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APRESENTAÇÃO

Este número da Interface - Comunicação, Saúde, Educação traz diversos recortes temáticos que se iniciam e terminam no campo das práticas sociais e das relações de poder. Abrindo a edição, “A medicalização do crime”, de Fernanda Rebelo e Sandra Caponi. O artigo é um primoroso estudo sobre as interfaces dos pensamentos médico-higienista e jurídico, as relações entre saber e poder na primeira metade do século XX e a psiquiatrização dos comportamentos. Discute a instalação do modelo penitenciário, analisando os medos que afetaram os centros urbanos e as estratégias para seu controle. O texto de Eliane de Castro e Elisabeth Araújo Lima, “Resistência, inovação e clínica no pensar e no agir de Nise da Silveira”, aparece na seção Espaço Aberto, quase ao final da revista, e resgata um exemplo de resistência e rompimento com esse poder de encarceramento. Vem articulado à Criação. Em “IN PACTO a obra no mundo - arte e corpo em terapia ocupacional”, a mesma Eliane ilustra a trama de diversos dispositivos da clínica aos espaços da cidade, no circuito cultural. Destaca-se, também, o instigante ensaio de Luiz Cecílio em torno do conceito de “trabalhador moral na saúde”, que abre a seção Debates e provoca, igualmente, ricos comentários de Gastão Campos, Maria Elizabeth de Barros e Ricardo Ceccim em torno de diferentes perspectivas da gestão em nossas instituições e do espaço de produção do trabalhador da saúde nesta arena. O fascículo traz, ainda, novas contribuições à reflexão sobre temas da Saúde, em trabalhos que abordam a recente política nacional de promoção da saúde no Brasil, uma nova proposta no ensino de Psicopatologia, equipes de referência e a integração entre saberes e práticas nos serviços de saúde, a relação entre família e profissionais no cuidado e atividades de promoção da saúde de idosos e crianças. Encerrando a seção Artigos, dois ensaios retomam reflexões que podem contribuir para o debate atual sobre as práticas educacionais na universidade, numa mesma perspectiva teórica. No primeiro, Angelo Abrantes e Lígia Martins reafirmam a produção do conhecimento científico como uma das expressões da relação sujeito-objeto, analisando-a à luz da teoria materialista histórico-dialética do conhecimento e das contribuições dos russos Kopnin e Petrovski. No segundo, Sandra Della Fonte defende que o Eros primordial da educação escolar não se efetiva quando se abre mão do conhecimento objetivo e da sua apropriação. Para desenvolver essa idéia, parte de considerações de Platão sobre o amor, presentes em O Banquete, para, em seguida, trazer as reflexões de Marx sobre a paixão, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos. E são o marxismo e a pedagogia os temas centrais da Entrevista, seção retomada nesta edição. Nosso entrevistado, professor Newton Duarte, da Unesp de Araraquara, é um crítico radical do ideário pedagógico do universo neoliberal e pósmoderno, da tese escolanovista, segundo ele reeditada pelo construtivismo. Explicitando suas posições sobre educação e psicologia da educação, traz para o diálogo elementos para uma teoria histórico-crítica do trabalho educativo e polemiza com uma tendência atualmente muito comum entre educadores brasileiros: a que propõe aproximações entre as concepções de Vigotski e as de ideários com o lema “aprender a aprender”, descaracterizando as raízes marxistas do pensador russo. Mariangela Quarentei, editora associada

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PRESENTATION

This issue of Interface - Comunicação, Saúde, Educação offers several thematic viewpoints that begin and end in the field of social practices and of power relations. Opening this edition, we have “The medicalization of crime”, by Fernanda Rebelo and Sandra Caponi, a fine study of the interfaces between the medical-hygienist and the legal lines of thought, the relations between knowledge and power in the first half of the 20th century and the transformation of behaviors into psychiatric phenomena. It discusses the establishment of the penitentiary model, analyzing the fears that affected urban centers and the strategies for controlling the said fears. “Resistance, innovation and clinical practice in the thoughts and actions of Nise da Silveira”, by Eliane de Castro and Elisabeth Araújo Lima, appears in the “Open Discussion” Section, almost at the end of the magazine, and recovers an example of resistance and rupture regarding this incarceration power. It comes articulated with Creation. In “IN PACTO the work in the world – art and the body in occupational therapy”, Eliane, the same author, illustrates the scheme of several clinical resources in connection with the city’s spaces in the cultural circuit. Opening the “Debates” section, Luiz Cecílio’s instigating essay about the notion of “moral health workers” is also outstanding and draws equally rich comments from Gastão Campos, Maria Elizabeth de Barros and Ricardo Ceccim about different management perspectives in our institutions and the room for healthcare workers’ production in this arena. This issue also brings new contributions to the reflection on Health themes in articles about Brazil’s recent national health promotion policies, a new Psychopathology teaching proposal, reference teams and the integration between knowledge and practices in health care services, the relation between the family and professionals in caring for patients, and children’s and senior citizen’s health promotion activities. Closing the Articles section, two essays resume reflections that may contribute to the current debate on the educational practices of universities, from the same theoretical perspective. In the first, Angelo Abranes and Lígia Martins reiterate scientific knowledge production as one of the expressions of the subject-object relation, analyzing it in the light of the historical-dialectic materialist theory of knowledge and of the contributions of two Russians, Kopnin and Petrovski. In the second one, Sandra Della Fonte advocates that the primordial Eros of school education does not become effective when one gives up objective knowledge and its appropriation. She uses Plato’s thoughts on love as set out in The Banquet as a starting point for the development of this idea and then adds Marx’s reflections on passion, as stated in the Economic and Philosophical Manuscripts. Marxism and pedagogy are also the core themes of the Interview, a section resumed in this edition. Our interviewee, Professor Newton Duarte, from the Araraquara campus of the State University of São Paulo – Unesp, is a radical critic of the pedagogical set of ideas propounded by the neoliberal and post-modern universe, by the “newschoolist” thesis, according to him reedited by constructivism. Clarifying his positions on education and the psychology of education, he draws into this dialogue elements for a historical and critical theory of educational work and polemicizes the currently common trend among Brazilian educators towards an approximation between the notions of Vigotski and those that are underscored by the motto “learning how to learn”, which do away with the Marxist roots of this Russian thinker. Mariangela Quarentei, associate editor

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artigos

A medicalização do crime: a Penitenciária de Florianópolis como espaço de saber e poder (1933-1945)

Fernanda Rebelo1 Sandra Caponi2

REBELO, F.; CAPONI, S. The medicalization of crime: the Florianópolis Penitentiary as a space of knowledge and power (1933-1945). Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.193-206, mai/ago 2007.

This paper discusses the implementation of the penitentiary model in the city of Florianópolis in the 1930s from the standpoint of hygienist medicine and its interface with legal thinking. From the 1920s onward, several types of control institutions were created in Florianópolis. It was necessary to devise a modern police apparatus to control the population, given the fear of catching diseases and the epidemic hazard posed by the dense population of the slums and multiple-storey houses. The city center should be made healthier for the bourgeoisie, but first ‘undesirables’ such as beggars and prostitutes needed to be put ‘where they belonged’. The objective of this article is to analyze how these “fears” that affected all urban centers as from the 19th century also appeared in Florianópolis and what control strategies were created, particularly those devised within penitentiaries. KEY WORDS: Hygiene. Eugenics. Penitentiary model. Public health. Medicalization. Este trabalho discute a instalação do modelo penitenciário em Florianópolis, nos anos 30 do século passado, sob a ótica do pensamento médico-higienista e suas interfaces com o jurídico. A partir da década de 1920, em Florianópolis, observa-se a criação de diversos tipos de instituições de controle. Era necessário um moderno aparato policial para controlar a população; havia o medo do contágio de doenças e o perigo das epidemias que vinham junto com as aglomerações nos cortiços e sobrados. O centro da cidade deveria se tornar mais salubre para a burguesia poder habitá-lo, mas antes, as pessoas “indesejadas”, como mendigos e prostitutas, deveriam ser colocadas nos seus “devidos lugares”. O objetivo deste artigo é analisar de que modo esses “medos” que afetaram todos os centros urbanos a partir do século XIX apareceram também em Florianópolis, e que estratégias foram criadas para o seu controle, particularmente as construídas nas instituições prisionais. PALAVRAS-CHAVE: Higiene. Eugenia. Sistema penitenciário. Saúde pública. Medicalização.

1 Jornalista; mestre em Saúde Pública; doutoranda, Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ. <feferebelo@yahoo.com.br>; <fernandarebelo@hotmail.com> 2 Licenciada, bacharel e doutora em Filosofia; coordenadora, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC. <sandracaponi@newsite.com.br>

1 Rua Sambaíba 351, apto.102 Leblon - Rio de Janeiro, RJ 22.460-140

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A racionalização da vida e das instituições A instalação do modelo penitenciário em Florianópolis vem atender a demandas regionais, como a necessidade de um local para se colocar detentos de outras cidades de Santa Catarina, como Blumenau, com um parque industrial em expansão e, conseqüentemente, percebendo a formação de uma classe de operários que precisava ser controlada; mas aparece em conjunto com um ideal de “progresso” nacional, baseado num pensamento médico-higienista. A cidade também estava em busca da “ordem e progresso”, princípios do pensamento positivista que tomaram conta do país. As necessidades de higiene exigiam uma intervenção médica, muitas vezes autoritária, sobre o que aparecia como foco privilegiado de doenças, como, por exemplo: hospitais, prisões, portos, cortiços. A partir deste saber médicoadministrativo, ou seja, a partir da aplicação prática da medicina social, na forma de pensamento higienista e eugenista, forma-se o núcleo que dá origem à “economia social e à sociologia do século XIX” (Foucault, 1993, p.103). A distribuição e vigilância dos indivíduos e a reorganização das cidades seria feita e ditada por normas médico-higienistas, numa época em que aglomeração de pessoas e desordem eram sinônimos de doenças, epidemias, atraso, caos. Pretende-se fazer, aqui, uma análise do processo de criação e reorganização do modelo penitenciário na cidade de Florianópolis, ocorrido nos anos 30 do século passado, como uma situação particular dentro desse processo de reestruturação das cidades, que não pode ser pensada fora do espaço da medicalização dos corpos. Com vistas à utilização racional da vida e das instituições, o hospital, assim como a prisão, transforma-se em máquina de curar. A observação, as anotações e os registros, com a ajuda da estatística, permitem a fixação do conhecimento dos indivíduos, dos diferentes casos clínicos, seguindo a evolução particular das doenças até atingir registros populacionais, o que Foucault (1988) chamou de biopolítica das populações. Quando se analisa a instalação do modelo penitenciário na cidade de Florianópolis, por intermédio do viés do pensamento médico-jurídico e suas possíveis interfaces, percebe-se, mediante os discursos presentes nas fontes primárias estudadas, uma preocupação muito forte com o crime associado à hereditariedade, degeneração e higiene, além da utilização de um marcante vocabulário médico. A grande questão em relação às aglomerações urbanas e à falta de infraestrutura das cidades do século XIX consistia no perigo do contágio de doenças, o que acontecia, segundo as autoridades da Saúde Pública, por intermédio das habitações dos pobres, como as casas de estalagem e os cortiços. Era necessário, então, conhecer a origem das epidemias e, para isso, criou-se um gênero, a topografia médica, o conjunto de dados ou estudos que englobavam a força dos ventos e das marés, as chuvas, o estado das ruas, as habitações e quartos dos trabalhadores. Seria o ponto de partida de diversas intervenções urbanas sanitárias. A Higiene se cria entre miasmas e números.

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Polícia para quem precisa O problema da classe pobre como classe perigosa surge, na Europa, em meados do século XIX, junto com os medos urbanos relacionados às epidemias, às aglomerações e ao temor do contágio. Já no Brasil, a associação entre classe pobre/perigosa surgirá com a abolição da escravatura, em 1888, e o problema será em relação à massa de ex-escravos que vão habitar os cortiços, as favelas, ou mendigar nas ruas do centro das cidades. Os hábitos e as moradias dos pobres passam a ser nocivos à sociedade (Chalhoube, 1996). Essas transformações sociais e urbanas serão respaldadas pela idéia burguesa de progresso e civilização. O ideário republicano e científico de “civilização” entrará nas cidades, com base nas teorias evolucionistas e nas políticas higienistas que tratarão de reformar, normalizar, modernizar, moralizar. No entanto, essas idéias não serão recebidas pela população de uma forma muito tranqüila, haverá resistência e, conseqüentemente, repressão. E para que haja esta repressão, será necessário, então, um aparato ou sistema policial também eficiente e moderno. O projeto de urbanização, junto com a repressão do aparato policial, produz, então, inúmeros indivíduos que passam a ser considerados indesejáveis para a sociedade, como os loucos, os menores abandonados, as prostitutas, os mendigos, muitos que, antes, circulavam pelas ruas sem muitos conflitos com a polícia e com o resto da população, fazendo parte da paisagem. A cidade, agora, não poderia mais pertencer também a eles. Em Florianópolis, diversas instituições serão criadas com a função de manter cada indivíduo no seu devido lugar. Junto com a Penitenciária Pedra Grande, inaugurada em 1926, surgirá o Asilo de Órfãos São Vicente de Paula e, depois, o Asilo de Mendicidade Irmão Joaquim; em 1938, o leprosário Santa Tereza; em 1940, o Abrigo de Menores da Congregação dos Maristas; e a Colônia Santana, em 1942, para os loucos; essas instituições funcionarão como agentes de poder e, em certos casos, de constituição de saberes experimentais e observacionais, “tendo o privilégio da higiene e o funcionamento da medicina como instrumento de controle social” (Foucault, 1993, p.211).. Os relatórios policiais de Florianópolis, na década de 1920, propunham a constituição de instituições, como hospícios, institutos disciplinares para menores e uma penitenciária. Destaca-se, também, a ação policial que se intensificava de forma ostensiva, reprimindo a população “indesejada” que circulava pela cidade (Miranda, 1998, p.35). A expressão classe perigosa surgiu em um estudo de 1840 sobre criminalidade, feito pela escritora inglesa Mary Carpenter. Ela utiliza o termo para designar um grupo social formado à margem da sociedade civil. As classes perigosas eram constituídas pelas pessoas que já houvessem passado pela prisão ou as que, mesmo não tendo sido presas, haviam optado por obter seu sustento e o de sua família por meio da prática de furtos, e não do trabalho (Chalhoub, 1996). Para os governantes e as autoridades da saúde pública, a classe pobre, muitas vezes, era designada como classe perigosa ou classe viciosa por viver aglomerada, na ociosidade, e por ser afeita a vícios, como o álcool. Estas foram as razões que levaram o poder público, com a

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ajuda da polícia, a agir com tamanha violência nos bairros populares, expulsando essas classes perigosas para os morros e as periferias das cidades. A nova elite catarinense Para essa “nova” cidade, a cidade higiênica e seus habitantes, os pobres, não só eram perigosos por causa dos vícios e da vadiagem3,mas também pelo perigo de contágio de doenças. Os cortiços eram vistos tanto como um problema para o controle social4 da população quanto como uma ameaça para as condições de higiene da cidade. Nessa época, estavam ocorrendo mudanças também dentro da própria elite catarinense, que deixava de ser constituída somente por funcionários públicos e militares, passando a ser formada, também, por homens ligados ao comércio e à incipiente indústria que começava a se instalar no interior do Estado. Essas elites estavam ansiosas por ascender socialmente, materialmente e culturalmente e, para isto, incorporavam hábitos que importavam do Rio de Janeiro. No final do século XIX, por exemplo, foi instalado o sistema de bondes na cidade, mas só as pessoas “civilizadas” e de “bons hábitos” poderiam utilizá-los, pois se proibia a entrada, nesses veículos, de indivíduos “mal trajados” e descalços (Hermetes, 1989, p.24). Além disso, habitações populares que se localizavam próximas de prédios públicos importantes, como o Congresso Representativo e o Teatro Álvares de Carvalho, foram demolidas. A Avenida Hercílio Luz, antes conhecida como Avenida do Saneamento, representava uma das ações administrativas de mais relevância nas práticas saneadoras e normalizadoras, pelo fato de seu percurso cortar uma área da cidade que era alvo de repressão por parte dos poderes públicos. Antigos bairros, como a Pedreira, Figueira e Tronqueira5, habitados pela população pobre, eram vistos como focos de miasmas e conhecidos, pelos poderes públicos, como centros de vadiagem (Poyer, 2000). A idéia de implantação do modelo penitenciário casa com o pensamento das autoridades em relação ao controle social dos pobres e aos preceitos higienistas. Será no governo de Adolpho Konder, iniciado em 1926, que começará a construção do prédio que dará origem à Penitenciária Pedra Grande. Assim, as transformações urbanas e a instauração de instituições de controle e disciplina faziam parte não só de aspirações locais, mas também de algo mais abrangente, como uma idéia de projeto nacional de civilização e progresso, baseado em teorias científicas6 que nortearão o pensamento das elites nacionais a partir do fortalecimento das instituições de ensino. Junções de práticas e discursos entre medicina e jurisprudência Logo depois da sua inauguração em 1926, a Penitenciária Pedra Grande passaria por obras na sua arquitetura e administração. Ela deveria ser um instrumento para a cura do criminoso, de seu delito, inclusive, com a presença de um médico dentro da instituição e de um gabinete médico, não só para cuidar da saúde do sentenciado, mas também para se estudarem melhor as causas do “fenômeno crime”. É isso que percebemos no relatório do chefe da seção de 1933. Ele afirma

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A vadiagem como infração está no Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei n° 3.688, de 3 de outubro de 1941. A título de curiosidade, a presença de indivíduos processados por vadiagem no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, em 1920, era expressiva. Sobre esta questão ver Engel (1999).

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Chalhoub (1996) mostra que, no caso do Rio de Janeiro, a decisão política de expulsar as classes populares das áreas centrais das cidades poderia estar associada a uma tentativa de desarticulação da memória recente dos movimentos sociais urbanos, já que os cortiços foram um importante cenário da luta dos negros da Corte contra a escravidão nas últimas décadas do século XIX.

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Para localizar esses bairros hoje em dia, ver o mapa da Florianópolis do início do século XX no estudo de Poyer, 2000, p.131.

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Entre essas teorias, havia o lamarckismo, o evolucionismo, sendo aceita fundamentalmente a versão spenceriana, obcecada pelo problema da adaptação social. Para aprofundar esta questão, ver Schwarcz (1993).

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que, junto à seção de medicina, deveria haver a de criminologia para a investigação da origem do crime sob o ponto de vista científico. Não bastava mais saber só quem matou e punir, era necessário investigar tanto as verdadeiras causas do crime quanto as possíveis motivações dos criminosos. Instinto, necessidades, hereditariedade, quais seriam, afinal, as causas do crime? Dado aos poucos recursos e a situação financeira agravada pelas dívidas que pesam ao Estado – legado das administrações anteriores – ainda não foi possível dotar esta seção de todas as instalações exigidas pela técnica moderna. Assim, junto à Seção de Medicina, deveria existir a de Criminologia, encarregada de proceder todos os exames dos sentenciados para debaixo do ponto de vista científico, antro-psicológico e outros métodos mais completos, permitir a investigação até as origens do crime e as determinantes bio-psíquicas do delito. Somente em face desses exames é que se pode aquilatar das condições do delinqüente; do grau de sua temibilidade e a sua predisposição para a delinqüência. Por isso, não preciso esclarecer a necessidade iniludível de tais instalações, as quais, sem dúvida, desempenham papel notável no regime penitenciário. (APESC, 1933, s/p)

A sina se repete, como avisou Foucault (2002): a prisão foi criada intencionalmente para falhar, e a falha está justamente em não cumprir aquilo a que se propõe teoricamente, a reintegração do preso ao convívio social. Talvez porque não tenha sido criada para isso, e sim como um instrumento de construção de um saber jurídico, assim como o hospital terapêutico é o de um saber médico. Será, inevitavelmente, nesse ponto que ocorrerão as semelhanças e futuras junções de práticas e discursos entre medicina e jurisprudência. E é por isso que o diretor, Edelvito Campelo D´Araújo, vai pedir a instalação de um gabinete médico no seu primeiro relatório enviado ao Secretário de Interior e Justiça em 1935, relatório, digase de passagem, feito a pedido do governador Nereu Ramos, para que ele pudesse conhecer melhor a verdadeira situação da Penitenciária Pedra Grande e o que poderia ser feito para melhorá-la. (...) reforma útil da Penitenciária, podendo ela se realizar como as demais do país, preenchendo a sua finalidade, tornando-se uma escola de regeneração, de forma a restituir à sociedade, quando livres, homens cujo presente seja uma garantia para o futuro, livres dos erros e defeitos que os arrastaram à prática do crime. (APESC, 1935, s/p)

No entanto, o que se pretende discutir aqui, mais do que a necessidade de uma reforma, é o tipo de reforma implementada. Não será só uma reestruturação na arquitetura e na administração, mas também nas práticas. Será instaurada uma nova tecnologia de punição, baseada em preceitos científicos.

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A reforma da prisão baseada no direito penal positivista As autoridades do Estado Novo, em Santa Catarina, não estavam, definitivamente, satisfeitas com os rumos da penitenciária e sua forma de funcionamento. Conforme o relatório de 1935, escrito pelo então diretor Edelvito Campelo D´Araújo, o problema não estava só na estrutura física e administrativa, mas principalmente na aplicação das leis e das penas. Portanto, era preciso reformar o mais rápido possível. E para constituir essa reforma, já era hora de aplicar os preceitos da ciência penal, como são aplicados em outras instituições penitenciárias do país e como são ensinados nas escolas de direito, ou seja, o Direito Penal Positivista, baseado nas “novas ciências”, a Criminologia e a Antropologia Criminal de Lombroso. Primeiro, era preciso colocar cada indivíduo no seu devido lugar. Apesar de a Pedra Grande ter nome de penitenciária, ainda funcionava como as velhas cadeias públicas, onde ficavam misturados mulheres, alienados e menores. Por isso, era preciso categorizar, separar. A começar pelo problema dos alienados, que ficavam no manicômio dentro da penitenciária e se misturavam aos presos com facilidade. Ao assumir a direção e me deparar com tão dantesco quadro, providenciei a remoção dos 6 infelizes ali detidos para o Hospício de Joinville, e vestidos... É propósito meu, enquanto dirigir a penitenciária, recusar de ter os dementes que são enviados de fora. (APESC, 1935, s/p)

Uma das primeiras providências tomadas pelo novo diretor foi separar os loucos e mandá-los para o Hospício de Joinville. Conforme o relatório, além de eles ficarem com outros presos, estavam em um estado que chocou o próprio Edelvito, e foi providenciado, junto com a remoção, que eles fossem devidamente vestidos. O Manicômio é a casa dos enterrados vivos; tantos quantos, desgraçados, nele são atirados, de lá só saem cadáveres. Não há quem lhe revista os horrores. Revolta ao mais insensível e compunge fundo a quantos o conhecem. Nenhuma higiene, nenhum tratamento, nenhum conforto. Louco tem ali a sua sala da morte. (APESC, 1935, s/p)

Não podemos deixar de relatar que havia uma certa dose de preocupação do diretor com a dignidade do sentenciado. Além do episódio com os alienados, ele também escreve, no relatório de 1935, que “os presos não possuem estantes para colocar os seus pertences” e, no relatório de 1936, expõe ao Secretário do Interior e Justiça a necessidade de um lugar apropriado para a visita dos detentos. Outra alteração que deveria ser realizada era em relação ao quadro de funcionários, que deveriam passar por treinamento: “Pois o penitenciário consiste em uma técnica que se aprende, transmite e obedece a normais gerais” (Foucault, 2002, p.245).

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Sem um corpo de funcionários pacientes, educados e dedicados, ninguém conseguirá impor um regime novo à Penitenciária. (APESC, 1935, s/p)

O preso como objeto da ciência positiva Quando assumiu a direção da penitenciária, Edelvito Campelo D´Araújo percebeu que o modelo penitenciário não funcionava ali e, conseqüentemente, sentiu a necessidade de aplicar reformas. Para realizar essa reforma, ele utilizará um ideário científico. Os argumentos para a reforma são muito bem fundamentados, com o uso de teorias vindas da ciência penal. A partir das mudanças no espaço físico e nas práticas proporcionadas pelas transformações, Araújo vai poder colocar em prática seu maior projeto: conhecer os fatores determinantes do crime e a figura do criminoso em seu íntimo. Para realização dessa empreitada, será imprescindível a instalação de um gabinete médico. Além disso, o diretor sugere que se contrate um médico para trabalhar exclusivamente dentro da penitenciária, junto ao gabinete fotográfico e de identificação, o qual deveria ser subordinado ao gabinete médico. Porém, o argumento utilizado para a presença em tempo integral do médico no presídio é a economia de gastos com o tratamento dos detentos. O médico deve ser exclusivo da penitenciária, poupando-se, assim, o Estado, dos enormes gastos feitos anualmente com o tratamento e guarda dos que adoecem e são transportados para o Hospital de Caridade desta capital. (APESC, 1935, s/p)

Pelo que parece, a importância de se aparelhar o gabinete fotográfico e médico vem menos do pretenso pensamento humanista do diretor – para tratamento do detento – e mais da sua preocupação em realizar pesquisa. O preso será transformado em objeto da ciência positiva. Não é à toa que, logo depois da entrada de Araújo como diretor, por não haver microscópio na Penitenciária, ele pede que a Diretoria de Higiene do Estado realize 96 exames sorológicos em detentos, sendo o mais freqüente a reação de Wassermann, que media positividade da sífilis. Como já foi dito, antes da entrada de Araújo, os presos viviam misturados, inclusive mulheres e crianças. Durante a reestruturação, as seis mulheres que estavam presas foram enviadas para a cadeia pública de São José e os 25 menores, que antes ficavam na seção feminina, foram colocados dentro da enfermaria da penitenciária. Araújo começa a dividir os detentos, também, por qualidade dos crimes e das penas para, como ele mesmo afirma, um melhor conhecimento da vida carcerária. Mas ainda existiam alguns entraves técnicos a serem ultrapassados para a perfeita aplicação das novas práticas. Faltava o tão desejado gabinete de identificação e antropológico. Reorganizamos a seção penal, exigindo não só a identificação dos sentenciados, como também o registro de suas práticas e merecimentos, de forma a aparelhar a direção do estabelecimento a um perfeito e rápido conhecimento da vida carcerária do detento. Infelizmente, por não

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possuirmos um gabinete de identificação e antropológico, nem mesmo auxiliares práticos, possível não nos foi executar completamente as reformas de que tanto carece a seção penal... (APESC, 1936, s/p)

Segundo Foucault (2002), a disciplina fabrica corpos submissos ou corpos dóceis. Um dos primeiros pressupostos da disciplina é a distribuição dos corpos no espaço para que, assim conhecidos, tornem-se dominados e úteis: “A disciplina organiza um espaço analítico” (p.124). E este processo aparece claramente nos hospitais: “nasce, assim, da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico” (p.124). É com a disciplina que o hospital, assim como a prisão, passa a ser local de formação de um saber sobre os corpos. Esse saber será elaborado por meio da observação sistemática, da acumulação de documentos e organização de campos comparativos, para se estabelecerem normas e, de acordo com essas normas7, decidir quem é inocente e quem é criminoso, quem é doente e quem é são, quem é louco e quem é normal. Segundo Illich (1975), a classificação dos indivíduos é essencial para o controle das “ansiedades sociais”, pois ao catalogar os portadores de anormalidades, o Poder os coloca sob o controle da linguagem e dos costumes e, assim, transforma quem é uma ameaça à ordem estabelecida em sustentáculo dessa ordem. Uma vez estabelecido que um epilético é habitado pela alma de um morto, cada uma de suas crises será a confirmação da teoria. (...) Catalogar os portadores de anormalidades significa estender o controle social às forças de natureza e reduzir, desse modo, a ansiedade da sociedade. (Illich, 1975, p.71)

A medicalização do crime A partir do século XIX, todo agente de poder vai ser agente de constituição de um saber, devendo enviar aos que lhe delegaram poder, um determinado saber correlato do poder que exerce, na forma de relatórios, esquemas, estatísticas. É assim que se formará um saber observacional e experimental. (Foucault, 1993, p.19)

Percebe-se isso, também, na formação do regime penitenciário do Estado de Santa Catarina. O diretor começa a produzir, acumular informações na forma de estudo científico, feito por meio da observação da vida cotidiana dos prisioneiros. Essas informações também serão transmitidas de baixo para cima: do diretor da penitenciária para o Secretário do Interior e Justiça e deste para o governador Nereu Ramos. É importante lembrar que os relatórios sobre a penitenciária foram feitos a pedido de Nereu Ramos, para que ele conhecesse a “verdadeira” situação da instituição e o que poderia ser feito para melhorá-la. Passa a existir a necessidade de conhecer/saber para controlar melhor.

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Costa (1999, p.50) faz a distinção entre lei e norma: “A lei é teoricamente fundada na concepção ‘jurídico-discursiva’ do poder e históricopoliticamente criada pelo Estado medieval e clássico. A norma, pelo contrário, tem seu fundamento histórico-político nos Estados modernos dos séculos XVIII e XIX, e sua compreensão teórica explicitada pela noção de dispositivo”. Os dispositivos são formados fora da lei por conjuntos de práticas discursivas e não discursivas que agem contra ou a favor delas, mas de qualquer modo, empregando uma tecnologia de sujeição própria. As práticas discursivas são elementos teóricos que reforçam as técnicas de dominação, criadas por saberes disponíveis, como científicos, filosóficos e religiosos; as práticas não discursivas são o conjunto de instrumentos que materializam o dispositivo como técnicas físicas de controle corporal, controle do tempo, organização dos espaços etc. Isto, em suma, seria o poder normalizador. A lei busca obstruir a via de acesso do indesejável; a norma visa prevenir o virtual, produzindo fatos novos. Foucault (2002) diz que, no século XIX, há uma invasão do espaço da lei pela tecnologia da norma. 7


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Edelvito Campelo D´Araújo leva a recomendação de Nereu Ramos ao pé da letra, talvez por ser um homem afeito à disciplina, ao cumprimento das ordens e normas, ou porque queria deixar aflorar seu lado de cientista, ou ambas as opções. O fato é que Araújo, principalmente a partir de 1938, começa a observar, catalogar e descrever, de forma minuciosa, tudo o que acontece na penitenciária. Ele observa atentamente o dia-a-dia dos presos, pesquisando suas relações familiares, conhecendo os visitantes, tendo acesso às correspondências, implementando técnicas antropométricas. Essa seção desempenha a contento as suas funções, identificando fotográfica e datiloscopicamente todos os sentenciados, mantendo, ainda, de acordo com o Decreto nº 58, de 6 de outubro de 1938, regular intercâmbio com o Instituto de Identificação e Médico Legal da Secretaria de Segurança Pública, na pesquisa do penitenciário. (APESC, 1939, s/p)

Sobre identificação civil, ver o trabalho de Carrara (1987), assim como os de Antunes (1999) e de Corrêa (1982).

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Edelvito se refere ao recém instalado Gabinete de Identificação e Fotográfico, subordinado à Seção de Medicina e Criminologia dentro da penitenciária. A identificação, a partir da década de 1930, vira verdadeira obsessão para os adeptos da medicina legal e pode ser encarada como uma das verdadeiras vitórias dos mestres da antropologia criminal, já que esta foi uma das poucas sugestões dos peritos a se transformar em lei nacional. A identificação, antes feita por meio da bertillonagem e, depois, por intermédio da impressão digital, foi verdadeira inovação no meio penal, pois resolvia um grande problema para os peritos desde a época de Lombroso: a reincidência. A identificação penal vai virar identificação civil obrigatória, o nosso RG, a carteira de identidade, com as impressões digitais de cada um de nós, que persiste até hoje8. A dactiloscopia foi uma técnica inventada pelo argentino Juan Vucetich, no final do século XIX. A descoberta foi feita com base nas análises de Francis Galton a respeito das papilas digitais. Vucetich inventa, assim, um sistema de classificação pelas impressões digitais, que substituirá o de Bertillon no mundo inteiro, a começar, logicamente, em 1900, pelo Gabinete de Identificação de La Plata e, no mesmo ano, será instalado no Gabinete de Identificação do Rio de Janeiro, tornando-se obrigatória a sua utilização nos réus presos. Dentro da Penitenciária Pedra Grande, a técnica da dactiloscopia, implantada por Araújo em 1938, resolvia o problema da perda de informações quando a identificação fotográfica dos presos saía da Secretaria de Segurança Pública para a penitenciária. A impressão digital consistiu em um alívio não só para os preocupados com a “questão crime”, mas também para os que primavam pela “ordem civil”. O estudo do crime como doença virou lugar comum no discurso médico da época no Brasil. Cogitava-se a conversão da Casa de Detenção em Instituto Médico Criminal. Para alguns, como o doutor Gouveia de Barros (1909), ex-médico do Asilo de Alienados de Recife, os presídios deveriam ser como hospitais, onde os internos fossem dispostos de acordo com a natureza do seu estado degenerativo, e não segundo a intensidade de seu crime (Antunes, 1999). Por meio desses casos, identifica-se a entrada do ideário

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científico levado pelos médicos para dentro das instituições prisionais, o que dará origem ao que se denomina, neste trabalho, de medicalização do crime. Edelvito, inclusive, justificava as despesas com as obras de reforma e instalações com a possível prosperidade social que seres “reformados”, exdetentos, poderiam trazer para a sociedade. Percebe-se na fala a constante preocupação com a moral e “cura’” dos instintos do detento. Um exemplo da influência da Escola Positivista, ou seja, a naturalização do delito, o crime visto como doença. Ainda nos moldes do pensamento positivista, o diretor utiliza mais alguns argumentos para justificar os gastos com a reforma da instituição: o benefício da coletividade, a prosperidade social e o dever de servir ao Estado. Não se deve esquecer que a idéia de progresso do Estado, de prosperidade da elite e de construção de uma nação, tudo isso fazia parte do discurso constantemente repetido pelos dirigentes. Vale ressaltar que a Medicina, por meio da Higiene, vai se dirigir à sociedade para universalizar esses novos valores: “(...) o Estado deve ser mais importante que o grupo familiar” (Costa, 1999, p.48). Identifica-se, então, a produção de sujeitos individualizados e domesticados para serem colocados à disposição do Estado. Será tarefa dos higienistas converter os sujeitos à nova ordem social e urbana. É por isso, segundo Costa (1999), que a Higiene Médica coincide com a ascensão do Estado Nacional: “Esta troca de favores entre Medicina e Estado são teorizadas em nível do saber” (p.64). Os médicos vão se intrometer na vida privada das famílias, construindo indivíduos servis à pátria mediante o cuidado com a saúde e com o corpo e por meio da preocupação com a sua prole, trabalhando, assim, para que seus descendentes sejam sadios e contribuam para uma “melhor raça”, ou seja, para que se tornem eugênicos. Crime e eugenia Foucault (1988) mostra que, no século XIX, surge a medicina do sexo, ou ortopedia do sexo, cuja preocupação era prioritariamente controlar as patologias sexuais. Na mesma época, a análise da hereditariedade colocava questões relacionadas também às atividades sexuais dos indivíduos, como as doenças venéreas e perversões, argumentando a existência de uma “responsabilidade biológica” das pessoas em relação a sua espécie. Daí surge um projeto médico, mas também político, de organização de uma gestão estatal dos casamentos (como os testes pré-nupciais e as proibições de casamentos entre indivíduos portadores de algum tipo de “tara”) e dos nascimentos e sobrevivências (estatísticas de mortalidade). Assim, a medicina das perversões e os programas eugênicos são as duas grandes inovações da segunda metade do século XIX. Quando se analisam os estudos de Edelvito Campelo D´Araújo na Penitenciária de Florianópolis, encontram-se influências de três doutrinas – degeneração, criminoso nato e inferioridade racial – que dominaram o pensamento médico e jurídico no final do século XIX e início do XX. Com base nessas teorias, o entendimento do crime passa pela análise do indivíduo, do seu tipo físico e da raça a que pertence. O mal da degenerescência poderia vir

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tanto da mistura de raças quanto de doenças congênitas, como a sífilis (Carrara, 1996). A identificação do indivíduo criminoso vinha carregada de preconceitos e de determinismo. A medição das partes do corpo, a teratologia faz emergir a “teoria da fealdade”, ou seja, quanto mais parecido com o aspecto símio, ou quanto mais “feio”, mais criminoso era (Antunes, 1999). Segundo Schwarcz (1993), apesar da adesão ao culturalismo na década de 1930 e de Gilberto Freyre, com a “valorização da miscigenação”, este tipo de explicação determinista persistiu por um bom tempo, sobretudo, no senso comum e na representação popular. Talvez, por isso, encontra-se, ainda nessa época, a despeito da crítica teórica culturalista, um tipo de pesquisa e explicação da criminalidade nos moldes da feita por Araújo. Além disso, nessa década nos Estados Unidos e na Europa, tomam força certos modelos raciais de análise social, como o “arianismo”, na Alemanha, e a segregação racial, nos Estados Unidos. No Brasil, surge a “Era Vargas”, da qual Araújo era expoente. E com ela, uma revalorização do nacionalismo e novas formas de controle social em moldes do pensamento eugenista, também presentes nas falas de Araújo. Como aponta a historiadora Nancy Stepan (1990), diferentemente dos países anglo-saxões, no Brasil e em outros países latinos, como México e Argentina, eugenizar passou a significar, predominantemente, sanear. Deslocou-se o problema da miscigenação para o do “povo doente” e isso, segundo o pensamento higienista que vigorava, poderia ser resolvido com reformas sanitárias e medidas higiênicas. Assim, surge a Liga Pró-Saneamento, preocupada com as endemias que assolavam o país, especialmente, no norte e nordeste. Mas também é formada a Liga Brasileira de Higiene Mental, esta, sim, preocupada com o “saneamento da raça” e a extinção dos indivíduos loucos e criminosos, conseqüentemente, perniciosos para a sociedade e para o futuro da nação. A pesquisa realizada pelo diretor, no decorrer de seus anos à frente da instituição, de 1935 a 1945, vem em forma de gráficos, estatísticas e um relatório final, no qual Araújo analisa os dados utilizando observações pessoais e algumas referências teóricas, debatendo com personalidades, como Heitor Carrilho (1930) – com o qual trocava correspondências, mostrando que o diretor estava inserido em uma comunidade científica. Araújo também fazia uso de uma literatura internacional da medicina legal e antropologia criminal, como Lombroso (1876-1899), Ferri (1856-1929), Garofalo (18521934). Além disso, compara os dados da Pedra Grande com os de outras instituições penais do país, especialmente a Penitenciária Carandiru em São Paulo, o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro e a Penitenciária Agrícola de Minas Gerais. Araújo traça e analisa categorias (como crime/cor; crime/sífilis; crime/classe), chegando à minúcia de analisar o crime em relação às estações do ano, por semana, e até por hora. Os resultados desse estudo viraram um álbum comemorativo, publicado em 1940, distribuído às maiores autoridades do Estado e do país, inclusive ao presidente Getúlio Vargas, presente em um momento de comemoração da reforma da penitenciária.

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REBELO, F; CAPONI, S.

Com a honrosa presença de Sua Excelência o Senhor Doutor Presidente da República, foram solenemente inaugurados, a 11 de março, o novo pavilhão penal e os importantes melhoramentos e reformas desta penitenciária, obras essas realizadas pelo Exmo. Sr. Interventor Federal no Estado, Sr. Nereu Ramos. (...) Não se escusou o Presidente Vargas, nem se furtam quando nos visitam, em proclamar a excelência do nosso estabelecimento correcional, considerado um dos melhores do Brasil, pelo sentido humano e técnico da sua organização e aparelhamento... (APESC, 1940, s/p)

Considerações finais A necessidade de instalação da Penitenciária Pedra Grande surgiu de demandas regionais, como: a necessidade de um local para se colocar detentos de outras cidades; uma classe burguesa em ascensão querendo habitar o centro da cidade; o “problema” das aglomerações urbanas; o medo do contágio e das epidemias. Porém, o conjunto de reformas urbanas e o surgimento de instituições de controle estavam em sintonia com um projeto maior de progresso e civilização nacional. A reforma da penitenciária, orquestrada por Araújo, expoente da República Nova, insere novas tecnologias de punição e práticas, como a Datiloscopia e a Antropometria, seguindo os preceitos da Escola Positivista de Direito. Essa reforma teve o objetivo de disciplinar para estudar o “fenômeno crime”. Com a instalação do gabinete médico dentro da penitenciária, identifica-se, ainda, uma prática médica em função de um discurso jurídico, designada, neste trabalho, como medicalização do crime. Araújo, ao realizar sua pesquisa, não estava sozinho, mas participava de uma comunidade científica e debatia com personalidades nacionais.

Referências ANTUNES, J.L.F. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. CAPONI, S. Miasmas, micróbios y conventillos. Asclepio, v. 54, n.1, p.155-82, 2002. CARRARA, S.L. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. 1987. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. ______. Tributo a Vênus. A luta contra a sífilis no Brasil da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. CHALHOUB, S. A cidade febril: cortiços e epidemias na corte Iiperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CORRÊA, M. As ilusões da liberdade: a escola de Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. 1982. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. COSTA, J.F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

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ENGEL, M.G. As fronteiras da “anormalidade”: Psiquiatria e controle social. Hist., Ciênc., Saúde – Manguinhos, v.5, n.3., p.547-63, 1999. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 11.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. ______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. ______. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2002. HERMETES, R. A invenção do litoral, reformas urbanas e reajustamento social em Florianópolis da Primeira República. 1989. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. MIRANDA, A.L. A penitenciária de Florianópolis: de um instrumento da modernidade à utilização por um Estado totalitário. 1998. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. POYER, V. A penitenciária estadual de Pedra Grande: um estudo sobre a política de combate à criminalidade em Florianópolis entre 1935-1945. 2000. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. SCHWARCZ, L.M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. STEPAN, N. The hour of eugenics. New York: Oxford University Press, 1990.

Fontes: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina – APESC - Relatório do diretor da Penitenciária, da fundação até 15 de setembro de 1933 - Relatório do diretor da Penitenciária, 1935 - Relatório do diretor da Penitenciária, 1936 - Relatório do diretor da Penitenciária, 1938 - Relatório do diretor da Penitenciária, 1939 - Relatório do diretor da Penitenciária, 1940 Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina – BPSC - Álbum comemorativo de 10 anos da Penitenciária Pedra Grande, 1940

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REBELO, F; CAPONI, S.

REBELO, F.; CAPONI, S. La medicalización del crimen: la Penitenciaria de Florianópolis como un espacio de poder y saber (1933-1945). Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.193-206, mai/ago 2007. Este trabajo discute la instalación del modelo penitenciario en la ciudad de Florianópolis, en los años 30 del siglo XX, bajo la óptica del pensamiento médico y sus interfaces con el jurídico. A partir de 1920, en Florianópolis, se observa la creación de diversos tipos de instituciones, era necesaria una moderna estructura policial para controlar la población. Aún existía miedo del contagio de enfermedades y del peligro de las epidemias que venían junto con las aglomeraciones en los conventillos. El centro de la ciudad debería ser más limpio para que la burguesía pudiera habitarlo, pero antes, las personas “indeseadas”, como los mendigos y las prostitutas, deberían ser colocadas en sus “debidos lugares”. El objetivo de este artículo es analizar de qué modo esos “miedos”, que afectaron todos los centros urbanos a partir del siglo XIX, se manifestaron en Florianópolis y qué estrategias fueron creadas para su control, particularmente en las penitenciarias. PALABRAS CLAVE:: Higiene. Aglomeración. Eugenia. Modelo penitenciario. Salud pública. Medicalización. Recebido em 12/09/06. Aprovado em 28/11/06.

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A inclusão da subjetividade no ensino da P sicopatologia Psicopatologia

Octavio Domont de Serpa Junior1 Erotildes Maria Leal 2 Rita de Cássia Ramos Louzada 3 João Ferreira da Silva Filho 4

SERPA JUNIOR, O.D. ET AL. Including subjectivity in the teaching of psychopathology. Interface - Comunic., Educ. v.11, n.22, p.207-22, mai/ago 2007. Saúde, Educ., The study of Psychopathology has often been presented in a descriptive form. Though this may be relevant for teaching because it helps students to recognize and identify the symptomatology of each psychopathology, it overlooks the subjective dimension of falling ill and its relational aspects. By approaching the issue from the standpoint of existential anthropology, we present a practical psychopathology teaching experience that regards these dimensions as relevant to the understanding of mental suffering. Two new modes of practical teaching employed in the “Special Psychopathology I” course offered to psychology students of the Federal University of Rio de Janeiro are presented, using the descriptive case study method. The idea is to expand practical teaching, traditionally based on the model of a long clinical interview carried out in the presence of a large group of students that observe everything passively. Our aim is to bring teaching and the practice of psychopathology closer to the ideals of the Brazilian Psychiatric Reform, which views mental illness as a complex phenomenon that involves the relationship of the subject with the world. KEY WORDS: Psychopathology. Teaching. Subjectivity. Anthropology. Existentialism. O estudo da Psicopatologia tem sido freqüentemente apresentado em sua dimensão descritiva. Apesar da relevância para o ensino - auxiliar o aluno a reconhecer a dimensão sintomatológica dos quadros psicopatológicos -, exclui a dimensão subjetiva da experiência do adoecimento e seus aspectos relacionais. Partindo da tradição antropológicoexistencial, apresentamos uma experiência de ensino de Psicopatologia que considera tais dimensões relevantes para a compreensão do sofrimento mental. Trabalhando com estudo de caso descritivo, são apresentadas duas novas modalidades de práticas na disciplina Psicopatologia Especial I, oferecida para alunos do curso de Psicologia da UFRJ. A proposta é ampliar o ensino prático, tradicionalmente centrado no modelo da extensa entrevista clínica, realizada diante de um grande grupo de alunos que a tudo assistem passivamente. Pretendemos aproximar o ensino e a prática da Psicopatologia dos ideais da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que concebe o adoecimento mental como fenômeno complexo, envolvendo a relação do sujeito com o mundo. PALAVRAS-CHAVE: Psicopatologia. Ensino. Subjetividade. Antropologia. Existencialismo. Médico; pós-doutor em Psicopatologia - bolsista CNPq (Centre de Recherche em Épistémologie ASppliquée, Paris); professor, Instituto de Psiquiatria, Universidade do Brasil/Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ); coordenador, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ); coordenador, disciplina Psicopatologia Especial I. Rio de Janeiro, RJ. <domserpa@gmail.com>; <domserpa@ipub.ufrj.br> 2 Médica; doutora em Psiquiatria e Saúde Mental; professora-visitante, IPUB/UFRJ; pesquisadora, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ); docente, disciplina Psicopatologia Especial I. Rio de Janeiro, RJ. <eroleal@uol.com.br> 3 Psicóloga; doutora em Psiquiatria e Saúde Mental; professora, departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento, Universidade Federal do Espírito Santo (DPSO/UFES); pesquisadora, Programa Organização do Trabalho e Saúde Mental (IPUB/UFRJ); docente, disciplina Psicopatologia Especial I. Rio de Janeiro, RJ. <ritacrl@uol.com.br> 4 Médico; doutor em Psiquiatria e Saúde Mental; professor, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro; coordenador, disciplina Psicopatologia Especial I. Rio de Janeiro, RJ. <jferreira@ccsdecania.ufrj.br> 1

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Av. Ataulfo de Paiva, 983/203 Leblon - Rio de Janeiro, RJ 22.440-034

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SERPA JUNIOR, O.D. ET AL.

Introdução O estudo da Psicopatologia na atualidade tem sido freqüentemente apresentado em sua dimensão descritiva. Fundamento da semiologia psiquiátrica, esse campo de conhecimento foi marcado por diferentes referências teóricas e abordagens em seus pouco mais de duzentos anos de existência. Apesar disso, nas últimas décadas, esta complexidade esteve quase imperceptível a olhares pouco cuidadosos. Embora essa perspectiva tenha a sua relevância para o ensino, na medida em que auxilia o aluno a reconhecer e identificar a dimensão sintomatológica dos quadros psicopatológicos, termina por deixar de fora tanto a dimensão subjetiva da experiência do adoecimento quanto os seus aspectos relacionais e interpessoais. Com o intuito de ampliar, nessa direção, o ensino de Psicopatologia, iniciamos, na Disciplina Psicopatologia Especial I, oferecida pelo Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRJ5, para os alunos do curso de Psicologia da UFRJ, duas novas modalidades de atividades práticas. Essa reformulação do ensino prático, tradicionalmente centrado no modelo da entrevista clínica de um paciente, habitualmente internado, realizada por um mestre diante de um grande grupo de alunos que a tudo assistem passiva e, amiúde, desconfortavelmente, visa também colocar o ensino e a prática de Psicopatologia mais próximos dos ideais que norteiam o conjunto de transformações das práticas assistenciais em psiquiatria no Brasil, a chamada Reforma Psiquiátrica. Procuramos, com isso, não deixar os alunos restritos à abordagem psicopatológica centrada na descrição dos elementos do adoecimento mental, mas favorecer o conhecimento do sofrimento psíquico do ponto de vista de quem o experiencia, assim como o caráter relacional e contextual das expressões clínicas dos transtornos mentais. Essas iniciativas têm como expectativa destacar, para os alunos, a complexidade do adoecimento metal e o alcance diferencial das diversas abordagens psicopatológicas.

O Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal é chefiado pela Prof. Alícia Navarro Dias de Souza.

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Pressupostos éticos e conceituais Em uma época na qual a Psicopatologia tem se tornado cada vez mais superficial e sem nuances, o desafio do seu ensino, particularmente do seu ensino prático, se impõe a todos aqueles que consideram que seu intento não se resume a oferecer uma descrição objetiva dos sinais e sintomas, desempenhada por uma espécie de “observador” ideal, universal, livre de compromissos teóricos e isento de juízos de valor6. Qualificada como Psicopatologia Descritiva (Berrios, 1996, 1993), e freqüentemente confundida, de maneira abusiva e totalmente equivocada, com a Psicopatologia Fenomenológica, sobretudo, na psiquiatria anglo-saxã (Monti & Stanghellini, 1996; Bovet & Parnas, 1993), essa forma de entender a Psicopatologia embasa as modernas classificações psiquiátricas. Ao se pretender objetiva, ateórica, e ao escamotear a sua incontornável dimensão avaliativa (Fulford et al., 2005; Fulford, 2004, 1994), acaba se limitando por oferecer listas de sintomas tomados em seu valor de face, compondo

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Cf. Verztman, 1996.


A INCLUSÃO DA SUBJETIVIDADE NO ENSINO...

Para uma introdução a esta discussão, ver Serpa Jr., 2003.

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Uma notável exceção a este estado de coisas são os dois volumes de Martins (2005, 2003).

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mosaicos planos e sem gestalt, dos quais qualquer incidência da subjetividade do doente é completamente erradicada. As vivências subjetivas daqueles acometidos por algum tipo de sofrimento moral são imediatamente assimiladas a categorias e esquemas formais que lhes conferem uma inteligibilidade apaziguadora para o observador, confirmando a análise de Foucault (1994) sobre o monólogo da razão sobre a loucura, que se instala a partir da constituição dos saberes “psi”. Nesse cenário, como ouvir as vozes da loucura e como torná-las audíveis aos nossos alunos? Esse modo de operar da Psicopatologia traz embutida, como não poderia deixar de ser, uma concepção de saúde e doença e, antes disso, uma idéia acerca do que deve estar subjacente à partilha entre o normal e o patológico. Só que nada disso é trazido à luz e essas discussões são naturalizadas e neutralizadas. “Naturalizadas” no sentido de um entendimento da natureza como intrinsecamente oposta à cultura e, portanto, não passível de interpretações. O debate do tema “normal e patológico”, que deveria ser prévio a qualquer Psicopatologia, é completamente elidido, e a partilha entre as duas condições é compreendida como uma questão de ordem quantitativa, passível de mensuração por diferentes escalas e instrumentos estruturados, tornando-se visível por meio de procedimentos estatísticos7. Nessas condições, o campo do patológico obedece a uma inteligibilidade compatível com aquilo que Canguilhem (1982) chamou de Teoria Ontológica da Doença, que toma os diferentes tipos de sofrimento físico e mental exclusivamente em sua objetividade, elementos totalmente externos ao sujeito, quer se entenda este em sua dimensão moral, quer se entenda este apenas como totalidade orgânica. Se tal concepção de doença pode dar a impressão – ilusória - de satisfazer as condições de possibilidade de exercício de uma medicina somática, ela não dá conta das exigências de uma Psicopatologia, já que esta é a subjetividade em sua inteireza. O desafio do ensino da Psicopatologia em outros moldes torna-se ainda mais agudo diante da pouca disponibilidade de material didático que vá além do previsível. Os modernos manuais de Psicopatologia, cada vez mais, parecem livros de semiologia – na melhor das hipóteses – ainda que sem qualquer problematização8 acerca dos procedimentos semiológicos (Serpa Jr. 1996; Silva Filho, 1997). Ou, na pior das hipóteses, assemelham–se a glossários, mais ou menos extensos, meros léxicos dos Manuais de Classificação Diagnóstica. Em geral, são organizados mediante uma apresentação de sintomas referidos a uma psicologia das faculdades mentais de extração oitocentista e, originalmente, descritos com base no exame de pacientes confinados em manicômios à mesma época. No tesouro semiológico apresentado por esses manuais, geralmente, convivem termos oriundos de tradições conceituais díspares, se não antagônicas. Acreditamos que uma Psicopatologia digna deste nome deve atender ao que formulou Stanghellini (2004, p.9): ...iluminar primariamente a qualidade das experiências subjetivas, seus significados pessoais e o padrão pelo qual elas estão situadas como partes de totalidades significativas (...) principalmente concernida com a corporificação e a intersubjetividade.

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SERPA JUNIOR, O.D. ET AL.

É isto que norteia a nossa proposta, ainda incipiente, de reformulação do ensino prático de Psicopatologia. Não temos a pretensão ingênua de poder encontrar, por esta via, os meios para suspender o aludido monólogo da razão sobre loucura. Buscamos pura e simplesmente resgatar o seu pathos, primeiro, lógica e cronologicamente, e, ainda assim, negligenciado. O pathos, como bem nos lembra Canguilhem (1982), sempre antecede o logos. Uma Psicopatologia que seja só logos, sem pathos, não terá mais utilidade do que uma lâmina sem fio (Monti & Stanghellini, 1996). Não queremos dizer com isto que uma abordagem descritiva, objetiva, não tenha o seu lugar no ensino de Psicopatologia. Certamente o tem, sobretudo, quando se trata de propósitos práticos que dependam da formulação de uma hipótese diagnóstica confiável, em um vocabulário comum aos praticantes do campo, possibilitando, assim, a comunicação entre eles. Por esta razão, a necessidade de aprender a realizar uma entrevista diagnóstica de forma competente permanece como um dos elementos centrais do aprendizado em psicopatologia. Mas não o único. Existem outros propósitos práticos em jogo na clínica da saúde mental e no ensino e pesquisa da Psicopatologia. A abordagem descritiva encontra logo os seus limites quando se trata de ter acesso à experiência subjetiva – ao pathos – daqueles que temos sob os nossos cuidados. Queremos ensinar uma Psicopatologia que não descarte a subjetividade, mas, em vez disso, faça desta o seu interesse primeiro. Não no sentido de um enclausuramento solipsista, mas, pelo contrário, revelando a sua relação indissolúvel com a alteridade e o mundo no qual se enraíza. Essa subjetividade, por sua vez, não é tomada como uma substância etérea, não material, mas sim como primordialmente corporificada. Não temos a ambição ingênua e equivocada de pretender fazer da Psicopatologia uma teoria geral da subjetividade. Buscamos apenas proporcionar aos nossos alunos um entendimento acerca do seu pathos, da experiência de sofrimento e dor moral dos nossos pacientes, tomando essa dimensão experiencial em seu caráter eminentemente qualitativo, avaliativo e holístico, no sentido da alteração de uma forma de vida em sua totalidade. Psicopatologia Descritiva ou Psicopatologia Sintomatológica-Criteriológica No campo da Psicopatologia, é possível observar uma tensão entre duas perspectivas de aproximação do fenômeno psicopatológico que deveriam ser complementares, mas que tem sido estabelecida em termos de hegemonia de uma e quase exclusão de outra. Como já adiantamos acima, encontramos na Psicopatologia Descritiva – tendência hegemônica - um adelgaçamento da análise psicopatológica, que se reduz aí a uma sintomatologia, no sentido da descrição objetiva de um repertório de sintomas. Isto descola o estudo da Psicopatologia do plano das vivências (subjetivas) e o remete para a objetividade do quadro nosográfico no qual se expressa o diagnóstico. Kraus (2003; 1994) chama esse tipo de procedimento de Psicopatologia Sintomatológica-Criteriológica e pode ser caracterizada como uma Psicopatologia representacionalista (Parnas & Bovet, 1995). Dito de outro

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modo, ela entende que as entidades clínicas/categorias diagnósticas com as quais lidamos são como representações mentais de espécies naturais existentes de modo objetivo no mundo externo, previamente a qualquer encontro com uma consciência humana doadora de sentido, independentes, portanto, do observador. Uma categoria diagnóstica, de acordo com esse entendimento, será tão mais verdadeira quanto melhor, ou mais acuradamente, representar o mundo objetivo. Essas representações são expressas na linguagem, tomada como um intermediário epistêmico entre o sujeito que conhece e o mundo das espécies naturais formando, assim, o vocabulário da Psicopatologia. A forma pela qual a linguagem é implicitamente entendida aqui supõe que se relaciona com o mundo de forma literal, unívoca e independente de contexto (Parnas & Bovet, 1995). Essa abordagem em Psicopatologia caracteriza-se pelo seu operacionalismo (Parnas & Bovet, 1995; Bovet & Parnas, 1993), o qual se refere à organização daquele vocabulário em regras operacionais, ou critérios diagnósticos. Estes, por sua vez, visam à ordenação dos sinais e sintomas descritos, segundo princípios lógicos, produzindo, com isto, o aumento da confiabilidade ou fidedignidade do diagnóstico, deixando em segundo plano a sua validade. Tal tipo de procedimento conduz a uma seleção das manifestações clínicas, de modo que aquelas que possuem um caráter mais experiencial, subjetivo – como alterações na consciência de si e da sintonização afetiva com o entorno - tendem a ser descartadas, em detrimento daquelas mais exuberantes, objetivas, comportamentais. Uma consulta aos Manuais de Classificação disponíveis (CID 10 e DSM-IV), bem como à maioria dos manuais de Psicopatologia disponíveis, é suficiente para ilustrar esse tipo de procedimento. Psicopatologia da primeira e da segunda pessoa Em contraposição à Psicopatologia Sintomatológica-Critériológica, Kraus (2003, 1994) descreve o que chama de Psicopatologia AntropológicaFenomenológica, a qual sobrevive em uma condição de relativa marginalidade no cenário atual do estudo e ensino da Psicopatologia. Esta, ao contrário da anterior, não lida com sintomas, mas com fenômenos (Kraus, 2003; 1994; Tatossian, 1979). Enquanto os primeiros são concebidos como remetendo a algum tipo de disfunção médica e, apreendidos objetivamente pelo clínico, esvaziando de importância a dimensão subjetiva do paciente, tomado como simples fornecedor de dados semiológicos, os fenômenos manifestam uma forma experiencial global do paciente, entendida como expressão de um tipo particular de relação consigo mesmo, com a alteridade e com o mundo. Aqui o sujeito da experiência, tomado em sua totalidade, ocupa uma posição central. Os fenômenos, portanto, remetem necessariamente a uma totalidade, a uma estrutura, para ganhar sentido, ao contrário dos sintomas, que podem ser tomados um a um, isolados do conjunto ou apenas em justaposição com outros sintomas. Lidamos aqui, portanto, com modos particulares de ser-no-mundo, como diria Binswanger (1970), com base em Heidegger. A consistência experiencial do pathos, a subjetividade do vivido, são privilegiadas como elementos clínicos

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fundamentais. Em outras palavras, a validade é preferida à fidedignidade. A subjetividade em questão, contudo, é compreendida como necessariamente referida à alteridade – intersubjetividade – e ao mundo – intencionalidade -, o que neutraliza os riscos de qualquer tentação solipsista. Ela é corporificada (embodied), no sentido de emergir da relação de um tipo particular de organismo em interação com o meio - humano e físico - em que vive e, neste sentido, é enraizada no seu mundo, situada em contexto (embedded). Como indicamos acima, contrapor um modelo ao outro não deve sugerir uma alternativa mutuamente excludente, do tipo ou uma coisa ou outra. Pelo contrário, com isto podemos indicar o que se ganha e o que se perde, em termos clínicos, quando se adota cada modelo. Entretanto, é inegável que o cenário da Psicopatologia nos últimos anos vem demonstrando uma crescente exclusão do modelo que privilegia a subjetividade. Tomando a dimensão subjetiva como eixo, propomos redescrever os modelos propostos por Kraus (2003, 1994) em outros termos. Chamaremos a sua Psicopatologia Sintomatológica-Criteriológica de Psicopatologia da terceira pessoa e a sua Psicopatologia Fenomenológica-Antropológica de Psicopatologia da primeira e da segunda pessoa9. Perspectiva da terceira pessoa A Psicopatologia da terceira pessoa adota, como pressuposto epistemológico, a Perspectiva da terceira pessoa (Northoff & Heinzel, 2003). Nela não encontramos lugar para a experiência, para o vivido, apenas para o comportamento tomado objetivamente. Subjetividade e intersubjetividade estão completamente fora de questão. O que se busca é a certeza factual, renunciando-se a qualquer certeza experiencial, fenomênica. Os fatos trabalhados nessa perspectiva podem ser considerados atemporais e fora de qualquer contexto, na medida em que o decurso do tempo e as contingências da história e da geografia não são considerados como relevantes para o seu esclarecimento. Estes fatos podem ser tomados um a um, destacados de suas condições de surgimento e do conjunto de outros fatos que lhes são simultâneos, produzindo, assim, uma fragmentação, uma atomização do objeto de conhecimento. O tipo de corporeidade que interessa nessa perspectiva é a do corpo objetivo, aquilo que Husserl identificou como Körper. Perspectivas da primeira e da segunda pessoa A Psicopatologia da primeira e da segunda pessoa adota, como pressuposto epistemológico, as Perspectivas da primeira e da segunda pessoa (Northoff & Heinzel, 2003). A Perspectiva da primeira pessoa diz respeito à experiência pré-reflexiva dos próprios estados mentais e corporais: sentimentos “crus”, pura experiência, sem reconhecimento ou reflexão. Estes dois últimos, como veremos, já pertencem à perspectiva da segunda pessoa. Temos aqui a pura subjetividade, sem objetividade nem intersubjetividade. Algo na linha do que foi explorado por Nagel (1997) e ficou consagrado como What is it like to be... Aqui, a certeza fenomênica toma o lugar da certeza factual, cabendo diferenciar a acessibilidade imediata da

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Para maiores detalhes, ver Serpa Jr., 2006.

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incorrigibilidade. Ao contrário da perspectiva da terceira pessoa, fragmentadora, lidamos, nesta perspectiva, com a totalidade da experiência. A totalidade a qual remete esta perspectiva é a totalidade do corpo vivido (Leib), experienciado no ciclo ação/percepção da exploração do meio pelo organismo vivo. Esta referência à totalidade do organismo vivo é que assegura a condição de centralização, de ponto de vista, de pólo noético do arco intencional que caracteriza esta perspectiva. Na Perspectiva da segunda pessoa (Northoff & Heinzel, 2003), nós temos o reconhecimento proposicional da experiência Por isso, ela é necessariamente reflexiva e intersubjetiva. Intersubjetiva não só no sentido de comunicação da experiência para um outro, mas também no sentido de que o julgamento e reconhecimento conceitual da experiência como pertencendo a uma determinada categoria de estados psicológicos só é possível pela inserção do sujeito em uma comunidade lingüística. Não temos mais aqui a transparência e a presença da experiência pura, mas, em vez disso, uma semipresença e a translucidez da mediação reflexiva, uma espécie de intersubjetividade intrasubjetiva. A totalidade ainda predomina sobre a fragmentação, porém aquela pode ser tomada em suas partes pelo trabalho da reflexão. Nesta perspectiva, a corporeidade é apreendida numa zona de mediação entre o corpo vivido (ipseidade) e o corpo objetivo (alteridade). Como salientam Zahavi (2003, 2001) e Northoff & Heinzel (2003), com base nas concepções de Husserl e Merleau-Ponty, é esta mediação imanente à própria corporeidade que subjaz ao estabelecimento da intercorporeidade e da intersubjetividade. Sujeito experiencial e sujeito narrativo

10 Para maiores detalhes desta discussão, ver Dreyfus, 2002; Gallagher, 2000; Zahavi, 2003, 2002, 1999; Zahavi & Gallagher, 2005.

Na subjetividade em questão, na Psicopatologia da primeira e da segunda pessoa, seguindo as indicações de Zahavi (2003), podemos reconhecer dois tipos de sujeito: um sujeito experiencial e um sujeito narrativo. O sujeito experiencial apresenta características que remetem àquelas da perspectiva da primeira pessoa. Ele não está aquém, além ou em oposição à experiência. Em vez disso, é um aspecto ou função do seu modo de doação – firstpersonal givenness – a uma centralidade de perspectiva, corporificada (embodied) e situada em contexto (embedded). Trata-se de uma espécie de sujeito ou self básico, que não é uma precondição transcendental nem um construto narrativo, mas uma realidade experiencial imediata da consciência. Neste sentido, seria até mais adequado se falar em subjetividade da experiência em vez de sujeito da experiência. Esta modalidade subjetiva é pré-reflexiva, não proposicional, não conceitual, não temática. O que contraria certo entendimento comum que considera o sujeito ou self como o resultado da reflexão, quando não do domínio cognitivo do conceito de self ou sujeito10. O que temos aqui é uma presença primária (Sass, 2003; Sass & Parnas, 2003), uma consciência de si préreflexiva ou tácita, uma afecção de si (self-affection) que simplesmente acontece, um sentimento básico do existir como um centro vital da experiência, e que chamamos de ipseidade. O sujeito narrativo, por outro lado, é necessariamente reflexivo e intersubjetivo, na medida em que depende totalmente da inserção do

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indivíduo em uma comunidade lingüística e na sua adesão a valores, ideais e objetivos referidos a uma dada tradição cultural. Nesta modalidade subjetiva, já podemos falar em identidade, personalidade, pessoa. Ela é construída na e por intermédio da narrativa, por meio de um processo aberto, constantemente sujeito a revisões e mudanças de rumo. Este processo acompanha toda a trajetória de vida do sujeito no decorrer do tempo e procura oferecer um relato que dê conta de suas origens, desenvolvimento e destino. O que somos, nesta perspectiva, depende da estória contada por nós e pelos outros a nosso próprio respeito. Lidamos aqui com a definição que Dennett (1993) dá para a noção de sujeito: centro de gravidade narrativa. Ensino da Psicopatologia e subjetividade Consideramos que apenas uma Psicopatologia que tome como elemento central do seu campo de práticas e de reflexão a dimensão experiencial e as diferentes narrativas que cada sujeito é capaz de produzir, para tentar dar conta do seu sofrimento psíquico, pode ser relevante em um cenário de transformação da assistência em saúde mental, como o que vivemos nos últimos vinte anos11. Neste período, temos testemunhado a progressiva substituição do modelo hospitalocêntrico por serviços substitutivos, que, cada vez mais, se constituem no mercado de trabalho em potencial para os estudantes que pretendem se dedicar às práticas clínicas em saúde mental depois de formados. Neste novo modelo, estabelecem-se outras modalidades relacionais entre os membros da equipe de cuidados e entre estes e aqueles que estão sob seus cuidados: pacientes e seus familiares. Com os usuários estabelecem-se regimes de convivência menos verticais, mais atentos à realidade em que vivem e de onde nasce e aonde se expressa o seu sofrimento. Deles se espera maior implicação no tratamento e, com isso, ganhos em sua autonomia. Como continuar, então, empregando, como ferramenta psicopatológica exclusiva, um corpo de conhecimentos objetificante, produzido, sobretudo, em um ambiente asilar e identificado confortavelmente com as práticas alienantes do antigo manicômio? Com as modalidades de ensino prático de Psicopatologia, que apresentaremos a seguir, pretendemos transmitir não apenas uma concepção de Psicopatologia que tenha como eixo as suas dimensões subjetiva e social, mas também apresentar aos estudantes alguns dos novos dispositivos de cuidados em saúde mental12. Novas práticas no ensino prático de Psicopatologia Baseadas no referencial apresentado, as atividades práticas propostas na disciplina tiveram início no primeiro semestre letivo de 2005, tendo sido oferecida, até o momento, para cinco turmas da graduação. Algumas das características aparecem descritas nos próximos itens.

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11 Para maiores detalhes desta discussão, ver Leal, 2006, e Leal et al., 2006.

12 No final de 2006 existiam no Brasil 1011 Centros de Atenção Psicossocial (Brasil, 2007). O crescimento desses serviços tem sido regular e constante: em 2000 eram 208 em todo o país. No estado do Rio de Janeiro existiam 72 Centros de Atenção Psicossocial, sendo 14 no município do Rio de Janeiro (11 Centros de Atenção Psicossocial para Adultos, dois para crianças e um para usuários de álcool e outras drogas).


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Metodologia A metodologia empregada foi a do estudo de caso, entendido como a metodologia de pesquisa empírica que investiga um fenômeno dentro do seu contexto de vida real, sendo que os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente definidos. Este tipo de pesquisa lida geralmente com mais variáveis de interesse, baseia-se em várias fontes de evidências e vale-se do desenvolvimento prévio de proposições teóricas para conduzir a coleta e a análise de dados. A unidade (caso) pode ser um indivíduo, mas também pode ser um grupo, uma empresa, instituição, política pública, etc. O caso pode ser único ou múltiplo. O caso decisivo é aquele que serve adequadamente para testar uma teoria bem-formulada (no nosso caso, as formulações fenomenológicas da perspectiva da primeira e da segunda pessoa). O caso revelador presta-se como possibilidade de observar e analisar um fenômeno geralmente inacessível à investigação científica, no caso, o vivido subjetivo, tão ausente da pesquisa em Psicopatologia nas duas últimas décadas. Estudos de caso podem ser descritivos, exploratórios ou explanatórios, sem qualquer conotação hierárquica vigente nesta distinção. O tipo de generalização que pode advir de um estudo de caso não é, evidentemente, a generalização estatística, decorrente tipicamente de estudos que empregam o método epidemiológico. A generalização que se pode obter valendo-se de um estudo de caso é a que se chama generalização analítica, na qual se emprega uma teoria já desenvolvida como a grade hermenêutica contra a qual são submetidos os resultados do estudo (Yin, 2005). Resumindo, podemos dizer que a metodologia empregada no presente estudo é a do estudo de caso múltiplo, decisivo e revelador, de caráter exploratório. A opção pela realização de grupos de usuários como procedimento para a obtenção de narrativas sobre a experiência de sofrimento psíquico se baseia nos desenvolvimentos teóricos de Costa (1989) acerca do efeito facilitador do dispositivo grupal no contexto das práticas terapêuticas em ambulatórios públicos e na exploração pragmática dos grupos, realizada pela equipe de Romme & Escher (2000, 1997) no contexto do trabalho com ouvidores de vozes. 1) O grupo de ensino prático do Hospital-dia do Instituto de Psiquiatria da UFRJ: usuários recebem os alunos. O convite para participação no grupo é feito pela professora responsável pela atividade, que periodicamente visita a Assembléia Geral do Hospital-dia, e os grupos de acompanhamento do projeto terapêutico dos pacientes, para reiterar convite. É relevante dizer que a professora não faz parte do staff da unidade. Os pacientes são convidados a constituírem um grupo para receber os alunos. A eles é solicitado que digam o que é um Hospital-dia; em que consiste a experiência de ser tratado num dispositivo como esse e a experiência de ser uma pessoa em tratamento psiquiátrico; e o que esperam de um psicólogo em um Hospital-dia. Com essa dinâmica, pretendemos alcançar alguns objetivos: a) apresentar aos alunos dispositivos de atenção diária e intensiva não centrados na internação;

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b) indicar que o tratamento para pacientes psiquiátricos graves não deve estar centrado na remissão dos sintomas, mas em auxiliá-los a criarem novos modos de viver que, embora diferentes dos momentos anteriores à experiência do adoecimento, possam dar continuidade à própria vida; c) apresentar aos alunos outras possibilidades de exercício da prática de cuidado, diferente do atendimento individual; d) ressaltar que a recuperação da capacidade normativa dos pacientes deve ser um dos desafios alcançados com o tratamento, embora isso não signifique o retorno a estado anterior ao adoecimento; e) indicar aos alunos que o sucesso do tratamento depende, em grande parte, da possibilidade do profissional valorizar o que o paciente toma como importante para si. Os pacientes que freqüentam a atividade o fazem voluntariamente, e, no primeiro período de oferta dessa atividade, alguns pacientes tiveram freqüência regular. As avaliações feitas ao fim de cada semestre com os pacientes indicam que eles atribuem à atividade um caráter terapêutico. O fato de reconhecerem, na atividade, um espaço onde têm sua palavra valorizada sustenta tal avaliação. A dinâmica do grupo é livre. No início do grupo, a professora solicita que todos se apresentem (cada grupo de alunos participa dessa atividade duas ou três vezes durante a disciplina13). Após esse primeiro momento, os pacientes são convidados a descrever o que é o Hospital-dia. Em seguida, considerando as temáticas anteriormente descritas, um diálogo livre se estabelece entre alunos e pacientes. Em geral, os pacientes partem da narrativa de suas histórias de vida. De seus relatos, surgem os temas discutidos ao longo da aula, tais como: o que é viver sentindo-se ameaçado por perseguidores, ser vítima e agente de agressões e discriminação social, as dificuldades de adesão ao tratamento, o que é ser portador de uma doença crônica que dificulta a realização das tarefas mais simples do cotidiano, só para citar alguns. A professora ocupa a função de facilitador desse diálogo. Também participa do grupo um profissional do Hospital-dia que exerce, sobretudo, o papel de observador. Em geral, essa pessoa participa quando alguma interrogação direta lhe é feita. Suas intervenções têm ajudado a reenviar as questões discutidas para os pacientes. O grupo tem duração de uma hora. Findo este período, os pacientes se retiram e a professora discute com os alunos por trinta minutos. A discussão, livre, costuma abranger principalmente duas questões: como foi a experiência de estar interagindo com pacientes nesse grupo, e em que medida a ferramenta psicopatológica pode ser útil no encontro com pacientes, seus limites e possibilidades. As avaliações feitas pelos alunos, ao fim da disciplina, indicam a capacidade formadora dessa atividade. Não raro referem surpresa ao descobrirem quanto essas pessoas “são fortes” ou como são capazes de construir modos de conviver e entender o seu adoecimento. Em tais narrativas, fica evidente que os alunos conseguiram articular a dimensão sintomatológica dos quadros psicopatológicos à dimensão subjetiva da experiência do adoecimento e seus aspectos relacionais e interpessoais. Apesar do curto período de realização dessa atividade, algumas

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13 A turma é dividida em seis grupos, formados por até oito alunos cada.


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observações já podem ser feitas. Esse dispositivo mostrou-se potente para indicar a complexidade do campo psicopatológico. Ficou mais fácil, a partir dele, indicar que o modo como percebemos os pacientes decorre, também, das lentes que utilizamos para com eles interagir. A força atribuída às categorias nosológicas, como elementos capazes de informarem sobre o sujeito, foi relativizada. O relato dos pacientes sobre a experiência de ser paciente psiquiátrico foi sempre muito mais rico do que a pura descrição sintomática. As temáticas apresentadas nesses relatos mostraram toda a complexidade do cuidado em saúde mental. Para encerrar a apresentação dessa atividade, serão descritas duas situações que indicaram isso exemplarmente. Na primeira situação, os pacientes discutiram como, em muitas circunstâncias, é difícil aderir ao tratamento, porque diferente do que usualmente pensamos, os seus sintomas – como delírios e alucinações – podem, além de causar problemas para a sua relação com o mundo, também produzir algum tipo de conforto subjetivo. Nesse caso particular, aconteceu um rico debate acerca do que é possível ser feito para ajudá-los a aderir ao tratamento, especialmente quando também um importante elemento de sofrimento e prejuízo está presente. Na outra situação, um debate relevante se estabeleceu sobre a revelação do diagnóstico. Foi possível, considerando todas as perspectivas legais e do Direito, discutir o ponto de vista dos pacientes, indicando que essa temática é muito mais do que simplesmente saber o que a lei recomenda, qual é o nosso dever e qual o direito dos pacientes. Foram abordadas questões, tais como: quem revelaria o diagnóstico? Que conseqüências podem ter para o paciente ter o diagnóstico revelado por alguém que considera responsável por seu tratamento e por alguém que não reconhece nesse lugar? Como isso deveria ser dito e discutido? Que fantasias aparecem quando um diagnóstico não é explicitado ou quando é informado sem maiores discussões? Todas essas indagações foram discutidas tomando, como ponto de partida, a opinião dos pacientes. O fato de partirmos da experiência vivida desses pacientes - o que punha em cena as diferentes histórias de vida de relação com a doença e tratamentos que atravessaram - indicou a complexidade envolvida, aspecto pouco perceptível quando elidimos a dimensão da experiência de sofrimento e o reduzimos a um simples elenco de sintomas a serem reconhecidos e enumerados. 2) A segunda atividade proposta na disciplina foi um contato mais estreito com pacientes que freqüentam oficinas terapêuticas no Hospital-dia da instituição. Nesta atividade, ao contrário da anterior, um grupo de alunos encontra-se com um único paciente e este é convidado a falar sobre a sua inserção em uma determinada oficina. Do mesmo modo como descrito na atividade anterior, a professora não faz parte da equipe do Hospital-dia. Para convidar os pacientes que participam da atividade, ela conta com a colaboração do técnico que coordena a oficina e se incumbe da função de indicar os pacientes para entrevista. No contato inicial, informa-se ao paciente o tipo de grupo (alunos de

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Psicologia) que irá encontrar e qual o seu objetivo (discutir o lugar da oficina no tratamento). Mediante a concordância do paciente, ele é levado ao encontro do grupo, que se encontra em uma sala de reuniões. O grupo de alunos recebe, então, o paciente, que é chamado a falar, em especial, sobre: qual é a atividade desenvolvida na oficina; o momento em que foi encaminhado para essa atividade; a importância da oficina em seu tratamento; e o relacionamento estabelecido com os colegas e com a coordenadora da atividade. Em meio a essa caracterização, cada paciente vai, a seu modo, inserindo a oficina no contexto do tratamento e, aos poucos, falando sobre como adoeceu e sobre como vivencia essa experiência. Os encontros foram todos muito singulares. O que os interligava era o fato de os pacientes participarem de uma mesma oficina - artes plásticas. A forma como cada um se inseria na oficina variava muito também. Para exemplificar, podemos citar três relatos. Um dos pacientes, já tendo vivido nas ruas, falava da oficina como algo tão importante que demarcou dois momentos totalmente diferentes em sua vida: antes ele vivia o caos (mental, financeiro etc.); depois da oficina pôde expressar-se melhor e dar alguma direção à sua habilidade para o desenho e a pintura. Com a venda de seus quadros passou a alugar um quarto de hotel onde morava à época da entrevista. Um segundo paciente, ao contrário, não se interessava muito pela manipulação das tintas ou qualquer outra técnica proposta na oficina. Estava, entretanto, sempre presente, gostava muito do cafezinho que ali era servido e das tarefas de apoio à coordenação que desenvolvia: cuidado com os materiais, monitoramento dos estoques, etc. Dizia que costumava fazer “mandados para a coordenadora”, sentia-se muito bem na oficina, considerava que tinha amigos ali. Sua experiência de tratamento estava muito ligada àquela instituição e à oficina, na medida em que antes não recebera qualquer tipo de tratamento. Ficara durante anos apenas “andando pela cidade, ía da Pavuna à Barra, andava, só andava”, “estava maluco naquela época”, dizia. Já um terceiro paciente, que também se sentia muito bem na oficina, afirmava sua importância, mas confessava que, sem o chamado insistente da coordenadora, ele nunca teria ido para a atividade. Sua chegada à instituição era sempre acompanhada de um perambular pelo pátio. Só se dirigia à oficina se convocado. Mediante relatos como esses, debatemos as questões que porventura surjam, em tempo reservado para esse fim, depois da saída do paciente. Retomamos, em geral, a caracterização feita pelo paciente da oficina, suas vivências ali. E ainda: a forma como foi conduzida a entrevista; o que havia chamado a atenção de cada um dos alunos naquele contato etc. Ao final, os alunos são convidados a visitar a oficina, caso se interessem, em dia que pode ser agendado junto à coordenadora da atividade14.

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A ida, eletiva, à oficina, se passa em um horário alternativo ao da atividade de ensino prático, em função do fato da aula prática iniciar em um horário próximo ao do final das atividades das oficinas. Além disso, apesar do grupo ser relativamente pequeno (até oito alunos), o espaço físico da oficina ficaria apertado se recebesse o grupo todo junto com seus freqüentadores habituais.

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Considerações finais Ratificamos que a supervalorização da observação do fenômeno psicopatológico, sob perspectiva da terceira pessoa, contribui para que os alunos objetifiquem os pacientes e suas experiências. Esse modo de apreender os transtornos mentais não traz prejuízos apenas para o ensino. Longe de poder ser descrito como mero artefato, esse modo de ver produz efeitos também sobre as intervenções que os alunos desenvolverão como profissionais. Esse olhar será instrumento potente para definição de uma clínica onde (1) a idéia de adoecimento mental desconsidera o modo do sujeito operar no mundo; (2) a avaliação psicopatológica se restringe à indicação de presença ou não de sintomas; (3) privilegia como indicador do adoecimento mental apenas a observação da presença/ausência de alterações tipo delírios e alucinações. Por conta dessa crítica, propusemos as duas atividades descritas que, embora ainda recentes e demandando avaliações atentas às peculiaridades de cada proposta, bem como eventuais ajustes, já revelam, como nos disse um aluno, “algo de mais humano” no contato com o paciente. Dito de outra maneira, a subjetividade resgatada nas aulas práticas, por meio dos relatos em primeira pessoa, traz de forma clara, para o ensino, nossa aposta numa clínica não reducionista, uma clínica que recupere e respeite as singularidades e que deve ser sustentada no interior dos cursos de Psicologia.

Agradecimentos Agradecemos a colaboração de todos os pacientes que participaram das atividades propostas na disciplina. Agradecemos, também, à Madalena Pizzaia, Coordenadora do Hospital-dia do IPUB/UFRJ; à Eliane Santos, Coordenadora do “Atelier da Vida”; e à Nuria Malajovich Muñoz, pelas discussões no Laboratório e pela versão do resumo em espanhol.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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SERPA JUNIOR, O.D. ET AL.

SERPA JUNIOR, O.D. ET AL. La inclusión de la subjetividad en la enseñanza de Educ. v.11, n.22, p.207-22, mai/ago 2007. Psicopatología. Interface - Comunic., Saúde, Educ., El estudio de Psicopatología suele presentarse en su dimensión descriptiva. Esa perspectiva tiene pertinencia para la enseñanza, dado que ayuda el alumno a reconocer la dimensión sintomatológica de los cuadros psicopatológicos. Todavía excluye la dimensión subjetiva de estar enfermo cuanto a sus aspectos relacionales. Partiendo de la antropológica existencial, presentamos una experiencia de enseñanza de Psicopatología que considera tales dimensiones relevantes para la comprensión del sufrimiento mental. Siguiendo el estudio de caso descriptivo, presentamos dos nuevas modalidades de prácticas de Psicopatología Especial I, dictada para alumnos del curso de Psicología de una universidad brasileña. Buscamos modificar la enseñanza práctica, tradicionalmente centrada en el modelo de la gran entrevista clínica realizada delante de un gran grupo de alumnos que asisten a todo de forma pasiva. Pretendemos aproximar la enseñanza y la práctica de Psicopatología a los ideales de la Reforma Psiquiátrica Brasileña que toma la enfermedad mental como fenómeno complejo, considerando la relación del sujeto con el mundo. PALABRAS CLAVE: Psicopatología. Enseñanza. Subjetividad. Antropología. Existencialismo.

Recebido em 10/02/06. Aprovado em 05/02/07.

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Dilemas na promoção da saúde no Br asil: Brasil: reflexões em torno da política nacional*

Martha A. Traverso-Yépez 1

TRAVERSO-YÉPEZ, M.A. Dilemmas on Health promotion in Brazil: considerations on the national policy. Interface Educ., v.11, n.22, p.223-38, mai/ago 2007. - Comunic., Saúde, Educ.

Health promotion, despite being a recurrent day-to-day theme, is a complex and multifaceted concept. The purpose of this article is to highlight some of the dilemmas and problematic aspects of the notions and ideas that concern this theme. It also emphasizes how difficult it is to think about the theme at hand without considering ways to eradicate the deep social iniquities of the Brazilian context. These considerations are developed in further depth within the scope of the National Health Promotion Policy instituted in 2006, showing the relevance of deconstructing politically correct discourses and the development of processes of reflection within our healthrelated practices. KEY WORDS: Health promotion. Health public policy. National Health Promotion Policy.. Social Psicology. Apesar de ser tema recorrente no cotidiano, a promoção da saúde apresenta-se como um conceito complexo e multifacetado. O objetivo do presente trabalho é destacar alguns dos dilemas e aspectos problemáticos nas concepções e idéias sobre a temática. Enfatiza-se, também, a dificuldade de pensar a promoção da saúde sem considerar formas de erradicar as profundas iniqüidades sociais vigentes no contexto brasileiro. Aprofunda-se, ainda, essa reflexão no âmbito da Política Nacional de Promoção de Saúde, instituída em 2006, mostrando a relevância da desconstrução dos discursos politicamente corretos e o desenvolvimento dos processos de reflexão sobre as formas de atuar no campo da saúde. PALAVRAS-CHAVE: Promoção da saúde. Políticas públicas de saúde. Política Nacional de Promoção de Saúde. Psicologia Social

Algumas das idéias desenvolvidas no presente texto foram trabalhadas e debatidas durante o estágio de pós-doutorado no Community Health Division, Faculty of Medicine, Memorial University of Newfoundland em St. John’s, Canadá, entre 2004-2005.

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Psicóloga; pós-doutora em Saúde Comunitária; professora, departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN. <traverso@ufrnet.br>

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Rua Ind. João Motta, 1637, apto. 1003 Capim Macio – Natal, RN 59.082-410

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TRAVERSO-YÉPEZ, M.A.

Introdução Embora o desenvolvimento conceitual das expressões promoção de saúde e prevenção de doenças pertença apenas às últimas décadas, as idéias relacionadas com esses conceitos não são novas. Desde a antiguidade, médicosfilósofos têm refletido sobre a necessidade de promover saúde e, especialmente, prevenir doenças, mediante a observação da relação entre saúde e certas práticas sociais. Na Grécia Antiga, segundo Rosen (1994, p.39), “no modo ideal de vida equilibravam-se nutrição, excreção, exercício e descanso”. Contudo, eram poucas as pessoas que podiam seguir esse regime, fazendo tradicionalmente parte de uma “higiene aristocrática”. A história da saúde pública, segundo o autor citado, ilumina o fato de quanto foi gradual e complexo fazer extensivas essas preocupações de promover a saúde e prevenir e tratar doenças para toda a população nos Estados modernos, estando a essência dessa consciência imbricada no próprio desenvolvimento da saúde pública. Essas inquietações aparecem, assim, vinculadas à incipiente medicina social do início do século passado e, posteriormente, à saúde pública. Desde a década de 1870, com o Relatório Lalonde e a conferência de Alma Ata sobre atenção primária no Canadá, bem como a partir da primeira conferência internacional sobre promoção da saúde em Ottawa (1986), o desenvolvimento conceitual acerca da promoção da saúde aparece atrelado a uma concepção mais abrangente e complexa do processo saúde-doençacuidado, o qual aponta, principalmente, para os determinantes socioeconômicos envolvidos nesse processo (Souza & Groundy, 2004; Buss, 2003; Brasil, 2002). Contudo, a multiplicidade de concepções e a polissemia do termo evidenciam a impossibilidade de definições unívocas ou de relações unilineares e aponta para a multideterminação e a complexidade2 do fenômeno em estudo, por envolver redes simbólicas diversas e multifacetadas (Buss, 2003; Czeresnia, 2003; Radley, 1994). Assim, enquanto as ações preventivas objetivam evitar o surgimento de doenças específicas, a promoção está mais preocupada com o bem-estar geral de pessoas e comunidades, partindo, então, de uma concepção positiva de saúde (Czeresnia, 2003). Na perspectiva da promoção, a Organização Mundial de Saúde - OMS define a saúde como “recurso que permite às pessoas manter uma vida, individual, social e economicamente produtiva” e compreende a promoção da saúde como um processo social e político, não limitado a abraçar ações direcionadas a fortalecerem as habilidades e capacidades dos indivíduos, mas envolvendo, também, ações dirigidas a mudar as condições sociais, ambientais e econômicas, de forma a amenizar o seu impacto na saúde pública e individual. (WHO, 1998, p.1)

Ao pensar a saúde de forma tão abrangente, como aponta Czeresnia (2003, p.46), “está se lidando com algo tão amplo como a própria noção de vida”, envolvendo tanto aspectos individuais como aspectos macro-estruturais, bem como sua permanente interação.

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Complexidade, segundo Mariotti (2000, p.87-8), “não é um conceito teórico, e sim um fato da vida [...] Por mais que tentemos, não conseguiremos reduzir essa multidimensionalidade a explicações simplistas, regras rígidas, fórmulas simplificadoras ou esquemas fechados de idéias [...] Este (o pensamento complexo) configura uma nova visão de mundo que aceita e procura entender as mudanças constantes do real e não pretende negar a contradição, a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza, e sim conviver com elas”.

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DILEMAS NA PROMOÇÃO DA SAÚDE...

O objetivo deste artigo é destacar alguns dos dilemas e aspectos problemáticos nas concepções e idéias sobre promoção da saúde, bem como o desafio de pensar sobre a temática diante das profundas iniqüidades sociais existentes no contexto brasileiro. Aprofunda-se, ainda, essa reflexão no âmbito da Política Nacional de Promoção da Saúde, instituída mediante Portaria no. 687, de 30 de Março de 2006, visando promover a qualidade de vida e reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes – modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais. (Brasil, 2006, p.19)3 Originariamente, trabalhou-se com o documento preliminar para discussão (Brasil, 2005a). Porém, como a Política, com algumas supressões e acréscimos, foi oficializada em 2006, enquanto este artigo estava sendo elaborado foram revistas as mudanças contempladas no documento definitivo.

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Hacking (1999), apropriadamente, usa o termo “matriz” para se referir a essa rede de interações presente em todo fenômeno social. Esta inclui tanto a dinâmica institucional, quanto a infra-estrutura física, bem como os valores e ideologias mais amplas relacionadas à forma de significar a vida e o mundo a nossa volta.

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Os dilemas conceituais da promoção da saúde As dificuldades inerentes à definição conceitual sobre promoção de saúde são decorrentes da própria dificuldade de se definir saúde, não só pelas diferentes dimensões que perpassam o conceito: social, psicológica, econômica, espiritual, além da biomédica, mais tradicional. A maior dificuldade reside no fato da saúde ser, antes de mais nada, uma experiência individual. As formas como as pessoas percebem sua saúde e os meios como cuidam dela são tão diversas quanto as diferentes formas de significar e experimentar a vida (Radley, 1994). São formas perpassadas por processos de subjetivação dependentes das histórias de vida das pessoas, bem como da complexa rede de interações que fazem parte do cotidiano das mesmas.4 Radley & Billig (1996) propõem ir além do conceito sociológico de representações sociais e do conceito psicológico de atitudes. Os autores explicam que, geralmente, eles são reificados e tratados como coisas estáticas, sugerindo que as crenças e os discursos sobre saúde-doença sejam considerados como versões desses processos, os quais aparecem em contextos sociais, interacionais e experienciais específicos. Existem, também, dilemas éticos quando se deve decidir entre iniciativas limitadas a certos grupos – caracterizados como “grupos de risco” – ou generalizadas para toda a população. Não é menos problemático, ainda, definir limites, no sentido de respeitar a liberdade de ação das pessoas, não sendo à toa que as práticas de intervenção da saúde pública têm sido, muitas vezes, apontadas como formas de controle social (Radley, 1994); bem como campanhas de prevenção de doenças criticadas por seu viés estigmatizante, repressivo ou gerador de pânico (Lupton, 1999). Percebe-se, ainda, que há poucos anos, quando se falava de promoção de saúde, associava-se esta primordialmente à adoção de comportamentos saudáveis, centrando, então, a atenção nos indivíduos. Até hoje não faltam textos priorizando tal tendência, especialmente no campo da psicologia da saúde mais tradicional. A preocupação pela adoção de comportamentos saudáveis fundamenta-se na premissa de que boa parte dos problemas de saúde estão relacionados com estilos de vida e a estratégia para trabalhar essa dinâmica foi a “educação para saúde”. Porém, reconhece-se que existem muitas formas de educar, sendo que campanhas e palestras de informação, objetivando

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TRAVERSO-YÉPEZ, M.A.

mudanças de condutas, tendem a negligenciar o que Freire (2003, p.22) colocou com tanto acerto: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção ou para sua construção”. O que nos traz de volta aos aspectos psicossociais do processo. Por isso, para Radley (1994), quanto maior for a repetição de campanhas simplistas apontando riscos lineares de causa-efeito, menor será a probabilidade das pessoas sentirem-se afetadas por tais mensagens. Daí que abordagens reducionistas e homogeneizadoras, assim como a transmissão e/ ou imposição vertical daquilo que os técnicos e profissionais consideram “saudável”, tão comum nos trabalhos ditos de promoção ou educação para saúde, estejam geralmente fadadas ao fracasso (Briceño-León, 1996). Isso aponta a necessidade de substituir o modelo linear/vertical por outro que esteja mais atento às formas dialógicas de trabalho, levando em consideração a teia de interdependências na qual o trabalho em saúde está inserido. Briceño-León (1996), inspirado nos critérios de Paulo Freire, lembra que, em toda ação humana, mais importante que as palavras, ou seja, que nossas práticas lingüísticas, é o que expressamos em todo o leque de nossas práticas cotidianas. Sugere, assim, que sejam considerados os efeitos da comunicação não verbal e a dimensão “educativa” não intencional das ações cotidianas, insistindo que educação não é apenas o que se exprime nos programas educativos, mas por meio de toda ação sanitária. Destaca, igualmente, que, nessa dinâmica de educação para saúde, não tem um alguém que sabe e outro que não sabe, mas dois que sabem coisas diferentes; daí a afirmação de que “a ignorância não é um buraco a ser preenchido, mas um ‘cheio’ a ser transformado” (p.12). Portanto, o universo de significações fazendo parte desse conhecimento leigo deve ser considerado, e não simplesmente rejeitado em função de um conhecimento dito “científico” ou “verdadeiro”. Em outras palavras, a promoção de estilos de vida que promovam saúde deve ser uma preocupação tanto individual quanto social, considerando até mesmo o gradativo aumento da população idosa e o conseqüente crescimento das doenças crônicas degenerativas. Não existe cura médica para muitos dos problemas crônicos de saúde, mas apenas intervenções paliativas de altos custos econômicos e sociais. Portanto, é bom ter também cautela quando a promoção da saúde é apresentada como estratégia prioritária de ação na atenção primária à saúde – como se fosse possível atingir a utopia de sociedade sem doenças. Como Campos (1997) destaca, pode ser pretexto para sucatear o investimento em serviços de saúde de qualidade. Observa-se, assim, que os argumentos justificando a preocupação pela promoção de saúde variam. Encontram-se desde aqueles com uma perspectiva humanista, centrados na necessidade de trabalhar com uma concepção mais abrangente de saúde, até argumentos mais pragmáticos, que concebem a promoção como uma reação à acentuada medicalização da saúde e suas limitações iatrogênicas, ou os com um viés mais economicista, voltando o foco para os altos custos envolvidos na moderna tecnologia médico-farmacêutica. Considerando que, em qualquer tipo de concepção e argumentação, estão

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DILEMAS NA PROMOÇÃO DA SAÚDE...

implícitas premissas sobre a relação indivíduo-sociedade, acredita-se ser relevante a atenção a essa complexa teia de interdependências que perpassa as práticas relacionadas com o processo saúde-doença e as formas diferenciadas de intervenção (Traverso-Yépez, 2001). Não é à toa, por exemplo, que a imagem de indivíduos induzidos a mudar seus estilos de vida para terem saúde tende a se associar à idéia de uma sociedade harmônica e sem conflitos de classe, deixando de lado os determinantes socioeconômicos que influenciam os processos saúde-doença. Todavia, como observado por Rosen (1994), ao longo da história tem sido patente essa relação inversamente proporcional entre precariedade existencial e saúde, expressa hoje em dados epidemiológicos em cada país, bem como entre países mais e menos desenvolvidos, embora as peculiaridades dessa relação continuem sendo debatidas até hoje (Coburn, 2004, 2000). O trabalho de Wilkinson (1996), Sociedades doentes: as aflições da desigualdade, bem como de Wilkinson & Marmot (2003) sobre os determinantes sociais da saúde, evidenciam que um dos maiores determinantes de estatísticas tão diferenciadas de saúde da população tem a ver com o grau de desigualdade social. Esses trabalhos deixam em evidência que mais importante que os bens materiais de uma sociedade (no caso de uma nação, falamos do produto interno bruto ou PIB) é o combate às desigualdades sociais e às mazelas que estas acarretam, refletindo no bemestar e na saúde geral da população. A promoção da saúde e os empecilhos das desigualdades sociais no Brasil Sem entrar na polêmica que as pesquisas de Wilkinson (1996) e Wilkinson & Marmot (2003) têm gerado no mundo desenvolvido, entre epidemiologistas de diversas tendências, a visão ampliada de saúde implícita nesses trabalhos tem sido o arcabouço conceitual para as novas propostas na área. Observase que o Brasil passa a aderir oficialmente a essa visão mais abrangente de saúde desde o final da década de 1980, com a institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, até hoje, constata-se um profundo hiato entre o que está no papel e as práticas cotidianas. No caso da implementação das políticas de promoção da saúde, a dificuldade é ainda maior, como conseqüência da multiplicidade e complexidade dos aspectos envolvidos, entre esses: as desigualdades socioestruturais e as injustas relações de poder afetando negativamente mais de um terço da população brasileira. Desde a Carta de Otawa, já mencionada, até a Quinta Conferência Internacional no México, em 2000, insistiu-se, com maior ênfase, na saúde como elemento necessário para o desenvolvimento social e econômico, bem como no imperativo de se abordarem os determinantes sociais, econômicos e ambientais, os quais influenciam as condições de saúde das populações (Brasil, 2002). Isso coloca a promoção “como prioridade fundamental das políticas e programas locais, regionais, nacionais e internacionais” (Brasil, 2002, p.30). Considera-se que o desafio da proposta baseia-se no fato de o Brasil estar

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TRAVERSO-YÉPEZ, M.A.

entre os três países com o maior índice de desigualdades sociais do mundo, apesar de estar também entre as dez economias mais ricas do planeta (IBGE, 2003). Contudo, os empecilhos gerados por esse alto grau de iniqüidade social e, especialmente, a banalização que a acompanha, tendem a ser pouco considerados na literatura e nos documentos oficiais sobre promoção da saúde. Como refere Coburn (2004, 2000), não é possível limitar o estudo aos efeitos das desigualdades sociais, mas deve-se prestar mais atenção aos seus aspectos ideológico-estruturais, ou seja, à complexa rede de interdependências socioeconômicas e político-ideológicas. Aponta-se, assim, que a ascensão do neoliberalismo, num mundo globalizado, subverte as bases ideológicas do Estado de Bem-estar (Coburn, 2004, 2000; Mehry, 1997), exacerbando individualismos e falta de solidariedade. Em países de capitalismo dependente, como o Brasil – que nunca atingiu, nem de perto, esse Estado de Bem-estar, mas adotou apenas alguns dos seus princípios no escopo dos serviços públicos – as políticas neoliberais orientadas pelo mercado entram permanentemente em conflito com aquelas de fundo social, tendendo a inviabilizar, de um modo ou de outro, as expectativas referentes às políticas de saúde mais progressistas (Paim & Almeida Filho, 2000). Outro problema adicional é que as iniciativas de promoção da saúde, fazendo parte da vida institucional, além de serem expressão de concepções diferenciadas sobre esses termos, são bastante restritas a espaços, pessoas e momentos conjunturais, que confirmam e destacam as grandes limitações de uma saúde pública desenvolvida no contexto de uma política econômica neoliberal. Analisando os discursos da Política Nacional de Promoção da Saúde no Brasil Com base nas considerações anteriores, enfatiza-se uma possível contribuição da Psicologia Social crítica ao processo de trabalho em promoção da saúde. Como qualquer trabalho em saúde, a promoção envolve um conjunto de ações que tem como objetivo o atendimento a determinadas necessidades das pessoas (Brasil, 2005b). Portanto, esse trabalho é sempre uma ação de encontro com um “outro”, perpassado pelas experiências de vida, pelos saberes de saúde, pelas práticas e materialidades5 do sistema assistencial. De forma que concepções e argumentações sobre o tema não apenas expressam posicionamentos, mas sendo sempre relacionais, geram também formas de ação e formas de subjetivação na vida em sociedade, sendo, portanto, eminentemente psicossociais. Parte-se, assim, da dimensão relacional-responsiva da vida humana, ou seja, da constante interação das práticas sociais, influenciadas e influenciando tudo o que está à volta (Spink, 2004; Bakhtin & Voloshinov, 1992). A concepção de (inter)ação como uma atividade significada deixa claro o caráter construtivo dos processos psicossociais, como também a constituição social da subjetividade, mas sempre dentro dos limites dos condicionantes contextuais. Sendo geralmente processos não reflexivos, a atenção a essa dinâmica, perpassando ações e práticas sociais, permite ir

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O termo materialidades fundamenta-se nos trabalhos de Bruno Latour (2001) e de John Law (2003), entre outros, sobre a rede de práticas sociais interdependentes, que fazem parte da ciência e tecnologia no mundo moderno. Latour reconhece que, semioticamente, tanto atores humanos quanto participantes não-humanos (sejam computadores, políticas, ideologias ou constructos naturalizados, como bactérias ou vírus) são igualmente “atuantes”. O fato relevante da teoria é que tanto humanos quanto não-humanos são definidos em campos relacionais. Isso leva a recusar a consideração positivista de objetos ou atores existindo, por si, sem nenhuma participação na rede ecossocial e semiótica de interações.

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DILEMAS NA PROMOÇÃO DA SAÚDE...

além das formas verbais e corporais de comunicação, tornando as pessoas mais cientes e ligadas às materialidades e às racionalidades produzidas, ou seja, às redes simbólicas de variadas naturezas que perpassam as ações de saúde, inclusive as de promoção da saúde. Considera-se a facilidade de falar dessa perspectiva socioecológica, mas é bem mais complicado pensar essa complexidade em termos operativos, ou em práticas cotidianas, devido ao padrão linear de raciocínio no qual a socialização se dá (Mariotti, 2000; Morin, s/d). A dificuldade de lidar com a processualidade da vida e a multiplicidade de aspectos em contínua interação reside na necessidade de buscar certezas, o que leva ao reducionismo, à simplificação, ao imediatismo, à busca das causalidades simples e à previsão, para poder controlar. Diante dessas considerações, qualquer “leitura” das novas propostas de ordenamentos sociais deve ser acompanhada de processos de reflexão e de auto-reflexão, pela tendência a reproduzir os parâmetros simbólicos aos quais as pessoas estão condicionadas. Assim, no caso da política de promoção da saúde, acredita-se ser resultado da pressão internacional somado à consciência, em muitos dos gestores, sobre as limitações de um modelo de saúde que continua centrado na doença. Contudo, nesse teor de reflexão crítica, é de se questionar se as práticas discursivas, ou formas de ação perpassadas pela linguagem, implícitas na política, viabilizam as mudanças necessárias. Para o estudo da Política Nacional de Promoção da Saúde (Brasil, 2006), adotou-se a estratégia de análise foucaultiana do discurso, sintetizada por Willig (2001) e utilizada na análise do Programa de Promoção da Saúde 1996-2000 da Comissão Européia, por Sykes et al. (2004). A análise documental apresenta-se em seis etapas: 1) identificando as construções discursivas que lidam com a temática de ‘promoção da saúde’ e aprofundando-se sobre as formas em que esse discurso é construído no texto; 2) situando as várias construções discursivas em discursos mais amplos, apontando, especialmente, para os juízos de valor envolvidos; 3) com base nesses discursos, apreendendo a função que eles têm e, portanto, a orientação para a ação implícita nos textos; 4) desvendando os posicionamentos que as pessoas envolvidas ocupam dentro da estrutura de direitos e deveres propostos, bem como as formas de ver e se situar no mundo; 5) apontando a forma em que a relação entre construção discursiva e posicionamentos envolvidos abrem ou fecham possibilidades de ação e de certos tipos de práticas em detrimento de outras; 6) explorando a relação entre posicionamentos e formas de subjetivação que estes geram entre os participantes. 1) Construções discursivas Destaca-se que no texto da Política (Brasil, 2006) a promoção da saúde aparece inserida em diferentes construções discursivas, apresentadas segundo a ordem de aparição: · Como uma das estratégias de produção de saúde: a promoção da saúde aparece articulada às demais políticas e tecnologias do SUS, como

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TRAVERSO-YÉPEZ, M.A.

possibilidade de focalizar os determinantes sociais da saúde. Define-se, especificamente, como uma possibilidade de enfocar os aspectos que determinam o processo saúde-adoecimento, como, por exemplo, violência, desemprego, subemprego, falta de saneamento básico, habitação inadequada e/ou ausente, dificuldade de acesso à educação, fome, urbanização desordenada, qualidade do ar e da água ameaçada, deteriorada. (Brasil, 2006, p.14)

Igualmente, propõe uma visão ampliada da saúde, apontando para o caráter coletivo das escolhas e opções nos modos de viver, em lugar da perspectiva “individualizante e fragmentada” que “coloca os sujeitos e as comunidades como os responsáveis únicos pelas várias mudanças/ arranjos ocorridos no processo saúde-doença ao longo da vida” (p.14). Insiste ainda que “as intervenções em saúde ampliem seu escopo” para “ir além dos muros das unidades de saúde e do sistema de saúde, incidindo sobre as condições de vida” (p.14). Contudo, percebe-se que, embora identificando os efeitos nocivos decorrentes das precárias condições de vida e das profundas iniqüidades sociais existentes no Brasil contemporâneo, não se problematiza a banalização/naturalização do regime de injustiças imperante. De fato, essa banalização não apenas coloca sérias restrições às possibilidades de implementação dos princípios e predicados das novas políticas, mas tende a atuar a favor da institucionalização e reprodução das mesmas desigualdades. Assim, a evocação dos problemas sociais identificados como “modos de viver” deixa de refletir sobre como e porque eles aparecem, e as suas formas de se reproduzirem, e, por conseguinte, impossibilita operacionalizar algum tipo de ação. · Estreita relação com o conceito de vigilância em saúde: na Política (Brasil, 2006), enfatiza-se a necessidade de “um movimento integrador na construção de consensos e sinergias” (p.15), visando que as políticas públicas “sejam mais favoráveis à saúde e à vida”. Fala-se, portanto, de políticas que incentivem o “protagonismo dos cidadãos”, “a participação social”, “o exercício da cidadania”, “o trabalho em rede, com a sociedade civil organizada”. Sugere que essa exigência da participação de todos os atores sociais envolvidos, usuários, movimentos sociais, trabalhadores da saúde ou gestores, deve ser construída mediante a “gestão compartilhada”. Contudo, esse convite a formas democráticas de convivência está em desencontro com as formas hierárquicas de relacionamento vigentes numa sociedade tão vertical e estratificada como a nossa. Vale ressaltar que, como Sen (2001) aponta, a pobreza não é somente pobreza de ingressos, mas tende a condicionar o que ele denomina “pobreza de qualificação”, termo no qual está implícita a privação crônica de possibilidades de ação, escolhas, recursos, poder e direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais para grandes setores da população. É esse conjunto de limitações que gera a experiência subjetiva de déficit estrutural que se expressa como anomia social, inviabilizando a participação e o envolvimento das pessoas.

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· Articulação transversal da estratégia: acertadamente, argumenta-se, na Política (Brasil, 2006), sobre a necessidade de uma articulação transversal que permita visibilidade aos fatores que colocam a saúde da população em risco e às diferenças entre necessidades, territórios e culturas presentes no nosso país, visando a criação de mecanismos que reduzam as situações de vulnerabilidade, que defendam radicalmente a eqüidade e incorporem a participação e o controle sociais na gestão das políticas públicas (p.16).

Estreitamente relacionada à proposta de integralidade, que implica “além da articulação e sintonia entre as estratégias de produção da saúde, na ampliação da escuta dos trabalhadores e serviços de saúde na relação com os usuários, quer individual e/ou coletivamente [...]” e à de intersetorialidade, considerada “como uma articulação das possibilidades dos distintos setores de pensar a questão complexa de saúde [...]” (Brasil, 2006, p.16), essa articulação transversal é uma das mais difíceis de serem viabilizadas no cotidiano dos serviços públicos. Devido às relações desiguais de poder vigente, os gestores e as pessoas de forma geral têm marcadas dificuldades para se comunicar uns com os outros, as quais podem se agravar quando levados a trabalhar em favor de ações consensuadas e “soluções inovadoras” (p.17), como sugere a citada Política. · Estratégia de fortalecimento dos princípios do SUS SUS: coloca-se, ainda, a promoção da saúde como estratégia de fortalecimento dos princípios de integralidade, eqüidade, responsabilidade sanitária, mobilização e participação social, intersetorialidade, informação, educação e comunicação. Porém, não há reflexão sobre todos os empecilhos e dificuldades para a implementação de tais princípios nas quase duas décadas de SUS. Na Política (Brasil, 2006), destaca-se, também, como “um desafio de produção de saúde” (p.18), acabar com as dicotomias e trabalhar “na articulação sujeito/coletivo, público/privado, estado/sociedade, clínica/política, setor sanitário/outros setores”, objetivando terminar com a excessiva fragmentação que caracteriza o processo saúde-adoecimento, tão presente no modelo biomédico vigente. · Estabelecimento dos aspectos operacionais: o objetivo geral, os objetivos específicos e as diretrizes, com diversas expressões, repetem essa preocupação “por promover a qualidade de vida e reduzir a vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes”, insistindo sempre na visão ampliada de saúde e na promoção da autonomia, da co-responsabilidade, da participação social, a fim de cumprir com os princípios pregados pelo SUS. Deve-se destacar que foi significativa a mudança em relação ao documento preliminar para discussão (Brasil, 2005), no qual quatro dos seis objetivos misturavam a idéia de promoção de saúde com prevenção da doença, já que fazia reiterada referência a “fortalecer ações de prevenção e controle de doenças e agravos não transmissíveis (DANT) e transmissíveis” (Brasil, 2006, p.19).

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· Estratégias de implementação e as ações: observa-se que as orientações para a implementação, na sua grande maioria, estão voltadas para os gestores. As responsabilidades são distribuídas entre o gestor federal, o gestor estadual e o gestor municipal. Há a preocupação por qualificar esses profissionais, a fim de garantir a inclusão da promoção da saúde e da prevenção de doenças e agravos não transmissíveis nas ações da atenção primária e, mais especificamente, na Estratégia da Saúde da Família. Como já destacado, desconsideram-se as dificuldades de implementação e de operacionalização dessas estratégias nesse contexto de atenção primária caracterizado pelo baixo poder aquisitivo dos usuários do serviço e a hegemonia do modelo biomédico centrado na cura. Como observado no Nordeste, a demanda por serviços curativos é tão alta que deixa, às pessoas envolvidas, pouco espaço ou disposição para ações de promoção de saúde (Traverso-Yépez et al., no prelo). Por isso, é preocupante observar que às ações focais para o biênio 20062007 centram-se, preferencialmente, em questões tais como: alimentação saudável, prática corporal/atividade física, prevenção e controle do tabagismo, redução da morbimortalidade em decorrência do uso abusivo de álcool e outras drogas, redução da morbimortalidade por acidentes de trânsito, prevenção da violência e estímulo à cultura de paz, e promoção do desenvolvimento sustentável. Representam ações importantes, mas que precisam ser situadas no contexto sociocultural correspondente que as inibe ou dificulta em função das limitações do próprio ambiente. 2) Tipos de discurso Nessa leitura, a poposta é situar o viés das diferentes construções discursivas, atentando especialmente para os juízos de valor que perpassam os discursos. Diferente da proposta original da política, que incluía também discursos “cientificistas”, nos quais conhecimento e evidências científicas aparecem como garantia de ação, tanto alinhados à preocupação economicista, quanto às formas de avaliação, o único tipo de discurso que se observa na versão definitiva é: · Discurso político-prescritivo: até pelo caráter do documento, na maioria das construções discursivas, percebe-se a ênfase político-prescritiva, de forma a parecer que apenas pelo fato de ser citado já é norma de ação, sem considerar ou refletir sobre a viabilidade dos mesmos: Entende-se que a promoção da saúde apresenta-se como um mecanismo de fortalecimento e implantação de uma política transversal, integrada e intersetorial, que faça dialogar as diversas áreas do setor sanitário, os outros setores do Governo, o setor privado e não-governamental, e a sociedade, compondo redes de compromisso e co-responsabilidade quanto à qualidade de vida da população, em que todos sejam partícipes na proteção e no cuidado com a vida. (Brasil, 2006, p.18)

Observa-se a ambigüidade desse diálogo entre as diversas áreas do setor sanitário, o que se agrava mais em relação aos outros setores do Governo e

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do setor privado. Também falar de “redes de compromisso e coresponsabilidade” parece interessante, mas nada fácil de se atingir no atual contexto de profundos individualismos e competitividades. 3) Orientação para ação A atenção aqui se volta para os objetivos que os tipos específicos de construção discursiva tentariam atingir, bem como para as concepções implícitas nessas construções: · Construídos os discursos com esse caráter hierárquico-prescritivo hierárquico-prescritivo, a promoção da saúde, em lugar de proposta-processo, tende a aparecer como algo acabado, inquestionável e, especialmente, fácil de acontecer. A ambigüidade nos discursos, bem como a desconsideração da teia de interdependências envolvidas e as dificuldades a serem superadas, deixam vaga a definição das responsabilidades, impossibilitando cobranças se estas não forem assumidas. Justifica-se, também, a construção dos discursos centralizando as ações em técnicos e gestores especialistas. Legitima-se, assim, o investimento, muitas vezes exagerado, de pagamentos para esses especialistas, dando menos relevância ao conjunto mais amplo de atores sociais, representado pelos usuários do SUS e pelos trabalhadores da saúde envolvidos nas ações diretas junto a esses usuários. 4) Posicionamentos Esta fase da análise está mais atenta às formas como a construção dos objetos discursivos posicionam os diferentes atores sociais. Percebe-se que, embora usem termos como “cidadania” e “envolvimento ativo”, novamente, a ambigüidade dos discursos e especialmente a própria dinâmica destes verticais e impositivos - tende a deixar o público (os usuários, comunidade ou população) passivo. De acordo com Sykes et al. (2004), observa-se que a ênfase no grupo ou na coletividade deixa as pessoas posicionadas como homogêneas, negligenciando as profundas diferenças socioculturais, especialmente em contextos de privação econômica. Assim, no discurso fala-se “dos cidadãos” ou “população” de forma geral: na articulação entre promoção e vigilância da saúde reforça-se a exigência de um esforço integrado na construção de consensos e sinergias e na execução das agendas governamentais, a fim de que as políticas públicas sejam cada vez mais favoráveis à saúde e à vida e estimulem e fortaleçam o protagonismo dos cidadãos em sua elaboração e implementação... (Brasil, 2006, p.15)

Contudo, predomina, nos discursos, uma relação verticalizada, outorgando sempre o papel central e executivo aos técnicos-gestores do processo. Assim, a grande maioria das ações e atividades que implicam uso de recursos referese à burocracia pública, especialmente gestores no âmbito federal, estadual e municipal. São comuns atividades de “apoio à cooperação técnica” ou “divulgação e mobilização de gestores, gerentes e trabalhadores da saúde”,

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no entanto, observam-se poucos casos de propostas concretas de ação para se chegar à população usuária. Insiste-se, ainda, em premissas de relacionamento quase impossíveis de acontecer no dia-a-dia: o trabalho em rede com a sociedade civil organizada favorece que o planejamento das ações em saúde esteja mais vinculado às necessidades percebidas e vivenciadas pela população nos diversos territórios e, concomitantemente, garante a sustentabilidade dos processos de intervenção nos determinantes e condicionantes de saúde. (Brasil, 2006, p.15)

Deixa-se de lado, entre outras coisas, a falta de vontade política para gerar verdadeiras mudanças nas relações de poder vigentes. 5) Práticas Aqui considera-se relevante fazer uma leitura do tipo de práticas que tais construções discursivas viabilizam no texto da Política (Brasil, 2006). Fica óbvio que os receptores dos discursos, sejam quais forem – “o público”, “a cidadania” ou “a população” – são posicionados como passivos e condicionados aos ditames dos gestores, técnicos e especialistas tendo, assim, pouca ou nenhuma possibilidade de assumir as responsabilidades de suas ações de saúde. Por outro lado, técnicos, gestores e especialistas, posicionados como autoridades, apontam para a legitimidade de qualquer medida tomada por eles. Contudo, o mais preocupante é a grande distância e uma quase total impossibilidade de diálogo entre a elite de gestores e especialistas e a maioria da população na base da pirâmide social, usuária da saúde pública, e para quem essas práticas são, supostamente, desenhadas. 6) Processos de subjetivação Quanto à dinâmica de interanimação dialógica ou de influências mútuas, esses posicionamentos e as práticas que são viabilizadas condicionam processos de subjetivação dos atores envolvidos. Assim, as relações verticais instituídas posicionam “a população” usuária do serviço público como passiva e a condicionam a se comportar dessa forma. Não adianta falar de “empoderamento” ou do desenvolvimento de autonomia se essas pessoas têm sido posicionadas sem voz e sem iniciativa (Sykes et al., 2004). Concebidas como um grupo homogêneo, as pessoas, temendo mostrar suas individualidades, podem deixar de exprimir qualquer posicionamento. Igualmente, o poder social atribuído aos gestores condiciona muitas dessas pessoas a se sentirem superiores e a reforçarem relações autoritárias com os que estão a sua volta. Assim, a análise mostra que os discursos não são neutros, mas carregados de intenções, juízos de valor e posicionamentos que viabilizam certo tipo de práticas sociais em detrimento de outras, sempre em interdependência com a dinâmica das práticas sociais/institucionais de tipo vertical e autoritário na qual se inserem.

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O que essa perspectiva vertical baseada em noções de objetividade desconsidera é que o bem-estar é sempre uma produção conjunta e relacional. Os conceitos de cuidado e promoção de saúde devem ser definidos interacional e dialogicamente (Riikonen, 1999). A interação autoritária e o foco nas patologias tende a deixar de lado as competências potenciais dos usuários, fortalecendo as relações de poder instituídas. Pontos para continuar a reflexão Ressalta-se que a postura epistemológica da modernidade (nós, cientistas, aqui, as transformações e os nossos objetos, lá fora) tende a gerar criações intelectuais de “realidade”. Isso, como destaca Santos (1995, p.19), decorre tanto do peso da racionalidade cientificista moderna quanto da rapidez e intensidade das mudanças sociais que: se, por um lado, torna a realidade hiper-real, por outro lado, trivializa-a, banaliza-a, uma realidade sem capacidade para nos surpreender ou empolgar. Uma realidade assim torna-se, afinal, fácil de teorizar, tão fácil que a banalidade do referente quase nos faz crer que a teoria é a própria realidade com outro nome, isto é, que a teoria se auto-realiza.

Desse modo, uma maior ênfase na reflexidade, nas relações dialógicas e no senso crítico - valores basilares para desenvolvimento de uma reflexão crítica por parte dos diferentes atores sociais -, seria salutar na política pública de promoção da saúde e, em geral, em todas as nossas políticas e práticas de saúde. De nada adiantam políticas bem intencionadas se são inviabilizadas pela falta de vontade política e pela distribuição desigual de poder, ou pelas próprias práticas institucionalizadas, dentro das quais tende-se a atuar com automatismos e de forma não reflexiva. A prática reflexiva, em permanente interação com outros, constitui um dos pontos centrais nessa variedade de abordagens da Psicologia Social crítica. Essas abordagens, como apontam Domenech & Ibañez (1998), devem ser entendidas como uma disposição ou sensibilidade especial para a elaboração de reflexões “generativas”. Reflexões que “questionem as premissas dominantes da cultura e que propiciem a reconsideração de tudo aquilo que se apresenta como evidente, gerando, assim, novas alternativas de ação social” (p. 21). Essa dinâmica também irá apontar as raízes de nossas racionalidades, bem como das materialidades operando no campo social, visando desenvolver uma ontologia crítica de nós mesmos. Em termos de Foucault (1994, p.30), essa ontologia crítica não deve ser entendida como teoria, nem como doutrina, nem como corpo de conhecimentos estáveis que vão em aumento. Deve ser concebida como uma atitude, um ethos, uma vida filosófica em que a crítica do que somos seja, ao mesmo tempo, análise histórica dos limites que nos são impostos, bem como a experimentação da possibilidade de transgressão.

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Esse tipo de prática faz parte do “cuidado de si mesmo”. Implica um controle reflexivo dos vieses condicionados pelas limitações sensoriais, pelos instintos e pelo ego, bem como pelos condicionamentos socioestruturais, pressupondo a negociação de contradições e conflitos (Morin, 2001; Mariotti, 2000; Csikszentmihaly, 1993). Cuidar, aqui, é um conceito operativo estreitamente ligado ao conceito de ética relacional. Essa concepção de ética seria, antes de mais nada, uma postura autocrítica das formas como as pessoas se posicionam em diferentes práticas sociais, no encontro com o outro. Como processo relacional, não pode ser considerado como algo definitivo e acabado, mas como um vir-a-ser e como uma categoria de orientação para a ação. O que essa perspectiva sugere, ainda, é fugir dos excessivos racionalismos e intelectualismos, tão caros nos momentos atuais. A linguagem tecnicista e o pensamento dito “científico” são problemáticos por tenderem a reproduzir as diferenças de poder. Como sugerido por Riikonen (1999), essas posturas afastam do momento inspirador vivencial da interação e do diálogo. Inibem, de certa forma, as possibilidades potenciais de gerar, nesse encontro com os outros, práticas conjuntas de promoção de saúde que, de forma geral, o autor considera como “contextos, momentos, experiências, e projetos de vida geradores de bem-estar” (Riikonen, 1999, p.144).

Agradecimentos À agência financiadora CAPES.

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TRAVERSO-YÉPEZ, M.A. Dilemas en la promoción de la salud en Brasil: consideraciones sobre la política nacional. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.223-38, mai/ ago 2007. Aunque es un tema común de nuestro cotidiano, la promoción de la salud se presenta como un concepto complejo y multifacetado. El objetivo del presente artículo es destacar algunos de los dilemas y aspectos problemáticos sobre las concepciones e ideas relacionadas con esta temática. Se presenta como relevante a la dificultad de pensar la promoción de la salud, sin considerar formas de erradicar las profundas iniquidades sociales vigentes en el contexto brasileño. La reflexión también es pensada en el contexto de la Política Nacional de Promoción de la Salud, aprobada en 2006, demostrando la importancia de la desconstrucción de los discursos políticamente correctos y el desarrollo de procesos de reflexión sobre las formas de actuar en este campo. PALABRAS CLAVE: Promoción de la salud. Políticas públicas de salud. Política Nacional de Promoción de la Salud. Psicología Social.

Recebido em 09/01/06. Aprovado em 26/12/06.

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Equipes de rreferência: eferência: arranjo institucional para potencializar a colaboração entre disciplinas e profissões Juarez Pereira Furtado 1

FURTADO, J.P. Reference teams: an institutional arrangement for leveraging collaboration between disciplines and professions. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.239-5, mai/ago 2007.

The need to increase collaboration between disciplines and professions is often stressed in different texts and suggested as a possible solution to the many impasses and issues that teams working in health and education programs and services face. However, the discussion on disciplinary and professional interaction has failed to advance in relation to what was introduced in Brazil in the 70s. On the other hand, the Brasilian Health System (SUS) needs proposals that actually make the integration of knowledge and practice viable in the field of services. This article critiques the dominant notion of interdisciplinary and inter-professional collaboration and suggests that services be organized based on reference teams as a way to encourage and increase collaboration between disciplines and professions. KEY WORDS: Interdisciplinarity and health. Health services. Service organization and administration. Collective health. Health planning. A necessidade de mais colaboração entre disciplinas e profissões é freqüentemente ressaltada em diferentes textos e apontada como possível solução para diversos impasses e questões vividas pelas equipes que atuam em programas e serviços dos setores saúde e educação. No entanto, a discussão sobre a interação disciplinar e profissional tem carecido de avanços em relação ao que foi proposto por Japiassu no Brasil dos anos 1970. Por outro lado, o Sistema Nacional de Saúde (SUS) necessita de propostas que, efetivamente, operacionalizem a integração entre saberes e práticas no âmbito dos serviços. No presente artigo, apresentamos algumas críticas à concepção dominante de colaboração interdisciplinar e interprofissional e apontamos a organização de serviços com base em equipes de referência como forma de estimular e aumentar a colaboração entre disciplinas e profissões. PALAVRAS-CHAVE: Interdisciplinaridade e saúde. Serviços de saúde. Organização e administração de serviços. Saúde coletiva. Planejamento em saúde.

Fisioterapeuta; doutor em Saúde Coletiva; membro, Grupo de Estudos “Saúde Coletiva e Saúde Mental: Interfaces”, departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; professor, Universidade Federal de São Paulo, campus Santos. Santos, SP. <juarezpfurtado@hotmail.com>

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Av. Francisco Glicério, 614, ap.12 Bairro José Menino - Santos, SP 11.065-400

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FURTADO, J.P.

Introdução Qualquer um de nós que tenha se aproximado desse tema, já leu ou viu citação do livro “Interdisciplinaridade e patologia do saber”, do filósofo Hilton Japiassu, lançado em 1976. Esse texto constitui um marco da introdução do tema em nosso país, tendo sido prefaciado por Georges Gusdorf, pioneiro na sistematização de trabalhos interdisciplinares na Europa, no início da década de 1970. Resultado de seu doutorado um ano antes em Paris, o livro de Japiassu representou a referência mais citada em estudos epistemológicos sobre o tema. Compartilhando boa parte das idéias desse autor, Fazenda (2002, 2001) desenvolveu vários estudos sobre interdisciplinaridade na educação ao longo das últimas décadas. Juntos, os dois autores se constituíram referência obrigatória sobre o tema no Brasil, seja para reiterar ou contrapor suas idéias. Na maioria dos textos sobre inter e transdisciplinaridade, encontramos um certo consenso a respeito da idéia de que a especialização fracassou, que urge a recomposição dos fragmentos do saber e que precisamos superar as barreiras edificadas em torno de diferentes áreas do conhecimento (Random, 2000; Morin, 1999; Nunes, 1995). Escritores como Gusdorf (1990) já compararam o conhecimento a uma granada que explodiu em múltiplos pedaços, cada um formando o que chamamos de disciplina. Seria difícil se contrapor a esses argumentos: afinal, constatamos diariamente os limites inerentes aos diversos recortes que fazemos para entender melhor a realidade que nos cerca. Além disso, do ponto de vista subjetivo, quem de nós não guarda alguma nostalgia de um tempo de maior fusão com o mundo, de continuidade entre sensações e pensamentos, de quando tudo parecia integrado e transitável? Conforme a perspectiva epistemológica, da ciência, disciplinas nada mais são do que um saber organizado, constituído por um conjunto de teorias, conceitos e métodos voltados para melhor compreensão de fenômenos. Ou seja, são territórios do saber que possuem objetos e formas específicas de concebê-lo e dele se aproximar. Segundo a perspectiva pedagógica, disciplinas adquirem sentido de conhecimentos a serem abordados por meio de matérias específicas. Algum grau de interação entre disciplinas próximas sempre acontece, porém a forma e intensidade desse intercâmbio podem variar significativamente. Na tentativa de caracterizar melhor as diferentes formas de aproximação e trocas entre saberes e disciplinas, alguns autores elaboraram conceitos delineando os modos de interação disciplinar, fixandoos em algum ponto entre dois pólos: por um lado, quase nenhum contato entre as disciplinas, e, no outro extremo, grande intercâmbio entre elas. Assim, teríamos a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, que representariam, respectivamente, graus cada vez maiores de interação e troca entre universos disciplinares distintos. Essa classificação, proposta por Jantsch em 1972 (Almeida Filho, 1997), é a mais comumente utilizada, adaptada e desenvolvida por vários estudiosos do assunto, encontrando-se graficamente representada na Figura 1.

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EQUIPES DE REFERÊNCIA: ARRANJO INSTITUCIONAL...

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Figura 1. O modelo de Jantsch (adaptado de Silva, 2001, p.4)

A multidisciplinaridade é caracterizada pela justaposição de várias disciplinas em torno de um mesmo tema ou problema, sem o estabelecimento de relações entre os profissionais representantes de cada área no plano técnico ou científico. As várias disciplinas são colocadas lado a lado, carecendo de iniciativas entre si e de organização institucional que estimule e garanta o trânsito entre elas. O funcionamento isolado das diferentes faculdades dentro de uma mesma universidade, o pequeno número de iniciativas conjuntas entre departamentos de uma mesma faculdade, e os quase inexistentes canais de troca entre profissionais que trabalham em um ambulatório de especialidades são boas ilustrações do que vimos discorrendo sobre multidisciplinaridade: as diferentes áreas coexistem lado a lado, porém com baixíssima inter-relação. A pluridisciplinaridade é caracterizada pelo efetivo relacionamento de disciplinas entre si, havendo coordenação por parte de uma dentre as disciplinas ou pela direção da organização. Nesse caso, são estabelecidos objetivos comuns entre as disciplinas, que deverão estabelecer estratégias de cooperação para atingi-lo. Aqui prevalece a idéia de complementaridade sobre a noção de integração de teorias e métodos, ou seja, opera-se muito mais com a concepção de que uma área do saber deve preencher eventuais lacunas da outra. Mesas-redondas constituídas de especialistas convidados a debater sobre um tema são exemplos de iniciativas pluridisciplinares. Nesses casos, a “síntese” ficará sempre a cargo dos ouvintes. Outro exemplo de interação pluridisciplinar sãos as reuniões tradicionais de discussão de casos, feitas entre membros de categorias profissionais que trabalham em determinada enfermaria de um hospital.

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A interdisciplinaridade representa o grau mais avançado de relação entre disciplinas, se considerarmos o critério de real entrosamento entre elas. Nesse caso, seriam estabelecidas relações menos verticais entre diferentes disciplinas, que passariam, também, a compartilhar uma mesma plataforma de trabalho, operando sob conceitos em comum e esforçando-se para decodificar o seu jargão para os novos colegas. Deve-se perceber que, aqui, não há simples justaposição ou complementaridade entre os elementos disciplinares, mas uma nova combinação de elementos internos e o estabelecimento de canais de trocas entre os campos em torno de uma tarefa a ser desempenhada conjuntamente. Espera-se que daí surjam novos conhecimentos e posturas dos pesquisadores envolvidos. Um bom exemplo de interdisciplinaridade pode ser encontrado na chamada “saúde mental”, entendida como resultado da convergência da psiquiatria, psicologia, psicanálise, sociologia e saúde coletiva e operada pelas iniciativas desenvolvidas nos serviços comunitários de atenção aos doentes mentais graves. Transdisciplinaridade é um termo cunhado por Jean Piaget durante encontro promovido, em 1970, pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico de Países Desenvolvidos (OCDE), em Nice, França, para discutir o tema da interdisciplinaridade. Nesse evento, Piaget afirmou que aos trabalhos interdisciplinares deveriam suceder uma etapa superior, na qual as interações entre o conhecimento se dariam sem as fronteiras disciplinares. Para alguns autores (Fazenda, 2001), esse termo seria um horizonte inalcançável, tendo como função o direcionamento do caminho, tensionando os esforços em busca de modos de entrosamento mais profundos entre campos disciplinares. Outros autores consideram a transdisciplinaridade a única forma realmente válida de interação e um modo efetivo de superar as limitações da interdisciplinaridade (Silva, 2006). Mais recentemente, Silva (2006) elaborou uma revisão do modelo proposto por Jantsch que nos parece particularmente interessante, por estabelecer avanços em relação aos conceitos que vimos apresentando (Figura 2). Para o autor, na perspectiva unidisciplinar, o objeto do conhecimento ou da intervenção seria abordado por um único universo disciplinar (UD), o que determinaria uma única dimensão da realidade e um único domínio lingüístico (não podemos nos esquecer de que a ciência é, essencialmente, a constituição de discursos). Como resultado desse modo de produção, teríamos um único texto ou discurso (D). Na perspectiva multidisciplinar, teríamos o objeto de interesse abordado por vários universos disciplinares, determinando várias dimensões da realidade, cada uma com seus respectivos domínios lingüísticos, organizados por um coordenador (C). Como resultado desse modo de produção, teríamos tantos textos quanto universos disciplinares. A perspectiva interdisciplinar, por sua vez, assemelha-se à situação multidisciplinar, só que, agora, com integração dos respectivos domínios lingüísticos de cada disciplina. Essa integração, segundo o autor, seria estimulada pela existência de uma temática comum a todas as disciplinas, segundo a qual deverão abordar o objeto. Como resultado, teríamos tantos textos ou discursos quanto universos disciplinares, porém cada um desses refletiria parte da realidade com o domínio lingüístico

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das outras disciplinas, indicando ter havido cooperação e coordenação entre as disciplinas. Finalmente, a perspectiva transdiciplinar seria caracterizada por um único domínio lingüístico, com base na identificação de zonas de permeabilidade epistêmica entre as disciplinas e pelo foco comum no objeto. Como resultado, teríamos um único texto ou discurso, refletindo a multidimensionalidade da realidade. Nesse caso, a cooperação e coordenação entre as disciplinas visa justamente a transcendê-las. A pretensão de transcender os espaços estritamente disciplinares coloca a transdisciplinaridade muito além do que seria aceitável por parte dos conselhos de classe e outros reguladores formais das profissões da saúde. Além disso, os profissionais de saúde em geral não explicitam a intenção de estabelecer uma forma de relação entre disciplinas e saberes nos moldes do que se entende por transdisciplinaridade. Por isso, ainda que consideremos esse conceito particularmente instigante e promissor, a noção de transdisciplinaridade seria pouco apropriada neste texto para nosso propósito de correlacionar as diferentes formas de interação disciplinar e seus desdobramentos nas práticas dos profissionais e dos serviços de saúde, conforme discutiremos em mais detalhes no terceiro tópico. Antes, porém, avancemos um pouco mais em relação a questões específicas da interdisciplinaridade.

unidisciplinar RESULTADOS W

D1

UD1 multidisciplinar W

D1 D2

C

W

W

UD1

UD2

D3

UD3

interdisciplinar W

D1

C

W

W

D2 UD1 UD1

UD1

D3

transdisciplinar W

UD2 C

UD1

D1/D2/ D3

UD3 Figura 2. Os modos de produção do conhecimento (adaptado de Silva, 2001, p.6)

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Interdisciplinaridade como mediação Alguns autores (Jantsch & Bianchetti, 2000) criticam a concepção idealista e a-histórica de interdisciplinaridade, que identificam em autores como Japiassu (1976) e Fazenda (2001). Ressaltam que tanto a disciplinaridade como a interdisciplinaridade são construções históricas e produto de tensões entre o sujeito pensante e as condições materiais e objetivas que o cercam e que, inexoravelmente, interferem nessas produções e elaborações. Desse modo, as relações entre disciplinas não poderiam ser reduzidas a criações oriundas de um sujeito abstrato inserido tão-somente no mundo das idéias e apartado de seu objeto. Para Jantsch (2000), a concepção a-histórica de interdisciplinaridade, predominante no Brasil, levaria a equívocos, tais como: a idéia quase religiosa de pandisciplinaridade, buscando o retorno a uma totalidade “holística” perdida; a postura de condenação moralizadora da especialização, que chega a ser considerada como uma patologia ou câncer do saber e da ciência (Japiassu, 1976), devendo ser extirpada. Segundo Jantsch & Bianchetti (2000), outro equívoco seria a idéia de que o estabelecimento de parceria entre indivíduos seria suficiente para a superação dessa fragmentação, originando a ilusão de que o distanciamento disciplinar seria fruto da inércia ou má vontade de certos profissionais ou de corporações. Enfim, para os críticos das postulações de Japiassu e Fazenda, a unidade entre sujeito e objeto foi rompida desde que os homens passaram a pensar em termos formais, causando a disjuntiva fundamental entre homem e natureza (Etges apud Jantsch, 2000), e a interdisciplinaridade viria a cumprir um papel de mediadora entre as diferentes disciplinas, estabelecendo canais de intercomunicações, mas sem a pretensão de constituir-se em novo patamar ou, mesmo, em nova área da ciência. Para o autor, A interdisciplinaridade, enquanto princípio mediador entre as diferentes disciplinas, não poderá jamais ser elemento de redução a um denominador comum, mas elemento teórico-metodológico da diferença e da criatividade. A interdisciplinaridade é o princípio da máxima exploração das potencialidades de cada ciência, da compreensão dos seus limites, mas, acima de tudo, é o princípio da diversidade e da criatividade. (Etges apud Jantsch, 2000, p.14)

Como podemos perceber, são muitos os determinantes e as utilizações possíveis em torno do conceito de interdisciplinaridade. Certamente, só temos a ganhar com a consideração dos fatores sociohistóricos que o condicionam e com o esclarecimento dos diferentes usos que podemos fazer desse conceito. Nesse sentido, as críticas levantadas por Jantsch & Bianchetti (2000) não levam ao impasse, mas, ao contrário, contribuem para o avanço na compreensão e eventual operacionalização do conceito ao apontar algumas de suas lacunas. Do nosso ponto de vista, a interdisciplinaridade assume grande importância na medida em que identifica e nomeia uma mediação possível

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entre saberes e competências e garante a convivência criativa com as diferenças. Além da função de mediador, o conceito de interdisciplinaridade vem apontar a insuficiência dos diversos campos disciplinares, abrindo caminhos e legitimando o tráfego de sujeitos concretos e de conceitos e métodos entre as diferentes áreas do conhecimento. Assim sendo, a interdisciplinaridade representa uma ferramenta fundamental na grande oficina de produção que se constitui a ciência, não devendo ser tomada como um fim em si mesmo ou uma nova ciência a ser constituída. Ferramenta conceitual, cuja função como tal só se realizará à medida que sua inserção epistemológica criar pontes com as práticas concretas, conforme discutiremos a seguir. Integração versus diferenciação: uma questão da interprofissionalidade Há relativo consenso em torno da necessidade de mais integração entre disciplinas, saberes e práticas, sendo que o desafio do desenvolvimento interdisciplinar há muito alcançou o terreno operacional, tornando-se tema recorrente no discurso dos profissionais e suas equipes. Não é incomum ouvirmos relatos dos trabalhadores sobre a irracionalidade advinda justamente do excesso de racionalização e compartimentalização das práticas profissionais em saúde. Por essa razão e considerando que o presente estudo se realiza no âmbito da saúde coletiva, caberia indagar sobre que conseqüências poderíamos extrair da discussão sobre integração disciplinar no que tange à organização e qualificação dos serviços de saúde e suas práticas. Em primeiro lugar, faz-se necessário distinguir os planos disciplinares e profissionais. No presente texto, utilizaremos o sufixo “disciplinar” quando nos referirmos ao desenvolvimento do conhecimento em sua vertente epistemológica e “profissional”, às práticas concretas, conforme proposto por D´Amour (1997). Assim, pluri e interdisciplinaridade são termos relativos a conceitos e teorias voltados para a compreensão de fenômenos, enquanto pluri e interprofissionalidade dizem respeito a práticas voltadas para a solução de problemas empíricos específicos. Ainda que, na prática, seja difícil encontrar tipos “puros” (afinal prática-teoria-prática interagem e se realimentam), essa definição tem valor por distinguir princípios gerais (por exemplo: “interdisciplinaridade”) de seus desdobramentos na prática cotidiana dos trabalhadores (por exemplo: “interprofissionalidade”). Em poucas palavras: o sufixo “disciplinar” será sempre relativo ao campo dos saberes, e “profissional” ao das equipes e seus serviços. Aliás, poderíamos afirmar que a discussão sobre integração de práticas e saberes tem início, de fato, a partir do momento em que se incorpora (ou se tenta incorporar) tais princípios nas práticas das equipes, donde emergirão questões cuja complexidade e teor fomentarão sobremaneira as discussões sobre o tema. Com base nas tentativas de avanço no plano da relação tradicional entre membros de equipes, poderemos identificar as razões pelas quais - a despeito da concordância com os princípios genéricos próintercâmbio - a organização dos serviços mantém-se, geralmente, assentada no paradigma uni ou pluridisciplinar.

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Alguns estudos têm demonstrado que, dentre as diferentes categorias, predomina a tendência em satisfazer aspirações profissionais e manter sua autonomia, em detrimento da colaboração profissional (D´Amour, 1997). Tal postura espelha a própria constituição das profissões, que possuem, em comum, os interesses pragmáticos de garantia de mercado de trabalho. Conforme nos lembram estudos realizados pela sociologia das profissões, o profissionalismo constitui-se na história como estratégia de retenção do conhecimento, buscando torná-lo o mais específico e misterioso possível, permanecendo acessível a poucos e, assim, garantindo reserva de mercado (Machado, 1995). Por isso, colaboração profissional e profissionalismo constituirão dois lados em constante oposição, ainda que a existência de um dependa da existência do outro. Por um lado, temos a colaboração profissional, que requer ou promove relações e interações nas quais os profissionais poderão colocar à disposição e partilhar seus conhecimentos, especialização, experiência e habilidades entre si, com vistas a proporcionar melhor atenção ao paciente. Essa lógica de colaboração baseia-se em valores humanistas, buscando recolocar profissionais em torno da pessoa, e não ao redor de territórios de especialização. A proposta de trabalho em colaboração interprofissional surge como resposta a diversos impasses “dentre eles, a complexidade dos problemas clínicos “à necessidade de reagrupamento de conhecimentos espalhados, como forma de diminuir a alienação do trabalhador e para evitar a duplicação de cuidados. Por outro lado, temos o profissionalismo ou lógica profissional, marcado pela delimitação estrita de territórios de cada grupo profissional. Por meio da assimilação de saberes específicos em suas respectivas faculdades e, mais tarde, por meio da vinculação a associações, conselhos de classe e código de ética, um indivíduo passará a compor um grupo exclusivo de profissionais, podendo aplicar conhecimentos abstratos, aprendidos por meio de sua formação, a casos sempre particulares com os quais irá se defrontar em sua lida cotidiana (Machado, 1995). A partir daí, esse mesmo indivíduo passará a ter uma identidade profissional “ extremamente valorizada em nossa sociedade”, facultando a quem obtém o diploma responder prontamente a perguntas como “o que você é?” ou “o que você faz?”, que denotam a importância social dada às profissões e ocupações. O que vimos afirmando demonstra que abordar o tema da colaboração implica considerar duas forças antagônicas. A primeira, um pólo representado pelas corporações profissionais, pela lógica profissional profissional, que tenta continuamente garantir um mercado definido e inviolável e expandir territórios, aumentar sua autonomia e elevar seu grau de dominação e controle sobre outras categorias. O outro pólo é representado pela lógica da colaboração profissional, apontando para a necessidade de colocar em comum e partilhar conhecimentos, especialidades, experiências, habilidades e, até, a intersubjetividade. Dessa forma, transpor a discussão da interdisciplinaridade para o campo das práticas em saúde é enfrentar o antagonismo entre o modelo da lógica profissional e o modelo de colaboração interprofissional ou, mais resumidamente, entre a diferenciação (que buscamos ativamente pela formação profissional) e a integração (requerida pela colaboração interprofissional e condição para qualificação da clínica). Assim, trabalhar em favor da colaboração implica reconhecer que o sujeito busca conquistar um

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status diferenciado por meio da formação profissional. Por isso, o desafio de promover a colaboração não deve ser levado à frente negando uma especificidade duramente alcançada, mas tentando estabelecer pontes entre posições inicialmente antagônicas. Conforme discutido por Almeida Filho (1997), no limite, a interdisciplinaridade ou a colaboração profissional não se efetiva por meio de princípios ou de intenções genéricas desenvolvidas em textos de pesquisadores bem-intencionados. A troca efetiva e colaboração entre disciplinas e profissões somente serão possíveis pela ação de agentes concretos que, por meio de sua mentecorpo, irão ou não consubstanciar práticas mais ou menos integradas. Como ilustrado pelo autor, é somente mediante a concretude dos aparelhos cognitivos de indivíduos que transitem em diferentes áreas que ocorrerão os diferentes graus de interação e colaboração entre disciplinas e profissões (Almeida Filho, 1997). Sobre esse agente concreto incidirão forças diferentes e simultâneas, tendentes mais a um ou outro dos dois pólos que vimos discutindo. Assim, sobre um dado profissional agirão vetores que tendem a conformar suas ações para uma prática mais ou menos interligada, para um perfil de mais diferenciação ou de integração. Esses vetores são simultâneos e sua predominância pode variar ao longo do tempo, ao longo de uma situação vivida pelo profissional e sofrer influências da organização institucional e outras estruturas maiores e englobantes. No Quadro 1, apresentamos uma síntese da multideterminação envolvida nas lógicas da colaboração e da profissionalização.

Quadro 1. Elementos determinantes das lógicas da profissionalização e da colaboração interprofissional* Lógica da colaboração (integração)

Lógica profissional (diferenciação)

P Crença de que o todo pode ser atingido pela soma das partes

X R X

Percepção de que a abordagem global é não linear e multisetorial

Faculdades e Conselhos (que tendem à normatividade)

X O X

O percurso individual e singular de cada profissional

Conceitos estereotipados veiculados na mídia

X

I X

Diferentes e imprevistas realidades com as quais se lida no dia-a-dia

Dificuldade de comunicação entre diferentes áreas do saber

X S X

Arranjos centrados no usuários e não em papéis profissionais

Interesses na manutenção do poder e da ascendência sobre outras categorias

X

Interesses de controle e reserva do mercado Organização institucional e estruturas englobantes

F

S I X

Da posição de centro para uma posição de importância

X O X

Compromisso com a resolutividade e integralidade

N

X A X

Organização institucional e estruturas englobantes

L * adaptado de D´Amour, 1997, p.22.

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Devemos observar que, à medida que aumenta o grau de colaboração profissional, decresce a autonomia individual, uma vez que a condução de planos terapêuticos passa a ser negociada entre os seus integrantes, o que pode ser particularmente difícil para alguns sujeitos. Por outro lado, esse aumento de colaboração profissional expande a troca na tomada de decisões clínicas e a integralidade dos cuidados, permitindo o aumento de autonomia da equipe como um todo frente aos problemas por ela enfrentados. Não devemos nos esquecer de que colaboração interprofissional é, essencialmente, co-laboração, ou seja, é trabalho com e entre muitos, portanto ação em equipe – o que não é algo simples. Para o funcionamento efetivo em equipe, baseado em profunda colaboração interprofissional, a deliberada vontade e orientação de seus integrantes é necessária, mas não suficiente. É fundamental a instauração de ambiente democrático e de estruturas e mecanismos institucionais que garantam o surgimento, desenvolvimento e manutenção de espaços intra-equipes que permitam o florescimento de práticas fundadas na cooperação entre saberes e ações. No quinto tópico, discutiremos um modelo de atenção voltado para a garantia, entre outras coisas, de um trabalho em saúde calcado na colaboração interprofissional. Vejamos, previamente, dois importantes conceitos que podem auxiliar na transposição do que vimos discutindo para a prática. Integração e diferenciação: entre núcleo e campo de competência e responsabilidade Os conceitos de núcleo e campo de competência e responsabilidade são bastante eficazes para a análise e compreensão de ações e trânsitos entre especificidades que diferenciam e caracterizam os profissionais (núcleos) e iniciativas importantes, mas que não pertencem a nenhuma área em particular requerendo, sobretudo, colaboração entre elas (campo). Trata-se de um importante conceito-ferramenta elaborado por Campos (1997) para estabelecer a compreensão de que existem atribuições específicas de determinada categoria profissional - que o autor chamou de núcleo de competência e responsabilidade - e demandas que extrapolam essas atribuições estabelecidas – que o autor denominou de campo de competência e responsabilidade. Assim é que núcleo diz respeito aos elementos de singularidade que definem a identidade de cada profissional ou especialista e campo seria constituído por responsabilidades e saberes comuns ou convergentes a várias profissões ou especialidades: (...) núcleo demarcaria a identidade de uma área de saber e de prática profissional; e o campo, um espaço de limites imprecisos onde cada disciplina ou profissão buscariam, em outras, apoio para cumprir suas tarefas teóricas e práticas. (Campos, 1997, p.249)

O núcleo é facilmente percebido por meio dos ditames dos conselhos profissionais, das disciplinas específicas de cada categoria e que conformam um dado profissional. O campo é mais aberto, sendo definido com base no

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contexto em que operam certas categorias de profissionais. Um exemplo dado pelo autor é o de um especialista em gineco-obstetrícia, que teria como núcleo o conjunto de saberes e práticas relativos à saúde da mulher, e como campo, noções de clínica geral, fundamentos da relação profissionalpaciente, organização de programas, educação em saúde etc. (Campos, 1997). A constituição e finalidade de um serviço determinarão maior ou menor quantidade de ações de campo ou de núcleo: em uma UTI, por exemplo, predominarão ações ligadas aos núcleos, enquanto em certas ações de uma equipe do PSF podem prevalecer ações ligadas ao campo. Esses dois conceitos ajudam a compreender e superar os impasses oriundos de um certo borramento das fronteiras entre as categorias profissionais, iluminando a penumbra constituída por demandas que permanecem à margem por não serem contempladas pelos núcleos de cada profissão - mas que, nem por isso, deixam de ser importantes e eventualmente urgentes. Os conceitos de campo e núcleo de competência e responsabilidade fornecem também importantes subsídios para a análise, compreensão e operacionalização de intervenções no âmbito da inter e transdisciplinaridade. Esses conceitos permitem, simultaneamente, a consideração das especificidades que conformam cada categoria profissional ou área do saber (núcleos) e suas articulações possíveis dentro dos espaços definidos por demandas complexas, que extrapolam as fronteiras estabelecidas pelos núcleos de determinadas profissões ou áreas do conhecimento, constituindo campos (Figura 3).

Campo: ações necessárias que extrapolam fronteiras profissionais Núcleo: atribuições específicas de uma dada categoria profissional

Figura 3. Equipe de referência: trânsito entre campo e núcleo.

Como podemos perceber, as atividades ligadas ao campo são essencialmente interdisciplinares e requerem elevado grau de interprofissionalidade, enquanto aquelas ligadas ao núcleo são voltadas para atribuições típicas e

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exclusivas de determinada categoria profissional. A compreensão, por parte dos profissionais, desses dois conceitos, permite mais clareza do que pode ser partilhado e a certeza de que a colaboração com seus pares não implicará perda de sua identidade ou núcleo profissional. Pierre Bordieu (1992), sociólogo francês, trabalhou de maneira especial a noção de “campo”. No entanto, o uso dos conceitos de campo e núcleo de competência e responsabilidade, realizado por Campos (1997), não é análogo ao realizado por Bordieu. Para Bordieu, a passagem do campo ao corpus é uma passagem de um certo senso comum ao saber dos especialistas. Passagem que implica o controle (e a regulação) de certas técnicas, e que se faz possível por meio de uma expropriação dos leigos constituídos nesse mesmo processo. (Onocko Campos, 2003, p.75) De maneira diferente, os conceitos de campo e núcleo que vimos apresentando nesse tópico sustentam a instituição de novas relações entre saberes e práticas no interior de um campo profissional constituído, com vistas a ampliar a relação de especialistas com saberes e procedimentos estabelecidos. (p.77)

Equipes de referência: um modelo tecnoassistencial favorecendo a colaboração interprofissional As peculiaridades do setor saúde o tornam especialmente interessante no estudo das formas de colaboração profissional, uma vez que apresenta grande especialização em categorias e procedimentos e, ao mesmo tempo, vem sendo pressionado para diminuir a fragmentação de suas abordagens aos pacientes, seja por razões de eficácia ou, mesmo, de equacionamento de custos. Trata-se, ainda, de um setor no qual prevalecem profissionais liberais de várias formações, que obedecem (e, freqüentemente, privilegiam) orientações exteriores à organização, como aquelas provenientes dos conselhos de classe. Além disso, os membros das equipes de saúde atuam sobre problemas de extrema complexidade, realizando tarefas interdependentes e sobre as quais possuem controle relativo e cujos desdobramentos são sempre incertos, já que condicionados por vários fatores (D´Amour, 1997). Some-se a isso o fato de que certas ações exigem trocas intersubjetivas (como na saúde mental, por exemplo), e alguns dos problemas sobre os quais agem os profissionais da saúde podem eventualmente acometê-los diretamente, gerando várias formas de resistência e/ou identificações (Onocko Campos, 2003). Por seu lado, o contexto do SUS tem como uma de suas diretrizes a integralidade, caracterizada pela oferta de atenção às necessidades de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação de um dado indivíduo ou comunidade, considerando seu contexto social. A busca do atendimento integral tem, como grande desafio, a reestruturação dos estabelecimentos e das organizações do setor saúde, o que deverá ocorrer tanto por meio da

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A definição de “equipe de referência” será detalhada a seguir e não deve ser confundida com “serviços e equipamentos de referência”, utilizados para apoio às demais equipes na clínica cotidiana.

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organização e articulação desses serviços entre si quanto na reformulação das práticas dos profissionais de saúde em suas respectivas equipes (Aguilera Campos, 2003). Dentro do foco da presente discussão, podemos afirmar que a reorganização do trabalho interprofissional dentro das equipes dos serviços de saúde do SUS é condição necessária para a conquista da integralidade, na medida em que pode possibilitar a detecção de necessidades e o provimento de cuidados de maneira mais completa e ampliada aos usuários (Pinheiro & Mattos, 2006). O que vimos afirmando nos dois últimos parágrafos traça um cenário de complexidade: a implementação da colaboração profissional em um setor constituído por várias especialidades em contínua superespecialização, regidas por órgãos influentes e externos aos serviços e cujo objeto de trabalho (sofrimento e morte) pode levar os trabalhadores a se protegerem de várias formas, inclusive por detrás de normas, protocolos e outros modos de cristalização de papéis. Por sua vez, o SUS carece de dispositivos que implementem a colaboração profissional de modo a honrar um dos seus princípios basais, a integralidade. É nesse ponto que se coloca o desafio: como estruturar equipes de saúde de modo a garantir condições para o fluxo de trocas e inter-relações profissionais, de saberes e de gestão compartilhada, como vimos discutindo até aqui, de modo a aumentar o coeficiente de integralidade? Como articular as diferentes iniciativas dos profissionais tendo o paciente como centro? Aqui encontramos, ao mesmo tempo, o ponto de tensão e o elo que nos interessa: a interface e os desdobramentos possíveis entre os conceitos de interdisciplinaridade e interprofissionalidade para a qualificação da condução clínica dentro do SUS. A proposta de Campos (1999), relativa à organização do trabalho em saúde, estruturada em equipes de referência, nos parece especialmente adequada como forma de traduzir, estruturar e possibilitar – numa palavra, viabilizar no âmbito das equipes, o ideário da interdisciplinaridade. Nessa proposta, o autor consegue articular princípios gerais a modos específicos de funcionamento organizacional, ao mesmo tempo em que cria mecanismos para garantir aumento de poder e graus de co-gestão aos membros dessa mesma equipe. Para Campos (1999), o arranjo organizacional das equipes de referência2 tem, nas noções de vínculo terapêutico, interdisciplinaridade e gestão colegiada, seus pilares centrais na busca de superação do modelo médico hegemônico e de fragmentação das ações em saúde. Em outro estudo, completa: A equipe de referência é composta por um conjunto de profissionais considerados essenciais para a condução de problemas de saúde dentro de certo campo de conhecimento. Dentro dessa lógica, a equipe de referência é composta por distintos especialistas e profissionais encarregados de intervir sobre um mesmo objeto – problema de saúde –, buscando atingir objetivos comuns e sendo responsáveis pela realização de um conjunto de tarefas, ainda que operando com diversos modos de intervenção. O máximo de poder delegado à equipe interdisciplinar. (Domitti & Campos, 2005, p.4)

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Segundo essa proposta, os serviços seriam organizados com base em equipes compostas por profissionais de diferentes categorias, de acordo com as características do problema enfrentado, tendo uma clientela predefinida. Por exemplo, um centro de reabilitação poderia ter equipes de referência compostas por: profissional de enfermagem, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, médico e assistente social. Havendo número de profissionais suficiente, poderia ter duas, três ou mais dessas equipes, cada uma delas tendo como características: a) inclusão de profissionais de categorias distintas; b) definição de clientela adscrita, permitindo o acompanhamento longitudinal e formação de vínculo entre trabalhadores e usuários; c) formulação de projetos terapêuticos singulares para os casos mais complexos e/ou de maior vulnerabilidade; d) poder de decisão no que concerne ao trabalho da equipe (algum grau de co-gestão); e) receber ou realizar apoio profissional especializado quando necessário (apoio matricial). Esse modelo vem sendo utilizado em vários serviços de diferentes municípios. De nossa parte, com base na experiência de gestão de equipes de saúde, pudemos constatar a potência do modelo de equipes de referência para qualificar a atenção ao usuário e possibilitar verdadeira interação técnica e subjetiva entre os componentes dessas equipes (Miranda & Furtado, 2006; Furtado, 2001). No entanto, tal mudança envolve o enfrentamento de vários obstáculos, como: a organização tradicional das instituições tendentes à manutenção do status quo, o excesso de demanda e carência de recursos, a disputa de poder entre níveis da instituição e corporações profissionais, dentre outros (Domitti & Campos, 2005). Deve-se notar que esse modelo realiza um recorte diferente ao agregar distintas categorias profissionais em torno dos casos a serem atendidos, superando a organização dos serviços segundo departamentos (de enfermagem, psicologia etc.), que baseiam suas interações em “interconsultas”. Essas equipes de referência constituiriam a menor unidade organizacional e administrativa dos serviços nos quais são implementadas, ou seja, instituições assim organizadas não mais reconheceriam posturas individuais ou estritamente corporativas. Esse arranjo desloca o poder das profissões e corporações de especialistas e reforça o poder de gestão da equipe interdisciplinar (Domitti & Campos, 2005). Nesse cenário, a construção do projeto terapêutico se dá mediante várias perspectivas e com base na interação entre o paciente e seus profissionais de referência, nas interlocuções desses últimos entre si e com outros grupos, como: família, instituições de saúde, setores culturais e socioeducacionais, etc. É função básica desse dispositivo garantir a continuidade do tratamento, evitando-se a perda do paciente nas teias conhecidas e descontextualizadas constituídas pelos “encaminhamentos”. Seu sucesso está fundamentalmente ligado à ampliação da clínica (Campos, 2003), o que significa garantir que os respectivos projetos terapêuticos considerem o seguimento dos pacientes tanto no plano subjetivo quanto no social, familiar, laboral, dentre outros, porém sempre articulados pelos profissionais de referência. Naturalmente, deverá ser garantido espaço sistemático de encontro entre os integrantes dessa equipe, de modo a discutir os casos novos, avaliar os

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pacientes em acompanhamento e definir ações que se façam necessárias. A tarefa da equipe de referência constitui-se em trabalho com e entre muitos, por isso o modelo de gestão e outras formas de organização do serviço deverão garantir à equipe a possibilidade de análise de seus inevitáveis conflitos, estabelecendo arranjos e dispositivos institucionais que possibilitem o convívio com a diferença -e apesar dela. É necessária a existência de espaços de supervisão clínico-institucional, oficinas de planejamento, discussões grupais e demais iniciativas que permitam emergir e circular a palavra, considerando os conflitos e os afetos inerentes à lida intensiva com pacientes graves (Onocko Campos, 2003). Afinal, a interprofissionalidade pressupõe maior freqüência e intensidade de relações e a superação de contatos protegidos por normas e protocolos, o que exige mais cuidado e análise constante das diferentes interações por parte dos coordenadores do serviço. Além de ser um arranjo destinado a concretizar e potencializar o compartilhamento de práticas e saberes, a organização de serviços segundo a proposta de equipes de referência permite a superação de relações especulares entre terapeuta e paciente (sobretudo, quando se trata de doenças crônicas, com acompanhamento de longo prazo), e o recebimento de apoio de um dado profissional, por parte dos outros colegas da equipe de referência, quando se lidam com casos especialmente difíceis. Um cuidado constante a ser tomado é de que a equipe de referência ocupe um lugar de importância, mas não de centro, na relação com o paciente – este, sim, deve ser o foco das ações e reflexões da equipe –. e que se garantam trânsitos e trocas entre essas equipes em um mesmo serviço, evitando-se o enclausuramento e eventuais disputas entre elas. Conclusão A interdisciplinaridade e seu correlato na prática dos serviços, a interprofissionalidade, constituem categorias importantes para analisarmos algumas limitações importantes das práticas contemporâneas de saúde. Dentre elas, destacamos a baixa correlação entre superespecialização e efetividade dos serviços de saúde, ou seja, elas nos ajudam a buscar respostas sobre por que os investimentos financeiros e de produção intelectual não geram equivalente qualificação e resolutividade dos serviços à população, o que parece sugerir a necessidade de aumentar a capilarização e circulação colateral entre as profissões, e não apenas o seu desenvolvimento e aprofundamento solitário. Por outro lado, já se disse que a idéia de interação disciplinar e profissional só é possível e tem sentido na prática (Almeida Filho, 1997). Por essa razão, o grande desafio desta discussão é a tradução e implementação de seus princípios em serviços concretos, o que poderá, enfim, gerar ganhos reais aos usuários e a identificação de novas questões que mereçam a atenção dos interessados nesse tema. No entanto, essas mudanças só superarão seus obstáculos na medida em que não se basearem em concepções ingênuas, como a da unidade de um saber perdido que “naturalmente” anseia e converge para uma nova

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FURTADO, J.P.

integração, retomando um passado de unidade (Jantsch & Biachetti, 2000). São muitas as determinações históricas que levaram à criação das diferentes disciplinas e atividades profissionais; e a discussão da interdisciplinaridade e interprofissionalidade agrega valor somente na medida em que possibilita aos profissionais compreenderem essas mesmas determinações históricas, autorizando-se a criar novos modos de vivência e convivência institucional, aumentando gradativamente seus gradientes de co-gestão. No que concerne ao SUS, seria importante o acompanhamento rigoroso e a avaliação sistemática das várias experiências em curso, que vêm funcionando segundo a lógica de equipes de referência. Em várias cidades brasileiras existem iniciativas em atenção básica, saúde mental e hospitais públicos, dentre outros, que vêm relatando êxitos mediante a reorganização do modus operandi de suas equipes, com base em um modelo tecnoassistencial que favorece a colaboração interprofissional.

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EQUIPES DE REFERÊNCIA: ARRANJO INSTITUCIONAL...

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FURTADO, J.P. Equipos de referencia: arreglo institucional para potencializar la colaboración entre disciplinas y profesiones. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.239-55, mai/ago 2007. La necesidad de mayor colaboración entre disciplinas y profesiones es frecuentemente resaltada en diferentes textos y apuntada como posible solución para diversos impases y cuestiones vividas por los equipos que actúan en programas y servicios de los sectores salud y educación. Sin embargo, la discusión sobre la interacción disciplinar y profesional ha carecido de avances en relación con lo que fue introducido en Brasil a partir de los años setenta del pasado siglo. Por otro lado, el sistema de salud en Brasil necesita de propuestas que efectivamente operen la integración entre saberes y prácticas en el ámbito de los servicios. En el presente artículo, presentamos algunas críticas a la concepción dominante de colaboración interdisciplinaria e interprofesional y apuntamos la organización de servicios con base en equipos de referencia como forma de estimular y aumentar la colaboración entre disciplinas y profesiones. PALABRAS CLAVE: Interdisciplinario y salud. Servicios de salud. Organización y administración de servicios. Salud colectiva. Planificación en salud.

Recebido em 10/07/06. Aprovado em 12/01/07.

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ROBERT CAMPIN, A virgem e o menino Ă frente de um guarda-fogo


Cuidado compar tilhado: negociações compartilhado: entre famílias e profissionais em uma creche*

Damaris Gomes Maranhão 1 Cynthia Andersen Sarti2

MARANHÃO, D.G.; SARTI, C.A. Shared care: negotiations between families and professionals in a child day care center. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.257-70, mai/ago 2007.

Based on a case study of a qualitative nature, this text analyzes the relationship between families and professionals in a child day care center in the process of sharing care during early childhood, using the techniques of observation, interviews and document analysis. The research studied the families and the professionals of a government-run day care center in the city of São Paulo. The conflicts between these social actors became evident, mainly, with regard to care related to feeding and hygiene. The task of sharing care demands from these professionals not only technical preparation, but training in listening to children and their families while taking their uniqueness into account, a requirement that can lead to reflections on the type of care that is most appropriate for the specificity of the group in question, considering the characteristics of locality in its historical and social context. KEYWORDS: Child rearing. Child day care centers. Child care. Pediatric nursing. Family. Com base em um estudo de caso, de natureza qualitativa, analisa-se a relação entre família e profissionais de creche no processo de compartilhar cuidados na primeira infância, utilizando técnicas de observação, entrevistas e análise de documentos. Os sujeitos da pesquisa foram os familiares e os profissionais de uma creche pública na cidade de São Paulo. Os conflitos entre esses atores sociais evidenciam-se, sobretudo, nos cuidados com a alimentação e a higiene. Além do preparo técnico, a tarefa de compartilhar cuidados demanda, dos profissionais a formação no sentido da disposição para escutar as crianças e suas famílias em sua alteridade, exigência esta que abre a possibilidade de um espaço de reflexão sobre o cuidado mais adequado para a especificidade do grupo em questão, considerando as características da localidade, em seu contexto histórico e social. PALAVRAS-CHAVE: Educação infantil. Creches. Cuidado da criança. Enfermagem Pediátrica. Família.

*

Artigo elaborado a partir de Maranhão, 2005.

Enfermeira; doutora em Ciências; professora, Faculdade de Enfermagem, Universidade Santo Amaro. São Paulo, SP. <damaranhao@uol.com.br>.

1

Antropóloga; doutora em Antropologia Social; professora, departamentos de Medicina Preventiva e Ciências Sociais, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); diretora acadêmica, Unifesp, campus de Guarulhos. São Paulo, SP. <csarti@unifesp.br>.

2

1 Rua Diogo Rodrigues Marques, 56 Santo Amaro - São Paulo, SP 04.677-040

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MARANHÃO, D.G.; SARTI, C.A.

Apresentação O cuidado cotidiano da criança, base da promoção de sua saúde, inclui atividades que integram igualmente sua educação: acolher, alimentar, limpar, confortar, proteger, consolar e prover ambiente lúdico e interações, que lhe propiciam situações de aprendizagem sobre si mesma, o outro e a cultura onde está inserida. Os cuidados infantis implicam interação constante entre adultos e crianças, durante o processo de ensinoaprendizagem de regras sociais e práticas culturais de atendimento das necessidades humanas básicas. Assim, cuidar é o elo que integra saúde e educação infantil (Maranhão, 2000 a). Cuidar da criança é compreendê-la em sua singularidade como ser que está em contínuo processo de crescimento e desenvolvimento, assim como é ajudá-la e ensiná-la a identificar e atender suas necessidades em cada fase e situação, possibilitando que constitua sua identidade, adquira gradativa autonomia e se socialize (Veríssimo, 2003; Maranhão, 2000 a). A dependência do recém-nascido, na espécie humana, aliada a sua capacidade de expressar as necessidades básicas pelo choro, mímica facial e outros movimentos corporais, desperta no adulto emoções e atitudes de cuidado, ao mesmo tempo em que possibilita a interação necessária entre ele e aquele que cuida, humanizando-o. Nesse processo, a criança vai se constituindo como pessoa separada da mãe e definindo suas semelhanças e diferenças em relação a seu meio. As expressões e os gestos daquele que cuida e interage com ela são seu primeiro espelho. As reações da mãe ou outro cuidador ao seu corpo e as suas manifestações informam-na sobre quem ela é e a respeito do meio cultural onde vive (Wallon, 1995). A construção da consciência corporal, imagem das representações que a criança aprende com o outro, é moldada pelas condições concretas de vida, pela linguagem, costumes, crenças e conhecimento próprio de cada época. Esta “noção de um corpo próprio”, por sua vez, será permanentemente integrada ao desenvolvimento da personalidade frente ao outro, definindo suas relações com o meio (Wallon, 1995). Ao longo dos tempos, os grupos humanos têm desenvolvido relações, conhecimentos e tecnologias com a finalidade de cuidar e educar os seus membros mais jovens, assim como manter a saúde dos indivíduos e do grupo. As mudanças sociais decorrentes, entre outros aspectos, do planejamento dos nascimentos e da inserção da mulher no mercado de trabalho resultaram na organização de outras formas de atender e compartilhar os cuidados cotidianos das crianças. Uma delas é a crescente busca de creche, instituição esta que surgiu para assistir as famílias mais pobres, mas que hoje, gradativamente, constitui espaço especializado no cuidado e na educação infantil. Compete à família escolher a creche onde a criança irá receber, complementarmente, educação e cuidados. A insuficiência de vagas em creches públicas frente à demanda ou o elevado custo das creches particulares, na maioria das vezes, não permite uma escolha com base em

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CUIDADO COMPARTILHADO: NEGOCIAÇÕES...

princípios, valores e critérios da família. Esta impossibilidade pode determinar uma relação assimétrica entre usuários e instituição, conforme a formulação de Sarti (1998). Os eventuais conflitos entre profissionais e família, no que se refere ao cuidado e à educação infantil, podem afetar a criança não apenas do ponto de vista do seu processo de aprendizagem e desenvolvimento global, mas também de sua saúde (Maranhão, 2005). Evidentemente, cuidados corporais fazem parte dos cuidados com a saúde; no entanto, para além dos critérios referenciados pela biomedicina, a percepção do corpo e sua classificação como “normal”, “patológico” ou “deficiente”, “limpo” ou “sujo”, são orientadas por uma ordem de significações culturais que correspondem à visão de mundo e à organização social do grupo do qual o indivíduo faz parte (Douglas, 1966). Assim, saúde e doença são fenômenos híbridos, ao articularem dimensões biológicas, psíquicas e socioculturais, como tem apontado extensa literatura (Sarti, 2001; Canguillem, 2000; Maranhão, 2000 b; Berlinguer, 1998; Ferreira, 1994; Helman, 1994; Douglas, 1966). As famílias têm percepções e avaliações dos problemas de saúde das crianças com base em seus próprios modelos explicativos de doenças e sua terapêutica (Loyola, 1984). Determinada prática de saúde, originada e valorizada no meio familiar, pode ser considerada inadequada na creche. Este descompasso constitui o eixo central em torno do qual se desenrolam conflitos na relação entre famílias e profissionais de creche, cada um buscando afirmar seu próprio ponto de vista. A adesão aos valores da instituição, considerada positiva na perspectiva dos profissionais, pode não o ser, necessariamente, para a família. Para esta e, em conseqüência, para a criança, pode implicar um enfrentamento com seus valores e costumes, difícil de lidar. Algumas famílias podem resistir, ainda que não deliberadamente, mantendo suas práticas, numa tentativa de preservar sua identidade social e cultural. Tal procedimento pode ser analisado tanto como um problema que diz respeito à subordinação de classes, uma vez que profissionais e usuários dos serviços podem pertencer a estratos econômicos diferenciados da sociedade (Boltanski, 1984), quanto pelas diferenças de valores, crenças e conhecimentos sobre o que seja um bom cuidado na infância. Busca-se, aqui, situar essa discussão tanto no plano social quanto no cultural. O objetivo deste trabalho, com base em um estudo de caso, foi analisar a relação entre famílias de crianças usuárias de uma creche e profissionais da instituição no processo de compartilhar cuidados na primeira infância. Esta relação - assimétrica - é permeada por expectativas mútuas, cuja intensidade propicia a emergência de conflitos, tensões e possibilidades que precisam ser constantemente trabalhados, para promover ações conjuntas de cuidado infantil. Metodologia Dado o objeto do estudo – a análise de relações no âmbito de uma creche -, foi utilizada a metodologia qualitativa, mais especificamente, o método de

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MARANHÃO, D.G.; SARTI, C.A.

estudo de caso (Becker, 1999). Recorreu-se a técnicas etnográficas de coleta de dados: análise das diretrizes básicas expressas nos documentos da instituição, observação participante do cotidiano da creche, e entrevistas abertas (com roteiro prévio) com dez profissionais, 13 familiares (pai ou mãe) e oito crianças. O trabalho de campo foi desenvolvido entre novembro de 2001 e janeiro de 2003, em uma creche pública situada na região sul do município de São Paulo, classificada na quarta posição relativa ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), comparada às demais regiões da cidade, embora a maior parte das famílias resida em subprefeituras com menor IDH. Para situar o local de onde falavam os sujeitos, foi construído um “esqueleto” da instituição e seus usuários, apoiado em dados quantitativos, constituindo o que Malinowski (1980) nomeou “anatomia do grupo”. Depois, analisaram-se os fatos cotidianos observados, que, na linguagem do mesmo autor, são “a carne e o sangue”, as expressões e falas “dos nativos” que constituem o “espírito” do grupo pesquisado, contemplando as perspectivas dos profissionais, das famílias e das crianças (Maranhão, 2005). A análise articulou as diferentes falas coletadas nas entrevistas e os dados de observação participante e documental, buscando apreender o ponto de vista dos sujeitos investigados sobre a relação família-profissional no processo de compartilhar cuidados infantis. Tomando-se por base a triangulação dos dados, foram construídos quatro eixos temáticos de análise: a construção da parceria entre família e creche; o cuidado compartilhado entre ambas e a criança; a relação entre creche e família, vista na perspectiva da criança; e, finalmente, a complementaridade necessária entre a creche e a família para o cuidado adequado da criança. Este artigo apresenta os resultados relativos ao segundo tema, focalizando-o com base nos cuidados com a alimentação e a higiene, por constituírem eixos significativos em torno dos quais se evidenciaram conflitos entre família e profissionais, implicando a necessidade de permanentes negociações. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp (processo nº 0177/02), cumprindo todas as exigências da Lei 196 de 1996, do Ministério da Saúde, sobre pesquisas envolvendo seres humanos. O consentimento foi dado pelos adultos entrevistados e pelos familiares responsáveis pelas crianças (pai ou mãe). Os nomes apresentados são fictícios, para garantir o sigilo dos mesmos. Resultados e discussão A alimentação: eu ia mudando, eles iam mudando também... Um aspecto do cuidado que preocupa tanto as mães quanto os educadores infantis é a transição dos hábitos alimentares do âmbito doméstico para o da creche, sobretudo diante da rejeição do alimento oferecido na instituição, interpretada como uma forma de linguagem da criança que expressa algum nível de recusa. Vários autores afirmam que a recusa do alimento pela criança pode desencadear na mãe, ou outra pessoa

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CUIDADO COMPARTILHADO: NEGOCIAÇÕES...

que exerce a função materna, um sentimento de culpa e de rejeição dos seus cuidados, assim como foi observado no comportamento e na fala dos sujeitos desta pesquisa (Ferreira, 2006; Nakano, 2003; Brazelton, 1990). A alimentação, como qualquer ocorrência corporal, envolve aspectos biológicos relacionados à sobrevivência orgânica, altamente intrincados com o psiquismo e as práticas culturais. Para o bebê humano, as experiências orais, vivenciadas no ato de alimentar, são o primeiro elo com o ambiente (Vygotsky & Luria, 1996). No processo de desenvolvimento do bebê, o alimento que entra pela boca e sacia sua fome informa-o sobre o que é interno e externo, ajudando-o a construir, gradativamente, a percepção de ter um corpo separado de sua mãe, processo este que será a base de sua identidade (Wallon, 1995). Prover alimento é a primeira função materna. Durante a gestação, dá-se pela simbiose fisiológica do feto com sua mãe e, após o nascimento, pela amamentação, função carregada de afetividade (Ferreira, 2006; Nakano, 2003; Brazelton, 1990). Por isso, compartilhar essa função é um desafio às mães, que a concebem como sua por excelência, constitutiva de sua identidade, e também aos educadores, sobretudo quando cuidam de lactentes em aleitamento exclusivo, tendo que os consolar entre uma mamada e outra, enquanto a mãe não chega ou quando ela vai embora. (...) quando ela entrou, ela só mamava, só tomava leite no peito. E aqui ela tomava leite no copinho, nunca na mamadeira. Aí, depois, ela começou a comer papinha que davam pra ela, tudo direitinho. Eu ia mudando, eles iam mudando também ... (Mãe de Licia, um ano e meio)

Há vários acertos entre as mães e os educadores, desde o tipo de alimento, a forma de oferecê-lo, o cardápio que vai mudando, conforme a criança cresce e gradativamente torna-se independente. Assim, não são apenas informações objetivas que se compartilham, mas também as subjetivas. No processo de desmame, geralmente associado com a entrada do lactente na creche, a mãe pode se sentir “perdida”, à medida que começa a perceber que o filho pode sobreviver sem ela. Essa experiência de perda, vivida pela mãe, é uma das dimensões a serem trabalhadas na adaptação da criança à creche. Eu estava muito insegura, eu vinha pra amamentar ela às 12hs e via que ela estava tranqüila. Só que, depois, falavam que, quando ela me via, ela chorava mais. Então, depois da segunda semana, eu não vim mais. Ah, é horrível, né? Porque eu fiquei até oito meses só com ela, todo dia, de repente desgruda muito, eu fiquei perdida, eu fiquei em casa e não sabia o que fazia, eu ficava arrumando as coisas dela... (Mãe de Licia, um ano e meio)

Licia entrou na creche com oito meses, idade em que já poderia estar recebendo outros alimentos, complementados pelo leite materno de manhã e à noite. Assim, os educadores “negociaram” com sua mãe a substituição da mamada do meio dia pelo almoço. Tratou-se de “negociação”, pois a oferta de qualquer alimento à criança, pela mãe, tem sentido afetivo.

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MARANHÃO, D.G.; SARTI, C.A.

Eu fico pra fazer ela comer porque eu acho que ela não vai comer. Depois que ela come, eu vou embora. Todo dia ainda ela chora. Eu entro, vou tomar café com ela, fico lá fazendo companhia pra ela, depois, eu vou à sala, brinco um pouco. Ela já percebe que eu vou embora e começa a chorar, aí eu tenho que entregar ela pra algum educador e ir embora (Mãe de Licia, um ano e meio).

Com o tempo, a mãe nota que a convivência coletiva tem vantagens no sentido de ampliar o repertório alimentar, ajudando, também, a criança a aprender a servir-se e provar alimentos que, em casa, não eram oferecidos ou aceitos. Às vezes, a criança come determinados alimentos na creche e não os aceita em casa, dizem algumas mães. Ela se comporta de maneira diferente, porque percebe que são lugares distintos e pessoas com papéis sociais diferentes. E agora ela come, eu não sabia, mas ela gosta muito de legumes, adora. Eu achava que não, porque normalmente as crianças não gostam, mas ela adora. Agora, a gente procura dar mais verduras e legumes pra ela. Ela come melhor também se estiver em companhia de outras crianças, porque sozinha ela não gosta de comer. Eu acho que aqui ela come bem. (Mãe de Licia, um ano e meio)

Na perspectiva das crianças entrevistadas - entre cinco e seis anos de idade e que já freqüentam a instituição há mais tempo, as vivências em casa e na creche constituem importantes referências. As situações vividas são classificadas como boas ou ruins, de acordo com o que cada local proporciona de prazer ou desprazer. Eu gosto mais de almoçar na minha casa, porque quando nós não agüenta mais, quando nós não quiser comer mais, nós não come. Na creche, tem que comer tudo, a professora fala que é para ficar forte. Mas eu não queria ficar só em casa, porque meu avô me dá um prato cheio desse tamanho!! (Karen, seis anos)

Quando o esquema alimentar em casa é muito diferente da creche, é necessário um período de transição, em que se mantêm os hábitos e costumes da criança que, gradativamente, vai se adaptando ao novo cardápio. O Marcos tem dois anos e entrou este ano na creche. A mãe queria que fosse dada mamadeira pra ele em todas as refeições, porque, segundo ela, não aceitava outros alimentos. Ela trazia o leite e o engrossante. Um dia, ele aceitou o almoço e eu pedi para as meninas devolverem o leite. A mãe ficou muito brava porque não tínhamos dado a mamadeira na hora do almoço. Nossa, ela rodou a baiana, chegou muito nervosa, xingando todo mundo. Como a gente podia deixar o filho dela passando fome, não sei o quê! “Não, olha lá - eu falei - ele está comendo o pão, tomando leite, não tem necessidade de mamadeira. Ele deixou de tomar mamadeira”. Eu

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CUIDADO COMPARTILHADO: NEGOCIAÇÕES...

mostrei a ela que não precisava, porque ele estava se alimentado bem. “Quando ele chegar em casa, você faz a mamadeira e dá. Mas aqui na creche não precisa, ele come comida” Assim,, você não faz o que ela quer, mas também não deixa a mãe triste. Na verdade, eu acho que, para a mãe, a mamadeira tem um significado: eu não estou lá, mas se a mamadeira está lá, a mamadeira está no meu lugar. (Técnica de Enfermagem)

Esta técnica de enfermagem compreendeu o significado que a mamadeira tem para esta mãe e ajudou-a a perceber que o filho não é mais um bebê e pode se servir de alimentos mais adequados para sua idade, com autonomia, tentando não deixar a mãe triste. Superadas as dificuldades iniciais, as famílias elogiam a alimentação da creche, a diversidade do cardápio e a higiene em seu preparo. Não é apenas o reconhecimento dos aspectos nutricionais que estão em jogo, mas também os educativos e emocionais. Outra coisa que eles adoram, e para a gente é interessante, é alimentação; o Wilson, hoje, ele come de tudo, porque ele aprendeu a comer aqui. (Pai de Wilson, seis anos)

Associados ao afeto, os modos de alimentar a criança são construídos na cultura, sendo influenciados pelo tipo de alimento disponível em cada região, por costumes e valores, inclusive, religiosos. Os profissionais da creche aceitam restrições alimentares, quando prescritas por médicos, o que nem sempre ocorre quando são determinadas por costumes familiares. Uma mãe converteu-se à religião Hare Krishna e solicitou que não dessem carne à sua filha, mas não foi atendida em seu pedido, sob o argumento de que, no contexto coletivo, era difícil evitar que a criança se servisse da carne oferecida no cardápio - o que revela a dificuldade dos profissionais de considerar singularidades e valores próprios dos usuários. O que tem para comer todos vão comer, se a criança quiser, não vai deixar passar vontade, porque a mãe não quer que coma a carne. Na casa dela não vai dar, mas aqui tem e ela vai comer. (Educadora do Maternal)

Outra família, adventista, solicitou que a criança não comesse carne de porco. Como este alimento não fazia parte do cardápio da creche, não houve problemas no atendimento do pedido. Quando chegamos aqui, não forçamos, mas deixamos avisadas duas coisas: “Olha, a gente gostaria que toda atividade que tivesse no sábado, e qualquer coisa que tivesse carne de porco não fosse dado à Juliana, não fosse cedido a ela, porque a gente está educando ela nesse princípio, a gente tenta ser coerente. (Pai de Juliana, dois anos)

Do ponto de vista da criança, a creche oferece oportunidades de acesso a valores, hábitos alimentares, cuidados e conhecimentos que podem ser

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diferentes daqueles das famílias, propiciando outras oportunidades de desenvolvimento (Wallon, 1995). Na família, com seus próprios valores, suas crenças e seus hábitos, a criança tem um lugar estrutural de identidade, que a acompanhará permanentemente, fazendo com que seu processo de desenvolvimento envolva lidar com todas essas referências, com os conflitos e ganhos implicados (Sarti, 2004). A higiene: eu acho que está mais relacionado ao cuidado... A origem etimológica do termo higiene é derivada do grego hygeinos: o que é são. Entretanto, o senso comum atribui-lhe significado mais restrito: asseio e limpeza. Nos dicionários de língua portuguesa, identifica-se este duplo significado, de ciência que visa à preservação da saúde, à prevenção da doença e ao asseio (Maranhão & Vico, 2004; Vigarello, 1996). A partir do século XVII, o termo “limpo” começa a adquirir conotações morais, passando a significar também distinção, elegância, ordem (Rodrigues, 1999; Vigarello, 1996). Desde o fim do século XVIII, o corpo sadio, limpo, válido, os espaços purificados, límpidos, arejados, a distribuição medicamente perfeita dos indivíduos, lugares, leitos, utensílios, o jogo do ‘cuidado’ e do ‘cuidadoso’, constituem algumas leis morais essenciais da família. (Foucault, 1979, p.199)

As regras de higiene são construções culturais e revelam mais uma necessidade humana de ordenar forma e função, dar ordem a algo que parece caótico, do que uma técnica com base no conhecimento da transmissibilidade ou causalidade das doenças (Douglas, 1966). Os profissionais da creche usam-na como sinônimo de limpeza, fazem referências a conflitos em razão da falta de asseio das crianças, freqüentemente atribuída ao descuido da mãe e a sua pobreza material. A mãe, às vezes, cortava um pedaço do lençol, fazia de fralda, e trazia a menina assim. Às vezes, ela não tinha nem um pano, nada, e a criança chegava aqui só de calcinha e ficava toda suja de cocô. Nós procurávamos orientar da melhor forma possível, mas é muito difícil estar orientando esse tipo de mãe. Foram fazer uma visita na casa dela, do lado do tanque tinha um monte de roupa, há mais de duas semanas lá, ia juntando, juntando. Não sei o que ela fazia com aquela roupa, não sei se lavava ou não. Todo dia nós tínhamos que dar banho nela e colocar uma roupa da creche, porque a sua roupa cheirava mal demais. Era uma criança muito bonita, mas muito mal cuidada. Eu ficava chocada e procurava sempre orientar a mãe: “Vamos fazer dessa forma...”. (Coordenadora Pedagógica)

Cuidar de crianças de diferentes condições sociais implica lidar com costumes diversos e reconhecer as limitações da creche frente aos problemas econômicos e culturais das famílias, associados à precariedade habitacional, às dificuldades de acesso aos serviços de saúde e a bens básicos

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para o bem-estar infantil. Além das limitações que a pobreza coloca para as famílias e educadores, cada família reage e lida à sua maneira com suas condições de vida. Ao tratar dessas diferenças, embora os educadores reconheçam que a falta de condições em casa pode dificultar os cuidados com as crianças, isso não impede que se dêem conotações morais ao fato, fazendo do cuidado infantil um dos eixos de julgamento moral da família. A mãe estava meio acomodada, ela sabia que, quando a menina chegasse aqui, ia tomar banho, colocar uma roupa limpa nela. A gente pedia para devolver aquela roupa, mas ela não devolvia. Ela foi se acomodando, porque ela via que a creche ajudava demais, né?A mãe chegou num ponto... Parece que eles estavam passando necessidade, ela estava sem marido, estava sempre trocando de marido. Nós achávamos que ela se prostituía. O pessoal comentava, a gente não pode julgar pela roupa das pessoas, mas, às vezes, estava um frio, que a criança chegava com o lábio roxo aqui e a mãe vinha com um shortinho curtinho, mini-blusa, sabe, sempre com roupas extravagantes, e o pessoal comentava que via ela na Alameda (rua próxima à creche com casas e hotéis de prostituição) conversando com os homens, sabe? Era comentário mesmo das mães que a gente ouvia. (Educadora do Jardim)

As famílias são avaliadas pelos educadores tanto pela aparência da criança quanto pela forma como se comportam e se apresentam na creche. Embora tentem compreender as dificuldades enfrentadas pelas mais pobres, comparam e elogiam aquelas que, apesar da pobreza, são limpas e cuidadosas. Eu conheci vários tipos de famílias. Havia mães que não ligavam muito pra criança, não ligava muito pra roupa da criança. Outras, mesmo sendo muito pobre, tinha cuidado até demais com a criança. A gente fazia entrevista com as mães para saber como é a higiene dela em casa com a criança. Havia uma família que morava num cortiço, com tanque de uso comum, mas que tinha noção de higiene, lavava a roupa dentro de um balde, para não usar o tanque comum, parar manter tudo individual. Era um exemplo! (Educadora do Berçário)

Assim, por meio da observação do corpo da criança, os educadores avaliam e criticam as famílias que consideram negligentes, apesar de um perceptível cuidado no sentido de não parecerem preconceituosas aos olhos da pesquisadora. Essa vigilância decorre da tendência atual, na educação infantil, de rever a visão sobre as famílias pobres como “carentes”, “incapazes”, “desestruturadas”, “negligentes”. Eu acho que está mais relacionado ao cuidado. Eu não gosto de falar assim porque parece que a gente tem preconceito - e eu não tenho preconceito - procuro ser uma pessoa humilde no meu dia-a-dia, procuro chegar ao nível da... (família?) Nós somos todos iguais, mas tem mães sem higiene com a criança, que não separa aquela roupinha de xixi que

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foi dentro da mochila, fica tudo cheirando, não lava a mochila da criança! (Educadora do Jardim)

Os profissionais têm ciência de que o padrão de higiene em um contexto pode ser diferente do de outro, mas, ao mesmo tempo, negam o preconceito e fazem associações que o reafirmam. Eu sou de Curitiba e lá a gente tenta seguir um padrão de higiene, tomar cuidado para não contaminar. Em casa, a gente sabe que nunca é assim, até mesmo na casa da gente, temos deslizes, né? Como a gente atende famílias de várias rendas, geralmente quem tem um poder aquisitivo baixo, a falta de higiene é o que mais predomina nelas. Por exemplo, a mãe do Edilson melhorou muito a higiene com as crianças, mas não a pessoal. Ah, coitada, porque é casada com aquele velho, né? (Técnica de enfermagem)

A associação que os profissionais fazem da falta de cuidado familiar, particularmente de higiene, com os episódios de adoecimento das crianças, desvia o foco do planejamento dos cuidados na creche. O emprego de precauções-padrão, em lugar de adotar medidas relativas apenas à criança doente, evitaria estigmas vivenciados pelas crianças (Maranhão & Vico, 2004; Maranhão, 2005). Às vezes, a gente toma suco no copo e a professora põe durex. Então, tem que anotar, senão passa doença pro outro. Não é todo mundo que vai ficar com durex. É só para aquela pessoa que está doente... Os meninos riem, mas as meninas, não. (Karen, seis anos)

Os cuidados com o corpo também incluem a estética, os adornos e, ainda, os adereços usados pelas famílias para “proteger” a criança, agradecer graças alcançadas, expressando suas crenças e valores, que podem ser estranhos aos educadores, evidenciando um descompasso entre profissionais e famílias, fonte de desentendimentos que leva, mais uma vez, a negociações: Tem aquelas mães que fazem promessa: “Quando meu filho fizer um ano, eu vou cortar o cabelo dele e levar lá pra Aparecida do Norte”. Só que o filho estava com o cabelo desse tamanho e cheio de lêndea. Aí, um dia, a educadora cortou o cabelo do menino sem falar com a mãe. Estava tentando ajudar: “acho que eu vou cortar o cabelo desse menino, a mãe não deve ter condição de levar pra cortar”. Aí, a mãe chegou aqui e fez o maior carnaval. Ela queria o cabelo do menino porque, quando fizesse um ano, levaria para Aparecida do Norte. E a educadora já tinha jogado o cabelo da criança no lixo. Porque a gente achava que tinha que manter a criança limpa, brilhando, perfumada, com o cabelo cortadinho, porque essa era a nossa função. A mãe coitada, né? Nós tivemos que ir ao lixo procurar o cabelo, para a mãe dele levar. E aí a gente vai aprendendo, eu nunca mais corto o cabelo de ninguém! (Coordenadora Pedagógica)

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As diferenças culturais que permeiam o processo de compartilhar cuidados com as famílias ensinam aos educadores os limites em relação ao que consideram “o melhor para a criança”. No julgamento do que consideram o melhor cuidado, perpassam valores religiosos, estéticos, relativos ao gênero, que revelam preconceitos com base em percepções diferentes. Ao adjetivar a mãe como “coitada”, desvalorizam sua perspectiva. Algumas famílias fazem valer sua autoridade, como o direito de escolher o que consideram melhor aos filhos. Outras, temendo a rejeição social, acabam mudando sua prática, diante dos argumentos dos profissionais. Antes de o Leo entrar na creche, eu levei ele na benzedeira, eu achava ele fraquinho, miudinho. A minha vizinha falava – é quebrante, mau-olhado, né? A benzedeira confirmou: “É mau-olhado”. Depois de uns três dias, a mesma coisa, ele ficou tristinho, levei ele de novo na benzedeira. “Ele é muito pegado de mau-olhado, eu vou fazer um negocinho para que ele não pegue mais”. Aí não pegou mesmo. Aí a creche me perguntou o que era aquilo [o amuleto]. Falei que... eu pensei..., será que a creche não gosta? Aí eu tirei. Eu pensei que a creche não gostava. Ninguém falou nada. Me perguntaram, eu achei que a creche não gostava. Aí eu tirei. Eu fiquei assim... será que a creche não gosta? Aí eu tirei. (...) Levou uns três dias, fiquei com medo dele puxar [o alfinete]. Aí eu tirei, ele era bebezinho. Aí eu fiquei com medo, depois ele puxou e eu tirei. Eu tenho mais medo dele furar. Ele já estava crescidinho, eu fiquei com medo dele puxar, furar, daí eu tirei. Ele era muito bebezinho, eu fiquei com medo. (Mãe do Leo, três anos)

A interpretação feita deste caso é a de que a mãe buscou o que considerava uma proteção espiritual para o corpo do filho, que poderia tornar-se fraco pelos maus-olhados. Essa proteção era feita por um amuleto, adereço vermelho preso com alfinete à roupa da criança. Ao tornar-se usuária da creche, percebeu que correspondia a uma prática considerada inadequada, implicando rejeição de seu filho. Qual o maior medo? Da doença ou do estigma? Da rejeição? Deslocou a proteção para formas culturalmente aceitas, como agasalhá-lo, amamentá-lo, tornar-se vigilante de sua saúde. Tudo que ela não podia fazer durante o dia, ela queria fazer na hora da saída: trocar, colocar cinco blusas, quatro calças, amamentar! Ela achava que ele não tinha pegado peso, porque ele só vivia doente. Ela queria saber se ele tinha ficado bem, se estava com febre, até perceber que ele conseguia ficar bem na creche. Levou o maior tempo. Quer dizer, ela era muito boazinha com todo mundo, mas tinha uma insegurança! Tudo que você falava ela concordava, mas você via que ela morria de medo, tudo dava desespero: “Por que ele estava doente? Ele está com febre de novo?” Ela ligava do serviço pra saber se ele teve febre, o que ele comeu. Era bem assim (...) Você está ali do lado e aí ela chega na educadora e confirma aquilo que você falou. E é então na confirmação das coisas que ela vai criando vínculo com a equipe. Não só com a enfermagem. Aí ela percebia

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que você realmente estava participando do que estava acontecendo com o filho dela. (Técnica de Enfermagem)

Duas dimensões subjazem aos conflitos que incidem no processo de compartilhar cuidados de alimentação: uma diz respeito à afetividade implícita no ato de alimentar, que exige sensibilidade para identificar o sentido desse ato para a família, ajudando-a a compreender que a construção da autonomia, pela criança, passa pelo desenvolvimento da capacidade de ela prover seu próprio alimento. A outra se refere às diferenças culturais, regionais ou religiosas que, se não puderem ser acolhidas e gradativamente incorporadas, pelo menos, precisam ser reconhecidas. Nos conflitos em torno dos cuidados de higiene, percebe-se claramente a postura disciplinar da equipe profissional, associada à moralização dos costumes. Todavia, há casos evidentes de negligência que ferem o direito das crianças e requerem um trabalho com a família, no sentido de refletir com ela sobre o significado do cuidado no processo de construção da identidade. Lidar com a negligência do adulto em relação à criança, classificada como “maus-tratos”, é uma tarefa complexa, sutil e delicada, por dizer respeito ao olhar sobre o outro. Pode revelar preconceitos de várias ordens. O que é visto como “negligência” pode expressar uma forma diferente de cuidar. Considerações finais Os conflitos são inerentes às relações entre profissionais e familiares das crianças usuárias de creches, evidenciando-se no processo de compartilhar cuidados, sobretudo, relativos a alimentação e higiene. Compartilhar cuidados infantis demanda dos profissionais preparo e disposição para escutar crianças, pais, avós, comunidade, em sua alteridade, constituindo um fórum de reflexão sobre o que seja o melhor cuidado e a melhor educação para esse grupo específico, em seu contexto histórico, social e cultural. Nessa tarefa, a concepção de participação dos pais é a de co-construtor do projeto de educação e cuidado infantil, pela definição conjunta de concepções, normas e regras. Isto implica uma atitude de profissionalismo, considerando o arsenal dos saberes acumulados sobre desenvolvimento, educação e cuidado infantil e sobre os padrões do que seja uma boa creche, bem como conhecê-los, problematizá-los, refletir sobre sua aplicabilidade em um contexto específico. Implica, ainda, a abertura aos conhecimentos “não científicos”, que iluminam as práticas familiares, constituindo, também, formas de saber. Essa pesquisa, embora tenha tido como foco o processo de compartilhar cuidados das crianças no contexto de uma creche, pode contribuir para a reflexão de profissionais que atuam nos programas de saúde da família e nas unidades básicas de saúde, no sentido de considerarem a complexidade e dinâmica das relações que se estabelecem em torno do cuidado infantil.

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MARANHÃO, D.G.; SARTI, C.A.

MARANHÃO, D.G.; SARTI, C.A. Cuidado compartido: negociaciones entre familias y profesionales de una guardería. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.257-70, mai/ago 2007. Basado en un estudio de caso, de naturaleza cualitativa, este texto busca analizar la relación entre familia y profesionales de una guardería en el proceso de compartir cuidados en la primera infancia, utilizando técnicas de observación, entrevistas y análisis de documentos. Los sujetos de la investigación fueron las familias y los profesionales de una guardería en la ciudad de São Paulo. Los conflictos entre estos agentes sociales se evidencian, sobre todo, en los cuidados con la alimentación y la higiene. Además de preparación técnica, la tarea de compartir cuidados exige de los profesionales la capacitación en el sentido de la disposición para escuchar a los niños y sus familias en su alteridad. Esta exigencia abre, entonces, la posibilidad de un espacio de reflexión sobre el cuidado adecuado a la especificidad del grupo en cuestión, considerando las características locales, en su contexto histórico y social. PALABRAS CLAVE: Educación en la primera infancia. Guardería. Cuidado del nino. Enfermería Pediátrica. Familia.

Recebido em 10/07/06. Aprovado em 27/01/07.

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Oficina de memória par a idosos: para estratégia para promoção da saúde

Maria Helena Morgani de Almeida1 Maria Lucia Martuscelli Beger2 Helena Akemi Wada Watanabe3

ALMEIDA, M.H.M. ET AL. Memory training for the elderly: a health promotion strategy. Interface - Comunic., Educ., v.11, n.22, p.271-80, mai/ago 2007. Saúde, Educ.

Given the importance of memory for the performance of day-to-day activities and since many elderly people complain about their memory, the authors proposed a memory training workshop to promote health among this audience. The workshop was offered in 2004 to elderly people who were interviewed and submitted to the “MiniEvaluation of Mental State”. The workshop took place over ten sessions and taught strategies for improving memory performance. Results were based on 45 participants who were evaluated after the workshop as well, which enabled a comparison of results. As a results evaluation parameter, the authors used a reduction in complaints about their memory, as described by the participating elderly at the end of the workshop project. This also enabled these participants to identify their true difficulties and to incorporate new knowledge concerning the memory. KEY WORDS: Elderly. Memory. Memory training. Health promotion. Considerando a importância da memória para o desempenho das atividades cotidianas e que grande parte dos idosos refere queixas de memória, elaborou-se uma proposta de oficina para treinamento de memória para a promoção da saúde dessa população. A oficina foi oferecida em 2004 a idosos entrevistados e submetidos ao “Mini-exame do estado mental”. Desenvolvida em dez encontros, divulgou estratégias para o bom desempenho da memória. Os resultados foram considerados para 45 idosos reavaliados após a oficina, permitindo comparação de resultados. Considerou-se como parâmetro para avaliação de resultados a redução de queixas de memória, referidas pelos idosos ao final da oficina. Esta possibilitou, ainda, a identificação pelos idosos, de suas reais dificuldades e a incorporação de novos conhecimentos relacionados à memória. PALAVRAS-CHAVE: Idoso. Memória. Treinamento da memória. Promoção da saúde.

Terapeuta ocupacional; doutora em Saúde Pública; professora, departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (FMUSP). São Paulo, SP. <hmorgani@usp.br> 2 Assistente social; doutoranda em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo (FSP/USP). São Paulo, SP. <mlbeger@uol.com.br> 3 Enfermeira; doutora em Saúde Pública; professora, departamento de Prática de Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP. <hwatanab@usp.br> 1

1 Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, FMUSP Rua Cipotânea, 51 São Paulo, SP 05.360-000

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ALMEIDA, M.H.M. ET AL.

Promoção da saúde e treinamento de memória em idosos A memória exerce importante influência sobre a autonomia e independência na vida cotidiana. Considerando que 50% dos idosos apresentam queixas freqüentes de memória (Allegri et al., 1999, apud Vieira & Koenig, 2002), elaborou-se uma proposta de oficina para treinamento de memória que possibilitasse a divulgação e o reforço de estratégias voltadas à manutenção ou melhora do desempenho da memória de idosos como estratégia para a promoção da saúde dessa população. Na literatura nacional, poucos trabalhos informam sobre resultados alcançados por meio de treinamentos de memória.Justifica-se, assim, a avaliação da intervenção realizada e a discussão dos resultados obtidos. A primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde (1996) refere-se à saúde como um recurso para o desenvolvimento social, econômico e pessoal, importante dimensão da qualidade de vida. Nesta perspectiva, a manutenção da capacidade funcional e a preservação da autonomia, consideradas por pesquisadores da área de Gerontologia (Gordilho et al., 2000) como definidoras da saúde dos idosos, configuram-se como valiosas estratégias para a promoção da saúde, especialmente de idosos. Segundo Freitas (2004), essas estratégias estão interligadas e constituem, hoje, o objetivo da atenção a essa população. Guerreiro & Caldas (2001) referem que o envelhecimento predispõe a diversas condições de adoecimento, com repercussão sobre a capacidade funcional, entre elas, os transtornos cognitivos, que compreendem desde leves déficits atencionais ou de memória até comprometimento cognitivo extenso, como a síndrome da demência. Entretanto, segundo o Maastricht Aging Study - Mass (1999), realizado na Holanda e citado por Guerreiro & Caldas (2001), somente um quinto de todos os idosos com idade superior a oitenta anos apresenta demência, ou seja, a maioria dos idosos não desenvolve a doença, o que vem sendo interpretado como indícios de envelhecimento bem-sucedido. De acordo com Rowe & Kahn (1998), o envelhecimento bem-sucedido depende basicamente da adoção de três comportamentos: evitar doença, incapacidades e fatores de risco relacionados; manter alto nível de capacidades físicas e mentais; e manter ou recobrar engajamento com a vida. Segundo Restak (1997), medidas como manter boa saúde física, evitar sedentarismo e inatividade, reduzir estresse, manter bom humor e amizades podem melhorar a saúde em geral, inclusive, cerebral. Vale ressaltar que as capacidades físicas e mentais podem ser estimuladas, mantidas e, até mesmo, recuperadas, especialmente quando sua perda for causada por fatores extrínsecos, como falta de atividade, ou o predomínio, no cotidiano, de atividades pouco desafiadoras à mente e ao corpo (Rowe & Kahn, 1998). Para além da estreita perspectiva de estudos sobre funções cerebrais declinantes, as pesquisas atualmente se concentram na concepção de suas potencialidades. Segundo Baltes (1994), a capacidade de reserva cognitiva pode ser mobilizada e, até mesmo, melhorada por meio de treinamento. Goldman et al. (1999) citam dois estudos longitudinais conduzidos em

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OFICINA DE MEMÓRIA PARA IDOSOS: ESTRATÉGIA...

Seattle e Baltimore, que demonstram que, quando as pessoas fortalecem seus cérebros, por meio de exercícios mentais metódicos e deliberados, experimentam melhora da memória, pensam com mais agilidade e captam com mais eficiência conceitos mais abstratos. Em contrapartida, pessoas que sofrem de deterioração mental apresentam atitudes e atividades associadas a uma rígida rotina e à insatisfação com a vida. Estas evidências reafirmam o estímulo a um bom funcionamento mental como um dos mais importantes princípios para a promoção da saúde dos idosos (Restrepo & Perez, 1994). De acordo com Yassuda (2002), muitos estudos indicam que intervenções complexas envolvendo técnicas de memorização, relaxamento e atenção, podem gerar efeitos positivos e duradouros em idosos, especialmente quando empregadas em grupo. Segundo Guerreiro & Caldas (2001), diversos pesquisadores apontam para uma relação positiva entre o desempenho cognitivo do idoso e sua estimulação continuada. O exercício diário da mente promoveria a vivacidade mental e atividades promotoras de estimulação mental poderiam contribuir, ainda, na prevenção do declínio cognitivo. Schaie apud Goldman et al. (1999), verificou, em um treinamento mental em grupo com a utilização de exercícios de relações espaciais, solução de problemas e memorização, que 50% daqueles que não haviam apresentado declínio da capacidade mental apresentaram melhora, e 40% das pessoas que haviam perdido capacidades, as recuperaram e as mantiveram durante os anos seguintes. Autores como Khalsa (1997), Wilson & Moffat (1992) e Alvarez (2004) descrevem técnicas ou estratégias de memorização para manter e melhorar o desempenho da memória. São cautelosos em afirmar que essas técnicas devem ser acompanhadas de comportamentos saudáveis para que possam tornar-se eficazes em seus propósitos. O desenvolvimento de uma Oficina para treinamento de memória para idosos A Oficina de Memória (OFM) pode ser caracterizada como uma experiência de construção coletiva de conhecimentos. Com base na conceituação de memória, esclarecimentos acerca de seu funcionamento, suas peculiaridades no processo de envelhecimento e estratégias propostas pela literatura para manter ou melhorar o desempenho da memória, os participantes foram estimulados a refletir sobre as possíveis aplicações deste conhecimento na vida cotidiana e a expor seus conhecimentos sobre o assunto. A Oficina foi desenvolvida no primeiro semestre de 2004, em dez encontros semanais de duas horas, por meio de aulas expositivas precedidas por exercícios e dinâmicas de grupo. Antes da realização da oficina, os idosos foram entrevistados individualmente, por meio de um roteiro de questões semi-estruturadas, contidas no Quadro 1.

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ALMEIDA, M.H.M. ET AL.

Quadro 1. Questões referentes a memória e a aspectos relacionados, aplicadas por meio de entrevistas ao idosos participantes, antes e após a OFM. São Paulo, 2004. Questões Antes

Após

Como soube da Oficina de Memória? Por que quer participar da Oficina de Memória?

Você tem utilizado sua memória? muito ( ) mais ou menos ( ) pouco (

) nada (

A Oficina de Memória atendeu suas expectativas iniciais? Por quê?

)

Você tem utilizado sua memória? muito ( ) mais ou menos ( ) pouco (

) nada (

)

Se você tem utilizado a memória, de que maneiras você a tem utilizado? Você tem empregado as estratégias de memória apresentadas na Oficina? Quais? Você considera que sua memória, desde que iniciou a Oficina, tenha: melhorado ( ) se mantido inalterada ( ) piorado ( ) Quais são suas queixas de memória?

Quais são suas queixas atuais de memória?

Consegue prestar atenção em alguma coisa por tempo suficiente? s ( ) n ( )

Consegue prestar atenção em alguma coisa por mais tempo que antes? s ( ) n ( )

Tem algum problema visual e/ou auditivo? Já fez algum tipo de treinamento de memória?

Você realizou durante o período da Oficina outro treinamento de memória? s ( ) n ( ) Comentários e sugestões

A OFM proposta tinha como público-alvo idosos sem déficits das funções cognitivas e a aplicação do roteiro possibilitou que eles relatassem suas queixas de memória e atenção, intensidade do uso da memória, deficiências visuais e auditivas e participação anterior em treinamento de memória. Adotou-se, ainda, o “Mini-exame do estado mental” (MMS) como instrumento de rastreio. A opção por este instrumento baseia-se no fato de ter sido traduzido e adaptado para a língua portuguesa (Bertolucci et al., 1994), além de ser largamente utilizado em ambiente clínico e estudos epidemiológicos. Segundo Almeida (1998), para idosos com alguma instrução escolar, o ponto de corte sugestivo de déficit cognitivo é de 23/24 e está associado à sensibilidade de 78% e especificidade de 75%. Com base neste autor e considerando o requisito de alfabetização adotado para a OFM, estabeleceuse, para ingresso na oficina, este ponto de corte, prevendo o encaminhamento de pessoas idosas com escores inferiores para os serviços de saúde de sua referência. Os resultados da entrevista orientaram os profissionais quanto às necessidades cognitivas dos participantes e reforçaram o programa previsto, apresentado de forma sucinta no Quadro 2.

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OFICINA DE MEMÓRIA PARA IDOSOS: ESTRATÉGIA...

Quadro 2. Temas desenvolvidos na Oficina de memória. São Paulo, 2004.

Temas

Aspectos desenvolvidos

Conceito de memória

Sistema complexo que envolve: aquisição, armazenamento e evocação de informações.

Funções mentais, aspectos emocionais e memória

Consciência, atenção, motivação, velocidade de processamento, percepção, aspectos emocionais ou de personalidade e sua relação com memória.

Memória e envelhecimento

Com o envelhecimento podem haver dificuldades no processamento e na memorização. Atitudes e comportamentos por vezes adotados podem representar obstáculos para o envolvimento em situações de aprendizagem e memorização.

Estilo de vida e memória

Dieta equilibrada, prática de atividades físicas e mentais, combate ao estresse, controle de doenças e sua relação com a memória. Associação. Utilização de múltiplos sentidos. Categorização ou partição em blocos.

Estratégias para manter e melhorar a memória

Repetição Atribuição de emoções. Adoção de dispositivos de memória. Rompimento de rotinas: impõem desafios ao cérebro. Rotinas organizadas trazem segurança e favorecem automatismos, mas não impõem estes desafios.

A população deste estudo constituiu-se por pessoas com mais de sessenta anos de idade, alfabetizadas, matriculadas na Oficina de Memória da Universidade Aberta à Terceira Idade da USP. O critério de inclusão adotado foi o da voluntariedade em participar no estudo e freqüência de 80% nas atividades. Visando avaliar a experiência da oficina, quanto ao seu possível impacto sobre a memória dos participantes, adotou-se o Referencial de Avaliação de Resultado proposto por Donabedian (1980). Segundo esse autor, resultados em saúde implicam mudanças no estado de saúde, incluindo melhora das funções psicossociais, aquisição e incorporação de conhecimentos, entre outros aspectos. No que se refere à oficina de memória, considerou-se, como parâmetro para avaliação de resultados, a redução no número de queixas de memória. Ao final da OFM, isto é, no décimo encontro, solicitou-se aos idosos que preenchessem um questionário contendo questões correspondentes às utilizadas na entrevista inicial, acrescidas de questões sobre as “estratégias de memória” em uso, como pode ser observado no Quadro 1 anteriormente apresentado obtendo-se, desta forma, dados para reavaliação dos idosos e avaliação da Oficina de Memória enquanto estratégia promotora da saúde dessa população.

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Resultados e discussão Os 45 idosos participantes da oficina tinham o seguinte perfil: quanto à idade e sexo, 56% tinham entre sessenta e 69 anos, 40% entre setenta e 79 anos e 4%, oitenta anos ou mais. Os participantes do sexo feminino representaram 87% dos idosos. A proporção de idosos entre sessenta e 69 anos foi preponderante, no entanto, aqueles com setenta anos e mais tiveram uma participação também significativa (44%), provavelmente motivada por queixas que se tornam mais freqüentes conforme a idade avança. Quanto ao nível de escolaridade, 47% dos participantes concluíram o nível superior, 31% possuíam antigo colegial completo, uma parcela menor de participantes (20%) o antigo ginásio completo, enquanto 2% concluíram o antigo primário; esses dados diferem do verificado por Lebrão (2003) em estudo realizado em 2000, com a população idosa geral do Município de São Paulo 46,4% dos quais tinham menos de quatro anos de escolaridade O alto nível de escolaridade provavelmente se deve ao fato de a Oficina ocorrer em um bairro de classe média e em unidade universitária. A pontuação obtida na aplicação do “Miniexame do Estado Mental” variou de 26 a 30 pontos, sendo que a média foi de 29 e a moda de trinta, resultado semelhante ao encontrado por Brucki et al. (2003) em estudo realizado com idosos saudáveis, sem queixas de memória e que tinham mais de 11 anos de escolaridade. Apesar de a grande maioria dos participantes compensar deficiências sensoriais com uso de óculos e/ou aparelho auditivo, 13% apresentaram deficiência auditiva, e a mesma proporção de idosos apresentou deficiência visual não compensada com aparelho, proporção esta prevista quando se consideram estudos de prevalência de incapacidades e que têm, nas deficiências sensoriais, um dos fatores determinantes (Litvoc & Derntl, 2002). Esta informação reveste-se de significado, pois as deficiências podem não ser tão importantes para os idosos a ponto de excluí-los de uma situação de aprendizagem ou esses indivíduos podem estar adotando mecanismos adaptativos para minimizar as dificuldades. Segundo Baltes (1996), o envelhecimento bem-sucedido admite perdas e mecanismos compensatórios a essas perdas. Entre esses, destacam-se estratégias mentais e ambientais, além da tecnologia assistiva.. Informações referentes à memória foram organizadas em “antes” e “após” a oficina, constituindo-se em resultados apresentados e analisados a seguir. Antes da OFM verificou-se que, embora 74% dos idosos referissem fazer “muito” uso da memória, 96% destes relataram queixas, num total de 55, isto é, uma média de 1,22 queixas por idoso. Ressalta-se que, para a maioria, a utilização da memória não estava associada a treinamentos anteriores, uma vez que apenas 18% dos idosos haviam participado desses treinamentos. Com base nestes dados, pode-se supor que os idosos, embora referissem usar “muito” a memória, não o faziam de forma desafiadora, oferecendo a si mesmos poucas oportunidades para o desenvolvimento de seu potencial, otimização de suas reservas e minimização de suas queixas. Rowe & Kahn (1998) informam que muitas perdas funcionais, inclusive cognitivas, são causadas por fatores como falta de atividades ou atividades pouco desafiadoras

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à mente e ao corpo. Nahenow (2000) também aponta a importância da pressão do ambiente para o desenvolvimento da competência e refere que esta pressão deve manter o indivíduo em uma espécie de zona de adaptação caracterizada pelo equilíbrio entre conforto e desafio; abaixo deste nível, a pressão gera tédio e reduz competência e, acima dele, pode tornar o indivíduo confuso e distraído. Destaca-se que, antes da OFM, uma porcentagem significativa de idosos (38%) ainda não tinha clareza acerca de suas dificuldades de memória e que a principal queixa estava relacionada a esquecimento de nomes de pessoas e de ruas (27%). Após a OFM, conforme o esperado, os participantes informaram que continuavam a utilizar “muito” sua memória (80%) e o faziam de diversas maneiras, tais como: por meio de leitura (29%), recordação de nomes, datas, telefones e atividades diárias (17%), reforço da atenção (16%), entre outras. Vale destacar que 4% dos idosos referiram utilizar a memória por intermédio de atividade física e “relacionando-se com o mundo”. Cerca de 84% dos idosos referiram estar empregando estratégias de memória apresentadas na OFM. As principais estratégias citadas foram: a associação (51%), seguida pela adoção de dispositivos auxiliares (40%), e a atenção/observação (18%). Estas e outras estratégias foram descritas por Khalsa (1997), Wilson & Moffat (1992) e Alvarez (2004). Como não se verificou qual a proporção de idosos que fazia uso de estratégias mnemônicas antes da OFM, nem quais eram utilizadas, não foi possível relacionar a adoção de estratégias à participação na mesma. Entretanto, observou-se uma redução do número médio de queixas de 1,22 para 0,88. Novos estudos poderão ser conduzidos com a finalidade de se verificar uma possível relação entre o emprego de estratégias mnemônicas e melhora no desempenho da memória. Vale frisar ainda que os participantes referiram, após a OFM, maior clareza quanto as suas dificuldades, uma vez que a citação de esquecimentos não precisados caiu de 38% para 20%. O esquecimento para nomes manteve-se como principal queixa, apresentando, inclusive, um discreto aumento: de 27% para 29%. Dados deste estudo assemelham-se aos obtidos por Bolla et al. (1991), que referem o esquecimento para nomes como a principal queixa de memória entre idosos que vivem na comunidade (83%). Ainda que se tenha observado um discreto aumento de queixas para nomes, bem como para fatos (de 4% para 9%), deve-se reiterar que o número de queixas não precisadas diminuiu sensivelmente, possibilitando seu posicionamento em categorias precisas e utilização de estratégias mais apropriadas. Vale destacar que, para 9% dos participantes, a referência à falha de memória antes da OFM tratava-se, na realidade, de falha de atenção, como referem Guerreiro & Caldas (2001). Destaca-se que algumas queixas diminuíram de forma expressiva, como o esquecimento para ações: de 13% para 4%, e o esquecimento para compromissos: de 9% para 2%. Ainda que 82% dos participantes tenham afirmado que a OFM atendeu às expectativas iniciais, somente 56% expuseram motivos. A aquisição de

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conhecimentos foi referida por 29% dos idosos, enquanto 9% referiram que, por intermédio da OFM, incorporaram práticas para otimização da memória. A percepção da melhora da memória por meio da OFM foi referida de forma objetiva por 9% dos idosos. A oficina foi compreendida como oportunidade para relacionamentos interpessoais satisfatórios por 7% dos participantes. Uma parcela do grupo ainda expressou o desejo de mais práticas, exercícios, testes e tarefas de casa, totalizando 18%. A sugestão de “mais tempo” para OFM, feita por 29% dos idosos, pode estar relacionada a fatores como insuficiência de tempo para a fixação e aplicação do conhecimento ou, ainda, a variáveis psicossociais relacionadas à valorização de trabalhos em grupo pelos idosos como estratégia facilitadora de trocas de idéias e sentimentos e para o enfrentamento do isolamento social que muitos experimentam. Vale frisar que 7% dos participantes sugeriram “mais trabalhos em grupo”. Os idosos sugeriram, ainda, maiores oportunidades para se auto-expressarem e o oferecimento de mais informações sobre esta fase da vida (4%). Conclusão Os resultados referiram-se, basicamente, à percepção dos idosos quanto a sua memória e aspectos relacionados, informações estas de natureza subjetiva. Embora esse tipo de informação possa sofrer interferências de fatores como humor e pressões sociais, optou-se pelo seu levantamento antes e após a OFM, reconhecendo a percepção como elemento importante para o desvelamento da realidade vivenciada pelos participantes, com ênfase para a repercussão dessas questões na vida cotidiana. Do ponto de vista dos entrevistados, a oficina contribuiu para a avaliação de suas reais dificuldades de memória, o que, por si só, auxilia no seu enfrentamento. Vale destacar que houve uma diminuição no número médio de queixas, que pode estar relacionada ao emprego eficaz de antigas e novas estratégias, questão a ser investigada por meio de estudos futuros. Observou-se, também, a valorização da OFM, pelos participantes, enquanto espaço de socialização e estimulação mútua. Uma outra contribuição importante da OFM foi o esclarecimento acerca dos fatores que influenciam o funcionamento da memória. A idéia do envelhecimento como determinante único e implacável no declínio da memória foi desmistificada, levando os idosos a perceberem que problemas de memória não ocorrem somente com eles e, ainda, que podem atuar sobre o seu processo de envelhecimento, imprimindo-lhe contornos próprios, e não sofrendo, simplesmente, os efeitos do mesmo. Assim, salientou-se a importância dos fatores comportamentais como codeterminantes da memória e de um estilo de vida saudável para o bom funcionamento da mesma. O reconhecimento da plasticidade cerebral foi acompanhada da apropriação, por parte dos integrantes da oficina, de seu protagonismo quanto ao caminho a trilhar para a promoção de um envelhecimento saudável.

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Colaboradores Os autores participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão, redação e revisão do texto.

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ALMEIDA, M.H.M. ET AL. Taller de memoria para ancianos: estrategia para promoción de la salud. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.271-80, mai/ago 2007. Considerando la importancia de la memoria para el desempeño de las actividades cotidianas y que gran parte de los ancianos refieren quejas de memoria, fue elaborada una propuesta de taller de entrenamiento de memoria para la promoción de la salud de la población. El taller fue ofrecido en 2004 a ancianos que fueron entrevistados y sometidos al “Mini examen del estado mental”. Desarrollado en diez sesiones, trató sobre estrategias para el buen desempeño de la memoria. Los resultados fueron considerados para 45 ancianos evaluados después del taller. El parámetro de evaluación considerado fue la reducción de quejas de memoria que fueron referidas al final del taller. Este posibilitó la identificación de las reales dificultades y la incorporación de nuevos conocimientos. PALABRAS CLAVE: Anciano. Memoria. Entrenamiento de la memoria. Promoción de la salud.

Recebido em 30/03/06. Aprovado em 30/11/06.

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Desenv olvimento e análise de jogo educativ o esenvolvimento educativo par a crianças visando à pr ev enção para prev evenção de doenças par asitológicas parasitológicas Nadima Vieira Toscani 1 Antônio José Duarte Silva Santos2 Leonardo Leiria de Moura da Silva3 Cristian Tedesco Tonial4 Marcio Chazan 5 Adília Maria Pereira Wiebbelling 6 Adelina Mezzari 7 TOSCANI, N.V. ET AL. Development and analysis of an educational game for children aiming prevention of parasitological diseases. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.281-94, mai/ago 2007. The incidence of intestinal parasitological infections among Brazilian children, especially among those from lowincome families, is high. Educational interventions can encourage actions that help to prevent this type of infection. Additionally, educational games are playful tools that lead students to engage more actively in the learning process. The objective of this study is to evaluate an educational tool for children that teaches them how to avoid intestinal parasitological diseases: a board game developed for this purpose. The game was tested among 98 school children aged 7-13, who took a pre-test before the game and a post-test afterward to measure their knowledge. The post-tests results were significantly better than the pre-test ones. Our data show that overall, after playing the board game, children had a significantly better knowledge of the health habits needed to prevent parasitological infections. Still, some of them had prior knowledge of the content addressed and the older ones tended to have the weakest performance. KEY WORDS: Healht Education. Prevention. Control. Parasitology. Educational game. As crianças brasileiras, sobretudo de famílias de baixa renda, apresentam uma prevalência significativa de parasitoses intestinais. As intervenções educativas podem estimular ações que contribuam para a prevenção deste tipo de infecção. Os jogos educativos são uma ferramenta lúdica que fazem do educando um agente ativo no processo. Foi desenvolvido um jogo de tabuleiro para ensinar hábitos de saúde que promovem a prevenção de parasitoses intestinais. O jogo foi testado em 98 escolares entre sete e 13 anos, aplicando pré e pós-teste. Os resultados do pós-teste foram significativamente superiores aos do pré-teste. Os dados indicam que as crianças que realizaram o jogo apresentaram um acréscimo significativo no conhecimento que possuíam sobre hábitos de saúde que previnem parasitoses intestinais. Todavia, parte dos sujeitos apresentavam conhecimento prévio dos conteúdos abordados, e as crianças mais velhas tenderam a ter um pior desempenho. PALAVRAS-CHAVE: Educação em Saúde. Prevenção. Controle. Parasitologia. Jogo educativo.

Historiadora da Arte; mestre em História, Teoria e Crítica da Arte; acadêmica, sexto ano de Medicina, Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, departamento de Microbiologia e Parasitologia. Porto Alegre, RS. <nadima.toscani@gmail.com> 2 Designer e desenvolvedor multimídia, bacharel em Comunicação Social, BrainWare Tecnologia e Comunicação Interativa. <antonio@brainware.com.br> 3,4,5 Acadêmicos, sexto ano de Medicina, Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, departamento de Microbiologia e Parasitologia. Porto Alegre, RS. <leonardolms@ig.com.br>; <cristiantonial@ig.com.br>; <mchazan@terra.com.br> 6 Enfermeira; bacharel em Comunicação Social; mestre em Saúde Coletiva; professora, disciplina de Parasitologia, Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre. Porto Alegre, RS. <wiebbel@fffcmpa.edu.br> 7 Farmacêutica; doutora em Veterinária; professora, disciplina de Parasitologia, Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre. Porto Alegre, RS. <mezzari@fffcmpa edu.br> 1

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Rua José de Alencar, 1149, apto. 503 Menino Deus - Porto Alegre, RS 90.880-481

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Introdução As parasitoses intestinais são infecções causadas por protozoários (Giardia lamblia e Entamoeba histolytica), platelmintos (Taenia solium, Taenia saginata e Hymenolepis nana) e nematódios (Trichuris trichiura, Strongyloides stercolaris, Enterobius vermicularis, Ascaris lumbricoides, Ancylostoma duodenale e Necator americanus). Esses agentes etiológicos apresentam ciclos evolutivos que contam com períodos de parasitose humana, períodos de vida livre no ambiente e períodos de parasitose em outros animais. A infecção humana é mais comum em crianças, por meio da via oral–fecal, sendo águas e alimentos contaminados os principais veículos de transmissão. As parasitoses intestinais são comuns nas regiões de baixa renda do Brasil. Nos locais com infra-estrutura urbana deficiente, as pesquisas mostram que pelo menos metade das crianças lá residentes encontra-se parasitada (Ferreira, 1994; Santana, 1994). Essas doenças, muitas vezes, são subestimadas pelos profissionais de saúde (Horton, 2003), porém a morbidade a elas associada é significativa, como, por exemplo: as infecções por Enterobius vermicularis causam irritação e distúrbio do sono; as por Giardia lamblia causam náuseas, vômitos, síndrome da má absorção, diarréia e perda de peso; as infecções por Ancylostoma duodenale e Necator americanus acarretam perda de sangue e anemia; e as infecções por Entamoeba histolytica podem causar ulcerações intestinais, diarréia sanguinolenta, obstrução gastrointestinal e peritonite (Kucik, 2004). Além disso, existem evidências demonstrando que as parasitoses intestinais comprometem o desempenho intelectual de escolares (Hadidjaja, 1998). As infecções intestinais por parasitas têm relação com os padrões inadequados de higiene, sendo a habitação e o peridomicílio (praças e escolas) os locais que oferecem maior risco de contaminação. Sendo assim, os cuidados de higiene devem se concentrar nessas áreas, promovendo a integração dos hábitos de saúde individuais e ambientais (Bloomfield, 2001). Medidas simples, como lavagem das mãos e alimentos com água e sabão comum, têm sido eficazes no combate das infecções (Bloomfield, 2001). Luby (2001) realizou uma revisão da literatura a respeito do papel da lavagem de mãos na saúde em países pobres e verificou que, em todos os relatos analisados, programas de educação que promoviam o hábito de lavar as mãos acarretaram uma diminuição significativa na incidência de doenças infecciosas, sobretudo, de diarréias. O uso de calçados tem sido demonstrado, por vários estudos, como método importante na prevenção das parasitoses humanas (Tomono, 2003; Phiri, 2000; Khan, 1979). O cuidado com as unhas também se mostrou como uma estratégia eficaz para essa prevenção (Khan, 1979). A Promoção de Saúde é uma estratégia defendida pela OMS, tendo como componente essencial o estabelecimento de políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento de habilidades pessoais e coletivas visando à melhoria da qualidade de vida e saúde (Sícoli, 2003). Essa ação pressupõe a necessidade de atividades de Educação em Saúde (Sícoli, 2003), importante instrumento

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DESENVOLVIMENTO E ANÁLISE DE JOGO EDUCATIVO...

para a garantia de melhores condições de saúde. Por meio da Educação em Saúde constrói-se o conhecimento que permite o exercício pleno da cidadania (Schall, 1994). Esta aplicação é fundamental para as crianças, pois ajuda a desenvolver nelas a responsabilidade perante o seu próprio bemestar, a praticar hábitos saudáveis e contribuir para a manutenção de um ambiente são. Para que isso ocorra, é importante que o processo educativo não se dê de maneira impositiva, mas de forma adequada a suas capacidades cognitivas, num ambiente prazeroso, propiciando uma relação direta entre os conteúdos e o seu dia-a-dia (Schall, 1994). A Educação em Saúde no controle das parasitoses intestinais tem se mostrado uma estratégia com baixo custo capaz de atingir resultados significativos e duradouros (Asolu, 2003). Este tipo de intervenção é recomendado tanto em populações com endemicidade alta ou baixa (Phiri, 2000). Asolu (2003) relata que as práticas educativas se mostram tão eficazes quanto o saneamento básico, sendo superiores ao tratamento em massa a longo prazo. No Brasil, estão descritas várias experiências bemsucedidas de educação para prevenção de doenças parasitológicas (Guilherme, 2002; Vasconcelos, 1998; Melo, 1992). Contudo, esta ainda aparece marginalizada, não constituindo um campo de atuação efetiva do SUS, a despeito iniciativas neste sentido, como a criação do Departamento de Gestão da Educação em Saúde, que vem incentivando práticas do gênero sem, contudo, obter grande repercussão (Albuquerque, 2004). Entre as atividades educativas propostas para a prevenção de doenças parasitológicas destaca-se o uso do jogo educativo. O ambiente lúdico do jogo é um espaço privilegiado para a promoção da aprendizagem. Nele o participante enfrenta desafios, testa limites, soluciona problemas e formula hipóteses (Fontoura, 2004). O indivíduo brinca não para se tornar mais competente, mas devido a uma motivação intrínseca à própria atividade (Fontoura, 2003). Todavia, a associação do jogo à aprendizagem traz consigo o problema do direcionamento da brincadeira em termos de intencionalidade e produtividade. No jogo pedagógico, a intenção torna-se explícita, chegando a constituir o objetivo principal da interação. Desta forma, é importante que ele busque o equilíbrio entre a função lúdica e pedagógica, conciliando a liberdade típica dos jogos e a orientação própria dos processos educativos (Kishimoto, 2003). Jogar é uma atividade paradoxal: ao mesmo tempo livre, espontânea e regrada. É uma maneira de apropriação de conhecimentos de forma direta e ativa (Fontoura, 2004). Por meio do jogo, a criança dirige seu comportamento, não pela percepção imediata dos objetos, mas pelo significado da situação, havendo uma exigência de interpretação constante. Nesta perspectiva, há uma quebra da sua subordinação ao texto, na medida em que o receptor torna-se um leitor com capacidade interpretativa sobre as mensagens que lhe são oferecidas (Rebelo, 2001). Assim, o jogo ensina a interpretar regras, papéis, argumentos e ordens. O uso de jogos e estratégias lúdicas para atingir objetivos de educação em saúde mostrou ser uma ferramenta útil e de boa receptividade por parte de escolares (Araújo, 2001; Schall, 2000). Mello (1992) mostrou que experiências de educação para a profilaxia de parasitoses, que valorizem

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expressões criativas (como o desenho), conseguem estreitar uma participação mais ativa da população. Torres (2003), que usou o jogo em um trabalho educativo com diabéticos, observou que este recurso leva o indivíduo a refletir sobre a adoção de um estilo de vida saudável, bem como à construção do conhecimento. Embora sejam iniciativas reconhecidas, freqüentemente as estratégias educativas não passam da superfície do problema e não repercutem na alteração de hábitos de vida da população. Na maioria das vezes, constituem formas de comunicação unidirecional, na qual o educando apenas recebe conteúdos, não tendo seu conhecimento reconhecido (Schall, 1994). Ayres (2002) afirma que não se pode esperar que a simples transmissão de uma informação modele o educando à vontade do educador. Apesar de os jogos levarem à apropriação de conhecimentos de forma direta e ativa, estes são sempre recursos limitados pelo substrato cultural, posição social e subjetividade do usuário (Rebelo, 2001). Assim, o jogo por si só não é suficiente na educação em saúde. Embora favoreça a aquisição e prática dos conteúdos, em geral não abarca a complexidade dos diversos fatores que irão determinar os comportamentos frente aos hábitos de saúde (Rebelo, 2001). Muitas vezes, ele se choca com hábitos internalizados ou é incompatível com as condições materiais de existência das populações em questão (Schall, 1994). Entretanto, as aquisições de conhecimento mediadas pelos jogos podem se constituir no primeiro passo para a geração de novas atitudes de prevenção, à medida que suas ações estejam associadas a políticas socioeconômicas e ambientais que favoreçam esta mudança. Tendo essas considerações em vista, o presente trabalho se propôs a avaliar o uso do jogo de tabuleiro como estratégia educativa, já que se trata de um dispositivo bastante acessível, devido ao baixo custo, e muito apreciado pelo público infantil. Em particular, o jogo foi aplicado na aprendizagem de medidas profiláticas nas parasitoses intestinais em escolares de sete a 13 anos. Procedimentos metodológicos Confeccionou-se um jogo de tabuleiro direcionado ao público infantil de sete a 13 anos (figura 1). Esse jogo apresenta uma finalidade educativa e engloba várias situações onde são simuladas as principais medidas preventivas de infecções parasitárias intestinais. Utilizou-se uma apresentação visual rica e atrativa, com várias mensagens espalhadas em seu contexto (cada mensagem escrita é acompanhada de um ícone gráfico). Foram escolhidos quatro hábitos de saúde relacionados com a profilaxia das parasitoses intestinais como meta de ensino: lavagem de mãos, lavagem de alimentos, corte de unhas e uso de calçados. Os textos utilizados para explicar estas atividades são simples e breves, sendo discriminados diversos fatos ocorridos no dia-a-dia das crianças, bem como suas conseqüências. A idéia central do jogo é ilustrar um dia na vida da criança, com representação de sua casa, sua escola e a praça onde brinca. Neste contexto, as diversas situações do cotidiano, onde se fazem necessárias as medidas básicas de higiene, são exploradas como elementos motivadores para a evolução e o seguimento do jogador na partida.

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Figura 1. Tabuleiro do Jogo da Saúde.

Inscrições nas casas amarelas, com atividade na ordem em que aparecem: você colocou o calçado, jogue outra vez; você cortou as unhas, ande uma casa; pisou no cocô de cachorro, volte três casas para limpar o sapato; você pegou uma carona com um amigo de bicicleta, vá para a porta da escola; você foi ao banheiro e não lavou as mãos, fique uma rodada de castigo; você lavou as mãos, jogue outra vez; você recebeu um panfleto ensinando a lavar os alimentos, ande duas casas; você ensinou seu amigo a lavar as mãos antes de comer, jogue outra vez; você ensinou seu primo a andar sempre calçado, ande uma casa; você ganhou um sabonete para lavar as mãos, jogue outra vez; você se contaminou na caixa de areia, volte três casas para lavar as mãos; você lavou o alimento antes de comer, jogue outra vez. Inscrições nas casas alaranjadas da decisão saudável, na ordem em que aparecem: você pegou uma maçã na árvore, escolha uma carta da decisão saudável; seus amigos o convidaram para caçar girinos no esgoto, escolha uma carta da decisão saudável. Inscrições nas casas cor de rosa: carta surpresa.

O tabuleiro do jogo foi confeccionado nas medidas 59,4 cm por 42,0 cm, correspondendo a uma folha A2. Foram usados, como peças, pequenos bonecos com 5,0 cm de altura, representando meninos e meninas. O jogo compõe-se de 53 casas, pelas quais os jogadores vão passando de acordo com o resultado obtido nos dados e na seqüência determinada pelo texto contido nelas. A vitória é conquistada pelo participante que primeiro percorrer todas as etapas do jogo. A partida começa na área referente à residência da criança, onde estão representadas as atividades de colocar o calçado e cortar as unhas. O trajeto segue em direção à escola, onde a criança passa pela tarefa de lavar as mãos. Na seqüência, o jogador se dirige à praça, onde se aborda a questão de lavar os alimentos. Nos trajetos de deslocamento, aparecem situações como conversas entre amigos e distribuição de panfletos, onde são abordados novamente os quatro hábitos de saúde. Além disso, estão presentes quatro casas de Carta Surpresa (figura 2), onde se deve retirar uma carta em que aparecem os quatro hábitos de saúde, sendo o jogador premiado com o avançar de casas. Também está presente o ato de andar descalço, que é considerado uma infração, e punido com retrocesso no trajeto do jogo. Outro recurso utilizado como elemento motivador é a carta Escolha Saudável (figura 3), onde são apresentadas situações em que o participante deve optar por tomar uma decisão saudável – lavar o alimento antes de comê-lo – ou uma não saudável – ir brincar na sarjeta. Se o jogador optar pela decisão saudável, será recompensado avançando algumas casas, caso contrário, ele retrocederá no jogo.

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Figura 2. Conjunto de cartas surpresa.

Figura 3. Conjunto de cartas da decisão saudável.

Uma versão inicial do jogo foi submetida a um teste piloto em uma Feira de Saúde realizada em agosto de 2003, onde crianças entre sete e treze anos foram convidadas a jogar. Nessa ocasião, foram realizaram quatro partidas com quatro jogadores cada (n=16), orientados por um acadêmico de medicina. A atividade foi observada pelos autores, verificando-se o tempo de duração e o grau de dificuldade. O teste permitiu observar que um jogo muito extenso (86 casas a serem percorridas) torna-se cansativo para as crianças e que estas tinham baixa tolerância a frustrações proporcionadas por retrocessos no jogo (quatro casas e duas cartas que implicavam hábitos não saudáveis tinham caráter punitivo). Dessa forma, confeccionou-se uma nova versão, e reduzindo-se o número de casas para as 53 finais. Além disso, reduziram-se os elementos de caráter punitivo para dois – o pisar no cocô de cachorro e a carta andar descalço.

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A versão final do jogo foi aplicada em crianças que freqüentaram a Feira de Saúde da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre – uma atividade de extensão promovida por essa faculdade e o Rotary Clube Leste de Porto Alegre, onde são desenvolvidas atividades de prevenção e promoção da saúde em escolas estaduais e municipais de ensino fundamental e médio, localizadas em bairros menos favorecidos de Porto Alegre. Nas feiras, alunos do curso de Medicina desempenham diversas atividades de cunho educacional e preventivo, organizadas pelas disciplinas desse curso em bancas temáticas. Cada banca temática está voltada para uma questão de saúde que lhe é afim, por exemplo: a disciplina de Ginecologia e Obstetrícia presta orientações em relação à autopalpação das mamas, a necessidade da coleta anual do citopatológico, entre outras atividades. A primeira banca em que todos os participantes da feira passam faz um cadastramento dos mesmos e fornece uma ficha com o itinerário de bancas que cada um deve seguir de acordo com o sexo e idade. Ao passar pelas bancas, cada indivíduo tem sua ficha marcada para não passar duas vezes na mesma. Ao sair da feira a ficha é recolhida. As disciplinas de Parasitologia e de Microbiologia têm uma banca comum, voltada ao público infantil, para onde são encaminhadas crianças entre sete e treze anos. A banca é montada dentro de uma sala de aula, onde se divide o espaço para serem realizadas três atividades, a saber: leitura de história sobre pediculose - usando um bloco com ilustrações em grandes dimensões; demonstração da presença de bactérias no corpo humano - mediante a utilização de placas de petri contendo colônias semeadas a partir de secreções corporais das crianças e, por fim, o jogo da saúde aqui descrito. À porta da sala um monitor organizava as crianças em grupos de oito por vez. Essas entravam na sala e eram conduzidas conforme o roteiro correspondente às atividades propostas. A seqüência correspondia, primeiramente, à execução do pré-teste, depois, as crianças ouviam uma historinha e, em seguida, jogavam o jogo da saúde. Posteriormente, eram encaminhadas para a atividade das placas de petri e, por fim, realizavam o pós-teste. Durante a realização do jogo, o grupo de oito crianças era dividido em dois grupos, que jogavam, simultaneamente, em tabuleiros diferentes. Nesse itinerário, algumas crianças desistiam da atividade e pediam para sair. Se a criança saía, não voltava a entrar na sala e não era incluída na amostra do estudo. Em média, o pré-teste tinha lugar dez minutos antes da realização do jogo, e o pós-teste dez minutos após o término da atividade. Os pré-testes foram aplicados com o objetivo de medir o grau de conhecimento dos sujeitos em relação à profilaxia das infecções parasitárias intestinais antes da realização do jogo. Já o pós-teste media o conhecimento adquirido com a atividade. Foram utilizados questionários iguais tanto no pré-teste quanto no pós-teste (figura 4). Esse instrumento constava de oito hábitos que deveriam ser classificados como sendo, ou não, hábitos de saúde. Os hábitos apresentados foram: roer as unhas, lavar os alimentos, pintar as unhas, lavar as mãos, cortar as unhas, espremer espinha, colocar calçado e caçar girinos. A cada afirmativa, correspondia um desenho respectivo, e a criança era solicitada a marcar apenas as atividades que

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correspondessem aos hábitos de saúde. As Feiras de Saúde, onde se desenvolveram os testes do jogo, foram realizadas nos meses de setembro, outubro e novembro de 2003 e em abril de 2004. Após essas experiências, o jogo continuou sendo utilizado, mas sem a realização seqüencial de pré e pós-teste. A aplicação do jogo foi feita com a supervisão de, pelo menos, um monitor da disciplina de Parasitologia e, a cada partida, quatro crianças participavam. Antes do início das partidas, eram explicadas as regras e objetivo do jogo, sempre salientando que a atividade visava demonstrar a importância dos hábitos de saúde. A faixa etária escolhida foi de crianças maiores de sete anos – pois deveriam ser alfabetizadas – e menores de treze anos. Cada jogo durou em média vinte minutos, sendo realizadas 25 partidas nas quatro Feiras de Saúde já citadas. Os procedimentos empregados respeitaram os critérios éticos da comissão sobre experimentação humana (institucional) e a Declaração de Helsinki de 1975, com emenda de 1983. Os resultados do pré-teste e do pós-teste foram analisados estabelecendose as médias e desvios padrão, e a comparação entre eles foi feita por meio do Wilcoxon matched pairs signed-ranks test.

Figura 4. Questionário usado no pré-teste e no pós-teste.

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Resultados Participaram do estudo 46 meninos e 52 meninas, num total de 98 crianças com idades entre sete e treze anos e escolaridade entre a primeira e a sexta série do ensino fundamental. O percentual de acertos está representado na tabela 1. As perguntas que menos ofereceram dificuldade, tanto no pré-teste quanto no pós-teste, foram: a quarta (99% de acerto no pré-teste e 100% de acerto no pós-teste); a quinta (93,9% de acerto no pré-teste e 100% de acerto no pós-teste) e a oitava (93,9% de acerto no pré-teste e 100% de acerto no pós-teste). Essas perguntas correspondiam aos hábitos de lavar as mãos, cortar as unhas e não caçar girinos, respectivamente. Por outro lado, as perguntas que mais induziram ao erro em ambos os testes foram: a terceira (63,3% de acerto no pré-teste e 85,7% de acerto no pós-teste) e a sexta (71,4% de acerto no préteste e 96,9% de acerto no pós-teste). Estas últimas referem-se aos hábitos de pintar as unhas e espremer espinhas. Tabela 1. Percentual de acertos para cada questão no pré-teste e no pós-teste. Questões Pré-Teste Pós-Teste

01 92,65% 98,98%

02 91,84% 100%

03 63,26% 85,71%

04 98,98% 100%

05 93,88% 100%

06 71,43% 96,94%

07 79,59% 98,98%

08 93,88% 100%

Quanto ao hábito de pintar as unhas, as meninas (68% no pré-teste e 92,3% no pós-teste) tiveram uma maior percentagem de acerto do que os meninos (60,8% no pré-teste e 78,3% no pós-teste). Muitas crianças já apresentavam algum conhecimento prévio sobre as questões do jogo. Isso foi verificado em um total de 23 crianças, correspondendo a 22,47% delas, as quais, logo no pré-teste, acertaram todas as questões. As crianças mais jovens tinham menor domínio dos tópicos abordados, em relação às mais velhas – observou-se que 9,1% das crianças de sete anos, 10,0% das crianças de oito anos, 20,0% das crianças de nove anos, 28,6% das crianças de dez anos, 40,9% das crianças de 11 anos, 37,5% das crianças de 12 anos e 12,5% das crianças de 13 anos acertaram totalmente o pré-teste. Constatou-se que o desempenho variou de acordo com o sexo, sendo discretamente superior nas meninas, conforme apresentado no gráfico 1. A tabela 2 mostra a relação entre as idades das crianças e a média de acertos nas questões, e o gráfico 2 mostra as percentagens de acerto nos testes nas diversas faixas etárias. Verificou-se que, de um modo geral, as crianças mais velhas obtiveram maior número de acertos do que as crianças mais novas. Observou-se, também, que as médias de acerto no pré-teste variaram mais entre as idades, enquanto as médias de acerto nos pós-testes tenderam a ser mais próximas. No pré-teste (variação da média de acertos de 1,63), verificou-se que houve uma diferença 4,36 vezes maior do que no pós-teste (variação da média de acertos de 0,37). Outro dado a ser enfatizado é a queda no desempenho das crianças de 13 anos.

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Ao se comparar os acertos entre o pós-teste (7,81±0,40) e o pré-teste (6,75±1,03), usando o Wilcoxon matched pairs signed-ranks test, observouse diferença significativa correspondente a um p < 0,001. Tabela 2. Médias de acerto por crianças de cada idade no pré-teste e no pós-teste. Pré-Teste 5,64 + 0,45 6,30 + 1,03 6,67 + 0,97 7,14 + 0,66 7,27 + 0,77 7,25 + 0,71 7,00 + 0,53

Idade 07 08 09 10 11 12 13

Pós-Teste 7,79 + 0,19 7,75 + 0,44 7,87 + 0,35 7,86 + 0,36 7,82 + 0,39 8,00 7,62 + 0,52

% de acertos 100 90 80 70 60 50 40 30 20 Gráfico 1. Gráfico representando as médias de acertos obtidos por meninos e meninas no préteste e no pós-teste.

10

Idades

7

8

9

Pré-teste

10

11

12

13

Pós-teste

nº de acertos MENINOS

MENINAS

08 07 06 05 04 03 02 01

Pré-teste

290

Pós-teste

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Gráfico 2. Gráfico representando a porcentagem de acertos no pré-teste e no pós-teste por faixa etária.


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Discussão O jogo de tabuleiro obteve grande aceitação por parte do público infantil ao qual foi destinado. Observou-se, em todas as feiras, uma grande procura por parte dos estudantes, muitos dos quais ficavam esperando sua vez de jogar. Analisando as respostas das crianças para o pré-teste e o pós-teste, verificou-se que os conhecimentos mais consolidados entre elas são os hábitos de lavar as mãos e de cortar as unhas. Estes dados não são incomuns, pois os hábitos em questão são bastante difundidos e constituem noções básicas de higiene. Por outro lado, o caçar girinos é um hábito totalmente incomum e pode ser, por isso, facilmente identificado como uma alternativa errada. As questões que ofereceram mais dificuldade foram as referentes a pintar as unhas e a espremer espinhas. O hábito de espremer espinhas é bastante difundido. Pintar as unhas é uma prática associada ao bem-estar e ao cuidado pessoal, o que facilmente pode ser confundida com hábito de saúde. Cabe ressaltar que não foi realizado nenhum estudo prévio da realidade das crianças para as quais o jogo se destina. Embora a escolha dos hábitos de saúde promovidos pelo jogo tenha sido feita com base em trabalhos científicos, as alternativas erradas dos testes foram concebidas pelos autores de forma intuitiva. Isso veio a constituir uma limitação, pois somente a partir das práticas reais de higiene infantil, e tendo em vista as condições materiais de vida delas, poderia se elaborar adequadamente o elenco de alternativas para os testes. Sendo assim, as alternativas devem ser reelaboradas após um levantamento da realidade dos alunos. No tangente aos resultados dos pré-testes, identificou-se uma grande incidência de acertos totais. Este é um fato positivo e indica que muitas crianças já tinham conhecimento a respeito dos hábitos de saúde. Foi verificado também que as mais jovens tinham menos conhecimentos, mas logo após participarem das atividades foram capazes de assimilar totalmente o conteúdo apresentado. Os maiores percentuais de acerto no pré-teste foram encontrados nas crianças de 11 e 12 anos. Este fato pode estar associado à abordagem dos hábitos de saúde e higiene no quarto ciclo do ensino fundamental (Secretaria de Educação Fundamental, 1998). Outro resultado obtido refere-se ao declínio do rendimento que aparece a partir dos doze anos. Este fato pode sugerir que as estratégias que envolvem o Jogo da Saúde são mais indicadas para crianças entre sete e onze anos. Esta faixa etária corresponde ao período operatório concreto, descrito por Piaget (Biaggio, 1976). Nessa fase, as crianças têm aptidões e interesses particulares, sendo capazes de relacionar diferentes aspectos e abstrair dados da realidade. Elas não se limitam a uma representação imediata, mas ainda dependem do mundo concreto para chegar à abstração. Assim, as dicas visuais são muito pertinentes para que elas possam interiorizar os conceitos de saúde abordados. Por outro lado, muitas das crianças mais velhas, que pertencem a outro estágio de desenvolvimento, não aproveitam tanto esse tipo de atividade. Daí, encontrarmos uma queda no desempenho dos escolares de treze anos, pois o jogo se mostrou muito elementar para eles. Não foram encontradas diferenças significativas entre o aproveitamento

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dos meninos e das meninas, o que evidenciou o fato de que o jogo mostra-se indicado para ambos os gêneros. A análise dos resultados demonstra que o Jogo da Saúde é adequado para a aquisição do conteúdo relativo aos hábitos de saúde propostos, sobretudo, quando empregado com crianças entre sete e onze anos, onde se observa um melhor desempenho dos participantes. Ele segue alguns preceitos descritos por Abrams (1979). O Jogo da Saúde busca representar atividades que os autores consideram ser familiares ao público infantil, embora não tenha sido dirigido um estudo específico nesse sentido. Ao abordar questões como lavar as mãos após o uso do banheiro e lavar uma fruta antes de ingeri-la, retrata situações que, provavelmente, a criança conhece. Isto facilita a aquisição do conhecimento, pois estabelece uma conexão entre a atitude de lavar, ou não, as mãos após o uso do banheiro, que tem lugar na vida real, e a representação expressa no jogo. Além disso, o jogo possibilita a tomada de decisões, o que ocorre nas casas Decisão Saudável. Antes de cair nessa casa, a criança já vislumbrou quais são os reais hábitos de saúde abordados, pois estes estão vinculados a prêmios ou penalidades. Ao cair na casa Decisão Saudável, lhe é oferecida a chance de escolher. Desta forma, a criança é tomada como indivíduo independente, capaz de tomar decisões baseadas nas informações anteriormente abordadas. Por fim, é importante valorizar o fato de que essa ação promove a interação social e o entretenimento. Esses fatores tornam a atividade mais dinâmica, agradável, e o desafio em si constitui um ponto de interesse particular. Nesse contexto, veicular conhecimento reforça o aprendizado por prender mais a atenção dos sujeitos (Fontoura, 2004; 2003; Schall, 1994). Estudos anteriores (Asolu, 2003; Phiri, 2000) demonstram que o aprendizado de hábitos profiláticos de saúde, como os abordados pelo Jogo da Saúde, diminui a prevalência de infecções e, conseqüentemente, os gastos com atendimento médico. Assim, pode-se supor que o Jogo da Saúde também seja capaz de contribuir para esse fim, embora isto não tenha sido mensurado neste estudo. Acredita-se que a Promoção de Saúde, por meio de estratégias educativas, como o Jogo, deve ser enfatizada, buscando, como neste caso, mais controle das infecções intestinais, menos gasto com medicamentos e melhoria na qualidade de vida das crianças. Todavia, para que resultados efetivos sejam alcançados, devem-se promover ações paralelas, que abranjam não somente as crianças, mas também os pais e o restante da comunidade. Para que o jogo não se torne um evento isolado e sem continuidade, é preciso inseri-lo em processos educativos mais abrangentes, com ações continuadas. É também imprescindível que se forneçam estruturas ambientais compatíveis com hábitos de saúde, pois não faz sentido ensinar uma criança a lavar um alimento antes de comê-lo se não houver água potável para fazê-lo. Agradecimentos Os autores agradecem à Direção da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, em especial à Dra. Maria Beatriz Mostardeiro Targa e à Dra. Elizabeth de Carvalho Castro, pelo apoio e pela coordenação nas Feiras de Saúde da FFFCMPA, onde foi possível a realização deste trabalho.

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Colaboradores Nadima Vieira Toscani e Antônio José Duarte Silva Santos criaram e desenvolveram o jogo de tabuleiro sobre o qual versa o artigo. Nadima Vieira Toscani, Antônio José Duarte Silva Santos, Leonardo Leiria de Moura da Silva, Adília Maria Pereira Wiebbelling e Adelina Mezzari participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação e da revisão do texto. Cristian Tedesco Tonial e Márcio Chazan participaram da aplicação do jogo na amostra de crianças e revisão do texto.

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TOSCANI, N.V. ET AL. Desarollo y análisis de juego educativo para niños visando la prevención de enfermedades parasitológicas. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.281-94, mai/ago 2007. Los niños brasileños, sobre todo los de familias de baja renta, presentan una prevalencia significativa de parásitos intestinales. Las intervenciones educativas pueden estimular acciones que contribuyan con la prevención de este tipo de infección. Los juegos educativos son una herramienta lúdica haciendo del aprendiz un agente activo en el proceso. Se desarrollo un juego de tablero donde se enseñaban los hábitos de salud que previenen parásitos intestinales. El juego fue experimentado en 98 escolares entre siete y 13 años, que realizaron una prueba previa y una prueba después del juego. Los resultados de la prueba final fueron significativamente superiores que los de la prueba previa. Los datos revelan que los niños que realizaron el juego presentaron una significativa mejora de conocimiento respecto a los hábitos de salud que previenen parásitos intestinales. Sin embargo, parte de los niños tenían conocimiento anterior de los contenidos abordados y los mayores tendieron a un peor desempeño. PALABRAS CLAVE: Educación en Salud. Prevención. Control. Parasitología. Juego educativo. Recebido em 10/02/06. Aprovado em 18/08/06.

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Avaliação psicológica de crianças acompanhadas em progr ama de atenção programa multiprofissional à obesidade Luceli Kelly de Oliveira Cardoso1 Ana Maria Pimenta Carvalho2

CARDOSO, L.K.O.; CARVALHO, A.M.P. Psychological evaluation of obese children in a multiprofessional program. Educ., v.11, n.22, p.297-312, mai/ago 2007. Interface - Comunic., Saúde, Educ.

This study aimed to describe and analyze the psychological evaluation results of children who attended a Multiprofessional Obesity Care Program offered by the University of São Paulo in 2001 and 2002, at the beginning and the end of the assistance proposed by the program, as well as to analyze these children’s initial and final weight, height and BMI. The subjects were 19 children aged 10 to 12, with a BMI percentile of 95 or higher, who took part in the program. Most children in this study scored within the average range regarding their psychological functioning aspects, which did not change significantly after the program. KEY WORDS: Obesity. Child. Psychology. O objetivo deste estudo foi descrever e analisar os resultados das avaliações psicológicas de crianças atendidas no Programa de Atenção Multiprofissional à Obesidade, da Universidade de São Paulo, nos anos de 2001 e 2002, ao iniciar o atendimento proposto pelo programa e ao final do mesmo. Também foram analisados peso, altura e IMC (índice de massa corpórea) iniciais e finais das 19 crianças participantes do programa. Essas possuíam percentil do IMC igual ou acima de 95 e idades entre 10 e 12 anos. Resultados indicam que a maioria das crianças investigadas encontram-se dentro da média em relação aos aspectos de funcionamento psicológico. Não houve alteração significativa desses aspectos após o trabalho realizado. PALAVRAS-CHAVE: Obesidade. Criança. Psicologia.

Psicóloga; mestranda, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP. <lkolivei@unaerp.br>

1

Psicóloga; doutora em Psicologia; professora, departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP. <anacar@eerp.usp.br>

2

1 Rua São Francisco, 1050 Ribeirão Preto, SP 14.060-090

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Introdução A obesidade tem aumentado de forma significativa em todo o mundo, atingindo todas as faixas etárias, especialmente as crianças. Nos EUA, comparando-se os levantamentos nacionais de 1965 e 1980, constata-se que a obesidade nas crianças de seis a 11 anos aumentou em 67% entre os meninos e em 41% entre as meninas. Atualmente, 25% das crianças americanas são consideradas obesas, e a maioria pertence a classes sociais com menor poder aquisitivo. No Brasil, pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), na década de 1990, constatou que a obesidade infantil atingia 16% das crianças pertencentes às classes sociais mais privilegiadas. Tal configuração, entretanto, tem sido alterada (Monteiro & Conde, 1999). Associam-se à obesidade problemas de saúde, como: diabetes tipo II, problemas de articulação de membros inferiores, hipertensão, entre outros. O excesso de peso é uma das condições precursoras de distúrbios alimentares, que se constituem em desordens mais severas que acometem indivíduos jovens, a partir da adolescência. Essa condição tem múltipla determinação: fatores genéticos, ambientais e comportamentais concorrem para sua instalação e manutenção. No presente trabalho, optou-se por abordar os aspectos psicológicos a ela associados. Em adultos, esse tema tem sido bastante explorado, especialmente porque, nos casos de obesidade grave, há sérios comprometimentos emocionais. Em crianças, o problema tem sido focalizado com menos freqüência, mas já existe um corpo de pesquisas sobre o tema. Hilde Bruch, uma das pioneiras no estudo do impacto psicológico da obesidade na infância, já argumentava, em artigo publicado em 1975, sobre o caráter indesejável dessa condição na infância e, particularmente na adolescência, num contexto social obcecado pela boa forma física (Bruch, 1975). É a insatisfação com a condição de peso excessivo que mobiliza pais a buscarem ajuda para seus filhos. Aliam-se a essa insatisfação com a saúde física as preocupações com a dinâmica emocional da criança. Justifica-se, assim, no contexto de atenção multiprofissional, avaliar crianças quanto ao aspecto psicológico. Uma das vertentes teóricas para essa abordagem é a psicanalítica, em que se investigam as relações criança – mãe – família, mediadas pelo valor simbólico da alimentação (Muller, 1999). Outra vertente é a cognitivo-desenvolvimentista, que busca, a partir da própria criança, acessar as percepções que ela tem de si mesma em diferentes domínios da vida. A operacionalização dessas percepções é feita por meio de instrumentos auto-aplicáveis e de produção gráfica como medida cognitiva e emocional. A opção teórica deste trabalho é a segunda. Buscou-se operacionalizar as variáveis do funcionamento psicológico, relatadas pelos pais das crianças que buscavam ajuda – ansiedade, falta de controle sobre o ato de comer, autoestima e, para complementar, elegeu-se a técnica do desenho da figura humana para avaliar as crianças quanto ao desenvolvimento cognitivo e emocional. Essa operacionalização levou à escolha de instrumentos

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padronizados disponíveis. A incursão bibliográfica mostrou trabalhos realizados com adultos e, com base neste modelo, buscaram-se instrumentos de avaliação infantil que permitissem avaliar os aspectos focalizados. A obesidade está relacionada a fatores psicológicos (como o controle, a percepção de si, a ansiedade, o desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes) e demanda uma investigação sistemática, quando se propõe a construir conhecimentos que possam subsidiar práticas de assistência. A abordagem à percepção das pessoas sobre o controle que exercem em relação a eventos de suas vidas tem sido baseada nas formulações teóricas de Rotter (1966). Este autor propôs o construto locus de controle, no qual são identificadas duas tendências: a interna e a externa. As pessoas com locus de controle interno tendem a localizar em si mesmas o controle, enquanto os externamente orientados tendem a localizar em outras pessoas o controle sobre o que ocorre em suas vidas. Do ponto de vista operacional, a presença desses componentes da personalidade tem sido avaliada por meio de escalas. Estas são instrumentos de auto-relato em que o sujeito lê as alternativas e avalia se concorda ou não com elas e em que grau. Suas respostas são, então, avaliadas e traduzidas em escores. Stotland & Zuroff (1990) verificaram, em muitas pesquisas, uma relação significativa entre locus de controle e perda de peso. Para Rotter (1966), um locus de controle interno é um preditor potencial para sucessos em programas de perda de peso. Contudo, pesquisas posteriores tanto validaram tal afirmação (Ross et al., 1983; Balch & Ross, 1975), quanto há estudos que obtiveram resultados que a contrariaram (Gormally et al., 1980; Tobias & MacDonald, 1977). Entretanto, esses estudos foram realizados com adultos. Sobre crianças não foram encontrados trabalhos que relacionassem locus de controle e obesidade. A auto-avaliação faz parte do processo adaptativo das pessoas. O apreço por si e a percepção que se tem das habilidades e capacidades são construídos com base no contato com as outras pessoas, que fornecem pistas ao indivíduo sobre o seu desempenho. A auto-avaliação é um fenômeno pessoal que ajuda o indivíduo a dirigir seu comportamento. As pessoas carregam consigo um autoconceito positivo ou negativo e atuam em função dele. O que a pessoa pensa sobre si mesma diz muito sobre a satisfação que extrai de sua vida e das atividades que realiza, sendo um fator de risco ou de suporte para sua saúde mental (Bandura, 1986). Os dados da literatura não são conclusivos em relação aos aspectos emocionais relacionados com a obesidade. Alguns discutem que nem todos os obesos têm sentimentos negativos sobre o seu corpo; esses sentimentos seriam mais comuns em pessoas com o início da obesidade na infância, cujos pais e amigos depreciam o seu corpo (Stunkcard & Wadden, 1992). O distúrbio da imagem corporal, que se desenvolveria na adolescência, representa uma internalização da censura dos pais e pares e persiste com a contínua desvalorização. Quando se trata da obesidade, estudos referem-se à imagem corporal mostrando que indivíduos obesos não apreciam seus corpos ou distorcem suas percepções sobre eles (Venturini, 2000; Candy & Fee, 1998). Há relatos

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de sentimentos de menos valia entre adolescentes obesos (Dechen et al., 2000). Entretanto, pouco se tem estudado sobre o autoconceito, que abarca não só a apreciação sobre atributos físicos, mas outros domínios, em crianças obesas. Outro fator bastante citado como presente na dinâmica da personalidade do indivíduo obeso é a ansiedade. Andrade & Gorenstein (1998) afirmam que este é um estado emocional com componentes psicológicos e fisiológicos, que faz parte do espectro normal das experiências humanas, sendo propulsor do desenvolvimento. A ansiedade pode tornar-se patológica quando é desproporcional à situação que a desencadeia, ou quando não existe um objeto específico ao qual se direcione. O estudo sobre a ansiedade do ponto de vista psicológico salienta uma diferenciação quanto à forma com que ela se apresenta – ansiedade-estado e ansiedade-traço. O estado de ansiedade é conceituado como um estado emocional transitório ou condição do organismo humano, caracterizada por sentimentos desagradáveis de tensão e apreensão, conscientemente percebidos, e por aumento na atividade do sistema nervoso autônomo. Os escores de ansiedade-estado podem variar em intensidade de acordo com o perigo percebido e flutuar no tempo (Andrade & Gorenstein, 1998). Já ansiedade-traço, segundo esses autores, refere-se a diferenças individuais relativamente estáveis na propensão à ansiedade, isto é, a diferenças na tendência de reagir a situações percebidas como ameaçadoras, com intensificação do estado de ansiedade. Os escores de ansiedade-traço são menos suscetíveis a mudanças decorrentes de situações ambientais e permanecem relativamente constantes no tempo. Uma outra técnica de fácil aplicação no contexto da avaliação psicológica de crianças é o Teste do Desenho da Figura Humana. A partir da padronização de Hutz & Antoniazzi (1995), com base nos indicadores evolutivos e emocionais descritos por Koppitz (1968), objetivou-se utilizar essa técnica para complementar uma investigação de aspectos do funcionamento psicológico (ou da dinâmica psíquica) que pudessem ser identificados em indivíduos obesos, crianças. Azevedo (2000), comparando os resultados obtidos com a aplicação do Desenho da Figura Humana (DFH) em trinta crianças obesas e trinta crianças não obesas, constatou que as primeiras apresentaram mais indicadores emocionais. Venturini (2000), utilizando o DFH com 15 crianças obesas, verificou que suas produções evidenciaram transtornos no esquema corporal, ansiedade, insegurança, insatisfação consigo mesmas e sinais de agressividade, entre outros. O presente trabalho visou descrever e analisar os resultados das avaliações psicológicas de crianças atendidas no Programa de Atenção Multiprofissional à Obesidade, da Universidade de São Paulo, nos anos de 2001 e 2002. A intenção foi detectar os aspectos do funcionamento psicológico presentes nas crianças, ao iniciar o atendimento proposto pelo programa e ao final do mesmo. O recorte desse funcionamento centrou-se em fatores de personalidade, como: lócus de controle, ansiedade-traço e estado, maturidade emocional e cognitiva e autoconceito.

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Metodologia Participantes Os sujeitos do estudo foram 19 crianças com idades entre dez e 12 anos, no início do atendimento, que chegaram até o final do programa em 2001 e 2002. Os critérios para inclusão no programa foram: 1. a criança estar no percentil igual ou maior que 95, que corresponde à obesidade, segundo critérios da National Center of Health Statistics, Height and Weight of Youth (Must et al., 1991); e 2. não apresentar problemas orgânicos evidentes e/ou alterações no desenvolvimento, como retardo psicomotor e déficits sensoriais. Os participantes procuraram o Programa de Atenção Multiprofissional à Obesidade, da Universidade de São Paulo espontaneamente ou foram encaminhados por enfermeiras do Programa de Saúde do Escolar – PROASE que atuam em escolas públicas da cidade de Ribeirão Preto. Contexto de realização do estudo: programa de atenção multiprofissional à obesidade O programa contava com a participação de diferentes profissionais: nutricionistas, psicólogos, enfermeiros e professor de educação física. Teve início em 1998, com base na iniciativa de um professor de educação física do Centro de Esportes e Recreação do Campus da USP de Ribeirão Preto CEFER, ao qual uniram-se enfermeiros, psicólogos e nutricionistas. Era composto por atividades distribuídas em três dias da semana: exercícios físicos (três vezes por semana); orientação nutricional (uma vez por semana); avaliação psicológica (ao início e final do programa), com entrevistas com as crianças e seus pais. Para aqueles casos em que se identificavam problemas de ordem emocional, fazia-se o encaminhamento para psicoterapia. As atividades eram realizadas nos seguintes locais: Serviço de Psicologia do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto e Centro de Educação Física, Recreação e Esporte (CEFER). O programa contemplava, ainda, com ações de enfermeiros e nutricionistas, visitas às casas e tomada de medidas de peso e altura de todos os membros da família. Mensalmente, eram feitas reuniões com os pais e profissionais para avaliação do andamento do programa e orientações. Outros projetos de pesquisa vinculavam-se a esse programa. O programa tinha a duração de um ano e oferecia um número máximo de vinte vagas. O índice de evasão girava em torno de 40%. Os principais objetivos eram: proporcionar condições para mudança de hábito alimentar e para a prática de exercícios físicos, melhorar o condicionamento físico e não ganhar peso no período. Instrumentos utilizados para a avaliação psicológica No teste do DFH, solicita-se aos sujeitos desenhem, inicialmente, apenas

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uma pessoa inteira. Posteriormente, entrega-se uma nova folha e solicita-se que se desenhe somente uma pessoa do sexo oposto à do primeiro desenho, sendo avaliado apenas o desenho do mesmo sexo da criança. A padronização utilizada para esse teste foi a proposta por Hutz & Antoniazzi (1995), com base no esquema de Koppitz (1968). A Escala de Ansiedade “RCMAS” foi desenvolvida por Reynolds & Richmond (1978) e padronizada por Gorayeb (1994), com o título “O que penso e sinto”. Compõe-se de 28 frases em que o sujeito deve escolher a resposta sim ou não. Este é um instrumento que propõe medir a ansiedade enquanto traço de personalidade. O IDATE-C (Inventário de Ansiedade Traço-Estado, forma C) é constituído de duas escalas do tipo auto-avaliação, que visam medir dois conceitos distintos de ansiedade: a ansiedade-estado (A-Estado) e a ansiedade-traço (ATraço). A escala A-Estado pretende medir estados transitórios de ansiedade, isto é, sentimentos subjetivos, conscientemente percebidos de apreensão, tensão e preocupação, que variam em intensidade e flutuam no tempo. A escala A-Traço mede diferenças individuais relativamente estáveis em susceptibilidade à ansiedade, isto é, diferenças, entre crianças, de tendência a experimentar estados de ansiedade. A escala de A-Estado do IDATE-C consiste de vinte afirmações que pedem que a criança indique como se sente em um determinado momento no tempo. A escala A-Traço do IDATE-C também consiste de vinte itens, mas nessa escala os sujeitos devem responder como geralmente se sentem (Spielberger, 1983). A Escala de Locus de Controle, construída por Milgram & Milgram (1975), e padronizada por Feres (1981), é composta por 24 itens, que retratam situações de sucesso ou fracasso, com alternativas que atribuem o sucesso ou o fracasso totalmente ao outro e aquelas que os atribuem a si mesmo. A Escala Infantil Piers-Harris de Autoconceito – “O que penso e sinto sobre mim mesmo”, originalmente proposta por Piers & Harris (Piers, 1984), foi utilizada na forma traduzida e adaptada por Jacob & Loureiro (1999). Esta escala não tem ainda padronização brasileira e é composta por frases para as quais a criança deve assinalar sim ou não. Procedimentos de coleta de dados Foram obtidas as medidas de altura e peso de cada criança, para o cálculo do IMC, utilizando-se balança portátil e trena. Solicitava-se que a criança ficasse descalça e encostasse em uma parede para que se pudesse medir sua altura. Os dados foram coletados com base nos protocolos das avaliações psicológicas realizadas nos anos de 2001 e 2002. Em cada ano, vinte crianças entraram para o programa, porém, no ano de 2001, dez crianças desistiram e uma não foi considerada na pesquisa, pois tinha idade superior a 12 anos no início do atendimento. No ano de 2002, dez crianças desistiram. Avaliação psicológica No ano de 2001 foram aplicados coletivamente, em nove crianças, três instrumentos em três sessões com duração média de cinqüenta minutos. Os

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instrumentos aplicados no início do atendimento e no final dele foram: Teste do Desenho da Figura Humana; IDATE-C; Escala Infantil Piers-Harris de Autoconceito. No ano 2002 foram aplicados, coletivamente, em dez crianças, quatro instrumentos em quatro sessões com duração média de cinqüenta minutos. Os instrumentos aplicados no início do atendimento e no final dele foram: Teste do Desenho da Figura Humana; Escala de Ansiedade “O que penso e sinto”; Escala de Locus de Controle para crianças; Escala Infantil Piers-Harris de Autoconceito. Análise dos dados Os resultados das avaliações psicológicas aplicadas nos programas dos anos de 2001 e 2002 foram analisados de acordo com as normas de padronização dos instrumentos utilizados. Após essa análise, foi feita comparação dos resultados obtidos no início e no final do atendimento realizado em cada ano. A comparação dos dados iniciais e finais foi feita por meio do teste não paramétrico – T de Wilcoxon (Siegel, 1975). Resultados Os resultados das avaliações são apresentados considerando-se, para os instrumentos padronizados, a distribuição das crianças dos dois grupos em relação aos valores médios, abaixo e acima da média. Para o instrumento de avaliação do autoconceito, considera-se o valor de mediana obtida, uma vez que não há padronização brasileira. Apresentação dos valores de mediana, mínimo e máximo dos escores da Escala Infantil Piers-Harris de Autoconceito, para cada turma A Tabela 1 mostra os valores de mediana, mínimo e máximo dos escores da Escala Piers-Harris de Autoconceito para os anos de 2001 e 2002. Embora estatisticamente não tenha sido verificada diferença, observa-se que, em 2002, houve uma maior dispersão entre os escores obtidos. O escore total deste teste é oitenta e, quanto maior o escore, melhor é o autoconceito da criança.

Tabela 1. Valores de mediana, mínimo e máximo dos escores da Escala Infantil Piers-Harris de Autoconceito para as duas avaliações realizadas em cada turma. Ano

no sujeitos

Avaliação

Mediana

Mínimo e Máximo

2001

n = 08

2002

n =10

1ª 2ª 1ª 2ª

57,5 61 52 49

40-76 41-79 34-75 28-78

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Distribuição dos participantes em relação à avaliação dos instrumentos: Inventário de Ansiedade Traço-Estado (IDATE-C); Escala de Ansiedade “O que Penso e Sinto”; Escala de Locus de Controle; Desenho da Figura Humana Tabela 2. Distribuição dos participantes com relação aos percentis do Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Idate-C) para as duas avaliações realizadas em 2001. Ano de 2001 (n = 9) Percentis < 25 25 < P < 75 > 75

Ansiedade Estado 1ª Avaliação 2 6 1

2ª Avaliação 3 3 3

Ansiedade Traço 1ª Avaliação 3 5 1

2ª Avaliação 1 6 2

Na Tabela 2, conforme os resultados obtidos no IDATE-C, pode-se dizer que, em média, essas crianças não apresentam níveis altos de ansiedade Estado e Traço.

Tabela 3. Distribuição dos participantes com relação à avaliação por sexo/idade da Escala de Ansiedade “O que Penso e Sinto” para as duas avaliações realizadas em 2002. Ano de 2002 (n = 10) Avaliação Sexo/Idade Abaixo Média Acima

1ª Avaliação 1 8 1

2ª Avaliação 4 3 3

Os resultados exibidos na Tabela 3, em relação à Escala de Ansiedade “O que penso e sinto”, mostram que, na primeira avaliação, em média, essas crianças não apresentaram níveis altos de ansiedade traço, que é o tipo de ansiedade que o instrumento se propõe a medir. Na segunda avaliação, mais

Tabela 4 . Distribuição dos participantes com relação à avaliação por sexo/série da Escala de Locus de Controle para as duas avaliações realizadas em 2002. Ano de 2002 (n = 09) Avaliação Sexo/Série Interno Média Externo

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1ª Avaliação 2 7 0

2ª Avaliação 2 7 0

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crianças apresentaram níveis de ansiedade abaixo e acima da média. Na Tabela 4, conforme os resultados obtidos na Escala de Locus de Controle, observa-se que a maior parte das crianças está na média, havendo um equilíbrio entre o Locus de Controle Interno e o Externo. Tabela 5. Distribuição dos participantes com relação aos percentis dos Indicadores Emocionais do Desenho da Figura Humana (DFH) para as duas avaliações realizadas nas turmas de 2001 e 2002. Ano de 2001 (n = 9)

Ano de 2002 (n = 10)

Percentis

1ª Avaliação

2ª Avaliação

1ª Avaliação

2ª Avaliação

< 25 25 < P < 75 > 75

0 7 2

2 7 0

2 7 1

3 7 0

Observa-se na tabela 5 que a maior parte das crianças dos dois grupos situa-se na média em relação aos Indicadores Emocionais do DFH.

Tabela 6. Distribuição dos participantes com relação aos percentis dos Indicadores Evolutivos do Desenho da Figura Humana (DFH) para as duas avaliações realizadas nas turmas de 2001 e 2002. Ano de 2001 (n = 9)

Ano de 2002 (n = 10)

Percentis

1ª Avaliação

2ª Avaliação

1ª Avaliação

2ª Avaliação

< 25 25 < P < 75 > 75

0 6 3

0 5 4

1 9 0

2 6 2

Na Tabela 6, a maior parte das crianças dos dois grupos situa-se na média em relação aos Indicadores Evolutivos do DFH. Comparações entre as primeiras e as segundas avaliações de cada instrumento das duas turmas (medidas globais) Ano de 2001 Foi utilizado o Teste T de Wilcoxon para a análise de diferenças entre os resultados da primeira aplicação e da segunda aplicação de cada um dos instrumentos. Com relação aos escores obtidos por meio da Escala Infantil Piers-Harris de Autoconceito, do Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Idate-C), do Desenho da Figura Humana (Indicadores Emocionais e Evolutivos), não foram verificadas diferenças estatisticamente significativas (p> 0,05).

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Ano de 2002 Foi utilizado o Teste T de Wilcoxon para a análise de diferenças entre os resultados da primeira aplicação e da segunda aplicação de cada um dos instrumentos. Com relação aos escores obtidos por meio da Escala Infantil Piers-Harris de Autoconceito, da Escala de Ansiedade “O que penso e sinto”, da Escala de Locus de Controle e do Desenho da Figura Humana (Indicadores Emocionais e Evolutivos), não foram verificadas diferenças estatisticamente significativas (p> 0,05). Discussão No contexto do Programa de Atenção Multiprofissional à Obesidade, da Universidade de São Paulo, buscou-se identificar a ocorrência ou não de alterações nas medidas das variáveis psicológicas ao término do programa. Nas análises das variáveis psicológicas avaliadas no presente estudo (como ansiedade, locus de controle, autoconceito, maturidade mental e emocional), verificou-se que a maior parte das crianças obesas, deste estudo, teve resultados dentro da média. A avaliação psicológica de algumas variáveis - tais como controle, ansiedade e desenvolvimento emocional -, e a indicação de que a maior parte das crianças situa-se dentro da faixa dos escores médios, assemelha-se ao resultado encontrado em outro estudo com outro grupo de crianças inscritas no mesmo programa de assistência. Nele não foram identificadas diferenças entre crianças obesas e crianças de modo geral, utilizando-se os parâmetros normativos dos testes utilizados (Carvalho et al.,2001). Outro estudo comparando crianças obesas e não obesas, de amostras de escolares, quanto a maturidade emocional, autoconceito, locus de controle e ansiedade, também não encontrou diferenças significativas entre elas (Cataneo et al., 2005). Com relação à auto-estima, Strauss (2000) também não encontrou diferenças entre obesos e não obesos na faixa etária de nove a dez anos. As diferenças em relação a essa avaliação fizeram-se presentes em indivíduos de 13 e 14 anos. Parece haver uma tendência evolutiva nesse aspecto, condizente com os dados de Harter (1993) relativos a decréscimo na autoestima na adolescência devido a maior alerta quanto à comparação social. Santos & Cardoso (1999/2000) apontam que, na fase da adolescência, surgem outros interesses e expectativas. Os adolescentes obesos ficam mais incomodados que quando crianças, com os problemas que ocorrem na compra de roupas; mostram mais preocupação com a aparência e incomodam-se com os apelidos que despertam sentimentos de mágoa e revolta. Sentem-se feios e apresentam baixa auto-estima. Quanto à avaliação de crianças em tratamento, não foram encontrados trabalhos que focalizassem as variáveis do presente estudo, com medidas antes e depois. Há estudos mostrando que crianças que estão em tratamento devido à obesidade apresentam maiores indícios de problemas comportamentais, autoconceito mais baixo e são mais ansiosas (Luiz, 2004; Braet et al., 1997).

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Tais resultados contradizem os de outros estudos e pode-se atribuir as diferenças a fatores como nível social e, mesmo, faixa etária. Conforme a revisão feita por Zametkin et al. (2004), os estudos sobre auto-estima em crianças obesas reportam resultados inconsistentes. Muitos indicam que crianças e adolescentes obesos têm, moderadamente, mais baixa auto-estima que seus correspondentes não obesos. Entretanto, outros estudos não revelam diferenças na auto-estima entre crianças obesas e não obesas. Os resultados do presente estudo somam-se a outros do mesmo grupo de pesquisa, ao de Strauss, já citado, e ao de Lau et al. (2004), com crianças chinesas de 7 a 13 anos, no qual o autoconceito físico e o autoconceito global não pareceram ser afetados pelo tamanho corporal. Em outro estudo realizado por Carvalho et al. (2005), verificou-se que as crianças obesas estudadas apresentaram um conceito de seus corpos que não foi totalmente negativo, tenderam a concordar com afirmações positivas sobre certas características, como ter olhos bonitos, um rosto agradável, ser bonito, e, mesmo, outras características, como julgar que os companheiros apreciam suas idéias. No presente trabalho, visto que não há normas brasileiras para o instrumento de avaliação do autoconceito, verifica-se um resultado um pouco abaixo daquele verificado em outros grupos, para a turma de 2002. Entretanto a variação individual é grande, como mostram os valores mínimo e máximo. Verifica-se, ainda, comparando-se os grupos de 2001 e 2002, que os valores de mediana deste último ano são inferiores e que as crianças de 2001 tiveram um ligeiro aumento e as crianças de 2002 uma leve diminuição. Com relação à maturidade emocional e cognitiva, a maior parte das crianças do presente estudo teve resultados dentro do esperado para sua idade. Pode-se inferir que se assemelham, nessas avaliações, a crianças não obesas. A condição de obesidade não está associada a uma freqüência maior de sinais indicativos de imaturidade cognitiva e nem de sinais indicativos de vulnerabilidade emocional. Este resultado difere do de Azevedo (2000). Entretanto, é necessário esclarecer que essa pesquisadora estudou crianças de outra faixa etária (de sete a 12 anos), o que pode ter contribuído para diferenças entre os resultados dos dois estudos. A conclusão geral relativa a esses resultados é que, diferentemente do que foi encontrado por Azevedo, não há um prejuízo maior nos resultados apresentados pelas crianças obesas em relação aos seus pares representados pelas normas de padronização do instrumento. Quanto à ansiedade, tanto medida pelo Idate-C, quanto pelo O que penso e sinto, observou-se, na segunda avaliação, aumento de crianças no percentil acima de 75 e/ou acima da média. Esses dados, complementados pela migração de crianças dos dois grupos para o percentil abaixo de 25, nos indicadores emocionais do DFH, fazem supor que, por estarem inseridas num programa dessa natureza, haja indícios de sofrimento psicológico decorrente de uma pressão percebida para mudança de hábitos alimentares. Por outro lado, verifica-se tendência, nos dois grupos (2001 e 2202), a migrar para os

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CARDOSO, L.K.O.; CARVALHO, A.M.P.

percentis acima de 75 nos indicadores evolutivos no DFH. Uma explicação possível refere-se à estimulação recebida no contexto do programa e ao próprio processo de desenvolvimento e amadurecimento. Quanto ao locus de controle não há variação, mostrando uma tendência das crianças localizarem-se na média entre o locus interno e externo. Este resultado assemelha-se ao de estudos com adultos que não encontraram associação entre essa característica de personalidade e a condição de obesidade. Contudo, abre-se uma perspectiva que segue o pressuposto de Stotland & Zuroff (1990) quanto à avaliação de locus de controle relativa a um domínio específico que, neste caso, relaciona-se à alimentação. De maneira geral, não houve diferenças estatisticamente significativas em relação à avaliação inicial e final nos dois anos e pode-se supor que: 1. as variáveis mensuradas não estão, de fato, associadas à obesidade, nessa faixa etária; 2. o tempo decorrente entre uma avaliação e outra pode ter sido relativamente pequeno para se detectarem alterações; e 3. há que se argumentar, ainda, que o número de participantes do estudo é pequeno e há diferenças individuais. Finalmente, ao descrever o que ocorreu com as crianças ao longo de um ano de tratamento, não se pode assegurar que os resultados se relacionem, de fato, ao programa, visto que não houve grupo controle. Uma das razões relatadas pelos pais para tratar a obesidade relaciona-se à presença de problemas psicológicos dela decorrentes (Wai & Carvalho, 2002). No presente estudo, foram identificadas três crianças em 2002 e uma em 2001 com sinais mais evidentes de sofrimento psicológico. Ao final do programa, os dados foram discutidos com os pais e sugeriu-se encaminhamento para psicoterapia para uma criança em 2001 e outra em 2002. Esta última, porém, não efetivou o encaminhamento porque seus pais não consideraram necessário. As outras duas crianças iniciaram a psicoterapia concomitantemente à freqüência ao programa de atenção para a obesidade. O trabalho realizado visou, ainda, oferecer apoio para crianças e pais motivados a efetuar mudanças nos hábitos alimentares, com vistas a controlar o problema da obesidade por meio de encontros mensais grupais e por ocasião de entrevistas individuais, nas quais eram apresentados os resultados das avaliações psicológicas. A compreensão dos fatores que envolvem a obesidade infantil e a própria criança são metas que se alcançam com a pesquisa e intervenções multiprofissionais. Embora o contexto da avaliação psicológica seja um pequeno território relacionado à obesidade, não se pode perder de vista a necessidade de ações ampliadas visando a sua abordagem e estas são de cunho multidisciplinar e/ ou multiprofissional. A avaliação, nesse contexto, permitiu identificar, como anteriormente mencionado, indivíduos que exibiam sinais de sofrimento psicológico e encaminhá-los para atendimento. E, também, desmistificar, junto com outros estudos já citados, a associação generalizada entre obesidade e ansiedade, baixo autoconceito e locus de controle externo. Ao fazê-lo,

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permitiu esclarecer pais e crianças sobre dúvidas e preocupações que traziam. A atenção à obesidade infantil deve ser dispensada por diferentes profissionais da saúde: pediatras, nutricionistas, psicólogos, enfermeiros, educadores físicos etc. Tais profissionais podem contribuir com orientação aos pais e professores para a promoção de hábitos alimentares saudáveis, de atividades físicas rotineiras, e estabelecimento de limites no tempo gasto em frente à televisão, encorajamento da autonomia das crianças no controle da sua ingestão alimentar, com certos limites na escolha. Resultados deste estudo convergem com as observações de Damiani et al. (2002), em relação aos cuidados com as generalizações sobre perfis de indivíduos obesos, especialmente quando se trata de associar à obesidade certos traços de personalidade ou atribuir problemas emocionais. Reitera-se que, associado à obesidade, alguns indivíduos apresentam sinais de sofrimento e requerem assistência.. Do ponto de vista psicológico, deve-se enfatizar que, ao lidar com o problema da obesidade, é preciso atenção especial à criação de condições para promover mudanças nos hábitos alimentares das crianças e de suas famílias e esta não é uma tarefa simples que se impõe ao profissional. Cumpre buscar entender que fatores individuais, além dos ambientais, promovem esta mudança. Finalmente, é necessário apontar que a faixa etária das crianças abordadas no presente estudo parece constituir-se em importante etapa de transição em que, de modo geral, não há sofrimento psicológico instalado de forma evidente, mas seus sinais se fazem presentes e emergem em etapas posteriores do desenvolvimento (Herva, 2006; Strauss, 2000). Dessa forma, acredita-se que a atenção a esse período do ciclo vital constitua-se em prática de prevenção ao agravamento de problemas emocionais.

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CARDOSO, L.K.O.; CARVALHO, A.M.P.

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CARDOSO, L.K.O.; CARVALHO, A.M.P.

CARDOSO, L.K.O.; CARVALHO, A.M.P. Evaluación psicológica de niños obesos en un programa de atención multiprofesional. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.297-312, mai/ago 2007. La finalidad de este estudio fue describir y analizar los resultados de las evaluaciones psicológicas de niños que fueron atendidos en el Programa de Atención Multiprofesional a la Obesidad de la Universidad de São Paulo en 2001 y 2002, al inicio y al final de la atención propuesta por el programa, y también analizar peso, altura y IMC (índice de masa corpórea) iniciales y finales. Participaron de ese estudio 19 niños con percentil del IMC igual o arriba del 95, con edad entre 10 y 12 años, participantes del programa. La mayoría de los niños de este estudio están dentro de la media con relación a los aspectos de su funcionamiento psicológico. No se produjo alteración significativa de esos aspectos de los niños tras el trabajo efectuado. PALABRAS CLAVE: Obesidad. Niño. Psicología.

Recebido em 05/12/05. Aprovado em 19/03/07.

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A produção do conhecimento científico: relação sujeito-objeto e desenvolvimento do pensamento

Angelo Antonio Abrantes 1 Lígia Márcia Martins 2

ABRANTES, A.A.; MARTINS, L.M. Scientific knowledge production: the subject-object relationship and thought development. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.313-25, mai/ago 2007.

This paper discusses the process of scientific knowledge production as an expression of the subject-object relationship, analyzing the problem according to the historical dialectical materialist theory of knowledge. Pursuing the objective of showing that the practical interaction between the subject and the object only sets the bases of scientific knowledge production through theoretical mediation, we reiterate the importance of school teaching and the assimilation of historically systematized knowledge, pointing to the one-sidedness that characterizes the conceptions that overemphasize “practice” to the detriment of “theory”. KEY WORDS: Knowledge production. Praxis. School instruction. O presente estudo coloca em questão a produção do conhecimento científico como uma das expressões da relação sujeito-objeto, analisando-a à luz da teoria materialista histórico-dialética do conhecimento. Com o objetivo de demonstrar que a interação prática do sujeito com o objeto apenas fundamenta a produção do conhecimento científico pela mediação teórica, reiteramos a importância do ensino escolar e da apropriação dos saberes historicamente sistematizados, indicando a unilateralidade presente em concepções que enfatizam demasiadamente a “prática” em detrimento da “teoria”. PALAVRAS-CHAVE: Produção do conhecimento. Práxis. Educação escolar.

Graduado em Psicologia; doutorando em Educação; docente, departamento de Psicologia, Universidade Estadual Paulista, Unesp, campus de Bauru; membro, Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem; membro, Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicologia Social e Educação: contribuições do marxismo (Neppem); subcoordenador, Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação Infantil - Nepei. Bauru, SP. <angeloaa@fc.unesp.br>

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Graduada em Psicologia; doutora em Educação; docente, departamento de Psicologia da Unesp/Bauru; membro, Grupo de Pesquisa Educação e Marxismo; coordenadora, Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação Infantil – Nepei. Bauru, SP. <ligiamar@fc.unesp.br>

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1 Av. Engenheiro Edmundo Coube, s/nº Vargem Limpa - Bauru, SP 17.015-970

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ABRANTES, A.A.; MARTINS, L.M.

... o homem reflete a realidade não apenas tal qual ela existe imediatamente, mas também como pode e deve ela ser para as necessidades sociais dele. Voltado, desde o início, para a satisfação de necessidades práticas do homem, o conhecimento cria, não raro, imagens dos objetos que não foram observados na natureza, mas devem e podem ser realizáveis na prática. A pesquisa autenticamente científica está imediatamente voltada para a procura de formas e idéias segundo as quais o mundo deve ser mudado. (Kopnin, 1978, p.228)

Introdução A ciência moderna e, conseqüentemente, os ideários pedagógicos orientadores da prática educativa escolar têm afirmado, cada vez mais categoricamente, o papel do sujeito no processo de construção do conhecimento. A experimentação, a aprendizagem por problemas, o papel ativo do aprendiz e outros, são algumas máximas bastante em voga na atualidade. Sabidamente, a tese segundo a qual o conhecimento é um meio de assimilação prática da realidade ocupa lugar de grande destaque também no materialismo dialético. Entretanto, a abrangência desta premissa, aliada a compreensões superficiais desta filosofia, tem permitido aproximações equivocadas entre a teoria do conhecimento dimanante do materialismo histórico-dialético e modelos pedagógicos altamente imbuídos de um realismo ingênuo e um pragmatismo subjetivista. Tal constatação mobiliza-nos no sentido de conferir, neste texto, maior destaque aos princípios fundamentais da referida teoria. Para tanto, colocamos em foco, primeiramente, o conceito de práxis como unidade na relação sujeito/objeto para, na seqüência, versar sobre a construção do conhecimento científico acerca da realidade em suas vinculações com o desenvolvimento do pensamento empírico e do pensamento teórico. Sobre a base desse desenvolvimento é que se descortinam as possibilidades para o entendimento materialista histórico-dialético das relações entre teoria e prática, pressuposto fundante da decodificação do real. Ocorre, porém, que tanto o desenvolvimento do pensamento quanto sua expressão epistêmica não se efetivam senão em condições de ensino e apropriação dos saberes historicamente constituídos, dado que confere à educação escolar especial importância no âmbito da teoria materialista histórico-dialética do conhecimento. O conceito de prática e a relação sujeito/objeto Iniciemos pelo conceito de prática. No âmbito do materialismo dialético, a prática (ou práxis) dota-se de uma correspondência essencialmente histórica, universal, não possuindo uma correspondência automática e

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A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO:...

imediata com a atividade particular de um dado indivíduo. Esta afirmação pode comportar, à primeira vista, um aparente paradoxo, qual seja: como conceber a práxis independente dos sujeitos particulares? A resposta a esta indagação requer a consciência de que: O conhecimento está necessariamente imbuído no campo da atividade prática do homem, mas para garantir o êxito desta atividade ele deve relacionar-se necessariamente com a realidade objetiva que existe fora do homem e serve de objeto a essa atividade. (Kopnin, 1978, p.125)

Assim, a prática humana, na qual se inclui a produção do conhecimento, encerra sempre a relação entre o singular particular e o universal, sendo um fenômeno histórico, posto que as propriedades humanas subjetivas e objetivas que a comportam resultam de amplas e complexas relações do homem com a natureza. Ao transformar a natureza, o homem se transforma, desenvolvendo habilidades, criando necessidades, tornando complexa sobremaneira sua atividade vital, isto é, constituindo-se como ser práxico. É na unidade articuladora entre a idéia e a ação ou entre a teoria e a prática que se efetiva a historicidade humana, concretizada no movimento de constituição da realidade social. A construção práxica do conhecimento nos remete, portanto, à realidade histórica a se conhecer, visto que os indivíduos se desenvolvem em relações de apropriação da história contida nos objetos produzidos pelo homem e nas relações estabelecidas entre eles na base de tais produções. Mas para uma efetiva compreensão da dimensão práxica do homem, outro preceito deve ser levado em conta, qual seja, a unidade inicial existente entre sujeito e objeto do conhecimento. O sujeito cognoscitivo é o ser humano, entendido como sujeito coletivo, social e histórico, que produz conhecimento num determinado modo social de produção da existência, que, na atualidade, é o capitalista. Neste modo de produção, imperam as relações sociais de dominação e se efetiva a contradição entre capital e trabalho, determinação histórica da qual faz parte a produção do conhecimento. O conhecimento humano produzido pelo ser social não está isento da tensão existente entre os pólos da citada contradição. No caso do materialismo histórico-dialético, busca-se a objetividade do conhecimento como contributo para a superação de uma realidade que, em sua essência, almeja acumular capital em detrimento do ser humano. Por sua vez, o objeto a ser conhecido é a realidade na qual estão contidas as atividades humanas e as contradições internas essenciais que lhe determinam o movimento histórico. Embora o objeto possa se apresentar ao pensamento como dado e acabado, nele estão contidas as relações sociais de produção expressas na contradição ontológica entre aparência e essência, determinante da necessidade da ciência e do método de se conhecer o real. Portanto, a unidade sujeito – objeto reitera o papel do pensamento no processo de conhecer a realidade, ao mesmo tempo em que afirma a primariedade da realidade em relação ao pensamento. O conhecimento não emana nem do pólo concreto, representado pelo objeto (realidade), nem do

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ABRANTES, A.A.; MARTINS, L.M.

pólo abstrato, representado pelo sujeito (pensamento), concentrando-se no movimento entre estes pólos, na relação entre a realidade e a consciência sobre ela. É na base desta tensão que se consolida o trabalho intelectual sobre a realidade, trabalho este que, ao colocar o real a descoberto, pela apreensão de suas múltiplas determinações sintetizadas na unidade aparência – essência, o representa e o expressa teoricamente. A construção do conhecimento sobre a realidade O conhecimento sobre a realidade objetiva origina-se de sensações/percepções. À base desses processos produz-se o conhecimento sensorial, ou a matériaprima do pensamento. Ao refletirem aspectos da realidade, possibilitam o aparecimento de uma imagem sensorial do mundo, com base na qual o homem começa a adquirir consciência, a conhecer os fenômenos da realidade, identificando, neles, propriedades, relações, origens, efeitos, etc. Este processo torna-se possível graças ao desenvolvimento da linguagem, quando o sensorial dado passa a ser representado sobre a forma de palavras, de idéias. Portanto, no ser humano, o conhecimento sensorial jamais se expressa de modo puro, uma vez que resulta da interconexão entre conhecimento sensorial e linguagem. Referindo-se a esta interconexão, Petrovski (1985, p.292) considera que: “O pensamento surge do conhecimento sensorial sobre a base da atividade prática e o excede amplamente”. Assim, toda prática humana excede a si mesma pois é mediada pelas ações e significações históricas, pelas objetivações das gerações antecedentes. É por meio dessa historicidade, inclusive, que a consciência dos homens se torna complexa e, em face dela, até mesmo as representações sensoriais mais elementares da realidade assumem a forma de pensamento. Portanto, inexiste prática (empiria) sem teoria (abstração), e teoria desprovida de prática, assertiva sobre a qual discorremos a seguir. Ao analisar a impropriedade de conceber o sensorial e o racional como tipos distintos de conhecimento, identificando sensorial e empírico, e racional e teórico, Kopnin (1978, p.154) afirma: Tanto o empírico como o teórico são níveis de movimento do pensamento pensamento. Diferem um do outro pela maneira e pelo aspecto em que neles é dado o objeto, pelo modo como é conseguido o conteúdo básico do conhecimento (...) (grifos dos autores)

O pensamento empírico, derivado direto da atividade sensorial do homem sobre os objetos da realidade é, indiscutivelmente, a forma primária de pensamento, levando ao conhecimento do imediato da realidade, isto é, ao conhecimento da realidade em suas manifestações exteriores. Pautando-se em princípios da lógica formal, o conhecimento empírico é absolutamente racional, revelando aspectos do objeto que se expressam pela categoria da existência presente, a exemplo de quantidade, qualidade, propriedade, medida, classe etc. Diferentemente, o pensamento teórico apreende o objeto em suas relações internas e leis que regem o seu movimento, compreensíveis por meio de

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A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO:...

3 Para mais esclarecimentos sobre pensamento empírico e teórico, suas propriedades e desenvolvimento, sugerimos a leitura de Abrantes & Martins, 2006.

elaborações racionais dos dados dispostos pelo conhecimento empírico. Sua forma lógica é constituída pelo sistema de abstrações que explica o objeto, isto é, pelos conceitos, visando reproduzir o seu processo de transformação. Ultrapassando os limites do que é dado pela experiência, a racionalidade teórica não é simplesmente a forma ordenada (definidora, caracterizadora, classificatória, etc.) de expressão da experiência, mas sim o recurso, a ferramenta por meio da qual apreende-se um novo conteúdo, não passível de observação imediata do aparente3. Portanto, (...) a fronteira entre eles [pensamento empírico e teórico] é até certo ponto condicional: o empírico se transforma em teórico e o contrário, o que em certa etapa da ciência se considera teórico, torna-se empiricamente acessível em outra etapa mais elevada. (Kopnin, 1978, p.153)

Destaca-se, dessa citação, que a distinção entre o empírico e o teórico é condicional, e não espontânea ou automática. No plano filogenético, ela apenas tornou-se possível no período de maturidade científica, devido, portanto, aos avanços do pensamento científico; no plano ontológico, revela-se dependente da qualidade do desenvolvimento do pensamento, isto é, do desenvolvimento do pensamento como reflexo da realidade sob forma de abstrações ou de conceitos. Esta observação se justifica tendo em vista evitar o equívoco de se conceber o empírico e o teórico como dois degraus do conhecimento em detrimento da interpenetração existente entre eles em todas as etapas da produção de conhecimento. Ainda segundo Kopnin (1978), as confusões existentes em relação ao movimento do conhecimento empírico ao teórico, como transição do concreto difuso ao concreto pensado pela mediação da abstração, fundamento do método marxiano de construção de conhecimento, têm deturpado a essência do pensamento teórico, desprovendo-o de sua objetividade, reduzindo-o à formação de abstrações (supostamente) vazias. Conforme esse autor, trata-se de uma tentativa de se compreender o conhecimento e o próprio pensamento humano segundo critérios e, portanto, nos limites do pensamento empírico, isto é, da experiência sensorial concreta. Por conseqüência, privilegia-se o conhecimento imediato em detrimento do conhecimento por conceitos, como se as abstrações fossem desprovidas de objetividade. O conhecimento teórico é prenhe de conteúdos empíricos, que, por sua vez, se configuram como conhecimento verdadeiramente humano, por suas mediações teórico-abstratas. Esta é a síntese representativa da concepção materialista de práxis. Se, por um lado, as abstrações, os conceitos se distanciam do objeto, por outro lado, nada há mais apto para se aproximar da sua essencialidade, uma vez que o verdadeiro conhecimento não nos é dado pela contemplação viva ou pelo contato imediato. Por exemplo, o código genético (concreto pensado) jamais será apreendido imediatamente pela observação do sangue (concreto aparente); no entanto, o homem tornou-se capaz de conhecê-lo por meio do pensamento abstrato, ao distanciar-se temporariamente do concreto aparente, que, perdendo sua

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concretude superficial, adquire outro modo de existência: a existência como abstração. Esta, por sua vez, alcança outro nível de concretude representada por teses teóricas, equações, ideografias etc. que, em toda sua abstração e abrangência, se aplicam e guiam a prática concreta sustentada por tais conhecimentos. Os preceitos acima dispostos cumpriram a função de demonstrar que, para a teoria dialética do conhecimento, a interação prática com o objeto apenas fundamenta a construção do conhecimento científico pela mediação teórica. A natureza da relação prática é condicionada, a qualidade da prática ou da experiência sensorial depende do grau de desenvolvimento do pensamento do sujeito e, por outro lado, dos condicionantes históricos e sociais dispostos na realidade objetiva que a sustenta. Tais constatações permitem-nos afirmar a unilateralidade presente em concepções que enfatizam demasiadamente a prática, absolutizando o empírico na construção do conhecimento. As relações entre teoria e prática O desenvolvimento do pensamento e, conseqüentemente, a produção de conhecimentos surgem de finalidades práticas. Ocorre, porém, que os fins não dimanam da sensorialidade experimental imediata, mas da consciência que possa o sujeito dispor sobre ela. O estabelecimento de finalidades, a identificação e/ou proposição de problemas práticos revelam-se, portanto, como atividades essencialmente teóricas. Assim sendo, para que as experiências práticas operem como mobilizadoras da construção do conhecimento real e efetivo (concreto), elas requerem um tipo de conhecimento muito especial: o conhecimento sobre um desconhecido que se necessita conhecer. É em estreita unidade com a teoria materialista dialética do conhecimento que Saviani (1984, p.51) afirma a atividade investigadora como uma “incursão no desconhecido, que só se define por confronto com o conhecido”, ou seja, sem o domínio do conhecido não é possível incursionar no desconhecido - dado que reafirma o papel do ensino para o desenvolvimento das capacidades do pensamento. Portanto, em conformidade com a teoria materialista dialética do conhecimento, a proposição da experimentação ou da problematização como ponto de partida para a construção do conhecimento requer, a priori, um domínio conceitual básico. Caso contrário, a decodificação dos dados identificados pode não alçar a superação de um conhecimento imediato, circunscrito ao pensamento empírico. Parece-nos evidente que, na epistemologia marxiana, os limites entre o ponto de partida e o ponto de chegada, no processo de construção do conhecimento, deixam de ser tão nítidos e cindidos. O que é normalmente classificado como ponto de partida, muitas vezes entendido como início quase absoluto de um problema que se impõe aos sentidos, é, na realidade, um momento do processo, que, se por um lado, deve ser tomado como inicial, por outro, se realmente se deseja produzir conhecimento, e não apenas reproduzir o imediato da realidade, deve ser entendido como

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resultado: momento de afirmação de um movimento que se inicia com anterioridade. Neste sentido, o pressuposto de que a relação do sujeito do conhecimento com a realidade a ser conhecida (e transformada) se inicia pela prática social significa que o primeiro deve estreitar seus vínculos com ela para acompanhar o seu movimento e desvelar os determinantes ocultos em sua aparência. A apreensão da realidade em suas expressões precedentes e presentes, aparentes e essenciais, é condição para o desenvolvimento do pensamento criativo, isto é, para a produção do conhecimento original sobre a realidade e para proposição de soluções aos problemas que nele se apresentam. A prática social é, então, ao mesmo tempo, início do processo de construção do conhecimento e resultado (evidentemente que não apenas do conhecimento), síntese de contradições anteriores, e, como síntese, é portadora de uma complexidade e multilateralidade que não pode ser apreendida, como já foi afirmado, independente da atividade do pensamento. O pensamento é uma “prática” que permite superar o imediato e as “facilidades” do empírico, sendo unidade entre teoria (idéias) e atividade, que ocorre sempre sobre dadas condições histórico-sociais. Sintetiza contradições entre distintos conhecimentos produzidos e se impõe como resultado de uma luta de posições entre diferentes pensamentos que se negam ou que se afirmam. Por outro lado, toda prática social é política e se expressa como resultado da contradição entre diferentes posições éticas de realização do real, contendo as dimensões técnica, científica, política e filosófica, que nem sempre se apresentam com limpidez no sensorial imediato. Assim sendo, a vinculação que o sujeito do conhecimento deve realizar com a prática social não se limita ao contato pragmático com a realidade, ocorrendo somente se o indivíduo se apropriar dos fenômenos reais em suas múltiplas determinações. Para isto, é necessário conhecer os pensadores e os pensamentos, integrar-se, pela via das apropriações, às questões filosóficas e científicas que se objetivam em obras humanas imprescindíveis para que o sujeito do conhecimento tome consciência do seu tempo histórico, de suas possibilidades e limites. É preciso compreender o movimento e a gênese daquilo que se tem intenção de conhecer e transformar. Portanto, a prática social pressupõe domínios teóricos e práticos e, assim sendo, quando o sujeito do conhecimento empreende um pensamento sobre a realidade, tendo em vista nela intervir, a qualidade de sua intervenção estará na dependência dos domínios conceituais que lhe estão disponibilizados, ou seja, o pensamento (como expressão da capacidade de conhecer) não é um bem espontâneo que se ativa automaticamente quando um indivíduo é exposto à realidade. Ele se desenvolve como conquista do ser social, em processos de ensino, cujo acervo resulta da história humana objetivada como riqueza pela ação práxica dos indivíduos que se apropriam dessas conquistas históricas. O indivíduo que pensa a realidade e sobre ela age, somente pode fazê-lo por meio da apropriação das conquistas históricas objetivadas. A este indivíduo não é suficiente experimentá-la nos seu aspecto imediato

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e empírico; para ele, é fundamental apropriar-se dos resultados daquilo que o ser humano produziu de sistemas explicativos sobre a realidade, no recorte do que almeja conhecer e nas relações destes aspectos com questões mais gerais da sociedade e do desenvolvimento histórico do ser humano. Desse modo, temos como fundamental a formação do sujeito do pensamento nos moldes do pensamento teórico que pressupõe a unidade contraditória entre teoria e prática, entre o abstrato e o concreto, entre o conhecimento empírico e o teórico. Quando afirmamos a unidade contraditória entre estes pólos distintos, não estamos pressupondo uma harmonia tranqüila entre eles, mas sim tensão e luta. As teorias, por exemplo, se desenvolvem no sentido de explicar a realidade, mas a realidade, em seu movimento, impõe desafios à teoria, apontando demandas que ela ainda não necessariamente possa contemplar, ou seja, a relação teoria – prática supõe tensões e movimentos contínuos. Se não devemos nos relacionar com a realidade com o pressuposto de conhecê-la com base em abstrações teóricas puras, sob o risco de cair no idealismo, não nos é possível também prescindir do conhecimento acumulado pelo ser humano, sintetizado nas abstrações teóricas. Do mesmo modo, se não podemos supervalorizar o empírico na relação com a realidade, sob o risco de cair num mecanicismo simplista ou num aprisionamento aos limites das representações superficiais do real, não nos é possível prescindir de material factual dela advindo para que o movimento do pensamento possa comprovar, recusar ou incorporar inovações aos sistemas teóricos explicativos dessa mesma realidade. O pensamento teórico que visa apreender seu objeto na dinâmica dos aspectos passado, presente e futuro, não se caracteriza como um dote subjetivo pertencente a alguns indivíduos, mas como consciência histórica do movimento da humanidade do qual os indivíduos necessitam se apropriar, movimento este que se efetiva na relação entre a consciência como conquista do ser social, na qual se inclui a consciência sobre os meios de se conhecer a realidade. Tais apropriações, por sua vez, não ocorrem espontaneamente, mas sim por meio dos processos educativos planejados para esse fim. O ensino, a apropriação e a construção de conhecimentos A sistematização de ações educativas, as quais permitem que os conteúdos históricos façam parte da existência individual, é o que nutre a possibilidade de que o pensamento teórico se realize como mediação da relação do sujeito (que necessita conhecer o real) com a realidade a ser conhecida. Neste âmbito é que o pensamento se ocupa do conhecimento no que necessita ser explicado, produzido e sistematizado, cujo conteúdo implica aquilo que, na sociedade, merece ser transformado, ou seja, que considera a realidade como ela é, naquilo que ela tem a possibilidade de ser e no que se tem a intenção de que ela seja. Utilizando como imagem o “mergulho” necessário na prática, acreditamos que um indivíduo imerso na realidade imediata, sem apoio de conceitos que sintetizam a experiência histórica do ser humano, corre o risco de se afogar

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numa imensidão de informações caóticas ou, no melhor dos casos, realizar avanços lentos e insignificantes à custa de muito se debater, como aquele que não foi ensinado a nadar e é atirado na água. Neste sentido, não nos parece admissível omitir, na atividade educativa escolar, uma sólida formação teórica, ou a relegar como algo de menor importância frente ao imediatismo pragmático de nossos tempos. Reafirmamos que a prática social, como entendida no materialismo histórico-dialético, não pode ser confundida com pragmatismo, forte responsável pelo empobrecimento da relação do indivíduo com a realidade, que ocorre de forma cada vez mais espontânea e alheia às possibilidades históricas constituídas. Os indivíduos necessitam de uma educação formal que possibilite a apropriação de conceitos de modo que se tornem instrumentos do pensamento na relação com a realidade, que dê ciência de seu movimento; do movimento dos próprios conceitos e do pensamento na busca de compreensão do real. Este desafio somente pode ser enfrentado com a organização intencional de atividades educativas que atuem com determinação neste sentido. Não é demais lembrar a importância do ensino para se efetivar a apropriação do conhecimento. Parece-nos que discutir a produção do conhecimento, com base na afirmação da unidade contraditória que caracteriza a relação sujeito e objeto, pressupõe considerar a necessidade de desenvolvimento do pensamento resultante da apropriação dos saberes historicamente produzidos, bem como abordar aspectos indissociavelmente implicados que se desdobram nessa discussão. Se, por um lado, a produção do conhecimento está implicada com o conhecimento já produzido - e, portanto, com processos de ensino escolar; por outro, o processo de construção desse conhecimento não está imune à determinação das necessidades práticas do ser humano. Assim, a dimensão da aplicação prática do conhecimento produzido não pode estar alheia ao conhecimento científico que está em processo de construção. Tais proposições reiteram a indissociável relação entre a qualidade do ensino e a qualidade da produção de conhecimentos. Na apreensão da relação entre a aplicação do conhecimento produzido e o processo de produção do conhecimento, não nos é possível isolar nenhum destes pólos, apesar de haver especificidades referentes a cada um deles. Não é possível negar que, de acordo com a atividade que se realiza, uma das dimensões acima citadas é preponderante em relação à outra, apesar da possibilidade que têm de se objetivarem como um todo. Kopnin (1978, p.226) afirma entender, como essencial do conhecimento humano, o seu movimento enquanto investigação: A investigação científica é um processo imediatamente voltado para a obtenção, no pensamento, de novo resultado não só para um sujeito dado, mas para o sujeito em geral. Ademais, para entender a essência do conhecimento, é necessário vê-lo como investigação, porquanto nesta se manifesta justamente a particularidade característica do conhecimento humano: o movimento do pensamento no sentido de resultados efetivamente novos. A investigação científica enquanto ato do

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conhecimento se realiza à base da interação prática do sujeito com o objeto objeto. Ela constitui uma forma teórica de apreensão do objeto pelo sujeito, nela se manifesta especialmente a natureza social do sujeito. (grifos dos autores)

Se considerarmos que o processo de intervenção prática deve estar pautado em conhecimentos científicos, se entendemos que o conhecimento, de modo geral, deve ser considerado investigação - como movimento do pensamento no sentido de resultados novos - podemos afirmar que não somente a investigação científica deve ser caracterizada como teórica, mas também sua aplicação como prática, uma vez que a apreensão efetiva do objeto da ação humana pressupõe a identificação de sua dimensão teórica. Assim sendo, a própria aplicação prática do conhecimento, mesmo considerando-se a sua especificidade, deve se caracterizar como ação investigativa. Na produção de conhecimento científico que, na afirmação de Kopnin (1978), manifesta especialmente o caráter social do sujeito, os elementos da relação acima referida permanecem. No entanto, o pólo predominante é outro, qual seja, o dos limites do conhecimento e do processo empreendido para sua superação, considerando-se as possibilidades históricas e as condições em que se realiza a atividade de produzir conhecimento. O autor afirma que a investigação científica começa pelo problema, pois ele é a “expressão das necessidades práticas que impulsionam o pensamento no sentido da procura de novos resultados” (Kopnin, 1978, p.230). Assim sendo, o problema está associado ao que não foi apreendido pelo pensamento, mas que se faz necessário apreender, e, dessa forma, está direcionado para o futuro sem desconsiderar as conquistas que se fizeram presentes. O que se entende por problema na discussão do autor é, pois, algo distinto do sentido que lhe é atribuído no senso comum. Na vida cotidiana, nos defrontamos com uma infinidade de problemas e nos defrontamos com toda espécie de questões empíricas sem que este tipo de experiência tenha qualquer relação com um problema científico. ... como definição inicial de problema aquilo que não foi apreendido pelo homem mas que é necessário apreender apreender.. (...) No entanto, não é todo o não-conhecido que constitui o problema científico, que não é simplesmente um não conhecimento, mas um conhecimento do não conhecimento. Não se escolhe como problema qualquer objeto que o pesquisador queira conhecer, o que este objeto constitui, as leis a que ele se subordina, mas só um objeto sobre o qual o conhecimento é realmente possível sob as condições vigentes vigentes. (Kopnin, 1978, p.230) (grifos dos autores)

O problema científico vincula-se justamente com aquele, já referido, conhecimento sobre um desconhecido que se necessita conhecer. Esta qualidade de problema pressupõe conhecer o que foi realizado como conhecimento que o antecede, o que é necessário e o que é possível apreender pela atividade investigativa. Ora, estes pressupostos somente

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podem ser atendidos com o conhecimento dos fatos práticos relacionados ao objeto do conhecimento e das premissas da ciência que o sustenta. Para a colocação de um problema, além de ser necessário conhecimento do que lhe é antecedente, é fundamental que se conheçam, também, as vias de sua solução. O problema posto em uma investigação científica se caracteriza como um sistema teórico cujo princípio unificador, ao invés de se constituir exclusivamente de teses autênticas de uma dada teoria, é uma questão que nelas se sustenta. Implicada naquilo que o autor denomina de juízo questão (problema de pesquisa), está a resposta provável (hipótese) a ele, idéia diretriz que pode conduzir a um conhecimento novo. No processo de investigação científica, as teses prováveis estão em conexão com as autênticas. O provável é o conhecimento de um grau de precisão e fundamentabilidade, o autêntico, de outro grau, superior; no processo de movimento do pensamento, a probabilidade se converte em autenticidade, enquanto que esta gera nova probabilidade. Neste sentido, cabe à probabilidade um papel ativo no domínio do objeto, na apreensão de suas propriedades. (...) a probabilidade, assim como a autenticidade, que são momentos subordinados à veracidade objetiva, não podem ser divorciadas e contrapostas à verdade. O papel delas pode ser entendido somente em face da análise das leis de obtenção do conteúdo objetivo verdadeiro pelo pensamento. (Kopnin, 1978, p.263)

O autor nomeia a organização da investigação científica como teoria vazia, no sentido de que é necessário que ela seja “preenchida” de realidade. Para isto, é preciso ter consciência das vias de solução do problema colocado, para “motivar” na realidade aquilo que é necessário conhecer; portanto, a relação com a realidade no desenvolvimento do processo de produção do conhecimento não é nunca isenta e espontânea, é uma relação essencialmente teórica. Não é possível, pois, construir conhecimento novo sendo prisioneiro do empírico. Segundo ele: Chama-se teoria a um vasto campo de conhecimento, que descreve e explica um conjunto de fenômenos, fornece o conhecimento dos fundamentos reais de todas as teses lançadas, e reduz os descobrimentos em determinado campo e as leis a um princípio unificador único. (Kopnin, 1978, p.237)

Considerando a diversidade de aspectos envolvidos na proposição de um problema científico, podemos retomar a reflexão sobre a relação entre o processo de produzir conhecimento e a aplicação do conhecimento produzido como unidade contraditória. Se, no primeiro caso, considerando a especificidade da atividade, as teses prováveis têm preponderância em relação às autênticas, apesar de se constituírem como unidade, no segundo caso, a situação se inverte, na aplicação prática do conhecimento, as teses autênticas, até aquele dado momento, devem ser preponderantes em relação às prováveis.

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A delimitação cognitiva do problema, tanto no processo de produção de conhecimento, que pode se dar pela investigação científica, quanto na intervenção prática pautada por saberes científicos, deve contemplar, como conteúdo, a unidade também contraditória entre teses autênticas e teses prováveis, sintetizadas em um sistema teórico que se movimenta em direção à veracidade objetiva. Outrossim, a referida delimitação apenas se efetiva à luz de rigorosos processos de ensino - condição imprescindível para o desenvolvimento da capacidade humana práxica. Considerações finais Tendo em vista a formação dos indivíduos que se efetiva pela educação escolar, a colocação de problemas como meio de mobilizar a ação pedagógica pode desempenhar papel importante somente quando resultar de um processo que se vincule à colocação de problemas aos parâmetros acima expostos, mesmo que ainda não se caracterizem como problemas científicos nos moldes de produção de conhecimentos novos. O problema, para fazer parte do processo educativo e se constituir como parte do processo de construção do conhecimento concreto, isto é, que apreenda o fenômeno de modo multilateral e profundo, não pode se limitar a uma questão do senso comum, mas caracterizar-se como problema humano (teórico). Problemas produzidos pela atividade práxica humana não podem ser confundidos com o pragmatismo das questões mais imediatas que se apresentam de forma aparentemente espontânea aos sentidos. Eles se colocam ao ser humano, tanto no processo de produzir conhecimento quanto no de sua aplicação prática, e se constituem, sempre, na unidade entre as dimensões teóricas e práticas. Ambas as atividades dependem de que o pensamento teórico, possibilidade histórica objetivada, se expresse na existência dos indivíduos como força no sentido de conhecer o real. As ações educativas que afirmam a importância dos problemas no processo de aprendizagem devem considerar o problema na complexidade que procuramos evidenciar - pelo menos, os que se dizem pautados pela epistemologia materialista histórico-dialética -, sob o risco de iniciar o processo educativo partindo de pseudoproblemas, e neles permanecendo de forma circular até o momento de apresentar, de forma burocrática e externa, uma colagem de recortes de conhecimento que versam sobre determinado tema, ou seja, chegando a um pseudoconhecimento. Os resultados advindos de concepções ingênuas de prática e de problema, apesar de acoplados à supervalorização do termo “pesquisa”, não caracterizam atitude investigativa nos termos considerados no materialismo histórico dialético. Defrontar qualquer aluno com um problema que não tem condições de conhecer em sua profundidade, bem como as vias de sua solução, é crueldade, ainda que travestida com roupagens de liberdade discente no processo de construção autônoma do seu próprio conhecimento.

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Referências ABRANTES, A.A.; MARTINS, L.M. Relações entre conteúdos de ensino e processos de pensamento. Educ. Marx., n. 1, 2006. Disponível em: <http://www2.fc.unesp.br/revista_educacao/arquivos/ Relacao_entre_conteudos_de_ensino_e_processos_de_pensamento.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2006. KOPNIN, P.V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. PETROVSKI, A. Psicologia general: manual didático para os institutos de Pedagogia. Madri: Editorial Progresso, 1985. SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984.

ABRANTES, A.A.; MARTINS, L.M. La producción del conocimiento científico: relación sujeto – objeto y desarrollo del pensamiento. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.313-25, mai/ago 2007. El presente estudio discute la producción del conocimiento científico como expresión de la relación sujeto – objeto analisando la referida relación sobre la base de la teoría materialista histórico dialéctica del conocimiento. Plantea demostrar que la interacción práctica del sujeto con el objeto fundamenta la producción del conocimiento científico gracias a la mediatización teórica. El proceso de análisis afirma la importancia de la enseñanza escolar y de la apropiación de los saberes históricamente constituídos, señalando la unilateralidad presente en concepciones que destacan en demasía la “práctica” en detrimento de la “teoría”. PALABRAS CLAVE: Producción del conocimiento. Práxis. Enseñanza escolar.

Recebido em 27/11/06. Aprovado em 24/05/07.

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Amor e paixão como facetas da educação: a relação entre escola e apropriação do saber

Sandra Soares Della Fonte1

DELLA FONTE, S.S. Love and passion as facets of education: the relationship between school and appropriation of knowledge. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.327-42, mai/ago 2007.

This article accepts the general proposition that love and passion are essential elements of the school education practice. However, contrary to the contemporary trends that argue that the loving facet of education dismisses truth and the objective knowledge and takes place as a linguistic experience, I advocate that the primordial Eros of school education is not effective without objective knowledge and its appropriation. To develop this idea, I borrow some of Plato’s considerations on love in his classical text Symposium in order to rethink them based on the reflections about passion in Marx’s Economical and Philosophical Manuscripts. KEY WORDS: Love. Knowledge. School instruction. Este artigo parte da proposição geral de que o amor e a paixão são elementos essenciais da prática educativa escolar. Contudo, ao contrário de algumas tendências contemporâneas que sustentam que a face amorosa da educação repele a verdade e o conhecimento objetivo, e se realiza como uma experiência lingüística, defendo que o Eros primordial da educação escolar não se efetiva quando se abre mão do conhecimento objetivo e da sua apropriação. Para desenvolver essa idéia, tomo emprestadas algumas considerações de Platão sobre o amor no clássico texto O Banquete, a fim de repensá-las com base nas reflexões de Marx sobre a paixão, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos. PALAVRAS-CHAVE: Amor. Conhecimento. Educação escolar.

Filósofa; doutora em Educação; professora, departamento de Ginástica, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória, ES. <sdellafonte@uol.com.br>

1

Departamento de Ginástica, Centro de Educação Física e Desportos – UFES Av. Fernando Ferrari, 514 Campus Goiabeiras – Vitória, ES 29.075-910

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DELLA FONTE, S.S.

Prometeu: Graças a mim, os homens não mais desejam a morte. [...] Além disso, consegui que eles participem do fogo celeste [...] e desse mestre aprenderão muitas ciências e artes. Ésquilo A habitação-luz que Prometeu, em Ésquilo, denota como uma das maiores dádivas pelas quais ele fez do selvagem um homem, cessa de existir para o trabalhador. Marx (2004, p.140)

São bastante recorrentes, no imaginário social, as associações entre a prática educativa escolar e o amor. Essas associações ganham diversas nuanças; podem, por exemplo, assumir um viés religioso (à semelhança do sacerdote, o professor aparece como aquele que, por amor, abraça a missão de ensinar e assume todos os sacrifícios de sua vocação) ou um sentido maternal (a profissão docente como vocação naturalmente feminina). No Brasil, uma das relações clássicas entre educação e amor foi celebrizada por Paulo Freire que, na afirmação da liberdade e contra qualquer tipo de domesticação, proclamou a educação como “[...] um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (Freire, 1989, p.96). Contudo, o caráter progressista que ganha essa afirmação da educação como um ato de amor em Paulo Freire se perde na proposição de Gabriel Chalita (2003) de uma “pedagogia do amor”, voltada para a preparação para o mundo competitivo. Na pesquisa acadêmica contemporânea, destaco o argumento de dois autores que relacionam a educação e o amor. O primeiro deles é o chileno Humberto Maturana, com sua proposta da biologia do amor. Segundo esse autor, o ser humano surge com a linguagem e vive sempre em um conversar. Por sua vez, a essa condição se associa o amor, “[...] emoção que constitui o espaço de ações em que se estabelece o modo de viver hominídeo, a emoção central na história evolutiva que nos dá origem” (Maturana, 1998, p.97). Maturana considera que o amor é a emoção primordial da vida que funda o social, visto que estabelece a aceitação do outro, o seu reconhecimento como existência legítima. Assim, como aproximação, aceitação mútua (Maturana, 1998), o amor instaura a convivência que se realiza pelo conversar. Maturana (1998, p.98) declara que é a existência humana na linguagem que configura os diversos domínios de realidade; logo, a realidade é “uma proposição explicativa da experiência humana”. Além disso, o autor assevera que os seres humanos não se referem a uma realidade externa independente do seu próprio observar. A resolução de Maturana de colocar a “objetividade entre parênteses” atende a esse preceito que, a seu ver, contribui para consolidar a convivência amorosa entre as pessoas. Por não existir uma realidade externa a quem recorrer, “[...] os diferentes pontos de vistas são válidos nos diferentes domínios, porque são baseados em preceitos diferentes” (Maturana, 1998, p.154). Na acepção do autor,

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AMOR E PAIXÃO COMO FACETAS DA EDUCAÇÃO:...

qualquer tentativa de definir uma posição que tenha razão em detrimento de outra que se equivoca provoca a negação mútua e vai contra a constituição biológica amorosa do ser humano. Conhecer é, portanto, uma construção da linguagem, ou seja, é resultado do “domínio de coordenações condutais coordenadas” (Maturana, 1998, p.96). Maturana entende que, como fenômeno social, a educação tem seu fundamento no amor e seu centro é o conviver. Neste contexto, o professor é “Alguém que se aceita como guia na criação deste espaço de convivência” (Maturana, 1990, p.2), que produz ações comuns e mudanças conjuntas. A educação preservaria, deste modo, o traço biológico amoroso do ser humano. Em uma perspectiva diferenciada dos argumentos de Maturana, Larrosa (2001) sugere pensar a educação como experiência de sentido. Para ele, a experiência não se confunde com a informação, a opinião, o trabalho; ela é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. O sujeito da experiência é, na sua visão (Larrosa, 2001, p.6), um “território de passagem”, “ponto de chegada”, espaço do acontecer. Não se define o sujeito da experiência pela sua atividade, mas sim pela sua condição passional, ou seja, sua passividade, abertura essencial, receptividade ao que lhe chega e lhe sucede. Nesse sentido, segundo Larrosa, a experiência é paixão, porque é, essencialmente, padecimento; o sujeito da experiência não é agente, é paciente, é “sofredor, padecente, receptivo, interpelado, submetido” (Larrosa, 2001, p.7). De acordo com Larrosa (2001), o saber da experiência não é o da informação, da técnica, do trabalho e da ciência; ele se dá na relação entre conhecimento e vida humana, como [...] aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece [...] o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao largo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência, não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido e do sem-sentido do que nos acontece (Larrosa, 2001, p.9).

Se a educação é entendida como uma experiência de sentido, o saber educacional também se vincula, segundo o autor, ao exercício de atribuição do sentido e compartilha outras características com o saber da experiência em geral: é finito, estreitamente articulado à existência de um indivíduo ou uma comunidade em particular - “Por isso o saber da experiência é uma saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal” (Larrosa, 2001, p.9). Duas pessoas podem enfrentar um mesmo acontecimento e não ter a mesma experiência, pois o sentido ao que lhes sucedeu pode ser diferenciado. Contra o experimento enaltecido pela ciência moderna (genérico, repetível, previsível, que produz acordo e consenso), a experiência afirma sua singularidade, sua não repetitividade, sua incerteza, sua produção da diferença e pluralidade. Ela expressa não apenas que o ser humano confere sentido ao que lhe sucede por meio de palavras, mas que ele próprio “[...] se dá na palavra e como palavra” (Larrosa, 2001, p.2).

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Segundo Larrosa, a educação é essa experiência que abre mão da verdade e privilegia o exercício demiúrgico da linguagem que ocorre em uma situação vivencial singular, que toma o sujeito, ou seja, faz dele um ser passional. Os caminhos trilhados por Maturana e Larrosa quando declaram o entrelaçamento entre educação e amor/paixão são distintos. No entanto, salta aos olhos o fato de que, em ambos os casos, a face amorosa da educação repele a verdade e o conhecimento objetivo e se efetiva como uma experiência lingüística (ou de atribuição de sentido, pelo sujeito singular, ao que lhe acontece, ou de conversação que aceita o outro como outro e coordena suas condutas). Neste artigo, corroboro a proposição geral de que o amor e a paixão são elementos essenciais da educação escolar e, portanto, do trabalho pedagógico do professor. Contudo, ao contrário dos autores citados, defendo que o Eros primordial da educação escolar se efetiva na própria especificidade do processo educativo. Isso significa que não é possível falar da dimensão amorosa da escola quando se abre mão da verdade e do conhecimento objetivo. Para desenvolver essa idéia, tomo emprestadas algumas considerações de Platão sobre o amor (Eros) no clássico texto O Banquete, a fim de repensá-las com base nas reflexões de Marx sobre a paixão nos Manuscritos Econômico-Filosóficos. O Eros de Platão Platão escreve sobre o amor em vários textos e sob perspectivas diferentes. Aqui não se pretende mapear esse tratamento diferenciado ou elaborar comparações, mas sim extrair do texto O Banquete algumas considerações que permitam, nos limites possíveis de um artigo, evidenciar o sentido platônico do Eros como um agente educativo. No texto em questão, Platão relata um encontro festivo na casa de Agatão, no qual os convivas foram conclamados, no momento do simpósio (bebida coletiva após a refeição), a fazerem um discurso de louvor ao amor. Como de praxe, Sócrates teria observado que, antes de enumerar as obras do amor, dever-se-ia perguntar o que é o amor. Vários convidados fizeram seu discurso, mas priorizo apenas o de Sócrates. Um dos primeiros elementos de destaque do discurso socrático está em sua apresentação do Eros como força cósmica que perpassa todos os seres. O amor remete a algo, é sempre amor de alguma coisa. A relação amorosa se volta para algo do qual se carece. Portanto, para Sócrates/Platão, o amor é desejo, e o desejo é carência e necessidade do que não se tem: “[...] o de que se carece; eis, precisamente, o objeto de desejo e do amor” (Platão, 1987, 200e). O amor atravessa a condição humana à medida que ela se apresenta como incompletude e falta; esse caráter faz do ser humano um ser de desejo. Deste modo, o amor é um movimento, visto que estabelece uma relação que se volta para o não-eu, ou seja, para aquilo do qual se necessita e em nós não se encontra. Além disso, ele também se dirige para os meios de sua aquisição, para a satisfação dessa carência. Eros parte da privação e almeja a plenitude. Nesse sentido, ele envolve, ao mesmo tempo, a passividade de ser

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afligido pela carência e a atividade desejante de saciar essa privação. Em Platão, o sentimento de não-acabamento humano tem como fonte “[...] a incompletude intrínseca à condição de alma decaída” (Pessanha, 1990, p.94) que, ao encarnar em um corpo, esquece-se da contemplação das coisas existentes na sua forma pura, que lhe foi possível no mundo das idéias, mundo no qual se encontrava antes de habitar o corpo. A perda do conhecimento adquirido na vida anterior à encarnação da alma é sentida como nostalgia de um mundo perfeito diante da existência corpórea na multiplicidade do mundo dos sentidos. Outro elemento de grande vigor na reflexão platônica em O Banquete é a natureza contraditória e instável de Eros. Na tradição mitológica grega, como deus da união e da afinidade universal, para se desenvolver, Eros precisa do seu adversário Anteros, deus da antipatia e da aversão. Poetas narram que Vênus queixou-se à deusa Têmis que seu filho Eros não crescia, permanecia criança. Têmis lhe teria respondido que ele não cresceria enquanto ela não tivesse outro filho e, portanto, desse a Eros um irmão; assim, para Eros crescer, Vênus concebeu Anteros (Commelin, 2000). Como carência e desejo, o Eros platônico é impulso que remete a um outro e implica, necessariamente, o reconhecimento do não-eu, da negatividade. Se, por um lado, Platão preserva o viés contraditório do amor da tradição grega, por outro, ele inova em, pelo menos, dois aspectos: ele recria o mito de nascimento de Eros e retira desse deus sua aura divina. Para ele, o amor não é um deus, mas um intermediário entre mortais e imortais, ou seja, um gênio, um demônio (em grego, dáimon). Esse termo não tem sentido pejorativo. Nesse contexto, refere-se ao elo entre deuses e mortais. A função demoníaca Interpreta e leva para os deuses o que vai dos homens, e, para os homens, o que vem dos deuses [...]. Colocado entre ambos, ele preenche esse intervalo, permitindo que o Todo se ligue a si mesmo. [...]. (Platão, 1987, 202e-203a)

O caráter mediador de Eros pode ser mais bem compreendido com o mito de seu nascimento, que teria sido contado a Sócrates por Diotima. Segundo a sábia mulher, os deuses realizaram um banquete para comemorar o nascimento de Afrodite. Dentre eles, encontrava-se Poro (representava a riqueza e o expediente). No entanto, Penia (a pobreza) chegou ao final da festa para mendigar e viu Poro embriagado e dormindo. Diante da sua falta de recursos, Penia aproveitou a oportunidade e concebeu um filho com Poro – Eros. Sendo filho de Poro e Penia, da riqueza e da indigência, Eros herdou características de ambos: não é belo nem feio, não é bom nem mau, não é pobre nem rico; essa condição o permite trilhar o intervalo de um extremo ao outro. Assim, o Eros platônico é um demônio que medeia a relação vertical entre deuses e mortais. O caráter demoníaco de Eros é ser mediador entre desiguais e, como tal, cumprir a função de coesão do cosmo. Como nem os sábios (por já possuírem a sabedoria), nem os ignorantes (porque ignoram que não sabem) buscam a sabedoria, Eros se encontra entre uns e outros e, por isso, pode se dedicar à filosofia:

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A sabedoria é o que há de mais belo. Ora, sendo Eros amante do belo, necessariamente será filósofo ou amante da sabedoria, e, como tal, se encontra colocado entre os sábios e os ignorantes. (Platão, 1987, 204b)

Daí se fala de uma ascese erótica progressiva em Platão, ou seja, de caminhos ou graus do amor que unem a carência à completude, o mortal ao divino, a feiúra à beleza, a ignorância à sabedoria. A ascese erótica erige uma ponte da beleza múltipla e sensível à beleza ideal do mundo inteligível. Na ascese erótica, passa-se “[...] do plano das relações afetivas entre as pessoas para o plano da relação afetivo-intelectual entre sujeitos e verdade [...]” (Pessanha, 1987, p.85) Por isso, o Eros é um agente educativo. Ele não é sábio tampouco um completo ignorante, conhece o que ignora. Por ter ciência da sua insciência, ele deseja o saber, ele é amante da sabedoria. Só Eros pode ser filósofo. Assim, para Platão, o amor não se contrapõe ao processo de conhecimento, mas é seu elemento motor. A reflexão plena não cala o amor; pelo contrário, ela não se realiza sem ele: Eros e Sophia entrelaçam-se. O amor supremo transmuta-se em Philia (amizade). A ascese erótica de Platão também consiste em superar a própria limitação mortal. Quando amam, os mortais se aproximam dos deuses. Fecundos do corpo, os seres humanos procriam filhos. Férteis da alma, concebem a sabedoria e a virtude. Pela procriação (seja de filhos do corpo ou da alma), os mortais participam da eternidade e da imortalidade dos deuses. Platão considera problemático o amor que permanece preso ao apelo da impaciência sensível e imediata. O discípulo socrático Alcebíades representa, em O Banquete, esse amor no seu degrau mais inferior, por voltar sua atenção para Sócrates e pretender, por meio de artimanhas, prender o mestre a sua paixão (Pessanha, 1990, 1987). Uma das lições desse clássico texto platônico é que o verdadeiro amante não escraviza o amado, mas o conduz à sabedoria. Amor e paixão nos Manuscritos Econômico-Filosóficos Se tu amas sem despertar amor recíproco, isto é, se teu amar, enquanto amar, não produz o amor recíproco, se mediante tua externação de vida (Lebensäusserung) como homem amante não te tornas homem amado, então teu amor é impotente, é uma infelicidade. Marx (2004, p.161)

Ao indagar como o amor e a paixão são abordados por Marx nos Manuscritos de 1844, cabe uma observação inicial. Pinçar qualquer tema presente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos como objeto de análise demanda alguns cuidados em função de uma série de elementos, em especial, das características e do contexto desses escritos na trajetória intelectual de Marx. Os Manuscritos apresentam idéias embrionárias ao entrelaçar elementos daquilo que, mais tarde, Lênin considerou ser as três fontes do marxismo: a filosofia alemã, o socialismo francês e a economia política inglesa. Algumas dessas idéias foram aprofundadas ou, mesmo, revistas por Marx em obras

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posteriores. Sem perder de vista as cautelas necessárias em relação a escritos da teoria marxiana em seu momento inicial, tomo os Manuscritos conforme sugere Frederico (1995): anotações nas quais há uma formulação provisória e incipiente de uma ontologia materialista. Nos Manuscritos, as reflexões marxianas sobre o Eros trazem a marca de uma certa apropriação da filosofia de Feuerbach e aparecem vinculadas, de modo especial, a considerações sobre os sentidos e sentimentos humanos. Em função de sua proximidade com a filosofia feuerbachiana, Marx (2004) chega mesmo a afirmar que a sensibilidade é a base de toda ciência. Se, por um lado, o sensualismo feuerbachiano representava um confronto com a filosofia especulativa hegeliana, por outro, como observa Frederico (1995), a exaltação do sensível fomentou uma ontologia empirista da qual, em muitos momentos, Marx não conseguiu se desvencilhar. A equivalência entre ser objetivo e ser sensível ilustra isso: o real é entendido por Marx (2004), neste momento, como aquilo que é objeto dos sentidos. Contudo, como observa Frederico (1995), essa aproximação não impediu Marx de assimilar, com certa liberdade, as reflexões feuerbachianas e, inclusive, elaborar inovações impensáveis para esse filósofo. Isso ocorreu, fundamentalmente, com a eleição do trabalho, “atividade vital consciente”, como centro das suas reflexões. Na luta pela existência, o ser humano é impelido a produzir os meios para satisfazer as suas necessidades. O trabalho consiste no metabolismo entre ser humano e natureza. Porém, falar da relação do ser humano com a natureza implica, para Marx, afirmar que “[...] a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza” (Marx, 2004, p.84). A dimensão natural do ser humano indica sua condição corpórea, sensível e objetiva. Como tal, o ser humano compartilha com os outros seres uma faceta de passividade e de carência: [...] ele é um ser que sofre, dependente e limitado, assim como o animal e a planta, isto é, os objetos de suas pulsões existem fora dele, como objetos independentes dele. Mas esses objetos são objetos de seu carecimento (Bedürfnis), objetos essenciais, indispensáveis para a atuação e confirmação de suas forças essenciais. (Marx, 2004, p.127)

Ao explicar o ser humano como ser natural, Marx apresenta algumas linhas gerais de sua ontologia: ser objetivo é padecer por ter seu ser fora de si. O desdobramento essencial dessa proposição é que ser objetivo é também ser objeto para um outro ser. Em outros termos, sofrer a carência de um objeto implica ser um objeto de necessidade para um outro. Portanto, com essa afirmação, Marx não apenas identifica ser e objetividade, mas também demarca o aspecto relacional da permanente interação objetiva entre seres efetivos como tais. Todo existente é objetivo e, portanto, faz parte de um complexo concreto e está em relações diversas e sempre determinadas com outros entes. Portanto, no seu conjunto, o ser é um processo histórico. Nesse sentido, segundo Marx (2004), um ser não-objetivo é um não-ser: ele não tem necessidade de, nem é necessário para um outro; ele não carece de nenhum objeto e não é, para nenhum outro ser, objeto de necessidade; é

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atemporal. Logo, “Um tal ser seria, em primeiro lugar, o único ser, não existiria nenhum ser fora dele, ele existiria isolado e solitariamente” (Marx, 2004, p.127-8). Por outro lado, Marx sublinha que o ser humano é um ser natural humano. A tessitura do humano se dá por meio da sua atividade vital. No e pelo trabalho, o ser humano imprime na natureza seu próprio fim, originando uma nova objetividade: a natureza humanizada. Ao operar sobre a natureza, o ser humano engendra um mundo de objetivações externas a ele próprio, apesar de ser dele dependente. Pelo trabalho, o ser humano produz não só a si mesmo, mas se autoproduz como universalidade, como ser genérico, de tal forma que sua vida individual só se constitui como vida genérica. Somente com a apropriação desse universo de objetivações produzidas histórica e socialmente o indivíduo pode se formar. A relação entre vida individual e a vida genérica delineada por Marx evita, de um lado, a afirmação de um indivíduo isolado e, de outro, uma concepção abstrata de sociedade. Nesse sentido, ele insiste que “O indivíduo é o ser social social” (Marx, 2004, p.107, grifo do autor), mesmo que a sua manifestação de vida imediata não seja realizada com outras pessoas. De acordo com Marx, a essência humana desdobra-se para fora de si e constitui novas objetividades. Nesse objetivar-se, o ser humano se afirma no mundo objetivo “Não só no pensamento [...], mas com todos os sentidos [...]” (Marx, 2004, p.110, grifo do autor). Por sua vez, são essas mesmas objetivações que ele precisa supra-sumir, também de forma omnilateral, a fim de confirmar a sua humanidade. O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto, como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana [...]. (Marx, 2004, p.108)

A natureza do objeto e a força humana essencial que a ela corresponde determinam como o objeto se torna objeto para o ser humano. As peculiaridades dos sentidos e sentimentos humanos dizem respeito às determinações do objeto e ao modo peculiar de sua fruição: “Ao olho um objeto se torna diferente do que ao ouvido ouvido, e o objeto do olho é um outro que o do ouvido ouvido” (Marx, 2004, p.110, grifo do autor). Assim, o ser humano precisa orientar sua ação em direção às várias objetivações pelas suas propriedades e causalidades. Estas, por sua vez, delimitam as possibilidades de seu desfrute. Ora, o fundamental é perceber que, na constituição do indivíduo, os sentidos e sentimentos são socialmente engendrados e se distanciam do mundo animal, constrangido pela necessidade imediata. Eles se humanizam à medida que se produzem objetivações humanas e estas são apropriadas em meio a relações sociais determinadas. Por isso, Marx (2004, p.110) afirma

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que é na relação com a riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que se desenvolve a riqueza da sensibilidade humana subjetiva na forma, por exemplo, de “um ouvido musical, um olho para a beleza da forma”. Com isso, enfatiza-se não apenas a necessidade do objeto (a natureza humanizada) na formação do sujeito, mas o próprio caráter histórico desse processo: Pois não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra, o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui. (Marx, 2004, p.110)

O termo ser natural humano utilizado por Marx envolve uma dupla dimensão aparentemente excludente: revela o ser humano em seu padecimento como um ser de carências e em seu vigor rumo à satisfação de suas necessidades. Em Marx, a paixão condensa esse movimento humano de passividade e atividade: O homem enquanto ser objetivo sensível é, por conseguinte, um padecedor, e, porque é um ser que sente o seu tormento, um ser apaixonado. A paixão (Leidenschaft, Passion) é a força humana essencial que caminha energicamente em direção ao seu objeto. (Marx, 2004, p.128)

Essa decisão é ratificada em A sagrada família, quando Marx (1997) reage à tentativa de fazer do amor algo independente do ser humano, isto é, de falar do amor descolado do indivíduo que ama.

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A paixão possui, assim, uma dupla face: é “a dominação da essência objetiva em mim”, mas também “a atividade da minha essência” (Marx, 2004, p.113). O tratamento dado por Marx tanto à paixão, como aos sentidos humanos, ultrapassa o meramente antropológico e assume a condição ontológica (Marx, 2004). Contudo, aqui cabe uma observação. Feuerbach (1972) já havia afirmado a dimensão ontológica da paixão; para ele, o intercâmbio amoroso (amor como paixão) instaura não apenas a sociabilidade humana, mas é critério da existência de todo e qualquer existente: somente existe aquilo que é objeto de uma paixão, de tal forma que não-ser e não-amar se equivalem. Quando Marx sinaliza a condição ontológica dos sentimentos e sentidos, ele não define as relações intersubjetivas, em especial, as amorosas, como princípio gerador da sociabilidade humana e da existência em geral. Ter o seu ser fora de si é uma característica de todo ser objetivo; mas ser apaixonado é um traço que, em Marx, só cabe ao humano. Diferente de Feuerbach, que define o amor como instituidor de ser, e de Platão, que trata o amor como força cósmica que perpassa todos os seres (apesar de assumir uma forma especial no ser humano), Marx circunscreve o amor ao âmbito humano2. O papel que as relações amorosas ganham em Feuerbach é deslocado, na teoria marxiana, para o trabalho: a atividade vital consciente instaura o âmbito da sociabilidade. Os sentidos e sentimentos não são anteriores ao ser humano; eles são constituintes do humano, apesar de serem ontologicamente secundários (em relação à prioridade do trabalho).

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O que Marx chama de paixão nos Manuscritos caracteriza a passividade e a atividade constitutiva do indivíduo ao se afirmar como ser social. A ele falta a determinação de seu ser materializada em objetivações historicamente produzidas; no entanto, essa falta o impulsiona em direção a essa externalidade que, ao ser apropriada, cria condições para novas objetivações. Dizer que homens e mulheres são seres apaixonados expressa, para o Marx dos Manuscritos, o modus operandi da sociabilidade humana instaurada pelo trabalho. Nos Manuscritos de 1844, Marx também revela a natureza contraditória do trabalho: fonte de humanização, ele se transmuta, em relações sociais onde vigora a propriedade privada, na desefetivação da essência humana. A relação do trabalhador com o seu produto, a sua objetivação, é de estranhamento3: “[...] o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho estranho, como um poder independente do produtor” (Marx, 2004, p.80, grifo do autor). O trabalho alienado estabelece uma relação de estranhamento do ser humano com o produto e a atividade de produção, com o próprio gênero humano (que se transforma em meio para a vida individual) e consigo mesmo. Quando o produto de seu trabalho se lhe apresenta como um objeto estranho, o mundo que o trabalhador cria diante de si se lhe torna alheio, se lhe defronta de modo hostil, e, assim, ele próprio se torna mais pobre, o seu mundo interior pertence menos a si (Marx, 2004). Sob relações estranhadas, o fundamento da organização social é a luta, a guerra, a oposição hostil (Marx, 2004). Como resultado desse processo, há, para alguns, o refinamento das carências, enquanto, para os trabalhadores, resta o seu rebaixamento a limites grosseiros nos quais tudo o que ultrapassa a reprodução física se lhes apresenta como luxo (Marx, 2004), a comida só existe em sua faceta abstrata e não existe “nenhum sentido para o mais belo espetáculo” (Marx, 2004, p.11, grifo do autor). O trabalho estranhado avilta todas as forças humanas: as paixões e a sensibilidade se deterioram, transforma-se a “estupidez em entendimento, o entendimento em estupidez” (Marx, 2004, p.160). Diante disso, Marx visualiza o comunismo como supra-sunção positiva da propriedade privada, como a emancipação completa das qualidades e sentidos humanos. Sob o pressuposto do socialismo, Marx (2004, p.139) riqueza (Reichheit) das carências humanas” e, portanto, de um fala da “riqueza novo modo de produção e de um novo objeto da produção. Assim, ele vislumbra o enriquecimento da essência humana no qual “O homem rico é simultaneamente o homem carente de uma totalidade da manifestação humana da vida. O homem, no qual a sua efetivação própria existe como necessidade (Notwendigkeit) interior, como falta (Not)” (Marx, 2004, p.112-3, grifo do autor). O ser humano rico é educado para usufruir a arte, apreciar a beleza, agir de modo estimulante e encorajador sobre os outros, trocar amor por amor (Marx, 2004). Educação e conhecimento: a escola e sua função demoníaca A fim de pensar a relação entre escola e conhecimento, tomo de empréstimo

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Em geral, nos Manuscritos, Marx distingue objetivação (Entsäusserung) de estranhamento/ alienação (Entfremdung), apesar de usar indistintamente esses termos em alguns momentos. Enquanto o primeiro tem o sentido positivo de exteriorização (produção de objetivações humanas), o segundo refere-se à relação social característica de sociedades baseadas na propriedade privada, nas quais o ser humano não se reconhece na sua obra.

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de Platão a noção de que o Eros cumpre um papel demoníaco, mediador, que conduz da ignorância ao saber, ou melhor, é a busca do saber e da verdade a partir do reconhecimento da sua ausência, do nosso não-saber. Além do caráter contraditório que lhe é característico, a ascese erótica é fundamentalmente educativa. Não é possível falar em acesso ao ou produção do conhecimento sem o amor, sem o desejo que, arrebatado pela carência, é levado a buscar a sua satisfação. A partir de Platão, gostaria de sugerir que a educação escolar possui uma faceta erótica vinculada ao desejo do saber. Reconheço que a discussão acerca do erotismo da prática educativa escolar pode tomar rumos diversos; contudo, essas discussões podem se perder se não situadas nas peculiaridades dessa prática social. É por essa razão que aqui defendo que o Eros primordial da educação escolar se efetiva na própria especificidade do processo educativo. Todavia, examino o significado dessa proposição geral, isto é, o seu conteúdo substancial, a partir das reflexões marxianas elaboradas nos Manuscritos de 1844. A primeira questão que se coloca é por que o ser humano carece do saber, por que o saber é objeto de desejo humano. Ontologicamente, o saber é elemento essencial da práxis humana, desde o cotidiano até esferas de objetivações mais elaboradas e sistematizadas, como a ciência, a filosofia, a política e as artes. Ao buscar meios para realizar fins postos no processo de trabalho, o ser humano necessita conhecer o sistema causal dos objetos, suas qualidades e propriedades, ele precisa desvelar as determinações do objeto a fim de guiar sua ação e o modo específico de transformá-lo. Desta maneira, como mencionado, o ser humano produz um universo de objetivações (conhecimentos, hábitos, valores, conceitos, idéias, formas de sentir etc.), um mundo de genericidade sem o qual não pode se formar como indivíduo. Para se constituir, ele precisa tornar essa produção objetivada parte de sua natureza. Portanto, o ser humano aprende a se tornar humano e isso só é possível ao se apropriar do patrimônio de objetivações humanas. Quando isso ocorre, o ser humano reproduz em si mesmo as funções e aptidões criadas historicamente pela humanidade, convertendo-as em capacidades próprias e instaurando a possibilidade de produzir novas objetivações humanas. Em sentido amplo, a educação consiste na produção do indivíduo como ser social, ou seja, ela equivale ao próprio processo de aprender a ser humano. Por essa razão, Saviani (1991) explica que a educação é exigência do e para o processo de trabalho, bem como ela própria é um processo de trabalho, por “[...] produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 1991, p.21). O objeto da educação diz respeito, para esse autor, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos para que se tornem humanos, e à descoberta dos meios mais adequados para se atingir esse objetivo. Desta forma, a educação porta uma dimensão amorosa, desejante, na qual o saber é, para o ser humano, uma ausência, uma necessidade que toca diretamente a sua condição de humano. A dimensão erótica da educação se efetiva quando ela assume o que Platão chamava de papel demoníaco. Porém, trata-se de conceber, a partir

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de Marx, a relação vertical platônica do dáimon em termos horizontais. A ascese erótico-educativa não se dá entre deuses e mortais, entre mortais e divinos, mas entre seres humanos. O amor educativo é demoníaco porque estabelece a mediação entre o ser humano e o saber produzido por outras gerações e acumulado historicamente. Em outras palavras, ele é mediador entre o indivíduo e o gênero humano, entre a singularidade existencial e a universalidade genérica. O erotismo da educação escolar ganha uma peculiaridade à medida que o papel primordial da instituição escolar consiste na socialização do saber sistematizado (conhecimento elaborado e não espontâneo, sistematizado e não fragmentado, erudito e não popular). A escola precisa tornar esse saber assimilável, dosá-lo e seqüenciá-lo, no espaço escolar, ao longo de um tempo determinado, de modo que se passe de seu não-domínio para domínio (Saviani, 1991). O trabalho educativo escolar manifesta sua faceta erótica e, portanto, demoníaca quando é mediadora entre o saber espontâneo, popular, e o saber sistematizado, erudito. Não se trata de mediação unilateral que aniquila o saber espontâneo, mas de uma radicalização dos laços entre esses modos de conhecer. Por mais diversos que sejam, os tipos de saber possuem um traço comum: eles buscam, por meio de sua particularidade, apreender e representar a objetividade do mundo no intuito de orientar a ação humana rumo a alguns fins. Por certo, as formas sistematizadas de conhecimento são derivações dos modos espontâneos do conhecer. Contudo, isso não impede ao saber sistematizado de também possuir, em relação às crenças, valores, formas de sentir, hábito, idéias do viver espontâneo, uma autonomia relativa: ele pode confirmar e desenvolver, assim como criticar essas objetivações da esfera cotidiana da vida social. Nesse sentido, o acesso às formas elaboradas de conhecimento envolve o distanciamento do viver cotidiano e, ao mesmo tempo, uma nova aproximação no qual esse cotidiano pode ser redimensionado, reavaliado e enriquecido. Por isso, “[...] o acesso à cultura erudita possibilita a apropriação de novas formas através das quais se podem expressar os próprios conteúdos do saber popular” (Saviani, 1991, p.29). Isso traz a possibilidade de os indivíduos reconstruírem as hierarquias das atividades cotidianas e os valores que as regem (Duarte, 1993). A ascese erótica da prática educativa escolar é, assim, de mão dupla: move-se do viver espontâneo para o universo das formas culturais elaboradas, e vice-versa. A função demoníaca e, conseqüentemente, erótica da educação escolar também possibilita uma nova relação do indivíduo com as objetivações genéricas mais elaboradas. Marx (2004) considera que o ser humano não é apenas um ser de carências, ele também é sabedor de suas necessidades e pode reconhecer a vida genérica como constitutiva da sua existência individual: Mas o homem não é apenas ser natural, mas ser natural humano humano, isto é, ser existente para si mesmo (für Wesen), por isso, für sich selbst seiendes Wesen ser genérico genérico, que, enquanto tal, tem de atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber. (Marx, 2004, p.128)

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Ser-para si implica que o ser humano se reconhece como ser apaixonado, acometido e tomado por carências, e impulsionado a uma conduta ativa e criadora de satisfação de suas necessidades. A consciência de si aparece, portanto, como consciência da dimensão social e genérica de sua singularidade existencial. Essa possibilidade de o ser humano ser para-si lhe permite conduzir sua vida mediante uma relação consciente com o gênero, que não se reduz apenas a um pensar alerta, mas abrange todas as faculdades humanas: “Essa relação não é uma relação só de pensamento, mas da própria vida, da atividade social dos homens” (Duarte, 1993, p.140). Em Marx, não se depuram, da ascese amorosa, a sensibilidade e os afetos em função da intelecção (como em Platão), mas se busca o enriquecimento do existir humano em sua omnilateralidade. Essa passagem de uma existência em-si (não consciente) para a existência para-si exige do indivíduo o reconhecimento de que a generalidade humana é, para ele próprio, um carecimento, objeto de desejo. O forjar dessa relação enriquecida e consciente com o âmbito genérico do fazer-se humano demanda uma intervenção intencional e organizada. Também, neste caso, a prática pedagógica escolar revela sua face amorosa ao assumir a mediação entre a vivência espontânea e a condução consciente da vida “[...] pela relação também consciente com o processo histórico de objetivação universal e livre do gênero humano” (Duarte, 1993, p.119). De acordo com Duarte (1993), a prática pedagógica escolar não apenas permite o acesso a objetivações genéricas elaboradas, mas as torna, para o educando, uma necessidade para o seu pleno desenvolvimento. A educação escolar, portanto, é “um processo criador de carecimentos carecimentos” (Duarte, 1993, p.189, grifo do autor). Por conseguinte, ao responder ao desejo humano em relação ao saber, a educação escolar organiza maneiras que lhe permitem cumprir sua função demoníaca de mediar o acesso a formas culturais elaboradas. Ao fazer isso, acaba por reforçar essa condição desejante e passional do ser humano. A ascese erótica que Marx nos autoriza a pensar representa um caminho que se move entre conhecimentos espontâneos e formas culturais elaboradas, entre a particularidade do indivíduo e a universalidade do gênero, entre a existência em-si e a para-si, entre a satisfação de carecimentos e a produção de novos desejos. Somente ao cumprir essa tarefa mediadora (e, portanto, demoníaca) é que a educação escolar afirma homens e mulheres como seres passionais e abre horizontes para novas objetivações que respondam a esses novos desejos e carecimentos. Nos Manuscritos, Marx denuncia que o estranhamento engendrado pelas relações capitalistas rompe a relação de reconhecimento do indivíduo com essa universalidade, porque torna o acesso à riqueza das objetivações humanas restrito a poucos, e faz da vida genérica apenas um meio de manutenção da existência física. O estranhamento corrói a vida humana em sua totalidade e, desta forma, liquida da práxis humana a sua paixão. Ela destrói o que aqui denominamos de função demoníaca da educação escolar, ao tornar o acesso ao saber privatizado. Entretanto, a atmosfera ideológica contemporânea tende a encobrir esse fenômeno. Dissemina-se, hoje, a máxima de que se vive na “sociedade do conhecimento”, “sociedade do conhecimento compartilhado” (Unesco, 2005,

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p.147), na qual a transmissão e a difusão do conhecimento são consideradas funções vitais que garantem a sua sustentação. O anúncio de que o padrão social contemporâneo tem, no conhecimento, seu núcleo estrutural e organizador convive com o fato de que 20% da população mundial são analfabetos (aproximadamente 875 milhões de pessoas). Além disso, a suposta valorização do conhecimento expressa, de fato, a sedução de um conhecimento cativo à sua aplicação imediata, velozmente degustado e avaliado conforme sua capacidade de responder aos apelos da prática eficiente e útil, conveniente aos interesses manipulatórios do capital. No plano da produção do conhecimento, diante da alegação pós-moderna de que a realidade é incognoscível (porque não existe ou não é acessível), toda efetividade é antropomorfizada. Aniquila-se a objetividade e se transmuta o estatuto ontológico em questão de conhecimento. Quando o em-si é suprimido, o seu conhecimento objetivo é desacreditado. Refuta-se, desta forma, a possibilidade de dizer algo sobre o mundo: o conhecimento é visto como constructo, e a verdade, como consenso. Essa tendência de depreciação do conhecimento objetivo da atual agenda pós-moderna delineou-se ao longo das derrotas vividas pela esquerda política no século XX. No espaço deste artigo não é possível esmiuçar o seu curso histórico, mas registrar que, por um lado, destituída de qualquer horizonte emancipatório, a classe trabalhadora questiona a própria necessidade de uma teoria que busque desvendar os meandros e a dinâmica da realidade social. Por outro, quando o capitalismo revela a sua face mais perversa e sua impossibilidade de garantir uma vida digna a todos, qualquer teoria que assuma a tarefa de desvendar facetas do mundo objetivo precisa ser combatida e desacreditada. No contexto de desvalorização do conhecimento objetivo, a escola é esvaziada em seu papel de socializar o saber e atrelada à mera aculturação cujo compromisso circunscreve-se simplesmente ao “modo como as coisas são ditas” (Rorty, 1994, p.353) e à valorização da experiência vivencial singular e imediata. A interdição do conhecimento objetivo e a redefinição do papel da escola em termos de exercícios meramente lingüísticos e de enaltecimento do vivido, plasmado no empírico, apresentam-se como um render-se à configuração histórica manipulada do capitalismo sob o disfarce de proposições avançadas e de esquerda. Contudo, de fato, esvazia-se a educação escolar da maioria, enquanto se aperfeiçoa e aprimora aquela dirigida para a educação das elites (Duarte, 2000). Sob o capitalismo, a eficiência da escola destinada aos trabalhadores ocorre quando ela não cumpre a sua função e nega o acesso ao conhecimento elaborado e historicamente acumulado, ou o oferece de forma deteriorada. Desta forma, a luta contra o estranhamento engendrado pelas relações capitalistas também se passa pela intolerância contra a desqualificação do saber. A prática educativa que não leva a novos carecimentos, a novas formas desejantes que enriquecem o sentido do humano, que apenas acultura aos valores hegemônicos, que renuncia sua função eminentemente demoníaca de socializar o saber científico, artístico, ético-político e filosófico, na verdade, abdica do Eros, cai no desamor. Não se trata aqui de conceber o desamor como relação sentimental imediata de desprazer ou

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constrangimento entre professor e aluno, mas “[...] de considerá-lo como a negação do desejo do professor e do aluno de/na apropriação do saber, fato que implica o esvaziamento da função da escola” (Loureiro, 2006, p.227). Diante disso, ficam algumas provocações. Efetivar o Eros da e na educação envolve a evocação do Anteros dirigido, de forma intransigente, contra a degradação humana, contra o capital. Além disso, se à educação escolar cabe organizar os meios para satisfazer o desejo humano pelo saber, é preciso estar alerta a fim de que esses meios não reproduzam relações de estranhamento e, nesse sentido, contraponham-se ao objetivo posto. Assim, não se pode desviar do fato de que o uso da violência física no processo educativo, assim como do sarcasmo e da zombaria, despotencializa o desejo de saber. Da mesma forma, o estabelecimento de relações afetivas agradáveis e amistosas por parte do professor, mas que não se comprometem a estimular uma atitude apaixonada, ao mesmo tempo passiva e ativa, de padecimento e de vigor do aluno diante das ricas objetivações humanas, carreia um desamor sutil. Referências CHALITA, G. Educar é um ato de coragem e afeto. A Tribuna, Santos, 27 maio 2003. Disponível em: <http://www.chalita.com.br/textos_detalhe.asp?ID=27>. Acesso em: 7 set. 2006. COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. São Paulo: Martins Fontes, 2000. DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2000. ______. A individualidade para si: contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1993. FEUERBACH, L. Principles of the future philosophy. 1972. Disponível em: <http://www.marxists.org/ reference/archive/feuerbach/works/future/index.htm>. Acesso em: 4 set. 2006. FREDERICO, C. O jovem Marx. São Paulo: Cortez, 1995. FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 19.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CAMPINAS: a escola como centro do processo pedagógico, 1., 2001, Campinas. Disponível em: <www.campinas.sp.gov.br/smenet/seminario/seminario_pronto_jorgelarrosa.htm>. Acesso em: 7 set. 2006. LOUREIRO, R. Da teoria crítica de Adorno ao cinema crítico de Kluge: educação, história e estética. 2006. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. MARX, K. The holy family. 1997. Disponível em: <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/holyfamily/index.htm>. Acesso em: 6 nov. 2005. ______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. MATURANA, H. O que é ensinar? Quem é um professor? Trecho final de aula gravado por Cristina Magro, transcrito por Nelson Vaz. Universidad de Chile, 27 jul. 1990. Disponível em: <www.institutoser.com.br/new_site/faz_aconteser/oqueeensinar.doc>. Acesso em: 7 set. 2006. ______. Da biologia à psicologia. 3.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

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DELLA FONTE, S.S. Amor y pasión como facetas de la educación: la relación entre escuela y apropiación del saber. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.11, n.22, p.327-42, mai/ago 2007. Este artículo acepta la tesis general que el amor y la pasión son elementos esenciales de la práctica de la educación escolar. Sin embargo, contrariamente a las tendencias contemporáneas que alegan que la faceta amorosa de la educación rechaza la verdad y el conocimiento objetivo y sucede como experiencia lingüística, defiendo que el Eros primordial de la educación escolar no logra sin el conocimiento objetivo y su apropiación. Para desarrollar esta idea, pido prestadas las consideraciones de Platón sobre el amor en su clásico texto El Banquete para repensarlas desde algunas reflexiones de Marx sobre la pasión, en los Manuscritos Económicos y Filosóficos. PALABRAS CLAVE: Amor. Conocimiento. Educación escolar.

Recebido em 07/11/06. Aprovado em 26/04/07.

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debates

O “tr abalhador mor al” na saúde: “trabalhador moral” reflexões sobre um conceito The “moral worker” in health: thoughts about a concept El “trabajador moral” en el campo de la salud: reflexiones sobre un concepto

Luiz Carlos de Oliveira Cecilio1

A mentira do ideal se torna a maldição suspensa acima da realidade (Nietzsche apud Guatarri, 1992, p.133)

Ao se discutir uma teoria da ação, na perspectiva da gestão em saúde, dois cuidados devem ser tomados. O primeiro é o desvio funcionalista, digamos assim, de enxergar o trabalhador pelas “funções” que exerce dentro da organização. O termo “recursos humanos” é a tradução da concepção funcionalista: definições rígidas de atribuições, papéis e perfis ideais. Não há atores, há papéis: o homem reduzido a um dos recursos necessários para o sistema funcionar. Visão instrumental do homem que atravessa toda a Teoria Geral da Administração e suas “escolas” e ainda sobrevive em parte expressiva da produção dos autores que escrevem sobre gestão em saúde (Lins, 2004). Falar em “gestão de pessoas” é uma expressão de tal concepção - gestão de material, gestão de medicamentos, gestão de pessoas. O segundo cuidado é não tomarmos, como a problemática, a existência do que estou designando, neste texto, como “trabalhador moral”. O trabalhador moral é aquele que fará adesão automática a determinados conceitos, modos de se organizar o cuidado e modos de se fazer a gestão, formulados por militantes/intelectuais/gestores engajados na reforma sanitária, por serem eles, em princípio, justos e necessários. O trabalhador moral tanto adere de corpo e alma aos modelos de gestão mais “participativos e democráticos” propostos por aqueles atores, como consegue traduzir e implementar, nas sua prática cotidiana, os conceitos que eles apresentam.

Médico; doutor em Saúde Coletiva; professor, departamento de Medicina Preventiva, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Campinas, SP. <cecilioluiz@uol.com.br>

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Rua da Tijuca, 1302 San Conrado – Campinas, SP 13.104-180

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Nesta perspectiva, mudanças na forma de se organizar o cuidado seriam quase a conseqüência “natural” do contato dos trabalhadores de saúde com determinados conceitos que vão sendo produzidos por um certo “pensamento crítico”. O trabalhador moral seria, então, uma folha em branco onde os gestores ou gerentes escreveriam o seu texto, por mais que tal idéia possa parecer, à primeira vista, aparentemente superada e grosseiramente simplificadora. Enfim, o trabalhador moral poderia ser caracterizado como um ator desistorizado, desterritorializado e pronto a orientar, de forma automática, sua prática pelas diretrizes definidas pelos dirigentes das organizações. Utilizo o conceito de trabalhador moral não como antônimo de trabalhador amoral ou imoral, mas no sentido de pensar trabalhadores que estariam “moralmente comprometidos” com determinados projetos, na medida em que justos e necessários na avaliação de quem os formula. O trabalhador moral, na concepção que estou utilizando, disputaria seus próprios projetos, sentidos, desejos, nos espaços públicos constituídos para tanto (Campos, 2000; Cecílio, 1994), nos quais abriria suas práticas e as submeteria ao crivo dos coletivos, e não mais teceria e circularia por uma complexa rede de relações humanas que escapa a toda pretensão de controle e visibilidade. Ou, no mínimo, tal rede de relações ficaria como que “subsumida” à lógica “publicizante” construída em tais espaços coletivos. Algo como se as seis funções administrativas pensadas por Fayol (1968) (administrar, prever, organizar, comandar, coordenar e controlar) pudessem ser deslocadas, integralmente, do sentido vertical em que tradicionalmente são pensadas, para outro mais horizontalizado, normativo, compartilhado, produtivo, nos espaços coletivos de gestão. O trabalhador moral seria, então, aquele trabalhador ideal(izado) prescrutado pelo grande olho (o “coletivo”) que tudo vê, que tudo avalia, que tudo controla, que tudo sabe, em nome de uma necessária “publicização” das relações organizacionais, por mais que tal idéia possa nos chocar. O trabalhador moral seria, assim, um ator que pensa, formula e joga nos espaços que os dirigentes definem, sempre dentro de uma moldura definida pelos objetivos organizacionais. Vistos atentamente, o homem funcional e o trabalhador moral quase se equivalem. A questão é que tal concepção funcional/moral é um problema, entre outras coisas, porque não há arranjo institucional, por mais público e coletivo que seja, que consiga capturar ou circunscrever a complexidade das relações institucionais. Por mais que se deseje, como parte de um projeto ético-político, superar formas verticais de controle, consideradas “autoritárias”, por outras de cunho mais normativo e horizontalizado. Algo transborda desses espaços e se realiza nos territórios da micropolítica organizacional. Entre os conceitos formulados por determinados atores (no caso, os intelectuais/ gestores) e a prática (a micropolítica do trabalho em saúde), há sujeitos que formulam (conceitos e contraconceitos, digamos assim), sujeitos que disputam, sujeitos que, no caso da saúde, por exemplo, no mais das vezes, tomam muito mais suas corporações como referência para suas práticas do que aquilo que a organização ou um determinado projeto de governo define como suas diretrizes (D´Ascenzi, 2006; Cecílio & Mendes, 2004). Muito longe de ser uma ´caixa vazia`, cada trabalhador e cada usuário tem idéias, valores e concepções acerca de saúde, do trabalho em saúde e de como ele deveria ser realizado. E todos os trabalhadores fazem uso de seus pequenos espaços de autonomia para agir como lhes parece correto, de acordo com seus valores e/ou interesses. (Helman, 2003, apud Feuerweker, 2005, p.14)

Quase sempre, ao avaliarmos o que acontece com “nossos” projetos em espaços governamentais, quando ocorre o inevitável troca-troca de dirigentes, afirmamos com pesar: “destruíram tudo, destruíram nosso projeto”. Destruíram mesmo? Destruíram o quê? Que mudanças reais teriam ocorrido na micropolítica, no sentido da construção de

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novas relações entre os trabalhadores e de novas formas de se fazer o cuidado? Quanto os conceitos contidos nos nossos “modelos ou métodos” foram traduzidos em novas práticas? Que mudanças foram essas que mal resistem à mudança de um gerente ou de um gestor? Não será este nosso espanto, uma confirmação de quanto temos superestimado o poder de induzir mudanças com base em nossas formulações, ou, o que dá no mesmo, subestimado o poder “contra-instituinte” dos trabalhadores, se a referência é o “nosso” projeto? Se deixarmos de lado o “trabalhador moral” ou o trabalhador funcional, por entendermos que estes são conceitos insuficientes, o que colocaremos no lugar? Vou me utilizar de uma síntese que Merhy (2002, p.14-5) faz em seu livro “Cartografia do trabalho vivo”, para seguir minha reflexão. De fato, somos e não somos sujeitos, ou melhor, somos sujeitos que sujeitam em certas situações, e somos sujeitos que se sujeitam em outras. Instituídos e instituintes. Parto do princípio que somos, em certas situações, a partir de certos recortes, sujeitos de saberes e das ações que nos permitem agir protagonizando processos novos como força de mudança de mudanças. Mas, ao mesmo tempo, sob outros recortes e sentido, somos reprodutores de situações dadas. Ou melhor, mesmo protagonizando certas mudanças, muito conservamos. (grifos meus).

Campos (2000, p.27) nos lembra que “não há um sujeito completamente instituído, por mais enquadrado que ele possa estar em uma dada situação. Sempre haverá brechas, rachaduras e fluxos irreprimíveis”. Há, em Nietzsche (1992, p.132), uma belíssima passagem que também ilumina esta discussão: Estamos envoltos numa severa malha de deveres, e dela não podemos sair – nisso precisamente somos, também nós, ´homens do dever`! Ocasionalmente, é verdade, dançamos com nossas ´cadeias` e entre nossas ´espadas`; com mais freqüência, não é menos verdade, gememos debaixo delas e somos impacientes com toda a secreta dureza do nosso destino.

Há uma evidente convergência entre os autores citados. Neles, identifico como reconhecem que há sempre uma margem de liberdade e autonomia para a ação humana: conseguimos dançar, mesmo com nossas cadeias e entre nossas espadas. Para Nietzsche, dançamos ocasionalmente; eu penso que dançamos sempre, mesmo nos exíguos espaços que parecem nos sobrar entre tantas “determinações”, tantas relações de poder, tantas normas e regras. Os trabalhadores dançam sempre, tantas vezes impacientes com a secreta dureza de seus destinos. E como poderíamos escutar seus gemidos, se estivéssemos abertos para isso! E mais - aqui penso ser o ponto que quero reforçar, pois é central na minha reflexão: dançam, mas nem sempre conforme a música que a direção toca. São instituintes o tempo todo, de novas institucionalidades que não são, necessariamente, as portadas pelos conceitos que estamos tentando traduzir em novas práticas. Ou, para seguir com o que Merhy aponta com agudeza, utilizam-se de sua liberdade para reproduzir instituídos que, muitas vezes, são a reprodução de formas de se fazer o cuidado que, exatamente, pensamos em transformar. É aqui que focalizo minhas reflexões. Os sentidos das mudanças operadas, ou, o que é muito freqüente, dos instituídos reproduzidos pelos trabalhadores instituintes não são, necessariamente, coincidentes com o que nós, muitas vezes, queremos imprimir. O trabalhador moral/funcional seria, exatamente, aquele trabalhador cuja margem de liberdade, entre cadeias e espadas, se pensa ser possível expropriar. Então, temos de

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estar atentos para, por conta de nossos projetos “justos e necessários”, não cairmos na tentação de tentarmos fazer essa captura. Sempre me agradou uma frase de Agostinho Neto, ex-presidente de Angola, que ficava escrita, em letras douradas, na parede do gabinete de um ex-secretário de saúde de Campinas (o Dr. Sebastião Moraes), e ilustra bem o que quero dizer: “não basta que seja justa e pura nossa causa, é preciso que a justiça e a pureza habitem dentro de nós”. Penso, então, que, para nós que, direta ou indiretamente, nos ocupamos da gestão em saúde, trata-se de assumirmos a existência desse espaço de liberdade irredutível dos trabalhadores de saúde, produtor de sentidos que, muitas vezes, são a reprodução de instituídos, que, afinal, parecem ir na direção oposta às propostas que julgamos inovadoras e necessárias. Por outro lado, sabemos que, se as práticas dos trabalhadores comportam sempre uma margem de liberdade, também são muito marcadas pelo conjunto de regras, normas, lugares, saberes, hierarquias, referências instituídas que configuram seus territórios existenciais e profissionais. Cabe, aqui, o problema teórico, caro à sociologia, de esclarecer a relação entre uma teoria da ação e uma teoria do sistema, qual seja, de pôr em relação e integrar entre si essas duas estratégias conceituais que correm em sentidos opostos; a primeira com ênfase na liberdade e nos sentidos dados pelos atores para sua ação, a segunda, enfatizando as “macrodeterminações” sociais (Domingues, 2001). A pergunta poderá soar grosseira: o que fazer com a liberdade e autonomia que desfrutam, em graus variados, todos os trabalhadores de saúde, sem tentar capturá-las, às vezes de forma sutil e travestida em novos dispositivos de controle “democráticos e participativos”? Sabendo que os movimentos instituintes dos trabalhadores, muito freqüentemente, não se dão com os sentidos que nós desejamos, como resistir à tentação de experimentar novas “espadas” e “cadeias” para conseguir sua adesão à “nossa causa” tão justa e necessária? Por essa razão penso que o ponto de partida de toda a pretensão de se conduzirem mudanças verdadeiras na forma de se fazer a gestão e de se organizar o cuidado em saúde, deva ser a capacidade de aprender a interrogar o mundo do trabalho, antes de propor, aprioristicamente, conceitos e/ou modos muitos prescritivos de se fazer a gestão. Os dispositivos de gestão, se é que podemos chamá-los assim, são o próprio ato de interrogar. Talvez o mais difícil seja não pretender penetrar nesse mundo já armado com fórmulas, definições prévias de modelos, métodos ou arranjos de intenções “democratizantes”, e conseguir construir uma postura de interrogação do mundo do trabalho, no seu dia-a-dia concreto. Penso, cada vez mais, que interrogar é o “método”, em sentido aproximado ao utilizado por Castoriadis (1982, p.23), quando afirma que “o método, no sentido filosófico, é apenas o conjunto operante de categorias”. Então, é necessário que tenhamos o cuidado de não levar prontas, sistematizadas, encadeadas, categorias incrustradas em modelos ou métodos, mas (des)construir categorias/ conceitos/sentidos no encontro dialógico, tenso, com o outro, também produtor de conceitos, de categorias que nem sempre são as nossas ou têm os mesmos sentidos das nossas. O uso, portanto, de conceitos em movimento. Trata-se, então, com atores em ação, de criar e operar novas categorias e conceitos, que façam sentido para suas práticas, com base nessas práticas, num sentido muito próximo ao que propõe a educação permanente em saúde (Ceccim, 2005; Haddad et al., 1994). Nós, que fazemos a gestão, que ocupamos algum lugar de Governo ou conduzimos alguma “intervenção” institucional, também não somos “folhas em branco”, não somos portadores de qualquer neutralidade axiológica. Interrogamos a partir de determinados lugares, disputando, também, “nosso projeto”, que entendemos como justo e necessário. Temos o direito e a obrigação de apresentar nossos “textos”, prenhes de conceitos/categorias/sentidos. Mas, assumamos que nosso texto - nós, que ocupamos o lugar de gestor/Governo - admite ser misturado a outros para compor um novo, muitas

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vezes surpreendentemente diferente dos que portávamos antes do encontro. Não há, nunca, um texto prévio pronto que possa advogar, para si, o estatuto de ser o melhor ou o único. Uso, aqui, o termo “texto” no mesmo sentido empregado quando eu falo que m(eu) texto só existe pelo meu convívio, intenso e prolongado, com Gastão Campos e Emerson Merhy, entre tantos outros atores/autores - mesmo que, cada vez mais, anônimos na minha memória, com o transcorrer do tempo - cujos livros/textos vão fazendo a tessitura do que eu sou, penso, escrevo. Meus livros ocultos, meus livros explícitos, meus livros-espelhos (Cecílio, 1994). Melhor abandonar, de vez, a pretensão de impor uma determinada racionalidade única aos serviços, ademais impossível, e resistir à tentação ou prepotência de supor que a qualidade do cuidado esteve, até agora, em estado latente ou suspensa no ar, como uma virtualidade a esperar o adubo de nossos conceitos para brotar e florescer. Já existe qualidade do cuidado antes de nós. Já há aspectos da qualidade sendo exercidos no espaço de encontro trabalhador-usuário. Há outras formas de cuidado que, mesmo não sendo exatamente as que consideramos serem as melhores, são também cuidadoras. Para sermos coerentes com a concepção de autonomia que advogamos para as pessoas de quem cuidamos, é bom não esquecer que elas também são protagonistas, tanto na definição do cuidado que desejam, quanto interferem ativamente na forma como ele é feito. Assim, o espaço intercessor trabalhador/usuário (Merhy, 2002) é, desde sempre, um espaço onde o cuidado assume configurações mutantes e inesperadas pelo protagonismo dos atores envolvidos. Tais configurações múltiplas, singulares e imprevistas, às vezes surpreendentes, fogem de qualquer pretensão de controle e, o mais importante, transbordam, sempre, definições muito fechadas (e heterônomas) sobre o que seria a forma correta de se fazer o cuidado. Parece-me não ser totalmente inadequado cunhar o conceito de “usuário moral”, por homologia com o de “trabalhador moral”, para designar a forma como temos visto aqueles que usam nossos serviços. Este é outro aspecto que me parece crucial para a inovação na gestão em saúde. No espaço mais duro de uma sala de tomografia pode surgir o gesto do genuíno cuidado, fruto da empatia espontânea que brota entre o operador do aparelho e o “paciente”. A pessoa que passa por uma bateria de exames invasivos e dolorosos – pura tecnologia dura! –, mesmo quando operados com frieza e impessoalidade, pode se sentir calorosamente bem cuidada. Para ela, na sua subjetividade e no seu modo de representar o mundo, pode estar experimentando o sentimento de estar sendo bem cuidada, e que todo aquele sofrimento significa a esperança de cura ou de uma sobrevida melhor. Aquele que é cuidado também dá sentidos para os atos do cuidador, que podem escapar, na sua singularidade, à pretensão de normalização “desde fora”, no sentido de pretender dizer o que seja “o bom ato cuidador”, em geral definido pelos que cuidam ou fazem a gestão. Tal fato é apontado, em sentido semelhante, pelo que tem sido chamada de quarta geração de avaliadores, qual seja, aquelas formas de avaliação que metodologicamente garantem a inclusão dos interessados ou, em princípio, beneficiários do cuidado no processo avaliatório (Furtado, 2001). Tais considerações não nos podem conduzir a uma posição de relativismo ou de um laissez faire inconseqüente. Não dá para negar que há desenhos de fluxos, rotinas, de articulação entre serviços, de normas e regras, de oferta de tecnologias, de padrões mínimos de competência dos trabalhadores, que são fundamentais para a qualificação do cuidado. Mas, aqui, voltamos a falar de trabalho morto, voltamos a falar das determinações e sobredeterminações que, no final das contas, demarcam, de alguma forma, os limites de liberdade de ação do trabalhador de saúde. Aqui voltam a aparecer as hierarquias, as relações de poder marcadas pelos saberes e voltamos a falar da organização, inelutavelmente presa a uma lógica instrumental, parte de um processo mais amplo de racionalização da sociedade que, pelo menos, desde os acertados vaticínios de Weber, tem se mostrado crescente.

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Assumindo a incontornável racionalidade instrumental que coloniza as organizações, que cobra, de forma inapelável, práticas de controle e objetivação por parte de quem ocupa funções gerenciais ou de “chefia (e não vai, aqui, nenhum julgamento moral...), seja lá qual for o seu “projeto”, é possível pensar a gestão na saúde, numa perspectiva libertária e inovadora? Ou seria esta uma contradição em termos? É possível inventar um novo modo de exercer a “função administrativa”, no sentido dado por Henri Fayol há um século, que não seja a busca permanente de controle dos autogovernos dos trabalhadores, na medida em que esses nem sempre caminham na direção dos “objetivos organizacionais”? Imperativo do controle, seja por meio de práticas explícitas, verticais, seja por intermédio de mecanismos menos evidentes, “participativos e democratizantes”. Controle, sempre presente, o fundamento último do “mal-estar organizacional”... Trabalhador de saúde que vê sua autonomia ameaçada por mecanismos sutis (ou nem tão sutis) de captura, uniformização e padronização, não poderá, de forma verdadeira, contribuir para o fortalecimento da autonomia daquele de quem cuida. O trabalhador só poderá entender e, o que é mais importante, praticar o conceito de que estar sadio é manter, recuperar ou ampliar a autonomia no modo de administrar a vida, na medida em que vivenciar sua própria autonomia, cultivada e amadurecida, a cada dia, nas relações concretas que estabelece com os demais atores que constroem a sempre precária realidade organizacional. Sua autonomia referenciada, da forma mais plena possível, à autonomia do outro - um encontro de autonomias. Últimas interrogações para concluir o texto: será possível, numa prática gerencial libertária e inovadora, ir além das seis funções administrativas pensadas por Fayol, realizando uma revolução copernicana nos modos de se fazer a gestão? Haveria uma sétima função gerencial a ser inventada? Como enunciar essa nova “função administrativa”? Ela poderia ser praticada nas organizações tais como as conhecemos hoje? O anti-Fayol é possível?

Referências CAMPOS, G.W.S. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. CECCIM, R.B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.161-8, 2005. CECILIO, L.C.O. (Org.). Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. CECILIO, L.C.O.; MENDES, T.C. Propostas alternativas de gestão e o protagonismo dos trabalhadores: por que as coisas nem sempre acontecem como os dirigentes desejam? Saúde Soc., v.13. n.2, p.39-55, 2004. D´ASCENZI, L. Cultura e mudança em organizações: uma análise etnográfica e dialógica da reestruturação pelo Método da Roda nos centros de saúde de Campinas. 2006. Dissertação (Mestrado) Departamento de Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. DOMINGUES, J.M. Teorias sociológicas no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FAYOL, H. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1968. FEUERWEKER. L.M. Modelos tecnoassistenciais, gestão e organização do trabalho em saúde: nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do SUS. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.18, p.489-506, 2005. FURTADO, J.P. Avaliação como dispositivo. 2001. Tese (Doutorado) - Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

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GUATARRI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed.34, 1992. HADDAD, J.; ROSCHKE, M.A.; DAVINI, M.C. (Eds.). Educación permanente de personal de salud. Washington: OPS, 1994 (Série de Desarrollo Recursos Humanos, 100). LINS, A.M. Produções teóricas na área de gestão e avaliação em saúde: o esforço de construção de um novo paradigma. 2004. Tese (Doutorado) - Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia de Letras, 1992.

O autor busca contribuições das ciências humanas e de autores da saúde para apresentar uma determinada concepção da teoria da ação, que entende como fundamental para a compreensão não idealizada da micropolítica em saúde, e seus desdobramentos para o processo de gestão. Constrói o conceito de “trabalhador moral”, como correlato da visão do “homem funcional”, alertando para o risco de atores em situação de governo ou em algum processo de “intervenção” organizacional, engajados no processo de construção do SUS, assumirem uma visão objetivante e instrumentalizadora dos trabalhadores de saúde, subestimando seu protagonismo e sua força instituinte, produtora de sentidos que, nem sempre, são os desejados pelos dirigentes, por mais justos e necessários que sejam. PALAVRAS-CHAVE: Gestão em saúde. Trabalho. Serviços de saúde.

The author searches for contributions from the fields of Humanities and Health to present a certain action theory concept, which is perceived as being essential for an unidealized understanding of health micropolitics and its outcome for the management process. He builts the concept of “moral worker” as a correlate asset concerned with the view of the “functional human being” to call one’s attention for the risk taken by actors found either in the governmental situation or in any organization “interventionary” process, and engaged in the building process of the Brazilian National Health Service (SUS), of taking up an objectivistic and instrumental view of health workers, underestimating their protagonism and their institutive power, which is capable of producing senses that not always are the ones required by the leaders, regardless of their fairness and indispensability. KEY WORDS: Health management. Work. Health services.

El autor busca contribuciones de las Ciencias Humanas y de autores de la salud para presentar una determinada concepción de la teoría de la acción, que considera fundamental para la comprensión no idealizada de la micro política en salud y sus implicaciones para el proceso de gestión. Construye el concepto de “trabajador moral” relacionándolo con el de la visión del “hombre funcional”, llamando la atención respecto al riesgo de que los actores en situación de gobierno o en algún proceso de “intervención” organizacional, como el proceso de construcción del Sistema Único de Salud (SUS), asuman una visión objetivada e instrumentalizada de los trabajadores de la salud, subestimando su protagonismo y su fuerza instituyente, productora de sentidos que no coinciden siempre con los deseados por los dirigentes, por más justos y necesarios que estos sean. PALABRAS CLAVE: Gestión en salud. Trabajo. Servicios de salud.

Recebido em 30/03/06. Aprovado em 13/12/06.

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Comentários sobr enças sobree analogias e difer diferenças entr aidéia e o “interrogativ o” entree os métodos P Paidéia “interrogativo”

Gastão Wagner de Sousa Campos 1

O convite dos editores da Interface para este debate muito me honra, além de constituir excelente oportunidade para expor minhas concepções em diálogo com o instigante ensaio de Luis Cecílio. Ele elaborou um trabalho criativo que interroga tanto a tradição dominante quanto as correntes que pretendem inovar teorias e práticas em gestão, as quais defendo. Começarei pelo fim. Cecílio termina seu artigo com duas interrogações: seria possível a construção de uma metodologia anti-Fayol e haveria uma sétima função gerencial além daquelas pensadas para “produzir” o “trabalhador funcional”? É claro que tenho respondido de modo afirmativo a essas indagações, tanto que, ainda na década de 1990 publiquei um ensaio intitulado: “O anti-Taylor: um método para co-governar instituições produzindo liberdade e compromisso” (Campos, 1998). Eu criticava o que denominei de “racionalidade gerencial dominante”, e que incluía as concepções de Taylor, Fayol, bem como de seus desdobramentos contemporâneos (qualidade total, toytismo, gestão de resultados etc). Em trabalho posterior apresentei um conjunto de conceitos operativos a que chamei de Paidéia: “um método para análise e co-gestão de coletivos”; (Campos, 2000). Esta metodologia baseia-se em dois eixos: a democratização das organizações mediante a constituição de sistemas de co-gestão; e a utilização de uma sétima função gerencial, o apoio Paidéia, objetivando a co-constituição de trabalhadores com capacidade de articular os próprios valores e interesses com a racionalidade dos outros, do coletivo e das organizações. A co-gestão é um movimento político, de desconcentração do poder em organizações que somente ocorrerá quando trabalhadores tenham potência para disputá-lo. A eleição desse caminho indica haver diferenças entre o discurso de Cecílio e o meu. Apontarei algumas. Considero o método interrogativo, o único conveniente segundo Cecílio, necessário mas insuficiente. É potente para estimular a reflexão e evitar o dogmatismo, o que não é pouco, ao contrário; entretanto, não se constitui numa teoria da ação. Essa metodologia estimula a contemplação e o espírito crítico, mas não é suficiente para o manejo de campos aplicados que exigem tomadas de decisão e intervenção. Considero que o conceito de praxis apresentado por Marx & Engels (1845/ 1996) nas “Teses sobre Feuerbach” aplica-se melhor ao tema debatido porque reconhece

Médico sanitarista; professor, departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Unicamp. Campinas, SP. <gastaowagner@mpc.com.br>

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a interdependência entre teoria e prática, entre trabalho morto e vivo (em ato), entre tradição e inovação. Parece-me que Pichon-Rivière (1988, 1989) com sua concepção sobre “grupo operativo” e “teoria do vínculo” – utilizada para compreender as relações inter-subjetivas e sociais entre trabalhador e usuário – logrou desdobrar aquela concepção, aplicando-a com criatividade às organizações. Recentemente Castoriadis (1982) deu continuidade a esta linha de pensamento; o método Paidéia filia-se a esta tradição. Assim, opero com a noção de que a autonomia do trabalhador – e do ser humano em geral – caracteriza-se pela capacidade de lidar com sua própria rede de dependências; co-produção de si mesmo e do contexto. Não há trabalho em ato (vivo) que não se apóie em algum trabalho prévio (morto). O desafio estaria em lidar com este fato inexorável e não prometer ou sugerir a possibilidade de fluxos espontâneos em que haveria criação ex-nihil. Nesse sentido admito que todo trabalhador, em alguma medida, estará obrigado a assumir algum grau de “funcionalidade”. Todos somos, em algum grau, “trabalhadores funcionais” à organização, às necessidades e aos interesses dos outros, sejam usuários ou colegas de equipe. E isto provoca mal-estar, sintomas; ou seja, exige formação de compromisso (Freud) ou o estabelecimento de contrato social com outros (Rousseau e vários autores de ciência política). A formação de compromisso e contrato evita a guerra de todos contra todos e assegura a possibilidade de convivência e de se trabalhar em prol de algum propósito. Ao mesmo tempo, todo trabalhador, em alguma medida, reagirá a esses constrangimentos externos; ou seja, à pressão da demanda, das necessidades de outros e das normas organizacionais. E reagirá a partir de seus próprios valores, desejos e interesses, o que o constituirá sempre como também sendo um “trabalhador moral”; isto é, alguém com objetivos, propósitos e diretrizes próprias, sejam elas assimiladas do meio ou não. Não concordo com Cecílio quando sugere que os valores morais do trabalhador adviriam somente, ou mesmo principalmente, dos chefes ou lideranças. O “trabalhador moral” é co-produzido a partir de fatores imanentes e transcendentes. O método Paidéia opera ainda com o conceito de “ofertas”, buscando produzir uma tensão dialética entre diretividade e não-diretividade da política, da gestão, da clínica e da saúde coletiva. Para este método os gestores, apoiadores e trabalhadores deveriam socorrer-se de referências originárias da tradição de um campo, do passado e de outras experiências para sugerir caminhos e arranjos que auxiliem a compreensão e ação sobre processos. E, note-se, as ofertas não são todas equivalentes. Sua potência e limite dependem da situação, mas também de seu conteúdo. A co-gestão, por exemplo. Como valer-se “do interrogar como metodologia” sem espaços coletivos democráticos para análise e deliberação? Como desconhecer no trabalho em saúde o efeito positivo – há farta bibliografia sobre o tema – de arranjos que facilitam e estimulam o vínculo e a horizontalidade da atenção? Como ser gestor ou apoiador sem problematizar posturas profissionais mecânicas, que mal avaliam riscos ou vulnerabilidade dos usuários e, em conseqüência, não acionam arranjos apropriados como são os programas de saúde ou os projetos terapêuticos singulares para proteger aos mais expostos? Tendo em vista a complexidade do processo saúde e doença, como conciliar com o hábito corporativo das especialidades e profissões de isolar-se e de fragmentar cada vez mais a atenção? Gramsci falava na importância da reforma intelectual e moral; cognitiva e afetiva, política e ética diríamos hoje. O velho Aristóteles (384-322 a.C., 1987) escreveu: “Se não foste educado para seres bom, será obrigado pelo Estado a te tornares”. Esta formação para a cidadania, para viver na Polis dependeria da educação das pessoas (Paidéia), da ética e da política. E ele continua: “Não é irrelevante, portanto, se formamos hábitos de um ou outro tipo..., faz uma grande diferença, na verdade toda a diferença”. Cabe, portanto, aos legisladores, governantes (gestores da coisa pública) “... tornar bons os cidadãos incutindo-lhes bons hábitos”. A gestão é uma continuação da política com os

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mesmo e outros recursos, a reforma moral e intelectual continua nas organizações e durante o trabalho e o governante, o método de gestão, tudo isto participa das sínteses singulares realmente existentes. Gostaria de ressaltar que o mérito do ensaio de Luis Cecílio é sua postura reflexiva e crítica. Luis Cecílio elaborou uma reconstrução do método dos filósofos helenistas céticos para pensar a gestão e o trabalho em saúde. Em grego, céticos (skeptikoi) significa literalmente “aqueles que se interrogam, aqueles que buscam,” e jamais se conformam em aderir a dogmas ou verdades cristalizadas. A reflexão de Luis me obrigou a voltar-me sobre minha própria compreensão dos fatos, a explicá-los novamente, a abrir-me para novas possibilidades e novos entendimentos; por tudo isto valeu seu esforço, meu caro amigo.

Referências ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultura, 1987. (Coleção os Pensadores, v.2). CAMPOS, G.W.S. O anti-Taylor: um método para co-governar instituições de saúde com liberdade e compromisso. Cad. Saúde Pública, v.14, n.4, p.863-70, 1998. ______. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã (Feuerbach). 10.ed. São Paulo: Hucitec, 1996. CASTORIADIS, C. Instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ______. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Recebido em 12/06/07. Aprovado em 22/06/07.

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Trabalhar: usar de si - sair de si*

Maria Elizabeth Barros de Barros1

O artigo em debate lança questões que inquietam, provocam, forçam-nos a pensar. Cecílio formula questões, e não interrogações-opiniões. Deleuze (2006) dizia que não suportava discussões pautadas em interrogações, pois não há razão para discutir algo, se ninguém sabe de que problema se trata. Assim, formular um problema é questionar uma “imagem dogmática do pensamento” (Deleuze, 2000, p.229), interrogar os lugares comuns, e fazer liberar a vida, não a deixando minguar. Como fazer a vida não minguar no curso de projetos pautados em perspectivas de gestão em saúde que, conforme Cecílio, são construídos seguindo princípios funcionalistas, nos quais o trabalhador fica reduzido às funções que exerce na organização? Ou, ainda, como fazer a vida não minguar, quando esses projetos partem da existência de trabalhadores “desistorizados”, desterritorializados, que orientariam suas práticas de forma automática, segundo as diretrizes definidas pelos dirigentes da organização? Cecílio nos adverte sobre dois cuidados a serem tomados na gestão em saúde: o primeiro refere-se aos desvios funcionalistas e o segundo à existência do que chama trabalhador moral, porque “moralmente comprometido” com projetos considerados justos e necessários ao processo de construção do SUS. Segundo o autor, o trabalhador funcional/moral expressa a pretensão de expropriar “a margem de liberdade” dos humanos e de impor-lhes uma racionalidade única nos modos de se organizar o cuidado e de se fazer a gestão – mesmo quando formulados por militantes/intelectuais/gestores engajados na reforma sanitária – subestimando seu protagonismo e sua força instituinte, como se isso fosse possível. Então, diante desses riscos, Cecílio nos questiona: o que colocar no lugar e evitar “[...] uma posição de relativismo ou de um laissez faire inconseqüente”? Como “[...] operar uma revolução copernicana [...]” nos modos de gestão em saúde? Podemos resistir aos projetos que funcionam como modelos que adquirem estatuto e força de prática modelizadora e incidem nos corpos dos trabalhadores lá onde se alojam seus afetos, suas emoções e toda a sua história, efetuando regulações que estão sempre tentando engoli-los? Cecílio apresenta um tema que nos desafia. Desafia-nos a colocar em análise o modo de produção no contemporâneo, marcado pela precarização das relações de trabalho e pelos fracos vínculos que os trabalhadores estabelecem nos e com os seus espaços/processos de trabalho (Barros & Benevides de Barros, 2007). Desafia-nos a construir modos de trabalhar que afirmem o caráter inventivo dos trabalhadores, sua potência instituinte.

O título parte das expressões utilizadas por Yves Schwartz (2003), na abordagem ergológica, e por Yves Clot (2006), na clínica da atividade, respectivamente, que serão apresentadas ao longo do texto. 1 Psicóloga; pós-doutora em Saúde Pública; professora, departamento de Psicologia e Programas de Pós-Graduação em Educação e em Psicologia Institucional; departamento de Psicologia, Centro de Estudos Gerais, Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES. <betebarros@uol.com.br> *

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Encontramos hoje uma rica literatura, em especial na Abordagem Ergológica de Yves Schwartz (2003) e na Clínica da Atividade de Yves Clot (2006), que pode nos ajudar na construção deste projeto de resistir à produção dessa forma trabalhador funcional/moral. A tese fundamental desses dois autores é a de que o vital do humano não se resigna às condições dadas de trabalho. Para Schwartz (2003), a atividade humana não pode ser considerada uma seqüência de atos rigorosamente determinada. Quaisquer que sejam as circunstâncias, há sempre a negociar uma eficácia para as operações que devem gerar dimensões de historicidade nas situações de trabalho. “Não se governa o uso industrioso de homens e mulheres” (Schwartz, 2003, p.34). Toda situação de trabalho é lugar de uma “dramática” subjetiva onde se negociam circunstâncias pessoais, históricas, entre usos de si pelos outros e usos de si por si mesmo que se cruzam, constituindo uma “dramática”, um destino a ser vivido. Assim, os humanos têm de fazer escolhas para fazer valer suas próprias normas de vida, produzindo formas de “des-anonimar” o meio. Não há atividade humana desenvolvida mecanicamente, como postulava a organização científica do trabalho. Yves Clot (2006), lendo Wallon, afirma que Taylor teria exigido pouco dos trabalhadores, na medida em que teria amputado o trabalhador de sua iniciativa, o que acaba por desembocar num esforço dissociativo, fatigante e extenuante, um esforço que não se reduz ao que o homem faz para seguir a cadência do trabalho, mas inclui, igualmente, aquele com quem ele deve consentir para reprimir sua própria atividade. “A calibração dos gestos é uma amputação do movimento” (Wallon apud Clot, 2006, p.14). O trabalho é, então, a capacidade de estabelecer engajamentos e pode perder o sentido quando não permite a realização das metas vitais e dos valores que o sujeito extrai dos diferentes domínios da vida em que está envolvido, pois o trabalho é, também, um meio de “[...] invenção dessas vidas” (Clot, 2006, p.14). Logo, se não pudermos pressupor esta atividade de recentramento, se considerarmos que trabalhar é pura execução, mesmo se, por vezes, massivamente contrariada, estaremos negando o que é essencial do vital humano. Por outro lado, não podemos negligenciar que as prescrições são importantes para não cairmos numa “posição de relativismo ou de um laissez faire inconseqüente”, preocupação expressa por Cecílio, pois uma situação pode ser perturbada na ausência de uma organização prévia, estabilizada e partilhada da ação. A formalização, ao combinar regras escritas e não escritas, faz-se necessária para que os que trabalham não sejam deixados a si mesmos numa situação em que eles se degradem (Clot, 2006). Precisamos do prescrito, pois a organização é necessária para toda atividade humana; não precisamos é de nos engessar no que está prescrito de forma que a realização do trabalho seja perturbada ou impedida. Temos, então, uma situação paradoxal. Mas devemos insistir um pouco mais no desafio a que o autor nos convoca e perguntar: como resistir a essa forma trabalhador funcional/moral? Arriscamos, aqui, a formulação de um outro conceito, a do trabalhador ético2, que toma decisões que nos levam a um outro modo de existir, operador da nossa existência, selecionando o que favorece e o que não favorece a vida e tendo como critério a afirmação de sua potência criadora. A nosso ver, para construir uma prática de gestão que supere funções administrativas que buscam o permanente controle do autogoverno dos trabalhadores, é necessário que se faça uma ampliação da gestão dos processos de trabalho. É nesse sentido que Barros e Benevides de Barros (2007) afirmam a importância dessa ampliação, o que implica mudança no modo como operamos os processos de trabalho e que só se efetiva se partirmos dos diferentes vetores que constituem a gestão: sujeitos, saberes e poder, concebida na intercessão inseparável desses vetores e constituindo-se como um deles. Colocamos, assim, a gestão como aquilo que não pode ser substancializado, “[...] que não deve se confundir com um lugar, mas como um conector, gestão como elemento-passagem entre fluxos de trabalho/saberes; fluxos de subjetivação/sujeito; fluxos de relação/poder” (Barros & Benevides de Barros, 2007, p.64).

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2 O conceito de trabalhador ético que estamos propondo baseia-se nas formulações apresentadas inicialmente por Rolnik em 1992 sobre o homem da moral e o homem da ética (Rolnik, 1997). O primeiro é o vetor de nossa subjetividade que conhece os códigos, o conjunto de valores e regras vigentes na sociedade em que estamos vivendo. O homem da ética que nos habita é o vetor que escuta as inquietantes reverberações das diferenças que se engendram em nosso inconsciente.


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Nesse sentido, a construção de políticas públicas em saúde deve estar comprometida com a coletivização da gestão, com a publicização das relações entre trabalho (saberes), sujeitos (necessidades, desejos e interesses) e poderes (modos de relacionar saberes e sujeitos). Problematizar a relação entre a atividade da gestão e a gestão da atividade, instalar dispositivos que permitam a circulação da palavra, co-responsabilidade, aumentando o grau de autonomia dos trabalhadores nos processos de pensar-fazer seu trabalho, aumentar o grau de abertura aos processos de criação implica sustentar a indissociabilidade entre atenção e gestão (Brasil, 2004). Assim, formular propostas de trabalho que afirmem essa inventividade dos trabalhadores, sua potência de renormalização, sem cair nos relativismos irresponsáveis, é afirmar o trabalhador ético da saúde. Essa direção ético-política diz de uma escolha que está relacionada com uma concepção de humano, da qual Cecílio partilha, como um ser em movimento, capaz de imprimir algo de seu naquilo de que participa, capaz de intervir em sua própria história com uma concepção de trabalho como um processo coletivo e singular de criação e recriação da história de um ofício. Talvez esta possa ser uma via para lutar contra o trabalhador funcional/moral que se tem imposto.

Referências BARROS, M.E.B.; BENEVIDES DE BARROS, R. Da dor ao prazer no trabalho. In: BARROS, M.E.B.; SANTOS, S.B. (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer – protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Porto Alegre: Unijuí, 2007. p.61-72. BRASIL. Ministério da Saúde. Documento base da Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Vozes, 2006. DELEUZE, G. O abecedário de Gilles Deleuze. Disponível em: <http://www.oestrangeiro.net/ index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid=51>. Acesso em: 12 maio 2006. ______. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D’Água, 2000. ROLNIK, S. À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. In: MAGALHÃES, M.C.R. (Org.). Na sombra da cidade. São Paulo: Escuta, 1995. p. 141-70. SCHWARTZ, Y. Travail & ergologie: entretiens sur l´activité humaine. Toulouse: Octarès Editions, 2003.

Recebido em 13/04/07. Aprovado em 27/04/07.

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“Um sentido muito próximo ao que propõe a educação permanente em saúde”! O devir da educação e a escuta pedagógica da saúde Ricardo Burg Ceccim 1

Um texto: “O trabalhador moral na saúde: reflexões sobre um conceito”; um autor: Luiz Carlos de Oliveira Cecílio; um veículo de divulgação científica: Interface – Comunicação, Saúde, Educação; uma sessão: debate. Pois bem, busco algumas palavras-chave que me sejam “muito próximas” e encontro: saúde, trabalho em saúde, trabalhadores de saúde, educação na saúde, educação permanente em saúde, interface, comunicaçãosaúde-educação... Tenho escrito e pensado sobre essa correlação: trabalho-saúdeeducação. Cecílio nos deixa ver que em noções como a de recursos humanos da saúde, algo mais transborda que não devém da teoria administrativa, desde que se detectou o fator humano nas organizações. Comenta que com “atores em ação”, tratar-se-ia, então, de criar e operar novas categorias e conceitos que fizessem sentido para suas práticas, a partir de suas práticas, “num sentido muito próximo ao que propõe a educação permanente em saúde”, lembrando de teóricos desse referencial conceitual e de um texto meu na Interface (Ceccim, 2005). O que é interessante é que Cecílio puxa como fios de análise uma teoria do trabalho, particularmente relativa ao processo de condução do trabalho. Traz, então, a noção de uma teoria da ação e põe em cheque o projeto fayolista (Henri Fayol) de comando organizacional. Se Frederick Taylor apresentou os princípios da administração científica, Henri Fayol somou-lhe a racionalidade gerencial hegemônica. Nas teorias relativas ao fator humano nas organizações (os recursos humanos na teoria da administração) vemos correr as formulações de um homo economicus, um homo socialis, um homem administrativo, um homem funcional e, finalmente, um homem complexo (a revisão é de Rosa, 2003), mas Cecílio vem interrogar-nos sobre a possibilidade, em particular, de um anti-Fayol na condução do trabalho em saúde. Isso ocorre porque é de Fayol a obsessão pelo comando e heterodeterminação dos trabalhadores, podendo-se supor uma regência fayolista nos modos de ser profissional onde a autonomia como autocriação/autopoiese, liberdade de engendrar-se ou capacidade de interagir consigo mesmo está desqualificada sob a imagem de uma autonomia regulada desde fora, desde os imaginários profissionais, desde as representações de poder e desde as hierarquias ou burocracias. Essa imagem de autonomia, não a autonomia, constitui mecanismo de captura, uniformização e padronização. Não a abertura aos modos de ser, estar, sentir ou conhecer, mas a subordinação aos modos dados e ao controle da realidade pelas racionalidades hegemônicas. O poder de legitimidade nas relações e nos processos de trabalho, o submeter-se às regulamentações legais e às regulações normativas dadas desde fora (desde antes, desde sempre e para sempre) aparecem como autonomia em organizações comandadas e não a abertura ao demandado aqui-e-agora nas ações atuais do trabalho (atual com o sentido foucaultiano de perfusão do real – o vigente – pela potência de novas realidades – o virtual).

Enfermeiro sanitarista; doutor em Psicologia Clínica; professor, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Porto Alegre, RS. <burg.ceccim@ufrgs.br>

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Gastão Campos já nos havia proposto o anti-Taylor, em 1998, nos Cadernos de Saúde Pública, sugerindo a invenção do método de gestão colegiada centrada em equipes de saúde. O autor citava produção de Cecílio de 1994, que já estudava os processos de condução do trabalho em saúde (Cecílio, 2006) e o desafio era o de uma gestão que produzisse liberdade e compromisso (Campos, 1998). Na teoria da Administração Científica, Taylor e Fayol representam o pensamento inaugural, mas podemos acrescentar Mayo e Weber na tradição da teoria administrativa. Com Elton Mayo surge a teoria das relações humanas (surgem as “pessoas”, uma compreensão de que os trabalhadores constroem relações e estas superam a simples distribuição de funções na produção do trabalho). Max Weber estruturou a organização como um modelo (burocrático) e, assim, instituiu uma noção de atividades-meio e atividades-fim, o que colocava o homem (recursos humanos ou pessoas) como adequação aos fins (objetivos) do empreendimento sob o trabalho. Os recursos humanos ou as pessoas seriam, então, recursos ou insumos que se prestariam a dar condições para que os objetivos finalísticos de uma organização fossem alcançados. Cecílio lembra-nos que a expressão gestão de pessoas está imbuída da concepção gerencialista hegemônica, fala-se de gestão de pessoas do mesmo modo que de gestão de insumos, gestão de estratégias etc. A terminologia inicial, a dos recursos humanos, colocava os humanos entre os recursos administrativos, como os recursos materiais e os recursos financeiros. Taylor pensava o trabalho como uma engenharia da produção, Fayol o propõe como um processo organizacional. Para o primeiro, o homem é fator de produção e para o segundo o componente social nas organizações. Com Mayo esse componente ganha o estatuto psicológico e surgem as pessoas, cujo processo de gestão pode potencializar a produção e a adesão ao trabalho comandado na organização. Com Weber essa gestão está entendida e localizada no segmento meio para atingir os fins. Quando Cecílio diz, entretanto, que nas relações de cuidado à saúde algo transborda, afirma que não é possível a subordinação das pessoas pelo processo de trabalho, mesmo que constrangidas ou sob a disputa de captura da sua subjetivação, mas mais do que isso diz que não será possível incentivar a autonomia aquele que nela ou por ela não se produz e aos seus entornos. Surge, então, um outro parceiro de pensamento, Emerson Merhy, que em 1997 propôs o conceito de micropolítica do trabalho vivo em saúde, em Agir em saúde: um desafio para o público, sugerindo a existência de uma questão institucional e do território das tecnologias leves (Merhy, 2007). O autor também referia Cecílio na construção de suas reflexões. O transbordamento está na emergência de um espaço de acoplamento profissionalusuário, resultado do encontro em que ocorrem a escuta de sintomas, o perscrutar possibilidades diagnósticas e terapêuticas, o conectar-se ao outro para detectar seus sentidos e oferecer guarida, tratamento e orientações que toquem o próprio viver. Eu mesmo, também em 1997, em Exclusão da alteridade: de uma nota de imprensa a uma nota sobre a deficiência mental, tomava o tema do outro, denunciando a exclusão da alteridade nas relações de cuidado (Ceccim, 2006). É que sem as conexões de alteridade a autonomia está estasiada (plegia da autonomia). O que Cecílio vai “pinçar” por sua vez, é que o trabalhador que se exclui do que agora vou chamar acoplamento de alteridade não contribui “para o fortalecimento da autonomia daquele de quem cuida”, o que equivaleria dizer não exerce efetivo cuidado, uma vez que este infundiria autocriação, capacidade de interagir consigo mesmo, conhecer-se mais e pôr-se em produção de si. Por outro lado, uma construção do si mesmo profissional, “cultivada e amadurecida”, como fala Cecílio, também está na ordem do encontro estabelecido com seus usuários. Ana Pitta, já em 1990, lembrava que a maior proteção psíquica dos trabalhadores em hospital (convivendo com a dor e a morte como ofício) estava na maior conexão afetiva com os usuários e não no distanciamento técnico. É que a autonomia somente se engendra e se exerce no acoplamento à autonomia do outro: encontro de autonomias, o que é da especificidade do trabalho em saúde e somente comparável ao trabalho em educação, particularmente o do ensino fundamental (Pitta, 2003). Cecílio conduz-nos, então, às formulações “atores em ação de trabalho” e “prática gerencial libertária e inovadora”, atores em ação de trabalho numa prática gerencial libertária e inovadora, não mais a gestão de recursos humanos ou a gestão de pessoas quando e se estivermos engajados no processo de construção do Sistema Único de

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Saúde. “O anti-Fayol é possível?” – pergunta-nos. “Haveria uma sétima função gerencial a ser inventada?” – é a provocação do autor, mas ele também entabula: “Como enunciar esta nova função administrativa?” Pois bem, eu responderia, primeiro com o seu próprio texto e, a seguir, com minhas últimas formulações, as quais devêm de um leitor amante do que escreveram Cecílio, Merhy e Campos nos termos em que Cecílio pontuou no seu texto (“meu texto só existe pelo meu convívio, íntimo e prolongado, com Gastão Campos e Emerson Merhy”). No meu caso, reformularia para: meu texto existe pela leitura apaixonada da escrita em convívio de Gastão Campos, Emerson Merhy e Luiz Cecílio (Planejamento sem Normas, Inventando a Mudança na Saúde, Agir em Saúde). A primeira resposta projetada é: segundo Cecílio (2007), deveria ser formulada uma sétima função gerencial, esquecida por Fayol e que converte a gestão organizacional em projeto anti-Fayol. Esta sétima função é o “interrogar” 2. Para o autor, o ato de interrogar é a possibilidade de curso a qualquer projeto/processo de gestão. “Toda a pretensão de se conduzir mudanças verdadeiras na forma de fazer a gestão e de se organizar o cuidado em saúde” inicia pela “capacidade de aprender a interrogar o mundo do trabalho, antes de propor, aprioristicamente, conceitos e/ou modos muito prescritivos de se fazer a gestão”. A segunda resposta é: eu penso que a sétima função é a educação permanente em saúde (resposta validada pelo próprio autor, como retomei no título deste debate), mas para aí trago o devir da educação (conduzir às aprendizagens, construir o conhecimento, compartilhar experiências de problematização, organizar práticas educativas, compor coletivos de aprendizagem/círculos de cultura, produzir o desenvolvimento por desafios sócio-interacionistas, fazer emergir novos saberes e fazeres pela exploração problematizadora dos saberes e fazeres vigentes, entre outros processos próprios das relações de ensino-aprendizagem) e a escuta pedagógica da saúde (interrogar o processo de trabalho em saúde pelas questões educativas: ocorre o compartilhamento de problematizações? Como ocorre a composição de coletivos de aprendizagem? Como ocorrem o desenvolvimento e a aprendizagem?). O devir da educação está vivo na noção de educação permanente em saúde (Ceccim, 2005); a escuta pedagógica em saúde (Ceccim, 2007; Ceccim et al., 2007) estabelece uma atenção à organização de saúde (processos, serviços, sistemas), não para tomá-la em seu “o que é/como está” ou “o que deve/como deve” ser/estar, mas ao que pede atualização, processo de mudança, emergência de saberes e fazeres novos, construção pedagógica. Cecílio intensifica nossa reflexão pela provocação “trabalhador moral”, alertando para uma compreensão não idealizada da micropolítica e de que não se pode não desejar a autonomia, porque assim não haveria o cuidado que quer a autonomia do outro na singularização de sua saúde (o seu andar a vida). A idealização da micropolítica é já a sua conversão em dever moral, anulando sua condição de indicar o componente desejante/pulsátil (vibração do criar/inventar) nas instituições e a simples adesão aos projetos no governo (“por mais justos e puros que sejam”, como ele ressalva) não diferem da visão administrativa do homo socialis, manejado como homem funcional, visão gerencialista que subestima e rejeita o protagonismo e a força instituinte (vibrátil). Um gestor somente pode ser disparador, disruptor, agenciador, para isso usufrui do poder de introdução de dispositivos gerenciais (a macropolítica representada pelo projeto de governo, projeto de gestão). Sabemos que muito mais que acolher projetos de governo e projetos de gestão, os trabalhadores trazem para o trabalho outros antecedentes (deveres morais), principalmente as designações de suas corporações profissionais (não por acaso as mesmas investem tanto em tecnologias do imaginário), posicionando-se como homens da moral, não como homens da ética. Cecílio foi claro e, servindo-se de Nietzsche, apresenta o trabalhador moral como um homem do dever, envolto numa malha de deveres. Este é o trabalhador moral, refém dos valores, adesista aos governos, ventríloco dos teóricos e das nomeações da teoria. Estes não são os bons cuidadores de vidas que pedem atualidade, singularidade, novidade. O que Cecílio talvez não intensifique em seu texto tanto quanto ativa como desafio no campo é o pensamento sobre o papel da intervenção organizacional em situação de governo (em lugar de uma luta permanente contra o Fayol que insiste em se instalar nos gestores, não tolerando autogoverno/autogestão), o assumir a micropolítica por toda parte (aceitar que nada está garantido, nada é desde sempre, nem para sempre,

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2 As seis funções administrativas de Fayol, citadas por Cecílio, são: administrar, prever, organizar, comandar, coordenar e controlar.


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ativando-se a auto-análise e a autogestão – numa perspectiva libertária e inovadora) e as tecnologias de captura da produção de sentidos (anulação da autonomia por sua tradução na subordinação aos instituídos como imagem de poder e sucesso, anulação da força instituinte dos processos libertários e inovadores). Cecílio nos põe mais provocações no campo, o que é absolutamente desejável.

Referências CAMPOS, G.W.S. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad. Saúde Pública, v.14, n.4, p.863-70, 1998. CECCIM, R.B. Invenção da saúde coletiva e do controle social em saúde no Brasil: nova educação na saúde e novos contornos e potencialidades à cidadania. Estud. Univ., v.33, n.1, 2007. (no prelo) ______. Exclusão da alteridade: de uma nota de imprensa a uma nota sobre a deficiência mental. In: SKLIAR, C. (Org.). Educação e exclusão: abordagens sócio-antropológicas em educação especial. 5.ed. Porto Alegre: Mediação, 2006. p.15-36. ______. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.161-8, 2005. CECCIM, R.B.; GUIMARÃES, A.R.; KLAFKE, T.E.; LENZ, F.L. Autogestão no trabalho com/em equipes de saúde: estudantes agindo o Sistema Único de Saúde. In: PINHEIRO, R.; BARROS, M.E.B.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, sabres e práticas em debate. Rio de Janeiro: Cepesc, 2007. (no prelo) CECÍLIO, L.C.O. O “trabalhador moral” na saúde: reflexões sobre um conceito. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.11, n.22, 2007. ______. Inventando a mudança na saúde. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 2006. MERHY, E.E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: MERHY, E.E.; ONOCKO, R. (Orgs.). Agir em saúde: um desafio para o público. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 2007. p.71-111. PITTA, A. Hospital: dor e morte como ofício. 5.ed. São Paulo: Hucitec, 2003. ROSA, I.L.I. O homem e o trabalho administrativo. Cad. Pesqui. Admin., v.10, n.4, p.1-7, 2003.

Recebido em 06/07/07. Aprovado em 10/07/07.

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RÉPLICA REPLY

O problema de sermos intelectuais-gov ernantes intelectuais-governantes Antes de mais nada, agradecer o cuidado e a qualidade com que os debatedores produziram seus textos em diálogo com o “trabalhador moral”. Senti-me muito honrado. Tentarei ater-me a alguns pontos que me parecem essenciais. Gostei muito da idéia de “trabalhador ético” que a Maria Elizabeth Barros propõe, utilizando-se de formulações de Rolnik, sobre o homem da moral e o homem da ética, que eu não conhecia. Encontro ressonâncias entre essas formulações e minhas preocupações. Do Ricardo Ceccim, ressalto a “escuta pedagógica em saúde” e a idéia que ele desenvolve de que o “devir da educação está vivo na noção de educação permanente em saúde”. Tenho caminhado por aí nos últimos anos e é exatamente esta prática de estabelecer uma atenção à organização de saúde, “não para tomá-la em seu ‘o que é/como está’ ou ‘o que deve/ como deve ser/estar’, mas ao que pede atualização, processo de mudança, emergência de saberes e fazeres novos, construção pedagógica”. O que vi de comum nos três textos, é que todos eles reiteram a preocupação com o Governar (com o G maiúsculo de Matus, para os atores em cargo dirigente na máquina governamental). O Ceccim, quando explicitamente diz que eu não intensifico no meu texto o problema do “papel da intervenção organizacional em situação de governo”. A Elizabeth, utilizando-se de Clot, ressalta que é “necessária a formalização de regras escritas e não escritas para os que trabalham não sejam deixados a si mesmos numa situação em que eles se degradem. Precisamos do prescrito, pois a organização é necessária para toda atividade humana”. Gastão assume uma preocupação hobbesiana ao afirmar, quase no mesmo sentido, “A formação de compromisso e de contrato evita a guerra de todos contra todos e assegura a possibilidade de convivência e de se trabalhar em prol de algum propósito”. Reconheço, também que, quando eu mesmo afirmei no texto em debate, que era preciso “ter cuidado com um laissez-faire inconseqüente”, me juntei às preocupações dos debatedores. Pronto! Estamos todos no mesmo barco. E que barco é esse? O barco de intelectuais que têm feito suas reflexões e orientado seus estudos e pesquisas de um lugar de governo (ocupando algum cargo, fazendo consultorias etc.). Não conheço o currículo da Elizabeth, mas falo por mim, pelo Ricardo e pelo Gastão! Temos tido pouco cuidado ou dificuldade em reconhecer, nas nossas produções, as implicações de sermos intelectuais/governantes. Estou consciente de que o artigo sobre o “trabalhador moral” é um texto inacabado, problemático, mas tentei, por meio dele, manifestar um incômodo que minha prática de supervisão institucional, nos últimos anos, tem me trazido. O acompanhamento que faço do funcionamento de colegiados e outros mecanismos de co-gestão, em organizações que os adotaram, me deixa convencido de que as expectativas que temos posto sobre tais dispositivos, como Gastão Campos aponta, não se cumprem. O “apoio Paidéia”, que seria o outro eixo da co-gestão, “objetivando a co-constituição de trabalhadores com capacidade para articular os próprios valores e interesses com a racionalidade dos outros, do coletivo e das organizações”, pode ser um poderoso instrumento de heteronomia quando “operado pelo governante” e nos tem colocado novos e mais complexos problemas, entre os quais o fato do “apoio” vir “misturado” com as outras seis funções gerenciais, quando o “apoiador” ocupa um lugar na hierarquia formal de autoridade da organização. Temos colocado uma excessiva expectativa sobre a potencialidade da cogestão conseguir realizar a complexa e almejada (pelo governante) compatibilização dos interesses individuais, fragmentados, centrífugos, “mesquinhos” e a tão desejada

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racionalidade organizacional. Por mais justa que seja a nossa causa! Acho, também, que temos tido um “déficit teórico” para pensar os colegiados. Rapidamente, aponto três pontos para futuros debates: a) utilizamos uma concepção de poder insuficiente, pois ela não dá conta de todas as dimensões do poder existentes nas organizações (Uma concepção de inspiração arendtiana, mas com fortes tinturas parsonianas quando governamos e deslocamos a idéia de “consenso” para o de “cooperação”, pois o tempo do “nosso” projeto político assim o exige. E nos impacientamos com os “trabalhadores reais”!); b) subestimamos o peso das instituições, como definidas pelos institucionalistas, na vida das organizações de saúde, em particular a Instituição Médica e seu poder de reprodução; c) Não temos nos ocupado em aprofundar uma teoria da ação que dê conta da margem de liberdade e criação que os atores institucionais preservam, apesar de todas as “sobre-determinações”. Campos aponta bem isso nos seus textos, mas não temos radicalizado sua utilização como instrumento conceitual importante de análise e intervenção sobre a “dobra” autonomia/controle, na minha opinião o território nuclear da gestão em saúde. Os atores institucionais, quase sempre, permanecem como um idealizado “trabalhador moral” que, quando se nos apresentam com os seus reais interesses e protagonismos, mostrando “sua cara”, não “entendendo o nosso projeto”, nós, os intelectuais-governantes, aristotelicamente nos vemos compelidos a “incutir-lhes bons hábitos”. Substitua-se “bons hábitos” por “conceitos” e fica esclarecido o sentido que quis dar ao “trabalhador moral” no texto. A sétima função gerencial poderia ser, como aponta o Ceccim, “a escuta pedagógica em saúde”? Pode ser que sim. Mas isso nos levanta outras tantas questões, que o espaço do texto não me permite sequer apontar.

Recebido em 06/07/07. Aprovado em 10/07/07.

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Resistência, inov ação e clínica inovação no pensar e no agir de Nise da Silv eir a Silveir eira

espaço aberto

Eliane Dias de Castro 1 Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima2

Introdução No decorrer da década de 1940, a psiquiatria hegemônica brasileira se voltou para inovações científicas e tecnológicas, tais como eletrochoques e cirurgias neurológicas, e para a sedimentação de uma visão orgânica de doença mental que abriria caminho para o incremento dos neurolépticos uma década depois. Nesse contexto, uma médica psiquiatra, movida pela força de sua indignação com o tratamento oferecido aos pacientes dos hospitais psiquiátricos, e pela “aposta de que lá onde eram jogados os rebotalhos da sociedade utilitarista, havia sujeitos” (Quinet, 2000, p.209), investiu na pesquisa e no desenvolvimento de uma prática clínica em terapia ocupacional. Para ela, esse investimento era parte de uma preocupação com os rumos que a psiquiatria vinha tomando, e estava vinculado ao compromisso de criar procedimentos terapêuticos de caráter humanista para o tratamento da esquizofrenia. É esta aventura intelectual e sensível, das mais belas e potentes desenvolvidas no Brasil, que buscaremos apresentar e analisar aqui, e que se constituiu numa experiência ímpar na arte, psiquiatria e terapia ocupacional brasileiras. O presente trabalho é um desdobramento de estudos históricos e teóricos realizados e atualizados na compreensão de situações clínicas de terapia ocupacional, que são realizadas na interface da arte e promoção da saúde, e configura-se como uma homenagem a Nise da Silveira, no aniversário de seu centenário.

Terapeuta ocupacional; doutora em Ciências da Comunicação; pós-doutoranda, Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; professora, Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP. <elidca@usp.br>

1

Terapeuta ocupacional; doutora em Psicologia Clínica; pós-doutoranda, Núcleo de Estudos da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professora, Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP. <beth.lima@usp.br>

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1 Rua Cipotânea, 51 Cidade Universitária, Butantã - São Paulo, SP 05.360-160

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A organização do Setor de Terapêutica Ocupacional Em meados da década de 1940, quando Nise da Silveira iniciou seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional - hoje Centro Psiquiátrico Pedro II, do Rio de Janeiro -, a polarização que existia nas primeiras décadas do século, e que dividia a psiquiatria entre as práticas ergoterápicas e o desenvolvimento de bases científicas e orgânicas, se havia desfeito. A ergoterapia fora condenada ao limbo e as práticas correntes baseavam-se em eletrochoques, lobotomias e, posteriormente, em terapia química e medicamentosa. Nise opôs-se frontalmente a tais procedimentos, colocou-se desde o início num embate contra a psiquiatria de seu tempo. Para ela, a vida psíquica deveria ser pensada como processo constante de interação com aquilo que cerca cada ser humano. A psicopatologia, numa dimensão fenomenológica, consistiria em planos de experiência, em modos de existência e de estar no mundo. Seu interesse era penetrar no mundo interno dos esquizofrênicos, aproximar-se deles, conhecer-lhes a dor e, ao mesmo tempo, melhorar suas condições de vida. Para isso, passou a gerenciar um setor sem recursos no Centro Psiquiátrico Nacional, o Setor de Terapêutica Ocupacional, considerado, na época, um método destinado a apenas ‘distrair’ ou contribuir com a economia hospitalar. Para enfrentar a psiquiatria, seguiu este outro caminho, o da Terapêutica Ocupacional e, para sustentar essa opção, Nise se propôs a fortalecer esse método e dar-lhe fundamentação científica, transformando-o em um campo de pesquisa. Assim, buscou construir uma terapêutica ocupacional com características científicas, imprimindo ao trabalho uma orientação própria: sua preocupação era de natureza teórica e clínica. Durante os 28 anos em que dirigiu o Setor de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) no Centro Psiquiátrico Pedro II (1946-1974), diversas pesquisas foram desenvolvidas com o intuito, entre outros, de: registrar os resultados obtidos com a utilização de atividades; comprovar a eficácia dessa forma de tratamento; investigar efeitos nocivos dos tratamentos psiquiátricos tradicionais; comprovar capacidades criativas e de aprendizado dos esquizofrênicos. Nesse período, foram desenvolvidos, progressivamente, dezessete núcleos de atividades: encadernação, marcenaria, trabalhos manuais, costura, música, dança, teatro, etc., nos quais procuravam-se oferecer atividades que estimulassem o fortalecimento do ego dos pacientes, a progressiva ampliação do relacionamento com o meio social, e que servissem como meio de expressão. Nise acreditava que “se houver um alto grau de crispação da consciência, muitas vezes, só as mãos são capazes de fantasia” (Jung apud Silveira, 1981, p.102). Nos atendimentos que realizava, Nise procurava criar um clima de liberdade, sem coação, no qual, por meio de diversas atividades, os sintomas pudessem encontrar oportunidade para sua expressão e, como ela dizia, serem despotencializados. Para ela: “o exercício de múltiplas atividades ocupacionais revelava que o mundo interno do psicótico encerra insuspeitadas riquezas e as conserva mesmo depois de longos anos de doença, contrariando conceitos estabelecidos” (Silveira, 1981, p.11). O Centro Psiquiátrico tinha 1.500 pacientes hospitalizados, normalmente abandonados no pátio do hospital. Os ateliês atraíam, para seus setores, pessoas com uma experiência cotidiana de uma vida vazia e sem sentido. Era o início de uma luta por uma série de transformações no ambiente hospitalar e nas formas de tratamento dos pacientes. Nise afirmava que o hospital colaborava com a doença e acreditava que caberia à terapêutica ocupacional parte importante na mudança desse ambiente. O número de pacientes que freqüentavam o setor era reduzido, devido talvez “a não aceitação pelos psiquiatras das ocupações como agentes terapêuticos” (Silveira, 1981, p.24). A articulação entre o STOR e os outros serviços médicos era tênue: os psiquiatras não indicavam a seus pacientes esse tratamento e aqueles que vinham ao Setor o faziam por iniciativa própria ou por serem convidados por algum monitor. O desinteresse por parte da psiquiatria teria sido, também, responsável pelo fechamento de várias oficinas.

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Do ateliê de pintura ao museu de imagens do inconsciente Entre os vários núcleos de atividade, havia o ateliê de pintura. Segundo Mavignier (2000), que a essa época trabalhava em um setor administrativo do Hospital, foi em uma exposição de trabalhos manuais do STOR que ele propôs a Nise da Silveira a organização de um ateliê de pintura para os internos. Como a idéia vinha de encontro a um antigo projeto da doutora, Mavignier solicitou sua transferência para lá e, juntos, trabalharam no sentido de implementá-la. O Ateliê de Pintura cedo se destacou e adquiriu posição especial, passando a receber um investimento diferenciado por parte da psiquiatra. Nise afirmava que todas as atividades realizadas no Setor de Terapêutica Ocupacional eram expressivas, mas observou, nos freqüentadores do ateliê de pintura, “a existência de uma pulsão configuradora de imagens sobrevivendo mesmo quando a personalidade estava desagregada” (Silveira, 1992, p.63). O acompanhamento dos ateliês de pintura e modelagem proporcionou a Nise uma maior compreensão do dinamismo psíquico presente na esquizofrenia e, também, reflexões constantes sobre as condições do tratamento psiquiátrico e da hospitalização. As dificuldades encontradas a conduziram a estudos apaixonantes, muitas vezes articulados a outros campos do conhecimento, como a arte, a psicologia, a mitologia e a literatura. Para ela, “a criatividade é o catalisador por excelência das aproximações de opostos. Por seu intermédio, sensações, emoções, pensamentos, são levados a reconhecerem-se entre si, a associarem-se, e mesmo tumultos internos adquirem forma” (Silveira, 1981, p.11). Nise foi surpreendida pela quantidade de trabalhos produzidos e pela manifestação de criatividade que resultava na produção de pinturas em número incrivelmente grande, num contraste com a atividade reduzida de seus autores fora dos espaços de ateliê. A qualidade de muitos desenhos, pinturas e modelagens fascinavam e entusiasmavam a psiquiatra e o monitor do ateliê de pintura. Mavignier estava ali, segundo seu próprio relato, como pintor, e não como psiquiatra. Tinha interesse “nos artistas a descobrir, procurando-os nos pátios e nas enfermarias do hospital” (Mavignier, 2000, p.247). Sua presença contribuía, também, para dar um caráter de verdadeiro ateliê de pintura ao espaço, colaborando com conhecimentos técnicos, sobre os materiais e com sua sensibilidade estética. Além disso, Mavignier teve um papel fundamental nos desdobramentos que o trabalho veio a ganhar, pois foi o primeiro elo entre a experiência no Engenho de Dentro e o grupo de artistas plásticos cariocas que, como ele, estavam se iniciando no campo das artes plásticas, entre eles, Abraham Palatnik e Ivan Serpa. Juntos montaram e ordenaram as primeiras séries de desenhos e pinturas. A quantidade e qualidade dos trabalhos os levaram a organizar a primeira exposição dessas produções, em 1947, no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Mário Pedrosa, que visitou e escreveu sobre essa exposição, passou, a partir daí, a freqüentar o ateliê de pintura. Em 1949, o crítico levou Leon Degand, então diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que ficou impressionado com os trabalhos produzidos e propôs a realização de uma mostra destes no Museu que dirigia. “Era uma tentativa para entrar em contato com pessoas talvez interessadas pelo apaixonante problema que nos empolgava” (Silveira, 1981, p.14). É importante salientar que os críticos de arte mostraram-se muito mais atentos ao fenômeno da produção plástica dos internos do Engenho de Dentro que os psiquiatras brasileiros, inicialmente os interlocutores que Nise buscava alcançar. Mais que isso, a doutora chamava a atenção para o fato de que os psiquiatras, em sua grande maioria, se recusavam a aceitar qualquer valor artístico de trabalhos plásticos realizados por doentes mentais, insistindo na idéia de “arte psicopatológica”, procurando neles apenas sintomas e reflexo de ruína psíquica. É fato que Nise manteve, sempre, certa discrição quanto a se posicionar sobre a qualidade estética dos trabalhos produzidos no ateliê, deixando essa

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tarefa para os críticos e dedicando-se ao estudo científico dos problemas que essa produção levantava. No entanto, a possibilidade de que entre seus pacientes houvesse aqueles com capacidades artísticas era vista por ela com naturalidade: Haverá doentes artistas e não artistas, assim como, entre os indivíduos que se mantêm dentro das imprecisas fronteiras da normalidade, só alguns possuem a força de criar formas dotadas do poder de suscitar emoções naqueles que as contemplam (Silveira apud Gullar, 1996, p.96).

Após as primeiras exposições, e como a produção do ateliê de pintura aumentava a cada dia, foi criado o Museu de Imagens do Inconsciente, com o intuito de organizar e catalogar esse material, com critério e cautela – o que permitiria o desenvolvimento de uma série de pesquisas em torno dessas imagens, levando à organização dessas produções. Num gesto inédito para a cultura brasileira, envolvendo artistas e críticos de arte nesse processo, Nise recorre a um tratamento museográfico das obras dos pacientes. Mantendose sempre no campo da psiquiatria, Nise não deixou de buscar parcerias no campo das artes. Demonstrando uma excepcional capacidade de articulação entre campos de conhecimento, desde o início propôs que o Museu pudesse se tornar um Centro de Estudo aberto não só a psiquiatras, mas também a antropólogos, artistas, críticos de arte interessados pela atividade criadora. Podemos pensar que mesmo a idéia de criação de um museu vem da contaminação pelo campo da arte. Estávamos, de fato, num momento de fermentação estética, que culminou com aquilo que Mário Pedrosa chamou de “a moda dos museus”: o Museu de Arte de São Paulo foi criado em 1947, o de Arte Moderna em 1948, o MAM, do Rio, em 1949, e a primeira Bienal foi realizada em 1951 (Pedrosa, 1995). Nise convidava profissionais de outras áreas para participar do trabalho prático no ateliê, configurando uma proposta de caráter interdisciplinar. Para ela, estudos da arte, dos mitos, religiões, literatura, possibilitam contato com formas de expressão das mais profundas emoções humanas (Silveira, 1981). Essas parcerias conectavam os trabalhos realizados nos ateliês ao mundo das artes, possibilitando que outros olhares viessem banhá-los de outros significados, tornando visíveis traços e linguagens que escapam ao olhar do especialista médico. Mas o Museu não tinha só o objetivo de organização de acervo. Enquanto a experiência nos ateliês do Setor de Terapêutica Ocupacional foi se tornando conhecida nos meios artísticos, Nise da Silveira e sua equipe se deparavam com problemas cada vez mais complexos: como ajudar os artistas revelados no Engenho de Dentro, propiciando-lhes um futuro menos trágico e, ao mesmo tempo, preservar suas obras? O Museu assim criado teria de ser, também, um abrigo e completar-se numa comunidade. Assim, se no curso do seu desenvolvimento esse Museu acabou por se tornar um museu híbrido, podendo ser considerado também um Museu de Arte, seu surgimento esteve ligado a um interesse científico, clínico, e artístico, pelas produções e seus produtores. Além da criação do Museu, as exposições dos trabalhos produzidos nos ateliês do Engenho de Dentro tornaram-se freqüentes em reuniões e Congressos de psiquiatria, e também em espaços dedicados a arte: no MASP, em São Paulo, em Paris, Zurique, Roma, etc., sempre atraindo grande número de visitantes. Obras e artistas foram, aos poucos, se desprendendo de sua origem e vínculo com uma instituição psiquiátrica, para fazer seu percurso no universo cultural, como podemos perceber ao ler os depoimentos dos visitantes da Exposição de Arte Incomum, na XVI Bienal de São Paulo, e ver de que forma aquelas obras passaram a afetar o público (Frayze-Pereira, 1995). Essas exposições tinham o poder de interpelar seus visitantes, levando-os a se perguntarem: como loucos, relegados a uma vida restrita, internados em grandes asilos, podiam produzir trabalhos tão belos? Para Nise, havia uma resposta:

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porque as vivências sofridas pelos pacientes, bem como as riquezas de seu mundo interior, invisíveis para aqueles que se detêm apenas na miséria de seu aspecto externo, (...) apontam para a necessidade de uma reformulação da atitude face a esses doentes e de uma radical mudança nos tristes lugares que são os hospitais psiquiátricos.. (Silveira, 1992, p.18)

Assim, os trabalhos produzidos nos ateliês e suas exposições eram também armas de combate ao manicômio e ao tratamento psiquiátrico hegemônico, aliadas na luta pela transformação cultural de certa concepção de loucura e do enlouquecimento. As exposições das obras do acervo do Museu mostraram-se uma estratégia de agenciar essas produções, fazê-las entrar no circuito da produção cultural, transformando pacientes psiquiátricos em artistas - a produção artística que emergia pode ser compreendida como fato de cultura. Hoje, o Museu tem em torno de 350 mil obras, que habitam uma apertada reserva técnica; é referência internacional e fundamental na revelação humana dos “estados perigosos do ser”; desempenha um papel importante na transformação cultural em direção a uma sociedade mais tolerante, que pode se enriquecer com suas diferenças. Para Nélson Aguilar, o Museu de Imagens do Inconsciente é uma espécie de produto da arte moderna e, entre os institutos afins, é o que tem o mais longevo e bem sucedido acervo criado com base em um programa de terapia ocupacional (Aguilar apud Cancino, 1999). Teoria e clínica na terapêutica ocupacional de Nise Em 1966, Nise da Silveira publicou, na Revista Brasileira de Saúde Mental, um relatório intitulado “20 anos de Terapêutica Ocupacional em Engenho de Dentro”, posteriormente transformado em livro, com o título de Terapêutica Ocupacional: teoria e prática. A discussão foi introduzida com uma pesquisa sobre os fundamentos teóricos da Terapêutica Ocupacional, tomando-se por base vários autores, e, em seguida, foram apresentados o histórico e os princípios básicos do trabalho realizado no Centro Psiquiátrico Pedro II. Nise acreditava que caberia à terapêutica ocupacional parte importante na mudança no ambiente hospitalar e na transformação da própria psiquiatria, desde que as atividades fossem utilizadas com um objetivo clínico, e não para trazer benefícios à instituição, no sentido do desempenho de atividades úteis ao hospital, ou que revertessem em produtos vendáveis. Em suas palavras : ”preferimos ajudar nossos doentes antes de pedir-lhes que ajudem o hospital” (Silveira, s/d, p.24). Em um amplo sentido, a clínica da terapêutica ocupacional tinha, como objetivo, encontrar atividades que servissem aos doentes como meios de expressão: “será preciso partir do nível não-verbal”. É aí que se insere a terapêutica ocupacional, oferecendo atividades que permitam a expressão de vivências não verbalizáveis por aquele que se acha mergulhado na profundeza do inconsciente (Silveira, 1981, p.102). O interesse da psiquiatra era encontrar o doente, estabelecer com ele algum tipo de relação, abrir-lhe espaço para que ele pudesse dizer sua verdade. Para a autora: “todas as atividades são expressivas. A questão é saber observar como o indivíduo as executa. A maneira como ele empunha o martelo ou a serra, bate o tear, ou, mesmo, parte uma linha de costura, podem exprimir muito” (Silveira, s/d, p.30). Esta ênfase no caráter expressivo das atividades talvez tenha sido o traço que a tenha levado a se aproximar da arte. Entre as atividades presentes no Setor de Terapêutica Ocupacional, uma, como vimos, chamou a atenção de Nise da Silveira: a pintura. A psiquiatra surpreendeu-se ao constatar que o próprio ato de pintar poderia adquirir, por si mesmo, qualidades terapêuticas. Para ela:

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As imagens do inconsciente, objetivadas na pintura, tornavam-se passíveis de certa forma de trato, mesmo sem que houvesse nítida tomada de consciência de suas significações profundas. Lidando com elas, plasmandoas com suas próprias mãos, o doente as via, agora, menos apavorantes e, mais tarde, até inofensivas. Ficavam despojadas de suas fortes e desintegrantes cargas energéticas. (Silveira, s/d, p.32)

Assim, a pintura revelava que o mundo interno do psicótico podia tomar forma se encontrasse meios de expressão que o aproximassem cada vez mais do consciente, passando a ser vista como um instrumento a ser utilizado pelo paciente para reorganizar seu mundo interno e, ao mesmo tempo, reconstruir sua relação com a realidade exterior. Para compreender esse fenômeno, a psiquiatra recorreu à psicologia junguiana e sua concepção de símbolo como mecanismo psicológico que transforma a energia psíquica. A presença de imagens de grande harmonia na produção plástica dos pacientes chamou a atenção da psiquiatra; estas eram construídas em torno de um centro e figuras que se ligavam de alguma forma a mitos ancestrais. Motivada por essas imagens, estabeleceu uma correspondência com Jung com o intuito de discutir seus significados. Jung lhe respondeu que algumas daquelas imagens eram mandalas, indicando uma tendência inconsciente a compensar o caos interior e buscar um ponto central, na psique, como tentativa de reconstruir a personalidade dividida. Para ele, a mandala servia a um propósito conservador, sendo uma forma de restabelecimento de uma ordem preexistente. Mas esse símbolo “serve também ao propósito criador de dar forma e expressão a alguma coisa que ainda não existe, algo de novo e único” (Franz, 1987, p.225). Para Nise da Silveira, o mais importante acontecimento ocorrido nas suas buscas sobre os dinamismos da psique foi o encontro com a psicologia junguiana e seu método de investigação. Foi por intermédio da observação das atividades de seus pacientes que Nise rompeu com a psiquiatria clássica e Jung ofereceu-lhe novos instrumentos de trabalho. As idéias de Jung acerca da dinâmica dos fenômenos mentais aproximam-se bastante da concepção sistêmica. Jung concebia a psique como um sistema dinâmico autoregulador, caracterizado por flutuações entre pólos opostos. Desse modo, considerava o processo psíquico um processo vital, uma manifestação do dinamismo básico da vida. Um outro pressuposto presente na psicologia junguiana, que orientou o pensamento e a prática de Nise, refere-se ao conceito de realidade, considerada por Jung como a reunião de fenômenos externos e internos, racionais e irracionais, que compreende unicamente os dados fornecidos pelos sentidos de modo direto e indireto, e compõe, assim, uma totalidade em si. Para ele, o inconsciente humano é uma parte da natureza, é algo objetivo, real, genuíno: “os produtos da atividade do inconsciente merecem o maior crédito, pois são manifestações espontâneas de uma esfera psíquica não controlada pelo consciente, livres em sua forma de expressão” (Silveira, 1992, p.158). Jung reconhecia os aspectos de natureza pessoal presentes no inconsciente, mas acreditava que o inconsciente trazia consigo um estrato mais profundo da psique, comum a toda a humanidade. Distinguia, portanto, duas esferas na psique inconsciente: um inconsciente pessoal relacionado à história pessoal de cada indivíduo, e um inconsciente coletivo, que compõe um elo e um vínculo ente o indivíduo e a humanidade. Os estratos mais profundos do inconsciente permitiriam o reconhecimento da existência de: disposições funcionais herdadas inerentes à própria estrutura psíquica, matizes onde tomam forma representações correspondentes a experiências primordiais da humanidade, movidas sob aspectos diferentes pelo homem de todos os tempos. (Silveira apud Frayze-Pereira, 1995, p.94)

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Mediante observações e investigação de natureza mitológica e histórica, Jung nos atualizou sobre a importância dos símbolos elaborados no inconsciente e reconheceu, na produção de imagens, nas fantasias e nos delírios, sua expressão. Para ele, somente pela forma de imagens, a libido pode ser apreendida viva, e não esfiapada pelo repuxamento das tentativas de interpretações racionais. A psique exprime-se em forma de imagens, de afetos e de idéias que condensam intensas experiências da humanidade. Assim, segundo Jung, para conhecermos e entendermos a organização psíquica da personalidade global de uma pessoa, é importante avaliarmos os sonhos e as imagens simbólicas, que nos guiam na descoberta do inconsciente e que, além de apresentarem memórias do passado longínquo, também contêm elementos inteiramente novos e idéias criadoras de novas proposições para as pessoas e para toda a humanidade. Capra (1988) ressalta que a idéia de inconsciente coletivo de Jung não só liga o indivíduo a toda humanidade como, também, ao cosmo inteiro. Neste sentido nós, seres humanos, somos inextricavelmente ligados àquilo que nos ultrapassa: para além da história pessoal, a rede afetiva e o conjunto de laços que nos unem ao mundo, associamse às forças do cosmos, tornando-nos extremamente complexos. Esta concepção forneceu um lugar de vanguarda na ciência contemporânea. Nise acreditava que, para acompanhar a produção criativa dos pacientes, era preciso ter paciência e tato, e não apressar as coisas. Em sua experiência, a psicologia junguiana, literatura, arte, e mitologia instrumentalizaram-na para a compreensão das metamorfoses do ser e para a investigação da incansável trajetória do homem em busca do seu mito. Com esses estudos, Nise apresentou uma compreensão da psique como um sistema vivo, com um dinamismo próprio, que se auto-regula e se direciona para a cura e para a saúde. Além disso, criou, ainda, um método para a leitura das imagens que emergiam na produção artísticas dos pacientes que participavam dos ateliês de pintura e modelagem do Setor de Terapia Ocupacional do Engenho de Dentro. O que Nise propõe, num percurso que vai do psíquico ao artístico, não é apenas uma leitura arquetípica das produções artísticas, embora ela seja predominante, mas também uma leitura do psíquico pelos mecanismos de constituição da arte. Segundo a autora, “a vontade de formar o mundo é muito mais profunda nas expressões do inconsciente” (Frayze-Pereira, 1995, p.15). Nas leituras de seus livros Imagens do Inconsciente e O mundo das Imagens, verificamos que seu modo de trabalhar pressupõe estudos associados à experiência sensível de alguém que se deixou afetar pela observação clínica cuidadosa, articulada ao esforço do pensamento e da reflexão. O desenvolvimento de um método de leitura de imagens, utilizado no Museu de Imagens do Inconsciente, introduziu uma novidade na forma como, até então, a psiquiatria e, mesmo, a psicanálise tinham tomado as produções de pacientes psicóticos. Nise afirmava que “era forçoso reconhecer que a produção plástica dos psicóticos ia além das representações distorcidas e veladas dos conteúdos pessoais reprimidos (...) Uma pintura quase nunca será o mero reflexo de sintomas” (Silveira, 1981, p.51). Esse método ultrapassa o registro de sintomas, entendendo que, ao pintar, o indivíduo não somente expressa a si mesmo, mas cria algo novo, produz um símbolo, e essa produção tem efeitos de transformação tanto na realidade psíquica como na realidade compartilhada. A leitura da obra proposta por Nise e realizada na organização das produções artísticas do Museu incorporou-se à história dessas produções e tornou-se parte constitutiva dessas, instaurando um trabalho concreto de reflexão sobre elas. Ao estudarmos as leituras propostas, adentramos a uma densidade do campo simbólico formado pelo trabalho da psiquiatra e pelas criações dos autores que ela acompanhou com tanta dedicação. Para Frayze-Pereira (1995, p.106), a leitura da obra é: “trabalho, e não deciframento, é instauração do sentido, e não mero desvendamento de um significado que se crê já depositado em si mesmo na obra”. No âmbito das relações complexas entre arte e leitura da obra, podemos dizer que a

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proposta de Nise gerou uma ampliação da compreensão das obras produzidas no interno de sua atividade clínica. O cuidado e a delicadeza na organização e manutenção dessas produções favoreceram uma contemplação que, além de transcender a clínica, presenteou, por meio de exposições artísticas, o público mais amplo, abrindo um percurso dessas produções em nossa cultura. Esses gestos criaram, de forma sadia, um caminho de reconhecimento dessas produções e uma experiência sensível no âmbito coletivo que multiplica as formas de compreensão e os pontos de vista desta análise: “Visível-invisível, a obra será sempre uma transcendência em relação ao conhecimento que dela pode vir a ter” (Frayze-Pereira, 1995, p.102). Podemos pensar, ainda, que o trabalho clínico e teórico realizado por Nise viria transformar, também, as concepções e práticas clínicas que passariam a abordar a ação e a criação como elementos constitutivos da experiência de estar vivo, independentemente do comprometimento psíquico e do tempo da “doença”. Sua atenção na construção de ambientes propícios à criação fez com que trabalhasse, também, sobre a organização dos espaços e tempos institucionais e, sobretudo, na formação dos profissionais que com ela acompanhavam pacientes. Para ela, para que qualquer atividade viesse a ter uma função terapêutica, era preciso que fosse desenvolvida num ambiente de ateliê acolhedor que, se diferenciando do ambiente hospitalar no qual estivesse inserido, transformava-se em espaço significativo, desencadeador de aproximações e contatos disruptores do processo de criação. Esses ateliês eram preparados pelos monitores, de forma a dar continência aos internos, acolhendo dores, silêncios, ritmos, e, ao mesmo tempo, estimulando a expressão. A presença constante de um monitor visava, não a interferência nos trabalho dos pacientes, mas a oferta de um afeto catalisador que pudesse estimular a criatividade e permitisse restaurar pontes de comunicação com o mundo no qual viviam. Nise utilizou o conceito de afeto de Spinosa, como um afeto que seria produzido por um bom encontro, e o associou à idéia de um disparador do processo de cura – tomando a idéia de catalisador da química, ou seja, substâncias cuja presença acelera a velocidade das reações. Acreditava que o processo terapêutico deveria ser acompanhado de forma adequada, cuidadosa e atenta, com a presença e sensibilidade humana para perceber e observar as expressões e manifestações dos pacientes, fundamentais para dar continência às experiências, para não apressar as coisas e para estimular processos de criação, que só poderiam se desenvolver se, no ambiente em que o paciente vivesse, ele encontrasse o suporte do afeto. Dizia ela, “dificilmente qualquer tratamento será eficaz se o doente não tiver ao seu lado alguém que represente um ponto de apoio no qual ele faça investimento afetivo” (Silveira, 1981, p.68). Neste sentido, valorizava a pessoa humana do monitor, sua sensibilidade e intuição, que favoreceriam uma experiência artística potente. No entanto, mesmo considerando que as teorias valem menos que “o esforço impregnado de simpatia para penetrar no mundo interior do doente” (Silveira, s/d, p.18), a formação do monitor foi sempre uma questão fundamental para Nise da Silveira. Organizou vários cursos para os monitores que trabalhavam nos ateliês. Para ela, essa formação deveria ser contínua, compreendendo conhecimentos em várias áreas, da psiquiatria e psicologia à mitologia, arte e antropologia. O objetivo era que os monitores pudessem compreender o processo psicótico, o processo de cura posto em marcha pela atividade artística, e pudessem fazer conexões entre as imagens produzidas, a situação emocional do interno e as produções culturais de outras épocas e outros lugares, por meio do estudo de séries de imagens. Nise formou profissionais de diversas áreas do conhecimento, efetivando uma experiência interdisciplinar. Em sua prática psiquiátrica, um outro aspecto a preocupava: as inúmeras reinternações dos pacientes indicavam a necessidade de que o tratamento oferecesse um melhor preparo ao indivíduo que vivenciou a experiência da crise psicótica. Durante anos, Nise pensou sobre a importância de criar uma instituição que estabelecesse uma ponte

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entre o hospital psiquiátrico e a vida em sociedade. Impulsionada pela vontade de proporcionar melhores condições de atendimento ao paciente psiquiátrico, criou a Casa das Palmeiras, fundada em 1956, exemplo precursor de passagem indispensável entre o hospital psiquiátrico e o meio social. O principal método empregado na Casa das Palmeiras foi terapia ocupacional, realizada, segundo Nise, num amplo sentido e com uma nova denominação. A Casa representou um degrau intermediário entre a rotina do sistema hospitalar, desindividualizada, e a vida na sociedade e na família, com seus inevitáveis e múltiplos problemas, onde a aceitação do egresso não se faz sem dificuldade. Num ato de liberdade, preferiram utilizar o termo “a emoção de lidar” para renomear a Terapia Ocupacional que se desenvolveu no trabalho da Casa e, como diz a autora: Nesse sentido, visamos coordenar intimamente olho e mão, sentimento e pensamento, corpo e psique, primeiro passo para a realização do todo específico que deverá vir a ser a personalidade de cada indivíduo sadio. Na busca de conseguir esta coordenação, fazemos apelo às atividades que envolvam a função criadora existente, mais ou menos adormecida, dentro de todo indivíduo. (Silveira, 1986, p.11)

Considerações finais O trabalho de Nise da Silveira, de grande sensibilidade e delicadeza, abriu espaço para manifestações e criações “loucas” e afirmou a importância de uma escuta atenta e interessada por essas produções. Introduziu uma outra lógica no atendimento de psicóticos, gerando conflito no espaço asilar e fora dele, e provocando um profundo processo de resistência, inovação e transformação cultural. Ao deslocar a ênfase da psiquiatria hegemônica para a terapia ocupacional, fez deslocar, também, o foco principal das pesquisas no campo entre arte e loucura, da investigação psicopatológica e sintomatógica das produções dos doentes, para a construção de um método de tratamento para pacientes internos, e para a pesquisa em torno desse método e seus efeitos. Assim, a questão terapêutica ganhou um lugar de relevância, chegando a superar a importância da função diagnóstica. A inovação clínica deu-se pela experimentação, invenção, criatividade, pelo afeto, cuidado, pela compreensão e construção de passagens para a autonomia. Jung, ao visitar a exposição do Centro Psiquiátrico Nacional, em Zurique, em 1957, apontava para a diferença desses trabalhos em relação a outras coleções de hospitais psiquiátricos, porque apresentavam harmonia de formas e de cores o que, segundo ele, não era habitual na pintura dos esquizofrênicos, e perguntava sobre a qualidade do ambiente no qual esses doentes pintavam. Mário Pedrosa parece responder a esta pergunta quando diz: A primeira coisa a constatar [nesses artistas] – com mais ou menos talento, mais ou menos atacados na enfermidade – é que nenhum poderia ser o que são ou que foram no isolamento (...) Na solidão, poderiam qualquer deles ter sido simplesmente destruídos pela vida. A sociedade de Engenho de Dentro, com toda a precariedade de seus recursos, lhes deu âncora à vida. (Pedrosa, 1980, p.11)

Na atmosfera criativa dos espaços de trabalho de Nise da Silveira, havia o cuidado para que o apoio emocional estivesse presente, potencializado, também, com a presença de artistas e de outros profissionais que a auxiliaram a articular as produções do ateliê ao circuito artístico mais amplo, envolvendo públicos mais abrangentes na apreciação das obras, proporcionando uma nova experiência estética para a subjetividade brasileira. Sua trajetória de vida foi marcada por ações de vanguarda, ocorridas

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aproximadamente quarenta anos antes do início da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Suas ações configuraram-se como crítica e resistência à hegemonia da psiquiatria de sua época. Para garantir transformações fundamentais à vida dos pacientes atendidos, lançou-se a estudos e pesquisas inéditos, consistentes, e proporcionou à terapia ocupacional brasileira um campo de fundamentação teórica e clínica, para o qual apresentou uma orientação própria, registrando os resultados obtidos e observados, comprovando aspectos do tratamento, organizando e cuidando das capacidades criativas e artísticas dos loucos. Seu trabalho e obra caracterizaram uma união com sua vida e engendraram uma verdadeira reinvenção cultural. Num aprofundamento consistente, buscou articular várias áreas do conhecimento para a compreensão de estados existenciais do ser humano, cuja compreensão foi ampliada e a inteligibilidade do mundo redimensionada. Nos estudos e nas aproximações com a vida e a obra de Nise, identificamos uma proposição que apresenta ressonâncias com o desenvolvimento científico contemporâneo, pois os pilares e as expansões de sua obra sustentam um entendimento do homem em sua universalidade e em sua diversidade, simultaneamente. E conduzem, como nas palavras de Morin (1998), a uma possibilidade de redefinição dos laços sociais, a um retorno ao sujeito, à valorização da ética, ao redimensionamento do imaginário e a uma abertura da razão. Nos dias atuais, a obra de Nise reflete a maturidade de quem, no emaranhado científico de nossa época, pôde manter vivo o espírito, com princípio e horizonte abertos, observando e pesquisando incansavelmente. Ressonâncias sentidas na contemporaneidade: as obras produzidas na interface da Arte e Promoção da Saúde relacionam-se à construção da acessibilidade à ação e criação no mundo de populações, grupos e sujeitos que estão à margem das experiências socioculturais; e, no ato da produção artística, articulam fragmentos de histórias vividas a momentos criativos, dando origem a uma extensa produção que imprime transformações singulares às suas vidas; são experiências que promovem um círculo comunicacional, capacitam lingüisticamente e inserem os sujeitos num campo de inventividade cotidiana. O que Nise realizou é referência para práticas atuais. Sua história produziu, na terapia ocupacional contemporânea, um contágio que faz com que a continuidade da ação permaneça, mesmo que a presença física tenha deixado de existir. A partir dela, arte, cultura e loucura ganharam definitivamente novos sentidos e novas significações.

Referências CANCINO, C.A. Imagens do inconsciente. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 nov. 1999. Ilustrada, p.E4. CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1988. FRANZ, M.L. O processo de individuação. In: JUNG, C.G. (Org.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p.158-229. FRAYZE-PEREIRA, J.A. Olho d´água: arte e loucura em exposição. São Paulo: Escuta & Fapesp, 1995. GULLAR, F. Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. MAVIGNIER, A. O início do ateliê de pintura. In: AGUILAR, N. (Org.). Imagens do inconsciente: mostra do redescobrimento. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. (Catálogo Fundação Bienal de São Paulo). p.247-9.

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MORIN, E. A ética do sujeito responsável. In: CARVALHO, E.A. (Org.). Ética, solidariedade e complexidade. São Paulo: Palas Athena, 1998. p.65-77. PEDROSA, M. A Bienal de cá pra lá. In: ARANTES, O.B.F. (Org.). Política das artes: textos escolhidos I. São Paulo: Edusp. 1995. p.217-83. ______. Museu de imagens do inconsciente. Introdução. Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1980. (Coleção Museus Brasileiros, 2). QUINET, A. Arte virgem: a função da pintura na psicose. In: QUINET, A. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p.209-19. SILVEIRA, N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981. ______. Casa das Palmeiras: a emoção de lidar. Rio de Janeiro: Alhambra, 1986. ______. O mundo das imagens. São Paulo: Ática, 1992. ______. Terapêutica ocupacional: teoria e prática. Rio de Janeiro: Casa das Palmeiras, s/d.

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No decorrer da década de 1940, a psiquiatria hegemônica brasileira voltou-se para inovações científicas e tecnológicas e para a sedimentação de uma visão orgânica da doença mental. Nesse contexto, Nise da Silveira pesquisou o desenvolvimento de uma prática clínica em terapia ocupacional, examinando os resultados com inteligência livre de enquadramentos limitadores. Organizou e cuidou dos espaços e tempos para o desenvolvimento das capacidades criativas, da experimentação e do aprendizado artístico dos loucos. Devido à quantidade de desenhos e pinturas e à qualidade das obras produzidas, seus ateliês adquiriram e aglutinaram grande interesse científico e artístico. O trabalho de Nise da Silveira produziu um deslocamento nas atividades realizadas como ocupações monótonas e repetitivas, mantenedoras da lógica asilar; aproximou-as das necessidades reais dos pacientes, abrindo novas possibilidades de ação e participação no mundo para essas pessoas. Sua história é referência para práticas atuais na terapia ocupacional. A partir dela arte, cultura e loucura ganham novos sentidos. PALAVRAS-CHAVE: Terapia ocupacional. Saúde mental. Arte. Loucura. Resistance, innovation and clinical practice in Nise da Silveira’s thoughts and actions In the 40s, hegemonic psychiatry in Brazil turned to scientific and technological innovations and the consolidation of an organic vision of mental illness. Within this context, Nise da Silveira researched the development of clinical practice in the field of occupational therapy and analyzed results with an open mind. She organized and cared for the arenas and time required for developing the creative capacities, experimentation and artistic learning of the mentally ill. The high number and quality of the drawings and paintings produced in her studios have triggered intense scientific and artistic interest. Her work changed the monotonous and repetitive activities conducted within the framework of a mental hospital, bringing them closer to patients’ actual needs and creating new possibilities of activity and participation in the world. Her work is a benchmark reference for current practices in occupational therapy. Art, culture and madness acquired new meanings after her. KEY WORDS: Occupation therapy. Mental health. Art. Madness. Resistencia, innovación y clínica en el pensamiento y la acción de Nise da Silveira En la década de 1940, la psiquiatría hegemónica en Brasil incorporó innovaciones científicas y tecnológicas, consolidando una visión orgánica de la enfermedad mental. En dicho contexto, Nise da Silveira desarrolló una práctica clínica en terapia ocupacional con una inteligencia libre de encasillamientos. Organizó los espacios y tiempos necesarios para el desarrollo de las capacidades creativas, la experimentación y el aprendizaje artístico de los locos. Sus talleres, por la profusión y calidad de dibujos y pinturas que producían, adquirieron un enorme interés científico y artístico. El trabajo de Nise da Silveira produjo un desplazamiento en actividades monótonas, repetitivas y mantenedoras de la lógica asilar, para acercarlas a las reales necesidades de los pacientes, abriéndoles así nuevas posibilidades de acción y participación en el mundo. Su historia constituye una referencia para las actuales prácticas de terapia ocupacional. A partir de Nise da Silveira, el arte, la cultura y la locura adquieren nuevos sentidos. PALABRAS CLAVE: Terapia ocupacional. Salud mental. Arte. Locura.

Recebido em 30/04/06. Aprovado em 04/02/07.

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ON DU AR TE * entrevista com NEWT NEWTON DUAR ARTE Ele esteve em Botucatu em fevereiro de 2007. Durante as Oficinas de Estudos Pedagógicos da Unesp, coordenadas pela Pró-Reitoria de Graduação, ministrou a palestra A construção do conhecimento no processo ensino-aprendizagem, expondo suas idéias e contribuindo para o debate sobre a pedagogia e o papel do educador no ensino superior. Ali nasceu o convite para esta entrevista, agora compartilhada com os leitores da Interface. Antes, um breve perfil do entrevistado...

A formação e vida profissional Pedagogo pela Universidade Federal de São Carlos, Newton Duarte é docente da Unesp desde 1988. Atualmente é livre-docente em Psicologia da Educação no campus de Araraquara. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq desde 1993, de agosto de 2003 a junho de 2004 realizou pós-doutorado na Universidade de Toronto, Canadá. Em 2002 criou o grupo de pesquisa Estudos Marxistas em Educação, que hoje conta com pesquisadores da Unesp, UFSCar, UFSC, UFPR, UFES, UEM e UESC. No biênio 2006-2007 coordena o GT Filosofia da Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPED).

ENTREVISTA

A SOCIALIZAÇÃO DA RIQUEZA INTELECTU AL INTELECTUAL PSICOLOGIA, MARXISMO E PEDAGOGIA

A produção Newton Duarte tem extensa produção publicada no exterior e no Brasil, da qual destacam-se os livros: A individualidade para-si (1993), Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski (1996), Vigotski e o aprender a aprender: crítica às apropriações neoliberais e pósmodernas da teoria vigotskiana (2000) e Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? (2003). Também organizou as coletâneas Sobre o construtivismo (2000) e Crítica ao fetichismo da individualidade (2004). Em 2006 o livro Critical perspectives on activity: explorations across education, work and everyday life, organizado por ele, Peter Sawchuk e Mohamed Elhammoumi foi publicado pela editora da Universidade de Cambridge. A pedagogia marxista Desde 1993 Newton Duarte desenvolve e coordena projetos de pesquisas cuja produção de reflexões e conhecimentos tem como temas centrais: o papel da educação escolar na formação do indivíduo; elementos para uma teoria histórico-crítica do trabalho educativo; o construtivismo: suas muitas faces, filiações e interfaces com outros modismos e, atualmente, a Teoria da atividade e a Educação na sociedade contemporânea. Crítico radical aos ideários pedagógicos do universo ideológico neoliberal e pós-moderno, explicita suas posições sobre a educação e a psicologia da educação, defendendo a pedagogia marxista. Em “Vigotski e o ‘aprender a aprender’: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana”, Duarte polemiza com uma tendência muito comum entre educadores brasileiros nos dias atuais: a de se propor aproximações entre as concepções de Vigotski e as de ideários com o lema “aprender a aprender”, descaracterizando as raízes marxistas do pensador russo. Colaboraram: Sueli Terezinha Ferreira Martins, Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Mariangela Scaglione Quarentei e Adriana Ribeiro, do Corpo Editorial de Interface.

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O que nos levou até o professor foi a sua tese de que há uma psicologia objetivamente contida nos conteúdos escolares e que a psicologia da educação deveria incluir esses conteúdos entre seus objetos de estudo e pesquisa. Em que idéias, teorias, pressupostos, esta tese se ancora? O ponto de partida para minha reflexão foi meu trabalho como professor e pesquisador na área de psicologia da educação e meus estudos na perspectiva da construção de uma pedagogia marxista. Durante todo o século XX, quando a psicologia tomou a educação escolar como objeto de estudos e pesquisas, o ensino dos conteúdos escolares quase sempre permaneceu como um tema bastante marginal, quando não totalmente excluído do rol de temas abordados pela psicologia da educação. Essa afirmação deve, entretanto, ser relativizada considerando-se que, a rigor, a psicologia não é uma ciência unificada, estando dividida em correntes não apenas distintas como também conflitantes umas com as outras. A definição do próprio objeto da psicologia pode mudar segundo a abordagem teórica adotada. No caso da psicologia da educação, a situação não poderia ser diferente, ou seja: a depender da perspectiva teórica pode-se incluir ou não os conteúdos escolares, seu ensino e sua aprendizagem entre os objetos de estudo e pesquisa. Uma psicologia da educação de fundamentação teórica marxista deve necessariamente incluir entre seus principais objetos de estudo e pesquisa a psicologia humana objetivada nesses conteúdos. O marxismo, ao contrário do que afirma o senso comum acadêmico, dominado pelas idéias de cunho liberal e pós-moderno, possui um grande potencial, ainda pouco explorado, no tocante à compreensão da psicologia humana. Isso quer dizer... Que é muito comum ouvirmos a afirmação de que o marxismo relegaria a um segundo plano, ou até mesmo desconsideraria inteiramente, a individualidade e a subjetividade em prol de uma concepção de mundo na qual haveria espaço apenas para o coletivo e para as determinações materiais da vida humana. Essa afirmação revela, no mínimo, total ignorância dos textos clássicos do marxismo. A dialética entre objetividade e subjetividade sempre esteve presente na obra de Marx. Qualquer pessoa que, despida de preconceitos, leia o que Marx escreveu em obras como Os Manuscritos Econômico-Filosófico de 1844 (Manuscritos de Paris), A Ideologia Alemã, ou Elementos Fundamentais Para a Crítica da Economia Política (Grundrisse: 1857-1858) chegará à conclusão que a visão de história social preconizada por ele reserva lugar de destaque para o desenvolvimento histórico da individualidade humana. Claro que isso não significa afirmar que todos deverão concordar com a concepção marxiana de individualidade e de seu desenvolvimento histórico, mas já não poderão justificar a defesa da visão liberal-burguesa ou da visão pós-moderna em nome de uma suposta desconsideração da individualidade e da subjetividade por parte do marxismo.

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O professor defende, então, a idéia de que há lugar no marxismo para as discussões sobre individualidade e subjetividade? Não pretendo adotar uma atitude defensiva neste espaço de reflexão. O que afirmo é que abordagem marxista está além de qualquer outra, no que se refere aos estudos sobre o indivíduo e a subjetividade. Idéias descritas por Marx no século XIX, ou Vigotsky, no início do século XX, preservam todo seu vigor e mostram-se muito avante de milhares de páginas que foram escritas durante todo o século XX (e neste início de século XXI), por correntes idealistas da filosofia, psicologia, das ciências sociais e da educação. Um exemplo, que trago para nossa reflexão, é a seguinte passagem dos Manuscritos Econômico-Filosóficos escritos por Marx em 1844:

(...) assim como a música desperta primeiramente o sentido musical do homem, assim como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, é nenhum objeto, porque o meu objeto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto só pode ser para mim da maneira como a minha força essencial é para si como capacidade subjetiva, porque o sentido de um objeto para mim (só tem sentido para um sentido que lhe corresponda), vai precisamente tão longe quanto vai o meu sentido, por causa disso é que os sentidos do homem social são sentidos outros que não os do não social; [é] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em suma as fruições humanas todas se tornam sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas, em parte recém cultivados, em parte recém engendrados. Porém não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (amor, vontade etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui. (p.110)

Mesmo quem não esteja familiarizado com a obra de Marx não poderá deixar de reconhecer como é rica a maneira pela qual o filósofo alemão abordou o tema das relações entre objetividade e subjetividade. E essa riqueza ainda está por ser explorada em toda sua plenitude pelas diversas áreas do conhecimento. Eu me pergunto: como o estudo da subjetividade humana poderá avançar de forma efetiva, poderá superar os impasses e os becos sem saída nos quais tem desembocado, sem adotar essa abordagem sugerida por Marx, ou seja, a análise da subjetividade humana contida nas obras objetivas resultantes da prática histórica da humanidade? Há toda uma riqueza psicológica nos frutos do trabalho humano, mas boa parte dos estudos em psicologia e em educação tem ignorado essa riqueza psicológica objetivamente existente.

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Sabemos que essa riqueza psicológica objetivamente existente foi foco dos estudos de Vigotski e seus seguidores... Realmente! Sobre as relações dialéticas entre objetivo e subjetivo e entre social e individual no campo da fruição das obras de artes pelos indivíduos, Vigotski, em seu livro Psicologia da Arte (1998, p.315), escreveu as seguintes palavras (que também socializo neste espaço):

É muito ingênuo interpretar o social apenas como coletivo, como existência de uma multiplicidade de pessoas. O social existe até onde há apenas um homem e as suas emoções pessoais. Por isso, quando a arte realiza a catarse e arrasta para esse fogo purificador as comoções mais íntimas e mais vitalmente importantes de uma alma individual, o seu efeito é um efeito social. A questão não se dá da maneira como representa a teoria do contágio, segundo a qual o sentimento que nasce em um indivíduo contagia a todos, torna-se social; ocorre exatamente o contrário. A refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade. A peculiaridade essencialíssima do homem, diferentemente do animal, consiste em que ele introduz e separa do seu corpo tanto o dispositivo da técnica quanto o dispositivo do conhecimento científico, que se tornam instrumentos da sociedade. De igual maneira, a arte é uma técnica social do sentimento, um instrumento da sociedade através do qual incorpora ao ciclo da vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do nosso ser. Seria mais correto dizer que o sentimento não se torna social mas, ao contrário, torna-se pessoal, quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isto deixar de continuar social.

Quando Vigotski escreveu esse livro, a obra de Marx que citei anteriormente ainda não fora publicada. Seria mero acaso essa grande aproximação entre as concepções contidas nas duas citações? Absolutamente não não. Vigotski talvez não conhecesse esse texto de Marx, mas conhecia outras obras do filósofo alemão, além de conhecer os trabalhos de outros autores no campo do marxismo. O domínio que tinha do método materialista histórico-dialético levou-o a não aceitar o subjetivismo que predominava na análise dos processos psicológicos mais elevados e complexos do ser humano, como é o caso daqueles ligados à criação e à fruição da obra de arte. A mediação social era vista por Vigotski como a própria essência do psiquismo humano. Na mesma linha de análise, Leontiev argumenta que o “ouvido verbal” e o pensamento lógico não resultam de processos individuais endógenos mas sim da apropriação da linguagem e da lógica objetivamente existentes na sociedade.

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Nessa perspectiva materialista, histórica e dialética das relações existentes entre o mundo humano objetivo e o mundo humano subjetivo, qual é a crítica que o professor faz às teses que predominam atualmente na educação escolar? Eu afirmo que, na perspectiva de uma pedagogia marxista, que é a que eu defendo, torna-se totalmente desprovida de sentido a tese escolanovista, reeditada pelo construtivismo, de que, na educação escolar, o processo de aquisição (ou construção) do conhecimento seria mais importante do que o conteúdo do conhecimento adquirido (ou construído). Mas não é o que defende Piaget em seus escritos? Exatamente! Piaget, numa conferência proferida em 1947, intitulada “O desenvolvimento moral do adolescente em dois tipos de sociedade: sociedade primitiva e sociedade ‘moderna’”, estabeleceu uma nítida oposição entre a transmissão, ao aluno, de conhecimentos existentes, e o oferecimento de condições que permitam a ele construir suas próprias verdades. É interessante transcrever um trecho da referida conferência:

O problema da educação internacional é, portanto, essencialmente o de direcionar o adolescente não para soluções prontas, mas para um método que lhe permita construí-las por conta própria. A esse respeito, existem dois princípios fundamentais e correlacionados dos quais toda educação inspirada pela psicologia não poderia se afastar: 1) que as únicas verdades reais são aquelas construídas livremente e não aquelas recebidas de fora; 2) que o bem moral é essencialmente autônomo e não poderia ser prescrito. Desse duplo ponto de vista, a educação internacional é solidária de toda a educação. Não apenas a compreensão entre os povos que se vê prejudicada pelo ensino de mentiras históricas ou de mentiras sociais. Também a formação humana dos indivíduos é prejudicada quando verdades, que poderiam descobrir sozinhos, lhes são impostas de fora, mesmo que sejam evidentes ou matemáticas: nós os privamos então de um método de pesquisa que lhes teria sido bem mais útil para a vida que o conhecimento correspondente! Prejudica-se igualmente essa formação humana dando aos adolescentes aulas de civismo e de internacionalismo, se estas aulas consomem o tempo que eles teriam podido ocupar descobrindo sozinhos esse civismo ou esse internacionalismo no exercício de uma vida social organizada espontaneamente. Sempre que o discurso substitui a ação efetiva, o progresso da consciência é retardado. (Piaget, 1998, p.166, grifo do entrevistado)

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Note-se que, nessa passagem aparecem com clareza dois princípios pedagógicos: o de que aquilo que o indivíduo aprende por si mesmo é superior, em termos educativos e sociais, àquilo que ele aprende por meio da transmissão por outras pessoas e o princípio de que o método de construção do conhecimento é mais importante do que o conhecimento já produzido socialmente. Em minhas pesquisas, faço uma crítica às correntes psicológicas e pedagógicas que consideram os processos de aquisição do conhecimento mais importantes do que o próprio conhecimento. E as idéias de Piaget estão incluídas em minha crítica. O construtivista espanhol Juan Delval também defende de forma explícita que a escola deve preocupar-se menos com o conhecimento científico já existente e voltar-se à formação de uma atitude científica nas crianças, mediante observação dos fenômenos naturais e sociais. Qual é seu posicionamento em relação a essa idéia? Primeiramente é importante rever o texto de Delval (1998, p.160) em que ele explicita essa idéia:

...o pensamento científico deve ocupar um papel central no trabalho escolar. Mas o pensamento científico é, principalmente, um método, uma atitude, uma forma de abordar os problemas e não uma série de idéias, de conteúdos ou de resultados aos quais os homens chegaram ao longo da sua história. Não devemos perder de vista que o nosso objetivo é o de ensinar a pensar livremente, criativamente, para dar origem a indivíduos melhores, mais livres e, na medida do possível, mais felizes. Por isso, não tem nenhuma utilidade, se o que queremos é contribuir para o aprimoramento do homem, que as crianças aprendam muita física ou muita história. O importante é que sejam capazes de refletir sobre o universo físico e sobre o universo social. O que precisam aprender é essa atitude diante das coisas e essa atitude somente será alcançada com a prática, exercitando em sala de aula o pensamento rigoroso e criativo diante de problemas novos. Poderíamos dizer que o que é preciso aprender é a compreender a natureza da atividade científica, que é, acima de tudo, uma forma de tratar as coisas, de interrogar a realidade, de duvidar das explicações geralmente admitidas e de examinar as conseqüências das nossas conjecturas. Em última análise, é a busca permanente do porquê das coisas e a reconstrução de um sistema que permita organizar o mundo.

Meu questionamento em relação a essa idéia é a de que ela também se apóia em dicotomias, neste caso, entre conteúdo e forma e entre processo e produto. No limite, essa idéia acaba por esvaziar o processo educativo, descaracterizando-o totalmente. Cabe aqui lembrar o que já afirmara Saviani (1989, p. 86-87) em relação à Escola Nova:

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Veja-se o paradoxo em que desemboca a escola nova; a contradição interna que atravessa de ponta a ponta sua proposta pedagógica: de tanto endeusar o processo, de tanto valorizá-lo em si e por si, acabou por transformá-lo em algo místico, uma entidade metafísica, uma abstração esvaziada de conteúdo e sentido.

Em oposição a essa perspectiva escolanovista e construtivista, defendo a construção coletiva de uma pedagogia apoiada na diretriz metodológica sintetizada por Marx na fórmula “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”. Em meu texto “Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? – quatro ensaios crítico-dialéticos em filosofia da educação”, de 2003 (p. 39-83), discuto as relações dessa diretriz metodológica com a psicologia de Vigotski e com uma pedagogia marxista. E que exigências essa pedagogia traz ao educador? Tal pedagogia exige a compreensão das contradições que marcam o processo histórico no qual a riqueza material e intelectual humana é construída e ampliada por meio da exploração das classes dominadas (os escravos, os servos e os proletários). Na sociedade capitalista essa contradição entre a riqueza do gênero humano e a pobreza que caracteriza a vida da maioria dos indivíduos chega a seu ponto extremo, tornando-se insuportável. A alienação não atinge apenas a atividade de trabalho em si mesma, a qual é opressiva, desumanizante e sem outro sentido para o trabalhador além daquele dado pela venda de sua força de trabalho, recebendo em troca um salário que possibilita tão somente a reprodução da capacidade de trabalho. Atualmente tende a generalizar-se a situação de grande penúria existente à época de Marx e momentaneamente disfarçada pela curta e localizada existência do Welfare State. A maioria absoluta da humanidade vê-se diante de uma realidade nada alentadora em termos do que serão suas condições de vida no futuro imediato. Diante da situação de total expropriação da classe trabalhadora de todos os meios de existência - à exceção, unicamente, da própria força de trabalho Marx não adotou a atitude, tão comum atualmente, de defender ações sociais paliativas adaptadas às circunstâncias locais desta ou daquela comunidade, deste ou daquele grupo de “excluídos”. Ele defendeu que a única forma possível de superação do grande distanciamento entre a vida dos indivíduos e a riqueza universal do gênero humano seria a apropriação dessa riqueza em sua totalidade pelo conjunto da classe trabalhadora. Em termos da riqueza intelectual, isto é, do conhecimento, a concepção defendida por Marx não dá margem para nenhum tipo de relativismo cultural ou de pedagogia multiculturalista ou, ainda, de desvalorização da ciência à maneira dos intelectuais pós-modernos. Em a Ideologia Alemã (1998, p. 59) ele afirma que

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A libertação de cada indivíduo singular será alcançada na medida em que a história seja totalmente transformada em história mundial. A riqueza real do indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas conexões reais. Apenas isso libertará os indivíduos das barreiras nacionais e locais, os trará para a conexão prática com a produção (inclusive a produção intelectual) de todo o mundo e tornará possível a eles a aquisição da capacidade de desfrutar dessa multilateral produção de todo o planeta [as criações do homem].

Trazendo isso para a esfera da educação escolar... Se a educação escolar for entendida como formação humana, deverá tomar como referência para a definição dos conteúdos escolares as formas mais desenvolvidas e ricas do conhecimento produzido pela humanidade. Se a educação escolar tiver esta perspectiva, os conteúdos escolares, os métodos de ensino e toda organização do sistema escolar (desde a educação infantil até o ensino superior), deverão voltar-se para a reprodução - nos indivíduos - da riqueza universal do gênero humano, para o estabelecimento de múltiplas e cada vez mais desenvolvidas relações entre essa riqueza e a formação dos indivíduos. Focalizando a educação brasileira, que reflexões o professor nos traz em termos dessa formação humana? Quão longe estamos dessa perspectiva... Quão pobre mostra-se nossa educação escolar se a avaliarmos tomando por referência a riqueza universal do gênero humano, ao invés aceitarmos os parâmetros dados pelo cotidiano alienado ou pelas demandas de um mercado de trabalho cada vez mais decidido a exigir do trabalhador a entrega irrestrita de suas energias físicas e psíquicas, sua saúde física e mental. Segundo a retórica educacional atualmente dominante, não há mais conteúdos a serem ensinados, pois todo saber tornou-se relativo... A ciência passou a ser considerada uma ilusão iluminista ou, pior ainda, o conhecimento objetivo teria deixado de existir, assim como não existiria uma cultura humana, mas infinitas “culturas locais”. E mais: mesmo que o conhecimento existisse, ele não deveria ser ensinado, pois conhecimento não se transmite, é construído num processo, cujo lema central é: aprender a aprender ou, segundo os famosos quatro pilares da educação segundo a Unesco: “aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos”. Coerentemente com essa visão, defende-se que o professor também deve aprender a aprender, também deve construir seu conhecimento e os cursos de licenciatura são todos reformulados na lógica da pedagogia do professor reflexivo e da pedagogia das competências, a mesma que forneceu os argumentos necessários à precarização do ensino médio destinado aos filhos da classe trabalhadora, submetendo-os a uma formação

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profissionalizante centrada no conceito de empregabilidade, que significa nada mais do que a formação de um trabalhador disposto a se adaptar a qualquer tipo de trabalho. O discurso da qualificação que tenta justificar o princípio da empregabilidade é um disfarce para um processo de diminuição drástica do papel dos conteúdos escolares clássicos na formação dos jovens no ensino médio. E nos outros níveis, a situação é diferente? No campo do ensino fundamental as coisas não são melhores. As pedagogias burguesas supostamente progressistas, tais como a Escola Nova, o Construtivismo, a Pedagogia dos Projetos etc., que encantam boa parte da esquerda educacional, tornaram-se pedagogias oficiais e produziram uma escola repleta de atividades e vazia de conteúdos. Soma-se a isso a disseminação, entre o professorado, de um conjunto de preconceitos em relação às crianças, aos adolescentes e aos jovens da classe trabalhadora, tais como os famosos problemas de aprendizagem, o suposto desinteresse pela escola e pelo estudo, o alegado descaso da família etc... O resultado é a produção de analfabetismo e ignorância por parte da instituição que deveria difundir a cultura escrita para toda a sociedade. Há quem justifique toda essa situação afirmando que o papel social da escola, se um dia foi o de transmissão do conhecimento, hoje não mais o seria. Hoje a escola teria por papel desenvolver a sociabilidade, entendida como o desenvolvimento da capacidade de convivência mutuamente tolerante, a qual implica, é claro, a participação “construtiva” na manutenção da ordem social necessária à reprodução do capital. Voltando a Marx... o que uma pedagogia marxista deve levar em conta ao ser formulada? Nos “Grundrisse”, Marx (1993, p.487-488) afirmou que a riqueza produzida na sociedade capitalista deve ser despida de sua forma burguesa e então essa riqueza se revela como: 1) a universalidade das necessidades, capacidades, prazeres, forças produtivas etc. dos indivíduos; 2) o pleno desenvolvimento do domínio humano das forças da natureza, incluindo-se a própria natureza humana; 3) a total explicitação das potencialidades criativas humanas sem nenhum outro pressuposto que não seja o prévio desenvolvimento histórico; 4) a transformação do desenvolvimento do gênero humano e do indivíduo em um fim em si mesmo, sem nenhum padrão de medida pré-estabelecido; 5) a transformação da vida do indivíduo em um processo no qual ele produz a si mesmo como uma totalidade de forças humanas. Marx não descreveu dessa forma a riqueza humana com a finalidade de expressar sua esperança numa utopia. O que ele fez foi descrever as possibilidades reais criadas pela própria sociedade burguesa. A construção de uma pedagogia marxista deve ter essas possibilidades como referência para situar-se no campo mais amplo de uma luta mundial pela superação da sociedade capitalista, a qual vem produzindo a barbárie em escala crescente.

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Uma pedagogia superior ao capitalismo terá que incorporar tudo aquilo que, tendo sido produzido na sociedade capitalista, possa contribuir para o desenvolvimento do gênero humano, para o enriquecimento material e intelectual da vida de todos os seres humanos. É por essa razão que adoto a atitude de rejeição integral das proposições pós-modernas no campo educacional. Minha recusa do pensamento pós-moderno não decorre do fato dele ser um produto cultural da sociedade burguesa, mas por se tratar de uma ideologia que, ao invés de valorizar aquilo que de humanizante a sociedade burguesa tenha produzido, entrega-se de corpo e alma à celebração do irracionalismo, do ceticismo e do cinismo. Trata-se de uma posição radical... Com toda a certeza! E minha radical rejeição ao pensamento pós-moderno visa, entre outras coisas, defender uma abordagem marxista que supere os limites do Iluminismo sem negar o caráter emancipatório do conhecimento e da razão; que supere os limites da democracia burguesa sem negar a necessidade da política; que supere os limites da ciência posta a serviço do capital sem, entretanto, negar o caráter indispensável da ciência para o desenvolvimento humano; que supere a concepção burguesa de progresso social sem negar a possibilidade de fazer a sociedade progredir na direção de formas mais evoluídas de existência humana. No campo educacional educacional, tudo isso se traduz no que defendo: uma pedagogia marxista que supere a educação escolar em suas formas burguesas sem negar a importância da transmissão, pela escola, dos conhecimentos mais desenvolvidos que já tenham sido produzidos pela humanidade. Isso não poderá ser feito sem a contribuição de uma psicologia que ajude os educadores a dominarem a psicologia humana contida na riqueza intelectual objetivamente existente na sociedade.

Fotos cedidas pela Seção de Apoio Ensino, Pesquisa, Extensão, Instituto de Biociências de Botucatu. PALAVRAS-CHAVE: Psicologia. Marxismo. Pedagogia. Conhecimento. Construtivismo. KEY WORDS: Psychology. Marxism. Pedagogy. Knowledge. Construtivism. PALABRAS CLAVE: Psicología. Marxismo. Pedagogia. Conocimiento. Construtivismo.

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Contato: Rodovia Araraquara-Jaú, km 1, Bairro dos Machado - Araraquara, SP 14.800-901 <newton.duarte@uol.com.br>


livros

RUSSO, M.; CAPONI, S. (Orgs.). Estudos de filosofia e biomédicas. São Paulo: Discurso história das ciências biomédicas Editorial, 2006.

No prefácio do livro organizado por Marisa Russo e Sandra Caponi, Michel Paty contextualiza seu lançamento, em um momento em que se renovam os interesses por uma “reflexão crítica, filosófica, epistemológica, histórica e social das ciências contemporâneas” que, em linhas gerais, ocorre a partir da década de 1960. Esse interesse vem se tornando ativo em diferentes países, incluindo o Brasil, e a obra é resultado do trabalho conjunto de pesquisadores do Brasil e da França. Segundo as organizadoras, o tema é a relação entre história, filosofia e ciência. Particularmente as ciências que lidam com a vida, com a proposta de reflexão sobre a teoria e prática do conhecimento científico. A pretensão da obra é que os textos sirvam como ponto de partida para uma reflexão sobre a ciência do ser vivo a partir do momento em que a ciência moderna instaura-se como tal, ou seja, a partir do século XVII. A contribuição da filosofia e da história pode ocorrer quando estas se tornam instrumentos para oferecer uma análise da prática e escolha científicas, ao colocar em evidência fatores relacionados a aspectos sociais e humanos, habitualmente não considerados na prática científica. A atividade científica supõe certa interpretação do mundo, e quando provocamos este tipo de reflexão, colocamos em evidência a atuação das instituições, dos aspectos coletivos da descoberta, o peso das influências políticas, as responsabilidades coletivas das escolhas de teorias científicas, entre outros fatores que influenciam a teoria

e prática das ciências, neste caso, das ciências da vida. Nesta obra, com dezesseis artigos, os autores, a partir de estudos referentes a pesquisas de fisiologistas, médicos, anatomistas, geneticistas, entre outros estudiosos do ser vivo, pontuam aspectos relacionados ao processo de descoberta e desenvolvimento do conhecimento, que na maior parte das vezes são desvalorizados ou passam despercebidos. O primeiro artigo, de Jean Gayon, fala sobre a epistemologia da medicina, com características próprias que a distinguem daquela da biologia. Este estatuto diferenciado está relacionado tanto ao fato de a medicina ser uma ciência e uma arte, pois tem como objetivo intervir sobre a doença, como por outro lado, utilizar a categoria “doença”. Embora ambas tenham como objeto lidar com a vida do ser humano, para a biologia, algumas alterações na fisiologia seriam consideradas adaptações a para a primeira são inadaptações ou desadaptações, ou seja, doenças. Se parece claro que a medicina possui uma epistemologia própria enquanto saber específico, por outro lado, o autor questiona o quanto ela tem contribuído para a epistemologia de uma forma mais geral, no sentido dos limites e fundamentos do conhecimento humano. Assinala que tal contribuição tem ocorrido apenas em relação aos aspectos éticos – “o que devo fazer”. Em relação a outras perguntas pertinentes ao campo da filosofia, “o que posso saber” e “o que posso esperar”,

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LIVROS

não tem havido manifestações por parte daqueles que atuam neste campo. A seguir, os artigos de diferentes autores, com relatos em detalhes, caracterizando com dados históricos o contexto em que viviam e trabalhavam os pesquisadores, remetem-nos a um cenário mais amplo, permitindo-nos visualizar os aspectos “ocultos” que interferem no processo de produção do conhecimento. As crenças de uma época, as teorias dominantes, os traços de personalidade e disputa social, as influências políticas e mudanças sociais (industrialização, guerras, mobilizações de população), são alguns dos aspectos que habitualmente não levamos em conta quando aceitamos um fato como uma “verdade” científica. Para exemplificar, podemos pensar no caso do ácaro que provoca as lesões da escabiose (Sarcoptes scabiei). Será que os profissionais de saúde de hoje podem imaginar que durante cerca de setecentos anos ficaram em disputa várias teorias para determinar a etiologia da escabiose, se estava relacionada a um inseto ou não? Por que a hipótese de que existe um microrganismo passa a ser válida a partir de determinado momento, se décadas antes ele já era visualizado? Na época em que surgiu o microscópio ainda se duvidava de sua existência, porque alguns acreditavam que as imagens visualizadas eram artefatos do aparelho, e não imagens “reais”. Havia outras crenças vigentes e teorias hoje desprezadas, como a geração espontânea de um organismo, eram aceitas. Além disso, questões políticas também estavam em jogo, por exemplo, o reconhecimento de determinado médico na corte, e por ocasião de mudança de governo, modificava-se também quem era o profissional valorizado e, em conseqüência, a teoria defendida. Da mesma forma que no caso da escabiose, tema de um dos artigos do livro, cada um dos autores traz a análise de casos que nos permitem uma reflexão sobre a trajetória das hipóteses, experiências e atuação de cientistas e pesquisadores na busca de um novo conhecimento científico. Aspectos sociais e

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políticos apontados e os questionamentos levantados pelos autores, ilustram o quanto um fato pode ser relido a partir da valorização de dados que, em um primeiro momento são considerados secundários. Para fechar a obra, Olgária Matos aborda a relação da ciência moderna com a natureza, resgatando aspectos pontuados pelos antigos gregos e por autores como Heidegger, Benjamin, Adorno e Horkheimer, entre outros. A cultura contemporânea, priorizando o discurso da ciência moderna e justificando atitudes como o sacrifício de animais, do meio ambiente e de outros seres humanos. O discurso científico incorporado nos diversos âmbitos da vida, do público ao privado, ignorando questões relacionadas aos seus métodos e ao destino do conhecimento gerado por meio das pesquisas científicas. Olgária traz como destaque a confusão entre progresso científico e progresso da humanidade, enquanto segundo a autora, sofremos “periódicas recaídas na barbárie, no apogeu de uma civilização científica que se pretende lógica e entende que tudo seja explicável”. Se antes era a natureza quem aterrorizava o homem com suas forças desconhecidas, hoje é ela quem está nas mãos do homem, assim como a própria humanidade. Enquanto o desejo de dominação, que desconsidera as vítimas geradas em nome do progresso, não for abandonado e substituído por uma postura que considera a própria natureza como um sujeito, não poderemos falar em progresso da humanidade, apesar do progresso técnico-científico. A reflexão sobre nossa condição na modernidade e a crítica a determinados procedimentos realizados em nome do desenvolvimento científico, talvez possam nos remeter a uma nova condição, em que o aperfeiçoamento humano também seja priorizado, e então poderemos falar de progresso em um sentido mais amplo. O distanciamento que nos possibilita a abordagem histórica é um fator importante para refletirmos também em relação a

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LIVROS

contextos atuais, chamando a atenção para influências que ainda continuam interferindo na construção do conhecimento científico atual e que permanecem desconsiderados na perspectiva hegemônica. Os pequenos erros de digitação encontrados não desvalorizam o conteúdo da obra, com artigos de leitura agradável e que nos remetem a um cenário em que a riqueza dos detalhes permite a visualização de uma época que não vivenciamos, mas a qual podemos ter acesso a partir do enfoque histórico sobre documentos deixados pelos pesquisadores nos séculos passados. Este é um ponto positivo para aqueles leitores que não têm muita familiaridade com os estudos

históricos e filosóficos, como os profissionais da área da saúde e ciências da vida em geral – médicos, enfermeiros, farmacêuticos e biólogos, entre outros. Temas familiares a esses profissionais, entremeados de considerações de cunho filosófico e histórico são um convite à reflexão não apenas em relação a questões teóricas, mas também em relação aos atos rotineiros da prática de cada um, no seu dia a dia. Silvia Cardoso Bittencourt Médica; doutoranda, Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC. <silviafln@terra.com.br>

Recebido em 22/03/07. Aprovado em 26/06/07.

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GRAGAZZOLA, Nervos, 2004, Exposição IN PACTO


Adolescentes que viv em na rua: vivem um estudo sobre a vulnerabilidade ao HIV/aids relacionada à droga, à prostituição e à violência

teses

Adolescents who liv eets: livee on the str streets: vulnerability to HIV/AIDS related to drugs, prostitution and violence

Objetivo: o estudo investigou qualitativamente a vulnerabilidade às DSTs e ao HIV/aids, entre adolescentes (14 a 19 anos) que vivem na rua e estão envolvidas com a prostituição, com o uso de drogas e com a violência, na cidade de Santo André (Brasil). Método: de dezembro de 2003 a janeiro de 2004 foram entrevistadas sete adolescentes, apresentadas por informantes-chave. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semi estruturadas. Amostras de sangue foram testadas para sífilis, hepatite B, hepatite C e HIV. Resultados: seis adolescentes apresentaram sorologia positiva para sífilis, uma apresentou HIV positivo e uma apresentou HIV

indeterminado. Observou-se que alguns dos motivos que levaram à prostituição dizem respeito à violência na família, à curiosidade em relação à rua, à afirmação de sua sexualidade, ao abuso de drogas e à precária situação econômica de suas famílias. Conclusão: todos esses fatores associados aumentaram a vulnerabilidade das adolescentes pesquisadas às DST/aids. Assim, faz-se necessária a criação de estratégias que visem à busca ativa, respeitando a singularidade de cada uma. Eliane Lima Guerra Nunes Dissertação de Mestrado, 2005 Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo. <elianeguerranunes@yahoo.com.br>

Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5160/tde-30092005-122946/>

PALAVRAS-CHAVE: Adolescente. Menores de rua. Doenças Sexualmente Transmissíveis. Aids. Prostituição. Violência. KEY WORDS: Adolescent. Homeless youth. Sexually Transmitted Diseases. Sida. Prostitution. Violence. PALABRAS CLAVE: Adolescente. Jovenes sin hogar. Enfermedades de Transmisión Sexual. Aids. Prostitución. Violencia.

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I N

criação*

P A C T O arte e corpo em terapia ocupacional IN P ACT: art and body in occupational therapy PACT:

Eliane Dias de Castro1

PACTO - Programa Permanente Composições Artísticas e Terapia Ocupacional Produzir novas tecnologias socioculturais e desenvolver práticas de intervenção social que proponham soluções criativas e participativas para a população atendida em terapia ocupacional é necessidade premente na contemporaneidade. O PACTO, projeto de pesquisa didático-assistencial do Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte e Corpo em Terapia Ocupacional do Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, atua com referência nas Artes Contemporâneas, na Reabilitação Psicossocial, na Terapia Ocupacional e na atenção às populações em vulnerabilidade e desvantagem social. Implementa transformações no cotidiano da população atendida e favorece sua inclusão em atividades culturais, desenvolvendo e pesquisando habilidades, estimulando e construindo conhecimento artístico e redes de convivência. Compartilhando a idéia do exercício cultural como escuta das diferenças, o programa atua, também, na construção de propostas no território da cidade.

*

Composição gráfico-textual: Mariangela S. Quarentei e Adriana Ribeiro, a partir do catálogo IN PACTO.

Terapeuta ocupacional; doutora em Ciências da Comunicação; coordenadora, Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte e Corpo em Terapia Ocupacional, Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP. <elidca@usp.br>

1

Rua Cipotânea, 51 Cidade Universitária, Butantã - São Paulo, SP 05.360-160

Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.11, n.22, p.393-8, mai/ago 2007

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CRIAÇÃO

A exposição IN PACTO é a exposição coletiva das atividades artísticas realizadas nos ateliês do PACTO a partir de um cuidadoso ato de organizar e selecionar a produção individual e grupal. Onde e como mostrar, o que e como falar, como materializar este projeto coletivo? Produziu-se muito, gerou-se o afeto necessário para o acontecimento criativo... tomamos a decisão de mostrar esta produção a um público ainda desconhecido, mas que, como nós, também circula pelas redes culturais. A exposição coletiva impõe o duplo desafio de preservar a marca autoral de cada participante e, simultaneamente, espelhar o fio condutor que torna possível uma leitura coerente do todo. Das obras produzidas ao longo dos anos, alguns temas, formatos, suportes e procedimentos se repetem e se contaminam, convidando o expectador a um olhar sensível para as nuances existentes. IN PACTO oferece uma paisagem de contemplação e reflexão na qual as identidades poéticas procuraram ser respeitadas: Antônio Carlos, Cidinha, Evaldo, Fê Ribeiro, Friederich Haezel Vaughan, Gragazzola, Isabel, Joanes, Maria Izabel, Marina, Neda, Regina Basaglia, Valéria Pujol, Valéria Silva, Xéster Rocha e Wagner apresentam seus trabalhos em linguagens e quantidades que revelam seus maiores envolvimentos com o fazer artístico e com o fato plástico. Os encontros com os participantes e seus trabalhos nas duas exposições realizadas em 2006 foram intensos. Reproduzi-los ou interpretá-los seria, sem dúvida, redutor. O fazer expressivo é um acontecimento e, como tal, comporta muitas coisas, relações entre naturezas diversas.

GRAGAZZOLA, Vínculos, 2004

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CRIAÇÃO

XESTER ROCHA, Coll - o pirateiro do universo, 2004

ISABEL MARTINS, Revoada, 2002

WAGNER, Natália, 2003

ANTÔNIO CARLOS, Figuras, 2004

JOANES, O homem universal, 2001 VALÉRIA SILVA, Sem título, s/d

FÊ RIBEIRO, Espírito solto na pureza, 2003

MARINA BONOMETTI, Prateleira de brinquedos, 2004

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CRIAÇÃO

A pesquisa Como são produzidos os trabalhos artísticos no campo da terapia ocupacional? Como são cuidados e compreendidos? Como são mostrados? O projeto de pesquisa “Corpo e Arte: articulando ações em terapia ocupacional” debruçou-se por certo tempo sobre estas questões, discutidas a partir do acompanhamento de um grupo do Pacto nos ateliês de corpo e arte. Arte aqui compreendida como projeto para a emancipação de todos e de abertura de espaços – criativos, educacionais, relacionais e sociais -, práticas de interferência direta no mundo. Nos encontros, forças produtivas foram se tornando disponíveis, potencializando a ação humana com a finalidade de enfrentamento conjunto da marginalidade opressiva - solidão, ociosidade, angústia; de habitarmos, na medida do possível, lugares da cultura, com linguagem, criação, pesquisa, e de reinventarmos o ambiente, enriquecendo modos de vida e de sensibilidade. No cotidiano dos ateliês ao longo de nove anos, acompanharam-nos questões sobre o que fazer com as produções, com as obras. A idéia de uma exposição para o fechamento dos trabalhos grupais ganhou forma... vida.

Fazer a obra vir ao mundo Muitos encontros, fluxos e atravessamentos se impondo... chega o tempo da mudança. Acompanhamos uma composição inédita, projeto construído coletivamente, anunciando mundos possíveis. O que fora produzido intimamente agora ganha visibilidade: “vamos mostrar aos outros o que fizemos...”. A potência de afirmação se manifesta. Afirmação de si, do outro, do coletivo... Desbravamos territórios de fronteira, destino final da viagem: o universo da cidade, da cultura. No percurso de conexões e sentidos, as produções não cessam, não se esgotam e o acolhimento das tantas singularidades faz-se necessário. Assim se constitui a colaboração profissional, numa função estruturante de coordenar e sustentar, orquestrando diferentes ritmos: de produção, reflexão e concretização das ações. Uma regência artesanal para execução da sinfonia. Cuidamos das obras, dos artistas e da própria equipe. Experimentamos a vida que não pára... aquela que segue resistindo e construindo cenários de existência para si... processo que é, acima de tudo, humano, orgânico, constituído e construído nas relações, nos afetos, detalhes, no pequeno... pequeno, mas articulado. Nosso olhar está atento, responsável e consciente da força e fragilidade da obra quando vem ao mundo. E, parafraseando Nise da Silveira, sentimo-nos guardiãs do processo de criação da obra por completo, atentas à vitalidade da criação, a fim de que esta não se transforme em mero artefato. Vida transformada em obra, cuja força, beleza e estranhamento impactam.

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CRIAÇÃO

CIDINHA, Árvore-arco, 2003 VALÉRIA PUJOL, Bailarina, 2003

MARIA ISABEL, Pequenino, 2001

NEDA, Sem título, 2002

EVALDO, Árvore solitária, 2004

FRIEDRICH HAEZEL VAUGHAN, O olhar e Cosmus, 2004

REGINA BASAGLIA, Sem título, 2002

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CRIAÇÃO

IN P ACT O PACT ACTO

Composição com obras dos artistas

Era uma tarde fria e cinzenta Ao som da música, A dança das folhas em um vento oriental Eu estava apaixonada por você Tormenta que inspira sentimento e sofrimento Quem ouve o teu canto não se espanta Yujbnvmmkcx,o.p-1234567890qwertyuiioopp Wagner gosta de pintar o Wagner A arte projeta meus sentimentos em relação às pessoas Sentir, expressar, fazer Foi o que fiz Fiz Terapia Ocupacional Passei horas maravilhosas Viajando por dentro das curvas que vem de uma imaginação infinita E tudo que estava latente dentro de mim se transformou em algo Exercícios que nos ajudam no dia a dia Paixão Virei sabão Com meu bichinho cor-de-limão

“A imagem não é tradução de uma coisa só, imagem é uma “parte inteira” do viver, do sentir... Não acaba em si, seu desdobramento chama-se: aprendizado. O objeto expressivo é passagem. Abre para o novo, é tomada de conhecimento. Dá-se através de relações, de encontros, de analogias. Ocorre através do transporte, tem a ver com mudança de estado. E como tal é fundante do ser como presença, como atuação, como fazer. Não é conceito, não é produto. É alguma coisa da relação do humano com a realidade maior. As obras de arte devem ser julgadas pelo que lhes deu luz, pelo o que as fez nascer.

Relato da cur adoria curadoria

Me vejo encucado com a cultura Há sempre luz e esperança no fim do túnel E continua a batalha para aprender muito mais coisas novas...

Composto por fr ases dos ar tistas frases artistas

Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte e Corpo em Terapia Ocupacional Eliane Dias de Castro, Coordenadora dos Projetos de Pesquisa”Corpo e Arte: articulando ações em Terapia Ocupacional” (Fapesp) e “INPACTO: a produção artística do PACTO e seus trajetos no circuito sociocultural da cidade” (CCEX/USP) Equipe Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, Erika Alvarez Inforsato, Leonardo José Costa de Lima Colaboradores Terapeutas ocupacionais - Ana Lúcia Marinho Marques, Cinthia Mayumi Saito, Fernanda Valadares Drumond Fonseca, Gisele Dozono Asanuma, Luís Felipe Ferro e Naiada Dubard Barbosa Bolsistas graduandos - Nara Mitiru de Tani e Isoda, Pryscila Mamy Okuyama, Renan Tobias Duarte Curadoria da exposição Maria Regina Margini Marques, Christiana Moraes, André Yassuda Fotógrafo Beto Teixeira

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