorno sociocultural, em um gradativo processo de horizontalização e humanização da relação profissional de saúde-usuário (Brasil, 1997). Evidencia-se, assim, a abordagem ampliada da atenção em saúde e da complexidade inerente, podendo ser considerado um modelo contra-hegemônico ao modelo flexneriano/biomédico, que valoriza apenas saberes oriundos da academia e a supremacia/dominação do poder do profissional sobre a saúde do usuário, em que há ênfase no fenômeno biológico, distanciando-se das dimensões sociais, psicológicas e comportamentais implicadas na doença. A concepção mecanicista em saúde lhe é inerente, em que o corpo é como uma máquina composta por partes inter-relacionadas e a doença reduz-se à irregularidade no processo de funcionamento, valorizando-se a formação clínica e subespecialidades, deixando à margem o aspecto subjetivo e relacional do encontro com o paciente (Marco, 2006; Koifman, 2001). Com a implementação da Saúde da Família, o discurso político governamental se alterou com vistas a reorientar o recurso humano em saúde, em termos de capacitação para a integralidade e nova prática no SUS não apenas no contexto do serviço, mas também na formação dos futuros profissionais 154

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já no âmbito dos cursos de Enfermagem, Medicina e Odontologia (Moretti-Pires, 2008). Cabe ressaltar que este processo não se deu simplesmente por opção política dos governos, mas sim em virtude de necessidades concretas de assistência à saúde da população brasileira frente ao dever constitucional do Estado em relação à saúde de todos os cidadãos. Mesmo com estes esforços, ainda foi mantido o modelo universitário tradicional focado na atenção curativo-individual, desconsiderando o entorno sociocultural e contextual das famílias pelos profissionais de saúde - pensamento que não condiz ao talhe necessário para a atuação em Saúde da Família (Tesser, 2006; Markmann Neto, 2004), comprometendo a legitimidade do modelo de atenção, conforme a equipe ainda vivencia o modelo hegemônico e tradicional, apesar das tentativas de modificá-lo na prática, permanecendo em um estado entre a ESF idealizada e a ESF de fato (Markmann Neto, 2004). Machado (2005) aponta fragilidades quanto ao recurso humano no SUS durante seu processo de implementação. Em relação à Saúde da Família, trabalho em equipe significa interação entre os diversos profissionais, um dos pilares deste modelo de atenção, orientado à integralidade nos cuidados de saúde pautada na relação entre a complementaridade de trabalhos e a interação dos profissionais (Araújo, Rocha, 2007; Crevelim, Peduzzi, 2005; Silva, Trad, 2005). Para Chaves (2003), a prestação dos cuidados em saúde é um campo imanente na complexidade. Morin (2007) defende que a redução na disciplinaridade não abarca o ser humano em si, na emergência da vida individual e particular vivida no/com o coletivo - perspectiva que comporta a proposta de visão ampliada evocada pela ESF, em que a visão biomédica estrita não se mostra apropriada, assim como a formação profissional pautada por esta orientação. Nesta perspectiva, ao adotar, a ESF, uma formulação que prima pelo atendimento integral, complexo, na multidimensionalidade humana, há necessidade de profissionais que lidem com determinantes sociais de saúde, articulando a atuação profissional de maneira intersetorial com a realidade adscrita. Após 15 anos de implantação da ESF no Brasil, os ganhos em termos dos princípios da equidade e da universalidade mostraram-se significativos (Alves, 2005). O mesmo não pode ser afirmado sobre a consolidação do princípio da integralidade (Schimith, Lima, 2004). Tendo em vista o contexto apresentado, e que a formação fragmentada dos profissionais de saúde pode comprometer o desempenho da Estratégia como proposta, o presente artigo tem por objetivo debater a formação do médico, do enfermeiro e do odontólogo, e sua adequação à visão ampliada de saúde implicada no SUS/ESF, pautando-se no pensamento complexo e na perspectiva dos princípios sugeridos para a prática neste modelo de atenção em equipe multiprofissional.

Percurso metodológico O presente artigo trata de pesquisa exploratório-descritiva fundamentada na epistemologia da complexidade, referenciando-se no pensamento de Edgar Morin, focalizando-se no contexto da formação profissional do médico, enfermeiro e odontólogo na Universidade Federal do Amazonas. Primou pela análise integradora entre o empírico e sua adequação à necessidade em Saúde da Família conforme preconizado nos documentos oficiais da estratégia, o que implica uma visão do homem como ser multidimensional por parte do profissional da ESF. Dado que se trata de relação, o caminho do reducionismo apresenta calhas estreitas demais para abarcarem esta realidade da formação universitária e da adequação ao que pede o modelo de atenção, não se tratando de um contexto doseresposta. Daí a opção metodológica pelo talhe qualitativo em pesquisa (Minayo, 1999). Faz-se mister registrar que o processo de construção histórico-social como profissão é diferente em cada uma das três formações. Mas, o SUS não deveria ser o direcionador da formação dos profissionais de saúde, conforme a Constituição brasileira preconiza? E, sendo a Atenção Primária “o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde” (Brasil, 2007), a ESF não teria um caráter norteador desta formação? E, no trabalho na ESF, não está implicado projeto assistencial único e focado nas minúcias desta proposta de integração entre os diversos profissionais? COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O presente trabalho foi autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Amazonas, sob protocolo ético CEP/UFAM/036/2006, obedecendo a todos os procedimentos preconizados nas leis brasileiras sobre pesquisa com seres humanos; sendo explicado aos acadêmicos que foram convidados em razão de se enquadrarem nos critérios de inclusão, que a participação era voluntária, que poderiam sair do estudo quando desejassem sem qualquer prejuízo. Foram explicados, também, os procedimentos referentes ao grupo focal, que estariam na presença de outras pessoas, e que, no início da reunião, seria solicitado, aos participantes, que não comentassem o conteúdo das falas dos integrantes com pessoas que não integraram o grupo; e que também poderiam se omitir, caso desejassem, no transcurso da atividade de grupo focal. Registrou-se como os dados seriam tratados e que seriam divulgados no meio científico, mas sem informações que pudessem identificar os participantes do grupo. Em termos instrumentais, utilizou-se a técnica de grupo focal (Minayo, 1999; Morgan, 1997). Além do moderador, houve um segundo pesquisador no papel de observador. Ao término de cada grupo focal, com duração média de uma hora e meia, ambos se reuniram para discutir impressões. As questões norteadoras trabalharam: o modelo pedagógico vivenciado, a percepção sobre o que é a profissão, a atuação do profissional nos diversos níveis de atenção à Saúde e o trabalho em equipe multiprofissional. Todas as discussões foram registradas por meio de gravação com fita magnética. Foram critérios de inclusão dos sujeitos: ser discente da Universidade Federal do Amazonas; cursar um dos cursos investigados; estar cursando o último período no ano de 2007; cursar todo o curso na mesma turma que os outros sujeitos; não ter cursado outro curso de graduação anteriormente. A inadequação a qualquer dos critérios foi considerada como único critério de exclusão. Com relação ao recrutamento dos sujeitos, após aula regular do curso, o pesquisador explicou o projeto aos acadêmicos do último período, convidando-os a tomar parte. No entanto, de maneira similar, apenas seis acadêmicos de cada um dos cursos se dispuseram a participar do projeto. Este número de sujeitos está em conformidade com o mínimo sugerido nesta técnica de coleta de informações (Minayo, 1999; Morgan, 1997). Os grupos focais foram realizados separadamente por curso.

Tabela 1. Caracterização dos participantes da pesquisa. Curso

Ano de ingresso

Gênero

Idade

Estado de origem

Sujeito 01

Medicina

2002

M

27 anos

Amazonas

Sujeito 02

Medicina

2002

F

26 anos

Amazonas

Sujeito 03

Medicina

2002

M

23 anos

Goiás

Sujeito 04

Medicina

2002

M

28 anos

Amazonas

Sujeito 05

Medicina

2002

M

25 anos

Tocantins

Sujeito 06

Medicina

2002

M

23 anos

Goiás

Sujeito 07

Enfermagem

2004

F

23 anos

Ceará

Sujeito 08

Enfermagem

2004

F

22 anos

Amazonas

Sujeito 09

Enfermagem

2004

F

21 anos

Amazonas

Sujeito 10

Enfermagem

2004

F

20 anos

Amazonas

Sujeito 11

Enfermagem

2004

F

22 anos

Amazonas

Sujeito 12

Enfermagem

2004

F

21 anos

Amazonas

Sujeito 13

Odontologia

2004

F

21 anos

Amazonas

Sujeito 14

Odontologia

2004

F

22 anos

Amazonas

Sujeito 15

Odontologia

2004

F

22 anos

Amazonas

Sujeito 16

Odontologia

2004

F

24 anos

Acre

Sujeito 17

Odontologia

2004

F

23 anos

Amazonas

Sujeito 18

Odontologia

2004

F

23 anos

Amazonas

Sujeito

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Todas as gravações foram transcritas na íntegra, material sob o qual se realizou leitura exaustiva para apropriação do conteúdo, seguindo o modelo para tratamento, redução e análise, conforme preconizado pela literatura (Minayo, 1999; Morgan, 1997). A análise pautou-se na hermenêutica dialética (Minayo, 2002), perspectiva adotada pela reflexão que se funda na práxis, na busca pela compreensão atrelada à análise crítica da realidade, processualmente seguindo as etapas de confrontação, convergências e divergências das categorias (Minayo, 1999). Para a interpretação, o produto final foi confrontado com o marco teórico do pensamento complexo sobre Saúde Coletiva no Brasil e sobre ESF, na busca por conteúdos coerentes, singulares ou contraditórios.

Resultados No grupo focal com acadêmicos de Medicina, prevaleceu a visão do médico como superior aos demais profissionais, com trabalho em equipe tendo o médico como centro - justificado por estes acadêmicos devido à vastidão dos conteúdos teóricos na formação médica quando comparados aos demais profissionais -, com grande preocupação em relação ao perfeccionismo nos aspectos técnicocurativos, e visão biomédica pautada na doença. Esta perspectiva irá chocar-se com os princípios da ESF, e denuncia visão reducionista e fragmentária no que concerne ao trabalho em equipe. É uma coisa de hierarquia, não é? Medicina é um curso só para quem pode. ‘Tua mãe é técnica, tuas irmãs são enfermeiras e você é quem vai mandar.’ (Sujeito 6) Então, tem essa questão aí, de hierarquia, mas eu acredito que todo profissional de saúde tem que trabalhar de equipe. Por que se tu pedes para o outro profissional fazer, ele também vai integrar o procedimento? Isso é trabalhar em equipe. (Sujeito 1) Acho que sem a medicina, não a odontologia, mas o trabalho da enfermagem ia ser limitado. Porque o médico aprende todos os procedimentos, agora eu acho que os procedimentos de enfermagem, todos os médicos são capazes de fazer. (Sujeito 2) O médico entra em contato com uma carga maior de informações. (Sujeito 5) Os outros profissionais são eficientes fazendo o trabalho complementar ao do médico. (Sujeito 2) Ser médico é dar o melhor de si para poder tornar uma pessoa melhor naquela patologia que ela tem. (Sujeito 2) Como o médico pode não pensar apenas na dor? O que ele pode fazer além de prescrever ou operar alguém? (Sujeito 3)

A atuação em atenção primária é caracterizada apenas no aspecto da prevenção específica. Há referência à amplitude dos determinantes de saúde, reconhecendo, de certa forma, a complexidade implicada na atenção primária, mas não operacionalizam como atuar frente a estas relações, emergindo novamente o modelo biomédico, focado, exclusivamente, em ações técnicas relacionadas à proteção específica. O atendimento médico é caracterizado pelo ato prescritivo, reducionista, desarticulado com a proposta da Saúde da Família e do trabalho em equipe. A atuação profissional perante o paciente limita-se a este ato, desconsiderando os aspectos sociais envolvidos em questões como o uso de medicamentos, reduzindo a atuação médica frente às possibilidades que lhe são implicadas no trabalho em Saúde da Família. A responsabilidade é focada no outro, seja este Estado, paciente ou demais membros da equipe. O PSF vai ser diferente porque existe mais parte da área preventiva. (Sujeito 5)

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‘Educação em Saúde’ é explicar direito para o paciente como usar o remédio que a gente prescreve. (Sujeito 4) Não se trata só da questão da doença. É a moradia, higiênico-sanitária. Neste ponto, o médico não tem como atuar. Não é responsabilidade dele. Isso é para o governo, para os profissionais da assistência social. Mas não do médico. (Sujeito 2)

Os pacientes são percebidos como pessoas sem instrução e o conhecimento médico tem o papel de esclarecê-los, de iluminá-los. A abordagem pautada no contexto cultural é, claramente, desconsiderada, tanto quanto a horizontalidade necessária ao vinculo e à corresponsabilidade entre usuário e profissional, conforme preconizado, prevalecendo a visão biomédica pautada na doença e que será reforçada na definição de ‘paciente’. Paciente é pessoa que procura serviço médico precisando de auxílio quanto ao processo saúdedoença. (Sujeito 1) Às vezes o paciente não consegue seguir uma orientação nossa. Então não tem como tratá-lo. (Sujeito 4) Você fala dez vezes uma coisa e o paciente não entende, porque o pobre não tem acesso à educação formal, não tem realmente como entender. (Sujeito 2) O paciente que não tem uma boa adesão ao tratamento é um paciente problemático. Quando o paciente assume o compromisso de receber o tratamento médico, também tem que assumir o compromisso de seguir certo o que o médico fala. Porque o médico sou eu, ele tem que aceitar. (Sujeito 3)

Para o grupo de acadêmicos de Enfermagem, o enfermeiro é o centro da equipe de saúde, porque permanece mais tempo junto aos usuários e, assim, tem mais conhecimento sobre o processo saúde-doença. Esta perspectiva fere o trabalho em equipe multiprofissional, no qual todos têm igual importância apesar das diferentes competências. Apesar de ressaltarem a importância do enfermeiro na equipe de saúde, demonstram sentimento de baixa valorização da Enfermagem frente aos demais profissionais. O enfermeiro é a pessoa mais próxima do paciente. O enfermeiro tem uma visão melhor. O médico fica 10 minutos frente ao paciente e você fica o dia todo. (Sujeito 8) O enfermeiro é o coração do serviço de saúde. Interage em todas as áreas, com funcionários, faz os cuidados básicos, a comunicação com a equipe médica, a comunicação com o paciente. Todo e qualquer problema passa pelo enfermeiro. O enfermeiro sabe de tudo. (Sujeito 12) O trabalho da equipe depende muito do enfermeiro. Depende de ele ser unido e comandar a equipe, porque se ele não comandar fica tudo bagunçado e não vai haver trabalho em equipe. (Sujeito 11) Geralmente o médico não aceita a importância do enfermeiro. Acho que agora o enfermeiro está querendo o seu lugar. O enfermeiro não está deixando as pessoas invadirem e se intrometer no que ele faz. (Sujeito 11)

Emerge a percepção de que o atendimento em saúde na atenção primária não deve se limitar ao tratamento da doença, e que o enfermeiro deve lidar com todos os aspectos que sejam implicados na saúde do indivíduo. No entanto, silencia-se sobre a operacionalização destes conceitos teóricos, 158

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dando a impressão de adotarem o discurso “politicamente correto” e em consonância com princípios norteadores do SUS; mas não declaram a vinculação com a prática de Enfermagem no SUS/ESF, que é abordada, sobretudo, pelo aspecto preventivo, inclusive apresentando diferenciação entre atendimento ambulatorial e atendimento em atenção primária, resgatando o discurso preventivista de que este nível se presta somente às ações de promoção de saúde e proteção específica, o que é díspar em relação às reais atribuições deste nível de atenção. A enfermagem não é voltada só para doença. (Sujeito 7) Você faz saúde juntando tudo: prevenindo, educando, promovendo e reabilitando o paciente. (Sujeito 9) Na Saúde Coletiva o profissional tem que ter conhecimento para atender a população diferente do atendimento do consultório, principalmente na prevenção. (Sujeito 10) A área ambulatorial tem diferença para saúde publica por que nesta a gente trabalha muitas vezes com grupos, grupos da escola, grupo da comunidade. A questão é muito mais de prevenção mesmo. Já o atendimento ambulatorial não. (Sujeito 11)

Para as entrevistadas, existe relação entre a vida da comunidade e o trabalho do enfermeiro, pensando-se inclusive que, se a saúde da comunidade vai bem, é fruto do bom trabalho destes profissionais. Esta perspectiva choca-se com outra abordagem: a impotência do profissional frente a demandas sociais específicas, como a falta de alimentação e medicamento. Novamente, assumem para si a centralidade do trabalho em equipe – a equipe está na dependência do enfermeiro - e silenciam sobre o princípio da intersetorialidade, imprescindível no âmbito da ESF. Também, ao referirem respeito aos aspectos culturais da comunidade, revelam que há conflito interno entre o cuidar de enfermagem e manter a autonomia do usuário, com certa prescrição de condutas e dificuldade para manter a horizontalidade junto aos pacientes. Se a saúde daquela comunidade estiver bem é porque o enfermeiro faz o trabalho adequado. (Sujeito 11) Existem certas doenças que o paciente precisa ter alimentação em especial. O paciente tem a moradia totalmente precária, come hoje e não sabe se vai comer amanhã. Como ele vai comprar um remédio para gripe do filho se ele não tem roupa não tem comida entende? (Sujeito 8) O paciente chegou à unidade de saúde com uma folha no pé, colocou uma mistura de mandioca que ele bateu. Quando eu olhei, minha vontade é pegar aquilo ali, tirar essa folha, pegar uma bacia, lavar mesmo e fizer um curativo. (Sujeito 12) Você deve respeitar a escolha do paciente, mas também pode ir adequando paralelamente. A gente poderia instruir ‘você pode colocar a folhinha, mas também pode fazer o curativo’, Como isso eu não o mandei tirar a folhinha dali, mas também o instruí a fazer o nosso procedimento certo. (Sujeito 11)

Os acadêmicos de odontologia aludem à percepção ampliada e complexa da saúde em diversos momentos do discurso, mas, ao operacionalizarem conceitos, fazem dicotomia entre preventivo e curativo, associando apenas o primeiro à atenção primária. O que atribuem à visão ampliada tratase da etapa inicial da prestação de serviços odontológicos, limitando-se à anamnese, resistindo o discurso flexneriano/biomédico. O consultório odontológico é construído nas falas como território pouco articulado com a prática em Saúde Pública e, apesar do discurso de atenção ampliada, somente COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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se discutem aspectos referentes à prática odontológica clínica, nem mesmo mencionando outros profissionais. Alguns profissionais vêem o paciente sentado na cadeira odontológica e só olham para aquela área que é especialista. Isso não é correto. É lógico que tem que dar atenção maior aquela área mas na parte inicial do procedimento ele tem que ver tudo. (Sujeito 17) A odontologia como profissão significa restabelecer a estética e também, muitas vezes, a função do paciente. Tem paciente que chega com o processo de mastigação impossibilitando comer determinados alimentos pela falta de dentes. (Sujeito 16) O dentista não trata só a saúde bucal. Muitas vezes a gente estabelece a saúde geral do paciente porque ele chega e não tem cuidado com a boca, quanto mais com restante. (Sujeito 14)

É recorrente a idéia de que o paciente deixa a saúde de lado por opção, e não por questões socioeconômicas, inferindo-se que pacientes de estratos socioeconômicos mais baixos têm menos saúde pela deficiência em conhecimento formal. Silencia-se sobre como interferir neste processo e não se assume compromisso com esta realidade, o que contraria o enfoque preconizado na ESF. Prevalece o discurso de que o paciente não compreende o profissional de saúde e dificulta o tratamento, emergindo discurso de verticalidade na relação, o que compromete vínculo e corresponsabilidade, convergente com o achado nos acadêmicos médicos e enfermeiros. Tem paciente que deixa a boca de lado. (Sujeito 16) Quando você vê um paciente com falta de higiene oral também nota falta de higiene em outras partes do corpo. (Sujeito 11) Os pacientes de classe menos favorecida apresentam condições patológicas mais sérias e mais difíceis de serem tratadas. Tudo é mais complicado, porque eles não têm conhecimento. Tem muito paciente que não procura o dentista. Só procura quando está em uma condição extrema. Diferente de um que tem um nível de conhecimento melhor. (Sujeito 14)

Paralelamente, existe um forte discurso vinculado aos determinantes sociais de saúde e da complexidade nas relações destes, mas com silêncio sobre como tornar operacionais estes conceitos, mesmo que, na ESF, abra-se margem para atuação além da clínica, na direção da prática sobre estes determinantes sociais. Saúde coletiva é pensar no coletivo e nos programas de saúde pública como o SUS. (Sujeito 16) É entender a saúde nos bairros, saber os enfoques daquela comunidade. Na verdade a saúde coletiva mostra a realidade mesmo na região, porque às vezes você trabalha no consultório particular e fica meio alheio a essa realidade dos pacientes que vão para você. Então saúde coletiva mostra justamente o todo. Podem ser questões ambientais ou socioeconômicas que estão interferindo para que, por exemplo, o índice de carie seja elevado. (Sujeito 13)

Sobre trabalho em equipe, referem-no, mas sem conceitos concretos de como operacionalizá-lo, ficando à margem da discussão ou, em outra medida, preocupadas em se reafirmar perante a figura do médico. O trabalho em equipe é exclusivamente a justaposição de especialidades, e não processo comum, integrado e interdisciplinar, prevalecendo o talhe flexneriano/biomédico que, reduzindo, fragmenta o indivíduo e o trabalho em saúde.

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Não só o medico é profissional de saúde. O odontólogo também é. A gente vê isso na equipe de saúde da família. (Sujeito 18) Principalmente nos programas de saúde da família a relação entre dentista e médico é uma relação bem legal porque é uma coisa que não interfere muito na área de atuação de cada um. Apesar do enfermeiro que, querendo ou não, se sente inferior ao médico que se sente superior. (Sujeito 16) A interação entre a equipe é importante para o paciente, também na forma de dinamizar os procedimentos e o campo de atuação. (Sujeito 13)

Há um importante foco do odontólogo priorizando o atendimento particular, considerado melhor que o atendimento público. Não discorrem sobre os motivos da falta de materiais e instrumentais nos serviços públicos de saúde, discurso frágil frente às ações coletivas e na comunidade que, ao odontólogo, são possibilitadas em Saúde da Família. Conceituam o trabalho em Saúde Pública como filantrópico, como se o odontólogo fosse remunerado apenas no consultório particular, ignorando que os usuários pagam impostos diretos e indiretos, os quais se revertem também em salários para profissionais do Serviço Público de saúde. No consultório particular o dentista tem aquela postura de fazer um serviço de ótima qualidade porque vai receber por isso. Sabe que se tratar o paciente no serviço público, mais pacientes virá e ele está sendo mal remunerado. Com o paciente ali no serviço publico o dentista não se preocupa com o geral, quer resolver a dor e às vezes nem procura saber o que o paciente tem de verdade. (Sujeito 14) No atendimento particular, os materiais são de melhor qualidade para que seja melhor, mais eficiente. Você faz agendamento e não passa horas em filas como o paciente do serviço público. (Sujeito 15)

É importante ressaltar que os cursos investigados estão adequados com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) nos aspectos técnicos e profissionais (Universidade Federal do Amazonas, 2006). No entanto, as formações são fragmentadas em especialidades, pouco pautadas em um sentido mais amplo, pelo enfrentamento dos determinantes sociais de saúde e no processo saúde doença, com pouca ênfase no SUS/ESF. As disciplinas que se referem a esta dimensão estão desintegradas/ dispersas ao longo do currículo, havendo pouca vivência prática em saúde na comunidade, revelando priorização da técnica e do trabalho individual focado na doença.

Discussão Para o pensamento complexo, compreender o todo social não significa identificar características individuais, e a complexidade da realidade se faz na articulação dos indivíduos que enquanto coletividade são mais do que o agrupamento das características individuais. A retroação do todo social, produzido pela interação permanente entre seus indivíduos, interfere nas características individuais e, por conseguinte, no todo social, sendo uma perspectiva auto-organizativa das sociedades (Morin, 2001). Encaminhando a discussão para a Saúde da Família e sua adequação ao pensamento complexo, as especialidades falham em dar conta de todas as necessidades de saúde dos indivíduos, mesmo com priorização do generalista e de saúde da família nos últimos anos, o que implica o nó crítico da formação, falhando quando os generalistas não abordam integralmente os pacientes, mas sim os “distribuem” aos especialistas (Demo, 1997).

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Apesar de os três grupos apresentaram que fazer saúde é agir além dos aspectos biomédicos, na complexidade do paciente, não mencionaram qualquer forma de operacionalizar este conceito. Outra confluência entre as três formações é a desconsideração dos conhecimentos próprios dos pacientes, discurso antagônico à relação horizontal na ESF, o que pode se dar em função de a formação dos profissionais de saúde ainda se orientar por conceitos antropológicos hegemônicos na década de 1960, em que a cultura do outro - no caso o paciente - é tomada como um saber ‘exótico’ ou primitivo, com supervalorização do conhecimento biomédico (Bohs, 2007). A autoridade do profissional de saúde sobre o paciente foi aludida por todos, se manifestando, na Enfermagem, como cuidado aos pacientes - fragilizados e que desconhecem como se curar; na Medicina, como postura prescritora de padrões e atitudes saudáveis aos pacientes - que não detém o conhecimento; e, na Odontologia no, discurso de culpabilidade do paciente - pelo desconhecimento sobre saúde bucal e na centralidade do odontólogo para restabelecê-la. Relações verticalizadas, prescritoras e distantes do enfoque da ESF. Estes achados implicam a discussão da categoria “cuidado”, re-significada na literatura atual em direção às dimensões sociais e políticas, assim como o aspecto da mediação entre ajuda e poder de ajudar, implicando a questão de autonomia dos usuários (Pires, 2005). Silva et al. (2007) apresentam a dificuldade de os profissionais ouvirem as demandas dos pacientes e, por consequência, tratá-los como sujeitos - “cuidado” centrado nos protocolos de saúde, e não no usuário (Pires, 2005). Na ESF, a produção de serviços de saúde não deveria se distanciar da noção do usuário como sujeito histórico, de conhecimentos próprios e tão importantes quanto os saberes dos profissionais de saúde. Com relação ao trabalho em equipe, os acadêmicos de Enfermagem apontaram constante batalha pela valorização e para se firmarem perante as demais profissões de saúde - o médico prevaleceu como figura central do trabalho em saúde para os acadêmicos de Medicina; enquanto os de Odontologia discorreram superficialmente, agregando os diversos profissionais em um mesmo local. Estas perspectivas são contraditórias com os princípios do trabalho efetivo em equipe, caracterizado pela interdisciplinaridade com visão crítico-social, técnica, intersubjetiva, dialógica e com o respeito ao outro, em que um profissional de saúde deve tanto se articular aos demais como promover articulação intersetorial (Figueiredo, 2006; Gattas, 2005; Schraiber et al., 1999). Este padrão está arraigado no processo de trabalho em saúde da família, podendo estar implicado no silêncio/resistência destes acadêmicos em discutirem o trabalho pela lógica da ESF (Heidemann, 2006). A postura autoritária permeou os discursos, não apenas com relação ao paciente, mas também com a equipe, na qual o enfermeiro percebe-se como líder nas questões da gestão, o médico percebe centralidade e status frente aos demais profissionais por seu conhecimento, que julga ser maior que o dos demais. Sobre a relação entre Odontologia e as demais profissões do trabalho em equipe, houve certo silêncio nos discursos. Estas perspectivas desconsideram que a construção de um projeto comum na ESF depende não só das formas concretas de organização do trabalho, mas também da distribuição de poder na equipe (Paim apud Silva, Trad, 2005). Aponta-se o descompasso entre as formações de Ensino Superior investigadas e a necessidade de atuação com percepção complexa do paciente nos serviços de atenção, podendo refletir fragmentação dos saberes difundidos pela Universidade e fundamentação no modelo biomédico priorizando o ensino terapêutico (Costa, 2005), seja na Enfermagem (Wynne, Brand, Smith, 1997), na Medicina (Avarenga, 2005), ou na Odontologia (Araújo, Dimenstein, 2006). Há que se ressaltar o silêncio em documentos oficiais sobre como fazer interdisciplinaridade no trabalho em Saúde da Família, à exceção de Políticas como o HumanizaSUS (Simões et al., 2007), que se direciona ao acolhimento do usuário por todos os profissionais da equipe, priorizando seu fortalecimento e o vínculo com a comunidade. A Educação em Saúde foi caracterizada, pelos sujeitos investigados, por palestras e a narração de conteúdos teóricos (Araújo, Dimenstein, 2006; Romão, 2007; Marco, 2006; Zanotto, Rose, 2003) apontando que a estrutura didático-pedagógica da formação universitária atual ainda se reveste de métodos tradicionalistas em detrimento de estratégias que sejam pautadas na problematização, conscientização e horizontalidade. Este modelo tradicionalista é antagônico à proposta de se abordar o ser humano em sua dimensão ampla e política, reproduzindo-se no âmbito das práticas profissionais 162

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em Atenção Primária (Moretti-Pires, 2008; Batista, 2006; Esperidião, 2001). A Universidade ainda é espaço tradicionalista, descontextualizado das Políticas Públicas de Saúde e pautado no desenvolvimento cognitivo dos futuros profissionais (Esperidião, 2005), com raízes na tradição de fragmentação do conhecimento, emblematizada pelo Relatório Flexner (Yazbek et al., 2000). Na contramão deste enfoque, as DCN dos três cursos (Brasil, 2002, 2001a, 2001b) declaram-se orientadas ao modelo do SUS, havendo, atualmente, ações do Estado para reorientação da formação profissional em Saúde (Brasil, 2005). Ainda nesta questão da formação, as DCN dos três cursos investigados primam por promover a interdisciplinaridade por meio da integração das diversas dimensões do ser humano. No entanto, as matrizes curriculares dos cursos apresentam disparidade neste aspecto; e na articulação entre universidade e serviços de atenção (Universidade Federal do Amazonas, 2006; Brasil, 2002, 2001a, 2001b). Fica aí uma lacuna para investigações futuras. O presente trabalho imergiu na temática da formação universitária do profissional de Saúde da Família, que, dada a complexidade, constitui apenas uma das vertentes da problemática, havendo necessidade de investigações em outros aspectos implicados, tais como o conhecimento dos professores e acadêmicos sobre as DCN e em que medida este influi em visão mais ampla ou mais reducionista dos futuros profissionais. Outra questão que fica é como os profissionais investigados articulam a formação universitária no dia-a-dia das equipes de Saúde da Família.

Considerações finais Apesar de a Saúde da Família se constituir em um modelo de atenção primária que se distingue pela visão complexa do usuário, a formação universitária de seus profissionais ainda se pauta na visão fragmentária, reduzida ao âmbito da disciplinaridade (anatomia, patologia, genética, farmacologia, economia, sociologia etc.). A dicotomia entre o identificar da importância e o silêncio em relação à operacionalização do trabalho em ESF pode se constituir como emblema da existência de problemas para a formação com ênfase no SUS, com os sujeitos silenciando-se sobre como atuariam adequadamente em relação aos princípios norteadores deste. Na medida em que aprenderam apenas os aspectos técnicos de sua profissão e não aprenderam como articular-se com outras profissões com que dividirão espaço nos Serviços, a enfocar a vida vivida dos pacientes e, muito menos, a intersetorialidade em Saúde, a formação universitária por si só não lhes possibilitará atuar desta forma. E aí se põe à mesa a formação reducionista para um trabalho assumidamente complexo. As deficiências evidenciadas não se referem apenas ao debate histórico das pedagogias do “aprender fazendo” que poderia ser pensado em termos da formação do profissional de saúde propriamente dita. Antes, apontam para contextos da própria essência do processo de trabalho em Saúde da Família. Em sentido amplo, também tratam da delicada questão política própria da universidade pública brasileira: formar profissionais no âmbito de uma instituição pública com enfoque diferente da necessidade do serviço público e da coletividade.

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MORETTI-PIRES, R. O. Complejidad en la Salud de la Familia y formación del futuro profesional de la salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.153-66, jul./ set. 2009. Las características del Sistema Único de Salud (SUS) y de la Estrategia de Salud de la Familia (ESF) aproximan al pensamiento complejo, término que no se refiere a la adjetivación de fenómeno de aspectos múltiplos y si al marco teórico-epistemológico. Dados los indicios de la formación inadecuada de profesionales de la salud para la actuación en ESF, se apuntó a elevar la formación de estos profesionales con el abordaje ampliado de salud implicado en el SUS/ESF, utilizándose grupos focales con académicos de Enfermería, Medicina y Odontología de la Universidad Federal de Amazonas, tratados por una perspectiva hermenéutica dialéctica. Los datos apuntaron a una formación reduccionista/biomédica en las tres profesiones así como foco en el trabajo individual y no en equipo multiprofesional, cuadro inadecuado al SUS/ESF, que preconiza la actuación profesional enfocada en la complejidad del entorno socioeconómico de los usuarios.

Palabras clave: Formación de recursos humanos en salud. Atención primaria en salud. Teoría de la complejidad. Recebido em 01/11/2008. Aprovado em 24/02/2009.

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artigos

Análise de situação dos recursos humanos da vigilância sanitária em Salvador - BA, Brasil* Cristian Oliveira Benevides Sanches Leal 1 Carmen Fontes Teixeira 2

LEAL, C.O.B.S.; TEIXEIRA, C.F. Analysis on the situation of human resources for sanitary surveillance Salvador (Bahia, Brazil). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.167-79, jul./set. 2009.

A situational analysis on human resources for sanitary surveillance in Salvador was conducted by asking the players involved to identify the main problems and their determinants within preestablished categories. This was a descriptive, exploratory case study with a methodological strategy based on situational strategic planning. The sources of evidence were individual and focus group interviews among sanitary surveillance managers and technical staff. The results indicated deficiencies in the numbers, multiprofessional nature and distribution of professionals; insufficient capacitation; lack of motivation; insufficient remuneration; failure to institutionalize the position, career and salary plan; low utilization of the technical staff’s potential; and lack of definition for the ethical requisites for performing sanitary inspection functions. Better structuring of the sanitary surveillance service is recommended, together with establishing human resources policies that take into account the specific field characteristics and the need to consolidate the national sanitary surveillance system, with investments in human resources management.

Realizou-se uma análise situacional dos recursos humanos da Vigilância Sanitária de Salvador (VISA), a partir da identificação, pelos atores envolvidos, dos principais problemas e seus determinantes relacionados a categorias predefinidas. Trata-se de estudo de caso, descritivo e exploratório com estratégia metodológica baseada no Planejamento Estratégico Situacional. Foram fontes de evidências entrevistas individuais e com grupos focais entre gestores e técnicos da vigilância sanitária. Os resultados indicaram: insuficiência na quantidade, multiprofissionalidade e distribuição dos profissionais; insuficiente capacitação; desmotivação dos profissionais; insuficiente gratificação; não institucionalização do Plano de Cargos, Carreiras e Salários; baixa utilização do potencial dos técnicos e indefinição de requisitos éticos para exercer funções de fiscalização sanitária. Sugere-se melhor estruturação do serviço de Visa, o estabelecimento de uma política de recursos humanos que contemple as especificidades do campo e que considere a necessidade da consolidação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, bem como investimentos na gestão de recursos humanos.

Keywords: Situational analysis; Human resources. Sanitary surveillance. Planning and management. Decentralization.

Palavras-chave: Análise situacional. Recursos humanos. Vigilância sanitária. Planejamento e gestão. Descentralização. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

* Elaborado com base em Leal (2007), dissertação realizada com apoio financeiro da ANVISA/MS mediante o Projeto Centro Colaborador Instituto de Saúde Coletiva/Agência Nacional de Vigilância Sanitária UFBA/ISC/ ANVISA. 1 Doutoranda do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). Rua Marechal Floriano, 396, apto 704, Canela, Salvador, BA, Brasil. 40.110-010. cristianoliveiraleal@ yahoo.com.br 2 Departamento de Saúde Coletiva, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia.

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Introdução O intenso desenvolvimento tecnológico experimentado nos últimos anos aumentou os riscos sanitários, devido à globalização dos mercados e o consequente aumento na circulação de mercadorias e pessoas, tornando-se necessária a construção de ações de vigilância sanitária (Visa) baseadas em políticas consistentes e serviços organizados de modo a atender de forma ágil aos mercados em expansão, ao mesmo tempo em que garanta a proteção da saúde da população (Lucchese, 2006; 2001; Costa; Rozenfeld, 2000). Dentre os inúmeros aspectos que vêm sendo abordados no campo da Visa, especialmente com a intensificação do seu processo de descentralização, destacam-se a capacitação e o desenvolvimento dos seus recursos humanos (RHs), considerados um ponto crítico na saúde. Para a Visa, a questão dos recursos humanos reveste-se de maior complexidade, por não haver cursos de graduação e pelo fato de que as disciplinas que dão suporte à área, nos cursos de nível superior de saúde, não oferecerem qualificação específica, ficando a formação profissional sujeita a capacitações em cursos de pósgraduação, nem sempre disponíveis na maioria dos municípios brasileiros. Há, ainda, a considerar, as características do processo de trabalho em Visa, que envolve a multiprofissionalidade, ações intersetoriais e interinstitucionais, capacidade gerencial e técnica nas diferentes áreas de atuação para a regulação do risco sanitário, em sociedades de riscos crescentes, movida pelo consumo de produtos, serviços e tecnologias, inclusive as de saúde, que muitas vezes produzem iatrogenias (Lucchese, 2006; Brasil, 2003; Souza, 2002; Costa; Souto, 2001). Recursos humanos bem capacitados em Visa são especialmente importantes, também, porque suas ações, tanto as básicas, quanto as de média e alta complexidade, exigem especialização dos profissionais, um serviço organizado de forma a desenvolver potencialidades e autonomia, assim como o planejamento de atividades de forma participativa. Tais condições se impõem pela variedade de objetos do campo, desde os mais antigos, como alimentos e medicamentos, aos mais inovadores, como as tecnologias existentes nos equipamentos médicos (Brasil, 2006, 2005). Outra habilidade importante para os profissionais de Visa é a capacidade de articular-se com várias instâncias da sociedade, como instituições que mantêm interface entre a saúde e a sociedade organizada, para o controle social e a mediação de conflitos. Preconiza-se que estes profissionais ajam com o conhecimento do que dita a legislação e trabalhem em equipes de forma cooperativa e padronizada, pois lidam com objetos variados. A padronização deve ser alcançada por meio da elaboração, teste e avaliação prévia dos seus instrumentos de ação, como, por exemplo: roteiros de inspeção; check list; autos de infração, de imposição de penalidade, de apreensão e inutilização de produtos, entre outros - sempre de acordo com as necessidades do mercado e de proteção da saúde da população, em permanente acompanhamento das inovações tecnológicas (Bastos, 2006; Costa, 2004; Souza, 2002; Costa, Souto, 2001). Os profissionais que atuam neste subcampo da Saúde Coletiva (Almeida-Filho, 2000) devem agir, também, de forma ética, imparcial, autônoma e transparente, pois podem responder administrativamente, penal e civilmente por seus atos. São representantes do poder público para a limitação de interesses conflitantes entre mercado e saúde, individual e coletivo. Faz-se necessário, portanto, que os agentes sejam funcionários admitidos em concurso público e sigam a carreira de Estado, não devendo ter vínculos com o setor regulado pela Visa, sob pena de contrariar princípios éticos (Bastos, 2006; Souza, 2002). Na Bahia, a Resolução CIB/BA 120/2006 estabeleceu a equipe mínima necessária, em cada serviço de Visa, de acordo com o número de habitantes do município, assim como a necessidade de capacitação e alocação de profissionais com formação específica, dependendo do nível de complexidade das ações desenvolvidas. Explicitou, também, o papel do nível estadual, onde se destacavam: a cooperação técnica prestada aos municípios, a avaliação do serviço e a assessoria na capacitação dos recursos humanos (Bahia, 2006). No âmbito nacional, o Plano Diretor de Vigilância Sanitária (PDVISA), aprovado, em 2007, pelo Conselho Nacional de Saúde, estabelece um conjunto de ações de responsabilidade dos municípios para a concretização do processo de descentralização das ações de Visa, com ênfase na regulação 168

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artigos

do risco. Além do mais, o Pacto de Gestão do SUS e a Portaria 1.998/2007, que estabelece o teto financeiro para suas ações, requerem das Visas municipais capacidade estrutural para desenvolver o controle do risco sanitário, sendo necessária autonomia administrativa e técnica por parte de seus profissionais, inclusive, para a elaboração dos Planos de Ação, articuladamente com as vigilâncias federal e estadual (Brasil, 2007a, 2007b). Para fazer frente aos desafios atuais, as Visas municipais necessitam aperfeiçoar a organização dos seus serviços, definindo um modelo de gestão e de atenção que favoreça a reorganização das práticas de saúde e uma política de recursos humanos que vá ao encontro das especificidades do campo. Esse estudo teve como objetivo analisar a situação dos recursos humanos da vigilância sanitária de Salvador (VISA), capital da Bahia, Brasil, baseando-se no Enfoque por Problemas, do Planejamento Estratégico Situacional (Matus, 1996). Buscou identificar e descrever problemas e determinantes, segundo a perspectiva dos atores envolvidos nas ações de Visa, com base em categorias previamente definidas e consideradas relevantes para o desenvolvimento dos RHs. Analisou os problemas identificados, à luz do preconizado para uma política de recursos humanos que favoreça o desenvolvimento do campo da vigilância sanitária, conforme encontrado na literatura e nas normas para o processo de descentralização das ações de Visa, em vigor à época do estudo.

Metodologia A investigação adotou como estratégia metodológica o estudo de caso, descritivo e exploratório e, como objeto, a situação dos recursos humanos da VISA, nas categorias: quantitativo de profissionais e multiprofissionalidade; relação entre nível superior e nível médio, representados pelo técnico em Visa e o apoio administrativo; vínculo e jornada, considerando o vínculo como sendo único ou não, já que todos os profissionais eram estatutários; motivação para o trabalho; capacitação, para as ações básicas e de média complexidade; distribuição dentro do sistema, em relação ao nível central (NC) da Secretaria Municipal de Saúde e os distritos sanitários (DSs); autonomia decisória; salários e estabelecimento de Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS); ética no serviço e utilização do potencial do saber dos técnicos pelo serviço. Utilizou-se, como fontes de evidências, entrevistas semiestruturadas individuais, complementadas com grupos-focais, com gestores e técnicos da VISA. Elaborou-se um roteiro com perguntas predefinidas para cada categoria analisada (Laville; Dionne, 1999; Minayo, 1992). Inicialmente, realizou-se o levantamento dos dirigentes, técnicos e trabalhadores do nível central da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e dos doze distritos sanitários que compõem o SUS municipal. O levantamento foi feito a partir da solicitação à VISA, pelos autores, de uma listagem de profissionais, fornecida mediante autorização da Coordenação de Saúde Ambiental (COSAM), órgão ao qual a VISA está subordinada no organograma da SMS. Nesta listagem constavam o cargo ou função, lotação, carga horária e formação dos atores. A seguir, selecionaram-se os informantes-chave. Estes tiveram como critério de seleção, o posto de trabalho ocupado na estrutura organizacional do SUS municipal, focalizando, especificamente, os cargos ocupados na área de VISA, entre técnicos e gestores. Revisou-se o organograma da SMS, destacando-se a linha hierárquica que conecta a direção superior (Gabinete do Secretário) à COSAM e à subcoordenação de VISA, no nível central, bem como suas chefias nos distritos sanitários que já estruturaram suas ações. No nível central, foram realizadas entrevistas individuais com três gestores (coordenação da COSAM, subcoordenação de VISA e subcoordenação de vigilância ambiental) e um técnico. No nível distrital, realizaram-se oito entrevistas, que corresponderam aos oito DSs que tinham equipes de VISA. Destas oito, duas foram com grupo focal, composto pela equipe do próprio distrito, formada por seis profissionais cada uma. O objetivo de inclusão dos grupos focais foi o de complementação de informações sobre o conhecimento dos profissionais de VISA acerca das categorias analisadas, estimulando as diferentes opiniões e relevâncias entre técnicos e gestores (Minayo, 1992). Os grupos foram escolhidos de forma aleatória. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A realização das entrevistas aconteceu no local de trabalho dos entrevistados, com duração de cerca de uma hora e meia cada, por 12 dias consecutivos. As entrevistas foram gravadas em um gravador digital, ouvidas e copiadas em computador e em CD-Rom antes do encaminhamento ao processo de transcrição, que foi “terceirizado”. Todo o trabalho de transcrição foi revisado por um dos autores, a fim de garantir que as entrevistas representassem o máximo de fidedignidade às falas dos atores, ou ao que queriam exprimir, quando demoravam para responder, riam ou demonstravam algum tipo de sentimento que pudesse ser revelador de um aprofundamento, no momento posterior, de interpretação das falas (Minayo, 1992). Esta técnica mostrou-se bastante pertinente ao processo. A análise situacional das informações coletadas tomou, como ponto de partida, a identificação e classificação dos problemas apontados pelos atores, por meio da análise de conteúdo das transcrições das entrevistas realizadas. As falas dos atores foram selecionadas e arquivadas, em meio magnético, com cores diferentes para problemas e determinantes, em cada categoria estudada. Construiu-se, desta forma, uma matriz denominada “Identificação dos Problemas” e uma outra, denominada “Descrição dos Problemas”, onde esses problemas e seus determinantes “ganharam um nome” - esta última etapa consistindo no trabalho de interpretação das falas. A seguir, sistematizou-se a situação atual dos RHs do Sistema Municipal de VISA (SMVISA) em Salvador, especificando confluências e divergências na visão dos distintos atores. As entrevistas são descritas neste artigo com a letra E, seguida do número correspondente à ordem em que foram realizadas. O projeto de investigação foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) - Registro: 019-06/CEP-ISC - para que fosse analisado em relação ao cumprimento dos requisitos éticos necessários para a realização de pesquisa, envolvendo seres humanos (Brasil, 1996). Não houve conflitos de interesse para a realização desta pesquisa.

Resultados e discussão Os atores identificam os problemas de RH do sistema de VISA e seus determinantes Com relação ao quantitativo de profissionais e à multiprofissionalidade, os atores relataram que havia carência de profissionais, especialmente em distritos distantes do centro da cidade. Problema que se tornava maior devido à extensão territorial de Salvador e às demandas geradas pela gestão plena do sistema, assumidas em 2005. Do ponto de vista qualitativo, havia carência, sobretudo, de enfermeiros, engenheiros, arquitetos, advogados e de pessoal de nível médio: Nós não temos nenhum profissional de nível médio, de apoio... nós não temos quem digite um oficio... quem organize um processo, nada! Toda a parte administrativa somos nós, técnicos, que fazemos! [...] O distrito ele tem... 42 km, 117 mil habitantes... com uma oferta de serviços muito grande... muitas lanchonetes, muito estabelecimento comercial, então é muito populoso! (E1 DS, E8 DS)

Na tentativa de suprir essa insuficiência, a SMS fez a admissão de enfermeiros, nutricionistas e biólogos, como aproveitamento de concurso anterior; no entanto, esses profissionais estavam atuando sem treinamento e sem investidura no cargo de fiscal, gerando conflitos internos. Um ator revelou que o salário era pouco atrativo para determinadas profissões, como médicos e enfermeiros, que tradicionalmente têm uma melhor condição salarial na área da saúde. Os RHs tornavam-se mais insuficientes em períodos de férias e afastamentos: Aí eu questiono, mas como é que você tá numa equipe que tem um fiscal de controle sanitário, que tem uma especificidade, é um profissional de vigilância sanitária e entra um outro que é técnico, que vai trabalhar na mesma equipe com um salário menor, sem poder de polícia e trabalhando paralelo numa situação que foi antigamente definida como ilegal, que agora passou a ser legalizada? (E10 NC) 170

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Segundo os atores, estes problemas tinham como determinantes a falta de incentivo para trabalhar em distritos distantes da residência dos técnicos e a indefinição de um organograma que promovesse o incentivo ao técnico no distrito, inclusive com novas definições de cargos, o que podia ser reflexo da falta de critérios para definir o quantitativo dos RHs para o sistema. Segundo um dos atores, a norma vigente à época (CIB/BA 120) não levava em conta as especificidades dos municípios. Além disto, ela definia o número mínimo de profissionais, e cada município tinha de fazer adequações em relação à sua realidade, considerando os riscos sanitários envolvidos. Com relação a Salvador, a própria restrição do espaço físico era fator limitante ao quantitativo, pela inadequação das acomodações. Havia, ainda, falta de autonomia do gestor do distrito para resolver essa questão e falta de concurso para a VISA, especialmente neste momento de nova habilitação: Lá tem... uma restrição de espaço físico como um todo, e tem também essa dificuldade de tá conseguindo mais pessoal pra trabalhar... é difícil... já foi reivindicado, já foi solicitado, mas até hoje não aconteceu. A gente não tem mais onde colocar pessoas lá dentro. (E7 DS)

Analisando a proporção entre profissionais de nível universitário e nível médio, observou-se que todo o quadro de fiscais era de nível superior, ou seja, havia ausência de técnicos de nível médio em Visa, ou profissional de nível médio que atuasse no campo da Visa, a exemplo de técnico em radiologia, enfermagem, construção civil ou auxiliar de laboratório. Havia ausência de pessoal de apoio administrativo em alguns DSs e carência no nível central e distritos, com desvio de técnicos de nível superior para atuar como apoio administrativo: Muitos colegas nossos trabalham em funções que na verdade não necessitaria ser nível superior... Eu acho que esse apoio devia ser feito por nível médio. O pessoal de nível superior, que está lá dentro fazendo isso,... Atendem ao público, no balcão... um trabalho que poderia ser feito por nível médio, porque não existe nenhum. (E5 DS)

Nas festas populares - comuns em Salvador durante todo o ano, a exemplo do carnaval e “festas de largo”, como Festa da Conceição da Praia, Bonfim, Yemanjá, entre outras - contratavam, temporariamente, pessoas de nível médio sem qualificação/vínculo para atuar no serviço. Este fato é relevante, porque, além de esses profissionais não estarem qualificados para a função de inspeção sanitária, não podiam lavrar autos de infração ou imposição de penalidade, contribuindo pouco em um momento onde a fiscalização sanitária se torna relevante, não só pelo contingente de pessoas que participam dessas festas, como pelo aumento de riscos envolvidos, especialmente em relação aos alimentos comercializados naqueles momentos: Só que essas pessoas não são capacitadas, entendeu?... Muitas, não têm o perfil, atuando nessas festas. São pessoas que vêm às vezes de setores que não tem muito vínculo... e não têm muito a oferecer, não têm muito a contribuir. (E7 DS).

Além da falta de concurso para nível superior em áreas específicas, a VISA não realizou concurso para nível médio com formação em vigilância sanitária, até pelas limitações do Plano de Cargos, Carreiras e Salários. Um ator relatou que houve uma priorização, da gestão anterior, em aumentar o quadro de nível superior da Prefeitura, não levando em conta as especificidades da VISA. Não se buscou, também, a cooperação técnica com instituições acadêmicas para capacitação de pessoal, o que podia ser reflexo da pouca capacidade de articulação, dos gestores locais, em buscar e propor parcerias, e indefinição de prioridades dos níveis estadual e federal, como, por exemplo, a definição de estratégias dos Centros Colaboradores em Vigilância Sanitária (CECOVISAs) para a qualificação de profissionais: O ideal, primeiro, era você garantir que eu pudesse ter um concurso pra nível médio, para ser técnico, “auxiliar de vigilância sanitária”... Tem uma comissão que está estudando a possibilidade do concurso, é algo que a gente pode tá encaminhando, essa necessidade. (E11 NC)

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Com relação ao vínculo e jornada de trabalho, os dados revelaram que, apesar de ter um quadro de nível superior com 100% dos profissionais concursados, a carga horária de trinta horas para técnicos e quarenta horas para chefias era considerada insuficiente, porque havia descumprimento, como consequência dos baixos salários. A maioria dos profissionais considerava a VISA “um bico”. Havia duplos vínculos, inclusive, com profissionais atuando como Responsável Técnico - profissional que responde pela implementação de processos que se destinem à qualidade de produtos e serviços, segundo o preconizado tecnicamente - para o setor regulado. Um DS revelou não ver problema neste fato, o que pode refletir um desconhecimento da especificidade do campo da Visa por parte do ator, desconhecimento este que, talvez, se deva pelo fato de o mesmo não ser profissional da VISA, e sim da vigilância epidemiológica local. Fato que pode ser revelador de falta de critérios para assumir cargos de chefia e coordenação na VISA: Todo mundo tem duplo vínculo, eu não consigo imaginar como é que a coordenação pode ter duplo vínculo! Como o coordenador pode exigir que o técnico tenha dedicação exclusiva, se ele não tem dedicação exclusiva, o coordenador tem que estar ali presente! (E10 NC)

Os profissionais tinham outros vínculos, como consequência dos baixos salários, e o não cumprimento da carga horária devia-se ao fato de priorizarem esses outros vínculos. Questões subjetivas relacionadas à complexidade das relações de trabalho na VISA foram relacionadas a esse problema. Havia, inclusive, dificuldade para capacitar o quadro em consequência da carga horária comprometida: Porque acaba que esse trabalhador, ele tenha que ter outro vínculo com outra instituição, pública ou privada, o que dificulta, inclusive, capacitações ou um tempo melhor, uma definição da sua carga horária, por exemplo: integral, dos cinco dias, das seis horas, conforme tá preconizado no seu contrato de trabalho e no seu edital de concurso. (E11 NC)

As dificuldades da VISA em se fazer ouvir por outros setores da Prefeitura – a exemplo da Secretaria de Administração, que elaborou o PCCS, não contemplando as 40 horas para os profissionais – podiam refletir a falta de autonomia e capacidade de negociação da mesma dentro da Prefeitura. Com relação à motivação, um aspecto subjetivo da gestão, os dados revelaram que esta não era estimulada pela instituição, apesar de haver uma motivação interna pelo fato de os profissionais gostarem do campo em que atuavam. Segundo os atores, esta motivação não encontrava ressonância, sendo considerada pior no nível central: As pessoas não são valorizadas, não são ouvidas, e se você não ouve as pessoas, não tem como você valorizar... então, não se sentem parte integrante do sistema. Se sentem um pedaço. Eu acho que isso desmotiva muito! Eu não sinto uma equipe de vigilância no nível central! Existem pessoas trabalhando no mesmo local, saindo, fazendo coisas como se fossem totalmente distintas. (E10 NC)

A desmotivação foi relacionada à falta de infraestrutura para trabalhar e atropelos da demanda espontânea, onde o trabalho não era sistematizado, planejado e com resolutividade. Questões mais abrangentes e complexas, como o histórico descompromisso do servidor público, falta de cobrança de responsabilidades e metas e os baixos salários, foram relatadas. Chamou a atenção o não esclarecimento, por parte da gestão, a respeito dos incentivos financeiros para as ações de média complexidade e previstos pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária: [...] porque a gente, por exemplo, volta num lugar, tenta fazer um trabalho...retorna dois anos depois!... é difícil trabalhar quando você não tem uma infra-estrutura correta entende?... Na realidade é difícil a gente trabalhar a partir do momento que não se tem um planejamento do que se vai fazer, de como se fazer, a finalidade, o objetivo, daquele trabalho. (E5 DS)

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Também foram relatadas: a falta de comunicação interna e a falta de autonomia dos técnicos, como inerentes às limitações da própria gestão, a exemplo da falta da presença da subcoordenação, pelas questões relacionadas à carga horária, ocasionando a falta de reuniões e socialização dos trabalhos. Os atores consideravam que os gestores da VISA não estavam suficientemente presentes para a condução do quadro de profissionais, no sentido de estimularem o trabalho em equipe, coordenarem atividades, ouvirem as propostas de ação, promoverem o planejamento participativo: Acho que o principal problema tem sido agora a comunicação, ninguém tá sendo ouvido, as coisas estão acontecendo assim, as informações não são perpassadas... Eu acho que você chega num trabalho pra coordenar uma equipe, o mínimo que você pode chegar é ouvir as pessoas e se apresentar, dizer quem é você. (E10 NC)

Ao serem abordados sobre a capacitação, os atores consideraram que a qualificação para atuar sempre foi assistemática. Dois atores consideraram que não houve treinamento para as ações básicas e classificaram o de média complexidade como sem aprofundamento, sem espaço para discussões e carente de avaliação: Nós já sabemos que a capacitação é insuficiente! A de baixa complexidade ainda foi pior do que a de média complexidade, porque não houve capacitação nenhuma! Nós saíamos na rua, quem quisesse que pegasse a legislação para saber como você poderia cobrar... Não é só capacitar, é realmente ver... avaliar a capacitação... Porque é a credibilidade da gente que está em jogo! (E3 DS)

O fato de alguns atores considerarem que não houve capacitação para as ações básicas e outros considerarem que foi pontual, talvez se devesse ao fato de que esses treinamentos nunca contemplaram toda a rede, como foi revelado posteriormente. Havia, também, falta de treinamento para os profissionais de apoio administrativo: Eu vejo que os profissionais - de apoio administrativo - que chegam aqui estão totalmente despreparados no que eles devem fazer, na competência deles... As pessoas não passam o trabalho que tem que ser feito, do requerimento, de licença inicial, renovação de alvará, liberação de alvará... Chega uma hora que o agente administrativo fica perdido, sem ter função aqui. (E3 DS)

Os atores não se consideraram capacitados para assumir as ações de média complexidade, que já começavam a ser repassadas pelo Estado, porque tanto a esfera federal, quanto a estadual, não estavam cumprindo o que é determinado em lei, qual seja, a capacitação, supervisão e acompanhamento para ações de maior densidade tecnológica, e consideravam que, devido ao fato de Salvador ser um município de grande porte e um município Polo, deveria ser tratado de forma diferenciada ao assumir a gestão plena do sistema. Consideravam, portanto, que não estava sendo dado a Salvador um tratamento à altura de sua complexidade: Se você for olhar as competências da ANVISA, da DIVISA, que agora teriam que assessorar, supervisionar e treinar a gente... os treinamentos, que estão sendo passados para a gente, são muito pequenos para dar competência para a gente exercer essas ações! O tratamento tem que ser especial pra Salvador... [...] Nós não nos sentimos seguros, capacitados totalmente, pra fazer média e alta complexidade! (E3 DS, E5 DS)

Houve falta de planejamento para as capacitações e falta de definição de equipes específicas para cada objeto da Visa. Essa é uma questão considerada importante, pois o conhecimento para as ações especiais requer do serviço uma setorização e especialização dos saberes e práticas por parte da equipe, ou seja, equipes específicas por área de atuação, o que não ocorria na VISA de Salvador, nem mesmo com a nova habilitação do município:

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“O cara não consegue, o profissional não consegue absorver todas as informações, então, essa coisa tem que ser passada com um pouco mais de calma, porque você tá passando pra um público genérico e ele tem que absorver essa informação” (E9 NC).

Segundo os atores, a equipe designada pelo Estado para dar as primeiras capacitações não estava preparada, pois os mesmos trabalhavam em outras áreas que não a do objeto de qualificação. Relacionouse, também, a dificuldade em promover as capacitações, por causa dos duplos vínculos dos técnicos. Os atores relataram má distribuição dos RHs dentro do sistema da VISA, tanto de nível médio administrativo, quanto de nível superior, especialmente, considerando as especificidades dos distritos. Com relação à distribuição por turno, um ator demonstrou indignação com o fato de o serviço aceitar que os profissionais trabalhassem no turno da noite, só porque tinham outros vínculos durante o dia e seria mais pertinente, do ponto de vista pessoal, em detrimento das necessidades do serviço: “Tem áreas mais complicadas... que tem maior concentração, vamos dizer, do serviço de saúde.... E que o Subúrbio tem uma equipe reduzidíssima lá, quando é uma área bem grande. Então eu acho que essa distribuição tá insuficiente. Não atende” (E4 DS).

A má distribuição no sistema se devia a fatores variados: falta da definição do organograma da VISA; falta de planejamento, considerando as especificidades dos distritos; falta de definição do papel do nível central; atrasos na descentralização; falta de critérios para distribuição dos horários, que seguiam, muitas vezes, o interesse próprio, em detrimento do interesse do serviço; resistência dos técnicos em irem para locais distantes, que, por sua vez, estava relacionada à falta de incentivos para o trabalho em periferia, um problema geral da secretaria, segundo um ator social: Existe uma má distribuição dos recursos humanos! Não só em quantidade, mas também a distribuição do organograma. [...] Eu acho que não tem planejamento! Porque aqui... é o distrito que tem o maior contingente de clínicas, consultórios e estabelecimentos de saúde, e na equipe que foi designada pra aqui não tinha enfermeiro! [...] Existe uma resistência por parte dos profissionais de trabalharem no Subúrbio. É a distância, a realidade do próprio distrito.... É geral, o problema é crônico e tem que ser olhado com um outro olhar pra o Subúrbio Ferroviário. (E1 DS, E5 DS, E12 NC)

No quesito autonomia - considerando-a como liberdade que os atores têm de agir, escolher, decidir e propor ações no serviço - esta foi considerada insuficiente, tornando-se mais evidente no nível central. Os distritos estavam sempre condicionados às demandas do nível central havendo, portanto, uma centralização decisória: A gente não tem... pra definir prioridades... Muitas vezes a gente toma uma determinada atitude... - e é desautorizado em outra instância! [colega acrescenta]... e depois em outra instância, as coisas se modificam! Mas naquele momento que a gente está ali, a gente tem autonomia. Mas o que acontece posteriormente, isso foge da nossa alçada! (E5 DS)

A insuficiente autonomia devia-se aos atropelos da demanda espontânea; à falta de comunicação interna e à descontinuidade administrativa, que não dava prosseguimento a projetos executados pelos atores nas diversas áreas da vigilância, como hotéis, estabelecimentos de alimentos e outros, e que davam uma boa resolutividade às ações: Na hora de planejar nós não participamos! A gente tem que aceitar! Então, não está certo, eu acho que a insatisfação vem daí. [...] Por que eu não posso pensar, ouvir as pessoas que têm maior experiência naquele assunto, ouvir e ver a proposta que elas têm para aquilo? E dar a elas a oportunidade de fazer aquilo? (E5 NC, E10 NC)

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Havia, na VISA, uma centralização do processo decisório, uma dimensão que não foi aprofundada neste trabalho, mas que apareceu nas entrevistas. Havia, também, falta de autonomia decisória das chefias do nível central e falta de capacidade em gestão: Há uma centralização de poder. As chefias, elas não têm autonomia decisória. Elas podem ter autonomia pra organizar, mas pra decidir elas não têm... Falta capacidade de gestão mesmo, não são gestores... E ainda tem uma coisa aqui, ainda tem isso: aqui tem um poder muito concentrado, você tem medo de abrir mão do poder... É como se o serviço público fosse seu:... “agora eu tô aqui, é minha vigilância sanitária, é minha imagem”. (E10 NC)

Os salários foram considerados baixos, segundo um dos atores, até mesmo vergonhosos, especialmente, observando-se o nível educacional dos profissionais, muitos com pós-graduação. Existia, também, falta de isonomia salarial entre colegas na mesma função e do mesmo ano de ingresso. Mesmo considerando um aumento concedido na gestão atual, havia, ainda, uma defasagem muito grande em decorrência do período político anterior e, sobretudo, com as demandas da gestão plena: Nós não temos isonomia: isto é um absurdo: dentro de um concurso, que a gente fez na mesma época, quem entrou até tal dia e foi chamado, até tal dia, tem um salário. [...] Não, o salário não tem melhorado para as ações, as responsabilidades que a gente vai ter de um determinado tipo de ação! Se você chegar num laboratório, onde você tem que fazer toda uma auditoria de qualidade, um monitoramento externo e interno... (E1 DS, E3 DS)

Um ator pontuou que a questão salarial era uma questão relacionada à política de RH da Prefeitura, mesmo com o repasse das ações de média complexidade pelo sistema de Visa, pois esse dinheiro seria para a melhoria da estrutura física e material da VISA, e não para melhoria das condições dos trabalhadores - o que demonstra o desconhecimento do gestor com relação à norma do Sistema Nacional de Visa, especialmente a Portaria 2.473/2003, que enfatizava o desenvolvimento de recursos humanos, além da descentralização e uma política de financiamento que tivesse como objetivo diminuir a escassez de recursos nessa área. No entanto, a VISA não tinha autonomia para estabelecer critérios para o desenvolvimento de seus recursos humanos, estando sujeita aos critérios da gestão municipal, que, muitas vezes, desconhecia o marco normativo do sistema de Visa para o processo de descentralização de suas ações: Há um dinheiro novo para eu fazer as ações de média complexidade, a vigilância sanitária vai receber os recursos por essas ações, mas esse recurso, ele não é pra pagar pessoal, ele é para implementar as melhorias do setor. Então, a melhoria salarial ainda é uma discussão da secretaria como um todo, eu não posso particularizar. (E11 NC)

No que diz respeito aos salários e PCCS, os profissionais passaram um longo período sem receber aumento na gestão anterior, que foi de 1997 ao final de 2004. A própria falta de visibilidade da VISA era causa desse quadro, por não reivindicar gratificações concedidas a outros setores da Prefeitura, que trabalhavam em funções consideradas de risco, por falta de capacidade de negociação. Existia, também, falta de critérios para definição de cargos de coordenação, subcoordenação e chefias, e limitação da secretaria, em dar conta das especificidades da VISA, com relação ao PCCS: Nós passamos oito anos sem receber nenhum tipo de incentivo, de aumento ... algumas coisas muito insignificantes!. [...] Muitas vezes, a gente utiliza um cargo por questões de amizade, por questões políticas, por questões de que a pessoa acha/ gostaria de ter uma pessoa trabalhando junto com ela... Mas a pessoa não tem competência para estar ali! (E1 DS, E3 DS)

Como determinantes desta categoria, houve um desconhecimento, pela maioria dos profissionais, das discussões em torno da consulta pública relativa ao PCCS. A gestão iniciada em 2005 elaborou um Plano de Carreiras, Cargos e Salários para todos os servidores e colocou em consulta pública. Seria de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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se esperar que os profissionais de Visa, tendo em vista as especificidades do seu campo de atuação, contribuíssem com adequações. Entretanto, foi relatado o não acompanhamento, pelos atores, do processo de discussão. Um ator relatou ter observado a não inclusão de algumas categorias, como, por exemplo, engenharias, no PCCS. Esse fato pode ser revelador, por um lado, de um desconhecimento, por parte do órgão da prefeitura responsável pela implementação do Plano, das especificidades do campo da Visa, considerando sua multiprofissionalidade, e por outro, de uma desmobilização dos atores, apesar de considerarem os salários muito baixos: “O de cargos e salários eu desconheço... nem houve discussão! Assim, pelo menos que a gente tenha sido convidado a participar! [...] Bem, eu devo confessar que não acessei o Plano de Cargos e Salários, né, li assim só o esboço, mas não acessei, então não posso...” (E1 NC, E8 DS).

Quanto ao aspecto ético, as opiniões não foram unânimes. Um ator revelou não conhecer comportamentos antiéticos entre os fiscais; dois consideraram o corpo de técnicos bom, do ponto de vista ético; um ator deu uma resposta vaga e um outro considerou só o seu distrito e revelou que lá eles procuravam agir com ética. Entretanto, sete atores relataram problemas éticos, a exemplo de condutas com o setor regulado, como profissionais da VISA atuando como Responsável Técnico e criando conflitos internos; postura arrogante por parte de alguns técnicos; abdicação do poder de polícia em situações onde se fazia necessário, a exemplo da interdição de estabelecimento. Um ator revelou que o próprio conceito de ética não era apreendido pelos fiscais; outro disse que o que mais via como antiéticas eram condutas referentes à insatisfação dos técnicos, não reveladas de forma transparente e que acabavam gerando comentários maldosos. Isto pode demonstrar que as questões relativas a essa dimensão da Visa devem ser mais bem analisadas, pois que a sua ação é essencialmente ética, pela sua natureza de promoção e proteção da saúde: “Eu fui fazer inspeção e o colega era Responsável Técnico pelo estabelecimento e ai eu encontrei ele lá e ele começou a questionar a minha ação... não como fiscal, mas como defensor do estabelecimento... defendendo o interesse do proprietário!” (E10 NC).

Como determinantes da dimensão ética, só foram apontadas pelos atores a falta de um código de comportamentos e a própria insatisfação dos trabalhadores. Se considerarmos os problemas relativos às dimensões subjetivas, como capacidade de motivação da equipe e a histórica precarização do trabalho em saúde, poderemos dizer que, talvez, essa seja a grande causa de comportamentos antiéticos e da necessidade de se trabalhar melhor essa dimensão, inclusive, estabelecendo um código de ética para o serviço, a exemplo dos códigos profissionais: Eu acho que não há ética pelo seguinte: as pessoas estão insatisfeitas, as pessoas não querem falar o que pensam e ficam falando por trás!... Você está gerando não só a falta de ética, como a fofoca e outros problemas mais: discórdia, conflitos internos, que é o principal para você trabalhar direito. (E3 DS)

O potencial do quadro de técnicos foi considerado subestimado por todos os entrevistados: técnicos com bom potencial e má utilização desse potencial. Os atores consideraram que poderiam ser mais produtivos. Havia, segundo os atores, um trabalho de rotina que sufocava: Tem pessoas com uma boa qualificação, porém com aquele trabalho de rotina que realmente sufoca, e que, pelo mau planejamento, a gente não consegue aproveitar essas características, essas qualidades desses profissionais [...] É subestimado, acho que tudo isso passa pela questão do planejamento, da comunicação. (E7 DS, E10 NC)

O subaproveitamento do potencial foi apontado, com unanimidade, como tendo as seguintes causas: baixos salários e falta de critério para gratificações; falta de condições estruturais de trabalho; falta de 176

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visibilidade da Visa enquanto ação de saúde e falta de valorização do trabalhador da VISA; indefinição de equipes especializadas para as ações de média complexidade; falta de planejamento e comunicação interna; dificuldades inerentes à máquina administrativa e as ingerências político-administrativas da Prefeitura, além da falta de modernização administrativa, que redundava em ineficiência: Acaba voltando para aquela questão que eu te falei, da valorização, do reconhecimento, da própria visibilidade, saber quanto é importante a vigilância sanitária. [...] Aí vem a máquina administrativa: eu preciso de móveis, eu preciso de computador e que a secretaria... tá num momento muito difícil e a Prefeitura como um todo... você caminha dez passos, aí volta cinco passos. (E4 DS E12 NC)

Considerações finais Este estudo procurou demonstrar a situação dos profissionais de vigilância sanitária de uma grande capital brasileira, à luz do marco normativo do sistema de Visa, vigente à época da pesquisa, bem como dos estudos relacionados ao seu campo e constatou profundas fragilidades nas categorias analisadas. Este fato é preocupante, porque os recursos humanos são considerados ponto crítico das organizações prestadoras de serviço (De Seta, Lima, 2006) e, no caso da vigilância sanitária, a complexidade de suas ações e a variedade de seus objetos requerem profissionais com variadas formações e qualificação para atuar. Somado a este fato, não há formação específica para atuar em Visa e há, ainda, pouca visibilidade da mesma enquanto ação de saúde (Costa, 2004; Souza, 2002; Costa; Souto, 2001). Saliente-se que, apesar de suas ações serem consideradas as mais antigas no campo da saúde pública, os estudos na área de Visa são, ainda, escassos (Costa, 2004). Entretanto, têm revelado fragilidades na estruturação das Visas municipais e na coordenação do sistema (De Seta, 2007). Fragilidades que vêm se traduzindo em problemas referentes à infraestrutura, gestão e organização e têm revelado profundas dificuldades técnico-operacionais para o desenvolvimento das ações de Visa, indicando: limites ao processo de descentralização; desarticulação com o nível regional; interferência política e a necessidade de os gestores municipais buscarem parcerias com o órgão estadual (Leal, 2007; Garibotti et al., 2006; Cohen et al., 2004; Juliano, Assis, 2004). Importante considerar que recurso humano em saúde “é gente que cuida de gente” e, para a vigilância sanitária, é gente que cuida das necessidades das pessoas expressas no consumo de produtos, serviços e na qualidade dos ambientes, incluindo os ambientes de trabalho, para que atendam aos requisitos exigidos pela norma sanitária. É gente, portanto, que cuida da qualidade de vida das pessoas. No que concerne aos profissionais da VISA, este estudo, ao encontrar fragilidades em todas as categorias analisadas, pode ser revelador da ausência de uma política e gestão de RH que conheça as especificidades do trabalho da VISA, tanto pelo sistema de Visa, quanto dentro da SMS, além do desconhecimento da importância da vigilância sanitária enquanto ação de saúde, responsável por ações de promoção e proteção da saúde (Almeida-Filho, 2000). Dentre os problemas encontrados, chama a atenção a indefinição do organograma e também a ausência de um núcleo de RH no organograma da VISA que dê conta de sua complexidade atual. Destaca-se, ademais, a pouca visibilidade da mesma e a baixa capacidade de vocalização de seus atores na SMS, onde a área limita-se a uma subcoordenação, o que lhe confere pouco poder. Saliente-se, também, o fato de os RHs serem quantitativa e qualitativamente insuficientes, destacando-se tanto a insuficiência de pessoal de apoio administrativo, quanto a insuficiência de pessoal de nível médio capacitado em Visa, tão necessário às atividades. Além do que, a distribuição desses recursos vem se dando de forma irregular, sem um planejamento adequado, haja vista a carência de profissionais em alguns distritos, inclusive a ausência de pessoal de apoio administrativo em alguns, enquanto, em outros, há mais de um. Neste sentido os resultados deste trabalho complementam o encontrado na revisão de literatura, o que aponta para a necessidade de a coordenação do sistema de Visa - representada pelos níveis estadual e federal do sistema -, estabelecer critérios mais apropriados ao desenvolvimento destes RHs, tão necessários às ações de promoção e proteção da saúde da população. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Análise de situação dos recursos humanos...

Agradecimentos Agradecemos à Profª Ediná Costa, coordenadora do Centro Colaborador em Vigilância Sanitária ISC/ANVISA, pelo apoio; ao Prof° Handerson Leite (IFBA), pelas sugestões na elaboração deste artigo, e ao Prof° Luís Eugênio Portela Fernandes de Souza (ISC/UFBA), Secretário de Saúde de Salvador à época da realização deste estudo, pela facilidade proporcionada para a realização desta pesquisa. Colaboradores A autora Cristian Leal contribuiu na coleta, sistematização e análise de dados. Com relação à redação do texto do artigo, houve igual participação de ambas as autoras.

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LEAL, C.O.B.S.; TEIXEIRA, C.F.T.

artigos

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Palabras clave: Análisis situacional. Recursos humanos. Vigilancia sanitaria. Planeamiento y gestión. descentralización. Recebido em 05/06/2008. Aprovado em 01/02/2009.

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artigos

A consagração científica em números: análise do perfil de uma vanguarda pelos currículos Lattes

Miguel Ângelo Montagner1 Maria Inez Montagner2 Eduardo Luiz Hoehne3

MONTAGNER, M.A.; MONTAGNER, M.I.; HOEHNE, E.L. Scientific recognition in numbers: analysis of the profile of the vanguard from Lattes curricula vitae. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.181-95, jul./set. 2009.

The objective was to analyze the possibilities and limitations of quantitative study on an institution and its professionals, taking into account the Lattes curriculum vitae platform. Through exploring this material, we sought to delineate the profile of full professors within the Unicamp School of Medical Sciences and to characterize their scientific production, main activities and academic profile. Our methodology was quantitative. We outlined and analyzed the main characteristics of these professors presented in their curricula vitae that are held in the database of the Lattes platform, by means of descriptive statistics. Next, by means of qualitative analysis based on the theories of Pierre Bourdieu, we pointed out the difficulties in achieving good descriptions of researchers’ social and scientific paths from the Lattes platform. Thus, the Lattes system consists of a repository of finished scientific actions, comprising a linear and non-historical succession within official science.

Keywords: Sociology of science. Habitus. Bourdieu. Scientific production. Health human resource training. Research personnel.

O objetivo foi o de analisar as possibilidades e os limites do estudo quantitativo de uma instituição e dos profissionais que nela atuam, tomando como objeto os currículos da Plataforma Lattes. Explorando esse material, procuramos delinear um quadro dos professores plenos da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, caracterizar sua produção científica, as principais atividades que exercem e seu perfil acadêmico. Nossa metodologia foi quantitativa. Desenhamos e analisamos, por meio de uma estatística descritiva, as principais características desses professores, presentes na base de dados da Plataforma Lattes que contém os seus currículos. Em seguida, por meio de uma análise qualitativa, baseada na teoria de Pierre Bourdieu, apontamos, como resultado, as dificuldades da Plataforma Lattes em bem descrever as trajetórias sociais e científicas dos pesquisadores, consistindo, assim, em um repositório de atos científicos acabados e que compõem uma sucessão a-histórica e linear da ciência oficial.

Palavras-chave: Sociologia da ciência. Habitus. Bourdieu. Produção científica. Capacitação de recursos humanos em saúde. Pesquisadores.

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Universidade de Brasília. SQN 214, Bloco E, apto 516. Asa Norte – Brasília, DF, Brasil. 70.873-050. montagner@unb.br 2 Doutoranda em Saúde Coletiva, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (DMPS/FCM/ Unicamp). 3 DMPS/FCM/Unicamp.

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A consagração científica em números:...

“No segundo ano após a saída dos filhos de Israel do Egito, no primeiro dia do segundo mês, falou o SENHOR a Moisés, no deserto de Sinai, na tenda da congregação, dizendo: Levantai o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, segundo as suas famílias, segundo a casa dos seus pais, contando todos os homens, nominalmente, cabeça por cabeça”. Números, 1:1-2.

Introdução Quando tomamos como objeto uma instituição específica, assumimos que, para melhor compreendermos o universo simbólico e o espaço social no qual se insere a Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), fazia-se mister objetivarmos os atos epistemológicos que consagraram esta instituição dentro do campo científico. Como parte da estratégia completa de um estudo de doutorado (Montagner, M.Â., 2007) e de uma dissertação de mestrado (Montagner, M.I., 2007) sobre a instituição, procuramos traduzir em dados sintéticos o conjunto de atos práticos que compõem o fazer científico do intelectual específico que atua nesta instituição. Ao mesmo tempo, analisamos criticamente as distorções e possíveis desvios acarretados pela concepção ‘produtivista’ do trabalho acadêmico. Complementamos essa análise quantitativa com outra qualitativa aprofundada, por meio do estudo das trajetórias sociais dos pesquisadores, da análise de suas biografias e a construção de uma biografia coletiva das vanguardas da instituição. Essa segunda será objeto de outra publicação, dada a extensão e complexidade do trabalho in toto (Montagner, M.Â., 2007). Nela, esperamos explorar com profundidade as relações de poder e as estratégias levadas a cabo pelos grupos em disputa dentro da instituição. Aqui procuramos limitar a análise no que ela se relaciona com os dados numéricos e os indicadores mais claramente quantificáveis, observando as possibilidades e limites desta abordagem. Cada vez mais, a Plataforma Lattes tem se tornado o alfa e o ômega da objetivação da produção científica dos intelectuais no Brasil, expondo suas atividades ‘relevantes’ e, sobretudo, sua produção bibliográfica. A par da Plataforma Carlos Chagas - ainda mais completa e representativa, uma vez que engloba as pesquisas coordenadas pelo cientista, os recursos que administra, os grupos que lidera e as atividades de coordenação -, a Plataforma Lattes constitui um instrumento de objetivação do capital científico de um pesquisador, pois nela parte de sua rede de contatos acadêmicos e seu capital simbólico estão presentes. Por meio deste conjunto, para o bem ou para o mal, avalia-se o “desempenho” de um pesquisador. O capital científico pode ser compreendido à luz da teoria da ciência de Pierre Bourdieu, utilizada como marco teórico central das pesquisas que geraram este trabalho. Na teoria bourdieusiana, campo é um constructo relacionado à constatação de que, nas sociedades modernas, sobretudo ocidentais, alguns espaços sociais diferenciaram-se em microcosmos relativamente autônomos, nos quais as regras, normas e modos de funcionamento são definidos pelos próprios agentes neles inseridos e que partilham de universos simbólicos diferenciados do restante da sociedade. Estes agentes aceitam esse universo como legítimo e lutam para impor sua própria visão sobre esse microcosmo (Bourdieu, Wacquant, 1992). Assim, o campo científico comporta um capital próprio, baseado na capacidade de gerar conhecimentos novos e significativos - que costumo chamar de potência epistemológica, uma capacidade pessoal de ‘atos epistemológicos” como os definia Bachelard, ato que contrasta e contrapõe-se aos “obstáculos epistemológicos”, e que “corresponde a esses empurrões do gênio científico que contribui com avanços inesperados no curso do desenvolvimento científico” (Bachelard, 1977, p.183). É por meio de sua acumulação que um intelectual constrói sua reputação e prestígio. A despeito do poder temporal que exerce sua força dentro do campo científico, os atos epistemológicos constituem o elemento central de valoração do trabalho intelectual, e neste caso, as práticas reconhecidas e valorizadas fazem parte de uma construção social que reconhece, em alguns tipos padronizados de procedimentos, os mais legítimos. Obviamente, grande parte do fazer científico - sobretudo aquela relegada aos bastidores institucionais, nos quais se resolve grande parte das estratégias e investimentos dos pesquisadores -, ficou de fora dos resultados ora apresentados; nem por isso esta objetivação perde sua importância.

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artigos

Objetivos Nossa pergunta central, baseada nesta releitura feita por Pierre Bourdieu do mundo científico, de acordo com os habitus que imperam no universo dos intelectuais e cientistas da FCM, é: quais práticas científicas oficiais são geradas de acordo com estes habitus e como elas são descritas na Plataforma Lattes? Essas atividades objetivadas nos currículos desta plataforma correspondem pari passu às atividades concretas e cotidianas dos pesquisadores/professores e representam de fato sua práxis? Assumimos que a ciência sempre foi uma atividade essencialmente prática, que supõe um habitus específico, chamado científico, e centramos nosso foco na práxis da ciência, nos produtos finais que são valorizados como os mais legítimos e representativos desta práxis. Pierre Bourdieu define este habitus como: O habitus científico é uma regra feita homem ou, melhor, um modus operandi científico que funciona em estado prático segundo as normas da ciência sem ter estas normas na sua origem: é esta espécie de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda a regra que permite gerar a conduta adequada. (Bourdieu, 1989, p.23)

Portadores deste habitus, os intelectuais geram ‘produtos’ que devem descrever suas atividades cotidianas e refletir como a ciência é realizada em seu campo científico. No nosso caso, estudamos aqueles atos descritos nos indicadores presentes nos currículos da Plataforma Lattes. Procuramos relacionar esses dados com os resultados gerais dos grupos internos da FCM, como um questionamento da forma como esse modelo produtivista influencia, para o bem ou para o mal, o estatuto coletivo de cada área de pesquisa.

Materiais e métodos Como metodologia de trabalho, Bourdieu sempre utilizou uma aproximação diversificada de seus objetos. Suas análises qualitativas estavam focadas na explicação das ações características de indivíduos de um determinado grupo, nas diferentes formas de que se revestiam as expressões dos habitus e no poder de diferenciação social (relacionais) desses estilos pessoais. Seus esforços quantitativos sempre buscaram romper com uma “sociologia espontânea”, de “senso comum” e muitas vezes de “senso comum científico”, e por meio dessa primeira ruptura, poder realizar uma sociologia relacional e inovadora (Bourdieu et al., 1968). Dentro desse marco teórico, utilizamos a metodologia quantitativa e nosso esforço girou sobre este eixo analítico. Desenhamos e analisamos, por meio de uma estatística descritiva, as principais características desses professores por intermédio dos currículos da Plataforma Lattes, como forma de objetivarmos indicadores da consagração científica e da práxis oficial dos intelectuais.

Fontes de informação Nossa principal fonte de dados foi o conjunto de currículos disponíveis na Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de preenchimento compulsório desde 2002 para todos os pesquisadores e de acesso público, e também, parcialmente, os dados globais dos anuários de pesquisa do SIPEX da Unicamp. O Currículo Lattes (Sistema CV - Lattes) é um dos produtos da Plataforma Lattes, composta de quatro sistemas. Trata-se de um Sistema Eletrônico de Currículos, no qual se registra a vida pregressa e atual dos pesquisadores, como elemento fundamental para a análise de seu mérito e competência. Nele existiam duzentos mil currículos atualizados (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 2008). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Esse currículo é moeda corrente quando o assunto é obter acesso aos dados formais dos pesquisadores para fins acadêmicos; é utilizado por estudantes, mestrandos, doutorandos, pesquisadores, professores, administradores e por todas as instituições no domínio do Ensino Superior. Suas informações são aplicadas internamente nas instituições - como: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), CNPq e outras - com o fito de seleção de candidatos a bolsa, auxílios, fomentos, projetos de pesquisa, consultores, membros de comitês e de grupos de assessoria, além de subsidiar dados mais gerais sobre/e para a pesquisa e a pós-graduação no Brasil. Como forma de complementar estes dados e apreender os indicadores da FCM como um todo, analisamos parcialmente outra base de dados, o SIPEX, Sistema de Informação de Pesquisa e Extensão, que é o responsável pelo fornecimento de dados quantitativos para subsidiar a gestão destas áreas na Unicamp. Elaborado em 1993, acompanhou a implantação do Projeto Qualidade da instituição e, desde então, é o responsável pela captação e elaboração da base de dados onde constam “relatórios de atividades dos docentes, dos órgãos da Unicamp e a produção do anuário de pesquisa institucional” (SIPEX, 2006). Estes dois conjuntos de documentos foram entendidos, de forma ainda hegemônica, como uma descrição dos atos concretos considerados, legítimos e simbolicamente legitimados pela comunidade científica. Nessa linha, a escolha oficial e legítima como parâmetro de análise da produção científica parece ser o modelo da própria Capes (Viacava, Ramos 1997), apesar do incremento de críticas e de contestações cada vez mais recorrentes.

Objeto da pesquisa A FCM é uma organização social inserida dentro do campo científico e uma instituição social. Desde os seus primórdios, a sociologia tem se ocupado do estudo das instituições: para Durkheim e sua escola, as “instituições são maneiras de sentir e pensar ‘cristalizadas’, quase constantes, socialmente coercitivas e distintivas de um grupo social dado” (Boudon, Bourricaud, 1993, p.301). Nesse sentido, instituição significa um tipo de ação, papel, interação ou organização que se tornou amplamente aceito e parece ser um padrão natural da sociedade. Neste estudo, ficamos com a definição mais formal de Durkheim, ligada ao arcabouço jurídico e formal da sociedade. No mundo acadêmico, escolhemos a pós-graduação. A ênfase na pós-graduação justifica-se, pois nesse espaço de formação definem-se os futuros produtores/reprodutores do conhecimento científico, sobretudo aqueles referentes à prática de pesquisa em si mesma e não somente à prática profissional. O conceito aqui é o de um “artesanato intelectual” – como propôs Mills (1969) –, ligado a uma tradição histórica e a um modus operandi específico a cada tipo de investigação, passado e ensinado na pós-graduação por meio do contato direto e contínuo entre professores e alunos. A pós-graduação é o lugar por excelência da produção e renovação do conhecimento. Dados da Capes comprovam essa afirmação: nos últimos três anos, o Brasil passou de produtor de 1,5% do conhecimento científico mundial em 2002 a 1,8% em 2005. Segundo a Capes, 85% da produção científica brasileira é oriunda da pós-graduação e, em 2003, a medicina superou a física na produção de artigos científicos (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, 2006). Os Programas de Pós-Graduação conformam o próprio modo de recrutamento, seleção, atração, legitimação científica, formação de grupos menores e centrados na figura de alguns grandes pesquisadores, em suma, na forma da reprodução do quadro da instituição e do campo científico. Do universo de 381 profissionais da pós-graduação stricto sensu da instituição (mestrado e doutorado), foram tomados como objeto os Professores Plenos – exclusos os professores visitantes e os participantes, totalizando duzentos e vinte. De acordo com a Resolução GR Nº 130/99, de 27/08/1999, define-se o professor pleno como “aquele que atua no programa de Pós-Graduação de modo consistente em todas as atividades, isto é, orientando, ministrando disciplinas e contribuindo com sua produção acadêmico-científica ao conceito do curso” (Conselho Universitário, 1999). Esse perfil, imposto pelo Projeto Qualidade, significou a vitória e a implementação do ponto de 184

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artigos

vista dos profissionais que privilegiavam a pesquisa e o do grupo que se dedicava essencialmente à atuação acadêmica. O grupo inicial de professores, muito ligado ao modelo do médico liberal, teve de fazer um esforço de adaptação ou optou pelo trabalho em regime parcial na instituição. Desses duzentos e vinte professores plenos, 21 eram da enfermagem, restando 199 da medicina. Foram excluídos aqueles catalogados em mais de um Programa de Pós-Graduação (total de 16), respeitando, assim, sua vinculação departamental de origem como a mais importante. No nosso caso, a exclusão dos professores da enfermagem deveu-se à opção metodológica por trabalhar com professores plenos, ligados especificamente à medicina, e que eram majoritários nos programas de pós-graduação - pois compreendemos que enfermagem e medicina são duas carreiras profissionais distintas, com deontologia própria e desenvolvimento histórico diferenciados, conforme estudos recentes, como o de Santos e Faria (2008), começam a esclarecer mais finamente. A própria história da criação da FCM passaria inicialmente pela instituição de uma Faculdade de Medicina e outra de Enfermagem, projeto que foi amalgamado dentro da constituição da Unicamp na criação de uma Faculdade de Ciências Médicas, responsável por ministrar tanto o curso de medicina quanto o de enfermagem (Faculdade de Ciências Médicas, 2008). Do total restante de 183 professores plenos em 2005, 175 possuíam Currículos Lattes, com uma perda de oito professores na análise quantitativa. Apesar de indesejada, essa perda correspondeu, em alguns casos, a uma transição entre plataformas (SIPEX-Lattes) dentro da Unicamp, preenchidas até então alternativamente, aliada ao não preenchimento puro e simples.

A FCM e a pesquisa no Brasil De acordo com Meis e Leta (1996), no período de 1981 a 1993, houve um crescimento nas pesquisas brasileiras, tanto em total de publicação como em participação no volume mundial da produção científica, apesar de apenas um terço de nossa produção estar presente em periódicos internacionais. Essa tendência de crescimento continuou e, no período que vai de 1993 a 2002, a porcentagem de artigos brasileiros na produção mundial passou de 0,75 a 1,55, o que coloca o Brasil como o 17o no ranking de artigos científicos indexados (Pivetta, 2004). Dados recentes confirmam uma posição privilegiada da região sudeste (Pereira, 2005): a Unicamp é responsável por 11% da produção científica nacional, atrás da USP, com 26%, e seguida pela UFRJ, com 9%. Elas são consideradas, por distintos critérios de natureza acadêmica, como as mais importantes universidades brasileiras.

Projeto Qualidade ou leito de Procusto A Capes tornou-se uma agência voltada para a avaliação a partir de 1976, quando criou um programa de avaliação dos cursos de pós-graduação, por meio de consultores externos aos programas. Esse processo permitiu uma melhora de todo o sistema, pois passou a existir um crivo para a criação de novos programas e um meio de avaliar os existentes (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, 2006). Isso significou a penetração, dentro das universidades, de um modelo de ciência voltado para a excelência acadêmica, oriundo da visão encampada pela Capes. Por meio do projeto PICDT, o Programa Institucional de Capacitação Docente e Técnica, a Capes financiou a qualificação do corpo docente e técnico de instituições de Ensino Superior públicas, pela concessão de cotas de bolsas para a realização de cursos de Mestrado e Doutorado junto a cursos de pós-graduação bem avaliados pela sua metodologia. Assim, por meio de um convênio firmado entre a Unicamp e a Capes, pôs-se em prática uma política de busca de excelência acadêmica, nomeada “Projeto Qualidade”. Este projeto de gestão, iniciado em 1991, foi instituído e implantado efetivamente no mandato do reitor Carlos Vogt, de 1990 a 1994; ele buscava oficialmente incentivar a melhoria da qualidade e o aumento da produção científica na Unicamp, por meio da qualificação dos cursos de graduação - diagnosticados como negligenciados dentro da Unicamp, voltada, sobretudo, para a pesquisa -, da reestruturação da carreira docente e de programas de gestão específicos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A consagração científica em números:...

No período de 1995 a 2005, constata-se um aumento significativo na produção científica, mensurada por meio de artigos de revistas, de acordo com o Anuário de Pesquisa, emitido pela PróReitoria de Pesquisa da Unicamp (Pró-Reitoria de Pesquisa, 2005). Os objetivos institucionais foram atingidos e contemplados, resta qualificar os resultados qualitativos desse processo.

Apresentação dos resultados Baseados nos dados dos Currículos Lattes, podemos apontar as mudanças que ocorreram na instituição e as características dos profissionais que construíram a sua atual posição de vanguarda no cenário científico brasileiro. Começaremos pela FCM e, depois, descreveremos o perfil do pesquisador típico desta faculdade.

Projeto Qualidade na FCM Com o Projeto Qualidade, ocorreu uma imperiosa necessidade de adaptação e, mesmo, uma dificuldade flagrante na transição entre os dois modelos. Os mecanismos foram: desde uma maior exigência de titulação para os novos contratados (doutorado), uma estipulação dos prazos para obtenção dessa mesma titulação no caso dos professores já integrados nos quadros da instituição, incentivo à participação em eventos científicos, até uma readequação do quadro de carreira docente. Esse processo de transição favoreceu os grupos que pretendiam atingir o poder, no interior da instituição, calcados na legitimidade científica e na acumulação do capital correspondente: estavam mais bem preparados para a produção de pesquisas, possuíam redes sociais (capital social) no exterior, haviam investido na acumulação de meios de obtenção de recursos para a pesquisa. Esses grupos ganharam a cena e passaram a dividir o poder original, instituído desde a fundação da FCM, com o grupo local que foi chamado a instaurar a faculdade, formado pelos médicos tradicionais e profissionais liberais da região. Nesse novo período, os indicadores da FCM foram os seguintes:

450

Quantidade

400 350

Artigos em revistas nacionais

300

Artigos em revistas internacionais

250

Números de Professores

200

Dissertações de mestrado

150 100 50 0

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 Ano

Gráfico 1. Indicadores de produção científica da FCM, de 1993 a 2006 (SIPEX- Unicamp).

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MONTAGNER, M.A.; MONTAGNER, M.I.; HOEHNE, E.L.

artigos

Constata-se claramente que a FCM teve um aumento significativo de publicações, passando de duzentos artigos a 369 no período, concentrando-se em revistas de classificação internacional. No final do período, aproximadamente para cada artigo de revista nacional eram publicados três em revistas no exterior. O número de professores foi reduzido de 414 a 358, o que significa uma diminuição em torno de 14,0% do quadro. A quantidade de dissertações de mestrado e teses de doutorado cresceu progressivamente quase 2,5 vezes, partindo de menos de cem trabalhos e atingindo 258. A média foi de cento e setenta teses ao ano, o que implica uma média de 0,44 teses por professor (calculado pela média de 389 professores) ao ano. A média de publicação foi de 0,88 artigos por professor, assumindo o número de professores como a média da instituição (389) nos 14 anos pesquisados. Regra geral, os índices cresceram de forma consistente e contínua, salvo as publicações em revistas nacionais, que diminuíram neste período. Como se vê, o processo de mudança dentro da Faculdade foi irreversível e o triunvirato docênciapesquisa-extensão ganhou a força de um credo e de uma ideologia extremamente presente no cotidiano da universidade. Poucos discutem, no entanto, a condição dos professores que são instituídos e cobrados como administradores da própria instituição. Esse processo acompanhou seguramente as mudanças do perfil das universidades em todo o Brasil, mas no caso da FCM, inicialmente voltada para a formação de médicos para uma demanda local e de visão liberal, o processo foi mais longo e penoso, pois envolveu uma mudança significativa do tipo de profissional requerido pela instituição.

O perfil do pesquisador A profissão médica tem apresentado uma progressiva e uma expressiva entrada de mulheres. Esse processo deverá alterar consistentemente o equilíbrio quanto ao sexo no futuro, mas até o momento permanece uma maioria masculina dentro da FCM, de 57,1% contra 42,9% de mulheres. A idade média dos professores é de 52,8 anos, com uma mediana de 52,5 anos. A grande maioria está na faixa compreendida entre 45 e 49 anos (28,9%), seguida de 50-54 (23,7%). Assim, mais da metade encontra-se entre 45 e 54 anos, com uma proporção em torno de 52,6% do total.

35% 28,95%

30%

23,68%

25%

19,74%

20% 15%

10,53%

9,87%

10%

5,92% 5% 0,66%

0,66%

0% 35 - 39

40 - 44

45 - 49

50 - 54

55 - 59

60 - 64

65 - 69

70 - 74

Total

Faixa etária dos professores

Gráfico 2. Distribuição por faixa etária dos professores plenos da FCM.

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A consagração científica em números:...

Quanto à formação, a grande maioria dos professores é composta por médicos (82,3%), seguida pelos graduados em Ciências Biológicas (6,9%), Farmácia e Bioquímica com 2,3%, Ciências Sociais com 2,3% e Farmácia (1,1%). Não temos dados completos sobre o grau de absorção dos médicos formados pela Unicamp dentro dos quadros da Universidade, mas existem indícios fortes de que o perfil do médico profissional liberal estava em forte mudança no período de formação da FCM. A idéia de permanecer na Unicamp, como professor e pesquisador, dentro de uma carreira de pesquisa em áreas básicas, não era uma tendência majoritária no início dos anos 70. Posteriormente, esta carreira passou a ser mais atrativa, dada a mudança no perfil dos profissionais liberais, especialmente o médico. A maioria dos professores da instituição foi formada na própria Unicamp em uma proporção de 42,9%. Se considerarmos a Unicamp em conjunto com a USP e USP – Ribeirão Preto, chegamos a uma proporção de 61,1% do quadro docente da FCM. Essa tendência de endogenia é significativa; restaria a tarefa de comparar esses índices com outras faculdades para enriquecermos a compreensão desta dinâmica. Acompanhando esta tendência de arregimentação interna dos formados pela instituição e da sua permanência nos quadros, podemos notar que, de acordo com a Plataforma Lattes, algumas turmas forneceram mais profissionais para o quadro de professores da Unicamp. Percebe-se que houve dois momentos mais significativos: o primeiro, nos anos 1976 e 1977, quando há dois fortes índices de 10,7% e 8,0%, respectivamente; o segundo período compreende os anos de 1981 a 1984, com anos consecutivos nos quais as taxas de fixação dos alunos foram grandes (9,3% – 6,7% – 12,0% – 6,7%). Em suma, daqueles que permanecem na instituição, 19,0% formaram-se na FCM no período de 1976 - 1977 (18,7%) ou então no período de 1981 – 1984, com 34,7%. Como se vê, a endogenia na composição dos quadros é clara. Mais que isso, o valor atribuído a esse recrutamento perpassou durante algum tempo o discurso dos pesquisadores como um fato muito positivo, e só começou a ser relativizado com a tendência recente de se defender a idéia de que a mobilidade e as experiências exteriores ligadas a outras instituições promovem o conhecimento científico. A metade dos médicos da instituição declarou ter feito residência, atingindo 50,0% do grupo. Daqueles que realizaram residência, a grande maioria a fez na própria instituição (66,7%) e, de novo, o total, quando incluída a USP, chega perto de 83,3% do total de profissionais. A mesma coisa poderia ser apontada para o caso da especialização, pois somente 30,3% dos profissionais tornaram-se especialistas. Deste total, 15,4% fizeram uma especialização, 6,3% duas e 5,7% três. Somente oito dos 53 especialistas não são médicos. Esta situação inverte-se quando tratamos do indicador relativo à proporção de mestrados, pois 59,4% realizaram. A maioria de 59,6% passou pelo mestrado dentro da própria instituição, e, se incluírmos a USP, atingiu-se a taxa de 81,8% de oriundos desse grupo. Vale constatar que, nesse caso, aumenta significativamente a quantidade de professores que terminaram seus mestrados em instituições no exterior, cerca de 8,7% do total. A posse do título de doutor atinge a totalidade dos profissionais. Os números mantêm uma constância muito grande, do mestrado ao doutorado, quanto às instituições de realização: se incluirmos a USP, observamos taxas praticamente idênticas, respectivamente 81,8% e 80,6%. Poder-se-ia aventar a hipótese de que o doutoramento é um fator essencial e determinante na fixação do profissional na instituição, e determina a própria trajetória desse cientista. Como percebemos neste caso, 72,0% dos professores plenos doutoraram-se na própria Unicamp e 11,4% no exterior. Se somarmos, aos 72% da Unicamp, os profissionais doutorados na USP (8,6%) e USP-RP (4,0%), chegaremos a 84,6% dos professores oriundos destas instituições. Por outro lado, o pós-doutorado não parece ser um pré-requisito tão importante, pois somente 36,6% dos professores o realizaram. Desse total, a maioria estagiou nos EUA (37,5%) ou Inglaterra (18,8%), confirmando o favoritismo dos países de língua inglesa. Podemos incluir também o Canadá, com 4,7%. Quanto à livre-docência, o quadro torna-se mais restritivo, com somente 41,1% dos professores com este título, obtido majoritariamente na própria Unicamp (38,3%) e raras vezes na USP (2,3%). 188

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MONTAGNER, M.A.; MONTAGNER, M.I.; HOEHNE, E.L.

artigos

Desse total de 72 livres-docentes, 49 (68,1%) dos títulos foram obtidos por homens e 23 (31,9%) por mulheres. A idade média da obtenção da livre-docência é de 45,1 anos, contra 37,5 para a obtenção do doutorado. Quanto aos professores titulares, como era de se esperar, eles estão em minoria, com somente 13,7% dos profissionais pertencentes a este seleto grupo, com uma média de idade de 58,5 anos. Ainda, eles estão distribuídos desigualmente quanto ao sexo, pois 66,7% deles são homens e 33,3% são mulheres. Uma análise das relações de poder entre homens e mulheres na FCM, sobretudo ressaltando as histórias de vida e as trajetórias das mulheres, quando se tornaram professoras da instituição, pode ser mais bem compreendida no trabalho de Montagner (Montagner, M. I., 2007), no qual se analisam as questões de gênero. Resta agora procurar entender, por meio dos números, os resultados dessa formação e dessa titulação em termos de seus produtos de trabalho.

Produção científica A média de artigos por pesquisador é de 63,1, com uma mediana de 44 artigos; e seu índice per capita é 61,7. Se a média de idade de doutoramento é em torno de 37,5 anos, sua produção aumenta entre 45 e 54 anos, conforme a seguir:

30% 25,96% 25% 20,67%

20% 15,01%

15%

14,72% 9,88%

10%

10,02%

5% 0%

3,61%

0,12% 35 - 39

40 - 44

45 - 49

50 - 54

55 - 59

60 - 64

65 - 69

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Gráfico 3. Distribuição dos artigos publicados até 2005 por faixa etária dos professores.

A maior concentração de professores (15,5%) acontece na faixa de publicação entre quarenta e 49 artigos durante toda sua vida acadêmica, seguida pela faixa de vinte a 29 artigos publicados (12,8%) até 2005. Tanto a faixa de zero a nove artigos publicados como a de dez a 19 artigos concentram 10,8% do total de professores. Estes números indicam que, ao menos na FCM, há um platô ideal, uma faixa que corresponde em torno de dez anos do fim do doutorado, que vai de quarenta a 49 anos de idade, como o período com maior produção dos professores. A partir do cinquenta anos, a produção diminui significativamente, passando a 4,1% – 6,8 %– 6,1%, e assim progressivamente. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A consagração científica em números:...

No caso da FCM, em 1995, foi implantado o Projeto Qualidade, que incorporou novos pesquisadores, com perfil de formação mais elevado e cuja exigência para contratação era maior, todos com maior perfil para a pesquisa. Além disso, houve uma intensificação da avaliação da produção dos professores do quadro da pós-graduação. Assim, pode-se inferir que, em 2005, colheu-se uma maior profusão científica dessa nova faixa de professores.

Distorções nas práticas científicas Podemos também comparar os índices de forma global, assumindo-se que a produção per capita evidencia um investimento de tempo e de trabalho científico dos professores da instituição. Assim, de todas as suas atividades, algumas se destacam. Os índices foram calculados somando-se todos os ‘produtos’ de toda a vida dos professores e por tipo de produção, dividindo-se esse total pelo número de professores (175). Percebe-se que o índice com maior taxa por professor é o de artigos completos publicados em revistas e a apresentação de trabalhos em eventos, seguido pela participação em eventos. A participação em bancas é bem superior tanto à publicação de livros quanto à orientação de mestrado ou doutorado, conforme gráfico abaixo:

70 61,7

60

61,3

50

44,4

40 30

23,4

20 8,4

do

te s

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5,7

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10

Gráfico 4. Taxas per capita dos índices de produção científica.

Constata-se que, como resultado principal de seu trabalho, encontra-se a publicação de “papers” e, igualmente, a participação em eventos como congressos, seminários, nos quais frequentemente apresentam suas produções científicas. As outras atividades de professor são mais raras, como orientações de mestrado e doutorado. 190

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MONTAGNER, M.A.; MONTAGNER, M.I.; HOEHNE, E.L.

artigos

Observa-se que a publicação de artigos científicos é hipostasiada, sobretudo daqueles em revistas internacionais. Se, no princípio, os congressos internacionais cumpriam a tarefa de aproximar pesquisadores do mundo inteiro, atualmente o pertencimento aos bancos de dados de acesso público parece ser o meio principal, senão o único, de partilhar os trabalhos realizados. Após a Segunda Grande Guerra, com a coletivização maior das pesquisas, as taxas de assinatura conjunta de trabalhos cresceram significativamente (Gingras, 2002). Conta-se, desde alguns anos, com a exigência dos organismos de fomento e dos modelos de avaliação de cursos de pós-graduação empregados, com uma valorização da publicação conjunta entre orientandos e orientadores, que conta pontos. Em virtude desta pressão, acontecem distorções, o que alguns autores apontam como um problema delicado: Uma conseqüência direta da supervalorização da publicação é o aumento do número médio de autores por artigo publicado em periódicos científicos da área médica [5,6]. Assim, com este aumento, os créditos e responsabilidades têm sido diluídos e se tornado obscuros. (Monteiro et al., 2004)

Como advoga Pontille (2002), a assinatura científica é uma construção histórica que demonstra tanto o valor de comprovação da autoria do trabalho como também tem se tornado um valor simbólico no campo científico, pelo seu poder de validar e corroborar um determinado trabalho por seu peso, independente do conteúdo da produção intelectual. Desde os primórdios da Royal Society Inglesa até os dias de hoje, a assinatura científica só faz aumentar sua importância: com base nos fundamentos da lógica da assinatura como uma “marca” simbólica, criou-se todo um império de cientometria capitaneado pela medição do índice de citação, das autorias, em suma, todo o aparato de conhecimentos estatísticos sobre as produções científicas mundiais (Heilbron, 2002). Os aparatos criados inicialmente como indicadores de uso de literaturas especializadas passaram, progressivamente, a ser a base de uma hierarquização da ciência e um instrumento de gerência e administração do próprio campo científico. Assim, a assinatura científica tornou-se um instrumento de medida (Pontille, 2002). Por outro lado, a práxis difere quanto ao trabalho coletivo. Se nas pesquisas laboratoriais, clínicas ou de cunho populacional, é possível tanto dividir o trabalho coletivo em porções menores quanto assinar a autoria conjuntamente, a mesma prática coloca sérios problemas nas ciências humanas e outras afins, conforme apontou Bourdieu (Bourdieu, Delsaut, 2002). Alguns autores chegam a propor métodos mais objetivos de codificação da autoria dos trabalhos coletivos, mesmo reconhecendo que há uma enorme dificuldade de aplicar esses critérios, quando entram em jogo as vaidades dos pesquisadores envolvidos, os seus interesses econômicos e o desejo do reconhecimento acadêmico (Petroianu, 2002). O que se pretende com medidas deste tipo é evitar abusos e distorções como as apontadas por vários autores (Monteiro et al., 2004; Montenegro, 1999), como autoria e/ou coautoria “convidada” (“guest authors”) – pessoas que têm seus nomes incluídos como autores em um trabalho do qual não participaram (entre 17% e 33% dos artigos publicados); autoria e/ou coautoria “pressionada”, que ocorre quando o responsável por um grupo exige a inclusão de seu nome em todos os trabalhos realizados por subordinados dentro de uma “tradição departamental” já bastante comum; autoria e/ou coautoria “fantasma”, representa a não inclusão de indivíduos que participaram de etapas importantes do estudo (11% dos artigos publicados em seis revistas “peer-reviewed”). Conforme constatamos, a média de artigos por professor é maior que a mediana de 44, em torno de 63,1. Isso acontece porque existem grandes e excepcionais articulistas na instituição, que compõem cerca de 7,0% dos professores, com mais de cento e sessenta artigos publicados. Essa massa de publicações aponta uma peculiaridade a ser analisada com mais apuro em outros estudos. Essas questões são candentes e deveriam ser tratadas coletivamente, por meio da discussão de critérios universais de autoria e, ao mesmo tempo, algum tipo de validação oficial das mesmas. Essas distorções acontecem pois não há uma discussão e, nem mesmo, uma valorização de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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atividades que fazem parte das práticas regulares do homo academicus, que não são consideradas no momento de avaliação do currículo dos pesquisadores ou da própria instituição como um todo, dentro da perspectiva produtivista.

Considerações finais Muitas críticas têm sido encetadas contra o modelo ‘produtivista’ e baseado na publicação de artigos em revistas valoradas pelos indicadores internacionais de citação cujo paradigma é o Science Citation Index criado pelo Institute for Scientifique Information (ISI). Áreas como a Saúde Coletiva têm criado um movimento que busca a valorização de capítulos e livros como um dos indicadores relevantes da produção acadêmica (Luz, 2005). Além disso, questiona-se a capacidade deste modelo em traduzir significativamente a qualidade do trabalho de um pesquisador e intelectual. Seus atributos resumir-se-iam à capacidade de escrita e publicação contínua e sistemática de textos concentrados e parciais de pesquisas longas, extensas e complexas, como são apresentados linearmente na Plataforma Lattes? Dentro desta linha, algumas questões se sobressaem. A primeira refere-se às bases de dados disponíveis. Não há dúvidas de que a Plataforma Lattes é um modelo sem par no universo acadêmico mundial. Pelo fato de ser pública e de acesso universal, demonstra uma clareza e uma efetividade inigualável na disseminação das informações sobre os intelectuais ligados às universidades brasileiras. Apesar de sua indiscutível importância, falta uma complementação de seus dados de outras atividades relevantes para o trabalho científico, mas não contemplados atualmente. Um problema constatado é quanto ao preenchimento incorreto ou incompleto e à falta de padronização das categorias apontadas. Há alguns elementos que são universalmente compreendidos, como artigos publicados em revistas arbitradas e teses orientadas. Porém não há padronização, por exemplo, quanto ao preenchimento das informações sobre livros ou artigos. O preenchimento desses dados, muitas vezes, é delegado às secretárias, estudantes ou estagiários, e alguns destes não dominam as codificações desses dados, gerando distorções nos totais. Mesmo quando realizado pelos próprios pesquisadores, há uma larga margem de dúvidas e de interrogações sobre como cadastrar e classificar a produção científica. A classificação dos livros e dos artigos, por sua vez, não é uma tarefa evidente. Faltam critérios e meios de se realizar uma classificação mínima dos conteúdos dos livros, fato ainda mais grave se pensarmos nas novas modalidades de divulgação científica, como as revistas eletrônicas e os “livros eletrônicos” (Marques Neto, 2005). Se a produção e edição ficaram facilitadas pela disponibilidade de meios técnicos baratos, rápidos e universalizados, a avaliação dos conteúdos fica prejudicada e coloca problemas. Para Luz (2005), o momento é de “efetivamente avaliar o produto livro em sua qualidade e ter noção objetiva de sua contribuição, existente ou não, para a área/campo de inserção”. Este processo relativamente novo de construção está em debate e em marcha, pois nos falta ainda, como a autora assinala, uma “cultura do livro” interna às áreas científicas no Brasil. Outra questão pouco clara é quanto à classificação das revistas em nacional ou internacional. Há algum tempo, uma revista seria internacional de acordo com a língua utilizada e o país de publicação. Mas, desde algumas décadas, esse padrão vem mudando. Muitas revistas brasileiras passaram a buscar e preencher os requisitos necessários para serem consideradas internacionais, como: comitê editorial com pesquisadores estrangeiros, indexação em bases de dados mais amplas e outras características, além de algumas publicarem seus textos em língua inglesa. Na Plataforma Lattes, a classificação das revistas e publicações não considera a nacionalidade ou a internacionalidade. O ponto em pauta é se estas revistas “internacionalizadas” equivalem pari passu àquelas internacionais de renome, e se os índices de divulgação e de impacto são os mesmos. Ambas representariam uma penetração no universo acadêmico mundial dos conhecimentos e dos resultados de pesquisas produzidos no Brasil, ou somente uma igualdade de direito, mas não real? Além dos capítulos de livros, outras atividades, como conferências e aulas em outros programas de Pós-Graduação, consultorias, não são corretamente informadas. 192

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artigos

A última consideração, mas não menos importante, relaciona-se a algo que o leitor arguto e perspicaz seguramente percebeu: neste trabalho apresentamos resultados ligados à trajetória temporal do pesquisador no campo, como tempo médio de titulação, idade estratificada por grupo, período de maior publicação com relação ao tempo de titulação e outros (Gráficos 2 e 3). No entanto, a Plataforma Lattes não fornece nenhum indicador da data de nascimento dos pesquisadores e esses dados não teriam sido apresentados se não tivéssemos uma fonte externa que permitisse nossas quantificações (Unicamp, 2005). Fizemos de nossa necessidade uma virtude, para ressaltar a contrario a importância desta informação como forma de avaliarmos os pesquisadores em sua trajetória, em ato e enquanto ela acontece. O número de publicações, por exemplo, só tem algum significado qualitativo se considerarmos o tempo de atuação efetiva do intelectual no campo e quais recursos institucionais estiveram à sua disposição no tempo. Senão corre-se o risco tautológico, já constatado por Merton e muito difundido, de aceitarmos e valorizarmos sem crítica as consequências do efeito Mateus. Constatam-se as limitações da Plataforma no tocante à visão global dos pesquisadores e suas atividades, tanto científicas quanto aquelas ligadas ao gerenciamento do poder temporal (econômico, social) no interior da instituição. Não obstante, pode-se afirmar que os currículos traduzem, em parte, o universo objetivo do trabalho dos intelectuais, malgrado o modelo de ciência incorporada na conformação da Plataforma seja aquela que valorize uma visão mais positivista, calcada no cálculo numérico e na quantificação dos itens reconhecidos como legítimos e adequados. Concluímos com a afirmação de Bourdieu em nossa mente: “toda descrição que se limita às características gerais de uma carreira qualquer faz desaparecer o essencial, isto é, as diferenças” (1983, p.136) [grifos do autor]. Portanto, outras análises, de cunho mais compreensivo, deveriam ser consideradas no momento de se discutirem esses indicadores, mas acreditamos que esses dados delinearam algumas características importantes.

Colaboradores Miguel Ângelo Montagner delineou a pesquisa, colheu e tabulou os dados, analisou os resultados, redigiu e revisou o artigo final. Maria Inez Montagner participou da tabulação e análise dos dados, da redação do artigo e da revisão final do texto. Eduardo Luiz Hoehne participou da análise quantitativa e da revisão final dos dados no artigo. Referências BACHELARD, G. Epistemologia: trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. BOUDON, R.; BOURRICAUD, F. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 1993. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1989. ______. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983. p.123-55. BOURDIEU, P.; DELSAUT, Y. Entretien sur l’esprit de la recherche. In: DELSAUT, Y.; RIVIÈRE, M.-C. (Orgs.). Bibliographie des travaux de Pierre Bourdieu. Pantin: Les temps des Cerises, 2002. p.176-239. BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C.; CHAMBOREDON, J.-C. Le métier de sociologue. Paris: Mouton, 1968.

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MONTAGNER, M.A.; MONTAGNER, M.I.; HOEHNE, E.L. La consagración científica en números: análisis del perfil de una vanguardia por los currículos Lattes. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, n.30, p.181-95, jul./set. 2009. El objetivo ha sido el de analizar las posibilidades y los límites del estudio cuantitativo de una institución y de los profesionales que actuan en ella tomando como objeto los currículos de la Plataforma Lattes. Al explorar este material tratamos de delinear un cuadro de los profesores plenos de la Facultad de Ciencias Médicas de la Universidad de Campinas, estado de São Paulo, Brasil, caracterizar su producción científica, las principales actividades que ejercen y su perfil académico. Nuestra metodología ha sido cuantitativa. Diseñamos y analizamos, por medio de una estadística descriptiva, las principales características de estos profesores presentes en la base de datos de la Plataforma Lattes que contiene sus currículos. Seguidamente, mediante un análisis cualitativo basado en la teoría de Pierre Bourdieu, señalamos como resultado las dificultades de la Plataforma Lattes en describir bien las trayectorias sociales y científicas de los investigadores, consistiendo así en un repositorio de actos científicos acabados y que componen una sucesión a-histórica y linear de la ciencia oficial.

Palabras clave: Sociología de la ciencia. Habitus. Bourdieu. Producción científica. Capacitación de recursos humanos en salud. Investigadores. Recebido em 10/03/2008. Aprovado em 22/01/2009.

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espaço aberto

Por uma clínica da resistência:

experimentações desinstitucionalizantes em tempos de biopolítica

Roberta Carvalho Romagnoli1 Simone Mainieri Paulon2 Ana Karenina de Melo Arraes Amorim3 Magda Dimenstein4

Tempos de biopolítica Quando Michel Foucault estudou as relações de poder, com certeza, o mundo era outro. Em sua genealogia, iniciada nos anos 70, o filósofo considerava a sociedade disciplinar, e, nesse contexto, eram as instituições que detinham o poder, ao qual denominaria biopoder. Gerado a partir do século XVIII, esse “poder sobre a vida” ganha força nos conhecimentos científicos e passa a afastar as ameaças de morte, sempre presentes até então. “No terreno assim conquistado, organizando-o e ampliando-o, os processos da vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam controlá-los, modificá-los” (Foucault, 1993, p.134). Esse controle se dava por meio das técnicas de poder presentes no corpo social que eram utilizadas pelas instituições, tais como: a família, a escola, a medicina, os asilos, dentre outras. Atuantes por meio de práticas discursivas, tais técnicas de poder convocavam a realidade a ser produzida a partir de processos disciplinares que se destinavam a gerir a vida sustentando-se por normas – ideias construídas às quais se concede o status de verdade, que transitam por todos os eixos do poder, e em torno delas as pessoas são estimuladas a moldarem e a fabricarem suas vidas, seu dia-a-dia. Cabe ressaltar que o biopoder atua em dois eixos, um disciplinar e outro biopolítico. Em seu polo disciplinar, o poder centrava-se no corpo como máquina, para adestrá-lo, ampliar suas aptidões, aumentar sua utilidade e docilidade, em um processo assegurado pelas disciplinas. Em seu polo biopolítico, o poder centrava-se no corpo como espécie, por meio de processos reguladores da população, para controlar os nascimentos e mortes, epidemias, o nível de saúde, a duração da vida. Com um funcionamento menos repressivo e punitivo e mais constitutivo e determinante, esse poder participa ativamente da produção de modos de subjetivação, da elaboração do cotidiano das pessoas, sujeitando-as a verdades normativas que prefixam sua vida e as suas relações. Dessa maneira, da ligação entre saber e poder emergem os sistemas de vigilância, praticada, em última instância, por todos os campos de saber. A ideia de um movimento que torna a vida e seus mecanismos inseridos no domínio político e faz do poder-saber uma estratégia de alteração da vida

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1 Programa de PósGraduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Rua Terra Nova, 101/401, Sion, Belo Horizonte, MG, Brasil. 30. 315-470. robertaroma@uol.com.br 2 Mestrado em Psicologia Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 4 Programa de PósGraduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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humana em seu eixo biopolítico, embora lançada por Michel Foucault, não chegou a ser devidamente absorvida e trabalhada por ele. Embasado nas mudanças sociais da última década, Deleuze (1992) compreende a substituição da sociedade disciplinar, tal como caracterizada por Michel Foucault, para o que denominará uma “sociedade de controle”. Para o referido filósofo, enquanto a sociedade disciplinar tinha nas instituições os seus estabelecimentos de monitoramento e vigilância, regulando os indivíduos no polo disciplinar, as massas no polo biopolítico e, nas disciplinas, sua fundamentação, a sociedade de controle possui um funcionamento por redes flexíveis, modulares, estendendo, cada vez mais, seus domínios de ação sobre a subjetividade. Por meio dos avanços da informática, do marketing, da comunicação virtual, presenciamos uma fluidez dos mecanismos de controle, em que “[...] O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado” (Deleuze, 1992, p.224). Esse pressuposto deleuziano fundamenta as ideias de Hardt e Negri (2001), que, em seu livro Império, fazem uma revisão do conceito de biopolítica e um deslocamento da biopolítica dos processos biológicos que incidem sobre os corpos e a população - como utilizado por Michel Foucault - para a sua articulação com a própria noção de vida. A partir das mudanças ocorridas no mundo globalizado, tais como o enfraquecimento da sociedade civil e a instauração de instituições transnacionais e do mercado mundial, o que antes era produzido geralmente dentro das instituições, agora se estende imanentemente para todo o campo social de maneira quase imperceptível. Essa sutileza se ampara na possibilidade imensurável de escolhas e caracteriza-se por um processo fluido de produção da subjetividade em que o poder, agora denominado de biopolítica, encontra-se calcado em fazer viver e em multiplicar as formas de existência, em controlar as condições de vida. Esse controle opera em rede e está em todos os lugares na ordem do dia, administrando as formas de vida e seu cotidiano. Para Hardt (2000), o mundo globalizado evidencia a sociedade mundial de controle, que apresenta novas formas de poder. Em seu funcionamento, os fluxos - sejam eles de capital, de informação, de serviços, de bens, de imagens - circulam por toda parte, geridos pela ausência de limites concretos. Dessa maneira, o poder exercido pelo Império contemporâneo não apresenta fronteiras territoriais ou temporais, pois, cada vez menos, há uma distinção entre o “dentro” e o “fora”, entre o que pertence a um território, a um país, a uma determinada cultura e o que está fora dessas dimensões. Os novos mecanismos de produção da subjetividade são mais difusos e móveis, uma vez que as instituições vivem o que o autor chama de “oni-crise”, responsável pela diminuição de seu caráter de monitoramento. No entanto, a dispensa de mediações institucionais não os torna menos eficazes e, tampouco, ocasiona menos efeitos na gerência da vida. Contudo, é preciso pontuar que a biopolítica é também potência de vida, não somente poder sobre a vida, e pode ser inventiva, força universal, principal fonte de valor. Sem dúvida, o poder exerce-se sobre uma potência subjetiva que, se convocada, pode tornar-se poder de resistência, virando a biopolítica pelo avesso. A vida, enquanto multiplicidade heterogênea detentora de linhas de virtualidade, também produz singularidades, não somente clones, como quando está a serviço da sociedade mundial de controle. Ou seja, o termo biopolítica passa a designar, assim, potência da vida, tanto para ser explorada, serializada, homogeneizada, quanto para atuar como resistência em estreita associação com a invenção. Atualmente, mediante esse novo funcionamento do corpo social, a resistência não se liga somente à oposição direta do campo de forças descrito acima, mas também e, sobretudo, à produção de dispositivos singulares que não estejam a serviço da serialização instituída. Isso porque a força-invenção da vida não se encontra totalmente capturada pelo capital, pois é exatamente no que o poder investe que também se ancora sua resistência. Sem dúvida, a vida é em si uma potência, que funda e dispara singularidades. E o agenciamento com essa força intensiva conduz à resistência, à invenção. Os processos de desinstitucionalização, como aqui os estamos concebendo, inscrevem-se neste modo de funcionar característico das sociedades de controle contemporâneas. Já não se pode, nesta lógica, pensar formas de liberação do desejo circunscritas a espaços institucionais, mas antes na “tarefa da desinstitucionalização como incessante questionamento dos valores que atribuímos a nossas 200

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formações culturais, constante potencialização dos movimentos críticos às formas dadas que aparecem como naturais e incansável disposição a produzir o novo, resgatando o devir criador de cada um de nós” (Paulon, 2006, s/p). No campo da saúde mental, de modo mais específico, esta tarefa faz-se especialmente desafiadora e emergente. A reforma psiquiátrica em curso no país estabelece um novo cotidiano de trabalho para os profissionais de saúde. Novas demandas que fogem aos cenários habituais de atuação, milenarmente arraigados à instituição manicomial, se impõem. Tamanha diversidade de demandas e intervenções, entretanto, não necessariamente significa correspondente superação das clausuras do desejo e da vontade de reproduzir. Uma mudança paradigmática no plano da lei ou, mesmo, dos dispositivos de cuidado é necessária, mas não suficiente para erradicar os desejos de dominar, controlar e oprimir o louco, que, usando uma terminologia cunhada por Machado e Lavrador (2001), evidenciam “desejos de manicômio”. São desejos que expressam as marcas, linhas duras constitutivas de nossa subjetividade calcadas em mecanismos disciplinares que atrelam a loucura a saberes especializados e classificações psicopatológicas. São esses os desejos que mantêm os manicômios em atividade, não só empiricamente, mas também em nossa “alma”, anônimos, dispersos e prontos para emergir a qualquer momento em defesa da exclusão. A saída da instituição asilar e a oposição à lógica hospitalocêntrica, por si só, não significam que acabamos com os manicômios que nos habitam. Há ainda alguns aprisionamentos que nos impedem de inventar e de resistir e que geram nossas atuações, de forma sutil, mas nem por isso menos efetiva. A afirmação do que existe, o exercício de julgar e perseguir a semelhança, a separação entre saber e poder e as buscas de verdades transcendentes resguardam a tendência a validar e reproduzir recursos já existentes e institucionalizados e impedem a criação de novas formas de lidar com a loucura. A desinstitucionalização no campo da saúde mental exige experimentações de um novo modo de cuidar. Experimentações que requerem uma disponibilidade de afetar e ser afetado, que pode estar em qualquer um, pode se expressar em qualquer espaço, pode demandar estranhos saberes, desde que a ousadia para o encontro com o diferente, o difícil e raro movimento em direção ao “não-eu” se faça presente. É nesta perspectiva que a invenção de um novo modo de cuidar demanda conhecimentos plurais que superem as fronteiras disciplinares. Desse modo, não cabe mais separar a clínica da política, a saúde dos contextos que a produzem, pois se trata, muito mais, de afirmarmos uma clínica que se tece nessas tensões, intensificando e fazendo a vida vibrar em toda sua potência prenhe do diverso. Considerando a realidade da atenção à saúde mental neste cenário de polarizações, entendemos que não podemos pensar nas questões relativas ao processo de desinstitucionalização sem operar uma análise das dificuldades e desafios encontrados no SUS, que envolvem outras problemáticas, como: as das práticas de saúde, a da chamada clínica ampliada e a da produção de saúde como produção de subjetividade. No campo da saúde mental, a questão da inexistência ou da fragilidade de redes integradas na atenção especializada é trazida de forma evidente pelo mais novo dispositivo de cuidado implementado pela política nacional de saúde mental: o Serviço Residencial Terapêutico (SRT). Este foi proposto como equipamento de cuidado destinado a pessoas que têm história de longa internação em hospital psiquiátrico e perderam os vínculos familiares e sociais. O SRT seria, dessa forma, potencialmente livre de “cronicidades” de toda ordem e exigiria da rede de atenção e de todos os atores sociais envolvidos transformações e redimensionamentos para atender às suas demandas específicas. É neste sentido que se torna estratégico, para o atual momento da Reforma, cartografarmos os fluxos e obstáculos que são colocados para que a atenção em saúde mental se efetive como uma rede integrada de cuidado. Um consequente mapeamento de forças e estratégias que sustentam as práticas de cuidado e o trabalho em saúde, a partir da diversidade de formas de vida que se desenvolvem cotidianamente nesta rede - e para além dela – se faria necessário para mapear os espaços de sociabilidade, solidariedade e convívio com a diferença que enfrentem as forças homogeneizantes e aprisionadoras das subjetividades. Perguntamo-nos, assim, que transformações, que novos movimentos, que novas acomodações e que demandas os SRTs colocam para as redes de atenção em saúde mental e para cada um dos atores envolvidos no processo de cuidado e criação da vida dos seus moradores? Ou seja, que experimentações desinstitucionalizantes estão sendo possíveis ou impossibilitadas neste âmbito? Essa é 201


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a leitura e a perspectiva de compartilhar dificuldades e avanços que reúne os trabalhos realizados nos SRTs de dois extremos geográficos do país, Natal e Porto Alegre, tal como abordaremos a seguir.

Cartografia do funcionamento do serviço residencial terapêutico de Natal O primeiro e único serviço residencial terapêutico da cidade de Natal conta hoje com sete moradores, que recebem cuidados de sete técnicos que se revezam nos três turnos durante todos os dias da semana, configurando um cuidado de natureza intensiva. Por ser um serviço novo, inaugurado há menos de três anos, nos interessamos em fazer um mapeamento inicial das problemáticas que enfrenta e os desafios postos à rede de saúde, e, a partir disso, vislumbramos algumas reflexões. A primeira delas diz respeito ao fato de que, sendo uma experiência recente, guarda uma série de peculiaridades, dentre elas a não existência de modelos terapêuticos que ofereçam referências para a atuação dos técnicos nesta realidade. Isso produz, por exemplo, o desafio de se pensar o projeto terapêutico que se quer para este serviço. A esse respeito, os gestores, numa posição de aprendizes nesse processo reconhecidamente novo para todos os envolvidos, consideram a importância do respeito às singularidades de cada morador na construção de uma vida autônoma dentro das possibilidades de cada um, e reconhecem a necessidade de ações que promovam a reinserção social no ambiente comunitário, mas colocam alguns questionamentos, tais como: será necessário um projeto terapêutico para a residência? Fazemos projetos terapêuticos em nossas casas? Se não, por que fazermos para esta? Se os moradores têm a possibilidade de serem tratados pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e, portanto, terem projetos terapêuticos próprios desenvolvidos neste serviço, por que construir um projeto específico para a residência? E essas são, de fato, questões que deixam evidente o que seria, talvez, o principal desafio destes dispositivos: o de realizar uma espécie de “clinica mínima” (Delgado, 2007, p.3), que torne esse espaço cada vez mais uma casa, em que o cotidiano possa ser vivido e o cuidado seja operacionalizado de modo que a vida comum e livre na cidade seja possível. Mas, como fazer, nessa experiência, experimentações desinstitucionalizantes em que os “projetos” em jogo sejam os diferentes “projetos de felicidade” (Ayres, 2004, p.85) dos moradores ganhando vida e possibilidades de concretização? Essas questões abrem outras vias de problematização, tais como o questionamento das práticas de saúde e da atuação dos técnicos que estão cotidianamente nesse serviço. Considerando esses últimos, o que observamos é uma indefinição dos seus papéis/lugares em relação aos moradores e diferentes posturas em relação à atuação profissional que pode e deve ser desenvolvida ali. Estas posturas vão desde: a reflexão frente ao fato de que é uma experiência em construção, ao lado das preocupações éticas que elas exigem; a postura da reprodução de papéis familiares no cuidado, sem maiores reflexões sobre seus efeitos, e a posição de que o trabalho é em grande parte pedagógico-utilitário na orientação dos moradores em relação aos fazeres cotidianos em uma casa, acompanhado do cuidado com as medicações e idas ao CAPS. Em todos, no entanto, há a preocupação presente, no discurso, de fazer com que os usuários sejam “inseridos socialmente” e “ganhem mais e mais autonomia”, considerando as limitações de cada um, advindas seja da institucionalização, seja pelas patologias de que sofrem, segundo observado em conversas informais com técnicos do referido serviço. Outra questão que se apresenta é precisamente a da articulação com o CAPS e com os demais serviços da rede. No que diz respeito especificamente à atenção básica, são observadas várias dificuldades, tais como: problemas com a marcação de consultas, enfrentadas por qualquer usuário do SUS, falta de informação, descuido com o paciente, até a falta de capacitação dos profissionais e a não sensibilização para as demandas específicas destes usuários. Hoje os moradores recebem atenção de um posto de saúde próximo em algumas especialidades médicas, sem entrar na fila de espera, o que foi possível mediante “acordo” feito com a gerência do distrito sanitário. Assim, o que se tem é uma atenção especial que se obtém por “concessões especiais”, e não pelo direito que estes usuários têm de serem atendidos em suas reais necessidades de saúde, respeitando-se o princípio da integralidade da atenção. Aqui o desafio é o da construção de redes efetivas de comunicação e ação entre a atenção básica e especializada, de modo a atender a estas diversas demandas em saúde apresentadas por esses moradores. 202

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Em relação à articulação com o CAPS a que esses moradores estão vinculados, tem-se desde a dificuldade de comunicação entre os técnicos dos dois serviços, e todos os desdobramentos e problemas que isso produz, até o questionamento em relação à necessidade de acompanhamento pelo CAPS e a regularidade das visitas dos moradores a este serviço para participarem de suas atividades e receberem medicação, sabendo-se que há uma equipe de saúde específica para a residência. Tal questionamento vem ganhando forças diante da recusa de uma das moradoras a ir ao CAPS, sob o argumento de que ali se sente “presa”. Não seria aqui necessária a criação de um espaço de discussão sobre o que se pretende em relação a esses usuários/moradores? Quais são os projetos de cuidado para cada morador? Será que a vinculação do SRT com o CAPS não implica um acompanhamento que respeite as necessidades e demandas de saúde singulares a cada morador, o que exige a criação de alternativas de cuidado, que fogem ao script terapêutico colocado pelo modelo CAPS? Por sua vez, os técnicos do SRT não precisariam estabelecer também essa rede de contatos, que vai muito além da combinação dos horários de visitas e discussão da necessidade de certa medicação para certo morador com o CAPS? O trabalho no SRT parece exigir também e, sobretudo, a tarefa de construção de redes de apoio e cuidado para além da casa e dos serviços, que envolva a cidade com suas diferentes e potentes geografias de cuidado. O SRT parece então colocar o desafio, para os diferentes atores envolvidos, da efetiva construção de redes de comunicação e ação para além dos serviços, o que implica a desnaturalização da “clínica” tal como ela vem sendo desenvolvida desde o interior dos serviços, especialmente dos CAPS. Esses são, portanto, alguns dos pontos observados, que colocam o desafio de romper com a reprodução da lógica manicomial em operação nos novos serviços como o residencial. Mapear esses pontos de captura dos fluxos inventivos nos conduz também a rastrear focos de resistência biopolítica à reprodução e serialização. Concordamos com Machado e Lavrador (2007) que precisamos lutar contra a produção de hospitais psiquiátricos em miniatura e a imposição de modos de vida enrijecidos e tutelados, para que o cotidiano não seja a “[...] continuidade de uma pretensa ‘ordem natural’ de sujeição, de cronificação institucional e de desqualificação do outro, ao não se acreditar que os modos de vida possam ser transformados” (p.91). Para tanto, compartilhar experimentações nesse campo é imprescindível. Nesse sentido, seguimos com outros fazeres, com a experiência dos residenciais de Porto Alegre em seus movimentos de crítica e inventividade.

Educação permanente em saúde como dispositivo de cuidado aos cuidadores dos Serviços residenciais terapêuticos O desafio de fazer de um lugar de moradia um espaço terapêutico sem que, com isso, o habitar fique reduzido ao “tratamento” é um questionamento reincidente, não só para as equipes de trabalhadores dos Residenciais Terapêuticos de Natal, no Rio Grande do Norte, mas também do Estado do Rio Grande do Sul. Inaugurados em diferentes momentos entre 2003 e 2006, os três SRTs situados em Porto Alegre (Morada São Pedro) ou redondezas (Viamão e Itapoã) reúnem quase quarenta funcionários cujos tempos de trabalho nos novos dispositivos e afinidades com os princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira são igualmente variáveis. Entre as questões que aproximam este grupo heterogêneo encontra-se o desejo de aprender um novo modo de cuidar em saúde mental e a necessidade de compartilhamento das dificuldades que este aprendizado lhes têm imposto. Com tais demandas, procuraram os profissionais que tinham por referência da militância e trabalhos anteriores no estado e pediram ajuda. A partir da solicitação inicial de realização de uma Oficina de “cuidado do cuidador” ou de uma palestra para retomar os princípios da Reforma Psiquiátrica, foi construída uma proposta conjunta da coordenação dos SRTs, coordenação da política de saúde mental da SES e da psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para realização de um programa de extensão junto àqueles trabalhadores (Paulon et al., 2007). A fim de fomentar princípios desinstitucionalizantes da reforma psiquiátrica brasileira, desenvolvendo uma concepção do morar como dispositivo de cuidado, a extensão estruturou-se como um processo de Educação Permanente às equipes, desenvolvido ao longo de 2006, por meio de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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três frentes de ação, quais sejam: assessoria ao grupo gestor, seminários sistemáticos de capacitação das equipes de trabalhadores e supervisão de estágios em psicologia. A parceria estabelecida entre universidade / governo do Estado / trabalhadores dos residenciais propôs-se a: 1) sistematizar e divulgar as experiências de reforma psiquiátrica em curso no Estado; 2) possibilitar que os graduandos de psicologia tenham acesso a uma formação fundamentada no SUS, com ênfase nos dispositivos da Reforma Psiquiátrica, e 3) facilitar a constituição de práticas terapêuticas nas equipes de cuidadores dos SRTs que se aproximem de uma “Clínica do Morar”. O percurso desenvolvido com o grupo naquele primeiro ano, bem como as demandas de continuidade e ampliação que ele gerou, são indicadores de que os propósitos em torno dos quais se estruturou o programa de educação permanente tinham um sentido instituinte para o grupo de trabalhadores nele envolvido. Este sentido instituinte mostrou-se importante estratégia de resistência, exercício biopolítico, na acepção aqui assumida do termo. Que sentido era esse? Algumas atividades do projeto de extensão contribuíram para que os trabalhadores fossem se apropriando do espaço acadêmico e aproveitando-o para forjarem novos sentidos singulares a seus processos de trabalho. Isto acontecia, por exemplo, nas reuniões quinzenais das coordenações das moradias que ocorriam na universidade - quando se assessoravam mutuamente -; nos encontros de planejamento dos espaços de capacitação mensal que faziam com suas equipes em espaços ordinários de reunião ou na participação colaborativa com a construção dos projetos de intervenção dos estagiários que se engajavam às equipes a partir da extensão. Ao fazê-lo, enfrentavam o desafio que era bem maior do que o tradicional sentido de “capacitarem-se” para uma tarefa que, para muitos, já era familiar. Enfrentavam o desafio de se desprenderem de velhas instituições que há muito lhes “ensinavam”: como deviam cuidar, qual a “verdade” sobre o tratar, quem “sabe” como lidar com a loucura e quais os devidos espaços reservados para “tratá-la.” Tamanha tarefa desinstitucionalizante ganha ainda maior importância no projeto de aprendizagem das novas formas de cuidar que a Reforma Psiquiátrica exige, se levamos em consideração o pedido inicial da equipe: aprenderem a transitar nas moradias diferentemente do que faziam nos corredores dos manicômios onde muitos aprenderam a trabalhar; desenvolverem um saber próprio que possa apoiar aquelas formas heterogêneas de ser e habitar, que os moradores dos SRTs lhes apresentam; retirarem os manicômios de si mesmos, experimentando outros desejos de cuidar e aprender menos presos às amarras das instituições terapêuticas e escolares. Todas estas são estratégias de resistência no sentido de fazer frente ao que o exercício do biopoder das velhas instituições impõe, estendendo-se aos tempos de sociedade mundial de controle. A resistência aqui adquire um sentido biopolítico, produz a necessária inflexão ao lado das forças da vida que impede a captura absolutizante das formas reprodutoras. O aprendizado de novas formas de cuidar e habitar, nessa medida, implica a apropriação de novos territórios subjetivos. Entre esses, encontra-se não somente o conhecido território-manicômio, ao qual as equipes sabem que devem resistir mesmo que nem sempre saibam exatamente como fazê-lo (para isto enunciam seu pedido de ajuda). Os territórios de saber especializado, o território acadêmico, os territórios de gestão igualmente precisam ser apropriados, no sentido mesmo de romper as tradicionais amarras institucionais que delimitam rígidas fronteiras do conhecimento aos detentores de algum “saber iluminado” a quem caberá um “poder ilimitado”. Neste sentido, borrar as fronteiras da gestão/atenção/educação; superar as fronteiras disciplinares do que cabe ao Estado/serviço/academia, assume uma conotação de resistência biopolítica que permite atribuir, a um mero programa de cuidado aos cuidadores, uma função de dispositivo desinstitucionalizante. A análise da demanda contida no pedido “nos ensine uma forma reformista de trabalhar” foi transformada na produção da oferta “processo de educação permanente com as equipes dos SRTs”. A problematização “de saída” daquele pedido, a constituição de fóruns coletivos de produção de um novo conhecimento acerca do trabalho desenvolvido pelas equipes, a ampliação das tarefas de coordenação e de ensino-aprendizagem que, inicialmente, caberiam às coordenadoras dos serviços e às professoras universitárias, respectivamente, foram algumas das estratégias utilizadas para se aproximarem as funções de atenção e gestão, ampliando consequentemente o grau de transversalidade nas equipes. 204

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Concluída a primeira etapa deste programa de extensão, podemos dizer que o programa de assessoria institucional parece ter contribuído para: 1) que a universidade possa cumprir seu papel social de interlocução com a comunidade, favorecendo a formação de novos profissionais da saúde na lógica da Reforma Psiquiátrica; 2) que os cuidadores dos novos equipamentos da rede de saúde mental compreendam suas posições institucionais enquanto agentes (mais ou menos qualificados, mas sempre implicados) da Reforma Psiquiátrica brasileira; 3) que os gestores analisem suas implicações com as instituições em jogo no exercício de suas funções de gestão, tomando-as também como práticas de cuidado. Tais são as constatações que fazem com que um processo de Educação Permanente em Saúde possa ser concebido como dispositivo na lógica do cuidado para a autonomia, inscrevendo-se entre os princípios da Reforma Psiquiátrica; e que a Clínica possa ser entendida como indissociável da Política ao produzir efeitos desinstitucionalizantes e se afirmar micropoliticamente como exercício de resistência e criação: novos modos de cuidar da vida.

Ao que resistir? Resistir por quê? As intervenções acima descritas reúnem experiências diversas em territórios longínquos que, no plano da discussão de certa concepção da clínica, permitem-nos algumas aproximações. A primeira delas diz respeito à questão do poder e da resistência no momento contemporâneo. A análise anteriormente empreendida convoca-nos a pensar que, se o poder sobre a vida não se reduz a sua faceta coercitiva, é preciso explorar e fazer vibrar o eixo biopolítico de um poder que também é poder de invenção de novas formas de viver, e, sobretudo, de atuar em nossas inserções profissionais. No campo específico da saúde mental, isto equivale a dizer que é preciso assumir posturas mais ativas e singulares de enfrentamento das formas de poder. Esse enfrentamento deve se dar tanto no eixo disciplinar que o biopoder segue mantendo, mediante a sobrevivência de instituições arcaicas como o manicômio, na hegemonia do saber dos especialistas, e na fixação em práticas já estabelecidas; quanto no eixo biopolítico, por meio de improvisações e de inventividade que façam frente à administração das formas de vida e seu cotidiano - características da sociedade mundial de controle. Isto equivale a se pensar na desinstitucionalização como ativação da força-invenção da vida. Desinstitucionalizar, na lógica da sociedade mundial de controle, não pode mais ser uma compreensão restrita às formas de poder institucional conhecidas no âmbito das sociedades disciplinares. Desinstitucionalizar, agora, assume um significado mais fluido, que acompanha as novas formas de poder em rede e cria, por consequência, estratégias, também em rede, de resistir. É neste aspecto que as experiências registradas nos serviços substitutivos criados pela mesma legislação nacional, em dois extremos do país, encontram uma segunda aproximação. Aproximação esta que aqui chamaremos de certa experiência clínica que não mais se compreende apartada da política, que não mais pode ser compreendida senão num registro da experiência coletiva. Os desafios colocados pelos SRTs partem e destinam-se a diferentes espaços e atores envolvidos na atenção à saúde de seus moradores, assim como a construção efetiva de redes de cuidado na própria circulação dos moradores na cidade. A desconstrução da lógica manicomial requer intervenções no plano macropolítico – com iniciativas junto às políticas públicas que permitam estratégias e criação de espaços de vida “lá fora” e cuidado para com os moradores egressos de longas internações psiquiátricas, mas não só. Implica, também, construção de micropolíticas da diferença, com as quais os projetos de felicidade de todos e cada um sejam possíveis, como pequenas formas de resistência ao projeto hegemônico de felicidade, que uns poucos ou quase ninguém parece acessar. Esse contexto de articulação entre a micropolítica e a macropolítica ancora a clínica em duas tarefas fundamentais para uma ação produtiva e transformadora da realidade: a identificação do que se repete, do que se instala como microfascismo no território clínico; e a ativação da potência de inventar novas maneiras de viver e de pensar. De acordo com Romagnoli (2007), trata-se de uma orientação teórica que privilegia a composição ético-política de forças de diferentes naturezas, que emergem nos encontros, e que possibilita COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a invenção de novas formas de subjetivação. Essa clínica pressupõe uma articulação com a vida, refletindo acerca do espaço terapêutico como um dispositivo para a produção de processos de subjetivação singulares e inventivos, como uma tentativa de driblar a homogeneização, a reprodução de modos de existência tão presentes em nossa sociedade. Pensar a relação entre clínica e vida é, sobretudo, pensar também a política e os mecanismos cada vez mais sutis de dominação e de poder que gerenciam o cotidiano das subjetividades, em todos os domínios e aqui, mais especificamente, no território da reforma psiquiátrica em curso em nosso país.

Colaboradores A proposta do artigo surgiu da mesa-redonda apresentada no V Congresso Norte Nordeste de Psicologia, em maio de 2007. Todos os autores contribuíram para a escrita e revisão do texto geral, com maior implicação nos seguintes tópicos: Roberta Carvalho Romagnoli: Tempos de Biopolítica; Simone Mainieri Paulon: Educação Permanente em Saúde como dispositivo de cuidado aos cuidadores dos Serviços Residenciais Terapêuticos, Conclusão e Articulação dos tópicos. Ana Karenina de Melo Arraes Amorim/Magda Dimenstein: Cartografia do funcionamento do serviço residencial terapêutico de Natal. Referências AYRES, J.R. Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.8, n.14, p.73-92, 2004. DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p.219-26. DELGADO, P. “Instituir a desinstitucionalização”: o papel das residências terapêuticas na Reforma brasileira. Cad. IPUB, v.12, n.22, p.19-33, 2007. FOUCAULT, M. Direito de morte e poder sobre a vida. In: ______. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993. v.1, p.125-49. HARDT, M. A. Sociedade mundial de controle. In: ALLIEZ, E. (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000. p.357-72. HARDT, M.; NEGRI, A. Império. São Paulo: Record, 2001. MACHADO, L.D.; LAVRADOR, M.C.C. Subjetividade e loucura: saberes e fazeres em processo. Vivencia (Natal), n.32, p.79-96, 2007. ______. Loucura e subjetividade. In: MACHADO, L.D.; LAVRADOR, M.C.C.; BARROS, M.E.B. (Orgs.). Texturas da Psicologia: subjetividade e política no contemporâneo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. p.45-58. PAULON, S. A desinstitucionalização como transvaloração: apontamentos para uma terapêutica ao niilismo, 2006. Disponível em: <http://antalya.uab.es/athenea>. Acesso em: 20 ago. 2007. PAULON, S.M. et al. Das múltiplas formas de habitar uma morada. A produção do cuidado em um serviço residencial terapêutico. Vivencia (Natal), n.32, p.119-37, 2007. ROMAGNOLI, R.C. A resistência como invenção: por uma clínica menor. Vivencia (Natal), n.32, p.97-107, 2007. 206

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O artigo propõe um debate acerca dos processos de desinstitucionalização no campo da saúde mental, situando-o no contexto da sociedade mundial de controle e das novas formas de poder. A construção de uma rede de atenção que venha a substituir o hospital psiquiátrico é um desafio que estabelece demandas totalmente diversas às encontradas na instituição manicomial. Entretanto, essas alterações por si só não caracterizam a superação da vontade de reproduzir, que insiste na separação entre clínica e política. A invenção de um novo modo de cuidar convoca conhecimentos plurais que superem as fronteiras disciplinares e enfrentem o instituído em cada um de nós. Nesse contexto apresentamos o trabalho realizado em dois Serviços Residenciais Terapêuticos de dois extremos geográficos do país (Porto Alegre e Natal). A partir dessas experiências, acreditamos que a clínica pode ser pensada como plano de produção e campo de experimentação, revelando-se em sua dimensão de resistência micropolítica.

Palavras-chave: Saúde mental. Desinstitucionalização. Clínica contemporânea. Biopolítica. Resistência. Towards resistance clinics: deinstitutionalizing experimentation in times of biopolitics This paper proposes a debate on deinstitutionalization processes within the field of mental health, positioned within the context of worldwide control society and new forms of power. Construction of a care network that would replace psychiatric hospitals is a challenge that establishes demands that are totally different from those found in lunatic asylums. However, these changes in themselves do not characterize the overcoming of the desire to reproduce, with its insistence on separation. Invention of new care methods calls for plural knowledge that surmounts boundaries between disciplines and faces up to what is instituted in each of us. Within this context, we present work carried out in two residential therapeutic services in two geographical extremities of the country (Porto Alegre and Natal). From these experiences, we believe that clinics should be envisaged at the production level and as fields for experimentation, thereby revealing their dimension of micropolitical resistance.

Keywords: Mental health. Deinstitutionalization. Contemporary clinic. Biopolitics. Resistance. Por una clínica de resistencia: experimentaciones des-institucionalizantes en tiempos de bio-política El artículo propone un debate acerca de los procesos de des-institucionalización en el campo de la salud mental, situándolo en el contexto de la sociedad mundial de control y de las nuevas formas de poder. La construcción de una red de atención que vaya a substitutr el hospital psiquiátrico es un desafío que establece demandas totalmente diferentes a las encontradas en la institución del manicomio. No obstante tales alteraciones por si solas no caracterizan la superación de la voluntad de reproducir, que insiste en la separación entre clínica y política. La invención de un nuevo modo de cuidar convoca conocimientos plurales que superen las fronteras disciplinarias y afronten lo instituido en cada uno de nosotros. En este contexto presentarnos el trabajo realizado en dos Servicios Residenciales Terapéuticos de dos extremos geográficos de Brasil (Natal y Porto legre). A partir de tales experiencias creemos que la clínica puede pensarse como plan de producción y campo de experimentación, revelándose en su dimensión de resistancia micro-política.

Palabras clave: Salud mental. Des-institucionalización. Clínica contemporánea. Bio-política. Resistencia.

Recebido em 26/11/2007. Aprovado em 18/06/2008.

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Polos de Educação Permanente em Saúde: uma análise da vivência dos atores sociais no norte do Paraná

Sônia Cristina Stefano Nicoletto1 Fernanda de Freitas Mendonça2 Vera Lúcia Ribeiro de Carvalho Bueno3 Eliane Cristina Lopes Brevilheri4 Daniel Carlos da Silva e Almeida5 Lázara Regina de Rezende6 Gisele dos Santos Carvalho7 Alberto Durán González8

Introdução Em 2004, por meio da Portaria GM nº 198/2004, foi instituída a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (EPS) como uma estratégia do Sistema Único de Saúde (SUS) para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor (Brasil, 2004). A política de EPS objetiva a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho, tomando, como referência, as necessidades de saúde das populações e a organização da gestão setorial (Brasil, 2007a). Para a condução desta política, foram implantados os Polos de Educação Permanente em Saúde (Peps), instâncias de gestão com uma composição embasada no “quadrilátero” configurado por: gestores estaduais e municipais de saúde; formadores contemplando instituições com cursos para os trabalhadores da saúde; serviços de saúde representados pelos trabalhadores da área, e pelo controle social ou movimentos sociais de participação no sistema de saúde (Brasil, 2004). Para Ceccim (2005a), a EPS pode ser definida como a ação pedagógica que enfoca o cotidiano do trabalho em saúde e o leva à autoanálise e à reflexão de processo. A EPS avança no sentido multiprofissional e na construção coletiva por meio das experiências vivenciadas de novos conhecimentos, que podem gerar novas práticas. Assim, “a política de educação permanente em saúde congrega, articula e coloca em roda/em rede diferentes atores, destinando a todos um lugar de protagonismo na condução dos sistemas locais de saúde” (Ceccim, 2005b, p.977). No Paraná, para uma maior descentralização da política de EPS, foram implantados vinte e dois Polos Regionais de Educação Permanente em Saúde (Preps), correspondentes às regiões abrangidas pelas Regionais de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde. Após essa implantação, cada região - norte, noroeste, oeste, centro sul, campos gerais e leste - articulou a formação de um Polo Ampliado de Educação Permanente (Paeps), expandindo as rodas de discussões e as ações de EPS (Paraná, 2006). Conquistados os espaços de discussão, tornou-se prioritário qualificar os sujeitos envolvidos com a proposta da EPS. Nesse sentido, a partir do

Enfermeira. Secretaria de Estado da Saúde do Paraná, 18ª Regional de Saúde de Cornélio Procópio, Seção de Regulação, Controle, Avaliação e Auditoria. Rua Justino Marques Bonfim, 27, Conjunto Vitor Dantas. Cornélio Procópio, PR, Brasil. 86.300-000 sonianicoletto@ sesa.pr.gov.br 2 Enfermeira. Departamento de Enfermagem, Faculdade Integrada de Campo Mourão. 3 Cirurgiã-dentista. 4 Assistente social. Secretaria de Estado da Saúde do Paraná. 5 Fisioterapeuta. 6 Cirurgiã-dentista. Secretaria Municipal de Saúde de Londrina. 7 Farmacêuticabioquímica. Secretaria Municipal de Saúde de Londrina. 8 Farmacêuticobioquímico. Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Londrina (CCS/UEL). 9 Marcio José de Almeida. Médico. Departamento de Saúde Coletiva, CCS/UEL.

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segundo semestre de 2004, o Ministério da Saúde (MS), em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), iniciou um processo de formação de facilitadores de EPS em todo o país (Ceccim, 2005c). Após três anos da implantação da política de EPS no Paraná - considerando todas as articulações e ações já desenvolvidas nas rodas de discussão até o primeiro semestre de 2006 - tornou-se relevante conhecer este processo, especialmente no momento em que se iniciava a revisão da Portaria GM nº 198/2004, processo este que culminou na publicação da Portaria GM/MS no 1.996, em 20 de agosto de 2007 - atuais diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Brasil, 2007b). Com o objetivo de analisar o processo de implantação e desenvolvimento da política de EPS no Paraná, foi proposta e encontra-se em desenvolvimento uma pesquisa10 que, em sua primeira dimensão, abrange as seis regiões do estado - norte, noroeste, oeste, centro sul, campos gerais e leste - e a segunda, o município de Londrina. A finalização da pesquisa - duas dimensões - está planejada para março de 2009. O presente artigo apresenta dados da região norte, considerando que o início da pesquisa deu-se nessa área, e cujos dados se encontram sistematizados e analisados.

Trajetória metodológica A pesquisa utiliza uma abordagem qualitativa. Segundo Minayo (2006), a abordagem qualitativa se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado, e aprofunda-se no mundo dos significados das ações e das relações humanas. Como método de coleta de dados, foram utilizados grupos focais e, para moderá-los, construiu-se, previamente, um roteiro, validado por uma especialista, com questões que estimulassem a reflexão coletiva e permitissem a sua utilização em rodas de conversa. Essa técnica de coleta foi selecionada por favorecer a construção coletiva do conhecimento (Aschidamini, Saupe, 2004). As questões norteadoras foram desenvolvidas de forma a instigar uma discussão ampla, abordando temas como: o processo de implantação dos polos, a compreensão da política de EPS, as ações implementadas, e as perspectivas quanto ao futuro da política de EPS. Como o presente artigo diz respeito à região Norte, a seleção dos participantes foi realizada pelos coordenadores dos cinco Preps (16, 17, 18, 19 e 22) que compõem o Paeps norte. Os pesquisadores solicitaram que os sujeitos tivessem participado dos polos desde a sua implantação, sendo quatro pessoas por Preps, buscando contemplar os distintos segmentos do “quadrilátero”. Esse processo resultou na participação dos seguintes sujeitos: seis gestores estaduais, três gestores municipais, três docentes representando as instituições formadoras de trabalhadores para a saúde, cinco trabalhadores de saúde representando os serviços de saúde, e dois representantes do controle social. A coleta de dados foi realizada em Cornélio Procópio, sede da 18ª Regional de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde, em dezembro de 2006, por meio de dois grupos focais. Cada grupo contemplou a representação dos cinco Preps e dos distintos segmentos representados nos polos. Esta opção não buscou obter e analisar as falas por segmentos e, sim, permitir a expressão das partes para o entendimento do todo em uma roda de EPS. O material proveniente dos dois grupos foi transcrito e analisado por meio da análise temática. Segundo Bardin (1979, p.105), “o tema é a unidade de 210

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A pesquisa está sendo financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital MCT- CNPq/ MS-SCTIEDECIT Nº 23/2006, Coordenadora: Elisabete de Fátima Pólo de Almeida Nunes.

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significação que se liberta naturalmente de um texto analisado, segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura”. Seguindo as orientações de Goldim (2000), os participantes foram identificados por códigos a fim de se assegurar o sigilo de sua identidade. Nesse sentido, cada grupo focal foi identificado com as letras A e B, cujos respectivos participantes foram numerados (A1, A2, ... B1 etc.), conforme a ordem em que se apresentaram nos grupos. A análise foi desenvolvida em três momentos. No primeiro, o material foi organizado e se definiram: as unidades de registro, as unidades de contexto e as categorias. No segundo momento, aprofundou-se a análise do material reunido e, no terceiro, consolidou-se por completo a análise. Deste processo emergiram seis categorias, originando um relatório preliminar. As categorias “aproximações com a EPS” e “formatação dos polos e articulações” descreveram o processo de implantação dos cinco Preps e do Paeps norte. Na categoria “vivenciando a EPS” encontram-se os distintos sentimentos nas primeiras aproximações com a política, a compreensão sobre EPS e a vivência nos polos. Na categoria “atividades desenvolvidas nos polos”, foram descritas as ações de EPS realizadas e o desenvolvimento do curso de formação de facilitadores em EPS na região. Nas categorias “percepções acerca do processo de EPS” e “futuro da política de EPS”, encontram-se expressas: dificuldades, necessidades, contribuições e percepções a respeito do futuro política de EPS. O presente artigo enfoca a categoria “vivenciando a EPS”, opção considerada relevante para se iniciar a divulgação dos resultados da pesquisa. Os dados das demais categorias estão sendo analisados novamente, em conjunto com as outras cinco regiões do Paraná, com intenção de torná-los públicos posteriormente. A pesquisa respeitou os princípios éticos definidos na Resolução 196/96 (Brasil, 1996), sendo o projeto aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina.

Resultados e discussão Na categoria “vivenciando a EPS”, o discurso coletivo dos sujeitos revelou: distintos sentimentos nas primeiras aproximações com a política, a compreensão sobre EPS, e a vivência nos polos. Esses fenômenos são apresentados nas subcategorias a seguir, para as quais destacamos falas representativas.

Sentimentos despertados nas primeiras aproximações com a EPS Na proposta da política da EPS, quando se trabalha em rodas não há um comando vertical e obrigatório. Todos podem participar das discussões. Nas rodas, todos os atores podem levantar as necessidades e elaborar estratégias coletivamente que se destinem a intervir na formação e no desenvolvimento dos trabalhadores de saúde (Brasil, 2005a). Como as práticas hegemônicas no processo de trabalho em saúde são individuais e fragmentadas, esta forma de construção coletiva de ações, para solucionar os problemas levantados no cotidiano, parece algo complexo. Em suas primeiras aproximações com a EPS, tendo, ainda, pouco conhecimento sobre a proposta da política, os sujeitos relatam que tiveram sentimentos de desconfiança e, até, descrédito em relação ao processo, seguido de resistência diante do novo, conforme as falas: “Não houve um entendimento da construção coletiva [...] não existiu o entendimento que esta construção devesse acontecer. É mais fácil receber pronto, do que fazer esta construção” (B3); “Essa resistência que muitas pessoas têm aos Pólos e à Educação Permanente em Saúde, eu acho que é [...] medo da mudança [...]. Eu acho que é [...] medo do desconhecido [...]” (A7).

Rosa (2003) afirma que o novo representa, quase sempre, uma ameaça à ordem, ao estabelecido, ao já absorvido e acomodado, portanto, muitas vezes, é recebido com reservas. Acrescenta, ainda, que a resistência não está relacionada com a mudança em si, mas com o trabalho que toda mudança COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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desencadeia, o qual consiste em rever-se. Também, Morin (2002) salienta que o novo pode despertar rejeição em sujeitos, uma vez que, presos às teorias, ficam incapazes de aceitar as novidades. No campo da EPS, o novo se apresenta. Não há passos e receitas prontas para seguir e, assim, sempre se estará lidando com o desconhecido (Matumoto, Fortuna, Santos, 2006). Mas, apesar dos riscos que possam significar este encontro com o desconhecido, é fundamental estar receptivo ao novo (Freire, 2006). Essa recepção ao novo foi sendo possível à medida que foram vivenciando a EPS. Por meio da participação nas rodas de discussão, os sujeitos da pesquisa relataram que, paulatinamente, esses sentimentos e atitudes foram se modificando, e mudanças, ainda que tímidas, aconteceram nos diferentes espaços de trabalho. Pode-se enfatizar: [...] sentimos que algumas Regionais de Saúde reclamam muito que os PREPS só vieram para atrapalhar e não seria isto. Ele veio para a gente estar trabalhando coletivamente, para a gente sair daquelas caixinhas que a gente trabalhava e foi onde nós conseguimos trabalhar realmente com demandas, hoje nós sentimos o trabalho/serviço com melhor qualidade [...]. (B2)

A percepção, a vivência e a admissão, pelos sujeitos, dos desconfortos existentes relacionados às suas práticas de saúde é que podem, efetivamente, promover mudanças no processo de trabalho (Ceccim, 2005a).

A compreensão da EPS e a vivência nos polos/rodas A partir da instituição da política de EPS, foram realizados eventos, no âmbito do Paraná, com o objetivo de disseminar e esclarecer a proposta. Apesar do destaque dos sujeitos da pesquisa em relação à importância destes eventos que contribuíram para a compreensão de que a EPS era algo que não vinha pronto, mas deveria ser construído coletivamente, a partir das demandas locais persistiram dificuldades para se entender a EPS, não somente como instrumento de realização de projetos e cursos, mas como um processo relacionado à mudança de práticas: “Eu achava que era uma instância que nós íamos ter esses parceiros, a formação, o gestor municipal, o gestor estadual para discutir projetos e aprovar projetos. Minha primeira idéia foi essa” (A2); “A dificuldade maior é pensar que Educação Permanente não é só projeto, curso [...] tem que ter uma mudança de prática” (A5).

Estas dificuldades podem ser decorrentes das experiências dos sujeitos com as tradicionais ofertas de cursos, comuns nas diversas áreas programáticas ou de políticas de atenção e vigilância à saúde. Este tipo de formação acrescenta aos indivíduos conhecimentos para práticas renovadas, aprimora suas competências e atualiza-os para o desempenho de suas atribuições com responsabilidade, podendo ser, inclusive, utilizada para apreender a EPS. Este processo faz parte do contexto dos trabalhadores de saúde. Entretanto a EPS traz um novo enfoque. A Educação Permanente em Saúde (EPS) é aprendizagem no trabalho, onde o aprender e o ensinar se incorporam ao quotidiano das organizações e ao trabalho. Propõe-se que os processos de capacitação dos trabalhadores da saúde tomem como referência as necessidades de saúde das pessoas e das populações, da gestão setorial e do controle social em saúde, tenham como objetivos a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho e sejam estruturados a partir da problematização do processo de trabalho (Brasil, 2004, p.5).

A não apreensão dos objetivos da EPS pelos diversos atores envolvidos na saúde fez com que os polos espaço operacional da política fossem, inicialmente, compreendidos como estruturas burocráticas criadas pelo governo para a transferência de recursos financeiros. 212

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Este entendimento levou instituições a se envolverem nos polos motivadas pela intenção de atender a seus interesses imediatos, e pela expectativa de que este espaço permitiria viabilizar recursos financeiros para seus projetos: “[...] eu não entendia o que estava acontecendo, mas eu entendia que existia um grande interesse financeiro por parte dos segmentos que vinham participar” (B7); “Todo mundo estava focado no financeiro” (A9); “[...] o que despertou o interesse do município nesse processo de formação foi o incentivo financeiro [...] foi um dos pontos que fez o município participar [...]” (B5).

O aspecto financiamento, também, foi uma das motivações para a participação de representantes de segmentos. Contudo, no decorrer do processo, à medida que os segmentos tinham os interesses viabilizados, seus representantes afastavam-se dos polos, acarretando desmotivação para a participação de outros segmentos. Segue, aqui, um discurso relacionado ao afastamento do segmento das instituições de ensino: [...] há um distanciamento dos polos porque as instituições formadoras viabilizaram diversos cursos a partir do polo e a alegação deles é que eles estão administrando esses cursos e não tem mais tempo para participar do polo [...]. É que já comeram seu pedaço de bolo e alguns outros setores acabaram, principalmente os municípios, [...] meio que se distanciando. (B1)

Isso não ocorreu somente nos polos aqui estudados. Campos et al. (2006) referiram que a falta de processos sistematizados de acompanhamento das atividades fez com que os polos fossem vistos como fonte de captação de recursos para o financiamento de projetos. Os mesmos autores expressam a necessidade de existir uma descentralização dos recursos financeiros, isto é, de repasse “fundo-a-fundo” - do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais ou Municipais de Saúde. Esta sistemática facilitaria o financiamento de projetos, contudo, não garantiria o acompanhamento das atividades implementadas o que deveria estar previsto nos projetos por meio de indicadores de avaliação de processo e de resultado e, sua análise, constar no relatório final das atividades. Além do aspecto financeiro, houve outros interesses que motivaram a participação nos polos. Eu acho que são diversos interesses que convergiram para a composição do polo. Por exemplo: o município queria formar seus profissionais sem ter essa visão de formação de serviço, as instituições formadoras queriam viabilizar a venda dos seus cursos e viabilizar projetos [...], o controle social queria sua formação [...], junto com os discentes que queriam mais uma participação ativa, mas também queriam a formação [...]. (B1)

Merhy (1997) argumentou que, quando se chega a um lugar como um Centro de Saúde, que possui trinta trabalhadores, por exemplo, necessariamente encontra-se uma dinâmica profundamente complexa, se considerarmos o conjunto de autogovernos em operação e o jogo de interesses organizados como forças sociais. No espaço dos polos, isso, também, não era diferente. Existiam interesses diversos e, muitas vezes, contrários entre si, refletindo a diversidade de intenções e características que envolvem um trabalho coletivo. Essa diversidade de interesses e a pouca capacidade de negociações entre os sujeitos fez com que, nas rodas, surgissem atitudes autoritárias em um espaço democrático, como evidenciado: Como se a gente tivesse num processo de ditadura e democracia [...]. Eu faço um discurso todo democrático, mas, na hora de efetivar tem que ser assim! A gente se sente um pouco que usado neste processo, onde você é convidado para discutir, onde você é convidado para propor e depois é convidado para legitimar. Olha, vocês tomaram conhecimento de tudo, mas tem que ser assim [...]. (B9)

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O conjunto de atores com interesses individuais e coletivos divergentes, no âmbito dos polos, é afetado e afeta a proposta de mudança de práticas feita pela política de EPS. Conforme Giovanella (1989), os sujeitos sociais, quando incorporados ao Estado, transformam-se em atores sociais, e, se ligados à saúde, constituem-se em atores de saúde. Em suas ações, esses atores põem em movimento suas capacidades, seu poder, tornando-se forças sociais. No desenvolvimento de ações de saúde, criase uma relação entre os atores, um campo de forças, que representa a tensão gerada entre os distintos atores ante uma ação proposta por algum deles. A combinação desses campos de força conforma o espaço onde ocorrem as decisões, os conflitos e as próprias ações de saúde. Os conflitos de interesses presentes nas rodas de discussão, segundo os sujeitos do estudo, em geral, não foram encarados como parte do processo de implantação da política e, por isso, foram combatidos. Muitas vezes, o conflito é repudiado por causar inquietações e contrariedade nos sujeitos; porém, é por meio desses que se evidenciam diferenças numa sociedade que se empenha em produzir homogeneização. Campos (2007) observa que os processos conflituosos fazem parte do cotidiano das pessoas, e aprender a enfrentá-los é uma forma de ampliar a capacidade de análise sobre si mesmo, os outros e o contexto, aumentando, por consequência, a possibilidade de agir sobre estas situações. Assim, os conflitos, à medida que são encarados, “trazem consigo a possibilidade de inclusão e produção da mudança, movendo as pessoas do lugar da conservação para o lugar da transformação” (Brasil, 2005b, p.100). Compartilhar e refletir sobre as ações coletivamente possibilita a troca de experiências positivas e a amenização das frustrações. Assim, à medida que participantes foram compreendendo a proposta de EPS, no decorrer dos vários encontros organizados nos espaços dos polos, passaram a participar, a escutar, a conversar, a respeitar as ideias dos outros. Eu lembro que no começo o pessoal não vinha. Aí a partir do momento que eles foram ouvindo [...], fui sentindo que realmente eles começaram a participar, a discutir mais, a trazer realmente os reais problemas [...]. (A9) Lembro uma certa hora na reunião, já estava todo mundo perdendo a paciência, ninguém tinha o hábito de conversar. Ah! Vamos dividir o orçamento [...]. E no fundo, eu acho, que cada um de nós estava querendo aquilo. Vamos cada um cuidar da sua vida [...]. E agora no final desses quatro anos [...] nós conversamos (A1).

Ao lidarem com os problemas do cotidiano, passaram a interessar-se mais pelo processo das rodas. Vasconcellos (1995) afirma que, para aprender, é preciso que o objeto de conhecimento tenha algum significado para o sujeito e que, portanto, esse faça parte de sua realidade. Cavalcanti (1999) acrescenta que os adultos estão mais propensos a aprenderem algo que contribua para suas atividades profissionais ou para resolver problemas reais, ou seja, as motivações mais fortes para o aprendizado de adultos são as internas, aquelas que estão relacionadas com: a satisfação por trabalhos realizados, melhora na qualidade de vida, e elevação da autoestima. Dentro desse raciocínio, a política de EPS pode ser considerada como um dos instrumentos impulsionadores da construção de espaços de aprendizagem, para os quais os participantes trazem: suas vivências, os entraves dos processos de trabalho e as reais necessidades de saúde da população, construindo coletivamente os conhecimentos. Com a existência de diálogo, surgiram afirmações positivas relacionando o comprometimento com o trabalho e com a EPS, assim expresso: “Quem é comprometido com o trabalho, com certeza [...] se identifica com a educação permanente em saúde” (A8); “[...] quando se fala em polo eu não penso em curso, penso em momentos de reflexão” (B9).

Para Freire (2001), comprometer-se é ser capaz de refletir, agir e refletir. O compromisso favorece 214

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que o sujeito exponha sua maneira de ser e pensar politicamente, evidenciando seu engajamento com a realidade. Ao experienciá-lo, o homem deixa a neutralidade, que apenas reflete o medo do compromisso (Freire, 2006), posição bastante próxima ao que Merhy (2005) chamou de “pedagogia da implicação”. Os sujeitos da pesquisa relataram que os polos proporcionaram experiências de processos de trabalho em equipe: [...] foi o trabalhado em equipe, o que eu achei interessante, o que mais me motivou. Nós do controle social, gestor estadual, gestor municipal, todos juntos tentando, ninguém sabia nada, [...] todo mundo com dificuldade em entender, foi crescendo, tinha desde serviços gerais até o médico que também ouviu a mesma coisa [...] (B5).

Embora, nesses movimentos, possam surgir algumas dificuldades, uma vez que, em uma equipe, são despertadas diversas relações de afeto, poder, trabalho, sociais e culturais, as quais produzem diferentes formas de pensar e agir (Brasil, 2005b), é preciso insistir, porque na medida em que ocorre um trabalho horizontal, em equipe, pode-se romper com conceitos hegemônicos (Almeida, Mishima, 2001). O trabalho em equipe permite que sujeitos, com habilidades e conhecimentos complementares, se comprometam para atingir um objetivo comum, definido a partir de negociações e pactuações entre as pessoas envolvidas (Ribeiro, Pires, Blank, 2004; Almeida, Mishima, 2001; Piancastelli, Faria, Silveira, 2005). Isto permite a elaboração de projetos pedagógicos, terapêuticos e sociais que se destinem a atender as reais necessidades de saúde de uma pessoa/família/grupo/população no âmbito do SUS (Brasil, 2005b). O estudo de Farah (2006), realizado com profissionais da equipe saúde da família e profissionais das esferas federal, estadual, municipal e regional, também reconheceu na EPS uma oportunidade para fortalecer o SUS. O resultado deste estudo e as experiências vivenciadas e relatadas pelos sujeitos da pesquisa corroboram com a afirmação de Ceccim (2005b), ao reconhecer a capacidade da política de EPS para articular e mobilizar diferentes atores, destinando a todos o papel de protagonistas/sujeitos na condução dos sistemas de saúde no âmbito do SUS. Este mesmo autor, em parceria com Merhy e Feuerwerker, valoriza o aspecto político da EPS, ao afirmarem que sua implementação é indispensável para a consolidação do SUS (Merhy, Feuerwerker, Ceccim, 2006).

Considerações finais Houve um esforço, na comunicação escrita deste artigo, para apresentar a dinâmica do processo de vivência dos atores sociais dos polos de EPS da região norte do Paraná. Contudo, dada a multiplicidade de informações geradas nesse processo, não seria possível registrar a totalidade dos acontecimentos. Nos Polos/Rodas, os sujeitos experimentaram desconfortos, evidenciaram conflitos e vivenciaram experiências que proporcionaram condições para a superação da compreensão desses espaços como mera fonte de captação de recursos para financiamento de projetos; e para a percepção da EPS como um processo que está relacionado à mudança de prática, possível a partir da problematização do processo de trabalho. Tais experiências também permitiram o reconhecimento e o respeito às diferenças, ao proporcionarem espaços de escuta, de conversa - de diálogo. Houve, sobretudo, o reconhecimento da capacidade da EPS em articular e mobilizar atores gestores, formadores, trabalhadores de saúde e sujeitos envolvidos em movimentos sociais e no controle social - que, trazendo, para os espaços dos polos, suas vivências, fizeram com que essa estratégia ganhasse significado como uma possibilidade ou construção coletiva do conhecimento. É indispensável registrar que, no decorrer da realização da pesquisa nos polos do Paraná, e, posteriormente, na coleta dos dados na região Norte, importantes acontecimentos envolveram a política de EPS. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Com o Pacto pela Saúde em 2006, gestores, representados pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), debateram acerca da importância de os polos serem consolidados no âmbito do SUS. Esse movimento, somado às recomendações da 3a Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (3a Conagetes), resultaram no conteúdo da Portaria GM no 1.996, de 20 de agosto de 2007, que substituiu a designação Polos pelas Comissões Permanentes de Integração Ensino-Serviço em Saúde (Cies), tal como prevê a Lei Federal nº 8.080/90 (art. 14), vinculadas aos Colegiados de Gestão Regional em Saúde (CGRS). Isso foi um modo de dar forma à designação da regionalização e hierarquização no SUS, em rede única, sistêmica, orientada pela integralidade, descentralização e participação popular. As modificações promovidas indicam perspectivas positivas para fazer avançar a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde - uma das grandes estratégias para o fortalecimento do SUS.

Colaboradores Os autores Sônia Cristina Stefano Nicoletto, Fernanda Freitas Mendonça, Vera Lúcia Ribeiro de Carvalho Bueno, Eliane Cristina Lopes Brevilheri, Daniel Carlos da Silva e Almeida, Lázara Regina de Rezende participaram desde a elaboração do projeto até a redação final do artigo. Os autores Gisele dos Santos Carvalho e Alberto Durán González participaram a partir da fase de coleta de dados até a redação final do artigo. O autor Marcio José de Almeida acompanhou desde a elaboração do projeto até a redação final do artigo, como coordenador do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento de Recursos Humanos em Saúde (GPDRHS/ CNPq), do qual todos os autores deste artigo são membros. Referências ALMEIDA, M.C.P.; MISHIMA, S. M. O desafio do trabalho em equipe na atenção à saúde da família. Interface - Comunic., Saude, Educ., v. 9, s.n, p.150-3, 2001. ASCHIDAMINI, I.M.; SAUPE, R. Grupo focal, estratégia metodológica qualitativa: um ensaio teórico. Cogitare Enferm., v.9, n.1, p.9-14, 2004. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Glossário temático de gestão do trabalho e da educação na saúde. Brasília: SGTES, 2007a. ______. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1996/GM/MS, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e dá outras providências. Brasília: MS, 2007b. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. A educação permanente entra na roda. Brasília: SGTES, 2005a. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Curso de facilitadores de educação permanente em saúde: unidade de aprendizagem Trabalho e Relações na Produção do Cuidado. Brasília: SGTES, 2005b. 216

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nicoletto, s.c.s. et al.

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polos de educação permanente em saúde:...

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nicoletto, s.c.s. et al.

A política de Educação Permanente em Saúde (EPS) destina-se ao desenvolvimento dos trabalhadores da saúde. Pretendendo analisar o processo de implantação e desenvolvimento da política no Paraná, uma pesquisa qualitativa, envolvendo as seis regiões do estado, está sendo concluída. Este artigo refere-se aos primeiros resultados da região norte, focalizando a categoria “vivenciando a EPS”. Em dezembro de 2006 realizaram-se dois grupos focais, envolvendo representantes da gestão, formação, atenção e participação. Os dados foram submetidos a análise temática de conteúdo. Nas primeiras aproximações com EPS surgiram sentimentos de desconfiança e resistência e o polo foi compreendido como meio de viabilizar cursos e fonte de financiamento. Observaram-se diversidade de interesses e pouca capacidade de negociação. No transcorrer do processo, os integrantes do estudo começaram a conversar, refletir e participar. Experimentaram positivamente o trabalho em equipe. Esta vivência permitiu reconhecer a potencialidade da EPS em articular e mobilizar diferentes atores.

Palavras-chave: Educação permanente em saúde. Política de saúde. Trabalho em saúde. Educação continuada. Centers for Permanent Healthcare Education: an analysis on the experience of social players in the north of the State of Paraná The policy of continuing healthcare education (CHE) aims to develop healthcare workers. With the objective of analyzing the process of implementing and developing the policy in Paraná, a qualitative study involving the six regions of this state is being concluded. This paper relates to the results from the northern region, focusing on the “experiencing CHE” category. In December 2006, two focus groups were conducted involving representatives from management, training, attendance and participation. The data underwent thematic content analysis. The first CHE encounters aroused feelings of mistrust and resistance, and the center was understood as a means of enabling courses and funding sources. There was a diversity of interests and little negotiating capacity. During the process, the study participants began to talk, reflect and participate. Their teamwork was a positive experience. This experience allowed them to recognize the power of CHE for linking and mobilizing different players.

Keywords: Continuing healthcare education. Healthcare policy. Healthcare work. Continuing education. Polos de Educación Permanente en Salud: un análisis de la vivencia de los actores sociales en le norte del estado brasileño de Paraná La política de Educación Permanente en Salud (EPS) busca el desarrollo de los trabajadores de la salud. Tratando de analizar el proceso de implantación y desarrollo de la política en Paraná, una pesquisa cualitativa comprendiendo las seis regiones del estado se está concluyendo. Este artículo se refiere a los primeros resultados de la región norte enfocando la categoría “viviendo la EPS”. En diciembre de 2006 se realizaron dos grupos focales, abarcando representantes de la gestión, formación, atención y participación. Los datos se sometieron a análisis temático de contenido. En las primeras aproximaciones con EPS surgieron sentimientos de desconfianza y resistencia. El polo se comprendió como medio de viabilizar cursos y fuente de financiación. Se observó diversidad de intereses y poca capacidad de negociación. En el transcurso del proceso los integrantes que participaron del estudio empezaron a conversar, reflexionar y participar. Experimentaron positivamente el trabajo en equipo. Esta vivencia permitió reconocer la potencialidad de la EPS en articular y mobilizar diferentes actores.

Palabras clave: Educación permanente en salud. Política de salud. Trabajo en salud. Educación continua. Recebido em 06/11/07. Aprovado em 03/08/08.

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Recuperando Vidas: uma proposta de atendimento

Celeste Anunciata Baptista Dias Moreira1 Andreia da Silva2 Sara Araújo Martins3

Apresentação As unidades para atendimento a adolescentes existem, no Brasil, desde o final do século XIX, em uma ação voltada para o encarceramento de crianças e adolescentes pobres, sobretudo os que tinham comportamentos dissonantes com a ordem vigente. Tal processo começou a ser alterado a partir da década de 1980, quando parte das demandas dos segmentos mais progressistas da sociedade foi incorporada pela Constituição de 1988. A responsabilização do Estado, da família e da sociedade civil pelo trato da infância e juventude trouxe avanços à temática no que tange ao alargamento de direitos. Entretanto, se as últimas décadas foram produtivas na regulamentação de direitos sociais, em contrapartida, a ofensiva neoliberal foi condutora de um retrocesso nas políticas sociais sem precedentes na história brasileira. A reestruturação produtiva é um elemento preponderante na alteração das relações sociais contemporâneas. Neste país, o processo ocorrido no decorrer da década de 1990 significou a perda de inúmeros ganhos históricos da classe trabalhadora no campo da democracia, ou, para ser mais preciso, no que tange aos ganhos obtidos no campo da cidadania4. Os embates estabelecidos com a autocracia burguesa na recuperação das perdas da classe trabalhadora e a participação desta nos espaços de gestão e controle das políticas sociais têm sido insuficientes para interferir no processo de sucateamento das mesmas, vivenciado nos últimos anos. Neste cenário de perdas sucessivas no campo social, a família tem sido revalorizada como foco da política a partir de um viés conservador, em que assume a função de provedora diante da restrita atuação do Estado (Alencar, 2005). No que diz respeito à política destinada aos adolescentes em conflito com a lei, esta vem sofrendo as consequências do reordenamento do capital já expostas no texto. A perda orçamentária, a falta de orientação metodológica que acompanhe as alterações societárias, as ações de cunho ressocializante, a falta de investimento nas unidades de atendimento, o endurecimento do poder judiciário no trato do social, são alguns exemplos do cotidiano institucional que configuram uma atuação do Estado marcada pela criminalização da pobreza, onde adolescentes pobres, pretos e pardos são usuários preferenciais do sistema socioeducativo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE). Estrada do Caricó, 111, Galeão lha do Governador, Rio de Janeiro RJ, Brasil 21.941-450 celestea66@hotmail.com 2 Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (INFRAERO). 3 Central de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, Subsecretaria Municipal de Direitos Humanos de Niterói, Rio de Janeiro. 1

Vale acrescentar que a cidadania plena é incompatível com o modo de produção capitalista, em vista de sua incorporação de direitos restritiva aos aspectos civis, deixando a descoberto pontos importantes dos direitos sociais que não se aplicam a uma sociedade de classes (ver Coutinho, 1997).

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Recuperando Vidas:...

Observamos que o assistente social no referido campo vai se deparar com uma demanda profissional referenciada pelo paradigma da proteção integral, posta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, contudo tem sua intervenção profissional mergulhada num contexto historicamente marcado pela violação de direitos sociais.

O sistema socioeducativo e o atendimento a usuários abusivos de drogas O sistema socioeducativo do estado do Rio de Janeiro traz as características acima mencionadas, as particularidades relacionadas ao atendimento em meio aberto5, além do investimento na área da drogadição. O DEGASE, responsável pela execução de medidas socioeducativas, possui cerca de novecentos adolescentes em cumprimento de medida de internação nas diversas unidades do sistema6. Apesar de ter sofrido perdas significativas em face da lógica perversa empregada na gestão do atendimento ao adolescente em conflito com a lei, teve alguns avanços no que tange à incorporação da política de atenção ao usuário e ao usuário abusivo de drogas. Deve ser destacado que, muito embora o Departamento assista especificamente a adolescentes em conflito com a lei, no caso do Centro de Tratamento Recuperando Vidas, o atendimento se destina ao cumprimento de medidas protetivas, acolhendo tanto adolescentes em situação de risco social como em cumprimento de medida socioeducativa. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, 10% da população dos centros urbanos de todo o mundo consomem de forma abusiva substâncias psicoativas, independente do grau de escolaridade, sexo, idade e classe social (Brasil, 2004a). Tal como aponta Oliveira (2006), esse é um problema de saúde pública da contemporaneidade. No Brasil, a política construída pelo Estado ainda carece de ações descentralizadas e mais efetivas nos municípios, que se dariam por meio da formação e consolidação dos Conselhos Municipais Antidrogas. Tal proposta destina-se a concretizar uma política de educação, prevenção e tratamento para o uso indevido de drogas que respeite as singularidades das regiões de cada estado. A demanda por serviços específicos para adictos tem historicamente sido maior do que a oferta. As formas de acumulação de capital têm provocado um aumento da desigualdade social, criando um grande abismo entre inúmeros pobres e pouquíssimos ricos. As relações societárias sofreram significativas alterações, sobretudo nas formas de interação e de solidariedade das relações familiares e comunitárias. Em face dessa realidade, é possível inferir que as possibilidades de crianças e adolescentes se envolverem com o uso de drogas cresceram significativamente no mundo contemporâneo. No Brasil, estudos realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicoativas (Brasil, 2004a) apontam para uma precocidade, além de um aumento no uso de substâncias psicoativas, lícitas e ilícitas, por crianças e adolescentes na última década. A proposta governamental referente a esta temática é voltada para a divulgação dos riscos para a saúde e para a redução de danos causados pelas drogas. Está materializada no Programa Nacional de Atenção Comunitária Integral a Usuários de Álcool e Drogas (Brasil, 2003). Tem como orientação atender a usuários e seus familiares nos diversos níveis de atenção, observando as distinções de cada indivíduo, sem perder a referência na garantia de direitos, que inclui o atendimento hospitalar geral e de emergência psiquiátrica. Contudo, possui uma estrutura que precisa de fortalecimento, a fim de que efetivamente possa contribuir para a rede necessária de assistência a usuários. Deve ser mencionada 222

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Foi no Rio de Janeiro a primeira experiência de descentralização do atendimento no Brasil, ainda na década de 1980, com um alto investimento no Projeto CRIAM, que assumiria posteriormente as medidas de semiliberdade e liberdade assistida.

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Dados do DEGASE apontam para um total de mil e oitocentos adolescentes em cumprimento das diversas medidas socioeducativas.

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O Sistema Nacional de Ações Socioeducativas, aprovado pelo CONANDA no final do ano de 2006, traz orientações, parâmetros e recomendações para o funcionamento do sistema socioeducativo e está em fase de adesão por parte dos estados (Brasil, 2006). 7

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a relevância dos Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS AD), que têm como orientação oferecer atendimento diário e articulado à rede local. A Política Nacional de Assistência Social (Brasil, 2004b) contempla a questão, quando identifica a necessidade de implantação de serviços específicos descentralizados para grupos em situação de risco social, a fim de dar suporte aos usuários de substâncias psicoativas. Diferente do que ocorre com os adultos, o tratamento para adolescentes é compulsório, em virtude de estarem em fase de desenvolvimento biológico, emocional e social. Neste sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 101, que trata das medidas de proteção, destaca a inclusão em programa oficial ou comunitário para usuários de drogas como uma estratégia de atendimento. Tratando-se desse segmento, as formas de tratamento para usuário de drogas provocam um grande debate – os esforços para o rompimento com a histórica criminalização do usuário ainda têm pouco impacto na sociedade. Socialmente, a percepção da diferenciação entre o usuário recreativo e o dependente químico é extremamente tênue, quando o sujeito em questão é um ser em desenvolvimento com atendimento diferenciado do adulto. Se ele estiver em cumprimento de medida socioeducativa, sua situação fica potencializada, pois a combinação da “dupla infração” requer espaços diferenciados de atendimento. Nesses casos, o cumprimento da medida é suspenso, podendo ser o mesmo retomado ao término da internação. Isto significa dizer que, apesar de o adolescente atendido ter construído alternativas importantes para seu futuro no período de internamento, o cumprimento da medida socioeducativa é preponderante em relação aos ganhos obtidos com a medida protetiva. Recentemente, o Sistema Nacional de Ações Socioeducativas (SINASE),7 em suas orientações, reforçou a necessidade de se estabelecerem medidas preventivas para os diversos programas de atendimento na perspectiva de redução de danos e de riscos à saúde para os espaços socioeducativos. Contudo, as possibilidades reais de ingresso em espaço especializado de tratamento para adolescentes são curtas em face da escassez e da concentração de recursos na área metropolitana do estado. As unidades existentes dispostas a receberem adolescentes funcionam a partir de convênios com a esfera governamental, que se mantém conforme o sabor das mudanças político-partidárias, inviabilizando a consolidação de suas propostas. O Centro de Tratamento Recuperando Vidas iniciou suas atividades em julho de 2001, atendendo adolescentes do sexo masculino, com idade entre 12 e 18 anos. Os internados são encaminhados pela Vara da Infância e da Juventude de diversas Comarcas do estado do Rio de Janeiro para cumprimento de internação por uso abusivo de drogas, obedecendo à capacidade máxima de 15 adolescentes. A unidade possui uma equipe multidisciplinar de dez profissionais, entre eles: psicólogos, assistentes sociais, terapeuta ocupacional, professor, médico psiquiatra e conselheiro em dependência química. Conta ainda com outros vinte funcionários, dentre eles: agentes de disciplina, responsáveis pelo acompanhamento e monitoramento dos adolescentes na instituição (alguns com formação de agentes terapêuticos), técnicos de enfermagem, auxiliares administrativos e auxiliares de serviços gerais. Também participam do Centro de Tratamento docentes da rede estadual de ensino do primeiro e segundo segmentos do Ensino Fundamental, que têm por proposta trazer aos adolescentes, por meio de oficinas, informação escolar, seguindo os Parâmetros Curriculares Nacionais. O programa atende usuários em período de desintoxicação até que possuam condições para dar continuidade ao tratamento nos ambulatórios disponíveis na 223


Recuperando Vidas:...

rede. Tal proposta esbarra em inúmeras dificuldades, uma vez que os municípios do interior do estado possuem poucos equipamentos de atenção para usuários de drogas, o que restringe significativamente o fluxo de atendimento. A atuação da equipe se baseia em oficinas de cunho socioeducativo, que se destinam a promover avaliações sobre a adolescência, sem perder de vista a contínua reflexão sobre suas trajetórias de vida, violências sofridas e suas implicações sociojurídicas e materiais. No que diz respeito ao estado de saúde, enquanto um bem social, são observados os riscos promovidos pelas drogas. Durante o período de internação, o atendido transita livremente pelos espaços da instituição, discute e reivindica direitos nos fóruns existentes. Possui o suporte do Projeto Nossa Casa, uma unidade do DEGASE que atende terapeuticamente adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, o que contribui para que as famílias e os internos possam ter outras formas de apoio emocional além daquela existente na internação. A grande maioria dos atendidos pelo Recuperando Vidas acompanha o perfil de adolescentes encaminhados ao sistema socioeducativo - são oriundos de segmentos pobres, moradores de periferias da área metropolitana do estado, afastados da rede escolar de ensino e com baixas expectativas para o futuro. Famílias sem suporte econômico para garantir o acesso a bens de consumo; adolescentes buscando reconhecimento social (mesmo que às avessas); ausência de acesso a serviços; a relação prazerosa entre o usuário e a droga, que se consolida em uma vida por motivações variadas; farta oferta de drogas nas comunidades – são fatores que constituem uma combinação significativa para um segmento que não possui ilusões quanto ao ingresso no mercado formal e pouco sonha com ascensões sociais por meio do trabalho. Deve ser acrescentada a ela a relação de proteção/subordinação ao tráfico de drogas, a que os adolescentes e suas famílias são submetidos, interferindo nas possibilidades de escolha do adolescente. Este caldo de miséria e abandono que atravessa a realidade da população usuária do Centro de Tratamento é um terreno fértil de atuação do profissional de Serviço Social. Neste contexto ele vai buscar, junto aos usuários e familiares, estratégias para interferir na lógica perversa acima descrita. Assim, sua ação destina-se a estimular a participação de responsáveis e familiares no tratamento, como também construir, com os adolescentes internados, alternativas individuais e coletivas de atendimento diante do processo de internação. O processo, de caráter pedagógico, busca politizar o usuário; a partir dele é possível ultrapassar as questões iniciais sobre adicção e incorporar novos olhares sobre a realidade, que contribuam para seu rompimento com o uso e uso abusivo de drogas. A participação do assistente social no Centro de Tratamento tem se dado na atuação junto aos usuários para informação, orientação e acesso a direitos sociais - destacando a participação que o narcotráfico possui na produção da violência e no aliciamento de novos usuários para a manutenção de seus lucros numa relação econômica inquestionável, sem perder o contexto de classe que tal processo expressa. As articulações entre os diversos parceiros intra e extrainstitucionais envolvidos no sistema é fundamental para defesa e garantia de direitos dos adolescentes. Ao final do internamento, na maioria das vezes de curta duração, o atendimento ambulatorial é fundamental. Nesse sentido, o acompanhamento das audiências nas Comarcas tem se mostrado uma estratégia importante na construção de alianças e desconstrução de mitos relativos ao adolescente usuário de drogas e sua incapacidade de convívio sem corromper a comunidade local. Vale ressaltar a importância de uma escuta capaz de identificar: a dinâmica dos arranjos familiares a que os adolescentes estão vinculados e suas principais demandas, os elementos socioeconômicos importantes e as relações construídas a partir do uso de drogas. O processo de reflexão do atendido sobre as diversas temáticas relevantes para os adolescentes e seus familiares vem contribuir para se repensarem os contornos parentais e comunitários existentes, assim como outros mecanismos de enfrentamento da adicção. A ação pedagógica se faz necessária na promoção do debate crítico a respeito dos mecanismos de enriquecimento no narcotráfico e das formas de enfrentamento da questão por parte do Estado, estimulando o processo organizativo e reivindicatório de profissionais e familiares nos espaços decisórios da política. 224

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MOREIRA, C.A.B.D.; SILVA, A.; MARTINS, S.A.

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Vale lembrar que a família, quando busca o espaço institucional como alternativa para tratar de questões de âmbito privado, expressa um esgotamento de possibilidades de lidar isoladamente com a situação. A responsabilização integral da família pelos sucessos e fracassos decorrentes do uso e uso abusivo de drogas expressa a despolitização da questão: o Estado não está presente no cumprimento dos mínimos requisitos exigidos nas normativas nacionais e internacionais que dizem respeito aos cuidados com a infância e a juventude. O acompanhamento técnico é construído a partir de um plano de trabalho, que é partilhado com os diversos atores institucionais e com o adolescente envolvido. É um processo de ampliação de autonomia para o usuário. A família é parte integrante na organização coletiva do referido plano para cada caso. No contexto brasileiro, diante da inoperância do Estado, tem sido esta a estrutura que abarca as necessidades de proteção social dos indivíduos (Alencar, 2005). A rotina institucional é marcada por práticas cotidianas que se destinam a: reflexão, valorização pessoal, desconstrução de mitos, estabelecimento de metas, produção de novos sentidos para a vida pessoal em que o interno é o protagonista. Todas estas questões possuem desdobramentos de ordem social, mas extrapolam a atuação do técnico no trato institucional. Assim, a atuação do assistente social não privilegia apenas o espaço institucional, mas tem um significado político que ultrapassa o acompanhamento do atendimento e se volta para repensar as ações destinadas a adolescentes envolvidos com o uso de drogas nos espaços decisórios da política para infância e juventude.

Considerações finais O uso de drogas por adolescentes é uma temática que historicamente vem sendo enfrentada com repressão, internamento e medicalização. A criminalização e o assujeitamento de corpos como formas de tratamento não trouxeram resultados promissores. A política destinada a usuários e usuários abusivos de drogas já deixou de ser um caso de polícia e precisa ser reconhecida como uma política de Saúde, com desdobramentos na Assistência. Esta comunicação é resultado de um processo de construção coletiva decorrente das observações e discussões sucedidas no período de execução e supervisão de estágio, e confirma, assim, o que Iamamoto (1999) trata com relevância quando se refere à importância do acompanhamento dos processos sociais e a pesquisa da realidade social, onde o conhecimento da matéria-prima de trabalho fornece subsídios para que o profissional seja sujeito de suas ações e execute-as com consciência dos seus resultados frente à questão social. O movimento de reconhecimento e interpretação dos processos de trabalho, atribuições, limites e possibilidades são os maiores desafios para a construção de uma identidade da atuação profissional. O assistente social está inserido num processo de trabalho coletivo, por meio do qual deve potencializar sua ação de modo a decifrar não só a questão social, mas também as formas de resistência e estratégias de sobrevivência desenvolvidas pelos sujeitos no enfrentamento das desigualdades sociais. Problematizar o fazer do profissional diante da singularidade do atendimento da adicção vai para além do propósito de contribuir para a compreensão do caráter interventivo da profissão na área socioeducativa. É uma forma de destacar os aspectos pedagógicos do Serviço Social, proporcionando, aos usuários, trabalharem coletivamente suas dificuldades diante do uso de drogas, sua inserção de classe numa estrutura capitalista e, desta forma, estimular seu protagonismo em suas histórias (Maciel, 2004). Trabalhar neste espaço contraditório, onde perfilam relações de poder, ordem, moral, exige do assistente social a construção de um fazer profissional marcado pelo processo de trabalho em que está inserido, sem perder a referência ético-política de sua ação, na procura de rumos alternativos para a ruptura com a prática conservadora. É uma oportunidade de registrar que um espaço punitivo, historicamente destinado a modificar condutas sociais, pode ser reformulado e assumir uma ação questionadora e emancipatória do adolescente diante das drogas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Colaboradores A autora Celeste Anunciata Baptista Dias Moreira foi responsável pela elaboração, discussão e redação do texto. As autoras Andreia da Silva e Sara Martins participaram igualmente das discussões, indicações bibliográficas e revisão do texto. Referências ALENCAR, M.M.T. Transformações econômicas e sociais no Brasil dos anos 1990 e seu impacto no âmbito da família. In: SALES, M.A.; MATTOS, M.C.; LEAL, M.C. (Orgs.). Política social, família e juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2005. p. p.61-78. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. ______. Ministério da Saúde. A política do Ministério da Saúde para atenção integral ao usuário de álcool e outras drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2004a. ______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: SNAS/ CNAS, 2004b. ______.Secretaria Especial dos Direitos Humanos e CONANDA. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Brasília: SEDH/CONANDA, 2006. COUTINHO, C.N. Notas sobre cidadania e modernidade. Praia Vermelha: Est. Polít. Teor. Soc., v.1, n.1, p.123-44, 1997. IAMAMOTO, M.V. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e a formação profissional. São Paulo: Cortez, 1999. MACIEL, M.M. A dimensão pedagógica do Serviço Social: bases histórico-conceituais e expressões particulares na sociedade brasileira. Serv. Soc. Soc., n.79, p.43-71, 2004. OLIVEIRA, C.J. O enfrentamento da dependência do álcool e outras drogas pelo Estado brasileiro. In: BRAVO, M.I. (Org.). Saúde e Serviço Social. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2006. p.179-95.

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MOREIRA, C.A.B.D.; SILVA, A.; MARTINS, S.A.

O presente artigo busca problematizar a respeito da atuação do Serviço Social em um centro de tratamento público destinado a adolescentes usuários e usuários abusivos de drogas no Rio de Janeiro – Centro de Tratamento Recuperando Vidas - gerenciado pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), responsável pela execução de medidas socioeducativas no referido estado. Traz, ainda, as análises relativas aos limites impostos pela execução dessa política no sistema socioeducativo que atua com adolescentes em conflito com a lei, como também destaca as possibilidades que tal campo fértil traz à profissão.

Palavras-chave: Adolescentes. Sistema socioeducativo. Uso de drogas. Recovering lives: a care proposal This paper seeks to ask questions about the actions of the social service at a public treatment center for drug using and drug abusing teenagers in Rio de Janeiro: the Recovering Lives Treatment Center, managed by the General Department for Socioeducational Actions (DEGASE), which is responsible for carrying out socioeducational measures in that Brazilian state. This paper also provides analyses relating to the limits imposed by implementing these policies within the socioeducational system that acts in relation to teenagers who are in conflict with the law, and also highlights the possibilities that this fertile field provides for our profession.

Keywords: Teenagers. Socioeducational system. Drug use. Recuperación de vidas: una propuesta de atención. El presente artículo trata de problematizar con respecto a la actuación del Servicio Social en un centro de tratamiento público destinado a adolescentes usuarios y usuarios abusivos de drogas en Rio de Janeiro, Brasil - Centro de Tratamiento Recuperando Vidas - administrado por el Departamento General de Acciones Socio-educativas (DEGASE), responsable por la ejecución de medidas socio-educativas en el referido estado. Comprende también los análisis relativos a los límites impuestos por la ejecución de esta política en el sistema socio-educativo que actúa con adolescentes en conflicto con laley, destacando también las posibilidades que tan fértil campo proporciona a la profesión.

Palabras clave: Adolescentes. Sistema socio-educativo. Uso de drogas. Recebido em 10/12/2007. Aprovado em 18/06/2008.

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livros

REBOLLO, R.A. Ciência e metafísica na homeopatia de Samuel Hahnemann. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia, 2008.

Messias Basques1

Da medicina heróica à homeopatia: a invenção de uma terapêutica vitalista Em Prefácio ao livro de Regina Andrés Rebollo, o filósofo Maurício de Carvalho Ramos nos apresenta uma breve e instigante introdução, propondo que um dos méritos da autora se refere ao tratamento por ela dispensado à compreensão do papel do vitalismo na origem, na constituição e no desenvolvimento das ciências modernas. Segundo Ramos, o livro parece corroborar uma impressão também sua a respeito do fato de que o uso de uma imagem vitalista da ciência continua indispensável para organizar nossa compreensão das ciências da vida e da saúde em sua articulação com a cultura científica moderna, pelo menos da perspectiva de uma epistemologia histórica que se interessa pelo aspecto orgânico dessa cultura (Ramos apud Rebollo, 2008). E a leitura deste belo livro propicia a apreensão da convergência (ou “aglutinação”) de valores díspares no cerne de um sistema médico como a homeopatia, além de abrir a possibilidade para entrevermos aquilo que soçobrou em face do primado das ciências ditas modernas, ávidas por objetividade e em constante

luta para extirpar de suas práticas qualquer apelo a noções tais como: “metafísica”, “espírito”, “efeito placebo” e “eficácia simbólica”. Ramos nos fala das possibilidades de se instaurar, nesses meandros, uma antropologia da ciência que faça da homeopatia um prisma a partir do qual possamos vislumbrar as relações (sempre tensas) entre o sonho de uma eficácia integralmente objetiva e as práticas dos ditos charlatães que não param de pôr em cena outras culturas terapêuticas, avessas à austeridade da ciência e sua legitimidade (Marras, 2004, Stengers, Nathan, 1995; LéviStrauss, 2003, 1949). Poderíamos sugerir, então, que uma inquietação percorrerá todo o livro de Rebollo, a saber: como foi possível aceitar princípios e entidades francamente espirituais, dinâmicas e vitais como fundamentos de uma medicina que se pretendia fiel ao método newtoniano, a certo empirismo radical e a uma farmacologia experimental? Tal como notou Maurício Ramos, esta é a questão que Rebollo procurou problematizar em sua reconstrução racional da história das ciências da vida sob uma perspectiva epistemológica histórica, já que é neste ponto COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Laboratório de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (LACTUFRJ). messias.basques@ gmail.com

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que enfrentamos diretamente o problema da cientificidade de atividades e teorias modernas que se afastaram do eixo física-matemática ou, o que parece ser o caso da homeopatia, a ele se alinharam de maneira heterodoxa (Rebollo, 2008). Em suma, Rebollo nos fala de uma homeopatia hahnemanniana que poderia ser caracterizada como uma tecnologia vitalista, que cria uma desarmonia artificial destinada a restabelecer a harmonia das forças naturais do organismo, enquanto suas medicinas rivais pretendiam dominar essas forças naturais para criar uma harmonia artificial (Rebollo, 2008). Antes de falar dos capítulos que compõem o livro, cabe aqui apresentar, ao leitor, a terapêutica em questão. A homeopatia é um sistema médico criado entre os anos de 1796 e 1810 pelo médico e químico alemão Samuel Christian Friedrich Hahnemann. Formado em medicina em Erlangen, em 1779, Hahnemann lecionou na Universidade de Leipzig de 1812 a 1821. Por discordar basicamente do programa médico da época, do uso nem sempre controlado dos métodos terapêuticos e da utilização indiscriminada de “substâncias nocivas” ao organismo humano, Hahnemann lançou, em 1810, as bases de sua doutrina médica com a publicação do Organon da medicina racional (Rebollo, 2008). Regina Rebollo nos diz que os princípios da homeopatia foram teorizados a partir de 1790, mas que somente em 1810 Hahnemann apresentaria a teoria de forma sistemática e completa. Durante essas duas décadas, trabalhou exaustivamente, reunindo traduções e estudos médicos, informações, experiências químicas, farmacêuticas e clínicas que pudessem servir como matéria para a elaboração de seu novo sistema. O projeto científico de Samuel Hahnemann destinava-se à criação de um sistema médico e terapêutico inteiramente fundado na “verdade experimental” e que pudesse substituir os saberes legados do século XVIII e início do século XIX, considerados, por ele, “excessivamente hipotéticos”. E a autora nos revela que optou justamente por uma análise das bases científicas e metafísicas da homeopatia, assim como elas se apresentam na sua versão final na sexta e última edição do Organon da arte de curar, inteira e detalhadamente revisada por Hahnemann em 1842, um ano antes de sua morte (Rebollo, 2008). O primeiro capítulo do livro de Regina Rebollo 230

foi intitulado Medicina e Método, e tem início com um aforismo do Organon da arte de curar, no qual Samuel Hahnemann afirma que o médico deve ter a cura como a sua missão fundamental, e não a construção de teorias ou sistemas médicos que forneçam pouca ou nenhuma ação eficaz do ponto de vista da clínica. Alçando o estatuto de “ciência experimental”, sua homeopatia postulava a criação de um método de cura certo e seguro, baseado na observação e na experiência, numa arte ou maestria de curar que deveria proceder de forma rápida, suave e duradoura, e na qual o tratamento deveria, portanto, ser menos doloroso e menos prejudicial do que a própria doença (Hahnemann apud Rebollo, 2008). Donde a prescrição do medicamento necessariamente deveria ser precedida por uma avaliação das singularidades da doença. E sua farmacologia fundamentase, assim, em três princípios básicos: a lei do semelhante, as doses infinitesimais, e a prescrição individualizada. Para cumprir tais princípios, Hahnemann põe em prática um programa de pesquisa cuja arquitetura metodológica é inteiramente construída com base em elementos metafísicos, epistemológicos e metodológicos extraídos de vários autores, dentre eles médicos e filósofos naturais da época e dos séculos anteriores. De toda maneira, o problema central da medicina do período era basicamente o de ajustar teoricamente a ação terapêutica, isto é, apresentar uma explicação racional da intervenção médica que tivesse sido elaborada com base num conhecimento perfeitamente estruturado, cujo modelo era o “conhecimento experimental e observacional isento de hipóteses metafísicas”. A homeopatia de Hahnemann tinha o anseio de se tornar uma ciência inteiramente fundada em observações sistemáticas (Rebollo, 2008). Para Hahnemann, o método ideal seria aquele que, tal como preconizado por Hipócrates, Francis Bacon, Thomas Sydenham e Albrecht von Haller, conjugasse a observação e a experiência e cuja verdade fosse extraída dos fenômenos observáveis e generalizada pela indução. Mesmo tendo aderido ao quadro geral de interpretação mecânico-corpuscular, Sydenham (1621-1689) aceitara a noção de physis, de uma natureza autorreguladora que regeria de maneira teleológica a economia interna

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força vital), e na morte (quando há uma ausência total da força vital). E é nesse sentido que Rebollo afirma que o princípio vital residiria na base da teoria homeopática, sendo um de seus principais conceitos primitivos (Rebollo, 2008). A seu modo, Hahnemann tentou acomodar os avanços da química e da física a uma concepção médicofisiológica emergente. E a noção de homem que permitia esse diálogo evocava uma figura ternária, isto é, um filho de um “criador bondoso e providencial”, portador de um corpo material, animado por um princípio vital e uma alma, ou espírito. O corpo era pensado como a sede de uma rede de músculos e nervos que carregam no seu interior um tipo de energia dinâmica, que o colocaria em movimento. Ainda assim, Hahnemann defendia que a força vital, por si só, não poderia explicar os fenômenos vitais, pois era preciso estudar os seus efeitos e organizá-los em leis gerais que pudessem fornecer resultados práticos ou clínicos. No capítulo seguinte, intitulado A Patologia Hahnemanniana, Regina Rebollo trata da elaboração teórica que respaldou essa visão da saúde e da doença, e que culminou numa nosologia de espécies morbosas de natureza não material (fluídica, sutil ou dinâmica) apresentada na tese dos miasmas. Entidades de caráter nocivo e hostil à saúde, os miasmas foram concebidos por Hahnemann como a causa desencadeadora das doenças. A este respeito, Rebollo pondera que sua patologia contém sérios problemas de coerência e de adequação teórica e empírica, uma vez que concebia o contágio das doenças epidêmicas a partir da idéia de “contato imaterial”, por si só uma contradição. Neste capítulo, a autora nos apresenta as principais concepções etiopatológicas da época e, em seguida, a visão particular que Hahnemann tinha das mesmas. É interessante notar que a busca do agente hostil de natureza material se constituiu no principal programa médico-patológico do final do século XVIII e no início do XIX, culminando na descoberta dos micróbios. Todavia, Hahnemann, ao conceber a origem das doenças como o resultado de um agente etiológico de caráter não material, não somente elaborou uma explicação etiológica particular, mas opôs-se à mentalidade de sua época, que buscava a causa morbis ocasionales de natureza material no interior do corpo doente a partir de exames COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dos fenômenos (Rebollo, 2008). As causas teleológicas gerariam fenômenos dinâmicos e, dessa forma, a doença não era concebida como ausência da ordem, mas como reorganização (do estado fisiológico). No que concerne a Haller (1708-1777), foi de suas observações controladas de animais vivisseccionados que se erigiu o modelo de experimentação almejado pelos médicos do século XVIII. E foi inspirado no legado newtonianista que Hahnemann também endossou o famoso imperativo “não faço hipóteses” [hypotheses non fingo], uma vez que procurava incessantemente aproximar a ciência médica da ciência matemática, buscando o mesmo nível de certeza e verdade desta. Mas qual seria, afinal, o modelo de ciência da “observação e da experiência” que Hahnemann tinha em mente? Justamente aquele praticado no campo das ciências da vida, por exemplo, na fisiologia de Haller e Bichat e na química farmacológica de Cullen e Lavoisier (Rebollo, 2008). Foi assim que sua homeopatia pôde postular que, se a força vital se encontra em desequilíbrio, alterada, o estado implicaria doença, caracterizando-se pela presença de um agente mórbido hostil: os miasmas. Estes eram entendidos como forças dinâmicas imateriais e apenas observados a partir dos efeitos que provocavam no organismo. Por conseguinte, há que ressaltar que quando Hahnemann concebia seus medicamentos como substâncias capazes de alterar o dinamismo dos organismos, ele estava, na verdade, inferindo causas inobserváveis diretamente de efeitos dinâmicos observáveis, os fenômenos propriamente ditos. E na interpretação de Rebollo, isso nos conduz a uma possível identidade entre Newton, Haller e Hahnemann: a natureza dinâmica dos fenômenos por eles estudados. Descontente com os sistemas médicos de sua época, Hahnemann passou anos e anos de sua vida às voltas com o desafio de elaborar uma teoria médica capaz de tratar dos fenômenos vitais. No segundo capítulo, Medicina e Vitalismo, a autora debate o princípio vital de Hahnemann, enquanto causa primeira e mantenedora da vida, e que se constitui no objeto central das explicações dos estados de saúde (fisiologia básica vitalista), doença (etiologia das forças hostis à vida); no processo da cura (onde se revela, aos sentidos, a verdadeira natureza da

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anatomopatológicos pós-morte. Hahnemann recusava-se a aderir a tal mentalidade como fundamentação da teoria patológica, já que considerava que as lesões encontradas nos órgãos dos corpos dissecados eram efeitos da força vital alterada, e não causas que teriam tirado a vida do doente (Rebollo, 2008). Neste sentido, toda doença seria uma manifestação particular e individual. Seria a forma pela qual a força vital tentaria se desvencilhar de um agente hostil, o miasma agudo ou crônico. Logo, não existiriam doenças, mas apenas doentes. E, ainda, para Hahnemann, as doenças crônicas seriam o resultado final de medidas terapêuticas equivocadas que possibilitavam que os miasmas evoluíssem - e o miasma da psora ganhou, assim, o estatuto de mais antigo, universal e destrutivo, sendo a causa originária de todas as doenças. Assim, o médico homeopata deveria ter como finalidade terapêutica última a descoberta da presença deste miasma num doente crônico. Podemos conjecturar que este seja um antecedente, nos domínios da homeopatia, daquilo que tornaria Louis Pasteur uma celebridade no rol das ciências modernas. Isto é, trata-se do “faz-fazer”, do “fazer a natureza falar”, de que nos fala Bruno Latour a respeito das relações entre o fermento e Louis Pasteur: “No curso do experimento, Pasteur e seu fermento intercambiaram e mutuamente aprimoraram suas propriedades: Pasteur ajudou o fermento a mostrar quem era, o fermento ‘ajudou’ Pasteur a ganhar uma de suas muitas medalhas” (Latour, 2001, p.145). Vemos assim o incipiente despertar do protagonismo de psoras, fermentos e micróbios ante o seu público: médicos e doentes. No próximo capítulo, o leitor poderá acompanhar a imersão que Regina Rebollo fez nos escritos de Samuel Hahnemann em busca das bases terapêuticas de sua homeopatia. Para Hahnemann, a saúde seria basicamente a ausência de sintomas, ou melhor, a força ou o princípio vital trabalhando “em silêncio”, em harmonia ou equilíbrio. Uma vez que a doença fora por ele definida como a alteração desse equilíbrio natural, a intervenção terapêutica, isto é, a arte de curar, deveria buscar de forma suave e indolor a eliminação de sinais e sintomas clínicos de natureza física, mental e emocional. E, ao estudar detalhadamente os 232

registros toxicológicos das matérias médicas da época, Hahnemann notou que determinados sintomas morbosos eram surpreendentemente eliminados após a ingestão acidental ou criminosa (envenenamento e tentativas de suicídio) de uma substância cujos efeitos principais assemelhavam-se aos sintomas morbosos em questão. E doravante, passaria a ingerir, ele próprio, substâncias vegetais, animais e minerais, registrando sistematicamente os sintomas por elas provocados em seu organismo. Em seguida, testou cada uma das substâncias em um indivíduo doente cuja totalidade dos sintomas coincidia exatamente com a totalidade dos sintomas ou efeitos por ela provocados. Hahnemann afirmou ter observado, como resultado, o desaparecimento total dos sintomas morbosos e deduziu, desta observação, a existência de uma “lei de caráter natural”, a lei do semelhante. Ao utilizar o princípio ou a lei do semelhante, Hahnemann distanciou-se de seus contemporâneos galenistas, os quais, partindo da “lei terapêutica dos contrários” ou do princípio contraria contrariis curantur, faziam intervir medicamentos concentrados, por cujos efeitos principais acreditavam ser capazes de anular os sintomas morbosos. Crítico incansável das medidas terapêuticas utilizadas na época, Hahnemann condenava as sangrias e a aplicação de sanguessugas, os purgativos, os vômitos e toda sorte de “apoio curativo” utilizado pela chamada medicina heróica, já na época conhecida por fazer dos doentes verdadeiros heróis, caso sobrevivessem aos procedimentos terapêuticos a que eram submetidos. Seria preciso, portanto, criar uma nova tecnologia terapêutica que pudesse atingir o dinamismo da força vital morbosamente alterada e que não agisse somente “de maneira mecânica em razão de seu peso” (Rebollo, 2008, p.118). Inspirado em suas concepções vitalistas acerca da natureza das doenças e convencido de que os medicamentos e as medidas terapêuticas utilizadas pelos galenistas não contribuíam para a cura, Hahnemann desenvolveu uma série de substâncias gradualmente menores, diluídas, “dinamizadas” e “potencializadas”, registrando, com todo o rigor possível, os seus efeitos. Sua terapêutica postulava a individualização, isto é, a personalização de doses e medicamentos em função de um quadro sintomático individual em oposição às doses e medicamentos prescritos

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Referências LATOUR, B. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: Edusc, 2001.

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em função de patologias específicas. As doses, por sua vez, eram prescritas em função da resposta individual do paciente ao medicamento escolhido, resultando também numa personalização das potências. Ao reagir contra a ação medicamentosa, a força vital reagiria contra a ação miasmática provocando a cura homeopática. Essa abordagem exigia do médico homeopata uma anamnese extremamente detalhada, minuciosa e rigorosa, na qual se constrói um quadro das alterações mentais, emocionais e físicas dentro de um contexto sociocultural e geoclimático (moradia, trabalho, hábitos alimentares, casamento, vida familiar, cidade e região de habitação). Por fim, a autora situa Hahnemann e a Ciência de seu Tempo, e defende uma aproximação do método newtoniano à orientação empregada por Hahnemann em sua investigação da natureza, ou melhor, na realização de experimentos e na extração de conclusões a partir deles. Trata-se do método indutivo-experimental e da negação de hipóteses metafísicas em ciência. A seu ver, o vitalismo dinâmico hahnemanniano poderia ser explicado como um dos tantos resultados, no século XVIII, da dinâmica corpuscular inglesa newtoniana, quando aplicada às ciências da vida (Rebollo, 2008). A particularidade de Hahnemann repousaria no fato de que, na maior parte dos casos, ele “interpretava” os dados observacionais mediante recurso a hipóteses altamente metafísicas. Mas em que medida tais interpretações comprometeram o caráter “científico” da homeopatia, tão apregoado por Hahnemann? Como bem notou a filósofa Isabelle Stengers, a controvérsia em torno da cientificidade da homeopatia nos dá mostras de que não é de hoje que os médicos evitam, a qualquer preço, as semelhanças com aqueles tidos como charlatães e, por isso, vivem com malestar a dimensão taumatúrgica de sua atividade. O paciente, acusado de irracionalidade, intimado a se curar pelas ‘boas’ razões, hesita. Mas onde, nesse emaranhado de problemas, de interesses, de constrangimentos, de temores, de imagens, estaria a objetividade? O argumento ‘em nome da ciência’ se encontra por toda parte, mas não para de mudar de sentido (Stengers, 2002).

LÉVI-STRAUSS, C. A eficácia simbólica. In: ______. Antropologia estrutural. 6.ed. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2003. p.215-36. ______. O feiticeiro e a sua magia. Les Temps Modernes, v.4, n.41, p.3-24, 1949. MARRAS, S. A propósito de águas virtuosas: formação e ocorrências de uma estação balneária no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2004. REBOLLO, R.A. Ciência e metafísica na homeopatia de Samuel Hahnemann. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia, 2008. STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34, 2002. STENGERS, I.; NATHAN, T. Médecins et sorciers. Paris: Les Empêcheurs de Penser em Rond, 1995.

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Rede social: saberes e práticas no cotidiano do ex-hanseniano Social network: knowledge and practices in daily life of ex-leprosy

Importante problema de saúde pública, a hanseníase é parte ainda de um indesejado patrimônio da humanidade, associado ao subdesenvolvimento, à exclusão e à dor. Com o fim do internamento compulsório, os leprosários se tornaram grandes comunidades que albergam tanto os ex-hansenianos, como também seus familiares. Diante da lacuna histórica em torno deste fenômeno, desenvolveu-se este estudo objetivando: registrar a história de saúdedoença do ex-hanseniano, com ênfase nos saberes, nas experiências vividas e na práxis dos atores sociais envolvidos desde os momentos iniciais da colonização até os dias de hoje; conhecer o discurso acerca do mundo de vida do Ser (ex) hanseniano na atual conjuntura do Centro de Convivência Antônio Diogo; identificar o que permite ao familiar/agregado não hanseniano se sentir “daqui” e “em casa” nos espaços destinados aos ex-hansenianos. Caracteriza-se como um estudo exploratóriodescritivo, realizado durante o ano de 2008, nas dependências da Colônia Antônio Diogo, no Estado do Ceará, Brasil. Foram tomados, como fonte de informação, documentos pessoais e do acervo da própria colônia, assim como 18 (dezoito) moradores da colônia, entre ex-hansenianos e familiares, aos quais foram aplicados entrevista e o roteiro da História Oral. Os dados foram organizados com o apoio da técnica do Discurso do sujeito Coletivo. Os resultados revelam que a institucionalização da hanseníase acarretou graves perdas, sobretudo, social. A cura faz parte de um capítulo fundamental na vida dos depoentes. Há os que a percebem como uma conquista, outros para os quais a mudança do status da doença não parece mudar muita coisa. Os que ficaram com sequelas acham impossível usufruir da sensação de cura, preferindo limitar-se aos espaços da

colônia, evitando, assim, o preconceito; e criticam a condição atual da comunidade, onde existem mais sadios morando do que pessoas doentes. O apego ao passado e ao lugar onde morou grande parte da vida, a rede de relações, enfim, que o ex-hanseniano insiste em manter, servem, nestas circunstâncias, ao propósito de permitir a identificação com um grupo, favorecendo um vigoroso sentimento de pertença. Nas representações partilhadas por ex-hanseniano e seus familiares acerca do contexto atual do Centro de Convivência Antônio Diogo, ser pessoa curada tem significado simbólico de religação com o mundo “de fora” da colônia, e, junto com isso, de autorreconstrução e aceitação de si. Ana Carolina Rocha Dissertação de Mestrado (2008) Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza anacarolinarochapeixoto@yahoo.com.br

Palavras-chave: Hanseníase. História oral. Discurso do Sujeito Coletivo. Keywords: Leprosy; Verbal history. Speech of the Collective Citizen. Palabras clave: Lepra. Historia oral. Discurso del Sujeto Colectivo.

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Representações sociais de usuários sobre o Programa Saúde da Família The social representations of the users about the Family Health Program

Trata-se de um estudo de caso com abordagem qualitativa, fundamentado na Teoria das Representações Sociais, com o objetivo de apreender as representações sociais de usuários sobre o Programa Saúde da Família. Os sujeitos da pesquisa foram sete usuários, sendo dois homens e cinco mulheres, com a média de idade de 70 anos, moradores, há aproximadamente dez anos, da área de abrangência de uma Unidade Básica de Belo Horizonte, localizada no distrito Noroeste. Realizou-se entrevista aberta com base na seguinte questão norteadora: “o que você entende sobre o Programa Saúde da Família?”. As entrevistas foram encerradas no momento da saturação dos dados. Utilizou-se a análise de discurso para a interpretação dos dados. Fez-se a leitura sistematizada das entrevistas para definição do corpus e apreensão das representações dos usuários sobre o Programa Saúde da Família. Os dados foram organizados em duas categorias: 1 - no tempo em que acesso significava espera e falta; 2 – novas formas de fazer saúde, novas formas de representá-la. A primeira refere-se às representações sociais da atenção à saúde no período anterior à implantação do Programa em Belo Horizonte, enquanto a segunda mostra as representações no momento atual. Com base nessas categorias, percebe-se que há mudanças reconhecidas no discurso dos usuários, com outro olhar sobre as ações desenvolvidas pelos profissionais na Unidade Básica. As representações dos usuários sobre o Programa Saúde da Família não são definidas pelo reconhecimento do nome ou da sigla estabelecida pelo Setor Saúde e por seus trabalhadores, mas por aproximações e noções construídas no cotidiano das relações que vivenciam quando procuram atendimento. Os usuários percebem o momento de transição que o Setor Saúde vivencia, o que reflete sobre 236

novas formas de representação do Programa apesar de haver resquícios, em sua memória, do atendimento que recebiam antes da implantação do atual modelo. Destacam a garantia de acesso ao Serviço com o término das filas, a construção de vínculos com os profissionais que os atendem, além de identificarem a Unidade Básica de Saúde como espaço social onde podem desenvolver atividades de promoção da saúde. Espera-se que este estudo proporcione reflexões, por parte de profissionais e gestores, sobre a importância de conhecermos os valores e crenças dos usuários quanto à organização do Serviço e sobre a parceria com os usuários para que os princípios da estratégia de Saúde da Família sejam alcançados integralmente. Ana Paula Azevedo Hemmi Dissertação de Mestrado (2008) Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte anahemmi@gmail.com

Palavras-chave: Saúde da família. Sistema Único de Saúde. Representações sociais. Participação comunitária. Acesso aos serviços de saúde. Keywords: Family health. National Health Programs. Social representations. Consumer participation. Health services accessibility. Palabras Clave: Programa de Salud Familiar. Sistema Básico de la Salud. Representaciones sociales. Participación de la comunidad. Acceso a los servicios de la salud.

Texto na íntegra disponível em: http://www.enf.ufmg.br/ mestrado/dissertacoes/AnaPaulaHemmi.pdf.

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