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APRESENT AÇÃO APRESENTAÇÃO

A presente edição de Interface: Comunicação, Saúde, Educação traz à tona temas potencialmente mobilizadores de reflexão e debate para a transformação das práticas de saúde e da educação das profissões de saúde: humanização, inteligência coletiva, integralidade, redes sociais... A humanização na saúde é objeto de diferentes leituras e modos de provocá-la como questão. Na seção Criação, os “doutores da ética da alegria” trazem um pouco da riqueza dessa experiência de relação humana, com imagens e texto, para estimular nossa “potência”. Na seção Debates um profícuo diálogo abriu-se entre os convidados para desencadear a discussão - Regina Benevides e Eduardo Passos - e os debatedores: Gastão Wagner, Denise Gastaldo e Suely Deslandes. O conjunto é uma construção, que de partida aponta o quanto já caminhamos na reorganização de nossas instituições de saúde e ao mesmo tempo mostra-nos o quanto ainda é pouco diante do desafio da qualidade, especialmente do que nos é mais caro: as relações entre profissionais de saúde e os usuários dos serviços. Ricardo Teixeira, Rogério da Costa e Abel Packer contribuem, na seção Dossiê, com distintos olhares sobre o novo campo de pesquisa transdisciplinar da Inteligência Coletiva. Embora não se trate de um conceito novo, a produção de conhecimento em torno dessa temática acelerou-se enormemente nos últimos dez anos, em função do avanço das tecnologias digitais de informação e comunicação e das possibilidades então abertas para reconhecimento, disponibilização e compartilhamento de nossos saberes, para que em cooperação possamos explorar a “inteligência de coletivos”. Ricardo Teixeira discute uma proposta de investigação focalizando serviços de atenção primária à saúde, na perspectiva da inteligência coletiva. Rogério da Costa destaca, em seu ensaio, o conceito de redes sociais em substituição ao de comunidade, defendendo a participação dos indivíduos em comunidades virtuais como estímulo à formação de inteligências coletivas. Abel Packer, por sua vez, traz a experiência produzida na construção coletiva da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), como um novo paradigma de estruturação da comunicação científica em saúde. Nos demais trabalhos da edição, o leitor encontrará elementos instigantes para pensar as práticas de saúde sob vários enfoques teóricos e refletir sobre práticas de ensino inovadoras e mobilizadoras de mudança. Os editores

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PRESENT ATION PRESENTA

This edition of Interface - Communication, Health, Education brings out into the open themes that have the potential for mobilizing readers to reflect upon and debate how health practices and the education of health professionals can be transformed. These themes are humanization, collective intelligence, integrality, social networks… Humanization in health is the object of different ways of understanding and provoking reflection upon it as an issue. In the Creation section, the “doctors of the ethics of happiness” bring us a little of the richness of this experience of human relationships, with images and text that will stimulate our “power”. In the Debates section a fruitful dialogue developed between guests, Regina Benevides and Eduardo Passos, that set off the discussion with the panel of debaters, consisting of Gastão Wagner, Denise Gastaldo and Suely Deslandes. Overall, this is a construction that right from the outset shows how far we have already gone in reorganizing our health institutions and at the same time shows us how little it still is, given the challenge of providing quality, especially in that area that is more expensive: the relationships between health professionals and service users. Ricardo Teixeira, Rogério da Costa and Abel Packer contribute in the Dossier section, with their different ways of looking at a new field of transdisciplinary research into Collective Intelligence. Although this is a not a new concept, knowledge production relating to this topic has accelerated enormously over the last ten years, because of the advance in digital information and communication technology and the possibilities that have therefore been presented for recognizing, making available and sharing our knowledge, so that in a spirit of cooperation we may explore the “intelligence of collectives”. Ricardo Teixeira discusses an investigation proposal focusing on primary care health services from the perspective of collective intelligence. In his essay Rogério da Costa highlights the concept of social networks in substitution of the community, defending the participation of individuals in virtual communities as a way of stimulating the formation of collective intelligences. Then Abel Packer, as a new paradigm for structuring scientific communication in health, shares with us the experience he gained from the collective construction of a Virtual Health Library (“BVS”). In the other works in this edition readers will find elements that will encourage them to think about health practices from various theoretical focus points and to reflect upon the innovative teaching practices that instigate changes. Editors

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O desempenho de um serviço de atenção primária à saúde na perspectiv a da inteligência coletiv a perspectiva coletiva

dossiê

Ricardo Rodrigues Teixeira 1

TEIXEIRA, R. R. The performance of primary healthcare from the perspective of collective intelligence. Interface Educ., v.9, n.17, p.219-34, mar/ago 2005. Comunic., Saúde, Educ.

The purpose of this article is to explore some of the possible contributions of the emerging field of Collective Intelligence to Healthcare investigations, in particular to the examination of the actions of healthcare services. To this end, a brief review of the general and specific literature on the subject is necessary, from which one can extract elements for outlining a first level of studies in the healthcare field, from this perspective. We also try to highlight the connection of this level of studies with the problems of the field of Collective Health, widely explained already. Finally, we discuss its ethical and political implications. KEY WORDS: collective intelligence; public healthcare; healthcare services; primary attention to healthcare. Este artigo visa explorar alguns possíveis aportes do emergente campo da Inteligência Coletiva para a investigação em Saúde, em particular para a investigação sobre a ação dos serviços de saúde. Para isso faz-se uma breve revisão da literatura geral e mais específica sobre o assunto e dela extraem-se elementos para esboçar um primeiro plano de estudos desta perspectiva na área da Saúde. Também procura-se destacar a vinculação deste plano de estudos com problemas já bem colocados no campo da Saúde Coletiva, discutindo, por fim, suas implicações ético-políticas. PALAVRAS-CHAVE: inteligência coletiva; saúde pública; serviços de saúde; atenção primária à saúde.

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Docente e pesquisador, Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. <ricarte@usp.br> Av. Vital Brasil, 1490. São Paulo, SP 05503-000

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Este artigo visa explorar alguns possíveis aportes do emergente campo da Inteligência Coletiva (IC) para a investigação em Saúde, em particular para a investigação sobre a ação dos serviços de saúde, apresentando uma proposta de estudo que busca desenvolver critérios para a avaliação do desempenho de serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) desta perspectiva. Introdutoriamente, pode-se dizer que este novo campo de pesquisa transdisciplinar está centrado no estudo da “potência de ação coletiva” dos grupos e que toma como hipótese principal que esta “potência” depende fundamentalmente da capacidade de indivíduos e grupos interagirem, pondo-se em relação e, desta forma, produzirem, trocarem e utilizarem conhecimentos. Em sentido ampliado, o campo de estudos e intervenções da IC pode ser dito uma “transdisciplina” que visa permitir o diálogo dos saberes sobre o homem para melhor compreender e, idealmente, melhorar os processos de aprendizagem e criação nas coletividades locais, bem como no interior de redes cooperativas de todo tipo, organizadas a partir das mais variadas tecnologias sociais. O emergente campo da Inteligência Coletiva O tema da IC vem sendo objeto de numerosos trabalhos ao longo dos últimos cinqüenta anos, com uma nítida aceleração nesses dez anos mais recentes. É possível reconhecer claramente que uma idéia comum vem sendo elaborada em conceitos tão diversos como o de “noosfera” (Teilhard de Chardin, 1955), “ecologia da mente” (Bateson, 1972), “epidemiologia das representações” (Sperber, 1996), cybionte (Rosnay, 1997), hive mind (Kelly, 1994), “inteligência conectiva” (Kerckhove, 1997) ou super-brain (Heylighen, 1998), entre tantos outros. Para melhor aquilatarmos a força dessa emergência epistemológica, cabe destacar alguns desenvolvimentos significativos que vêm se dando em diversas disciplinas e campos de pesquisa e que, de múltiplas formas, alimentam ou convergem para os estudos sobre a IC humana. Na biologia, por exemplo, identifica-se um grande esforço para aproximar a noção de sistema de comunicação complexa auto-organizada do conceito de sistema cognitivo, como nas pesquisas de Atlan (1972) sobre a organização biológica e a teoria da informação, ou nos estudos de Maturana & Varela (1984) sobre o caráter “autopoiético” do vivo, buscando “conhecer o conhecer” deste ponto de vista. Estes últimos autores, em particular, contribuíram enormemente para que se chegasse a um conceito de inteligência como uma “potência de auto-criação” (Lévy, 2002). As ciências cognitivas, por seu lado, também vêm contribuindo para a construção de uma idéia de IC quando insistem, cada vez mais, no estudo de propriedades cognitivas emergindo de fenômenos coletivos. Identifica-se esta abordagem tanto na concepção de “sociedade da mente” de Minsky (1997), quanto nos experimentos de Langton (1989) que simulam formas de “vida artificial”, situando-se a meio caminho entre as ciências cognitivas, a ecologia teórica e a teoria da evolução. Também no campo das ciências da economia e da gestão é possível identificar, e bem precocemente, uma nítida polarização em direção ao tema da IC e de modo bastante significativo – não se pode negar – nas

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formulações de alguns expoentes do pensamento liberal. São exemplos importantes tanto a “economia do conhecimento” de Hayek (1945) com sua idéia de uma “ordem espontânea emergindo de uma complexa rede de interações”, quanto, mais recentemente, a idéia de “capital social” (confiança e qualidade dos laços sociais) como fundamento da prosperidade, defendida por Fukuyama (1996). Sem falar no crescimento fulgurante nos últimos quinze anos do knowledge management e das teorias sobre “organizações que aprendem”, seja em abordagens mais “clássicas” (Morey et al., 2000), seja em outras menos convencionais (Levin et al., 2000). As ciências sociais igualmente têm dado sua contribuição à compreensão dos fenômenos de IC, como é exemplo a teoria das sociedades como sistemas auto-organizados (Luhmann, 1989), mas também, e muito significativamente, os recentes desenvolvimentos da sociologia e da história das ciências (Latour, 2000; Stengers, 1993; Callon, 1989) que, ao elucidarem os processos efetivos de produção de conhecimento na comunidade científica, vêm fornecendo preciosas indicações sobre os mecanismos concretos de IC num campo crucial. Por fim, algumas das contribuições mais fundamentais têm origem na filosofia e antropologia, especialmente aquelas que advogam serem as técnicas constitutivas de uma IC da humanidade em constante transformação (Deleuze & Guattari, 1995/1997; Serres, 1968; LeroiGourhan, 1964; Simondon, 1958). Uma concepção bastante assemelhada pode ser encontrada em estudos situados na interface das ciências da comunicação com a antropologia que, partindo dos trabalhos de McLuhan (1964), examinaram as mutações culturais ligadas às transformações nos sistemas de comunicação (Havelock, 1996; Goody, 1987). Todos esses filósofos, antropólogos e estudiosos da comunicação constituem referências fundamentais para as formulações de Lévy em torno dos conceitos de “tecnologias da inteligência” (1993) e “inteligência coletiva” (1998). Esta lista está longe de ter sido esgotada e outros conceitos e autores importantes ainda serão convocados mais adiante. Lévy, entretanto, merece um especial destaque, por se tratar de um autor decisivo para o aprofundamento e a disseminação desse campo problemático, sendo ademais um dos principais responsáveis pela sua difusão sob a designação, afinal, aqui adotada, de “inteligência coletiva”. Em relação à possibilidade, que ora apresentamos, de se estender esta perspectiva de estudos ao campo da Saúde, sua influência também foi determinante e se deu não apenas por meio de sua produção escrita, mas também pessoalmente, graças a algumas oportunidades privilegiadas de conversações entretidas no final da década passada, uma delas registrada, comentada e publicada neste periódico (Teixeira, 1999). É em Lévy que encontramos uma primeira e formidável síntese de vários dos conhecimentos disciplinares acima apresentados, que nos serviu como um ponto de partida luminoso para os desdobramentos que vimos operando para pensar as questões da Saúde. É dele a definição, já citada, de inteligência como uma “potência de auto-criação”. Em termos cognitivos, ela se traduz por uma capacidade de aprendizagem autônoma e, em termos históricos, por um processo de

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evolução. A inteligência emerge de processos de interação circulares e autoprodutores entre um grande número de sistemas complexos. Assim, um ecossistema, uma espécie viva, uma sociedade animal, uma sociedade humana, um organismo, um sistema imunológico ou um cérebro podem ser ditos ‘inteligentes’. Com efeito, eles estão engajados, com seus ambientes, em processos entrecruzados de auto-produção e de evolução (ou de aprendizagem). A inteligência é sempre o fato de um coletivo numeroso e interdependente: coletivo de idéias, pensamentos, módulos cognitivos, neurônios, células, organismos, espécies etc. O termo ‘inteligência coletiva’ é, portanto, um pleonasmo. Mas, como nossos preconceitos culturais nos inclinam a imaginar que a inteligência seria a propriedade de indivíduos, eu prefiro acrescentar o adjetivo ‘coletivo’, a fim de qualificar corretamente a potência de auto-criação, seja ela biológica ou cultural (Lévy, 2002). Mas a IC humana ainda merece ser distinguida dessa IC largamente distribuída na natureza, uma vez que com a humanidade surge uma velocidade e uma intensidade de auto-criação inéditas entre as sociedades animais. ...a linguagem e engenhosidade cooperativa do homo sapiens lhe permitiram desenvolver um ritmo de invenção (e de mecanismos de transmissão das invenções) desconhecido das sociedades de abelhas, formigas ou mamíferos. Além disso, contrariamente à sociedade de insetos, a inteligência coletiva humana aumenta com a liberdade e a responsabilidade de seus membros e, em contrapartida, os enriquece. Só os seres humanos, no reino animal, são capazes de aprender enquanto espécie. É o próprio significado da cultura. Porque é cultural, a inteligência coletiva humana se aperfeiçoa. Ela trabalha, e cada vez mais deliberadamente, para sua própria melhoria. As grandes religiões éticas e universalistas, as filosofias, os movimentos de emancipação política, a inventividade econômica, o direito e o empreendimento tecnocientífico trabalham todos, cada um de uma maneira diferente, para aumentar a potência humana ou, dito de outra forma, suas capacidades de inteligência coletiva. (Lévy, 2002)

Se, de um modo ou de outro, a história humana é a história deste aumento da “potência de ação coletiva”, agora, sob o paradigma da IC, nos está dado trabalhar deliberadamente para aumentá-la. Alguns outros conceitos e categorias-chave para entender a ação coletiva Se as instigantes formulações de Lévy foram o ponto de partida, a elaboração de um plano concreto de estudos no campo da saúde passou pela incorporação de outras abordagens, mais uma vez advindas de uma multiplicidade de campos disciplinares (economia, sociologia, antropologia, filosofia, ciências da informação e da comunicação), todas trazendo

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2 Em seu Essai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix, Condorcet, preocupado com o problema da eleição pelo voto popular, procurava enfrentar matematicamente o problema da construção da opinião geral a partir das opiniões individuais. Se o problema encontra uma solução simples quando se trata de duas pessoas, para além de duas, o problema adentra situações paradoxais. Condorcet entreviu que para resolver conflitos de opinião com o intuito de construir uma opinião geral seria preciso admitir um princípio exterior (por ele chamado de princípio majoritário). Para conhecer melhor o “método de Condorcet”, ver este verbete na enciclopédia livre Wikipedia: http:// en.wikipedia.org/wiki/ Condorcet_method.

contribuições importantes para uma compreensão em profundidade da ação coletiva humana. Seguindo uma sistematização elaborada por Costa (2004), estas diferentes contribuições podem ser agrupadas sob as seguintes categorias ou campos problemáticos: a assimetria na relação indivíduo/grupo,, o jogo das preferências individuais, a noção de capital social, a noção de comunidade e o desenvolvimento das redes digitais. Todas tocam em questões de vivo interesse para a construção de um plano de investigações (especialmente para um plano de investigações empíricas) e serão brevemente comentadas a seguir. Primeiramente, temos que nos últimos trinta anos houve um avanço considerável das pesquisas desenvolvidas no cruzamento da economia com a sociologia, no sentido de reconhecer uma assimetria no modo como se comportam os indivíduos, quer atuem em grupo, quer atuem isoladamente. Classicamente, a sociologia e a economia trabalham com a idéia mais próxima do senso comum de que haveria um prolongamento natural dos interesses individuais no contexto de grupos. No entanto, nada garante que todos os indivíduos de um mesmo grupo agirão para atingir um determinado objetivo, mesmo que todos ganhassem com isso e mesmo sendo todos, indivíduos racionais e centrados em seus próprios interesses (Olson, 1999). Esse reconhecimento é de crucial importância para uma compreensão mais adequada de problemas fundamentais no campo da Saúde, como aqueles relacionados à tomada de decisão ou à adesão dos indivíduos às inovações (idéias, comportamentos, normas etc.). Indivíduos tomam decisões sobre sua participação numa ação coletiva condicionados por fatores que não se reduzem a seus próprios interesses e preferências (Granovetter, 1995), assim como a adesão dos indivíduos às inovações não depende exclusivamente de preferências pessoais, mas requer, além disso, uma negociação dentro da dinâmica do coletivo no qual estão inseridos (Valente, 1996). O reconhecimento dessa assimetria e de que o comportamento dos indivíduos atuando em grupo depende de uma negociação que se dá dentro da dinâmica do coletivo nos conduz a um outro problema estreitamente relacionado que é o do chamado jogo das preferências individuais. Este problema absolutamente não é novo e já estava, de certa forma, colocado na “matemática social” do Marquês de Condorcet, no final do século XVIII2 . Hoje, entretanto, este se coloca com uma força ainda maior, na medida em que as trocas sociais se intensificam e, cada vez mais, nos mais variados contextos, as preferências individuais são levadas a se confrontar. De fato, como afirma Costa (2004), “todo tipo de grupo, comunidade, sociedade é fruto de uma árdua e constante negociação entre preferências individuais” – sem esquecer que, “via de regra, as preferências ditas ‘individuais’ são na verdade fruto de uma construção coletiva, num jogo constante de sugestões e induções que constitui a própria dinâmica da sociedade”. Ora, o alcance desta discussão para o enfrentamento de tantas outras questões centrais para o campo da Saúde também é dos mais evidentes e é de fundamental importância compreender esse jogo de preferências e suas

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implicações, tais como aquelas que estariam relacionadas às negociações que se dão nos serviços de saúde. É preciso compreender qual o estado das negociações entre as pessoas num dado grupo, num dado momento: se ele é precário, como nas situações extremas de violência social generalizada, ou se ele é rico, quando o nível de confiança dentro do grupo é elevado e suas ações coletivas são potentes. Uma das mais fecundas abordagens para o tratamento destas questões talvez possa ser encontrada nos estudos centrados na noção de capital social. Isso porque o capital social de uma comunidade pode ser entendido como... ...a capacidade de interação dos indivíduos, seu potencial para interagir com os que estão a sua volta, com seus parentes, amigos, colegas de trabalho, mas também com os novos vizinhos, com alguém novo no bairro ou no trabalho etc. Quanto mais um indivíduo interage com outros, mais ele está apto a reconhecer comportamentos, intenções, valores, competências e conhecimentos que compõem seu meio. Inversamente, quanto menos alguém interage (ou interage apenas num meio restrito), menos tenderá a desenvolver plenamente essa habilidade fundamental que é a percepção do outro. Ora, um dos aspectos essenciais para a consolidação de projetos coletivos, projetos que necessitam do engajamento de muitos em ações específicas é, sem dúvida, o sentimento de confiança mútua que precisa existir em maior ou menor escala entre as pessoas. A construção dessa confiança está diretamente relacionada com a capacidade que cada um teria de entrar em relação com os outros, de perceber o outro e incluí-lo em seu universo de referência. (Costa, 2004)

Esta constatação é intuitiva, é algo claramente sentido e experimentado por todos nós, antes mesmo de se tornar inteligível e empiricamente demonstrável. No entanto, o interesse maior pelos estudos de capital social decorre exatamente do esforço que vem sendo realizado nessa área para produzir indicadores empíricos dessa realidade (Grootaert et al., 2003). As mensurações do capital social baseiam-se justamente no levantamento do grau das interações entre as pessoas num determinado grupo ou comunidade. Envolvem também avaliações qualitativas que consideram a forma como cada indivíduo reconhece no outro algo que lhe é familiar, mas também como reconhece no outro, as diferenças. Esse estado das relações entre os indivíduos num grupo, seja ele avaliado quantitativa ou qualitativamente, pode vir a se constituir num sensível índice de referência da potência de ação coletiva inteligente daquele grupo. Além disso, essa linha de estudos apresenta alguns outros pontos de grande interesse para a construção de projetos de investigação empírica no campo da Saúde. Importantes estudos nesta área (Putnam, 1993; Coleman, 1990) ressaltam o papel e a influência das instituições como mediadoras da interação social, uma vez que promovem (ou não) valores de integração e confiança entre os indivíduos e os grupos. Isso faz com que o levantamento

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do capital social seja também um meio de se perguntar sobre o papel das instituições (de saúde): elas estariam funcionando realmente como mediadoras? Que tipo de relações humanas têm efetivamente promovido? Têm servido mais ao controle da sociedade ou têm trabalhado para o seu fortalecimento? Por fim, também é interessante ressaltar como há uma circularidade na lógica que une capital social e ação coletiva, especialmente útil de se compreender quando se pensa em intervenções para incrementar a IC dos grupos. É preciso capital social, isto é, um verdadeiro patrimônio de interrelação humana, para se ampliar a potência das ações coletivas, mas, por outro lado, essas ações, como conseqüência, não cessam de enriquecer o patrimônio de inter-relação humana, não cessam de aumentar o capital social. O capital social, assim como outras modalidades de capital “imaterial”, possui essa característica sui generis que faz com que seu uso não seja equivalente ao seu gasto e sim ao seu incremento. Todas essas questões relacionadas às interações entre os indivíduos e, em última instância, à qualidade do vínculo social, trazem à tona um outro tema central que tem sido submetido a um aggiornamento substantivo pela sociologia contemporânea: o conceito de comunidade. Do ponto de vista da IC, o que interessa não é a desgastada discussão a respeito se ainda há ou não comunidades nas sociedades industriais avançadas ou se havia ou não comunidades coesas e solidárias nas sociedades tradicionais, mas qual são os modos efetivos que temos encontrado de “fazer comunidade”. Determinados segmentos da sociologia têm oferecido uma alternativa conceitual e analítica extremamente enriquecedora com a noção de redes sociais. Particularmente os chamados “analistas estruturais de redes” (Wasserman & Faust, 1999; Wellman & Berkowitz, 1988), argumentam que a comunidade jamais desapareceu, mas foi transformada. Para enxergála, é preciso focar a atenção nos laços sociais e nos sistemas informais de trocas de benefícios e não apenas em relações de vizinhança e parentesco, que constituem as chamadas “comunidades tradicionais”. Tratar as comunidades como redes sociais permite perceber que as “comunidades tradicionais” correspondem apenas a um dentre os muitos padrões possíveis, assim como tem permitido aos analistas examinar o modo como determinadas transformações sociais têm produzido padrões alternativos de trocas e fluxos de benefícios entre os indivíduos e os grupos. Não é difícil estimar o alcance dessa mudança de perspectiva para, por exemplo, fazer-nos rever certas concepções correntes sobre família e comunidade no campo da Saúde, ainda muito tributárias de uma visão “tradicional” e idealizada de comunidade. Não se trata, evidentemente, de decretar o fim das comunidades fundadas em relações de parentesco e proximidade, como já foi dito acima, mas de nos apropriarmos deste outro referencial, que facilita uma ligação analítica das redes comunitárias mais “tradicionais” com outras estruturas de interação, como as relações de trabalho, as relações estabelecidas ou propiciadas por inúmeras instituições sociais (como, por exemplo, os serviços de saúde) ou pelas novas tecnologias de comunicação (como, por exemplo, as redes digitais). Finalmente, a compreensão das mudanças em curso promovidas por estas

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últimas tecnologias constitui ainda um outro passo decisivo para uma adequada aproximação teórico-prática do problema da IC. Aqui os estudos e abordagens multiplicam-se vertiginosamente e não saberíamos açambarcar nem uma fração das produções consideradas relevantes. Por ora, o importante é destacar que não são as inúmeras pesquisas nesta área – que vêm elucidando diversos aspectos da lógica da ação coletiva –, as únicas que interessam, mas o fato de que os meios digitais têm oferecido uma possibilidade real de se mensurar e cartografar dinamicamente a própria ação coletiva. Esse aspecto tem sido decisivo para a elaboração de um programa de investigações em IC, tal como vem sendo proposto por Lévy e que inclui centralmente procedimentos cartográficos baseados em softwares de rede3. E não é só o projeto de Lévy: também os analistas estruturais de redes têm se beneficiado das tecnologias digitais para empreender o estudo de redes grandes e complexas4. Em suma, para o desenvolvimento de um plano de estudos de IC em Saúde, há muito que se aprender com as redes digitais, não apenas a respeito da lógica da ação coletiva e da formação de “comunidades virtuais”, mas também como a utilização destas tecnologias pode contribuir para o próprio estudo das redes e dos padrões de interação coletiva. Como foi dito no princípio, esses campos problemáticos, conceitos e categorias analíticas têm sido extremamente úteis para que um conjunto de preocupações e interesses mais gerais possam progressivamente “tomar corpo” num desenho de investigações empíricas mais situado. Contudo, ainda vislumbramos a possibilidade de todas essas abordagens serem criticamente reavaliadas à luz de considerações introduzidas pela filosofia política. De fato, já há alguns anos que vimos produzindo toda uma elaboração filosófica para pensar questões de Saúde que, pouco a pouco, tem convergido para este universo problemático da IC. Trata-se, sobretudo, dos aportes valiosos oferecidos pela filosofia prática de Espinosa e, mais recentemente, pelos ensaios de filosofia política de Hardt & Negri (2004) em torno do tema da “multidão”. Não há espaço para aprofundarmos essa discussão neste momento, mas alguns produtos destas aproximações com o campo da Saúde já estão disponíveis (Teixeira, 2004a; 2004b). O modo como estas reflexões podem vir a ser destiladas num plano de investigações concreto será brevemente comentado até o final deste artigo. Inteligência Coletiva e Saúde Coletiva Um primeiro plano de pesquisas de IC no campo da Saúde começou a se delinear, ao se buscar integrar alguns dos modelos de estudo acima discutidos. Por um lado, consideramos os principais recursos raros que compõem o “capital de inteligência coletiva” de uma comunidade e que poderiam ser representados por três capitais distintos em relação de interdependência: o capital técnico, o capital social e o capital cultural. Por outro, tomamos o paradigma da rede, que permitiria reunir sob os mesmos conceitos formais (laços e nós) as tecnologias sociais (capital técnico), a análise sócio-política das redes de pessoas (capital social) e a análise cultural e cognitiva das redes semânticas registradas ou a memória da comunidade

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3 A principal referência é, sem dúvida, o projeto das Árvores de Conhecimentos desenvolvido por Lévy e Authier (1995): “método informatizado para o gerenciamento global das competências nos estabelecimentos de ensino, empresas, bolsas de emprego, coletividades globais e associações”. Para conhecer o software desenvolvido para gerar o mapa dinâmico das competências (SEE-K®), ver <www.trivium.fr>.

4 Para conhecer alguns softwares livres que vêm sendo desenvolvidos para apoiar a análise estrutural de redes, ver <http:// www.stanford.edu/ group/esrg/ siliconvalley/ home.htm>.


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(capital cultural). A idéia básica, então, seria proceder à cartografia das redes técnicas, sociais e culturais que caracterizariam a IC da comunidade. Considerando-se, entretanto, que a construção desse plano de pesquisas, a despeito de sua originalidade, deveria estar rigorosamente pautada pelo princípio da eficácia investigativa, procuramos não reinventar a roda e decidimos fazê-lo derivar dos acúmulos teórico-práticos já produzidos nas investigações próprias ao campo da Saúde. Assim, reconhecemos nas atuais propostas de investigação da IC no campo da Saúde, um desdobramento de certas linhas ou problemas de investigação da Saúde Coletiva que vêm sendo desenvolvidas nos últimos anos, com destaque para: 1 os conhecimentos acumulados em torno do conceito de tecnologias de organização do trabalho em saúde (Schraiber et al., 1996; Mendes-Gonçalves, 1994) e o reconhecimento da importância das chamadas tecnologias da relação, também chamadas de “tecnologias leves”, para compreendermos a substância do trabalho em saúde (Merhy, 1997); 2 as releituras que a psicologia cognitiva, a microssociologia, a comunicação e a semiótica nos permitiram fazer do trabalho em saúde e que nos conduziram a evidenciar sua natureza eminentemente conversacional (inclusive reconhecendo a mobilização no trabalho em saúde de diferentes técnicas de conversa) e à proposição teórica de pensar os serviços de saúde como redes de conversação (Teixeira, 2003); 3 a consideração das dimensões subjetivas e afetivas do trabalho em saúde, que vêm conduzindo, mais recentemente, a uma reflexão em profundidade sobre a qualidade do encontro nas práticas de saúde e têm colocado em primeiro plano temas como o do acolhimento nos serviços de saúde (Teixeira, 2005, 2004a, 2004b, 2001; Ayres, 2001). A proposta de investigação que apresentaremos a seguir pode ser entendida como uma primeira tentativa de produzir uma fecundação recíproca entre os acúmulos teórico-metodológicos oriundos dos estudos de IC (particularmente aqueles referentes aos métodos e técnicas de cartografia de redes) e toda uma linhagem de investigações e intervenções tecno-políticas nos serviços de saúde que vem se desenvolvendo no campo da Saúde Coletiva brasileira. Como nossa proposta de investigação dirige-se a um campo empírico bastante específico, que são os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), também cabe ressaltar algumas características deste tipo de serviços que fazem dele um campo de estudos privilegiado. Já produzimos recentemente, para uma outra publicação, uma síntese destas características, que se presta perfeitamente para os esclarecimentos que se fazem necessários no presente contexto; por isso, citamo-la. São características fundamentais da APS: 1 a extensão e capilaridade da rede de serviços de atenção primária à saúde, que não encontra paralelo em nenhum outro equipamento da rede; 2 sua atuação referida às demandas de saúde mais freqüentes, que se encontram muitas vezes na fronteira entre os “problemas da vida” e a “patologia” objetivamente definida e que, portanto, nem sempre estão claramente configuradas como demandas cuja resposta mais adequada possa ser encontrada exclusivamente no arsenal diagnóstico-terapêutico da biomedicina; desta última característica decorrem duas outras, fundamentais: 2a a importância excepcional que adquire neste espaço [as

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chamadas] “tecnologias de escuta e de negociação das regras comportamentais e organizacionais” ou, em outras palavras, a importância das “tecnologias de conversa” que facilitariam a identificação, elaboração e negociação com os usuários das necessidades que podem vir a ser satisfeitas naquele ou em outros espaços institucionais; e 2b a importância da ação multiprofissional e da articulação intersetorial, já que a atenção primária possui inevitavelmente essa vocação de “porta de entrada” não apenas para a rede de serviços de saúde, mas para uma multiplicidade de outras demandas sociais, que acabam por se traduzir em demandas de saúde ou simplesmente aí se apresentam pela ausência de outros espaços sociais de expressão (Teixeira, 2005). Uma proposta de investigação em Saúde e Inteligência Coletiva Chegamos assim, finalmente, a um projeto de pesquisa composto de três momentos de inovação tecnológica (uma tecnologia da relação, uma tecnologia de organização do trabalho, um conjunto de tecnologias de informação e comunicação) e um momento principal de estudo do desempenho deste arranjo tecnológico. O primeiro momento de inovação tecnológica está relacionado ao processo de concepção, formalização e divulgação, por um conjunto de trabalhadores de um serviço de APS – o Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa / Butantã (CSEB) –, de uma dada tecnologia da relação entendida como “um certo modo de acolher” o cidadão que vem ao serviço. Nesse processo, lançamos mão da antropologia visual, em combinação com um conjunto de técnicas pedagógicas e artísticas, acreditando estar fornecendo um conjunto de procedimentos técnicos e metodológicos bastante potentes para intervir num grupo, no momento em que ele deseja problematizar e refletir sobre uma prática já desempenhada, auxiliando-o a produzir enunciados e a formalizá-la enquanto uma autêntica tecnologia da relação. No caso, o chamado acolhimento. Esse processo de formalização se conduzirá de tal modo a que possa ser “mostrado” visualmente e, desta forma, torne-se, ao mesmo tempo, transferível e documentado. O segundo momento de inovação tecnológica desenvolve-se sobre camadas de inovações tecnológicas anteriores, situadas no campo das tecnologias de organização do trabalho em saúde (que conduziram a organização do trabalho assistencial do CSEB à sua configuração atual) e no campo das tecnologias de informação (que permitem há vários anos que geremos informação consolidadas sobre o desempenho deste trabalho). Neste momento, a tecnologia de organização do trabalho se apresenta como estando dada e é aqui tomada em sua expressão enquanto uma rede de conversações. A inovação, neste caso, incide mais exatamente no campo das tecnologias de informação, no sentido de ampliar as possibilidades de avaliação do desempenho do trabalho coletivo, valorizando mais as relações, as conexões, os fluxos que se estabelecem entre diferentes “nós” da rede. Com isso, pretende-se estar reunindo as condições para se produzir uma cartografia da rede de conversações do CSEB. O terceiro momento de inovação tecnológica também está relacionado ao campo das tecnologias de informação e comunicação e também consiste

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na produção de uma cartografia da rede, apenas que, dessa vez, da chamada rede de redes de conversações. Trata-se do projeto de reconhecimento da rede de outras instituições com as quais o serviço de APS em questão está de alguma forma articulado. A estratégia prevista consiste num amplo processo de visitação de cerca de meia centena de outras instituições (públicas, privadas, de saúde ou de outros setores) por duplas de trabalhadores do serviço, munidos de um roteiro de observação. As informações reunidas, além de permitirem retraçar a rede de instituições com as quais o serviço se articula pela via do trabalho assistencial, devem mais imediatamente servir para a construção de uma espécie de “Guia de Cidadania e Serviços”. Este guia informatizado, disponível para consulta em todos os setores do serviço, representa um dado uso das tecnologias de informação e comunicação considerado decisivo para se alcançar o tipo de desempenho institucional que se quer aqui observar e analisar. Concluído este processo de desenvolvimento e composição tecnológica, pretendemos avaliar o desempenho deste dispositivo segundo critérios que nos são fornecidos pela ampla gama de estudos que foram acima apresentados e rapidamente comentados. A estratégia básica será fazer um estudo prospectivo de uma coorte de usuários novos do CSEB, acompanhando suas trajetórias pela rede de conversações do serviço e, eventualmente, pela rede de rede de conversações à qual o serviço se articula, explorando ainda suas múltiplas conexões com as demais redes sociais a que pertencem esses usuários. Pela leitura dos registros de atendimentos, de questionários aplicados em diferentes momentos da “trajetória” (fixada em cerca de 12 meses) e de entrevistas semiestruturadas com uma fração desses indivíduos, selecionados desta coorte por critérios precisos, pretendemos estar aptos a responder se o serviço em questão capacita, habilita, instrumentaliza mental e afetivamente os indivíduos de uma determinada população (usuária do serviço), de tal forma a ampliar sua capacidade de se pôr em relação, isto é, sua capacidade de interação, formação de comunidade, empoderamento, expansão de suas potencialidades e singularização existencial existencial. Argumentamos que, desse modo, são postos em evidência dimensões e aspectos fundamentais para o entendimento do que possa significar, por exemplo, o desafio da humanização do SUS. Todo este processo de reconhecimento do tipo de dispositivo tecnológico que se pretende examinar da perspectiva da Inteligência Coletiva tem, ainda, como subproduto necessário, um modo inovador de documentar e divulgar os resultados, baseado numa combinação de técnicas cartográficas com os resultados da pesquisa de antropologia visual, que apelam para um suporte hipermídia, preferencialmente disponível na web. Desta forma, os resultados devem se tornar acessíveis não apenas para a comunidade de pesquisadores, mas para os profissionais e usuários dos serviços de saúde, particularmente aqueles concernidos no campo estudado. Essa devolução de uma imagem (mapa) da rede e de sua “substância” (as tecnologias da relação registradas em vídeo), bem como o resultado de uma certa produção coletiva de trajetórias, para o próprio grupo que as produz, é vista como parte inerente desta proposta e está relacionada a um dos resultados esperados. Ele está

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fundado na hipótese teórica de que esta devolução teria efeitos potencializadores da Inteligência Coletiva agenciada pelos dispositivos em questão. Considerações finais Tratamos neste artigo da emergência de um campo transdisciplinar voltado para o problema da “potência de ação coletiva” em sua estreita relação com os padrões de interação entre os indivíduos e os grupos, assim como com os processos de produção, circulação, reconhecimento e uso dos conhecimentos. Indicamos que se trata, ademais, de uma emergência epistemológica das mais inclusivas, abrangendo diversos campos disciplinares, correspondendo muito provavelmente ao fortalecimento de um paradigma de saber que não é o hegemônico. Preocupamo-nos especialmente em ressaltar os esforços que têm sido empreendidos em várias frentes das ciências humanas no sentido de buscar uma crescente formalização teórica, metodológica e das técnicas de pesquisa. A pretensão maior deste artigo, afinal, é a de partilhar com a comunidade de pesquisadores do campo da Saúde, uma tentativa contextualizada de produzir o mesmo tipo de formalização para a realização de estudos em nossa área. Acreditamos que esta iniciativa se justifica pelo caráter inaugural, prospectivo e fortemente experimental de nossa aventura científica. Se ela merece se apresentar numa etapa ainda tão preliminar é pelo que pode se beneficiar, ao atrair novos críticos e entusiastas, dos próprios mecanismos de “inteligência coletiva” operantes na comunidade científica5. Além disso, a tentativa de produzir uma formalização científica deste tipo não dissimula as profundas motivações ético-políticas que animam este projeto. Se nos propomos a desenvolver, testar e validar critérios de avaliação do desempenho de serviços de APS da perspectiva da IC é porque nos interessa, antes de tudo, traçar esse eixo ainda não colocado para a avaliação dos serviços de saúde. Se desejamos avaliar em que medida os serviços de APS habilitam mental e afetivamente seus usuários a se porem em relação, formarem comunidades e se singularizarem existencialmente, é porque desejamos, com toda a força de nossas pulsações ético-políticas, que esses resultados da ação dos serviços sejam cada vez mais valorizados, que sejam acima de tudo tomados como um valor. A busca de uma formalização tecno-científica, portanto, não perde de vista o seu caráter de um agenciamento ético-político. E é pondo em relevo esse ponto de vista que gostaríamos de encerrar nossa intervenção. O projeto “Acolhimento e Redes de Conversações” pode ser visto como o acionamento de um “comunoscópio” junto a um serviço de APS. Por “comunoscópio” entenda-se um dispositivo de revelação/ativação da IC dos grupos que se articulam a partir da instituição em questão. Num certo sentido, como vimos, a IC depende da rede, da malha “comunitária” a ser revelada/ativada, aquela que efetivamente processa o conhecimento coletivo. Mas sobretudo, do ponto de vista que pretendemos agora ressaltar, a IC é a operação da rede de produção biopolítica, isto é, produção “que cria não somente bens materiais, mas também relações e, em última

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5 Neste sentido, convidamos o leitor a contribuir com esse projeto participando de sua comunidade virtual: <http://cvacolhimento.bvs.br>. Ela integra o projeto de desenvolvimento de comunidades virtuais da Biblioteca Virtual em Saúde e é o resultado da parceria estabelecida entre a BIREME/OPAS/OMS e o projeto “Acolhimento e Redes de Conversações – o desempenho dos serviços de saúde da perspectiva da Inteligência Coletiva” (MS/CNPq, edital nº37/ 2004: “Sistemas e Políticas de Saúde Qualidade e Humanização no SUS”).


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instância, a própria vida social” (Hardt & Negri, 2004). A primeira tarefa, então, do “comunoscópio” é focalizar a malha elementar de nós e conexões que compõem a rede de conversações do serviço de APS em questão. Temos, assim, que o foco revela como nó elementar da rede não cada indivíduo, autonomamente, mas já uma relação: cada nó da rede já é uma relação, ou seja, a rede põe relações em relação. Cada nó da rede, um encontro. Ou seja, no mínimo dois corpos. O princípio de qualquer existência afetiva: a exigência de, no mínimo, dois corpos em presença. O princípio de qualquer conhecimento coletivo: o processamento comunicacional (conversacional) do conhecimento. Nosso “comunoscópio” vai revelar ativando uma boa parte da rede de conversações de um serviço de APS (“boa parte” relativamente a um ponto de vista que valoriza a produção biopolítica). Conversas, trabalho afetivo, produção biopolítica. O “comunoscópio” revela ativando a IC. Impossível revelar sem se introduzir na produção biopolítica, sem operar uma alteração significativa na própria rede, sem não se tornar expansão/ reconfiguração da IC. A “comunoscopia” é intervenção e, com certeza, tem fortes ressonâncias com várias concepções socioanalistas (análise institucional). O que ela revela, o revela para o próprio coletivo. O que ela revela deve corresponder aos elementos substantivos da rede de interações cognitivas e afetivas que sustenta aquele coletivo, que se revela para o próprio coletivo. A hipótese assumida em bases teóricas é de que a “visão” da IC aumenta as chances daquele coletivo tornar-se inteligente, potencializar-se para a ação coletiva. Por isso, toda “comunoscopia” é intervenção, não é simplesmente cartografar a rede e “pôr o foco das câmeras” sobre o que se passa em seus nós mais importantes, como um procedimento analítico de estudiosos “externos” à rede estudada. Isso porque as opções/construções metodológicas desenvolvidas, tanto para cartografar quanto para “focar as câmeras” nos encontros fundamentais (ou no fundamental do encontro), revelando, assim, o substrato cognitivo e afetivo do trabalho, sua processualidade propriamente coletiva, sua operação reticularizada, não o faz sem se constituir num processo de autorevelação para este coletivo, não o faz sem já se constituir num forte dispositivo de potencialização de sua IC. É intervenção e é intervenção biopolítica. Alternativa ao biopoder e sua cultura (antidemocrática) da desconfiança. Biopolítica “menor” (contrahegemônica) de circulação de solidariedade, de confiança (no outro e na vida) e de afetos de alegria consistente. Biopolítica de restauração do vínculo social. Abertamente colocada no campo da resistência ao biopoder, hoje caracterizado pelo estado (antidemocrático) de guerra social: “Nas circunstâncias atuais, a necessidade de democracia coincide diretamente com a necessidade de paz” (Hardt & Negri, 2004, p.90). O permanentemente colocado desafio de construção do “estado civil”, de produção do “comum”, enquanto o próprio processo da nossa humanização, isto é, de busca do melhor espaço para realização das

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potências humanas, do melhor espaço para a singularização existencial de cada um. Como diz, com grande força utópica, Lévy (1998, p.32-2): Esse projeto convoca um novo humanismo que inclui e amplia o “conhece-te a ti mesmo” para um “aprendamos a nos conhecer para pensar juntos”, e que generaliza o “penso, logo existo” em um “formamos uma inteligência coletiva, logo existimos eminentemente como comunidade”. Passamos do cogito cartesiano ao cogitamus. Longe de fundir as inteligências individuais em uma espécie de magma indistinto, a inteligência coletiva é um processo de crescimento, de diferenciação e retomada recíproca das singularidades.

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Recebido para publicação em:26/07/05. Aprovado para publicação em: 01/08/05.

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Por um nov o conceito de comunidade: novo redes sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva

Rogério da Costa 1

COSTA, R. On a new community concept: social networks, personal communities, collective intelligence. Interface Educ., v.9, n.17, p.235-48, mar/ago 2005. Comunic., Saúde, Educ.

This text essentially deals with the transmutation of the concept of “community” into “social networks”. This change is due largely to the explosion of virtual communities in cyberspace, a fact that generated a number of studies, not only on this new way of weaving a society, but also on the structural dynamics of communication networks. At the core of this transformation, concepts such as social capital, trust and partial sympathy are called upon, so that we may think about the new forms of association that regulate human activity in our times. KEY WORDS: computer communication networks; community networks; collective intelligence. Este texto trata basicamente da transmutação do conceito de "comunidade" em "redes sociais". Esta mudança se deve em grande parte à explosão das comunidades virtuais no ciberespaço, fato que acabou gerando uma série de estudos não apenas sobre essa nova maneira de se fazer sociedade, mas igualmente sobre a estrutura dinâmica das redes de comunicação. No centro dessa transformação, conceitos como capital social, confiança e simpatia parcial são invocados para que possamos pensar as novas formas de associação que regulam a atividade humana em nossa época. PALAVRAS-CHAVE: redes de comunicação de computadores; redes comunitárias; inteligência coletiva.

1

Professor, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP); assessor de Políticas Tecnológicas, PUCSP, São Paulo, SP. <rogcosta@pucsp.br> Rua Campevas, 253/71 Perdizes - São Paulo, SP 05016-010

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COSTA, R.

A atual interconexão generalizada entre as pessoas tem chamado a atenção de muitos teóricos sobre seus efeitos no quadro das relações individuais e igualmente na forma como os coletivos se comportam quando se constituem como redes de alta densidade. Relações individuais e coletivas, particularmente no ciberespaço, têm despertado o interesse dos estudiosos de redes sociais, dos sociólogos, etnógrafos virtuais, dos ciberteóricos, dos especialistas em gestão do conhecimento e da informação, enfim, de todos aqueles que pressentem que há algo de novo a ser investigado, que a atual vertigem da interação coletiva pode ser compreendida dentro de uma certa lógica, dentro de certos padrões, o que já era anunciado nos anos 1980 pelos analistas estruturais de redes sociais (Wellman & Berkowitz, 1988). Temas como “inteligência emergente” (Steven Johnson, 2001), “coletivos inteligentes” (Howard Rheingold, 2002), “cérebro global” (Heylighen et al., 1999), “sociedade da mente” (Marvin Minsk, 1997), “inteligência conectiva” (Derrick de Kerckhove, 1997), “redes inteligentes” (Albert Barabasi, 2002), “inteligência coletiva” (Pierre Lévy, 2002) são cada vez mais recorrentes entre teóricos reconhecidos. Todos eles apontam para uma mesma situação: estamos em rede, interconectados com um número cada vez maior de pontos e com uma freqüência que só faz crescer. A partir disso, torna-se claro o desejo de compreender melhor a atividade desses coletivos, a forma como comportamentos e idéias se propagam, o modo como notícias afluem de um ponto a outro do planeta etc. A explosão das comunidades virtuais parece ter se tornado um verdadeiro desafio para nossa compreensão. Mas, antes de tudo, é importante salientar que todo tipo de grupo, comunidade, sociedade é fruto de uma árdua e constante negociação entre preferências individuais. Exatamente por essa razão, o fato de estarmos cada vez mais interconectados uns aos outros implica que tenhamos de nos confrontar, de algum modo, com nossas próprias preferências e sua relação com aquelas de outras pessoas. E não podemos esquecer que tal negociação não é nem evidente nem tampouco fácil. Além disso, o que chamamos de preferências “individuais” são na verdade fruto de uma autêntica construção coletiva, num jogo constante de sugestões e induções que constitui a própria dinâmica da sociedade. Comunidades Em meio a todo esse alvoroço no ciberespaço, um termo tão consolidado como o de “comunidade” vem sendo discutido e mesmo questionado por alguns teóricos. Alguns reclamam sua falência, com um certo tom nostálgico, lamentando seu desgaste e perda de sentido no mundo atual. Outros apontam para os focos de resistência que comprovariam sua pertinência, mesmo em meio a nossa sociedade capitalista individualizante. Mas há os que acreditam, simplesmente, que o conceito mudou de sentido. Num livro publicado em 2003, intitulado “Comunidade: a busca por segurança no mundo atual”, Zygmunt Bauman, sociólogo reconhecido por seus trabalhos sobre o fenômeno da globalização, procura analisar o que estaria se passando atualmente com a noção de comunidade. É possível perceber uma série de conceitos em jogo no texto do autor: individualismo,

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POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE: ...

liberdade, transitoriedade, cosmopolitismo dos “bem-sucedidos”, comunidade estética, segurança. Bauman supõe que haja uma oposição entre liberdade e comunidade. Considerando-se que o termo “comunidade” implique uma “obrigação fraterna de partilhar as vantagens entre seus membros, independente do talento ou importância deles”, indivíduos egoístas, que percebem o mundo pela ótica do mérito (os cosmopolitas), não teriam nada a “ganhar com a bem-tecida rede de obrigações comunitárias, e muito que perder se forem capturados por ela” (Baumann, 2003, p.59). O texto defende a idéia de que, hoje, comunidade e liberdade são conceitos em conflito: há um preço a pagar pelo privilégio de ‘viver em comunidade’. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada ‘autonomia’, ‘direito à auto-afirmação’ e à ‘identidade’. Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. (Baumann, 2003, p.10)

É interessante perceber que a aparente oposição entre liberdade e comunidade que encontramos em Bauman deve-se, de fato, ao sentido que ele atribui à noção de “comunidade”: tecida de compromissos de longo prazo, de direitos inalienáveis e obrigações inabaláveis (...) E os compromissos que tornariam ética a comunidade seriam do tipo do ‘compartilhamento fraterno’, reafirmando o direito de todos a um seguro comunitário contra os erros e desventuras que são os riscos inseparáveis da vida individual. (Baumann, 2003, p.57)

Como é possível notar, para o autor a vida individual está envolta em riscos, e querer viver em liberdade deve significar viver sem segurança. Já a comunidade, o lugar da segurança, remete-nos ao sentido mais tradicional que conhecemos, em que os laços por proximidade local, parentesco, solidariedade de vizinhanças seriam a base dos relacionamentos consistentes. Barry Wellman & Stephen Berkowitz (1988) fazem uma análise bem mais complexa do conceito de comunidade, e que nos traz elementos para pensarmos diferentemente esse problema. Eles partem do princípio de que estamos associados em redes, mas por meio de comunidades pessoais. “Enquanto a maioria das pessoas sabe que elas próprias possuem laços comunitários abundantes e úteis”, dizem, elas com freqüência acreditam que muitas outras não os têm. Como evidência, invocam imagens comuns de massas de indivíduos se empurrando e se acotovelando no caminho em ruas abarrotadas, pessoas solitárias sentadas diante da televisão,

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COSTA, R. hordas caminhando nas ruas em manifestações ou fileiras de empregados diante de suas máquinas ou computadores. (Wellman & Berkowitz, 1988, p.123)

Isto significa que cada um de nós possui uma visão clara da rede de relacionamentos à qual pertence, mas não é possível perceber facilmente a rede à qual os outros pertencem. Isso inclui não apenas aqueles que não conhecemos, mas também os que fazem parte de nossas relações. Pessoas que conhecemos e com quem temos laços fracos, como afirma Granovetter (1974), possuem muito provavelmente laços fortes com uma rede outra que desconhecemos. Wellman & Berkowitz (1988, p.124) lembram que, até 1960, muitos sociólogos compartilhavam essa crença popular no desaparecimento da “comunidade” em grandes cidades e gastaram uma grande quantidade de energia tentando explicar porque isso teria ocorrido. Muito dos seus esforços centraram-se no aparente cataclisma das mudanças associadas com a revolução industrial dos últimos dois séculos.

Essa revolução teria conduzido, por exemplo, às novas formas de exploração, à ausência de laços comunitários e à emergência de novas formas de patologia social, bem como à perda da identidade pessoal. Wellman & Berkowitz (1988) afirmam que várias análises recentes sofrem de uma “síndrome pastoral”, que compara nostalgicamente as comunidades contemporâneas com os supostos velhos bons tempos. É assim que sociólogos urbanos dizem que o tamanho, a densidade e heterogeneidade das cidades contemporâneas têm alimentado laços superficiais, transitórios, especializados e desconectados nas vizinhanças e ruas. Com isso, os laços de família extensos têm se esvaziado e deixado os indivíduos sozinhos com seus próprios recursos, além de poucos amigos, transitórios e incertos. Como conseqüência, indivíduos solitários sofrerão mais seriamente de doenças devido à ausência de suporte social de amigos e parentes. Mas os autores perguntam-se: essas coisas de fato se desfizeram? Será mesmo que os laços interpessoais são agora provavelmente em número menor, curtos em duração e especializados em conteúdo? As redes pessoais estariam se esgotando tanto assim que os poucos laços restantes serviriam apenas de base para relações desconectadas entre duas pessoas, no lugar de servirem como fundação para comunidades mais extensas e integradas? Novas técnicas de coleta de dados mais sistemáticas, desenvolvidas desde os anos de 1950, mostraram que as comunidades contemporâneas não estavam tão mortas quanto se pensava. Por outro lado, e igualmente importante, pesquisadores começaram a demonstrar que as comunidades pré-industriais não eram tão solidárias quanto se acreditava. Analisando-se sociedades de países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, constata-se que muitas localidades não possuem comunidades de suporte, redes sociais ou laços de parentesco consistentes. Para Wellman & Berkowitz (1988), esses estudos mostram que

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POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE: ... as relações dentro dessas sociedades pré-industriais são em geral hierárquicas, com laços de exploração especializados, com uma profunda divisão separando facções. Além disso, historiadores têm sistematicamente usado fontes demográficas e de arquivo para demonstrar que muitas comunidades pré-revolução industrial eram menos solidárias do que se pensava. (p.125)

Ou seja, se respeitarmos o conceito tradicional de comunidade, elas nem estariam completamente condenadas nas sociedades industriais, e tampouco seriam encontradas em abundância nas sociedades pré-industriais. O que os recentes analistas de redes apontam é para a necessidade de uma mudança no modo como se compreende o conceito de comunidade: novas formas de comunidade surgiram, o que tornou mais complexa nossa relação com as antigas formas. De fato, se focarmos diretamente os laços sociais e sistemas informais de troca de recursos, ao invés de focarmos as pessoas vivendo em vizinhanças e pequenas cidades, teremos uma imagem das relações interpessoais bem diferente daquela com a qual nos habituamos. Isso nos remete a uma transmutação do conceito de “comunidade” em “rede social”. Se solidariedade, vizinhança e parentesco eram aspectos predominantes quando se procurava definir uma comunidade, hoje eles são apenas alguns dentre os muitos padrões possíveis das redes sociais. Atualmente, o que os analistas estruturais procuram avaliar são as formas nas quais padrões estruturais alternativos afetam o fluxo de recursos entre os membros de uma rede social. Estamos diante de novas formas de associação, imersos numa complexidade chamada rede social, com muitas dimensões, e que mobiliza o fluxo de recursos entre inúmeros indivíduos distribuídos segundo padrões variáveis. O capital social Na corrente dessa mudança de perspectiva do conceito de “comunidade” para “redes sociais”, vários autores das ciências sociais passaram a investigar, desde os anos de 1990, o conceito empírico de capital social (Burt, 2005; Lin, 2005; Narayan, 1999; Portes, 1998; Grootaert, 1997; Fukuyama, 1996; Putnam, 1993; Coleman, 1990). Essa noção poderia ser entendida como: a capacidade de interação dos indivíduos, seu potencial para interagir com os que estão a sua volta, com seus parentes, amigos, colegas de trabalho, mas também com os que estão distantes e que podem ser acessados remotamente. Capital social significaria aqui a capacidade de os indivíduos produzirem suas próprias redes, suas comunidades pessoais. Cabe lembrar que James Coleman (1990) e Robert Putnam (1993), que estão entre os primeiros a analisar a noção de capital social, procuraram defini-lo como a coerência cultural e social interna de uma sociedade, as normas e valores que governam as interações entre as pessoas e as instituições com as quais elas estão envolvidas. A importância do papel das instituições é muito clara aqui, pois estas funcionam como mediadoras da interação social, uma vez que propagam valores de integração entre homens e mulheres. Escolas, empresas, clubes, igrejas, famílias ainda funcionam como referência para as relações sociais, apesar de todas as crises que vêm

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enfrentando. Compreender seu papel e influência numa comunidade faz parte do processo de avaliação do capital social. Países arrasados por guerras civis ou invasões (Rwanda e Iraque, por exemplo)2 percebem uma degeneração acentuada de seu tecido social, causada justamente pela ausência do papel ativo das instituições. Reconstruí-las é o meio mais seguro para se restaurar parte do capital social perdido (que é, basicamente, a confiança perdida). Contudo, as instituições, como apontamos, exercem um papel regulador e mediador de processos mais profundos. O que nos interessa, no caso de uma análise do capital social, são as variáveis microssociológicas, como a sociabilidade, cooperação, reciprocidade, pró-atividade, confiança, o respeito, as simpatias. Daí o fato de muitos estudos sobre capital social apontarem para a necessidade do levantamento de uma série de informações sobre o cotidiano das pessoas como, por exemplo, saber se elas conversam com seus vizinhos, recebem telefonemas, mas também se freqüentam clubes, igrejas, escolas, hospitais etc. Traduzindo de outra forma, é preciso levantar a implicação dos indivíduos em associações locais e redes (capital social estrutural), avaliar a confiança e aderência às normas (capital social cognitivo) e, igualmente, analisar a ocorrência de ações coletivas (coesão social). Estes seriam alguns indicadores básicos do capital social de uma comunidade. Mas por que seria isso considerado precisamente como “capital”? Ora, as relações sociais passam a ser percebidas como um “capital” justamente quando o processo de crescimento econômico passa a ser determinado não apenas pelo capital natural (recursos naturais), produzido (infraestrutura e bens de consumo) e pelo financeiro. Além desses, seria ainda preciso determinar o modo como os atores econômicos interagem e se organizam para gerar crescimento e desenvolvimento. A compreensão dessas interações passa a ser considerada como riqueza a ser explorada, capitalizada. Como assinalam Grootaert & Woolcock (1997, p.25): Um dos conceitos de capital social, que encontramos nos sociólogos R. Burt, N. Lin e A. Portes, refere-se aos recursos – como, por exemplo, informações, idéias, apoios – que os indivíduos são capazes de procurar em virtude de suas relações com outras pessoas. Esses recursos (‘capital’) são ‘sociais’ na medida em que são acessíveis somente dentro e por meio dessas relações, contrariamente ao capital físico (ferramentas, tecnologia) e humano (educação, habilidades), por exemplo, que são, essencialmente, propriedades dos indivíduos. A estrutura de uma determinada rede – quem se relaciona com quem, com que freqüência, e em que termos – tem, assim, um papel fundamental no fluxo de recursos através daquela rede.

Há, contudo, uma forte tendência de a economia neoclássica rejeitar as análises que procuram introduzir variáveis de ordem social nas teorias econômicas contemporâneas. Francis Fukuyama (1996) critica, em seu famoso livro “Confiança”, a perspectiva dominante da economia neoclássica

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2 Nem mesmo a Cruz Vermelha, que se acreditava ser uma instituição imune às convulsões sociais, foi poupada de ataques no Iraque.


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e suas conseqüências para uma autêntica reflexão sobre capital social. Ele discorda radicalmente dos pressupostos que alimentam essa teoria, fundamentalmente baseada numa visão de natureza humana egoísta: Todo o imponente edifício da teoria econômica neoclássica contemporânea repousa num modelo relativamente simples da natureza humana: os seres humanos são “indivíduos maximizadores da utilidade racional”. Isto é, os seres humanos procuram adquirir o maior número possível de coisas que julgam úteis para si. Fazem isso de maneira racional, e fazem esses cálculos como indivíduos que buscam maximizar o benefício para si próprios sem se preocupar com o benefício de quaisquer grupos de que façam parte. Em suma, os economistas neoclássicos postulam que os seres humanos são indivíduos essencialmente racionais, mas egoístas que procuram maximizar seu bem-estar material. (Fukuyama, 1996, p.33)

Sua crítica é de que tal perspectiva é insuficiente para explicar a vida política, com todos os seus desdobramentos emocionais, como não é suficiente para explicar muitos aspectos da vida econômica: “Nem toda ação econômica deriva do que é tradicionalmente conhecido como motivos econômicos” (Fukuyama, 1996, p.33). A tese de que os indivíduos exercem suas escolhas com base na maximização da utilidade, agindo assim de forma racional, não parece resistir a uma análise que leve em conta a vida em redes e associações que caracteriza a grande maioria dos homens. Esta é também a perspectiva de Mark Granovetter (2000), que vê nessa tese a enorme dificuldade dos economistas para incluírem em sua visão as inúmeras variáveis do campo social. Simpatia parcial e confiança O que Fukuyama (1996) e Granovetter (2000) estão, no fundo, criticando, é a crença dos economistas numa natureza humana fundamentalmente egoísta. Tal crença, que alimentou e ainda alimenta muitas filosofias, encontra uma de suas mais importantes críticas na tese do filósofo David Hume (1983). Para este, a visão do egoísmo como fundo da natureza humana é a saída mais fácil para quem procura pensar a sociedade. O que Hume sustenta é outra posição, que não exclui o egoísmo, mas o coloca como caso particular de algo mais geral: a parcialidade de nossa natureza. Na afirmação de Deleuze, em sua interpretação de Hume: Caso se entenda por egoísmo o fato que toda tendência persegue sua própria satisfação, coloca-se apenas o princípio de identidade, A = A, o princípio formal e vazio de uma lógica do homem, e ainda de um homem inculto, abstrato, sem história e sem diferença. Concretamente, o egoísmo designa apenas alguns meios que o homem organiza para satisfazer suas tendências, em oposição a outros meios possíveis. Esses podem ser a generosidade, a hereditariedade, os costumes, os hábitos. Jamais a

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COSTA, R. tendência pode ser abstraída dos meios que se organiza para satisfazê-la. (Deleuze, 1953, p.34)

A tese central de Hume (1983) é a de que nossa generosidade é limitada por natureza. O que nos é natural é uma generosidade limitada. O homem seria, então, muito menos egoísta do que parcial. A verdade é que o homem é sempre o homem de um clã, de uma comunidade. Sendo assim, a essência do interesse particular não é o egoísmo, mas a parcialidade. Com efeito, os egoísmos apenas se limitariam. Daí a necessidade de invocarmos os contratos sociais, exatamente porque eles seriam uma forma de limitação de um egoísmo supostamente “natural” dos homens. Já com relação às simpatias o problema seria outro: é preciso integrá-las numa totalidade positiva. Como nos lembra Deleuze (1953, p.26), o que Hume reprova precisamente às teorias do contrato é de nos apresentar uma imagem abstrata e falsa da sociedade, de definir a sociedade de modo apenas negativo, de ver nela um conjunto de limitações dos egoísmos e dos interesses, ao invés de compreendê-la como um sistema positivo de empreendimentos inventados.

O problema da sociedade, nesse sentido, não é um problema de limitação, mas de integração. Integrar as simpatias é fazer com que a simpatia ultrapasse sua contradição, sua parcialidade natural. A estima, o respeito e a confiança são a integral das simpatias. Nosso desafio é estender as simpatias para que seja possível constituir grupos maiores do que aqueles envolvidos pela simpatia parcial. Trata-se de inventar os meios e artifícios para que os homens consigam estender suas simpatias para além de seu clã, família, vizinhança. Ou seja, trata-se de estender as simpatias para além daquilo que se configura ainda como uma parcialidade: as “comunidades” em seu sentido mais tradicional. Para nos constituirmos em sociedade, precisamos empreender a integração das simpatias de forma a constituir um todo maior. Os sentimentos de estima, respeito e confiança são exemplos práticos que apontam para os meios de integração de nossa simpatia com as simpatias de outros. Conquistar a estima, o respeito e a confiança de um estranho significa trabalhar na construção de um laço afetivo mais amplo que aquele de nossas parcialidades. E esse é um dos papéis, senão o mais importante, das instituições: não exatamente o de governar ou regular as relações entre os homens, mas o de mobilizar suas tendências, integrandoas num todo maior, utilizando para tal o artifício dos valores e normas. É nesse sentido que Fukuyama (1996) pode afirmar que “o capital social difere de outras formas de capital humano na medida em que é geralmente criado e transmitido por mecanismos culturais como religião, tradição ou hábito histórico” (p.41). Um dos aspectos essenciais para a consolidação de comunidades pessoais ou redes sociais é, sem dúvida, o sentimento de confiança mútua que precisa existir em maior ou menor escala entre as pessoas. A construção dessa confiança está diretamente relacionada com a capacidade que cada um teria

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de entrar em relação com os outros, de perceber o outro e incluí-lo em seu universo de referência. Esse tipo de inclusão ou integração diz respeito à atitude tão simples e por vezes tão esquecida que é justamente a de reconhecer, no outro, suas habilidades, competências, conhecimentos, hábitos... Quanto mais um indivíduo interage com outros, mais ele está apto a reconhecer comportamentos, intenções e valores que compõem seu meio. Inversamente, quanto menos alguém interage (ou interage apenas num meio restrito), menos tenderá a desenvolver plenamente esta habilidade fundamental que é a percepção do outro. Em outras palavras, reconhecer é a aptidão que um indivíduo desenvolve para perceber, detectar, localizar numa outra pessoa uma característica que não havia sido percebida antes e que, por isso mesmo, simplesmente não tinha existência no campo de sua percepção. Mas reconhecer é também, e ao mesmo tempo, dar valor a alguém, aceitá-lo em seu meio, integrá-lo como colega ou parceiro. Esta dinâmica do reconhecimento é com certeza uma das bases para a construção da confiança não apenas individual, mas coletiva. Redes sociais só podem ser construídas com base na confiança mútua disseminada entre os indivíduos. Isso pode se verificar em maior ou menor grau, mas de qualquer forma a confiança deve estar presente da forma a mais ampla possível. Num livro valioso intitulado “Construa Confiança”, Robert Solomon & Fernando Flores (2002) insistem que a confiança é uma dinâmica. Apesar de muitos agirem como se ela fosse um estado: Ela é de fato parte da vitalidade, não da base inerte, dos relacionamentos. A confiança é uma prática social, não um conjunto de crenças. É um aspecto da cultura e o produto de uma prática, não só questão de psicologia ou de atitude individual. O problema da confiança é prático: como criar e manter a confiança, como se mover da desconfiança para a confiança, de um abuso na confiança para a sua recuperação. A confiança é questão de relacionamentos recíprocos, não de previsão, de risco ou de dependência. A confiança é questão de tecer e manter compromissos, e o problema da confiança não é a perda da confiança, mas sim o fracasso em se cultivar o tecer de compromissos. (p.31)

Quando Fukuyama (1996, p.41) afirma que “o capital social é uma capacidade que decorre da prevalência de confiança numa sociedade ou em certas partes dessa sociedade”, não se deve esquecer que para se incrementar os laços sociais é preciso investir na construção e no desenvolvimento de relações de confiança e isso requer, no mínimo, anos de encontros e interações. É fato que a confiança é mais facilmente destruída do que construída e que sua produção não é sem custos, requer investimento, pelo menos de tempo e esforço, se não financeiro. Manter o capital social também é dispendioso. Mais profundamente, pode-se constatar que o nível do capital social de uma comunidade, além de ser um fator que aponta para o potencial de inter-relação das pessoas e para essa capacidade de construção da confiança

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coletiva, é também um indicador do nível de negociação das preferências de cada indivíduo. Nesse sentido, avaliar o capital social de um coletivo é compreender em que etapa ou estágio se encontra a negociação das pessoas naquele momento, se ele é precário, com instituições fracas e violência social, ou se ele é rico, com ações coletivas claras e nível de confiança elevado. As redes digitais As redes digitais representam hoje um fator determinante para a compreensão da expansão de novas formas de redes sociais e da ampliação de capital social em nossa sociedade. Testemunhos como os de Howard Rheingold, por exemplo, vêm comprovando que a sinergia entre as pessoas via web, dependendo do projeto em que estejam envolvidas, pode ser multiplicada com enorme sucesso. As diversas formas de comunidades virtuais, a estratégia P2P, as comunidades móveis, a explosão dos blogs e wikis, a recente febre do orkut são prova de que o ciberespaço constitui fator crucial no incremento do capital social e cultural disponíveis. Esta compreensão, na verdade, vem se consolidando gradativamente desde o início da década de 1990. O próprio Rheingold, em seu livro Comunidade Virtual (1996), já percebia naquele momento que as comunidades virtuais não eram apenas lugares onde as pessoas se encontravam, mas também um meio para se atingir diversos fins. Ele antecipou que “as mentes coletivas populares e seu impacto no mundo material podem tornar-se uma das questões tecnológicas mais surpreendentes da próxima década” (p.142). Bem antes disso, em 1976, o pesquisador americano Murray Turoff, idealizador do sistema de intercâmbio de informação eletrônica (EIES), considerado o ponto de partida das atuais comunidades on line, prenunciava que a conferência por computador poderia fornecer aos grupos humanos uma forma de exercitarem a capacidade de ‘inteligência coletiva’. Segundo ele, um grupo bem sucedido exibirá um grau de inteligência maior em relação a qualquer um de seus membros (Turoff apud Rheingold, 1996). Estava lançada assim a idéia de que a interconexão de computadores poderia dar nascimento a uma nova forma de atividade coletiva, centrada na difusão e troca de informações, conhecimentos, interesses etc. Steven Johnson (2001) compartilha, igualmente, dessa visão: Podemos ver os primeiros anos da web como uma fase embrionária, evoluindo através de seus antepassados culturais: revistas, jornais, shoppings, televisões etc. Mas hoje já há algo inteiramente novo, uma espécie de segunda onda da revolução interativa que a computação desencadeou: um modelo de interatividade baseado na comunidade, na colaboração muitosmuitos.

Rheingold (1996) não só constatou a emergência das comunidades virtuais, como também viu nelas uma relação mais profunda, motivado em especial pela questão do excesso de informação que já caracterizava a jovem Web.

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Com efeito, um dos problemas da rede era o da “oferta demasiada de informação e poucos filtros efetivos passíveis de reterem os dados essenciais, úteis e do interesse de cada um” (p.77). Mas enquanto os programadores se esforçavam para desenvolver agentes inteligentes que realizassem a busca e filtragem de toneladas de informações que se acumulavam na rede, Rheingold já detectava a existência de “contratos sociais entre grupos humanos – imensamente mais sofisticados, embora informais – que nos permitem agir como agentes inteligentes uns para os outros” (p.82). Começava a se consolidar uma idéia de mente coletiva, ou de inteligência coletiva, que poderia não apenas resolver problemas em conjunto, em grupo, coletivamente, mas igualmente trabalhar em função de um indivíduo, do seu benefício. Rheingold (1996) lembra que as comunidades virtuais abrigam um grande número de profissionais, que lidam diretamente com o conhecimento, o que faz delas um instrumento prático potencial. Quando surge a necessidade de informação específica, de uma opinião especializada ou da localização de um recurso, as comunidades virtuais funcionam como uma autêntica enciclopédia viva. Elas podem auxiliar os respectivos membros a lidarem com a sobrecarga de informação. (p.82)

3 Pode-se consultar por exemplo os sites Social Network Analysis <http://www.sfu.ca/ ~insna> e Cyberatlas <http:// www.cyberatlas. guggenheim.org/home/ index.html>.

4 Consultar <www.nd.edu/~alb/>.

As comunidades virtuais estariam funcionando, portanto, como verdadeiros filtros humanos inteligentes. Junte-se a isso a possibilidade real de se mensurar e cartografar a atividade coletiva por meios digitais, quer seja de forma direta com pesquisas on-line, de forma indireta via agentes inteligentes ou ainda de forma concedida via tracking. Atualmente, são várias as análises de redes sociais que se valem da Internet para realizar mapeamentos e pesquisas3. Há um enorme esforço de construção de uma teoria das redes empreendido por vários teóricos da atualidade, e que tem como um dos inspiradores mais conhecidos a figura do psicólogo americano Stanley Milgram. Lembremos que, nos anos 1960, Milgram propôs uma descrição da rede de conexões interpessoais que ligam os indivíduos numa comunidade (Milgram, 1967). Sua hipótese impulsionou as formulações matemáticas de Duncan Watts & Steven Strogatz (1998) sobre a teoria do “mundo pequeno” e a dinâmica coletiva em rede (teoria dos seis graus de distância ou seis passos). Também o físico Albert-László Barabási tem se destacado por suas pesquisas sobre o papel que os nós “especialistas” (hubs) desempenham nas redes em geral e no ciberespaço em particular. Da mesma forma que Rheingold, Barabási (2002) tem se referido com frequência a uma sociologia de afluência na web, promovida pela forma como os links entre páginas se estabelecem4. Essa relação entre a sociologia e a teoria das redes tem motivado inúmeras pesquisas, como nos mostra Mark Buchanan (2002), estabelecendo em seu livro Nexus uma série de associações entre os trabalhos de Granovetter e Fukayama, por exemplo, e as teses matemáticas de Watts e Strogatz. Pierre Lévy (2002) também tem defendido a participação em

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comunidades virtuais como um estímulo à formação de inteligências coletivas, às quais os indivíduos podem recorrer para trocar informações e conhecimentos. Fundamentalmente, ele percebe o papel das comunidades como o de filtros inteligentes que nos ajudam a lidar com o excesso de informação, mas igualmente como um mecanismo que nos abre às visões alternativas de uma cultura. Uma rede de pessoas interessadas pelos mesmos temas é não só mais eficiente do que qualquer mecanismo de busca”, diz ele, “mas, sobretudo, do que a intermediação cultural tradicional, que sempre filtra demais, sem conhecer no detalhe as situações e necessidades de cada um. (p.101)

Da mesma forma que Rheingold, Lévy está profundamente convencido de que uma comunidade virtual, quando convenientemente organizada, representa uma importante riqueza em termos de conhecimento distribuído, de capacidade de ação e de potência cooperativa. Conclusão O conceito de redes sociais responde a uma compreensão da interação humana de modo mais amplo que o de comunidade. Se as análises sociológicas de Granovetter (2000) e Wellman (1988) caminharam nessa direção já no final dos anos 1970, as proposições filosóficas de Deleuze & Guattari (1982) também seguiram esse caminho nessa mesma época. Conceitos como rizoma e agenciamento coletivo procuravam traduzir o sentimento de que a sociedade do final do século XX já não se organizava mais segundo parâmetros convencionais de localidade, parentesco, vizinhança etc. (Deleuze & Guattari, 1982). Essas reflexões surgiram, de fato, ao mesmo tempo em que se desencadeava uma profunda revolução nos meios de comunicação. Tal revolução acabou por provocar uma mudança determinante na forma de interação entre os indivíduos, no modo como cada um poderia interagir e estar em contato com outros ao seu redor. É isso que vivenciamos hoje, com o surgimento do ciberespaço, a multiplicação das ferramentas de colaboração on-line, as tecnologias de comunicação móvel se integrando às mídias tradicionais etc. O resultado mais conhecido de todo esse processo são as comunidades virtuais. Desde seu início, elas sempre foram criticadas pela ausência de contato físico entre seus participantes. O que raramente se perguntou foi sobre o próprio conceito de comunidade em jogo. Cobrar das comunidades virtuais aquilo que se entendia romanticamente por “comunidade”, tal como Baumann (2003) o faz, seria simplesmente se impedir de ver o que vem acontecendo nos movimentos coletivos de nossa época. Como afirma Pierre Lévy (2002), as comunidades virtuais são uma nova forma de se fazer sociedade. Essa nova forma é rizomática, transitória, desprendida de tempo e espaço, baseada muito mais na cooperação e trocas objetivas do que na permanência de laços. E isso tudo só foi possível com o apoio das novas tecnologias de comunicação. É exatamente essa ambigüidade produzida pelo conceito de comunidade

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que a noção de rede social vem contornar. Não se trata mais de definir relações de comunidade exclusivamente em termos de laços próximos e persistentes, mas de ampliar o horizonte em direção às redes pessoais. É cada indivíduo que está apto a construir sua própria rede de relações, sem que essa rede possa ser definida precisamente como “comunidade”. Mais profundamente, é no bojo da revolução tecnológica atual que se percebe a força de um conceito como aquele de Hume, o de simpatia parcial. A possibilidade de integração de simpatias dentro da cibercultura é da ordem do jamais visto em nossa história. Os homens conseguem encontrar zonas de proximidade lá onde isso pareceria impossível: pessoas compartilham idéias, conhecimentos e informações sobre seus problemas, dificuldades e carências. O que na maior parte dos casos não seria possível fazer entre “próximos”, simplesmente porque as redes locais são por definição limitadas no tempo e espaço. As redes locais ou “comunidades” no sentido mais tradicional são, justamente, o resultado da parcialidade natural do ser humano. Expandi-las é o que enfrentamos como desafio. Há muito ainda a se aprender sobre a formação de redes sociais, a afluência de idéias e informações por meio de associações humanas no ciberespaço. O que já está claro, para a multidão que povoa o mundo virtual, é que estamos diante de um fenômeno que nos força a pensar diferentemente a maneira como nos organizamos em grupos e comunidades.

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COSTA, R. Por un nuevo concepto de comunidad: Redes sociales, comunidades personales, inteligencia colectiva. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.235-48, mar/ ago 2005. Este texto trata básicamente de la transmutación del concepto de “comunidad” en “redes sociales”. Este cambio se debe, en gran parte, a la explosión de las comunidades virtuales en el ciberespacio, hecho que acabó generando una serie de estudios no solo sobre esa nueva manera de hacer sociedad, sino también sobre la estructura dinámica de las redes de comunicación. En el centro de esa transformación, recurrimos a conceptos como capital social, confianza y simpatía parcial para poder pensar las nuevas formas de asociación que regulan la actividad humana en nuestra época. PALABRAS CLAVE: redes de comunicación de computadores; redes comunitarias; inteligencia colectiva.

Recebido para publicação em: 06/07/05. Aprovado para publicação em: 17/07/05.

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A construção coletiv a da Biblioteca Vir tual coletiva Virtual em S aúde* Saúde Abel Laerte Packer 1

PACKER, A. L. The collective construction of the Virtual Healthcare Library. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.249-72, mar/ago 2005. Educ.

The origin of the Virtual Healthcare Library (VHL) as a product of the evolution of the technical cooperation program for scientific information on healthcare in Latin America and the Caribbean is resumed in this article. We analyze its technological structure as a product of the restructuring of the scientific community spurred by the Internet, stressing the conceptual and operational improvement of the model of collective management of information and knowledge within the virtual arena and the challenges of fostering democratic access and use of information and updated knowledge in the processes that involve collective and individual healthcare. KEY WORDS: virtual library; medical libraries; information systems; collective intelligence. Retoma-se a origem da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) como produto da evolução do programa de cooperação técnica em informação científica em saúde na América Latina e no Caribe. Analisa-se sua conformação tecnológica como produto da reestruturação da comunicação científica promovida pela internet, destacando o aprimoramento conceitual e operacional do modelo de gestão coletiva de informação e conhecimento no espaço virtual e os desafios de promover o acesso e uso democráticos da informação e do conhecimento atualizado nos processos que envolvem a saúde coletiva e individual. PALAVRAS-CHAVE: biblioteca virtual; bibliotecas médicas; sistemas de informação; inteligência coletiva.

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Agradeço a colaboração de Renata Ciol e Regina Castro.

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Diretor BIREME/OPAS/OMS, Centro Latinoamericano e do Caribe de Informação, Organização Panamericana de Saúde, Organização

Mundial da Saúde, São Paulo, SP. <packerab@bireme.ops-oms.org> Rua Botucatu, 862 São Paulo, SP 04023-901

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A proposta da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), como espaço virtual de convergência na Internet do trabalho cooperativo em informação científica e técnica em saúde, foi aprovada em março de 1998, na 5ª Reunião do Sistema Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, realizada em São José, Costa Rica, que contou com a participacão de representantes do sistemas nacionais de informação científica e técnica em saúde de todos os países da América Latina e da grande maoria das ilhas dos Caribe. Em conjunto, acordaram registrar o lançamento da BVS na Declaração de São José Rumo à Biblioteca Virtual em Saúde, comprometendo-se com sua construção coletiva (BIREME, 1998; Packer & Castro, 1998). A BVS é produto da evolução de três décadas do programa de cooperação técnica em informação científica na América Latina e Caribe. Sob a liderança da OPAS/OMS, o programa é coordenado e implantado pela BIREME, seu centro especializado, desde a sua criação em 1967. Na sua evolução, o programa adotou sucessivos paradigmas de gestão e operação de produtos e serviços na estrutura da comunicação científica, sempre funcionando em rede e buscando atender às necessidades de informação do sistemas nacionais de pesquisa, ensino e atenção à saúde. O programa iniciou-se com a rede de bibliotecas especializadas, enriquecida anos mais tarde com as funções de centros de informação e indexação, a seguir como sistema de sistemas nacionais de informação e, a partir de 1998, com a biblioteca virtual operando na Internet. Seu portal operado pela BIREME está no sítio <www.bsaude.org>. A BVS representa uma expansão radical dos modelos anteriores de gestão de informação e conhecimento em saúde e traz consigo inovações e desafios. Por um lado, a BVS expande a rede de cooperação a todas as instâncias e aos atores da comunicação cientifica e técnica. Por outro lado, expande também a natureza das redes de fontes e fluxos de informação no seu espaço, incluindo, agora, os domínios de informação e conhecimento cientifico, técnico, factual e tácito. Como biblioteca dinâmica no espaço virtual, a BVS pode ser visualizada como uma expansão da nossa memória, para acesso e registro de informação, e como expressão da inteligência coletiva (Lévy, 1998, 1993). Nesse sentido, a BVS serve aos processos de saúde coletiva e individual, incluindo autoridades, gestores, pesquisadores, profissionais, trabalhadores, estudantes, usuários e população em geral. A construção da BVS, há sete anos do seu lançamento, é apresentada neste documento, retomando sua origem como produto da evolução do programa de cooperação técnica em informação científica em saúde na América Latina e no Caribe. Analisamos sua conformação tecnológica como produto da reestruturação da comunicação científica promovida pela Internet, destacando o aprimoramento conceitual e operacional do modelo de gestão coletiva de informação e conhecimento no espaço virtual e os desafios de promover o acesso eqüitativo e o uso ubiquo de informação e conhecimento atualizado nos processos que envolvem a saúde coletiva e individual. A reestruturação da comunicação científica A principal força que impulsiona a construção coletiva da BVS como espaço de domínio público deriva da reestruturação que a Internet, como meio de publicação, vem promovendo na comunicação em geral e nos resultados da pesquisa científica, em particular. Na BVS, o conhecimento científico é tratado como um bem público. A nova estrutura em formação conduz à convergência

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dos produtores, intermediários e usuários de informação no ciberespaço. A publicação eletrônica on line na Internet, que inclui os periódicos científicos, desenvolveu-se aceleradamente na última década, com uma aceitação generalizada por parte de autores, publicadores, bibliotecários e usuários. As primeiras resistências, ligadas à defesa do papel como suporte de registro e publicação, foram paulatinamente superadas devido às extraordinárias facilidades, potencialidades e conveniência oferecidas pelo acesso on line aos artigos e outros textos. O que está em marcha não é a simples mudança do suporte papel para o suporte digital, mas um novo modo de produção do fluxo de informação na comunicação científica, com a emergência de movimentos para a publicação em acesso aberto (open access) e auto-arquivamento (self-archiving), que favorecem o acesso equitativo ao conhecimento científico. Esta restruturação tem caráter internacional, e vem ao encontro dos objetivos dos programas de cooperação técnica em informação científica na América Latina e Caribe, liderados pela BIREME. A estrutura clássica da comunicação científica em suporte papel A comunicação científica clássica, em suporte papel, realiza-se por meio de fluxos de trabalho e informação estruturados sobre uma seqüência de instâncias distantes fisicamente, onde ocorrem eventos específicos, separados no tempo e realizados por diferentes atores. Ao longo das instâncias, o fluxo de informação e trabalho que realizam os diferentes atores (autor, editor, revisor, indexador, bibliotecário, usuário-leitor) é conduzido por meio de documentos em papel que são transportados fisicamente de uma instância a outra. A Figura 1 apresenta um esquema simplificado desta estrutura clássica, onde se podem identificar sete eventos principais no fluxo de informação e de trabalho, envolvendo atores e instâncias específicas: 1 os autores preparam os manuscritos de seus trabalhos e os submetem a um periódico para avaliação; 2 os manuscritos são recebidos pelos editores científicos e, se adequados ao escopo do periódico, entram no processo de revisão por pares, cuja comunicação com os autores é intermediada pelos editores; 3 quando os manuscritos são aprovados, são editados e compostos em fascículos que seguem para impressão; caso contrário, são devolvidos; 4 as cópias impressas são distribuídas para o público leitor dos periódicos, incluindo assinantes individuais e institucionais. Entre as instituições destinatárias destacam-se, por sua relevância na sustentação do fluxo de informação, os serviços de indexação e as bibliotecas; 5 nos serviços de indexação, os textos dos artigos e outras comunicações são referenciados, isto é, são produzidos registros de metadados com a referência bibliográfica (registro de autor, título e número do periódico), palavras-chave e resumos; 6 nas bibliotecas e centros de documentação, as publicações são registradas nos catálogos e organizadas nas estantes da coleção e disponibilizadas para consulta; 7 os leitores ou usuários utilizam as bibliotecas e, com a ajuda dos índices ou bases de dados bibliográficas, localizam as referências bibliográficas e textos que respondem às suas demandas de informação. Quando a biblioteca não possui a publicação solicitada, recorre a outras coleções por meio de serviços de

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localização e processamento de cópias de documentos.

Figura 1. Estrutura clássica da comunicação científica em suporte papel. Os eventos, atores e instâncias ocorrem separadamente no espaço e no tempo.

A seqüência acima foi continuamente aperfeiçoada desde o aparecimento dos primeiros periódicos no século XVII, há 340 anos. Nesta estrutura, a biblioteca, ou suas versões na forma de centros de documentação ou centros de informação, representa a penúltima instância de intermediação do texto e os seus usuários. A biblioteca é a instância que dá sustentação e democratiza o fluxo de informação ao funcionar como um repositório de publicações organizadas e preservadas para o seu uso repetido. A função da publicação e da biblioteca pode ser interpretada como uma extensão da memória do ser humano. Nessa condição, sua origem está associada à evolução da linguagem e da comunicação, da capacidade do ser humano em registrar, congelar e escrever a fala (MacGarry, 1999). A passagem da tradição oral para a escrita, que pode ser identificada como o “despegar de la cultura”, ocorre com uma dimensão objetiva: Es el universo exterior extrasomático, que el lenguaje crea al modificar el medio, imprimiendo en él sus mensajes. … Es la forjación del ‘cerebro exterior’. Así como la técnica a través de los instrumentos nos dotaba de órganos nuevos y más poderosos, ahora el cerebro exterior – que es el lenguaje – permite socializar los hallazgos de la actividad cerebral creadora, de sus experiencias, y constituir un patrimonio colectivo de posibilidades, una memoria externa. Su fijación y mantenimiento ha definido todo un capítulo central de la historia humana. (Paris, 2000, p.252)

Como memória externa, não basta apenas ser capaz de armazenar informação fora do cérebro; ela deve ser armazenada de modo organizado para que se possa voltar a utilizá-la. Desde o passado mais longínquo a que se pode recuar com alguma certeza, sempre houve locais especificamente construídos com esse fim. As bibliotecas, em seu sentido mais amplo, existem há quase tanto tempo quanto os próprios registros escritos. Qualquer que seja a sua forma externa, a

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A CONSTRUÇÃO COLETIVA DA BIBLIOTECA VIRTUAL... essência de uma biblioteca é uma coleção de materiais organizados para uso. (McGarry, 1999, p.111)

Os seres humanos morremos, mas o que escrevemos fica armazenado e indexado na biblioteca. Nascemos e, em vida socializamos, equipados com a biblioteca, o que nos lega escrito a humanidade. A biblioteca é, portanto, parte integral da evolução da vida em sociedade, da reprodução de informação e de conhecimento que sustenta a evolução cultural, incluindo particularmente o domínio científico e técnico que se desenvolve com a linguagem e a comunicação científica. A expressão mais nobre da comunicação científica são os artigos originais publicados nos periódicos científicos. A biblioteca, em sentido amplo, pode ser entendida como a instância que daria acesso a todas as publicações. Entretanto, esta perspectiva, embora desejada e sonhada, é impossível de realizar-se na estrutura clássica da comunicação científica, pois apresenta limitações intrínsecas que impedem o acesso universal aos textos e, em particular, aos resultados das pesquisas científicas. Essas limitações agravaram-se na segunda metade do século XX com o crescimento extraordinário da pesquisa científica e do número de títulos de periódicos e quantidade de artigos publicados. Esta mesma estrutura de comunicação e as limitações a ela inerentes, que impedem o acesso universal às publicações, repetem-se de modo similar nos processos de publicação e disseminação de monografias, livros, teses, anais de congresso, documentos governamentais (particularmente dos ministérios e secretarias de saúde), legislação etc, descontadas as características de cada um destes tipos de literatura científica. Dentre outras, destacam-se três limitações que são intrínsecas à estrutura tradicional da comunicação científica: a a demora existente entre o momento que os autores registram os resultados da pesquisa nos manuscritos e a sua disponibilidade para os usuários, por meio dos índices bibliográficos e das coleções das bibliotecas. A duração completa deste ciclo leva meses, às vezes anos; b a impossibilidade real do acesso universal aos periódicos científicos, visto que as bibliotecas se tornaram incapazes de operar o desenvolvimento de suas coleções locais em correspondência com o crescente número de publicações, devido às limitações de infraestrutura de espaço físico, recursos humanos e, em especial, financeiros. Estas últimas têm relevância especial porque os preços das assinaturas comercializadas pelas publicadoras privadas e sociedades científicas dos países desenvolvidos cresceram sistematicamente acima da inflação internacional. Além disso, a aquisição de cópias separadas de artigos nos serviços nacionais e internacionais, que poderia ser uma alternativa, implica também custos elevados e crescentes. Em resumo, somente uma parte da informação registrada no inicio é passível de fluir até o final do fluxo; c o usuário precisa transladar-se até as instalações físicas da biblioteca para ter acesso a seus serviços e a sua coleção. Esta limitação relativa à localização geográfica se faz mais sensível e inconveniente quanto maior a distância em que o usuário se encontra. A biblioteca, por sua vez, possui horário de funcionamento e as mais concorridas podem exigir do usuário que enfrente filas e tempo de espera para receber atenção das bibliotecárias de referência e ter acesso às coleções locais. Estas limitações, sentidas em todo o mundo, tornaram-se mais

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sensíveis nos países em desenvolvimento. Na grande maioria dos países da América Latina e Caribe, devido às crises econômicas persistentes nas últimas décadas, as aquisições de coleções de periódicos em moeda estrangeira diminuíram radicalmente, ao mesmo tempo que o número de usuários continuou a crescer (Sonis, 1980). Na área da saúde, essas limitações foram superadas em parte com a criação da BIREME em 1967, resultado de um convênio entre a OPAS e o Governo do Brasil, por meio dos Ministérios da Saúde e Educação, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e a então Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo, em cujo campus urbano em São Paulo esta se localiza. A BIREME coordena, desde então, o desenvolvimento de um programa de cooperação técnica em informação científica e técnica, envolvendo direta e indiretamente a grande maioria das instituições acadêmicas, de pesquisa e de serviços em saúde dos países da América Latina e Caribe, com base no compartilhamento de recursos e no desenvolvimento de produtos e serviços comuns (Neghme, 1975). Este programa de cooperação técnica avançou até o lançamento da Biblioteca Virtual em Saúde – BVS - em 1998, mediante três grandes paradigmas de gestão de informação científica e técnica: a biblioteca especializada clássica, o centro de informação com serviço de indexação e o sistema de informação. A biblioteca especializada na cooperação técnica Neste paradigma cabe à biblioteca a organização de coleções de publicações e a provisão de serviços para assegurar o acesso às fontes de informação e conhecimento em saúde. Nessa condição foi criada a BIREME, como revela seu nome de nascimento – Biblioteca Regional de Medicina. Em consonância com o estado da arte internacional e dos serviços de informação na época, derivados da estreita cooperação com a National Library of Medicine (NLM) dos Estados Unidos, a BIREME implantou três linhas de ação principais: 1 desenvolvimento de uma coleção centralizada de periódicos científicos em saúde em suporte papel, que em poucos anos tornou-se a mais importante da América Latina e Caribe. Esta coleção, complementada com a da NLM, permitia, em teoria, atender a praticamente todas as demandas de artigos científicos, mesmo com as inconveniências e demoras inerentes ao transporte físico das fotocópias descritas abaixo; 2 criação e operação de uma rede cooperativa de bibliotecas com vários objetivos específicos, incluindo: estender a cobertura geográfica de oferta de acesso à informação científica; aumentar a capacidade dos países em gestão de bibliotecas e serviços bibliográficos; e compartilhar as coleções de publicações, por meio de um serviço formalizado e cooperativo de localização e fornecimento de fotocópias de artigos; 3 implementação, em 1973, de serviço de pesquisa bibliográfica na base de dados MEDLINE, operado pela BIREME com o uso de computador de grande porte no então Instituto de Energia Atômica, localizado na Universidade de São Paulo, inicialmente por algumas horas por semana e posteriormente durante toda a semana. O serviço contava com terminais remotos nos estados de Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo e Pernambuco conectados por teleprocessamento. Este foi provavelmente o primeiro serviço on line de consulta bibliográfica

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remota da América Latina e considerado na época modelo para outros países. A implementacão e operação do serviço teve a assistência da NLM que aportou a base de dados Medline, o sistema de pesquisa bibliográfica ELHILL e treinamento (NLM, 1974). Este paradigma, embora enriquecendo ao máximo a função da biblioteca especializada clássica, privilegiava os usuários que tinham acesso físico à BIREME e às bibliotecas da rede com melhor desempenho, considerando a completeza das coleções locais e a qualidade dos serviços ao usuário. Durante muitos anos, nas décadas de 1970 e 1980, a BIREME e sua rede de bibliotecas atenderam às demandas de informação dos usuários de todos os países da região na seguinte seqüência, difícil de imaginar-se atualmente: i o usuário solicitava ao serviço de referência das bibliotecas da rede, em contato direto ou por correspondência, uma pesquisa bibliográfica sobre determinado tema. Os pedidos eram enviados por correio para o serviço de consulta bibliográfica da BIREME; ii na BIREME, as bibliotecárias de referência realizavam as pesquisas bibliográficas, primeiro formulando-as em papel e depois as executando no computador. Os resultados, impressos em papel contínuo, eram entregues aos usuários locais ou enviados por correio à biblioteca onde o usuário fez o pedido original; iii o usuário revisava as listas das referências bibliográficas e selecionava os artigos pertinentes e novamente dirigia-se à biblioteca para obter os textos. Quando o periódico não estava disponível localmente, o pedido era enviado por correio para a BIREME. Quase sempre as bibliotecas reuniam os pedidos para envios semanais; iv a BIREME produzia fotocópias dos artigos dos periódicos presentes na sua coleção. Nos outros casos enviava os pedidos a outras bibliotecas da rede, à NLM ou à British Library, que, por sua vez, enviavam as cópias dos pedidos atendidos para a BIREME. A BIREME encaminhava, então, as cópias às bibliotecas dos países. Todos esses envios se faziam semanalmente de modo que se pode imaginar que um pedido ficava em processo e parado, em média, três dias nas bibliotecas, além do tempo de transporte por correio. É fácil vislumbrar as dificuldades, complexidades e inconveniências inerentes a este fluxo de informação. Tipicamente, o ciclo acima demorava semanas e, não raro, meses. Entretanto, durante décadas atendeu à formação dos profissionais de saúde da região e às demandas de informação dos pesquisadores, profissionais, autoridades e gestores. É importante notar que a estrutura subjacente deste paradigma persiste até os dias de hoje e continuará ainda por alguns anos enquanto houver necessidade de acesso remoto a cópias de artigos, sejam provenientes de coleções em papel ou eletrônicas. Entretanto, atualmente, os processamentos são realizados com a ajuda de sistemas computacionais e operados on line na Internet: a pesquisa on line está disponível na Internet diretamente para o usuário, assim como os pedidos de cópias de documentos. Desta maneira, reduzem-se drasticamente os tempos de localização e obtenção de artigos científicos e outros documentos. O centro de informação e serviço de indexação na cooperação técnica Neste paradigma a BIREME agrega à biblioteca especializada a função de centro

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de informação e de serviço de indexação, dando início ao controle bibliográfico da literatura científica em saúde publicada nos países da América Latina e Caribe. Em 1979 foi lançado o Index Medicus Latino-Americano (IMLA), indexando cerca de 150 periódicos e complementando, assim, o Index Medicus publicado pela NLM, que até então indexava somente 44 títulos da América Latina e Caribe. Na apresentação do IMLA em seu primeiro número, o então Diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) justificava seu lançamento referindo-se às crescente atividades “médico-científicas” nos países da América Latina: ... em vista da limitada existência de mecanismos adequados de difusão, todo este trabalho não é bem conhecido e apreciado e, menos ainda, totalmente identificado. Para modificar esta situação, sabe-se que a publicação de artigos científicos não é suficiente per se e que a implantação de processo de recuperação e disseminação desta informação torna-se imprescindível. (Acuña, 1979, p.i)

Esta decisão representa um reposicionamento da OPAS na gestão de serviços no fluxo de informação científica da América Latina e Caribe, com importância mundial: “A major step forward in the direction of complete bibliographic control of health literature produced in the Third World was the publication in 1979 of the first issue of the Index Medicus Latino Americano" (Ruff, 1980, p.165). A BIREME deixa de servir apenas ao fluxo da literatura internacional e dá início a um longo processo de posicionamento da pesquisa científica publicada nacionalmente em patamares progressivamente mais altos de visibilidade e acessibilidade. Este posicionamento conduz a BIREME a liderar posteriormente a criação e desenvolvimento da base de dados LILACS, e, a partir de 1997 a rede SciELO de coleções de periódicos eletrônicos on line na Internet. No mesmo período, a BIREME ampliou o seu escopo temático de modo a cobrir todas as áreas de ciências da saúde, com ênfase em saúde pública, já com a perspectiva de promover o fortalecimento e a ampliação das fontes e fluxos de informação científica e técnica nos serviços nacionais de saúde. Esta nova identidade informacional nas funções da BIREME é cunhada com a adoção de um novo nome em 1982: Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde. A sigla BIREME, entretanto, permaneceu viva como uma lembrança persistente da biblioteca como origem. O sistema de informação regional na cooperação técnica A adoção deste paradigma é realizada pela BIREME com a descentralização para o âmbito dos países da América Latina e Caribe das funções de centro de informação e de serviço de indexação. Em outras palavras, os países, a partir das bibliotecas e centros de documentação ligados à rede da BIREME, passam a assumir a responsabilidade de atender às demandas de pesquisa bibliográfica dos usuários nacionais e de estabelecer o controle bibliográfico da literatura científica e técnica em saúde produzida nacionalmente. Este paradigma é estabelecido nos últimos três anos da década de 1980 com a criação e consolidação do Sistema Latino-Americano e do Caribe de

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Informação em Ciências da Saúde, Saúde que pressupõe que cada país conte com um Centro Coordenador Nacional (CCN) e uma rede de Centros Cooperantes. A função de CCN era quase sempre ocupada pela principal biblioteca biomédica do país. O sistema incluía também centros regionais especializados em áreas temáticas como, por exemplo, meio ambiente, que contava com a Rede Panamericana de Informação e Documentação em Engenharia Sanitária e Ciências do Ambiente (REPIDISCA), coordenada pelo Centro Pan-Americano de Engenharia Sanitária da OPAS (CEPIS/OPAS/OMS), localizado em Lima, Peru. Os centros de documentação das oficinas de países da OPAS sempre foram componentes destacados nesta estrutura. A Figura 2 apresenta um esquema do sistema regional, destacando-se o fato de que a BIREME passa a ocupar na rede uma posição idêntica aos demais centros nacionais. O funcionamento articulado destes centros, em âmbito local, nacional e regional, produzindo de modo cooperativo produtos e serviços de informação, constituía a essência do sistema regional.

Figura 2. Esquema do Sistema de Sistemas de Informação: sistema regional, sistemas nacionais e sistemas especializados.

Três principais produtos e serviços passaram a ser operados de modo descentralizado nos centros cooperantes, com apoio de outros centros e particularmente da BIREME: a base de dados LILACS, pesquisa bibliográfica em bases de dados (nacionais, regionais e internacionais) e o acesso cooperativo ao documento original. A função da BIREME passa a privilegiar a

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interoperabilidade entre os centros do sistema em torno a estes produtos e serviços com a adoção, adaptação e desenvolvimento de um conjunto de padrões, metodologias e tecnologias de tratamento da informação, adaptado às condições locais e compatível internacionalmente. O produto cooperativo mais importante do Sistema criado nesse novo paradigma foi a base de dados LILACS– Literatura Latino-Americana e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde que, além da indexação dos periódicos científicos, inclui monografias, livros, documentos governamentais, teses de doutorado e anais de congressos. Esta base de dados é alimentada de modo descentralizado por centros nacionais, seguindo o esquema da Figura 2. Inicialmente a alimentação se dava por meio do preenchimento de formulários em papel, reunidos pelo Centro Coordenador Nacional e posteriormente enviados à BIREME, onde eram digitados para ingresso na base de dados LILACS. Com o surgimento do computador de mesa e do software CDS/ISIS da Unesco, a BIREME promoveu oportunamente a descentralização completa da alimentação da base de dados nas redes nacionais, permitindo a criação de bases de dados nacionais com o objetivo de registro da memória da literatura científica, técnica e de divulgação em saúde produzida nos países. Os registros que obedeciam aos critérios de seleção LILACS eram gravados em disquetes nos centros cooperantes e enviados por correio à BIREME para ingresso na base de dados regional. A LILACS, como produto principal da gestão das fontes e fluxos de informação científica e técnica, representa um avanço notável para a América Latina e Caribe, pois é baseada em padrões internacionais para a operação descentralizada em centenas de centros nos idiomas inglês, português e espanhol. A descrição bibliográfica é baseada no padrão definido no Unisist Reference Manual sob a égide da Unesco (Dierickx & Hopkinson, 1981) e a indexação (descrição dos conteúdos por atribuição de palavras-chave ou descritores) é baseada na metodologia da National Library of Medicine utilizando o Medical Subject Headings (MeSH) como thesaurus. O MesH, traduzido para o português e espanhol e enriquecido com categorias de descritores orientados à Saúde Pública na América Latina e Caribe, denomina-se Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e é mantido rigorosamente atualizado pela BIREME, constituindo o vocabulário de indexação da BVS. O segundo serviço de destaque era o de pesquisa bibliográfica, cuja descentralização efetiva ocorreu somente no final dos anos 1980, com o surgimento da tecnologia de cd-rom, acessível aos computadores de mesa por meio de leitores de disco compacto. A OPAS financiou um projeto histórico em 1988, que permitiu a distribuição de cerca de 110 computadores de mesa e leitores de cd-rom para os principais centros cooperantes do Sistema, em todos os países da América Latina e na maioria da ilhas do Caribe. No Brasil o projeto contou com o apoio do CNPq para a distribuição adicional de cincoenta computadores de mesa e leitores de disco compacto (Castro et al., 1989). Ao mesmo tempo, a BIREME capacitou-se na tecnologia de produção desses discos compactos, criando uma unidade de produção que gerava em disco magnético a matriz do disco compacto, enviada à fábrica de disco compacto para a produção da matriz e sua replicação nos Estados Unidos, nos primeiros anos, e posteriormente, no Brasil. Com o passar dos anos, a produção de discos compactos ficou mais acessível tecnológica e financeiramente.

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Com o domínio da tecnologia de cd-rom, a BIREME produziu os títulos LILACS/cd-rom e Medline/cd-rom, que, pela primeira vez na história, permitiu aos países da América Latina e Caribe terem acesso local à literatura científica relevante internacional, regional e nacional. O disco LILACS/cd-rom publicava, além da LILACS, um conjunto de outras bases de dados bibliográficas, incluindo os catálogos das coleções de publicações da OPAS e da OMS. De 1988 a 2005 foram publicadas cincoenta edições de LILACS-cd-rom. A publicação do Medline/ cd-rom pela BIREME iniciou-se em 1995 e continuou com atualizações mensais por sete anos, até 2001, quando foi interrompida. A partir de 1985, a BIREME passou a operar, on line, um serviço de consulta às bases de dados bibliográficas LILACS e Medline, utilizando o serviço RENPAC (Rede Nacional de Pacotes), em protocolo X-25, oferecido pela então empresa pública nacional de telecomunicação (Embratel). Este serviço tinha alcance restrito ao Brasil, devido ao alto custo da conexão internacional. O cdrom, com todas suas limitações, era, ainda por alguns anos, o meio que permitia acesso mais amplo. No entanto, esta experiência pioneira serviço público on line foi essencial para promover o acesso para as instituições brasileiras conectadas na RENPAC e principalmente para desenvolver a capacidade da BIREME na gestão e operação de serviços on line, que se tornaram prioritários com o surgimento e a consolidação da Internet. Em 1988 foi disponibilizado, pela primeira vez, serviço de acesso on line através da Internet, utilizando inicialmente o protocolo telnet. Para isso, a BIREME utilizava o software MINISIS, desenvolvido pelo IDRC do Canadá, substituído, em 1995, por uma interface de recuperação própria desenvolvida com o software CISIS. O serviço RENPAC foi interrompido em 1998. A partir de 1988, houve um avanço sistemático no uso da Internet, com a operação do primeiro site da BIREME em 1994. O avanço da Internet em todo o mundo e, em particular, seu uso progressivo na operação de fontes e fluxos de informação na BIREME, contribuíram decisivamente para o lançamento da BVS em 1998, como o novo modelo de cooperação técnica da BIREME. Na época, o site da BIREME recebia dez mil visitantes por mês, número que nunca mais parou de crescer, chegando em 2005 com uma média de mais de um milhão e quinhentos mil visitantes por mês. O terceiro serviço integrado ao funcionamento do Sistema Regional foi o acesso cooperativo ao documento original, que progressivamente passa a ser realizado como o apoio de sistemas computacionais, especialmente no que se refere à gestão central dos pedidos, realizada pela BIREME. Este sistema, denominado na BVS de Serviço Cooperativo de Acesso ao Documento (SCAD) opera ativamente até hoje com uma média diária de mais de mil pedidos de cópias por dia (em 2005), atendidos cooperativamente por uma rede de mais de trezentas bibliotecas cooperantes. Ao iniciarem-se as estatísticas do serviço de fotocópias, em 1969, o número total de pedidos foi de 12.800, chegando a 325.000 em 2004. A reestruturação da comunicação científica e a cooperação técnica Nos três paradigmas de cooperação técnica em informação científica e técnica descritos, houve um progresso sistemático na capacidade de gestão de informação científica e técnica das instituições acadêmicas e de serviços de saúde dos países da América Latina e Caribe, acompanhando o estado da arte

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internacional, com um atraso em média não maior de um ano nas instâncias mais avançadas. Com relação aos aspectos tecnológicos, essenciais na comunicação científica, a opção prioritária da BIREME por soluções contemporâneas e de baixo custo, incluindo computadores e softwares e aplicações de domínio público, foi e tem sido decisiva para aumentar progressiva e sustentavelmente a inclusão digital das instâncias relacionadas ao fluxo de informação científica, especialmente bibliotecas, centros de documentação, editores e gestores de bases de dados. Embora a consolidação de cada novo paradigma tenha representado um avanço notável, não houve qualquer ruptura radical com substituição completa de um modus operandi por outro. Ao contrário, houve um processo gradual de absorção dos paradigmas anteriores, que se deu em tempos e intensidades diferentes nos diferentes países e internamente nos países. Embora o uso intensivo de tecnologias de informação tenha tornado muito mais eficiente a operação das fontes e dos fluxos de informação, a estrutura clássica da comunicação científica, como esquematizado na Figura 1, permaneceu inalterada nos três paradigmas. Na essência, o modo de produção do fluxo de informação científica não se modificou. Nesta estrutura clássica, além das restrições mencionadas anteriormente e relacionadas com a impossibilidade do acesso universal às fontes de informação e com a demora na condução dos registros e fluxos de informação entre as instâncias físicas, o objetivo essencial do ato de publicar se frustra devido à pouca visibilidade e quase nenhuma acessibilidade provida aos periódicos publicados em suporte papel na América Latina e Caribe, situação que ficou conhecida como “ciência perdida do terceiro mundo” (Gibbs, 1995). A publicação do IMLA, a partir de 1979, representou o primeiro produto com o objetivo de estabelecer o controle bibliográfico da literatura científica publicada nos países e promover a sua visibilidade. A criação e operação descentralizada da base de dados LILACS, a partir de 1985, a sua publicação em cd-rom, a partir de 1988, nesta data também disponibilizada no serviço on line de pesquisa bibliográfica da BIREME na Internet, representam avanços notáveis no sentido de promover visibilidade aos resultados da pesquisa científica em saúde na América Latina e Caribe publicada nos periódicos nacionais e regionais. Entretanto, permanecia a limitação de acesso aos textos originais porque, ao realizar uma pesquisa bibliográfica na base de dados LILACS, desde qualquer lugar via Internet, a obtenção dos textos dos artigos selecionados dependia da presença do periódico na biblioteca local ou de pedido de fotocópia ao serviço SCAD. Este serviço, embora eficiente em sua operação na Internet, representa uma barreira aos usuários, pois demanda a inscrição no serviço com a inconveniência dos sistemas de cobrança. Esta limitação de acesso ao texto completo passa a ser progressivamente superada com o aparecimento da publicação eletrônica on line na Internet, cujo desenvolvimento mais notável na América Latina e Caribe é representado pela rede SciELO de coleções nacionais e temáticas de periódicos de qualidade da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal. O objetivo do projeto SciELO – Scientific Electronic Library Online, iniciado em 1997 como produto da cooperação entre a BIREME e a Fapesp, foi justamente contribuir para aumentar a visibilidade e a acessibilidade dos periódicos. Para tanto, a metodologia SciELO optou pela publicação em acesso aberto de coleções de

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periódicos selecionados por critérios de qualidade, com aumento constante dos enlaces a outras fontes de informação, construindo aos poucos um índice bibliográfico de referência de periódicos de qualidade, que inclui a publicação on line de estatísticas e indicadores bibliométricos de uso e citação. Pela primeira vez se abriu a possibilidade real da produção científica produzida nos periódicos nacionais possuir indicadores numéricos atualizados para sua avaliação, complementando, assim, os indicadores internacionais (Packer et al., 1998; Meneghini, 2002). A questão de visibilidade e acessibilidade dos periódicos da América Latina e Caribe passa a ter na SciELO, finalmente, uma solução efetiva. É importante destacar que esta questão aplica-se também aos outros tipos de literatura científica e técnica, incluindo particularmente os documentos governamentais, das agências de cooperação internacional, as teses, os anais de congressos etc. O fluxo de informação que se inicia com essas publicações em suporte papel não tem sustentabilidade para chegar a todos os usuários com acesso universal. Esta situação afeta especialmente as fontes e fluxos de informação que são necessários para subsidiar a gestão e operação dos sistemas e serviços de saúde. Assim, publicação eletrônica on line passa a ser também obrigatória como solução para visibilidade e acessibilidade para todos os tipos de documentos incluídos nos critérios de seleção da LILACS. Em conseqüência, nos anos 1990 a Internet como meio de comunicação científica e técnica representa o novo desafio programático, organizacional e tecnológico para a cooperação técnica em informação científica e técnica, liderada pela BIREME. Com a SciELO e a publicação eletrônica em geral, a cooperação técnica promovida pela BIREME começa a expandir-se nas instâncias do fluxo da comunicação científica, convergindo, por um lado, com os editores de periódicos e produtores em geral, e, por outro, com os usuários que passam a operar e interagir diretamente com os produtos e serviços de informação. Esta expansão, viabilizada pela Internet, abre as fronteiras e condições para a consolidação da BVS como o novo paradigma de cooperação técnica. O uso da Internet como tecnologia e meio de produção do fluxo informação da comunicação científica e técnica tem evoluído de uma conformação inicial, em que predominou o trabalho isolado dos atores em cada uma das instâncias esquematizadas na Figura 1, para uma nova conformação, na qual predomina a convergência das ações no espaço virtual criado pela Internet. Na Internet, o fluxo da informação é conduzido por arquivos e mensagens digitais, eliminando-se, portanto, a necessidade do transporte físico de documentos entre as instâncias da comunicação científica clássica em suporte papel. Estes arquivos são passíveis de serem criados, modificados e acessados universalmente desde qualquer lugar, eliminando-se a distância física no processo de comunicação entre os atores nos diferentes eventos da comunicação científica. Em conseqüência, com a Internet, a comunicação científica sofre aceleradamente uma restruturação radical, caracterizada pela convergência do trabalho dos atores no espaço virtual da Internet, disponibilidade dos conteúdos na Internet para acesso universal e um alto grau de simultaneidade entre os eventos. Em resumo, emerge uma nova estrutura de comunicação científica e técnica, na qual os eventos de escrever e submeter o manuscrito, sua revisão por pares e, quando aprovado, sua edição, publicação, indexação e acesso ocorrem todos nesse mesmo espaço, com um alto grau de

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simultaneidade dos eventos. Ademais, a nova estrutura (esquematizada na Figura 3) possibilita que todas as publicações sejam universalmente acessíveis.

Figura 3. Restruturação da comunicação científica na internet. Os eventos, atores e instâncias convergem para o ciber-espaço com alta simultaneidade de eventos

A restruturação da comunicação científica vem impactando processos, atores, instâncias e eventos. Além da dimensão inovadora que a Internet aporta como tecnologia de meio de publicação, surge a dimensão de caráter político que preconiza o conhecimento científico como bem público, indispensável para o desenvolvimento social e econômico, particularmente para contribuir a superar a pobreza. Nesse sentido, estão se fortalecendo cada vez mais os movimento de open access e dos repositórios pessoais, institucionais e temáticos. Nessas modalidades, o artigo será disponibilizado para livre acesso tão logo seja publicado em algum periódico ou depois de um embargo de alguns meses para auto-arquivamento em algum repositório (National Academies, 2004). Ao comparar-se a estrutura da comunicação científica clássica em papel, como esquematizada na Figura 1, com a nova estrutura da Internet como meio de publicação, segundo esquema da Figura 3, salta à vista que as limitações para o acesso universal ao conhecimento científico estariam em princípio superadas tecnologicamente. Em resumo, a comunicação científica na nova estrutura apresenta as seguintes características: a o tempo entre a submissão do trabalho e a disponibilidade para acesso pelos usuários é minimizado; b todos os trabalhos publicados são passíveis de acesso universal, a qualquer hora, independentemente do lugar em que se encontra o usuário; c a visibilidade e acessibilidade podem ser maximizadas. A promoção da convergência dos atores da comunicação científica e técnica da América Latina e Caribe para operar em rede na Internet, criar um espaço cooperativo de gestão e operação das fontes e fluxos de informação e, assim, avançar rumo ao acesso eqüitativo ao conhecimento e à informação científica, técnica e factual em saúde, conformam o novo paradigma de cooperação técnica entre as instituições de pesquisa, ensino e atenção à saúde da América Latina e Caribe, sob a liderança da BIREME/OPAS/OMS.

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O paradigma da Biblioteca Virtual em Saúde A característica principal que rege a formulação da BVS está na adoção plena do paradigma de informação e comunicação da Internet, no qual a gestão e a operação das fontes e fluxos de informação passam a ser realizadas em formato digital em rede online, diretamente pelos seus diferentes atores. A Internet passa a ser o meio de produção e operação da comunicação científica, superando as limitações causadas pela distância física entre os atores, o transporte físico de documentos entre eles, bem como as restrições de horário de funcionamento das instituições, particularmente das bibliotecas. Com a Internet como meio, os registros que conduzem os fluxos de informação e de trabalho dos diferentes atores podem ser compartilhados ao mesmo tempo em que são realizados. Esta possibilidade de compartilhar os registros resultantes das ações realizadas por atores localizados fisicamente nos mais diferentes lugares gera a percepção e a sensação de um espaço comum e convergente de trabalho que se atualiza continuamente, isto é, um espaço virtual. Nos paradigmas anteriores, a cooperação técnica liderada pela BIREME envolvia diretamente os atores e as instâncias de indexação, biblioteca e usuários. Com a BVS, a rede amplia-se quase que naturalmente, incluindo também a participação dos editores e da publicação eletrônica. Este movimento envolve não somente os fluxos de informação e de trabalho em torno aos periódicos científicos, mas abarca também os diferentes tipos de comunicação e documentação científica e técnica, assim como informação factual e multimídias. Os ciclos de informação persistentes são passíveis de funcionar além dos contextos acadêmicos. Esta expansão é uma mudança transcendental, pois a BVS passa ser ao mesmo tempo produto e produtora na nova estrutura de comunicação científica em saúde na América Latina e Caribe. Daí ser uma das características-chave projetadas no seu desenvolvimento constituir-se em espaço de referência para a informação e conhecimento em saúde, com controle de qualidade. Numa visão idealizada a BVS é um tecido virtual na Internet, onipresente e disponível todo o tempo para interação, no qual é possível colocar e retirar conteúdos, em um contexto orientado ao acesso eqüitativo à informação em que todos os atores envolvidos estão dotados de tecnologias para acessar e publicar. É importante reforçar que esse avanço conceitual na comunicação científica e técnica e a possibilidade de colocá-lo em prática na cooperação técnica se torna possível e é viabilizado pelas tecnologias de informação que envolvem a Internet, extensões do nosso sistema físico e nervoso para aumentar a força e a velocidade (McLuhan, 1974). Embora aumentem nossa capacidade e sejam em si mesmas uma força inovadora, não deixam de ser meio. O estado das técnicas influi efetivamente sobre a topologia da megarrede cognitiva, sobre o tipo de operações que nela são executadas, os modos de associação que nela se desdobram, as velocidades de transformação e de circulação das representações que dão ritmo a sua perpétua metamorfose. A situação técnica inclina, pesa, pode mesmo interditar. Mas não dita. (Levy, 1993, p.186)

A tecnologia na BVS visa ao desenvolvimento da saúde individual e coletiva, isto é, o papel da informática e das técnicas de comunicação com base digital não seria substituir o homem’, nem aproximar-se de uma hipotética

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PACKER, A. L. inteligência artificial’, mas promover a construção de coletivos inteligentes, nos quais as potencialidades sociais e cognitivas de cada um poderão desenvolver-se e ampliar-se de maneira recíproca. (Levy, 1998, p.25)

O paradigma da BVS conforma uma inovação importante, que é a operação de redes em duas dimensões. Na primeira delas, têm-se as redes de instituições e indivíduos que operam os fluxos de informação e de trabalho, isto é, os atores relacionados com a produção, a intermediação e a exploração das fontes de informação. Na segunda dimensão, têm-se as redes de fontes de informação propriamente ditas, que são organizadas e indexadas na BVS. Essas incluem qualquer recurso que responda a uma nessidade de informação, produtos, serviços e eventos. Esta conformação da BVS é explicitada para o campo operacional por um modelo de gestão e um marco de trabalho, tendo por um lado o ser humano e por outro o resultado da sua ação registrado, armazenado, escrito e comunicado na BVS, que funciona como memória externa, de caráter coletivo. Nesse sentido, a BVS constitui espaço de expressão e ação da inteligência coletiva. O modelo está orientado ao aperfeiçoamento e crescimento contínuo de ambas as redes e dos seus constituintes. Por um lado, visa desenvolver a capacidade dos produtores, intermediários e usuários no tratamento de fontes de informação em formato digital em rede. Por outro lado, o modelo pretende aumentar a quantidade e aperfeiçoar a qualidade dos conteúdos das fontes de informação e seu funcionamento efetivo na resposta a demandas de informação nos diferentes contextos. A cooperação técnica entre os países e entre a suas instituições e usuários, com apoio internacional da BIREME/OPAS/ OMS, é naturalmente o meio e a estratégia requerida para aperfeiçoar o modelo conceitual e operacional, fortalecendo e ampliando nestas áreas estratégicas as capacidades dos países da região. A BVS tem expansão ilimitada dirigida a maximizar a inclusão digital e informacional. O avanço sustentável da operação da BVS é baseado na experiência consolidada das bibliotecas e instituições de saúde da América Latina e Cariba no trabalho em redes colaborativas de informação, com um consenso crescente que a operação em rede fortalece cada um dos seus componentes individualmente e na sua interoperação com os demais: que é melhor agir em rede que atuar isoladamente, e as evidências nesse sentido são dadas pelos valores crescentes dos indicadores de visibilidade, acessibilidade e impacto das instâncias, atores e suas fontes de informação na BVS. Por exemplo, um periódico científico indexado na LILACS e publicado na coleção SciELO tem mais impacto e credibilidade que publicado isoladamente na Internet. O mesmo acontece com um curriculum de investigador na Plataforma Lattes com links com outras fontes de informação. Esta interoperação, quando maximizada, lembra um fenômeno da ressonância por meio dos fluxo crescentes de informação entre os nós das redes. Para tanto, a BVS é necessariamente construída como um espaço coletivo e de domínio público com gerenciamento e lideranças compartilhadas. A gestão da rede de produtores, intermediários e usuários da BVS Como espaço de domínio público, a BVS não tem dono e a sua gestão deve ser

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compartilhada e realizada em rede. Em particular, a função da cooperação técnica entre as instituições, promovida e coordenada pela OPAS/OMS, por meio da BIREME, é regida pelos seguintes princípios: busca da eqüidade de acesso à informação em saúde; promoção de alianças e consórcios para maximizar o uso compartilhado de recursos; promoção do trabalho cooperativo e do intercâmbio de informação, experiências e conhecimento; desenvolvimento e operação em rede com descentralização em todos os níveis geográficos, temáticos e instituicionais; desenvolvimento baseado nas condições locais; estabelecimento e aplicação de mecanismos integrados de avaliação e controle de qualidade. Os princípios acima regem a cooperação técnica entre instuições e em nada interferem na sua gestão e operação interna e tampouco em suas políticas, procedimentos e idiossincrasias em gestão de informação. Estão orientados para assegurar o desenvolvimento cooperativo de produtos, serviços e eventos de informação que transdendem a instituição embora com a sua inserção na rede de divisão do trabalho e compartilhamento de recursos. Entretanto, como se analisará em seguida, a adoção do novo paradigma de informação e comunicação internamente implica em mudanças significativas no modus operandi interno das organizações. Como parte da gestão do desenvolvimento da BVS, a BIREME promove a cada dois anos uma reunião regional de coordenação, que funciona como fórum e oficina de trabalho para avaliação, intercâmbio de experiências e elaboração de recomendações futuras, particularmente para os dois anos seguintes. Estas reuniões presenciais fortalecem a apropriação da BVS por parte das instituições nacionais como espaço coletivo de cooperação e contribuem para o aperfeiçoamento do modelo conceitual e operacional de gestão em rede de fontes e fluxos de informação. Em especial, contribuem para aperfeiçoar e fortalecer as funções e mecanismos da cooperação técnica, que se traduzem em normas, guias e metodologias. O Guia da BVS (BIREME, 2001), que descreve o modelo da BVS, é atualizado periodicamente em função dessas reuniões de coordenação e avaliação. A BIREME é responsável também pela coordenação e operação direta das fontes de informação regionais que envolvem conteúdos dos países da América Latina e Caribe e interação entre elas, como são por exemplo a LILACS, SciELO, SCAD etc. Responsabiliza-se, também, pela operação das fontes internacionais essenciais, como o Medline e a Cochrane. Ainda no âmbito regional, os programas de cooperação técnica da OPAS em áreas temáticas têm promovido a inserção progressiva das suas redes na BVS, como por exemplo, meio ambiente, adolescência, pesquisa científica etc. As áreas temáticas são gerenciadas no espaço da BVS como redes específicas, considerando as fortalezas e afinidades existentes entre instituições, pesquisadores e profissionais na gestão das fontes e fluxos de informação. Assim, no espaço da BVS tem-se consolidado a denominação específica de “BVS temáticas” como, por exemplo, BVS Saúde Mental. A BIREME promove também a intermediação com instituições, redes, sistemas e iniciativas internacionais de modo a fortalecer e ampliar os vínculos da América Latina e Caribe com os paises do norte assim como com outras regiões em desenvolvimento. Como centro especializado da OPAS/OMS, a BIREME se posiciona naturalmente na agenda internacional de cooperação técnica, de forma que as

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suas ações são realinhadas periodicamente às prioridades da OPAS/OMS e dos programas internacionais e nacionais de desenvolvimento, como ocorre atualmente com Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas e o desenvolvimento da sociedada da informação. A BVS é também instância integral da cooperação técnica internacional. O espaço da BVS serve para a convergência das iniciativas, fontes e fluxos de informação internacional. Desta forma, a BVS incorpora a indexação e o acesso à todas a documentação técnicocientífica produzida pela OPAS e OMS e, seletivamente, dos outros organismos internacionais. A BIREME representa a América Latina e Caribe na rede SHARED, que está estruturada por instâncias regionais, incluindo também a Africa, Ásia, Europa e Europa do Leste. Outra dimensão de intermediação internacional é realizada por meio do Congreso Regional de Informação em Ciências da Saúde (CRICS), que tem lugar a cada dois anos com o objetivo de socializar o estado da arte internacional da comunicação científica e técnica internacional. Assim, as funções de coordenação regional da BVS pela BIREME incluem, entre outras, as seguintes atribuições principais: promover e disseminar a BVS entre autoridades, gestores, pesquisadores, profissionais e público em geral; operar o site regional multilíngüe da BVS www.bvsaude.org , que funciona como um portal com interface de acesso e navegação às fontes de informação regionais e a toda rede distribuída de fontes de informação, assim como à fontes internacionais; promover a inter-operação das fontes de informação da BVS entre si e também com fontes externas; promover o intercâmbio de informação, experiência e conhecimento entre os produtores, intermediários e usuários de fontes e fluxos de informação da BVS no âmbito nacional, regional e internacional; efetivar cooperação técnica para o desenvolvimento da capacidade das instituições nacionais na gestão e operação da BVS, em sintonia com o estado da arte internacional em gestão de informação e conhecimento; coordenar em âmbito regional o funcionamenteo das redes de instituições produtoras, intermediárias e usuárias de fontes de informação na BVS; avaliar periodicamente o desenvolvimento da BVS com o objetivo de certificar as instâncias nacionais, temáticas e institucionais que cumprem os critérios de qualidade para inclusão na rede da BVS; coordenar o desenvolvimento do modelo conceitual da BVS; coordenar o desenvolvimento de metodologias e tecnologias para a gestão e operação das redes de produtores, intermediários e usuários, assim como das redes de fontes e fluxos de informação da BVS. No âmbito geográfico nacional, o modelo de cooperação técnica atribui a cada país a responsabilidade por organizar as redes nacionais de instituições e sua operação no espaço da BVS, como meio essencial para promover e assegurar a visibilidade e acessibilidade à informação e conhecimento em saúde gerado nacional e internacionalmente. As redes dos sistemas nacionais de informação que operavam bem antes do paradigama da Internet vêm se integrando progressivamente ao modelo da BVS, o que tem significado um avanço notável rumo a inclusão digital e informacional dos atores e instâncias relacionadas com a comunicação científica e técnica em saúde. A BVS significa a possibilidade concreta de promover e fortalecer a inclusão das instituições e indivíduos na gestão em rede das suas fontes e fluxos de informação. A promoção e coordenação da BVS nos países é feita por uma ou mais instituições, seguindo os mesmos principíos e funções orientadores da ação da

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BIREME no âmbito regional. No contexto nacional da BVS, assim como nas áreas temáticas, a gestão compartilhada das redes deve ser continuamente aperfeiçoada e as experiências positivas da BIREME e das instituições nacionais são socializadas e compartilhadas. O desenvolvimento da BVS baseada em redes nacionais e regionais tem avançado sistematicamente, medido pela participação das instituições em atividades via Internet relacionadas com produção, intermediação ou uso de informação e conhecimento em saúde. Este avanço inclui o fato que a cooperação técnica expande-se para todos os atores do processo, além das bibliotecas e centros de informação, que formaram as redes nos paradigmas anteriores. Entretanto, as bibibliotecas e centros de documentação permanecem na coluna vertebral da operação da BVS. Com a operação das redes na Internet, dois avanços são notáveis. Por um lado, os usuários foram dotados com a possibilidade e capacidade de acesso direto às fontes de informação para consultas e navegação. Esta desintermediação resolveu de vez as barreiras que enfrentavam no acesso às fontes de informação e tem resultado em um aumento extraordinário no uso da BVS. O acesso ao espaço virtual das coleções de fontes de informação superou as imposibilidades ou invonveniencias que eram impostas pela geografia das bibliotecas de coleções em suporte papel. Por outro lado, as instituições dos sistemas de saúde, pesquisa e ensino, passaram a operar em rede na Internet as suas fontes de informação principalmente por meio das suas bibliotecas e centros de documentação. Daí que uma das primeiras linhas de ação promovidas e implantadas no plano para a posta em marcha da BVS foi justamente o realinhamento para a Internet dos produtos e serviços de informação. Outra linha de ação que favorece a desintermediação e portanto a inclusão informacional dos usuários das instituições consiste na sua capacitação no uso direto e interativo das fontes de informação da BVS. Novamente, as bibliotecas e centros de documentação são chamadas frequentemente para promover e conduzir treinamento na exploração das fontes de informação (BIREME, 1998). Mas, por muito tempo, a inserção das instituições consistirá na operação em rede pública da BVS, sem necessariamente introduzir este paradigma no seu contexto interior. De fato, tal processo de adoção do modelo da BVS nos contextos interiores das instituições, implica o envolvimento de todo o seu pessoal na operação das suas fontes e fluxos de informação. E revela-se ser uma força inovadora que requer mudanças sensíveis no sentido de um modus operandi informado, no qual predomine a circulação de informação, experiências e conhecimento e se conforme em um abiente aprendiz. Como realizar este movimento? Uma linha de ação é fortalecer a interação entre o contexto local do trabalho e gestão de informação com o espaço público da BVS, em que ambos se transformam e as instituições aprendem e adoptam o modelo para seu interior. Os dois principais desafios que as organização enfrentam são, por um lado, a incorporação da maioria do seu pessoal em ambientes informados e, por outro lado, a construção coletiva da BVS, que prevê a interação da fontes locais de informação com a rede de fontes nacionais, regionais e internacionais. O primeiro desafio requer que a gestão dos ambientes promova a explicitação, o intercâmbio e registro do conhecimento próprio dos funcionários, individual e coletivamente, com vistas a sua organização em fontes de informação para preservar e facilitar o seu uso no

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presente e no futuro. O segundo desafio tem como solução a médio e longo prazo a operação local das fontes e fluxos de informação em um continuum com o espaço comum da BVS e da Internet em geral. Uma fase intermediária acontece com a indexação das fontes operadas isoladamente pelas instituições no espaço da BVS. A superação de ambos desafios reside em aperfeiçoar o funcionamento dos ambientes institucionais, maximizando a troca, a comunicação, o compartilhamento de informação e conhecimento entre as pessoas. Este tipo de ambiente contribui a minimizar as decisões e conduções autocráticas ou baseadas em conhecimento e práticas obsoletas ou alienadas. A gestão é a do poder e liderança compartilhadas. Em qualquer dos contextos anteriores, internacional, regional, nacional, local, institucional, a adoção, o desenvolvimento e a gestão compartilhada da BVS se faz necessáriamente por meio da articulação constante entre os representantes das principais instituições de saúde. No caso das instâncias nacionais incluem-se, como essenciais, o Ministério da Saúde e instituições gestoras do sistema nacional de saúde, instituições acadêmicas de ensino e pesquisa, instituições de apoio à pesquisa e à comunicação científica, associações profissionais, sociedades científicas, bibliotecas, editoras etc. No caso das instâncias temáticas, a articulação é feita em geral a partir das redes ou comunidades temáticas já existentes, de modo que a BVS contribua com o seu espaço e momentum para a gestão de suas fontes e fluxos de informação. O estabelecimento e a operação de uma instância na BVS, regional, nacional, temática ou institucional, são conduzidos por processos que incluem a articulação permanente entre as instituições participantes, uma coordenação formada por uma instituição, um comitê consultivo e comitês técnicos, a operação de uma comunidade virtual em rede e um plano de implantação. Nem de longe se trata de uma operação trivial. Ao contrário, requer de gestão e engenharia de processos que se tornam mais complexos por serem compartilhados e realizados em rede. A BVS contribui para a aprendizagem e formação de capacidades nesse sentido. A gestão das redes de fontes e fluxos de informação na BVS A segunda dimensão das redes operadas segundo o modelo da Biblioteca Virtual em Saúde – BVS - está relacionada com a condução da informação, literalmente do autor para o leitor, intermediada por meios de registro digital na Internet. A BVS funciona como meio para a informação gerada, intermediada e recebida por diferentes instâncias e atores, em diferentes localidades e datas ou momentos. Trata-se de meio assíncrono, nos moldes da biblioteca tradicional e também de modo síncrono viabilizado pela Internet. Nesses dois moldes a BVS registra, armazena, indexa, preserva e disponibiliza informação por meio de produtos, serviços e eventos denominados genericamente de fontes de informação. Quando essas fontes são acessadas, em qualquer estágio do seu desenvolvimento, a informação é comunicada para os usuários ou para outras fontes de informação, num processo que produz e mantém os fluxos de informação. O objetivo da gestão das fontes e fluxos de informação na BVS é maximizar, por um lado, a sua coleta, registro e organização, e, por outro, o uso da informação nos processos de decisão e nas atividades relacionadas com a saúde coletiva e individual. Então, como programa de cooperação técnica, a BVS 268

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deverá estimular e contribuir para que a informação e o conhecimento de distintas naturezas venham a permear os diferentes contextos nos sistemas nacionais de pesquisa, educação e atenção à saúde. Os contextos devem ter seus fluxos de informação continuamente retroalimentados e enriquecidos com informação de outros contextos, de forma a aumentar sua capacidade para tratar temas ou problemas, respondendo com as melhores evidências e práticas a perguntas como: O que está escrito? Quais são as evidências científicas? Que práticas estão consolidadas? Quais são as orientações das agências governamentais e organismos internacionais? Quem são os especialistas? Quem possui problema similar? etc. Inseridos em contextos informados, autoridades, gestores, professores, pesquisadores, alunos, profissionais, técnicos e usuários têm oportunidade de tomar melhores decisões, de aprender continuamente ao receber e intercambiar informação atualizada, de aumentar o seu conhecimento e conseqüentemente sua capacidade de ação. Quando esta condição é apropriada por boa parte dos indivíduos dentro de um determinado contexto, a tendência é aumentar a eficiência, a eficácia e a qualidade do seu desempenho, competências essas indispensáveis nos serviços de saúde. O desafio que se apresenta é tornar sustentáveis estes fluxos locais de informação. Como se percebe na gestão das redes de instituições, esta condição é alcançada quando as instituições passam a operar na rede (interna e externa) as suas fontes e fluxos de informação relacionadas com a sua função e objetivos. A gestão do funcionamento da BVS baseia-se em uma arquitetura de fontes e fluxos de informação, com três dimensões principais: · os domínios de produção, organização, circulação e uso de informação e conhecimento em saúde, ou seja, a natureza da informação; · as funções ou finalidades das fontes de informação na comunicação em saúde, isto é, os diferentes tipos de fontes em relação a formato, conteúdo e sua aplicação prevista; · a estruturação das fontes de informação para o armazenamento e comunicação na Internet na modalidade de serviços de domínio público orientados ao conceito de web semântico, no qual a informação e o conhecimento contextualizados estão ubiqüamente disponíveis para uso (Berners-Lee et al., 2001). Conclusão A construção coletiva da Biblioteca Virtual em Saúde, cuja evolução nos campos conceitual e operativo foi descrita neste documento, avança decisivamente como modus operandi consistente de trabalho cooperativo em rede na produção de fontes e fluxos de informação cientifica, técnica e factual em saúde. Ela envolve centenas de instituições de todos os países da América Latina e a maioria da ilhas do Caribe, em um movimento de cooperação técnica internacional que inclui progressivamente mais e mais instituições e contextos dos sistemas nacionais de pesquisa, educação e atenção à saúde. A participação da OPAS/OMS é essencial nesta evolução e remonta à sua origem, quando, respondendo às demandas dos países, e com o apoio decisivo do Brasil, criou em 1967 a BIREME como centro especializado em informação em ciências da saúde para liderar e coordenar esta cooperação técnica. A sustentação política, institucional e financeira desse trabalho cooperativo que persiste crescendo por quase quatro décadas é, sem dúvida, consequência

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de um longo esforço dos países, individualmente e no seu conjunto, por meio da BIREME, em assegurar as condições, ainda que mínimas em muitos casos, para o desenvolvimento da comunicação científica e técnica na região, complementado e integrando-as com as fontes e fluxos dos paises desenvolvidos, promovendo assim condições concretas para a democratização da informação e conhecimento em saúde. É importante notar que são os paises que definem as políticas assim como a contribuição e aplicação de recursos que dirigem e financiam o funcionamento regular da OPAS, e, em particular, da BIREME. Nesse sentido, a função, evolução e desempenho da BIREME na liderança e coordenação do programa de cooperação em informação científica e técnica deve ser apropriado como uma obra coletiva dos paises. Por isso mesmo uma linha de ação sistêmica da BIREME é reproduzir-se em sua funcionalidade no âmbito nacional. Este esforço dos países que culminou a partir de 1998 na BVS, como espaço virtual na Internet, para onde convergem e interagem as ações dos produtores, intermediários e usuários de informação, o que, como vimos, renova e expande continuamente a cobertura do seu modus operandi centrado no trabalho cooperativo em torno a produtos, serviços e eventos de informação, que são de propriedade comum e de domínio público. Operados com acesso universal na BVS eles constituem referência internacional indentificados em uma lista de siglas como são LILACS, DeCS, SCAD, SciELO, REPIDISCA, CRICS etc. Estas fontes de informação reproduzem-se nacionalmente nos países e localmente nas instituições. Este processo persistente de interoperação local, nacional, regional e internacional, utilizando metodologias e padrões compatíveis, em sintonia com os paradigmas contemporâneos de gestão de informação e conhecimento, constitui a essência do desempenho positivo da cooperação técnica nas últimas três décadas desde a fundação da BIREME. E é mister aprofundar esta interoperação ampliando, por um lado, a inclusão dos diferentes contextos de saúde para operarem na BVS como ambientes aprendizes, e, por outro lado, o uso das tecnologias de informação em torno da Internet. Este encaminhamento vai ao encontro da concepção e proposta explicitadas por Lévy de que os processos de produção e democratização do conhecimento devem enriquecer o sistema cognitivo humano com modos de organização coletiva assim como de tecnologias orientadas à comunicação e ao processamento de informação (Lévy, 1993; 1998). A lição principal que a construção coletiva da BVS nos brinda é justamente o fato que ela é possível com toda a complexidade que significa a gestão das redes de instituições e das redes de fontes e fluxos de informação. Referências ACUÑA, H. R. Apresentação. O Index Medicus Latino-Americano. IMLA, v.1, n.1, 1979. BERNERS-LEE, T; HENDLER, J.; LASSILA, O. The semantic web. A new form of Web content that is meaningful to computers will unleash a revolution of new possibilities. Sci. Am., n.17, may, 2002. Disponível em <http://cpdp.uab.es/documents/docencia/casanovas_pompeu/semantic_web.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2005. BIREME. Declaración de San José hacia la Biblioteca Virtual en Salud. In: Reunión del Sistema Latinoamericano y del Caribe de Información en Ciencias de la Salud, 6., Congreso Panamericano de Información en Ciencias de la Salud, 4, 1998. San José, Costa Rica, 1998. Disponível em: <http:// www.bireme.br/bvs/por/edeclar.htm>. Acesso em: 14 jun. 2005.

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A CONSTRUÇÃO COLETIVA DA BIBLIOTECA VIRTUAL... BIREME. Guia 2001 de desenvolvimento da Biblioteca Virtual em Saúde. São Paulo: BIREME, 2001. Disponível em: <http://www.bireme.br/crics5/E/guiabvs.htm>. Acesso em: 15 jun. 2005. CASTRO, R. C. F.; PACKER, A. L.; CASTRO, E. Projeto LILACS/CD-ROM – Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciência da Saúde em disco compacto. Rev. Bras. Bibliotecon. Document., v.22, n.1/2, p.105-14, 1989. GIBBS, W.W. Lost science in the third world. Sci Am. v.273, n.2, p.76-83, 1995. Disponível em: <http:// www.sciamdigital.com/browse.cfm?ITEMIDCHAR=082AA6E7-13D1-4610-81F4EEC68867A24&methodnameCHAR=&interfacenameCHAR=browse.cfm&ISSUEID_CHAR=A7B114FEF9D3-4600-903D- 8E1B8CB8C54&ArticleTypeSubInclude_BIT=0&sequencenameCHAR=itemP>. Acesso em: 13 jun. 2005. LÉVY, P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998. LÉVY, P. Tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Editora 34, 1993. DIERICKX, H.; HOPKINSON, A. (Ed.) Reference manual for machine-readable bibliographic descriptions. 2.ed. rev. Paris: UNESCO, 1981. MC LUHAN, M. Understanding media: os meios de comunicação como extensões do homem.. São Paulo: Cultrix, 1974. MCGARRY, K. O contexto dinâmico da informação. Brasília: Briquet de Lemos, 1999. MENEGHINI, R. SciELO project and the visibility of peripheral scientific literature. Química Nova, v.25, p.155-6, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/qn/v26n2/14980.pdf>. Acesso em: 5 jun. 2005. NATIONAL LIBRARY OF MEDICINE. Programs and services. Fiscal year 1974. Disponível em: <http:// www.nlm.nih.gov/hmd/manuscripts/nlmarchives/annualreport/1974.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2005. NEGHME, A. Operations of the Biblioteca Regional de Medicina (BIREME). Bull. Med. Libr. Assoc., v. 63, n.2, p.173-9, 1975. PACKER, A. L. ; CASTRO, E. (Eds). Biblioteca virtual en salud. São Paulo: BIREME, 1998. PACKER, A. L.; BIOJONE, M.R.; ANTONIO, I. TAKENAKA, R. M.; GARCIA, A. P.; SILVA, A. C.; MURASAKI, R. T.; MYLEK, C.; REIS, O. C.; HÉLIDA, C. R. F. D. SciELO: uma metodologia para publicação eletrônica. Ci. Inf. Brasília, v.27 n.2, p. 109-21, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ci/v27n2/scielo.pdf>. Acesso em: 2 abr. 2005. PARÍS, C. El animal cultural: la biología y cultura en la realidad humana. Barcelona: Editorial Crítica, 2000. RUFF, B. The World Health Organization’s role in strengthening health literature services in developing countries. In: SHARP, J. Selective libraries for medical schools in less developed countries. New York: The Rockfeller Foundation, 1980. p.157-67. [Working papers]. SONIS, A. Status and needs of the libraries of Latin American Medical Schools. In: BELLAGIO A. Selective libraries for medical schools in less developed countries. New York: The Rockfeller Foundation, 1980. p.45. [working papers]. THE NATIONAL ACADEMIES. Electronic scientific, technical and medical journal publishing and its implications. Report of a symposium 2004. Washington, DC: The National Academy of Sciences, 2004. Disponível em: <http://www.nap.edu/books/0309091616/html/>. Acesso em: 26 jun. 2005.

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SÍLVIA MECOZZI, Sem título, 1997

PACKER, A. L. La construcción colectiva de la Biblioteca Virtual del área de Salud. Interface Educ., v.9, n.17, p.249-72, mar/ago 2005. Comunic., Saúde, Educ. Se retoma el origen de la Biblioteca Virtual en el área de Salud (BVS) como producto de la evolución del programa de cooperación técnica en la información científica sobre la salud en América Latina y en el Caribe. Se analiza su conformación tecnológica como producto de la reestructuración de la comunicación científica promovida por la internet, destacando el perfeccionamiento conceptual y operacional del modelo de gestión colectiva de información y conocimiento en el espacio virtual y los desafíos de promover el acceso y uso democráticos de la información y del conocimiento actualizado en los procesos relacionados con la salud colectiva e individual. PALABRAS CLAVE: biblioteca virtual; bibliotecas médicas; sistemas de información; inteligencia colectiva.

Recebido para publicação em: 22/07/05. Aprovado para publicação em: 04/08/05.

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artigos

A nov a psiquiatria tr anscultur al e a nova transcultur anscultural as reformulação na rrelação elação entr entree as palavr palavras e as coisas*

Mari a Fernanda Tourinho Peres

1

Naomar Monteiro de Almeida Filho

2

PERES, M. F. T.; ALMEIDA-FILHO, N. The new transcultural psychiatry and the reformulation of the relationship between words and things. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.275-85, mar/ago 2005.

The so called “new transcultural psychiatry” proposes a reformulation of the relationship between words and things in the field of medicine. This reformulation consists of a polissemic reading of the illness experience. In this article our aim is to question this proposal and point out its limits, through a foucaultian perspective,. Considering the importance of discursivity in the theoretical work of the author, it is possible to radicalize the reformulation of the relationship between words and things; between discourse and its meaning and between speech and the speaking subject. Through the notion of discursive practice, discursivity gains materiality and produces forms of subjectivity. It is in the discursive order that the illness experience is initiated and that the illness subject is constructed; that illness emerges as an event and makes itself present as “disgovernance”. KEY WORDS: new transcultural psychiatry; illness experience; disgovernance; mental health; medical anthropology. A chamada “nova psiquiatria cultural” propõe uma reformulação na relação entre as palavras e as coisas no campo médico. Esta reformulação consiste em uma leitura polissêmica da experiência de adoecimento. Neste artigo nosso objetivo é, a partir de uma leitura foucaultiana, problematizar esta proposta e apontar seus limites. Considerando o enfoque dado à discursividade no trabalho teórico de Foucault, torna-se possível uma radicalização na reformulação entre palavras e coisas; entre discurso e sentido; entre fala e sujeito falante. Pela noção de prática discursiva, o discurso ganha materialidade e produz formas de subjetividades. É na ordem discursiva que se instaura a experiência de adoecimento e que é instituído o sujeito adoecido; que a doença surge como acontecimento e se faz presente como “desgoverno”. PALAVRAS-CHAVE: nova psiquiatria transcultural; experiência de adoecimento; desgoverno; saúde mental; antropologia médica.

Elaborado a partir de Peres (2001), tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, com bolsa do CNPq.

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1

Pesquisadora, Núcleo de Estudos da Violência, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. <mftperes@usp.br>

2

Reitor, Universidade Federal da Bahia; Professor titular, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Ba. <naomar@ufba.br> 1

Núcleo de Estudos da Violência – USP Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, travessa 4, Bloco 2 Cidade Universitária, São Paulo – SP 05508-900

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Introdução Encontramos na antropologia médica uma linha de estudos que se diz crítica das abordagens tradicionais sobre a relação entre doença mental e cultura. Essa linha de estudos, que se autodenomina “nova psiquiatria transcultural” tem como eixo comum a preocupação com a contextualização das categorias diagnósticas e a compreensão da experiência de adoecimento enquanto experiência singular-individual fortemente enraizada nos valores culturais, sistemas simbólicos e na organização sócio-política (Bibeau & Corin, 1994; Good, 1994; Littlewood, 1990; Fabrega, 1989; Young, 1982; Good & Good, 1982, 1980; Kleinman, 1977). Ou seja, pretende, em uma abordagem crítica do modelo biomédico ocidental, compreender a experiência de adoecimento como ponto de articulação entre indivíduo e coletividade. Desta forma, busca romper com o “etnocentrismo” das velhas abordagens, afirmando-se como sensível às diferentes realidades nas quais se desenvolvem os fenômenos do adoecer psíquico. O objetivo último desses estudos é tornar a prática médico-psiquiátrica mais eficaz, ao incorporar as concepções populares sobre doença no processo terapêutico. No entanto, é possível perceber na proposta da “nova psiquiatria transcultural” a perpetuação de certos elementos criticados e questionados no modelo biomédico ou, como dizem Good & Good (1980), na racionalidade da medicina contemporânea. Neste artigo iremos nos limitar a discutir a “reformulação na relação entre as palavras e as coisas” proposta por Good & Good (1980, p.171). Para os autores, só é possível uma reformulação na teoria e racionalidade médicas mediante uma reconceitualização fundamental entre a ordem das palavras e a ordem das coisas no campo médico. Esta reformulação consiste em trazer ao modelo biomédico a possibilidade de uma leitura polissêmica do adoecimento, na qual o sintoma (significante) não tenha como referente único a alteração biológica (significado), mas uma rede de significados culturalmente compartilhados. A partir da relação com a rede que compõe a cultura, os indivíduos atribuem sentido aos sintomas e vivem sua doença como uma experiência que se situa no limite entre o singular e o compartilhado, o individual e o coletivo. É esta experiência que constitui objeto de atenção médica, cujo trabalho é, para Good & Good, essencialmente hermenêutico. Trata-se de buscar, para além dos sintomas manifestos, o sentido que se constrói na articulação da história individual e do contexto sócio-cultural. Bibeau & Corin (Bibeau 1993; 1992; 1988; Bibeau & Corin, 1994; Corin 1993; 1989; Corin et al., 1993; 1990) vão além desta proposta ao tentarem articular nos sistemas de signos, significados e práticas (S/ssp) três dimensões da realidade: a experiência individual, o universo sóciosimbólico e o desenvolvimento histórico-social. Os autores também privilegiam o sentido em sua proposta, porque este é produzido não apenas em uma relação sincrônica com o contexto sócio-cultural, mas em uma relação diacrônica, considerando o contexto sócio-cultural em sua dimensão histórica. Desta forma, o sintoma ou a doença têm como referente um sentido que é individual e coletivo a um só tempo; sentido mobilizado pelo sujeito adoecido que, no entanto, é dado pela cultura, pela organização social, pelo devir histórico. O sujeito utiliza-se de sentidos e os transforma

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em sua experiência individual. Assim, tanto na concepção de rede semântica (Good & Good, 1980, 1982), como na teoria dos S/ssp, as narrativas sobre a doença constituem via de acesso aos sentidos que compõem o substrato cultural no qual as histórias individuais se desenvolvem (Corin, 1993). Ao afirmar que as narrativas individuais funcionam como “via de acesso” a sentidos compartilhados, Corin (1993) parte do pressuposto de que os sentidos são dados culturalmente - portanto, preexistentes aos sujeitos -, sendo a palavra o seu representante na linguagem. É preciso ir além da palavra dita e buscar os múltiplos sentidos que lhe são referentes. Ocorre, desta forma, um movimento interpretativo que parte da palavra (narrativa) para o sentido que ela porta. Cabem, neste momento, alguns questionamentos: o que há de novo nesta proposta? Ao propor uma leitura polissêmica a nova psiquiatria transcultural estabelece, realmente, uma reformulação na relação entre as palavras e as coisas no campo médico? Michel Foucault e as práticas discursivas Segundo Foucault (1981), até finais do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental: era em termos de semelhança que se realizavam as interpretações de textos, aorganização de símbolos, o conhecimento das coisas e a “arte de representá-las”. Neste sentido, tomando como base a semelhança, a linguagem operava como repetição. No jogo da semelhança, diz , estabelecese no mundo a ordem do mesmo, ou seja, uma relação de similitude estabelecida entre as coisas da natureza, desde a mais simples à mais complexa. O ponto para nós importante refere-se à relação entre a linguagem e as coisas, ou seja, o mundo pode ser comparado ao homem que fala: as coisas são reconhecidas pelas marcas em sua superfície, marcas deixadas por Deus como sinais que devem ser decifrados pelo homem. Esses sinais são a parte visível da semelhança existente entre as coisas, possibilidade mesma de podermos percebê-las. O mundo nos fala por meio desses signos, os quais significam à medida que se assemelham com o que indicam. As palavras são para as coisas como marcas presentes em sua superfície. Palavras são, assim, coisas a decifrar e devem ser estudadas como coisas da natureza. Há, no saber do século XVI, um cruzamento entre olhar e linguagem, uma ausência de distinção entre observado e relatado, entre o que se vê e o que se lê. Neste sentido, o saber constitui-se sob a forma do comentário: uma vez que a natureza é um tecido ininterrupto de palavras e marcas, de narrativas e discursos, o saber sobre a natureza é sempre um comentário de um texto primeiro que foi lido e interpretado (Foucault, 1981). Esta relação entre linguagem e coisa modifica-se na idade clássica: a linguagem deixa de ser a escrita material da coisa, passando ao regime dos signos representativos. No funcionamento da representação, a linguagem perde sua solidez de coisa inscrita no mundo. O signo, que era a relação entre palavra e coisa, passa a ter seu valor pela possibilidade de representar. O que mudou na segunda metade do século XVII foi o regime dos signos, ou seja, a relação do signo com seu conteúdo não está mais na ordem da coisa, não é mais um dado a ser decifrado. O signo é constituído apenas por um ato de

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conhecimento, e só então passa a significar. Formado por um ato de conhecimento, o signo é, no classicismo, a união de duas idéias: uma que representa e uma representada. No século XVIII estabelece-se nova descontinuidade, assinalando o fim da época clássica o que, segundo Foucault (1981), possibilitou o surgimento do Homem. O Homem aparece como medida de todas as coisas, não mais em relação de igualdade com os seres do mundo. Será agora um sujeito entre objetos, e logo sujeito e objeto: o que tenta compreender o mundo sob a forma de trabalho, linguagem e vida, e a si mesmo em sua finitude. A linguagem que o envolve lhe é exterior e com historicidade própria, assim como o trabalho e a vida. A relação da representação consigo mesma e as relações de ordem que ela permite determinar fora de toda medida quantitativa, passam agora por condições exteriores à própria representação, ou seja, a ligação da representação de um sentido à de uma palavra deve ser feita com referência a leis gramaticais de linguagem. A língua representa agora a partir da gramática. O fundamental deste acontecimento, que marca a nova descontinuidade, não se encontra no nível dos objetos visados, analisados e explicados, e nem na maneira de conhecer e racionalizar estes objetos, mas na relação da representação com o que nela é dado. O mundo é subjacente, exterior e mais profundo que a representação. Esta mudança na relação entre palavras e coisas se reflete na prática e no saber médicos: um novo objeto surge, assim como surgem um novo sujeito de conhecimento e uma nova prática. Em “O Nascimento da Clínica”, Foucault (1963) narra o nascimento da medicina moderna a partir de um acontecimento populacional por definição: a epidemia. A epidemia estabelece uma ruptura, marca o surgimento de um novo discurso, de uma nova prática e de um novo objeto no campo da medicina. Diz Foucault: “Novos objetos serão dados ao saber médico na medida em que e ao mesmo tempo que o sujeito de conhecimento se reorganiza, se modifica e se põe a funcionar de uma maneira diferente” (p.89). Há, desta forma, uma reformulação na relação entre as palavras e as coisas, nascendo o que pode ser chamado de “a racionalidade médica contemporânea” com seu “olhar calculador” que vê para além da superfície do corpo e do tempo presente (Foucault,1963). Esta racionalidade médica tem como suporte uma certa teoria da linguagem que vê no sintoma/signo o referente da doença: o sintoma/signo é o significante cujo significado é a doença. Aí reside a transformação discursiva; aí se encontra a nova mirada do médico clínico: o sintoma se torna signo; o sintoma é transformado em elemento significante. Na racionalidade clínica não há mais diferença essencial entre a doença, o sintoma e o signo, uma vez que signo e sintoma são o visível da doença e representam, na sucessão das manifestações patológicas, sua história natural; na racionalidade clínica a doença entra na ordem discursiva ao se dar ao olhar: o visto e o dizível correspondem; o ser da doença, representado nos sintomas, é traduzido para a linguagem descritiva (Foucault, 1963). O ato descritivo é, de pleno direito, uma tomada do ser e, inversamente, o ser não se dá a ver nas manifestações sintomáticas, portanto essenciais, sem se oferecer ao trabalho de uma linguagem

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A NOVA PSIQUIATRIA TRANSCULTURAL E... que é a palavra mesma das coisas(...) na clínica, ser visto e ser falado comunicam na verdade manifesta da doença de modo que todo o ser está lá. Não há doença para além do visível e, por conseguinte, do enunciável (...) E nesta tomada, se anuncia a ordem dos encadeamentos naturais; a sintaxe da linguagem, longe de perverter as necessidades lógicas do tempo, as restitui na sua articulação originária (...). (Foucault, 1963, p.95)

3 Utilizamos neste artigo a tradução proposta por AlmeidaFilho et al., 1999.

Temos aqui uma correspondência entre palavras e coisas, entre visível e dito, entre linguagem e mundo: a palavra (signo/sintoma) é a representação verbal da verdade da doença. Mas, de que doença se trata? Trata-se da doença biológica e orgânica, doença que deixa sua marca no corpo e que a anatomia patológica fez surgir e apresentou ao olhar clínico. É isto que Good & Good (1980) chamam de teoria empiricista da linguagem, teoria que pressupõe uma ligação entre palavras e coisas, entre linguagem e mundo, entre visível e enunciável. A palavra (sintoma/signo) porta um sentido que é a doença. O que a “nova psiquiatria transcultural” propõe é romper com esta relação trazendo para a leitura médica sentidos outros, que vão além da “realidade biológica”: sentidos que se formam no ponto de articulação entre o indivíduo e a coletividade; sentidos aos quais o sintoma faz referência; sentidos que o sujeito vivencia e exprime, ao adoecer e ao falar de sua doença. Desta forma, a leitura polissêmica busca, por meio do sentido, uma verdade por trás das palavras ditas, verdade não enunciada, mas presente, a ser desvelada pelo trabalho interpretativo que vê na cultura a possibilidade mesma desta polissemia: a verdade do sujeito e sua história de vida individual no contexto social e cultural. As palavras ditas sobre a doença e o adoecer trazem um sentido que vai além da alteração biológica e biomédica, que se constrói no ponto de articulação indivíduo–contexto e que os sintomas apontam na experiência de adoecimento. Encontramos aí um novo objeto, proposto pela “nova psiquiatria transcultural”: a experiência de adoecimento, a enfermidade (illness3). Os sintomas e seu correlato na linguagem – a narrativa – fazem referência a uma doença que é mais do que alteração biológica, uma enfermidade (illness) como experiência individual e produto cultural. Desta forma, temos uma abertura do sentido no campo médico: a verdade da doença - a ser buscada no trabalho interpretativo que constitui a clínica - é a verdade do corpo doente, do sujeito e sua história, dos códigos culturalmente compartilhados, da organização social e do processo histórico que os engendra. Com a nova psiquiatria transcultural, ocorre uma complexificação do objeto “doença” como abertura para os múltiplos sentidos que esta experiência porta. Entretanto, a relação entre palavras e coisas não é efetivamente reformulada: apesar da abertura para uma leitura polissêmica, ainda temos uma palavra que carrega um sentido que lhe é preexistente, um sentido dado culturalmente; uma palavra que é representação da verdade da doença. É possível ir além da abertura e pensar a transformação radical desta relação? Será possível pensar em um sentido instituído pela discursividade? Como pensar em um trabalho interpretativo que busca

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analisar não o sentido a que a palavra faz referência, mas o sentido como seu produto? São estas as questões que tentaremos responder, seguindo as “pistas foucaultianas”. O sujeito adoecido produto da discursividade Em “A Arqueologia do saber” Foucault (1995a, p.61-2) diz: (...) as diversas modalidades da enunciação, em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão (...) renunciaremos a ver no discurso um fenômeno de expressão – a tradução verbal de uma síntese realizada em outro lugar (...) – o discurso não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, que diz (...).

Nesta passagem encontramos algumas pistas importantes para chegarmos à problematização da relação entre palavra e sentido: a) o discurso não é um fenômeno de expressão e não se encontra relacionado à unidade de um sujeito; b) o discurso não é a manifestação de um sujeito que pensa. Temos aqui uma implicação importante daquilo que Foucault chama de formas de subjetivação e a conseqüente leitura da subjetividade humana (Adorno, 2000). Só com esta categoria em mente é possível desvincular o discurso de um sujeito universal, sujeito de razão; só assim é possível pensar neste discurso anônimo (Adorno, 2000). Anônimo, posto que não é produto de um sujeito que pensa e fala, mas, sim, uma materialidade que institui o sujeito. Foucault afirma em “Le sujet et le pouvoir” (1994a) que a preocupação central de sua obra foi o tema do sujeito. Não do sujeito transcendental, sujeito de razão apriorísticamente dado, mas o sujeito produzido a partir dos jogos de verdade e poder e também das relações consigo mesmo. Há um deslocamento em seu trabalho teórico que descentra a discussão do sujeito para “os diferentes modos de subjetivação do ser humano” ou os “diferentes modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos” (Foucault, 1994b, p.223). Há nesta passagem um interessante jogo com as palavras “subjetivação” e “objetivação”: o ser humano é transformado em sujeito a partir de sua inscrição em processos objetivantes; trata-se, neste caso, de subjetividades objetivadas por práticas discursivas e não discursivas, pelo engendramento deste ser humano em relações de saber-poder. Segundo Birman (2000, p.81), ao falar em formas de subjetivação Foucault insiste ...na dimensão de produção de sujeito, que não mais seria origem e invariante, mas destino e produção, destino resultante de um longo e tortuoso processo de modelagem, historicamente regulado. Isso implica dizer que não existiria o sujeito, rigorosamente falando, mas apenas formas de subjetivação.

Foucault nos apresenta, então, três modos de subjetivação: as práticas

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divisórias, a classificação científica e as tecnologias de si (Foucault, 1994c; Rabinow, 1999, p.32-5). As práticas divisórias e a classificação científica constituem-se nas relações saber-poder que produzem subjetividades objetivadas, sujeitos que são produzidos a partir do engendramento na rede que se forma entre as formas de saber e as táticas de poder. As tecnologias de si instituem formas de subjetividade a partir da relação que o sujeito estabelece consigo mesmo, a gerência de si. O sujeito é produto da relação entre práticas discursivas e não discursivas, produto, enfim, da relação que estabelece de si para consigo. Aquele sujeito “pura instância fundadora de racionalidade” é olhado criticamente e sua morte é anunciada em “As palavras e as coisas” (Foucault, 1981). Há, em Foucault, uma pulverização do sujeito, uma multiplicidade de sujeitos que são formas de subjetividades. Temos então um discurso anônimo, discurso que institui formas de subjetividades. Mas não é só. No argumento de Foucault, o discurso também não se constrói a partir de um objeto natural, preexistente à ordem discursiva. Os objetos, assim como os sujeitos, são instituídos pela ordem discursiva, isto é, pelos enunciados que os apresentam. O discurso, nos diz Foucault (1995b, p.48) “(...) não é uma simples superfície de inscrição aonde os objetos se depositam e se superpõem”. É isto o que ele nos mostra na “História da Loucura” (1995b): a construção de um objeto - doença mental - e de um sujeito - o doente mental - a partir de um feixe de relações entre enunciados e práticas institucionalizadas. Daí sua noção de práticas discursivas. Tomar o discurso enquanto prática é considerá-lo instância de construção de sujeitos e objetos que são a positividade do discurso e seu produto (Foucault, 1971, p.71-2). São esses sujeitos/objetos que dão a unidade do discurso. Vejamos então uma primeira conseqüência deste discurso tomado enquanto prática: trata-se de uma “reformulação” na relação entre palavras e coisas, discurso e sentido, fala e sujeito falante. O discurso não é aqui o lugar de representação das coisas e nem via de acesso para o sujeito que fala; o discurso é prática que constrói esse sujeito/objeto no momento mesmo de sua enunciação; sujeito/objeto que dá a unidade do discurso e deve ser buscado em sua materialidade de coisa dita. Diz Foucault (1995c, p.56): (...) As palavras e as coisas é o título – sério – de um problema; é o título – irônico – do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os dados e revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferente que consiste em não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações) mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais do que utilizar esses signos para designar coisas (...) é esse mais que é preciso fazer aparecer e é preciso descrever.

E o que é esse “mais” senão a especificidade das práticas discursivas, seus produtos como formas de subjetividade e objetos múltiplos?

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Conclusão: as narrativas populares e o saber das pessoas Para concluir, lançamos uma questão: de que forma este discurso que produz formas de subjetividade pode ser trabalhado no sentido de pôr em evidência a “especificidade cultural” de discursos populares sobre o adoecimento mental? Em “A História da Sexualidade” Foucault demonstra o lugar central ocupado pela medicina na construção da moralidade e no estabelecimento da cultura do cuidado de si. Os modos de relação de si para consigo implicam uma relação de combate, de enfrentamento das paixões visando a liberdade. Ser livre e ter uma conduta ética e moral é ser livre com relação a si mesmo, não se deixar dominar e escravizar pelas paixões, mas sim dominá-las (Foucault, 1994a, p.63). A relação de si para consigo estabelece-se na relação com os outros e com o código moral, explicitamente formulado em doutrinas e saberes institucionalizados, e nas relações habituais dos indivíduos. Em que consiste esse código moral, normativo, senão na cultura? A cultura é, aqui, apresentada sob a forma de práticas morais, jogos de poder e verdade. O discurso sobre a doença tanto pode ser expresso sob a forma de um saber específico, como sob a forma do que se chama de “conhecimento popular”, o saber das pessoas (Foucault, 1999). Em ambos os casos, trata-se de prescrições morais que expressam, a partir de sua negatividade, o correto modo de se relacionar consigo para se conduzir moralmente. Para Foucault (1999, p.12), o saber das pessoas são os “(...) saberes sujeitados (...) desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados (...) abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos”. É o saber daqueles que falam a partir do engendramento nas relações saber-poder, e, neste sentido, nos diz Foucault, “(...) não é um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam” (Foucault, 1999, p.12); é, neste sentido, um saber de resistência. Ou seja, o saber das pessoas é o saber enunciado pelo sujeitoproduto, pelas formas de subjetividade: sujeito adoecido, sujeito-delinqüente. A partir desta noção de “saber das pessoas”, as narrativas populares podem ser consideradas como parte das artes de governar (Foucault, 1995b). Como? Se consideramos que aqueles que falam sobre a doença do outro fazem-no a partir de sua inserção num feixe de relações que estabelecem consigo, com as coisas e com os outros, fazem-no a partir de sua própria inserção em redes de saber-poder e que, ao falarem do outro, os sujeitos fazem-no a partir desta inscrição no espaço normativo, concluímos que aquele que fala é também um sujeito, no sentido foucaultiano, produto de práticas discursivas e não discursivas e que, ao falar do outro, reproduz estas práticas e institui formas de subjetividade. Ao falar do outro, os sujeitos refletem sobre si, problematizam a própria existência e apresentam, pelo negativo, aquilo que constitui os limites do espaço normativo. Uma vez que falam a partir desta posição de sujeito, é possível compreender a afirmação de Foucault (1999) de que “(...) o saber das pessoas são saberes sem senso comum”, ou seja, são saberes produzidos na relação entre práticas discursivas e não discursivas. Pensamos, como Good & Good (1980), que é importante uma reformulação na relação entre as palavras e as coisas no campo médico. Foi com isto em

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mente que trouxemos Foucault para o debate. Entretanto, chegamos a um caminho que toma direção inversa: o discurso não representa, mas institui sujeitos e objetos. Se consideramos as narrativas populares, o saber das pessoas, como lugar de inscrição do sujeito adoecido, temos no horizonte uma leitura dessas narrativas que não busca o sentido ao qual ela faz referência nem a verdade do sujeito que fala, mas o sujeito que surge desta enunciação a partir de um acontecimento que instaura uma nova ordem discursiva. O acontecimento é a crise, ruptura que deixa marcas na vida. Não se trata, contudo, de tomar esta crise como ocasião para reconstruir um passado e buscar suas origens, mas aceitá-la como momento de instauração de algo novo: este sujeito é outro em seu modo de viver desgovernado. A partir desta crise/ ruptura instaura-se a nova ordem discursiva: no discurso sobre o doente e sua doença – saber das pessoas - institui-se um sujeito marcado pelo desgoverno de si, por uma vida alterada na relação que estabelece consigo, com os outros e com as coisas. Assim se constrói uma experiência de adoecimento que é individual e coletiva em sua positividade desgovernada, experiência que se efetiva no momento mesmo de sua enunciação. Neste sentido, propomos a categoria desgoverno para problematizar o discurso sobre a doença mental. Ser governado é passar a ser sujeito ético e moral e o desgoverno implica negatividade ética, descontrole sobre si, sobre as coisas e sobre os outros. Pensar a doença mental como desgoverno é, assim, tomá-la a partir das relações que o “doente” estabelece consigo, com os outros e com as coisas, relações que se afastam da norma socialmente estabelecida, inseridas na categoria “anormal” pelo saber das pessoas. A categoria desgoverno permite pensar a experiência de adoecimento como uma experiência normativa, posta no espaço que se situa entre o indivíduo e a coletividade. Se continuamos a seguir as “pistas foucaultianas” encontramos mais um elemento para compreender a experiência de adoecimento: a experiência de adoecimento institui, na ordem discursiva, o sujeito adoecido, desgovernado. Temos aqui um sujeito que é produto e não origem. Desta forma, seguir as “pistas foucaultinanas” em uma leitura de discursos populares sobre a doença mental implica repensar a relação entre palavras e coisas, discurso e sentido, fala e sujeito falante. Referências ADORNO, S. Dor e sofrimento, presenças ou ausências na obra de Foucault. In: COLÓQUIO FOUCAULT E DELEUZE: o que estamos fazendo de nós mesmos? Campinas, 22 a 24 de novembro de 2000. (mimeogr.) ALMEIDA-FILHO, N.; COELHO, M.T. A. D.; PERES, M. F. T. O conceito de Saúde Mental. Rev. USP, v.43, p.100-25, 1999. BIBEAU, G..; CORIN, E. Culturaliser l’épidémiologie psychiatrique. Les systèmes de signes, de sens et d’action en santé mentale. In: CHAREST, P.; TRUDEL, F.; BRETON, Y. (Dir). Marc-Adélard Tremblay ou la construction de l’anthropologie québécoise. Quebec: Presses de L‘Université Laval, 1994. p.3-44. BIBEAU, G. New and old trends in the interface between ethnography and psychiatry. In: NATIONAL MEETING ON MEDICAL ANTHROPOLOGY, 1., 1993. Salvador. November 3-6, 1993. (mimeogr.) BIBEAU, G. Hay una enfermidad en las Americas? Outro camino de la antropologia médica para nuestro

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PERES, M. F. T.; ALMEIDA FILHO, N. La nueva psiquiatría transcultural y la reformulación en la relación entre las palabras y las cosas. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.275-85, mar/ago 2005. La llamada “nueva psiquiatría transcultural” propone una reformulación en la relación entre las palabras y las cosas en el campo médico. Esta reformulación consiste en una lectura polisémica de la experiencia de enfermedad. En este artículo, nuestro objetivo es, a partir de una lectura foucaultiana, problematizar esta propuesta y apuntar sus limitaciones. Si se considera el enfoque que se da a la discursividad en el trabajo teórico de Foucault, es posible radicalizar la reformulación entre palabras y cosas; entre el discurso y el sentido; entre habla y sujeto hablante. A través de la noción de práctica discursiva el discurso adquiere materialidad y produce formas de subjetividad. Es en el orden discursivo que se instaura la experiencia de enfermedad y que se instituye el sujeto enfermo; que la enfermedad surge como un acontecimiento y se hace presente como “desgobierno”. PALABRAS CLAVE: nueva psiquiatría transcultural; experiencia de enfermedad; desgobierno; salud mental; antropología médica.

Recebido para publicação em: 12/04/05. Aprovado para publicação em: 13/06/05.

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SÍLVIA MECOZZI, Série Echinodiscus, 2003

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Acolhimento e vínculo: práticas de integralidade na gestão do cuidado em saúde em grandes centros urbanos Márcia Constância Pinto Aderne Gomes

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Roseni Pinheiro

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GOMES, M. C. P. A; PINHEIRO, R. Reception and attachment: integral practices in health care administration in large urban centers. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.287-301, mar/ago 2005.

The Family Health strategy, main proposal for reorganizing the health care model, is politically, institutionally and economically supported by the State, as an alternative for the consolidation of the Unified Health System’s principles. The proposal’s expansion and implementation in large urban centers has faced many difficulties, due to complex social, political and economic contexts involving the families residing in these territories. These difficulties have been largely discussed by diverse Public Health specialists. This article analyses the uses and meanings of the terms “integral health care, attachment and reception”, identifying them as strategic elements in health practices in integral care programs, and in constructing people’s right to health as a citizenship right. KEY WORDS: reception; attachment; integral health care; family health. A estratégia da Saúde da Família é a principal proposta de reorganização do modelo de atenção à saúde, sendo apoiada político, institucional e economicamente pelo Estado, como alternativa de consolidação dos princípios do Sistema Único de Saúde. A expansão e implementação dessa proposta, em grandes centros urbanos, tem encontrado dificuldades, tendo em vista a complexidade dos contextos sociais, políticos e econômicos que envolvem as famílias residentes nesses territórios, sendo objeto de discussão de diferentes especialistas no campo da Saúde Coletiva. Este artigo faz uma análise dos usos e sentidos atribuídos aos termos integralidade, vínculo e acolhimento, no que concerne à gestão do cuidado em saúde, identificando essas estratégias como elementos das práticas de saúde em programas de atenção integral e da construção do direito à saúde como direito de cidadania. PALAVRAS-CHAVE: acolhimento; vínculo; atenção integral à saúde; saúde da família.

1 Supervisora Operacional, Coordenação da Saúde da Comunidade, Secretaria Municipal de Saúde, Rio de Janeiro, RJ. <marconstanci@hotmail.com> 2

Professora Visitante, Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Coordenadora, Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (LAPPIS-UERJ), Rio de Janeior, RJ. <rosenisaude@uol.com.br> 1

Rua Rosa e Silva, 60, bl. 7, apto. 208 Grajaú – Rio de Janeiro, RJ CEP: 20541-330

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GOMES, M. C. P. A; PINHEIRO, R.

Introdução A nova institucionalidade da saúde tem seus fundamentos no artigo 198 da Constituição Federal de 1988, que define o Sistema Único de Saúde (SUS). Suas ações e serviços integram uma rede regionalizada e hierarquizada; constituem um sistema único, organizado, descentralizado, com direção única em cada esfera de governo, prestando atendimento integral integral, a partir da priorização de atividades preventivas (sem prejuízo das assistenciais) e com participação popular popular. No início da década de 1990 foi criado o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), pelo Ministério da Saúde. A missão do PACS era reduzir a mortalidade infantil e materna mediante oferta, às populações rurais e de periferia, de procedimentos simplificados de saúde na lógica de medicina preventiva. O objetivo era desenvolver a capacidade da população para cuidar de sua própria saúde, transmitindo informações sobre práticas preventivas, por meio de agentes comunitários (Viana & Dal Poz, 1998, p.10). No ano de 1994 o Ministério da Saúde criou o Programa de Saúde da Família PSF), entendido como uma proposta estruturante do Sistema de Atenção à Saúde, com objetivo de: colaborar decisivamente na organização do Sistema Único de Saúde e na municipalização, implementando os princípios fundamentais de universalização, descentralização, integralidade e participação comunitária (...). o PSF prioriza as ações de proteção, promoção à saúde dos indivíduos e da família, tanto adultos quanto crianças, sadios ou doentes, de forma integral e contínua. (Brasil, 1994, p.10-1)

Desde sua institucionalização, o Programa de Saúde da Família vem assumindo relevância no discurso político, institucional e social no âmbito do Ministério da Saúde (Souza, 2001), com a implementação de mecanismos de alocação de recursos e outros dispositivos de financiamento. A partir de 1998, o programa é concebido pelo conjunto dos atores institucionais (em âmbito nacional, estadual e municipal) como importante norteador para o desenvolvimento de sistemas locais de saúde, ganhando status de estratégia de reorientação assistencial (Souza, 2001). Atualmente a estratégia da Saúde da Família encontra-se em expansão em grandes centros urbanos. Existe grande expectativa de que o PSF possa vir a ser a reestruturação da atenção básica, sobretudo nas capitais brasileiras (Caetano & Dain, 2002; Campos et al., 2002; Favoretto & Camargo Jr., 2002; Mattos, 2002). Estes autores identificaram alguns fatores que dificultam sua implantação nas áreas metropolitanas, como por exemplo: falta de financiamento, despreparo e qualificação insuficiente dos profissionais para atuar no PSF, formato padrão/rígido para composição das equipes sem respeitar as particularidades locais, insuficiência de mecanismos de relação do PSF com outros serviços, precariedades das redes ambulatoriais e hospitalares, dinâmica urbana complexa, violência urbana, tráfico de drogas e armas e dificuldade da interação de novos saberes e de novas

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práticas para ações coletivas e sociais no âmbito do PSF. Um dos principais motivos para o PSF apresentar transformações positivas e significativas na reorganização da atenção básica, segundo Pinheiro (2001), está no fato de o programa buscar, em seus objetivos e suas metas institucionais, políticas e sociais, a centralidade de suas ações na integralidade da atenção e do cuidado à família. Para tanto, privilegiou-se a equipe de profissionais como importante elemento para a materialização dessas metas e objetivos, para os quais foram criados mecanismos de fomento e incentivo à realização de atividades voltadas para formação, capacitação e remuneração dos integrantes da equipe. Tais atividades consistem em propiciar condições favoráveis ao estabelecimento de um novo patamar de relação entre profissionais, gestores e famílias, de modo a garantir o princípio da integralidade (Pinheiro, 2001). Nesse sentido, "a integralidade pode ser entendida como uma ação resultante da interação democrática entre atores no cotidiano de suas práticas na oferta do cuidado de saúde, nos diferentes níveis de atenção do sistema" (Pinheiro, 2002, p.15). Não se quer negar, com isso, a existência de obstáculos concretos na construção do SUS, sobretudo os desafios para garantir a integralidade como direito a serviços no sistema de saúde brasileiro. Porém, vêm sendo identificados avanços importantes na reorganização de serviços que apontam o acolhimento e o vínculo (Teixeira, 2003; Lopez et al., 2002; Malta, 2001; Franco et al., 1999; Merhy, 1997) como diretrizes operacionais para a materialização dos princípios do SUS – em particular a integralidade, universalização e eqüidade em saúde (Brasil, 2002; Pinheiro, 2002; Cecílio, 2001). Considerando o exposto, este artigo busca analisar os usos e sentidos atribuídos aos termos integralidade, vínculo e acolhimento, identificando essas estratégias como elementos das práticas de saúde em programas de atenção integral em grandes centros urbanos. Atenção e cuidado em saúde: integralidade – acolhimento – vínculo Partimos do pressuposto de que existem vários sentidos atribuídos para a integralidade, e partilhamos da idéia de Mattos (2001) de que esse princípio do SUS, definido no texto constitucional, deva constituir uma bandeira de luta, repleta de valores que devem ser defendidos, e cujo conceito continua em construção. Todavia, torna-se necessário sistematizar os conhecimentos que se associam a esse entendimento, tomando como guia o ensaio desse autor, que reúne três conjuntos de sentidos sobre a integralidade: a integralidade como traço da boa medicina, a integralidade como modo de organizar as práticas e a integralidade como respostas governamentais a problemas específicos de saúde. No primeiro conjunto de sentidos, a integralidade, um valor a ser sustentado, um traço de uma boa medicina, consistiria em uma resposta ao sofrimento do paciente que procura o serviço de saúde, e um cuidado para que ela não seja a redução ao aparelho ou sistema biológico deste, pois tal

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GOMES, M. C. P. A; PINHEIRO, R.

redução cria silenciamentos. A integralidade está presente no encontro, na conversa, na atitude do médico que busca prudentemente reconhecer, para além das demandas explícitas, as necessidades dos cidadãos no que diz respeito à sua saúde. A integralidade está presente também na preocupação desse profissional com o uso das técnicas de prevenção, tentando não expandir o consumo de bens e serviços de saúde, nem dirigir a regulação dos corpos. No segundo conjunto de sentidos, a integralidade, como modo de organizar as práticas, exigiria uma certa “horizontalização” dos programas anteriormente verticais, desenhados pelo Ministério da Saúde, superando a fragmentação das atividades no interior das unidades de saúde. A necessidade de articulação entre uma demanda programada e uma demanda espontânea aproveita as oportunidades geradas por esta para a aplicação de protocolos de diagnóstico e identificação de situações de risco para a saúde, assim como o desenvolvimento de conjuntos de atividades coletivas junto à comunidade. Por último, há o conjunto de sentidos sobre a integralidade e as políticas especialmente desenhadas para dar respostas a um determinado problema de saúde ou aos problemas de saúde que afligem certo grupo populacional. A Política Nacional de Aids é a que mais se aproxima do princípio, pois apresenta perspectivas preventivas e assistenciais, respeitando os direitos dos que vivem com a doença e assumindo a responsabilidade de distribuir gratuitamente os anti-retrovirais. Em que pese a concordância de que a integralidade continua sendo um conceito em construção, realizamos um exercício teórico de formulação de uma definição operatória de integralidade como modo de atuar democrático, do saber fazer integrado, em um cuidar que é mais alicerçado numa relação de compromisso ético-político, de sinceridade, responsabilidade e confiança (Pinheiro & Mattos, 2001, 2003; Merhy, 1997). Entende-se o sujeito como ser real, que produz sua história e é responsável pelo seu devir (Ayres, 2001). Respeita-se os saberes das pessoas (saber particular e diferenciado), saberes históricos que foram silenciados e desqualificados (Foucault, 1999), e que, neste estudo, representam uma atitude de respeito que possa expressar compromisso ético nas relações gestores/profissionais/usuários. Desta forma, integralidade existe em ato e pode ser demandada na organização de serviços e renovação das práticas de saúde, sendo reconhecida nas práticas que valorizam o cuidado e que têm em suas concepções a idéiaforça de considerar o usuário como sujeito a ser atendido e respeitado em suas demandas e necessidades (Pinheiro, 2001). Sua visibilidade se traduz na resolubilidade da equipe e dos serviços, por meio de discussões permanentes, capacitação da equipe, utilização de protocolos e na reorganização dos serviços. Como exemplo, tem-se o acolhimento/usuário-centrado (Franco et al., 1999) e a democratização da gestão do cuidado pela participação dos usuários nas decisões sobre a saúde que se deseja obter (Pinheiro, 2003). Isto posto, podemos reconhecer, nas estratégias de melhoria de acesso e desenvolvimento de práticas integrais, o acolhimento, o vínculo e a responsabilização como práticas integrais (Pinheiro, 2002). O acolhimento, enquanto diretriz operacional, propõe inverter a lógica da organização e do funcionamento do serviço de saúde (Franco et al., 1999), e que este seja

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organizado de forma usuário-centrado. Para tal fim, os autores partem dos seguintes princípios: 1 Atender a todas as pessoas que procuram os serviços de saúde, garantindo a acessibilidade universal. Assim, o serviço de saúde assume sua função precípua, a de acolher, escutar e dar uma resposta positiva, capaz de resolver os problemas de saúde da população. 2 Reorganizar o processo de trabalho, a fim de que este desloque seu eixo central, do médico para uma equipe multiprofissional – equipe de acolhimento –, que se encarrega da escuta do usuário, comprometendo-se a resolver seu problema de saúde. 3 Qualificar a relação trabalhador-usuário, que deve dar-se por parâmetros humanitários, de solidariedade3 e cidadania. Solidariedade em Sociologia: Durkheim (1893) distinguiu a solidariedade mecânica de solidariedade orgânica. A mecânica é própria de uma sociedade onde os papéis são pouco diferenciados. A solidariedade orgânica é própria de papéis muito diferenciados, nos quais a complementaridade de cada um em relação ao outro exige colaboração ativa. Acreditamos que o texto fala de solidariedade orgânica. 3

(Franco et al.., 1999, p.347)

Os mesmos autores defendem o acolhimento como dispositivo para interrogar processos intercessores que constroem relações nas práticas de saúde, buscando a produção da responsabilização clínica e sanitária e a intervenção resolutiva, reconhecendo que, sem acolher e vincular, não há produção dessa responsabilização (Franco et al., 1999). Merhy (1994) propõe refletir como têm sido nossas práticas nos diferentes momentos de relação com os usuários. O autor afirma que uma das traduções de acolhimento é a relação humanizada, acolhedora, que os trabalhadores e o serviço, como um todo, têm de estabelecer com os diferentes tipos de usuários. Em nossa busca prévia pelos conceitos atribuídos aos termos acolhimento e vínculo, recorremos a alguns dicionários de língua portuguesa, a fim de verificar concordância, além de observar o nexo lexical. No Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, o termo acolhimento está relacionado ao “ato ou efeito de acolher; recepção, atenção atenção, consideração consideração, refúgio, abrigo abrigo, agasalho”. E acolher significa: dar acolhida ou agasalho a; hospedar; receber receber: atender atender; dar crédito a; dar ouvidos a; admitir, aceitar tudo o que aceitar; tomar em consideração consideração; atender a”. Já vínculo é “tudo ata ata, liga ou aperta; ligação moral moral; gravame, ônus, restrições; relação relação, subordinação; nexo, sentido”. No Dicionário Houaiss, o termo acolhimento não existe, porém acolher oferecer ou obter refúgio significa “oferecer refúgio, proteção ou conforto físico físico. Ter ou receber (alguém) junto a si si. Receber, admitir, aceitar aceitar. Dar ” . Já vínculo é definido como “aquilo crédito crédito, levar em consideração consideração” que ata, liga ou aperta: que estabelece um relacionamento lógico ou de dependência, que impõe uma restrição ou condição”. É interessante notar que os sentidos atribuídos às palavras não se correlacionam diretamente às questões de saúde, mas podemos identificar atenção alguns de seus significados, como: “atenção atenção, consideração consideração, abrigo abrigo, receber, atender, dar crédito a, dar ouvidos a, admitir, aceitar, tomar em consideração, oferecer refúgio, proteção ou conforto físico, ter ou receber alguém junto a si ” , atributos de atenção si”

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integral à saúde, enfim, da integralidade (grifos nossos). Acreditamos que os valores implícitos nessas palavras nos permitem realizar diferentes aproximações com as distintas produções sobre o tema, em particular com os documentos institucionais, como aqueles produzidos pelo Ministério da Saúde que descrevem os objetivos do PSF e destacamos: a definição de responsabilidades entre serviços e população, a Humanização das práticas da saúde, o estabelecimento de um vínculo entre profissionais de saúde e a população, o estímulo à organização da comunidade para o exercício do controle social e o reconhecimento da saúde como direito de cidadania (Brasil, 1997) (grifos nossos). Reconhecemos que existe uma vasta produção acerca da categoria vínculo no âmbito da psicologia social (psicologia social e comunitária), porém, optamos por uma releitura no campo da política e gestão, na qual verifica-se escassez quanto ao protagonismo dos gestores na responsabilização da interação entre os sujeitos na organização das práticas de cuidado. Assim, para melhor entender os nexos constituintes entre as idéias sobre vínculo no contexto da saúde, recorremos às contribuições de Victora et al. (2000), segundo as quais o estudo do conjunto específico de vínculos entre um conjunto específico de pessoas pode ser usado para interpretar o comportamento social das pessoas envolvidas. A esse conjunto dá-se o nome de rede de relações sociais sociais. O entendimento de como elas se organizam, como os intercâmbios são realizados e as formas de troca socialmente aceitáveis são importantes para a compreensão da estrutura social na qual as redes se realizam. As autoras afirmam que, para o estudo da rede de relações, é importante observar: a) o que é trocado, isto é, o conteúdo dos vínculos (bens materiais, drogas, favores sexuais, relações de amizade, cumplicidade, hostilidade); b) com quem é trocado, ou seja, se são relações horizontais que se dão dentro de uma mesma geração ou entre pessoas com o mesmo status do grupo, ou são relações verticais do tipo patrão e empregado, entre pais e filhos; c) o quanto é trocado, isto é, a densidade dos vínculos, se estreitos ou fluidos, contínuos ou eventuais. A ausência de ruptura entre quem oferece ou presta serviço e quem o recebe, a tendência constante para diminuir o fosso, personalizar a relação é o que caracteriza o vínculo comunitário, segundo Godbout (1999, p.89)4. O autor enfatiza “o fato de que o princípio e o motor da ação têm origem no vínculo existente entre os membros da organização ou entre a associação da pessoa ajudada, a qual, aliás, muito raramente é chamada de ‘cliente’”. Talvez essa afirmação nos ajude a compreender a aposta bem-sucedida de ter o agente comunitário de saúde como promotor do elo, portanto o vínculo entre o PSF e a comunidade, justamente por ser morador do mesmo local das famílias, fazendo parte de uma rede de relações, com atributos de solidariedade e liderança e conhecimento da realidade social – requisitos para sua seleção (Brasil, 1997, 2000). Essa iniciativa talvez diminua os efeitos da assertiva de Godbout (1999) à

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4 Em O espírito da dádiva, o autor mostra que toda a sociedade vive da dádiva e necessita dessa “graça” para manter a vida em suas redes. Demonstra que Papai Noel, alcoólicos anônimos, doações de órgãos e de sangue, serviços prestados e outros têm a dádiva em comum. Demarca posição, não tolerando que todas as coisas e todos os serviços se produzam de forma automática, impessoal, e que eles podem se manifestar fora das leis do mercado e das regras do Estado.


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substituição de vínculos comunitários, assumidos por relações de parentesco, vizinhança e amizade (vínculos diretos) por um conjunto de "serviços" transferidos a "empregados" do setor público ou organismos especializados nesses serviços e subsidiados pelo Estado. Ele afirma que esta "liberação" do vínculo comunitário estaria transformando a democracia em um mecanismo quase mercantil, pois estaríamos pagando com nossos impostos, a indivíduos que seriam pagos para cumprir o 'trabalho social'. Silva et al. (2004) utilizaram figuras de linguagem – metáforas (elo, laço e nó) - para simbolizar as maneiras como o agente comunitário de saúde se coloca diante de seus saberes e de suas práticas, na pesquisa em que foi explorada a tradução e o estabelecimento de processos comunicativos entre equipe de saúde e comunidade como tarefa primordial do agente comunitário e identificaram que: Esta tradução pode fazer desse sujeito elo ou laço . Elo na medida em que serve apenas como veículo de informações; laço, quando consegue estabelecer um território comum onde os sujeitos e seus saberes interagem e dialogam, gerando ações comuns que sustenta a existência desse espaço de encontros. ... há momentos em que o agente comunitário se encontra tão preso em sua própria corrente, que os elos se enroscam conformando um nó. Isso pode ser percebido através de sua formação para o trabalho, gerando entraves no fluxo de interações entre equipe de saúde e comunidade. (Silva et al., 2004, p.88-9)

Por outro lado, Coutinho (1999a) ressalta Gramsci em sua discussão sobre democracia, que não se converte em cultura política se não é partilhada intersubjetivamente pelos cidadãos, não se configurando como valor universal e realidade prática. Sendo assim, a equipe de PSF pode desempenhar papel estratégico na democracia, pois estaria a serviço de um sistema democrático global, com programas voltados para os interesses mais gerais da comunidade (Rouanet, 2003). A noção de vínculo nos faz refletir sobre a responsabilidade e o compromisso (Merhy, 1994). Assim sendo, ela está em consonância com um dos sentidos de integralidade. Afirma o autor: criar vínculos implica ter relações tão próximas e tão claras, que nos sensibilizamos com todo o sofrimento daquele outro, sentindo-se responsável pela vida e morte do paciente, possibilitando uma intervenção nem burocrática e e nem impessoal. (Merhy, 1994, p.138)

Esta definição apresenta interseções com os sentidos atribuídos por Mattos (2001), que se fazem reconhecidamente inovadores enquanto dispositivos institucionais no cotidiano das práticas estudadas por Pinheiro (2002). Tal definição encontra consonância com o relatório da 10ª CNS e com os documentos do Ministério da Saúde que tratam de vínculo. Poderíamos dizer que as diretrizes operacionais do PSF orientam para novo tipo de cuidado e

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direcionam para que haja responsabilização e compromisso no ato do vínculo, e que esse desejo é compartilhado pela Sociedade Civil 5 . Na visão de Gramsci, “sociedade civil é uma arena privilegiada da luta da classe, uma esfera do ser social onde se dá uma intensa luta pela hegemonia; e, precisamente por isso, ela não é o ‘outro’ do Estado, mas juntamente com a ‘sociedade política’ ou o ‘Estado-coerção’ – um dos seus inelimináveis momentos constituitivos” (Coutinho, 1999b).

5

Saúde da Família em grandes centros urbanos: poder – democracia – cidadania A estratégia de expansão de cuidados básicos de saúde está voltada a grupos populacionais sob maior risco social e expostos a precárias condições sanitárias, e que carrega em seu bojo a expectativa de transformação do modelo assistencial (Caetano & Dain, 2002). Em 2000, respondia apenas por um terço dos habitantes do país, em função de sua implantação predominante em municípios de pequeno porte, enquanto aqueles de maior população tiveram pouca adesão. Com o propósito de mudar essa situação, foi desenvolvido um projeto para o investimento nas grandes cidades e centros urbanos com o objetivo de estimular a implantação da Estratégia nesses cenários. O Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família PROESF é uma iniciativa do Ministério da Saúde, apoiada pelo Banco Mundial - BIRD, voltada para o fortalecimento da atenção básica no país. O Projeto está estruturado em três componentes de atuação: 1 Apoio à conversão e expansão da estratégia Saúde da Família 2 Desenvolvimento de recursos humanos da estratégia Saúde da Família 3 Monitoramento e avaliação Porém, esse atraso na implantação pode ser interpretado de várias formas (financiamento, organização de serviços, decisão política e outras), e uma delas é a enorme diversidade demográfica do país, além de outras não menos relevantes. Grande parte da população brasileira vive em situação de pobreza e de extrema pobreza, em contraste com a relativa riqueza do país. Essa desigualdade expressa-se mais claramente em centros urbanos, principalmente nas favelas. A favela existe no cenário carioca desde o século XIX e sempre foi representada como uma cidade à parte, que muitos pretenderam eliminar, controlar ou esquecer (Alvito, 2001). No início do século XX, o nome próprio Favella passou a ser favela, servindo para denominar os casos de terra invadida ou ocupada ilegalmente por moradias precárias e população pobre. O “tipo ideal” se construiu a partir do Morro da Providência e do Morro de Santo Antônio, onde se foram associando esses espaços às ocupações ilegais situadas na encosta do morro com moradias precárias, sem infra-estrutura e serviços urbanos. O favelado passou a simbolizar o migrante pobre, semi-analfabeto, biscateiro, incapaz de se integrar e se adaptar ao mercado de trabalho da cidade (Preteceille & Valladares, 2000). Segundo Alvito (2001), as favelas representaram os fantasmas prediletos do imaginário urbano: foco de doenças e epidemias; sítio de malandros e ociosos, inimigos do trabalho duro e honesto; amontoado promíscuo de população sem moral; reduto anacrônico de migrantes de origem rural maladaptados à vida urbana, constituindo uma massa ignara a atrasar nosso desenvolvimento econômico e político; e covil de bandidos, zona franca do crime e do tráfico. Assim, a favela tem em si encarnada a imagem das

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6 Classes perigosas: Termo surgido na época da revolução industrial, onde associava-se a pobreza com delinqüência As classes delinqüentes existiam dentro de fronteiras geográficas e sociais claramente identificáveis: viviam em uma determinada área de Londres, em um só bairro, identificados pelo meio ambiente, sua linguagem. suas roupas e seus comportamentos particulares. As classes perigosas inglesas tinham atividades ilícitas e sua moral e costumes não eram convencionais, dedicando seus delitos contra a propriedade e a pessoas de diversos graus (Himmelfarb, 1988).

“classes perigosas”6, e é esta tradição que é continuadamente reproduzida (Alvito, 2001, p.91-2). Oliveira (1999) ressalta que vários trabalhos vão contra a associação equivocada entre pobreza e violência urbana e criminalidade; porém a favela apresenta interfaces entre múltiplos arranjos culturais de mundos (o marginal e o central, o desviante e o oficial), que se interpenetram. O mundo do crime não está muito distante do mundo empresarial, muito menos do mercado, seus valores e regras. Eles participam simultaneamente das exigências do mundo do trabalho e do crime, realizando diversos tipos de acordo e compromisso. Como obstáculo à implantação do PSF, cita-se a penetração de uma equipe profissional, representante do Estado, em áreas de domínio de forças paralelas ao poder legalmente constituído, alicerçadas pelo tráfico de drogas ilícitas e armas. Tais áreas se tornaram comuns em várias regiões metropolitanas brasileiras e podem tornar o trabalho da equipe desgastante, inócuo ou até mesmo perigoso, caso haja resistência por parte destes atores sociais. (Campos et al., 2002, p.53-4)

Embora se compreenda a importância do impacto da violência sobre as populações assistidas pelo PSF, não é objetivo deste trabalho discuti-la. No entanto, é importante ressaltar que é nessa “ginástica de conciliação entre pressões de moradores, poder público, polícia, banditismo, medo e tensões, conflitos, regras de convivência forçada, acordos tácitos e compromissos” (Oliveira, 1999, p.68), cenário incompatível com cidadania e democracia, que a equipe de saúde da família inicia seu trabalho. A proposta de construção desse novo modelo assistencial é parte indissociável da consolidação e aprimoramento do Sistema Único de Saúde, cujos objetivos também são: · Contribuir para a democratização do conhecimento do processo saúde / doença, da organização dos serviços e da produção social da saúde. · Fazer com que a saúde seja reconhecida como um direito de cidadania e, portanto, expressão de qualidade de vida. · Estimular a organização da comunidade para o efetivo exercício do controle social” (Brasil, 1997, p.10) (grifos nossos)

Isto demonstra que o desempenho do processo de trabalho do PSF deve estar relacionado à existência de profissionais que têm claro em suas mentes o papel de agente transformador, assegurando a participação e o controle social, tornando transparentes as informações, criando vínculos efetivos entre usuários e equipe e estabelecendo relações de trocas e confiança. O conceito de transformação social aqui proposto é o de Gramsci, segundo o qual a transformação (revolução) é concebida como um processo de construção de uma nova hegemonia (processo de articulação de diferentes interesses em torno de um projeto de transformação).

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De acordo com Dagnino (2000), isto implicaria uma nova concepção de mundo, em que o papel das idéias e da cultura assume caráter positivo, tendo sua base construída a partir de duas formulações principais: a noção de poder e a construção histórica da transformação social. Neste sentido, implantar o PSF em uma comunidade, com esses propósitos, significa rever também as relações de poder existentes nas instituições de saúde entre profissionais, usuários e gestores. Acreditamos que analisar as transformações da prática inclui, necessariamente, o exame dessas relações. Afinal, os espaços institucionais (e o PSF não seria diferente), são loci de poderes, interesses e projetos de diferentes sujeitos (Pinheiro, 2001). Para Foucault (1999), a análise do poder é uma análise das relações, porque os sujeitos se relacionam com outros sujeitos segundo suas necessidades e possibilidades. Isto leva a uma reflexão sobre as práticas de PSF. Se repetirmos o modelo vigente apenas maquiado, acreditando que, atendendo a família, fazendo visita domiciliar, prestando assistência, promovendo as ações de prevenção e promoção de saúde sem respeitar o desejo/projeto de vida do paciente, sem colocá-lo para discutir isto e as práticas de serviço, estaremos apenas mantendo as relações de poder de dominação. Ou seja: as relações de poder têm uma relação de força estabelecida em dado momento e que se reinsere perpetuadamente numa espécie de guerra silenciosa nas desigualdades econômicas, na linguagem, nos corpos de uns e outros. (Foucault, 1999, p.21)

Se “o poder não se dá, nem se troca, nem se retoma, mas (...) se exerce e só existe em ato” (Foucault, 1999, p.21), qual o verdadeiro poder exercido e que existe em ato nas práticas cotidianas do PSF? Como essas práticas podem existir enquanto estratégia de inserção social e democratização da população? Acreditamos que “contribuir para a democratização do conhecimento do processo saúde / doença, da organização dos serviços e da produção social da saúde, estimular a organização da ” (Brasil, 1997, comunidade para o efetivo exercício do controle social social” p.10) significa redistribuir o poder (grifos nossos). Da perspectiva do processo de construção da cidadania e do espírito democrático entre nós, parece ser o momento de fazer avançar esse processo nos espaços micropolíticos, como são os espaços dos serviços, contribuindo para que a essência de suas práticas seja a realização da democracia viva em ato. (Teixeira, 2003, p.95)

Para o autor, a superação do monopólio do diagnóstico de necessidades e de se integrar a “voz do outro” é mais que a construção de um vínculo/ responsabilização. É uma efetiva mudança na relação de poder técnicousuário, evidenciando, segundo Gramsci, “as possibilidades que tem o ser

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social de passar do reino da necessidade para o reino da liberdade” (Simionatto, 1998, p.45). A vida social no pensamento Gramsciano é, portanto, produto da ação dos homens na qual consciência e vontade aparecem como fatores decisivos, na transformação do real, sem deixar de levar em conta, contudo, as condições históricas objetivas que existem independentemente da consciência e da vontade humanas. (Simionatto, 1998, p.48)

Neste contexto reaparecem os saberes sujeitados. É na insurreição dos saberes antes desqualificados, não legitimados, contrários à instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los ou ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro (Foucault, 1999), que surgem os sujeitos sociais. Assim, a dimensão da cultura é crucial. Ela requer uma reforma intelectual e moral: nela a constituição de sujeitos é privilegiada, pois os elementos como vontade, paixão e fé receberam em Gramsci mais importância do que a dinâmica das estruturas sociais objetivas. É no terreno da cultura que o consentimento ativo definidor de hegemonia e distinto de dominação é produzido, ou não (Dagnino, 2000). Dagnino (2000) recorre a Gramsci e afirma que a hegemonia é um processo de articulação de diferentes interesses para se construir "uma vontade coletiva", sendo um processo de formação de sujeitos, no qual a capacidade de "transcender interesses corporativos e particulares, de fazer compromissos e negociar são características fundamentais" nessa construção em processo, uma articulação sempre submetida à reelaboração e renovação como ação política na direção da transformação social (p.73). Parece-nos que a existência de obstáculos e desafios na construção do SUS não inviabiliza as possibilidades da estratégia do PSF de provocar transformações significativas na reorganização das práticas, a partir da mudança do objeto de atuação para a família e o resgate das ações de prevenção e promoção, além da busca de satisfação do usuário (Brasil, 2000). Isto implica reconhecer a relevância desse tipo de estratégia na construção do direito à saúde como uma questão de cidadania. Neste sentido, é necessário rever o papel da equipe, dos gestores e usuários na ampliação dos espaços de participação popular, refletindo sobre suas relações de poder. Cidadania caminha ao lado da democracia, e democracia se faz em ato. Segundo Bobbio (2002), os direitos de cidadania são históricos e legitimados por lutas em defesa da liberdade e contra velhos poderes, e se deram de maneira gradual. Primeiramente, afirmaram-se os direitos civis de liberdade, que tendem a limitar o poder do Estado, reservando-o para indivíduos ou grupos particulares. Num segundo momento, são promulgados os direitos políticos como forma de autonomia em relação ao Estado e finalmente os direitos sociais, que vêm como expressão do amadurecimento de novas exigências, como bem-estar e igualdade definidos por meio do Estado. Assim sendo, a cidadania é um conceito em construção e possui sentidos e significados coerentes com o seu tempo. A nova cidadania tem como referente central a noção de direitos. O direito a ter direitos. O direito à igualdade e à

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diferença. A reivindicação ao acesso, à inclusão, participação e ao pertencimento a um sistema político já dado. As origens da atual redefinição podem ser parcialmente encontradas nas experiências de movimentos sociais no final da década de 1970 e nos anos 1980, tendo o termo se difundido a partir do início dos anos 1990 pela sociedade brasileira. A nova cidadania busca implementar a construção democrática, de transformação social, que impõe laço constitutivo entre cultura e política (Dagnino, 2000). Conclusão O Programa de Saúde da Família é uma estratégia do Ministério da Saúde que propõe ações de promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos, a partir da efetivação de suas diretrizes operacionais. A primeira possibilidade de efetivação dessas ações pode estar localizada no momento do acolhimento. O confronto entre as necessidades de saúde (ou outras) trazidas pelos usuários e o que a instituição, no caso o PSF, tem a oferecer, poderá revelar as mudanças no modelo assistencial. As transformações das práticas passam pela emergência e valorização de novos saberes, por uma postura mais dialógica da equipe entre si e com os usuários, por uma abertura conceitual e científica em relação ao modelo da Biomedicina e uma maior responsabilidade política e ideológica dos gestores. (Favoreto & Camargo, 2002, p.59)

Essas transformações são potenciais construtoras de vínculo, aproximando quem oferece ou presta serviço de quem o recebe e personalizando a relação, que deve ser compromissada, solidária e aparecer como “fruto de uma construção social e parte de um esforço que envolve equipe, instituições e comunidade” (Silva et al., 2004, p.79). De acordo com Gramsci, a capacidade de transcender interesses corporativos e particulares, de fazer compromissos e negociar, são características hegemônicas fundamentais, na medida em que tornam possível a articulação de diferentes. A implantação de PSF é um grande desafio para os profissionais idealistas, para a população que vem buscando seus direitos e para o gestores que precisam romper com práticas instituídas nos serviços. Contribuir para a democratização do conhecimento, fazer a saúde ser reconhecida como um direito de cidadania e estimular a organização da comunidade para o efetivo exercício do controle social significam redistribuir os poderes, e isto não parece ser tarefa fácil. O maior desafio dos profissionais da estratégia da saúde da família é concretizar, na prática cotidiana, a superação do monopólio do diagnóstico de necessidades e de se integrar à “voz do outro”, que é mais que a construção de um vínculo/responsabilização. Traduzindo-se em uma efetiva mudança na relação de poder técnico-usuário, evidenciando o ser social, com vida plena e digna como expressão de seu direito. A integralidade da atenção à saúde, em suas ações de promoção, prevenção e assistência poderá, assim, representar um novo modo de “andar na vida”, numa perspectiva que coloca o usuário como sujeito de sua própria história.

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SÍLVIA MECOZZI, detalhe

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Recebido para publicação em: 25/11/04. Aprovado para publicação em: 06/06/05.

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SILVIA MECOZZI, Série Versos Plásticos, 1998

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A tr ajetória profissional de cinco médicos do trajetória amília: os desafios de Progr ama S aúde da F rograma Saúde Família: construção de uma nova prática Ana Angélica Ribeiro de Meneses e Rocha Leny A. Bomfim Trad

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MENESES E ROCHA, A. A. R.; TRAD, L. A. B. The professional trajectory of five physicians working in the family health program: the challenges of building a new practice. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.303-16, mar/ago 2005.

This study analyzes the professional trajectories of five doctors working within the Family Health Program (PSF) in a municipal district of the Northeast of Brazil. Through life histories, circumscribed to the examination of the professional sphere, the study focuses on the following marks in the construction of their careers: the choice of the profession, the process of professional formation, and insertion in the job market, particularly, within the PSF. The data indicates that PSF has become a new job market for doctors. The analysis of their practice in this context reveals, however, a tension between clinical knowledge, that operates within biomedical rationality and is socially legitimated, and the preventive-promotional actions that gain priority the PSF. At the same time, PSF seems to be a potential locus for operating transformations in the medical professional that, as a subject, is capable of transforming the significance of his/her practice, redeeming its human and social dimensions. KEY WORDS: physician; trajectory; health family; health practice. Este estudo analisa as trajetórias profissionais de cinco médicos inseridos no Programa de Saúde da Família (PSF) em um município do Nordeste do Brasil. Por meio de histórias de vida circunscritas ao âmbito profissional, o estudo focaliza os seguintes marcos na construção de suas trajetórias: a escolha da profissão, o processo de formação profissional, a inserção no mercado de trabalho, particularmente, no âmbito do PSF. Os dados mostram que o PSF configura-se como um novo mercado de trabalho para o médico. A análise de sua prática neste contexto revela, entretanto, uma tensão entre um saber clínico, que opera na racionalidade biomédica e é socialmente legitimado, e as ações de caráter preventivo-promocional, priorizadas pelo programa. Ao mesmo tempo, o PSF parece ser um locus potencial para operar transformações no profissional médico que, enquanto sujeito, é capaz de ressignificar sua prática, resgatando dimensões humanas e sociais. PALAVRAS-CHAVE: médico; trajetória; saúde da família; prática de saúde.

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Professora, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), Salvador, Ba. < anaerocha@uol.com.br>

2

Professora, ISC/UFBA. <trad@ufba.br>

1 Av. Sete de setembro, 3189 Ed. Ibirapuera, ap. 201 Salvador, BA 40.130-000

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Introdução O Programa de Saúde da Família é apresentado no contexto políticoinstitucional brasileiro como uma proposta alternativa ao modelo de atenção fragmentado, calcado na compra e venda de serviços, num enfoque biologicista e centrado no indivíduo. Espera-se, sobretudo, reordenar a atenção básica de saúde, com a implantação de uma equipe multiprofissional atuando em um território definido, em uma população adstrita, com oferta programada, tendo a família como núcleo de atenção. O PSF apresenta princípios e diretrizes que se revelam contra-hegemônicos na lógica de organização de serviços e nas práticas de saúde, destacando ainda a necessidade de ações com enfoque sobre problemas, requerendo planejamento e programação local, com a participação comunitária e com ênfase na intersetorialidade. Um dos desafios para implementação dos princípios do PSF consiste em envolver os profissionais inseridos no programa em um amplo processo de reorientação do trabalho em saúde. Nesta questão deve-se levar em conta especificidades disciplinares - particularmente no que se refere à racionalidade dominante em cada campo - às experiências de formação e à inserção profissional destes sujeitos, sem esquecer a interferência do mercado neste processo. Analisando, especificamente, o caso do médico, a discussão sobre sua inserção no PSF deve levar em conta peculiaridades da trajetória social da própria Medicina. Entre os aspectos a serem considerados, vimos com Donangelo (1979), que a medicina tende a se revestir, mais facilmente, de um caráter de neutralidade face às determinações sociais. Característica essa que pode contribuir para uma prática que tende a se distanciar das necessidades de saúde da população. O conhecimento médico, de acordo com Schraiber (1993, p.23), é dependente de um contexto específico de produção da ciência em cada tempo e lugar e pode, em certo sentido, ser considerado “limitado em medida e atributo”. Este conhecimento é traduzido em práticas relativamente autônomas e elitizadas que se organizam sob a forma de monopólio, acirrando seu teor corporativo. Deve-se reconhecer, sobretudo, a centralidade histórica da medicina, e por extensão, do profissional médico na organização dos serviços e práticas de saúde. Do ponto de vista da racionalidade que orienta a prática médica, concorda-se com Schraiber (1993), que esta é um misto de arte e técnica, submetida a uma ética técnico-moral dependente. Trata-se de uma prática que se expressa inevitavelmente enquanto intervenção sobre a vida de outro(s). A medicina se expressa enquanto um cuidado necessariamente diverso e qualitativo e que tem como objeto o ser humano (Mendes Gonçalves, 1979). Este processo apresenta, portanto, uma dimensão técnica - que se expressa na ação instrumental – e uma dimensão social – que se estabelece em relações humanas, especialmente delicadas. Observa-se que o médico mantém com outros profissionais e pacientes, relações que tendem a se configurar nos termos propostos por Habermas (1990). São relações marcadas pela imediatez e refletem um poder consolidado graças a um saber técnico que é transmitido e cristalizado em redes de interação pelos quais os médicos transitam.

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Deve-se considerar também os espaços nos quais a prática médica se desenvolve. São espaços que se traduzem em contextos organizacionais diversos, de âmbito público e privado, norteados por lógicas particulares de funcionamento. A maioria dos profissionais médicos concilia (ou tenta conciliar) múltiplos vínculos institucionais, o que lhes demanda um permanente movimento de ajuste situacional. Este é um trabalho sobre trajetórias, entendendo este termo como uma linha, um percurso de sujeitos e objetos em movimento e das posições ocupadas por esses sujeitos e objetos. Da história da prática médica e do conhecimento que a fundamenta, aos espaços de atuação desse profissional e das dinâmicas das relações que estabelece no contexto da sua prática. O presente estudo resgata as trajetórias profissionais de cinco médicos que hoje atuam no Programa de Saúde da Família em um município do Nordeste. São focalizados os seguintes marcos na construção das trajetórias desses sujeitos: a escolha da profissão, o processo de formação profissional, a inserção no mercado de trabalho, particularmente, no âmbito do PSF. O estudo enfatiza a experiência de incorporação do médico ao processo de trabalho do PSF.

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Queiroz apud Schraiber (1995a) utiliza o termo exaustão ou saturação – onde o pesquisador verifica a formação de um todo e reconhece a reconstituição do objeto de pesquisa no conjunto do material.

Metodologia Trata-se de uma investigação em saúde que privilegia a dimensão subjetiva. Assim sendo, concorda-se com Granda et al. (1999) que ao abordar a problemática da saúde a partir da perspectiva dos sujeitos, deve-se considerar as concepções destes sobre saúde-doença e os processos intersubjetivos de formulação e validação de sua prática. O estudo foi realizado com cinco médicos que integram equipes do PSF de um município do estado de Alagoas. Foram determinantes na escolha do município, do qual selecionamos os médicos estudados, o tempo de implantação do PSF e o índice de cobertura, bem como a disponibilidade dos profissionais em participar do estudo. No ano de realização da pesquisa – 2002 - o município selecionado tinha 66.000 habitantes e apresentava 80% de cobertura do PSF. O programa foi implantado no município em 1996 e em 2002 contava com 17 equipes. Do ponto de vista da organização do sistema local de saúde, destaca-se a precariedade de infra-estrutura das unidades básicas que se contrapõe a uma rede de serviços especializados e hospitalares relativamente estruturada e com boa incorporação tecnológica. O município encontrava-se em Gestão Plena do Sistema de Saúde, atendendo a toda região do entorno, composta por 11 municípios. Na seleção dos sujeitos de estudo decidiu-se por contemplar tanto médicos com maior tempo de carreira profissional e inserção no PSF do município, como outros mais novos, cuja inserção no programa deu-se mais recentemente. Foram selecionados dois profissionais que iniciaram com as primeiras equipes implantadas (1996) e três que fizeram parte do processo de ampliação da cobertura do PSF no município no ano de 1999. Foram realizadas cinco entrevistas em profundidade, gerando um banco de dados com seiscentos minutos de gravação entre trabalho de campo e entrevistas. À medida que este conteúdo era lido e relido no processo de análise, configurava-se a situação de impregnação3 (Schraiber, 1995a). Nos relatos,

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os informantes manifestaram a realidade como fundo de cena, um abrir o mundo, não na sua totalidade, mas como fragmento relevante de uma dada situação (Prado, 1996). O roteiro das entrevistas, bem como a análise de seu conteúdo estruturou-se com base nas seguintes dimensões: simbólicas simbólicas: o prestígio, a aceitação pela população e pela corporação; o poder do saber técnico; técnicas técnicas: racionalidade e tecnologia; relacionais: as relações do médico com a equipe, com as famílias (e comunidade), dentro e fora da unidade de saúde. Resultados e discussão Apresentando os sujeitos Como ponto de partida apresenta-se a seguir um breve perfil dos cinco médicos4 inseridos no estudo. Alice – 53 anos, os pais eram administradores públicos, uma família de classe média5 . È divorciada e tem dois filhos. Formada há trinta anos, tem residência em pediatria, uma história de prática liberal inicialmente e depois como empresária da medicina. Inseriu-se no PSF após crise familiar. Deslocase diariamente da capital para o município onde atua, e daí para a área rural onde se encontra sua equipe do PSF. Trabalha há quatro anos no mesmo território. Wilson – 41 anos, pais pequenos comerciantes, uma família de classe média baixa. É solteiro e toma conta da mãe, irmã e do sobrinho. Formado há 14 anos, é médico da Secretaria de Estado da Saúde, plantonista em pequenos hospitais do interior e está inserido no PSF há quatro anos, atuando no mesmo local. Reside na área onde atua. Walter – 31 anos, casado, dois filhos, família de militares, de classe média alta. Formado há quatro anos, queria fazer residência em cirurgia, mas optou pelo PSF, por questões salariais. Trabalha no programa desde que se formou, na mesma cidade onde mora. João – 38 anos, solteiro, família de pequenos proprietários rurais. Cuida da mãe viúva, da irmã menor e de seu filho. Fez Serviço Social, depois vestibular para Enfermagem e, por fim, Medicina. Está formado há três anos e desde então atua no PSF. Antes de se formar foi servidor público. Trabalha há dois anos e seis meses neste município, onde reside e teve uma experiência no PSF por seis meses em outro local. Augusto – 26 anos, família de classe média baixa, de pequenos negociantes. Está formado há dois anos, passou na residência para especialização em Nefrologia, em Brasília, mas optou por ficar com a família no município onde residia e seguir no PSF. Trabalha no programa há dois anos, na mesma equipe e área. Os médicos que investigamos não são egressos de cursos de pósgraduação em Saúde Coletiva ou, especificamente, Atenção Básica/Saúde da Família. São pediatras, generalistas e recém-formados. Apenas Alice tem residência médica em Pediatria. Este dado corrobora os achados de Machado (2000), que indicam que a maioria dos médicos que atua no PSF do Nordeste é formada em escolas públicas, com baixa qualificação especializada, segundo o critério residência médica.

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4 Ressalta-se que foram utilizados pseudônimos no artigo para preservar a identidade dos profissionais.

5 Os conteúdos referentes ao pertencimento de classe reproduzem posições expressas pelos informantes, não tendo sido alvo de questionamento os critérios que os guiaram nesta definição.


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O perfil destes profissionais corresponde plenamente aos dados encontrados pelo estudo nacional (Machado, 2000) sobre as equipes do PSF, destacando dois aspectos em particular: 1) a residência e especialidades mais comuns dos médicos do PSF são as consideradas básicas: medicina interna, geral comunitária, pediatria e gineco-obstetrícia.; 2) com relação ao tempo de experiência profissional destacam-se dois grupos com situações radicalmente opostas: recém formados que ainda não têm carreiras consolidadas e para os quais o PSF se apresenta como uma alternativa de “mercado de trabalho” e profissionais com larga trajetória profissional, incluindo aqui aposentados ou prestes a recorrer à aposentadoria. Entre escolher ser e tornar-se um doutor Entre os determinantes para a escolha da profissão, referidos pelos sujeitos, destacam-se inicialmente elementos que se revelam menos específicos: influência familiar, seja pela convivência com parentes que exercem a profissão ou pela pressão que a família exerce em torno desta escolha; identificação positiva com profissionais da área; perspectivas favoráveis de inserção profissional futura. Entretanto, na escolha pela medicina, pode-se reconhecer o peso significativo de outros aspectos menos generalizáveis: o prestígio ou status social agregado à profissão que se alia à expectativa de garantir um padrão de renda elevado no futuro, aspirações de caráter humanístico ou ainda a fascinação pelo objeto da medicina e tecnologias utilizadas neste campo. Escolher ser médico foi assim: desde criança eu tinha essa idéia, um professor que era médico abriu um pouco essa perspectiva ... e eu gostei e comecei a me identificar com a profissão, com os conhecimentos. (Augusto) Medicina dá muito status, quem entra demonstra inteligência, competência, ou tem mais credibilidade perante o grupo e a sociedade. E a minha relação com a escolha da profissão foi muita em cima da questão do saber; por minha mãe ser uma pessoa analfabeta, ela teve um cuidado muito exemplar em fazer a gente estudar. (Wilson) eu me vi estudando o corpo humano. Vendo aquela beleza e me apaixonando... descobrindo não só a parte grosseira que é a anatomia, mas as células.. que dá origem a tanta coisa ao pensamento ... ao coração. E os aparelhos! Trabalhar com aquela aparelhagem toda. (João) foi essa tendência com humanas... por doação, para ter o contato... eu acho que para aliviar o sofrimento... não o físico, mais na medicina, mas o sofrimento de modo geral... a gente poderia ajudar, se doar ... eu resolveria tudo... o sofrimento que eu iria apaziguar. (Alice)

Ao resgatar suas experiências relativas ao período de formação, a partir da

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inserção na escola de medicina, os relatos dos profissionais chamam a atenção para a importância atribuída ao espaço acadêmico e ao entorno social na acumulação de um saber técnico-científico constituído de um conhecimento especializado, reconhecido como de grande complexidade, o qual se convertia em capital simbólico. Um conhecimento que é reconhecido como ‘caixa preta’, como elemento tático, envolto numa aura de mistério. Sobre a especialização, esta se apresenta como objeto de desejo do estudante de medicina e continuará sendo para o futuro médico: quanto mais especializado o saber, maior o poder de quem o domina. É o saber fragmentado por repartição do conhecimento em ramos parcelares do saber (Schraiber, 1993). A escola, mais precisamente, a universidade, por onde passaram os cinco médicos ainda não tinha incorporado um modelo pedagógico voltado para a “criação de novos cenários de prática”6 pelo qual se busca uma formação mais próxima da realidade social contrapondo-se a uma visão de um âmbito de prática como “um lugar, em separado, campo e tempo reservado, livre das injunções diretas e imediatas da vida cotidiana” (Marques, 2001, p.143). Os campos de prática referidos pelos médicos são as maternidades ou casas maternais, os ambulatórios, as emergências e os pronto-socorros públicos, em que a dimensão assistencial-curativa é dominante e é atendida a população mais pobre. Os depoimentos evidenciam que, embora a configuração das atividades práticas não favorecesse aos, então, estudantes de medicina, uma maior aproximação das condições de vida ou do entorno da população atendida, permitia-lhes um contato imediato com as condições reais de organização, infra-estrutura e funcionamento dos serviços públicos de saúde, quase sempre precárias. Minha formação é de centro cirúrgico, voltado para a área hospitalar; na medida que eu comecei a acompanhar as cirurgias, quando eu passei para o profissional, eu comecei a sentir uma certa dificuldade com a clínica e com a saúde pública. (Walter) Quando eu comecei a trabalhar com paciente, eu fui estagiar na parte de obstetrícia. E fui assistir um parto, para mim foi uma coisa assim, que eu só não chorei junto com a paciente porque a gente tem que ficar forte, então eu passei uma semana ou mais com aquilo na minha cabeça, martelando. Meu Deus, que estupidez é aquilo, um parto... (João) Numa maternidade, não tinha leitos suficientes, as mulheres tinham que voltar sem serem atendidas... eu não aceitava, não conseguia entender. (Alice)

O resultado é uma formação centrada no conhecimento biomédico e especializado, na qual se valoriza o médico tecnológico, o especialista “doutor de pedaços”. Aprende-se a trabalhar com a técnica, com as máquinas (João), tendo a clínica como sustentáculo da Medicina (Alice).

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6 O termo cenário de aprendizagem é utilizado segundo um conceito amplo não só se referindo ao local onde se realizam as práticas, como também aos sujeitos nelas envolvidos; a natureza, conteúdo do que se faz. Diz respeito à incorporação e interrelações entre métodos didáticos pedagógicos, práticas, habilidades, valorização de princípios morais, éticos, orientadores de condutas individuais e coletivas (Feuerwerker, et al., 2000).


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Em contrapartida, também se aprende sobre a importância da vocação para o exercício da profissão. Diferentes relatos evidenciam que no processo de formação identitária do médico são valorizados atributos como coragem, frieza e resistência às pressões. Um aprendizado que se nutre de um ambiente coercitivo e ‘naturalmente’ tenso. Um modelo que pode ser por vezes questionado, mas que termina sendo absorvido sem maiores reações. A aceitação já é uma aliança com a corporação. Tornar-se doutor implica tornar-se membro da “irmandade”, do clã e pressupõe a aceitação de normas e modelos em conformidades com seus pares. A identificação com os pares se expressa na linguagem, nos estilos comuns, nas formas de trabalho e até formas de vestir (Moore apud Machado, 2000). (...) no próprio meio se cria uma aura, um clima pesado...que não leva a nada. Acho que se ele (o professor) sentar e dizer: “Você não faz isso, isso e isso” aí, se você errar uma vez, ele te repreende, te critica construtivamente e aquilo você absorve. Mas tem mais a prática do terror (Augusto)

Depois da formatura, surge o dilema de continuar com a especialização nos programas de residência médica ou inserir-se no mercado de trabalho. Isto faz lembrar que a prática médica inscreve-se no bojo de uma ocupação, um meio de subsistência para quem a produz. Passar nos exames de seleção para a residência é um primeiro desafio. Não conseguindo ter acesso a esses nichos de especialização, resta o mercado de trabalho nos diversos ambientes, nos quais os saberes parcelares são exercidos. O mercado e as condições de trabalho são as mais diversas, de hospitais top de linha a ambulatórios ou hospitais com baixa incorporação tecnológica: “plantões, muito trabalho, poucas folgas, onde a gente é explorada, não sabe se recebe em dia ou não” (Alice e João). De fato, a grande maioria dos médicos do Brasil trabalha em mais de três atividades, em regime de plantão e referem-se ao futuro da profissão com pessimismo, incerteza e reclamam do grande desgaste pessoal e profissional (Machado, 2000). Com uma única exceção, o vínculo institucional destes médicos revela outra face perversa do projeto neoliberal – a flexibilização e a precarização do trabalho e das relações trabalhistas. Encontram-se aqui várias modalidades de prestação de serviços, pois os profissionais podem ocupar os espaços de produtor isolado, ou do trabalho cooperativo ou associado ou, ainda, como produtor e empresário. O assalariamento do médico, já apontado por Schraiber (1995b), e MendesGonçalves (1985), se dá dentro desses espaços: os patrões podem ser os organismos públicos, privados ou filantrópicos. O mesmo profissional pode ocupar várias posições nas diversas modalidades de prestação de serviços. A história de Alice é típica da fase de 1980 a 1990 – já que a profissional ocupou diversos tipos de postos de trabalho com características da prática tensionada referida por Schraiber (1993): trata-se da situação em que a definição da prática médica é dependente do espaço de atuação e a presença de intermediários mediando o acesso a outros produtos (a

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instituição ou seguro que intervêm no tipo e quantidade de exames) contribui para a institucionalização de diferenças e desigualdades (Alice). As características da prática médica derivam também da ação ou da omissão do Estado no que tange às políticas de saúde (Paim, 2002). Paradoxalmente, quando abordados sobre temas como o papel do Estado na conformação das políticas públicas ou as implicações da reforma do Estado para a saúde, os médicos investigados relataram que consideravam esses temas como burocracia, coisa do político, da administração, obstáculos às boas práticas (Walter, Alice, Wilson e Augusto). A inserção no PSF A inserção no Programa de Saúde da Família aconteceu para quase todos após submissão a um processo seletivo simplificado. O vínculo trabalhista é formalizado por meio de contratos de trabalho temporários ou outras formas precárias de incorporação. Este dado também coincide plenamente com o quadro geral apontado pela pesquisa nacional (Paim, 2002). A instabilidade do vínculo trabalhista e, conseqüentemente, a insegurança que isto provoca no profissional, têm sido apontadas como uns dos principais responsáveis pela alta rotatividade dos profissionais que atuam nas equipes do PSF (Trad, 2003). A média salarial nacional de 2.229 dólares (em 2002) para o médico do PSF encontrada na pesquisa nacional, considerada como baixa remuneração, não parece ser entendida inicialmente como ruim pelos médicos pesquisados. Em contrapartida, a precariedade dos contratos e a não garantia dos direitos trabalhistas figuram entre as queixas mais recorrentes entre os médicos do programa. Apontado como um elemento importante na implantação do trabalho das equipes, o processo de capacitação das equipes do PSF é um ponto consensual de crítica entre os sujeitos do estudo. As críticas incluem questões como deficiências na organização e duração: um período pequeno... introdutório mesmo, que fica a desejar (Wilson); da oferta das capacitações à ausência de um consenso em torno de conteúdos e modelos pedagógicos: confuso, tumultuado, muita informação de vez... muita lei, coisas que eu não estava acostumado, sem uma aliança entre a teoria e a prática (Walter). A experiência de formação do médico prévia ao ingresso no PSF, como vimos no tópico anterior, na qual os conhecimentos da “saúde pública” são tocados de forma marginal, não contribuíram para o desenvolvimento de habilidades que são requisitadas no PSF. Deste modo, será necessário aprender a trabalhar sob outra ótica, com os critérios de territorialização, com enfoque epidemiológico, clientela adscrita e com avaliação baseada em resultados. Vale registrar que nem todos passaram pelo treinamento introdutório, em que os pressupostos do programa são passados: A implantação do programa no município deu-se de forma improvisada; os profissionais foram inseridos nas unidades sem terem muita clareza sobre os objetivos da proposta. Nestas circunstâncias, ao menos na fase inicial, não está claro o que é ser médico do PSF: A saúde da família é algo que ouvi falar, que me chamaram e eu fui ou porque se tornou um nicho de mercado melhor que estar dando 2, 3 ou 4 plantões ou ambulatórios por aí ou, (Augusto) ... eu já

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A TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE CINCO MÉDICOS... trabalhava em ambulatório e fui para o PSF (Wilson)... Eu queria vivenciar uma área onde a relação com os pacientes fosse outra, onde se tivesse resultado; um outro emprego. (Alice)

A prática típica das unidades básicas tradicionais, baseada exclusivamente em produtividade (leia-se número de consultas) e centrada na consulta médica, deve ceder lugar a uma outra lógica operativa. Os vínculos com os usuários incrementam-se, principalmente os grupos de risco, e são mediados pelo trabalho dos Agentes Comunitários. Deslocando-se por vezes a sítios longínquos, a equipe vai se meter na casa de um camarada (Augusto), que acredita no que o doutor disse (Walter). Na aproximação com os espaços comunitários, com o domicílio, os médicos chegam mais perto das necessidades e carecimentos das pessoas e vão se sensibilizando com suas demandas: “os coitados que vêm pedir socorro, estão precisando e não podem ser ignorados” (Wilson). A visita domiciliar transforma as relações, estabelece outra dimensão do ato clínico, por trazer à tona um outro tipo de diagnóstico que transmuta o saber contido nos manuais. A concepção que os médicos detêm sobre saúdedoença começa a ser questionada quando se vêem frente a frente com os sintomas da pobreza: Outro dia eu cheguei na casa de uma paciente, ela fez um parto prematuro uns sete meses (...) Então, eu fui orientar ela em algumas coisas......ai, o que é acontece? O marido diz que lava carro, mal ganha para passar, ela tem três filhos pequenos e mora com mais cinco irmãos do esposo, porque a mãe dele faleceu. Se você visse como era o lugar ...aí entendemos porque ela ficava perguntando se a criança ia ter alta...como iam criar um bebê de risco ali? (Augusto)

É muita gente para cuidar: os do posto, os das casas, os dos grupos: gestantes, hipertensos, diabéticos. Se lhes apresentam metas a cumprir, novas atividades a desempenhar. São as urgências epidemiológicas e sanitárias, que precisam ser prontamente tratadas. Tem as velhas e novas doenças. Aos velhos saberes – a clínica, a obstetrícia etc.- se agregam os novos: planejamento, epidemiologia, educação e comunicação em saúde. Para acompanhar os grupos de risco, além do conhecimento clínico, é preciso recorrer a outra ciência – a Epidemiologia e privilegiar outra dimensão: a coletiva. As equipes do PSF devem trabalhar com um perfil epidemiológico que se traduz em taxas, indicadores, marcadores e eventos sentinelas. E dão face ao território: a minha área. A proposta de territorialização pressupõe a organização em rede de unidades de saúde, em um espaço geográfico, que não se limite apenas às características epidemiológicas e demográficas. Pressupõe o diagnóstico e enfrentamento de problemas, a discussão sobre os recursos disponíveis e uma articulação com a administração pública local. Resolver problemas emerge como algo que o médico começa a cobrar de si mesmo. E não tarda muito para descobrir que a maioria dos problemas

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demanda, para seu enfrentamento, outros tipos de conhecimento, de tecnologias e, sobretudo, de ações que extrapolam a esfera individual de atuação. Em alguns casos, tanto a clínica, quanto a epidemiologia se mostram impotentes para enfrentar os problemas no território e é preciso conviver com os sentimentos de frustração e impotência que emergem diante deste fato. Teve uma senhora, ela foi abandonada pelo marido(....) Eu percebi que ela tinha se prostituído e comecei a conversar com ela, a fazer um acompanhamento, evitar DSTs e evitar, até, que ela engravidasse (....) era um trabalho que eu estava fazendo com ela, trabalho que custava um sacrifício maior, porque, no outro dia, tinha que pensar nas consultas que não realizei naquela tarde para fazer a visita a ela. Infelizmente não deu resultado....... no final de semana, mataram ela... é um exemplo típico, não é? (Walter)

A assistência à saúde, sob a ótica da saúde da família, exige dos componentes da equipe do PSF uma capacidade de respeitar as diferenças culturais e abrir-se para a troca de experiências com outros profissionais e com a população. Diferentes episódios relatados descrevem situações nas quais os médicos do PSF são testados e questionados de forma profunda no seu saber e no sentido da sua prática, como mostra o exemplo abaixo: Eu tenho uma paciente, velhinha. Noventa anos, (...) Tinha um monte de gente para atender. Mas ela queria falar, falar (...) sobre a família, a história dela tirando a foto dos filhos, do marido, ai mostrou tudo... e eu ouvindo... Depois que foram saindo ela disse assim “Ah doutor tô aliviada agora. Agora, eu posso não tá boa, mas eu tô bem melhor. O senhor me ouviu e isso foi bom”. Quer dizer, às vezes, as pessoas vão lá e vão para serem escutadas, serem ouvidas, ouvidas em seus reclames, então, como médico, eu estou para isso também, para ouvir... E isso acho que vai encurtar uma distância muito grande entre o médico e a população. (Wilson)

As contradições entre uma prática pautada na autoridade absoluta do médico e uma outra que se pretende dialógica, baseada no reconhecimento do caráter plural e multivocal do campo da saúde, revelam-se, por exemplo, nas práticas educativas que, além de fragmentadas, tendem a ser autoritárias e prescritivas. No dia da reunião com os hipertensos a discussão foi essa: “Você ainda está fumando, eu já vi mesmo que você quer morrer, não vai adiantar a gente lhe tratar e você continuar fumando. Olhe, eu acho bom você ser mais honesto, ouviu? Não leve o remédio que você não vai adiantar de nada!!!". (Alice)

O depoimento acima descreve uma situação na qual o paciente é claramente culpabilizado pelo seu problema. Kleinman (1978) critica a tendência, especialmente no mundo ocidental, de se atribuir à negligência dos indivíduos a origem de muitos problemas de saúde e considera que os programas

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educativos de saúde incorporam esta visão. No que se refere à dinâmica relacional no interior da equipe, constata-se uma situação na qual os profissionais do PSF estão permanentemente se conhecendo, se estranhando, definindo regras de convivência. Neste contexto, o médico vai aprendendo a negociar e descobrindo que é preciso construir consensos na busca para as soluções dos problemas, o que relativiza o sentido de autonomia profissional. Por outro lado, ele não parece disposto a abrir mão de sua hegemonia dentro da equipe. Neste sentido, a percepção dos entrevistados sobre os demais profissionais alia sentimentos amistosos com reservas dirigidas ao terreno da atuação. Quanto à equipe tive duas enfermeiras; uma sabia de suas limitações, facilitava as coisas. Essa agora é uma grande mãe, não sabe dizer não, age com o coração, desorganiza a demanda, se apóia em mim tecnicamente, não toma atitudes que não são coerentes com sua formação.Tem que respeitar a formação, o código de ética. O agente comunitário de saúde é como filho. Tem que se identificar com o médico ou a enfermeira. O que não pode haver é briga, disputas, passar um ambiente de discórdia, pois a comunidade percebe. (Walter)

7 O projeto de capacitação utilizado pelo Ministério da Saúde, sob a orientação da Organização Mundial da Saúde – OMS, denominado de Ações Integradas das Doenças Prevalentes na Infância – AIDPI.

Um ponto de conflito importante, na perspectiva dos médicos, refere-se ao fato de as enfermeiras serem capacitadas7 para identificar e atender, em casos de risco, crianças pequenas com diarréia, pneumonia, desidratação, otite e infecções cutâneas. Este fato vem sendo encarado como uma ameaça ao monopólio médico e tem provocado rejeições na categoria médica e interferências nos conselhos de classe. Porque você faz três anos de matérias básicas (...) Como é que você faz um curso de quinze dias ou dois finais de semana, não sei, faz o AIDPI, que não usa nem estetoscópio e aí está liberada para as pessoas fazerem diagnóstico e tratamento? (Augusto)

Em contrapartida, a atuação da enfermagem nos programas tradicionais de controle da hanseníase e da tuberculose não foi alvo de questionamentos ou resistência por parte dos médicos. Segundo Mendes-Gonçalves (1990) o monopólio médico se apresenta mais como uma questão política ideológica do que científica. Os relatos indicam um outro ponto de conflito que, segundo os próprios informantes, tem origem corporativa e está relacionado com o processo de encaminhamento dos pacientes atendidos pelos médicos do PSF para outros serviços de saúde existentes no município – hospitais, centros de referência, ambulatórios de especialidades. De acordo com os entrevistados, os profissionais médicos que atuam no âmbito especializado e hospitalar apresentam uma postura pouco colaboradora e parecem ver no PSF uma ameaça. Os colegas (plantonistas do hospital) criam barreiras, sentem-se

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MENESES E ROCHA, A. A. R.; TRAD, L. A. B. ameaçados, como se estivéssemos acabando com uma reserva de mercado, de mais doentes para eles atenderem (Augusto).

Cabe destacar, por fim, as dificuldades enfrentadas por estes médicos do ponto de vista das condições de trabalho. Além da instabilidade trabalhista, da precariedade dos locais de trabalho (foram recorrentes as queixas quanto a falta de espaço físico adequado, de recursos humanos, de materiais e medicamentos), também foi considerado como desgastante: o excesso de trabalho gerado pelo grande número de famílias atendidas pela equipe, as distâncias a serem percorridas para ir ao campo, a precariedade ou inexistência de veículos para o deslocamento dos profissionais, a manutenção da remuneração no mesmo patamar salarial por quatro anos, atraso no pagamento. A situação se agrava nas áreas rurais, onde as condições das Unidades de Saúde da Família são mais precárias aliadas às dificuldades de comunicação com a sede do município. Observa-se que os municípios que implantaram o PSF apresentam distintas acumulações político-institucionais, tecnológicas e materiais (Trad et al., 2002), predominando entre eles um quadro de precariedade social e sanitária, como é o caso do município pesquisado. Deste modo, tornar-se um médico do PSF, pode significar, na maioria das vezes, atuar em realidades de saúde negativas, com baixa acumulação tecnológica e estrutural na rede de unidades. Considerações finais As trajetórias profissionais desses cinco médicos, que hoje atuam no PSF, apresentam singularidades recortadas por processos sociais mais amplos, dos quais podemos destacar: a crise da medicina liberal e do modelo hospitalocêntrico; o movimento de experimentação de formas alternativas de organização de serviços e práticas de saúde, influenciadas pelo paradigma da promoção da saúde; tendência a precarização do trabalho. Tendo como referência as dimensões simbólicas, técnicas e relacionais que nortearam a análise das trajetórias dos médicos, pode-se considerar que a inserção no PSF representa um divisor de águas em suas carreiras. O conhecimento biológico tecnicista, ancorado nas alterações morfofuncionais, não é suficiente para dar conta de um conjunto de necessidades de saúde da população, que se impõe de modo imperativo no dia a dia de trabalho no âmbito do PSF. Ao tentar assumir a função de autoridade sanitária nas áreas cobertas pelo programa, o médico do PSF é obrigado a agregar novos saberes e práticas, se vê em um cenário em que a hegemonia médica é constantemente questionada. Começa a vivenciar situações no trabalho em saúde nas quais a negociação com atores diversos ganha acento privilegiado. Neste movimento, o médico passa a questionar os alicerces ideológicos que nortearam historicamente sua prática e se coloca perante a possibilidade de ressignificação da própria identidade profissional. Nos termos de Habermas (1985) é um sujeito “estranhado”, que tem diante de si o desafio de superar uma prática mediada pelo agir instrumental, que sempre imperou nas ações de saúde, buscando construir um agir voltado para a reciprocidade (interação). Parece ressurgir, neste contexto, a velha figura do médico de família que resgata valores comprometidos com a ética humanística. Embora a proposta do

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A TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE CINCO MÉDICOS...

programa seja distinta em vários aspectos do movimento da Medicina Familiar, conserva deste, como ressalta Paim (1985), elementos como humanização dos cuidados e vínculo entre o serviço e o usuário. As diferenças entre aquele e este médico de família se expressam na esfera de poder. No âmbito do PSF enfatizase o trabalho em equipe e o princípio da co-responsabilidade sanitária, havendo, portanto, uma tendência à diluição do poder corporativo. Embora, na prática, como os dados indicaram, continua conflitante a divisão de trabalho e o poder na equipe. Cabe registrar, por fim, que este processo é marcado por muitas incertezas. As aspirações ou projetos individuais dos sujeitos são definidos e redefinidos em função das oportunidades e da avaliação das condições concretas que se lhes apresentam. A adesão ao PSF pode ser facilitada quando os médicos são seduzidos pelos seus princípios e estes vêm de encontro ao desejo de ruptura com a racionalidade médica tradicional. Entretanto, a experiência prática do programa revela fragilidades de diferentes ordens – infra-estrutura, condições de trabalho, perfil sócio sanitário das áreas atendidas, entre outras – que repercutem claramente na motivação dos profissionais e, certamente, limitam o alcance dos objetivos pretendidos pelo PSF. Cabe destacar que, ao referir-se às condições adversas e aos desafios a serem enfrentados no âmbito de atuação do programa, o médico reclama também para si um tratamento mais humanizado. Referências DONNANGELO, M. C. F. Saúde e sociedade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979. FEUERWERKER. L.; COSTA. H.; RANGEL. L. Diversificação de cenários de ensino e trabalho sobre necessidades/problemas da comunidade. Divulg. Saúde Debate, n.22, p.36-48, 2000. GRANDA, E.; ARTUNDUA, L. A.; CASTILLO, H.; AMIRA, H.; MERINO, M. C.; TAMAYA, C. El sujeito y la acción en la Salud Publica. Educ. Med. Salud, v.29, n.1, p.1-19, 1995. HABERMAS, J. Pensamento pos-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa. versión castellana. Madrid: Taurus, 1985. Tomo 1. KLEINMAN, A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Social, Scienc. Med., v.12, p.85-93, 1978. MACHADO, M. H. (Org.) Perfil dos médicos e enfermeiros do Programa Saúde da Família. Brasília: MS/FIOCRUZ, 2000. MARQUES, M. O. Escola, aprendizagem e docência: imaginário social e intencionalidade política. In: VEIGA, I.P. (Org) Projeto político pedagógico da escola: uma construção possível. 13.ed. São Paulo: Papirus, 2001. p.143-56. MENDES GONÇALVES, R.B. Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico. 1979. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo. MENDES GONÇALVES, R.B. Reflexão sobre a articulação entre a investigação epidemiológica e a prática médica a propósito das doenças crônicas degenerativas. Rio de Janeiro: PEC/ENSP/ABRASCO, 1985. (Textos de Apoio Epidemiológico I) MENDES GONÇALVES, R.B. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. São Paulo:

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MENESES E ROCHA, A. A. R.; TRAD, L. A. B. La trayectoria profesional de cinco médicos del Programa Salud de la Familia: los desafíos de construcción de una nueva práctica. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.303-16, mar/ago 2005. Este estudio analiza la trayectoria profesional de cinco médicos integrantes del Programa de Salud de la Familia (PSF) en un municipio del Nordeste de Brasil. A través de historias de vida, circunscritas al ámbito profesional, el estudio enfoca los siguientes factores en la construcción de sus trayectorias: la elección de la profesión, el proceso de formación profesional, la inserción en el mercado de trabajo, particularmente, en el ámbito del PSF. Los datos muestran que el PSF se presenta como un nuevo mercado de trabajo para el médico. El análisis de su práctica en este contexto revela, sin embargo, una tensión entre un conocimiento clínico, que opera en la racionalidad biomédica y es legitimado socialmente, y las acciones de carácter preventivo-promocional priorizadas por el programa. Al mismo tiempo, el PSF parece ser un locus potencial para operar transformaciones en el profesional médico que, como sujeto, puede resignificar su práctica, rescatando las dimensiones humanas y sociales. PALABRAS CLAVE: médico; trayectoria; salud de la familia; práctica de salud.

Recebido para publicação em: 05/08/04. Aprovado para publicação em: 17/05/05.

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SÍLVIA MECOZZI, detalhe

Intuição Intuição,, pensamento e ação na clínica*

Maria Beatriz Lisboa Guimarães

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GUIMARÃES, M. B. L. Intuition, thought and action in the clinic. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.317-32, mar/ago 2005.

This is a theoretical-conceptual study, with two narrative axes: one in the field of philosophy and another one on the level of the sociological analysis of knowledge or culture, which, in this case, examines clinical discourse . This study intends to contribute to the analysis of diagnosis, therapeutics and care within contemporary western culture. The specific objective was to work with the category intuition as a basic element of knowledge within clinical practice, through the analysis of the process as it manifests itself among therapists and patients during treatment. We utilized the Intuitive Method proposed by Henri Bergson, aiming to discuss the limits of strictly rational thought and proposing the transposition of this method to the clinical sphere. In this study, intuition was treated as a synthetic form of perception/thought, in which the reality is apprehended by means of an immediate consciousness, guided by sensibility. KEY-WORDS: intuition; health care professional-patient’s relation; experience; clinical judgment. O presente trabalho constitui um estudo de natureza teórico-conceitual, com dois eixos de narrativa: um no campo da filosofia, e outro no plano da análise da sociologia do conhecimento ou da cultura, que se deu, neste caso, na instância do discurso da clínica. Pretende-se contribuir para a análise da questão da diagnose, da terapêutica e do cuidado na cultura ocidental contemporânea. O objetivo específico foi trabalhar com a categoria da intuição como elemento básico do conhecimento da prática clínica, pela análise do processo que se manifesta em terapeutas e pacientes. Servimo-nos do Método Intuitivo proposto por Henri Bergson, visando colocar os limites de um pensamento estritamente racional e propondo a transposição deste método para a instância da clínica. A intuição foi tratada neste estudo como uma forma sintética de percepção/pensamento, na qual a realidade é apreendida por meio de uma consciência imediata, pautada na sensibilidade. PALAVRAS-CHAVE: intuição; relação profissional-paciente; experiência; Julgamento clínico.

* Elaborado a partir de Tese de Doutorado (Guimarães, 2001). 1

Pesquisadora visitante, Convênio Fundação Oswaldo Cruz/Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, RJ. <beatriz.guima@ensp.fiocruz.br> Travessa Oriente, 65 Santa Teresa - Rio de Janeiro, RJ 20240-120

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GUIMARÃES, M. B. L.

Introdução O presente texto dedica-se a abordar as relações existentes entre intuição e prática clínica, trabalhando com o Método Intuitivo proposto pelo filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), visando discutir os limites do pensamento estritamente racional e propondo a transposição desse método para a instância da prática clínica. Ele está sendo tratado como mais um instrumento a auxiliar o profissional de saúde, vindo a se somar a outros métodos utilizados nos processos de diagnose e terapêutica. Iniciamos o questionamento sobre o tema da intuição a partir da constatação de uma certa insatisfação social em relação à racionalidade da medicina ocidental contemporânea e ao atendimento disponível na sociedade atual. O peso atribuído aos processos racionais do pensamento e ao desenvolvimento tecnológico está levando uma parcela significativa da população a procurar formas alternativas de tratamento, em que uma visão mais integral do ser humano possa ser encontrada. O caminho que percorremos partiu, assim, da constatação da crise de valores sócio-culturais na racionalidade da medicina ocidental contemporânea, o que nos levou a procurar alternativas, em termos sócio-filosóficos, de procedimentos terapêuticos e, também, e isto é importante enfatizar, de mecanismos de apreensão do conhecimento. Nesse sentido, a intuição pode ser um outro eixo de referência para pensarmos a crise da racionalidade médica ocidental, pois acreditamos que ela pode ocupar um espaço em nossa maneira de apreender a realidade e de buscar a cura para as doenças propriamente ditas, espaço até o momento negado no modelo dominante de percepção do adoecimento e da cura. Verificamos, como mostram pesquisas recentes na área, que desde o final da década de 1960, a crise do modelo médico ocidental começou a ficar mais evidente, uma vez que, em termos gerais, em seu aspecto cultural, não satisfaz parte crescente de sua clientela (Luz, 1997). Sabemos, entretanto, que esta crise não se configura como um bloco monolítico. É bem verdade que, para alguns setores da medicina ocidental, principalmente para a indústria farmacêutica, não se verifica crise alguma. Partimos da análise do discurso da clínica que aborda o tema da intuição na prática terapêutica, utilizando artigos de periódicos das ciências médicas e sociais encontrados em diferentes bases de dados2, para então abordar o Método Intuitivo proposto pelo filósofo Henri Bergson. A construção do texto é feita aliando a análise do discurso da clínica, mediante depoimentos de terapeutas referentes a suas práticas, à perspectiva teórica sócio-filosófica, que procurou dar sustentação e legitimidade a esses discursos. Foram encontradas referências bibliográficas sobre intuição nas áreas de enfermagem, medicina e áreas denominadas por nós de “psi” – psicologia, psicanálise e psiquiatria. É interessante e significativo observar que a maior parte dos artigos que abordam a intuição na clínica situa-se no campo da enfermagem. Isto pode ser explicado pelo fato de que atualmente o cuidado com os pacientes se encontra nas mãos dos enfermeiros, uma vez que eles estão mais em contato com o doente, tendo a tarefa de cuidar de sua saúde e assistir o doente. Outro fator que chama atenção é a predominância de autoras (sexo

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2 As bases utilizadas foram a Medline, Bireme, Lilacs, Cochrane Library, Embase, Current Contents e Best Evidence. Não foram obtidas referências bibliográficas nas bases de dados tais como: Cochrane Library, Embase e Best Evidence.


INTUIÇÃO, PENSAMENTO E AÇÃO NA CLÍNICA

feminino) que se interessam por este tema, o que pode estar relacionado ao fato de que a enfermagem é uma prática terapêutica exercida tradicionalmente pelas mulheres. Mas podemos indagar também se o tema da intuição não teria mais afinidade com o “feminino”, uma vez que na nossa sociedade a relação entre o cuidado e o gênero feminino foi sendo construída ao longo dos séculos.

3 Adotamos a definição de espírito baseado em dois filósofos da imanência, a saber: Bergson, na qual o espírito ou alma é constituído de uma substância não-física que não podemos ver e tocar, isto é, os sentimentos e os pensamentos, e associa o espírito ao próprio tempo, ou seja, à duração interior de cada corpo, que perpassa todos os indivíduos, sendo caracterizado como aquilo que anima e dá vida aos seres, isto é, o elã vital; e Espinosa, em que o espírito ou alma não constitui uma entidade separada do corpo, mas é a expressão de tudo que se passa na corporeidade, ou seja, tudo aquilo que afeta o corpo, e lhe aumenta ou diminui a potência. A alma, para Espinosa, é a idéia do corpo, no sentido de que ela é capaz de perceber as idéias das modificações (afecções) do corpo. Enquanto a essência do corpo é a potência para existir e agir, a da alma é para pensar. Estes autores associam a alma à mente, e afirmam que corpo, mente e cérebro são manifestações inseparáveis de um organismo vivo.

As múltiplas “visões” da intuição Segundo a etimologia do termo, intuição vem da palavra latina intuitus: “in”- em, dentro, e “tuitus”, particípio passado de “tueri” - olhar, ou seja, “olhar dentro” (Muniz, 1988). Visão voltada para dentro de si ou ainda olhar a partir de dentro de si. A intuição sempre esteve presente nos sistemas filosóficos desde a Antigüidade grega até a filosofia contemporânea, tendo sido apresentada com diversos sentidos. O que todos têm em comum é a compreensão da intuição como visão imediata (sem mediação) de algo na sua totalidade. No dicionário de filosofia de Brugger (1977), intuição é a visão direta de algo existente, que se mostra imediatamente em sua concreta plenitude (isto é, sem intervenção de outros conteúdos cognitivos), em outras palavras, é o conhecimento que apreende o objeto em seu próprio ser presente. Em sentido similar, o dicionário de filosofia Lalande (1993) define intuição como sendo a visão direta e imediata de um objeto de pensamento atualmente presente no espírito e apreendido em sua realidade individual. Bergson (1974) inova em relação às concepções tradicionais quando coloca o espírito3 como objeto da intuição, apreendido imediatamente como realidade temporal. Visão direta do espírito pelo espírito, consciência alargada, percepção imediata, experiência espiritual ampliada são todas referências à intuição (Maciel Jr., 1997). Bergson ressalta, contudo, a dificuldade em defini-la, pois a intuição supõe sempre o tempo ou a duração e, por conseguinte, o movimento: o prolongamento ininterrupto do passado num presente que penetra no futuro. Ao longo do artigo explicitaremos melhor esse ponto. Em seguida, apresentamos diferentes definições para a categoria da intuição encontradas nos artigos de enfermagem, medicina e áreas “psi”. No artigo de Tatano Beck (1998), a intuição é definida como um conhecimento obtido de uma maneira imediata e percebido como uma totalidade; um processo linear de raciocínio não é usado para alcançar este tipo de conhecimento. O autor afirma que intuição não é um sexto sentido mágico, mas um tipo de raciocínio sofisticado, baseado na organização de informações dentro de padrões, e que ultrapassa a separação dos passos analíticos. Acrescenta que essa habilidade de recolher informações desenvolve-se a partir da experiência. King & Appleton (1997) também sugerem que a percepção intuitiva na prática da enfermagem é a habilidade de, numa situação clínica, reunir elementos em uma totalidade, que originalmente se encontravam dispersos. Para as autoras, os atributos da intuição na enfermagem podem ser definidos como a integração de formas de conhecimento que se dão numa realização repentina.

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No mesmo artigo, as autoras identificam o que foi chamado de ‘gestalt da enfermagem’, a matriz na qual os enfermeiros unem conhecimentos, experiências passadas, exemplos de casos clínicos e descarga de sentimentos (King & Appleton, 1997). No artigo de English (1993), a intuição é relacionada à capacidade de o profissional de saúde identificar crises potenciais nos pacientes, antes que mudanças clínicas significativas tornem-se evidentes. E afirma que a percepção sensível é central para o bom julgamento da enfermagem, e isto começa com um pressentimento vago e uma avaliação global que inicialmente passa por uma análise crítica. Freqüentemente, enfermeiros experientes descrevem suas habilidades perceptivas usando expressões como: descarga de sentimentos, uma sensação de inquietação ou o sentimento de que algo não vai bem. No artigo de King & Appleton (1997), as autoras atestam que o reconhecimento do uso da intuição na prática clínica da enfermagem tem crescido proeminentemente nos últimos vinte anos. Entretanto, esse reconhecimento ainda não é consensual, pois de acordo com Benner & Tanner (1987), apesar de considerarem a intuição um aspecto legítimo e essencial do julgamento clínico, alertam para o fato de que ela tem sido vista como baseada em atos irracionais, advinda de um conhecimento infundado ou mesmo de inspiração sobrenatural, e admitem existir uma certa relutância para conceder legitimidade à abordagem intuitiva no ato de fazer um julgamento clínico, sugerindo que esta intolerância está subjacente à cultura ocidental que demanda uma explicação racional do mundo. Contudo, as autoras chamam atenção para a importância da experiência no bom desempenho da prática clínica, pois, por meio da qual os profissionais aprendem a utilizar suas percepções de modo que podem levar a confirmar evidências. Afirmam, ainda, que a intuição, definida como ‘entendimento sem o racional’, poderia ser caracterizada como uma arte mais do que como uma ciência e, assim sendo, é única, criativa e não pode ser mensurada nem submetida a uma verificação objetiva nos mesmos moldes aplicados à ciência. Sem dúvida, podemos constatar que uma certa aura de mistério ronda a questão da intuição, por ela fazer parte de algo que foge à nossa compreensão racional, entretanto, não queremos associá-la a esferas sobrenaturais, pois é no seio da própria imanência ou da dimensão espiritual do ser que ela se realiza. É interessante ressaltar que, apesar de os sentidos atribuídos à intuição variarem de um autor para outro, todos concordam que é uma forma de apreensão do conhecimento que se dá de uma maneira sintética, imediata e inexplicável, ancorada na experiência, indicando algo da esfera do sensível, peculiar apenas para aquele que sente, e que resulta na criação de algo novo. Experiência e intuição Conforme pontuamos acima, parece ser consensual entre os profissionais de saúde a afirmação de que a experiência é considerada um componente necessário da intuição. Nesse sentido, Easen & Wilcockson (1996) assinalam que o sentido é produzido na experiência, e que experiência sem intuição consistiria em uma série de simples eventos na qual faltaria direção ou significado. Como sugerido no artigo de O’Connell (1992), um enfermeiro é considerado expert por possuir conhecimento e experiência acumulada, pois

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somente com isso ele poderá ter uma compreensão adequada da prática da enfermagem. A experiência com os casos clínicos auxilia muito este tipo de conhecimento. O olhar, a escuta e o toque de um profissional de saúde experiente e envolvido com os problemas trazidos por seus pacientes são fundamentais para o bom julgamento clínico. Com a experiência, o profissional de saúde sabe distinguir um caso grave de uma cena corriqueira. Desse modo, vemos que a intuição tem pelo menos duas pernas, uma que está ancorada no conhecimento anterior ou já dado dado, e outra que advém no momento presente em que está se dando dando. Sendo assim, por mais que apostemos no valor do acontecimento e do devir, não deixamos de acentuar o valor da memória e do conhecimento acumulado. Neste sentido, é bom frisar que a intuição não surge do nada, é necessário que o indivíduo esteja preparado para poder receber este novo conhecimento que emergirá. O acontecimento proporciona ao ser humano a vivência de microssensações e micropercepções que vão afetando o corpo de diferentes maneiras, ao passo que as idéias produzidas vão sendo armazenadas na memória. Com o tempo, os interesses práticos do dia-a-dia vão recobrindo essas lembranças, deixando-as em estados inconscientes. Mas quando algo estranho ou não reconhecido ocorre, a sensibilidade logo procura resposta que dê sentido àquele acontecimento. Alguns enfermeiros dizem acontecer o seguinte: "Você vê muita coisa e alguma coisa faz você lembrar o que viu e procura por isto de novo. Eu não sei se você procura por isto conscientemente, mas você se lembra (...) Eu acho que você desenvolve isto com a experiência". Ou ainda, nas palavras de outro enfermeiro: “Você experimenta algo e aquilo fica ali na sua mente, mas você não sabe o que é, não obstante ele está lá – algo.” (Cioffi, 1997, p.204). As descrições desses dois enfermeiros sugerem um conhecimento sutil operando sob a consciência que nasce da experiência e fica na memória à disposição para ser chamado em situações clínicas apropriadas. Esta noção da intuição é individual. O que é intuitivo para uma pessoa pode não ser para outra. Esses julgamentos intuitivos são apresentados como subjacentes aos processos conscientes e não são suscetíveis de serem explicados de uma maneira tangível (Cioffi, 1997). Nesse sentido, a intuição é especialmente necessária diante de acontecimentos inesperados e não imediatamente reconhecidos pelo profissional de saúde. English (1993) propôs que eventos atípicos e inesperados que não se conformam com as expectativas deveriam receber atenção redobrada. Pois quando uma cena comum é vista, um plano de ação apropriado é ativado e uma representação é formada. A atenção é maior quando ocorre algo inesperado. Esta acuidade perceptiva se desenvolve apenas depois de muita experiência em situações similares. O que os enfermeiros dizem ocorrer é que, com a experiência ou por meio de um conhecimento tácito, complexas seqüências de ações podem se tornar tão rotineiras pela prática e experiência, que são executadas semiautomaticamente. Em outras palavras, a consciência associada a essas ações profissionais freqüentes e repetitivas tende a retroceder, enquanto a atenção na percepção de aspectos pouco usuais da situação aumenta (Easen &

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Wilcockson, 1996). Eles fazem referência a esse tipo de conhecimento como baseado numa inteligência do corpo e citam como exemplo a situação de quando um enfermeiro experiente precisa pegar uma veia, ele prova que o cateter é quase uma extensão dos seus dedos e não um objeto estranho. Isto possibilita ao profissional de saúde deixar sua mente livre para perceber outras manifestações do acontecimento. É interessante observar, conforme Thomas Kuhn pontuou, que é justamente o reconhecimento de anomalias, discrepâncias e exceções que freqüentemente levam ao descobrimento de uma verdade. Mas para tanto é necessário uma mente aberta, receptível e disponível para estas possibilidades; isto foi percebido astutamente por Louis Pasteur, ao afirmar que: “no campo da observação, o acaso favorece a mente preparada” (Meyers, 1995). O filósofo contemporâneo Gilles Deleuze propôs uma teoria acerca de como um novo pensamento é acessado em nossas mentes, contrário ao que fora proposto por Platão, mas que se assemelha a nossa abordagem. O pensar, para a filosofia de Deleuze (1988), não é reconhecer algo que já se encontrava em outro mundo, tal como concebido por Platão, mas sim problematizar, ou seja, colocar uma nova idéia. Pensar é o que advém da falência dos hábitos, não é natural; para nascer precisa sempre de uma ocasião fortuita ou da contingência de um encontro. É necessário que algo violente o pensamento já estruturado, uma estranheza ou uma inimizade para tirá-lo de seu estado natural. É justamente quando não reconhecemos o que vemos de uma forma adequada à nossa visão anterior que somos forçados a pensar ou, porque não dizer, a criar. Pois quando não reconhecemos ou quando não conseguimos ter clareza para agir em uma determinada situação, de imediato um estranhamento se impõe. Neste momento, nosso conhecimento intelectual/racional anterior se dissipa por não sabermos utilizá-lo na nossa vida prática, por não sabermos, portanto, nos servir dele. Isto coloca uma questão que nos força a pensar. Neste sentido, o pensar só advém ao pensamento quando somos forçados. E nesta instância, somente a sensibilidade poderá suscitar uma resposta ao problema, trazendo-a sob a forma de uma nova idéia ou uma nova criação, pois somente a sensibilidade é capaz de juntar os pensamentos que se encontram dispersos e fazer a síntese sob a forma de um novo pensamento. Um profissional de saúde experiente ou atento aos sinais que o paciente emite é capaz de reconhecer quando algo não vai bem. E são justamente nas situações mais atípicas, quando o profissional de saúde não reconhece os sintomas que o paciente está emitindo, isto é, quando os sintomas não se enquadram no diagnóstico anterior, que uma atenção redobrada é requerida, fazendo com que o profissional se coloque por inteiro na relação para que ele possa captar pequenas pistas, indícios ou sinais que estão permeando a situação. É necessário que o sujeito que observa saiba captar aquele sinal, relacionando-o com outros sinais que possam se traduzir num diagnóstico ou numa terapêutica. Daí a importância da experiência acumulada e do conhecimento prévio. Canguilhem (1997) também assinala o valor da experiência nas questões referentes à saúde, quando afirma que as categorias de saúde e doença só são reconhecidas no plano da experiência (e não no plano da ciência), pois, segundo o autor, “a vida não é, para o ser vivo, uma dedução monótona, um

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movimento retilíneo; ela ignora a rigidez geométrica, ela é debate ou explicação com um meio em que há fugas, vazios, esquivamentos e resistências inesperadas” (Canguilhem, 1978, p.160). Ou seja, a vida foge ao esquadrinhamento e à formatação que as ciências pretendem impor, pois sua expressão vivenciada pelos seres humanos se faz a cada momento, trazendo sempre uma ou muitas novidades. Como Martins (1999) bem argumentou, em termos éticos, as ciências da vida ganharão quando compreenderem a vida não mais como um objeto a ser dominado, justamente pelo medo de ver a vida como devir, movimento, pulsão, inesperado. Queremos agenciar intuição com experimentação para que possamos pensáça ocorrendo a partir da vivência compartilhada entre terapeuta e paciente, em tudo aquilo que se passa entre esses atores sociais. Ou seja, tomar a prática de operar com e não sobre o paciente; e o que isto quer dizer? É a participação ou o engajamento do profissional de saúde no processo de cura do sujeito doente, compartilhando com ele sensações, histórias, transformações, em vez de se colocar na posição de detentor do saber que se instaura de maneira fria e distanciada por sobre os pacientes. Silva (1993), em depoimento sobre sua prática de enfermagem em um hospital de pacientes com AIDS, refere-se ao desejo que sente de não impor um modelo de ação no seu atendimento clínico, mas, ao contrário, deixar-se guiar pelas necessidades que são impostas nas situações do momento. Ao dirigir-se para o encontro com os clientes, a enfermeira relata que apesar de possuir a predisposição de fazer o melhor, nunca sabe ao certo o que irá acontecer, tendo em vista a participação dos clientes neste processo. Silva observa que as intuições fluem com maior intensidade à medida que sua capacidade de sintonização e receptividade é mais acentuada. Entretanto, enfatiza que é muito difícil explicar o processo intuitivo, mas sabe que consiste em um dos requisitos básicos para o efetivo processo de cuidar. Concluindo, constata que quando utiliza o dispositivo da intuição, suas ações fluem com espontaneidade, transformando seu atendimento em momento rico de aprendizagem e de novas experiências e, ao mesmo tempo, agradável. Em sua prática profissional anterior, detectava que existia a angústia e preocupação em cumprir a cada dia os objetivos traçados, levando, conseqüentemente, a uma prática impositiva, improdutiva e cansativa. Caminhando nessa mesma direção, Easen & Wilcockson (1996) descrevem a maestria artística do profissional experiente como o processo no qual o insight na situação presente não precede a ação, mas emerge no curso dela. Esta perspectiva que privilegia os acontecimentos significativos que ocorrem no curso do tempo é uma importante questão que merece ser tratada com empenho. Pode-se dizer que ela constitui uma das questões que fundamentam e dão sustentação a este trabalho. Iremos relacioná-la ao conceito de duração em Bergson. O conceito de duração e o método intuitivo de Bergson Bergson (1974) afirma existirem duas formas de conhecimento, colocadas lado a lado, constituindo duas direções divergentes da atividade do pensamento: uma que é obtida pela inteligência e outra, pela intuição. A primeira visa inserir o ser humano no mundo material de forma eficaz; sua função básica consiste

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em presidir ações. Para Bergson, toda nossa existência visa basicamente à satisfação de nossas necessidades e interesses práticos. A inteligência, quando destinada à satisfação de interesses materiais, isto é, aplicada ao terreno prático, é eficaz; o problema se coloca quando ela se propõe a dar a chave do conhecimento do real tal como ele é em si. Pois, para Bergson, a realidade se apresenta como um processo contínuo de fluxo e transformação, e a inteligência, ao fixar o real em representações esquemáticas, enquadrandoas em categorias fixas e imutáveis, perde o movimento que o caracteriza. O erro da inteligência é pensar que o real já está dado. Ao contrário, ele devém a cada momento, e o faz diferenciando-se. Nesta instância, a inteligência engendra ilusões causadas por se generalizar idéias que só se aplicam ao terreno prático e circunstancial. A mais flagrante de todas as ilusões consiste, segundo Bergson, em crer que podemos pensar no instável por meio do estável, no movente por meio do imóvel, ou seja, a inteligência é incapaz de compreender a essência da natureza do espírito, uma vez que esta essência consiste em fluir, ao passo que a inteligência só retém do real momentos fixos e descontínuos, levando-nos, com isso, a uma compreensão inadequada da realidade. Neste sentido, a inteligência, atenta à exatidão e à abstração, destaca do devir determinados momentos significativos, transporta-os para um espaço auxiliar e os analisa decompondo-os em uma série de instantes descontínuos, como algo já feito, ignorando o processo em que eles se fazem (Maciel Jr., 1997). A duração real é assim sistematicamente desviada. Para Bergson, “a essência da duração está em fluir. O real não são os ‘estados’, simples instantâneos tomados por nós ao longo da mudança; é, ao contrário, o fluxo, é a continuidade de transição, é a mudança ela mesma.” (Bergson, 1974, p.110). O devir é o processo de transformação de algo em outro, a metamorfose ou o tornar-se. Sua consistência é a própria transformação: é o que Bergson denomina de duração duração, ou seja, aquilo que está se dando, que é a própria passagem do tempo ou o desenrolar do tempo, e que consiste em um fluxo de criação no qual cada momento é inteiramente novo. Com o intuito de reprimir as ilusões da inteligência, Bergson propõe, então, uma apreensão imediata da realidade, que só se viabiliza por meio da intuição. Explorando a categoria da intuição, o autor elabora seu método filosófico. A compreensão da duração é importante para o método intuitivo, pois a intuição supõe a duração, ou seja, a intuição consiste pensar em termos de duração. A intuição é o movimento pelo qual saímos de nossa própria duração, ou nos servimos de nossa duração para afirmar e reconhecer imediatamente a existência de outras durações diferentes em natureza da nossa (Deleuze, 1987). Podemos perceber tantas durações quantas queiramos, todas diferentes entre si, mas o que todas têm em comum é o fato de estarem compartilhando um mesmo momento no tempo, pois para Bergson existe um só tempo, denominado de “Todo”, ainda que haja uma infinidade de fluxos. Bergson alia duração à subjetividade, isto é, para ele, a subjetividade é interior ao tempo. Vivenciar a experiência do tempo ou da duração é estar presente no aqui e agora, mergulhando no interior do momento; é apreender a

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emergência de algo, nele se fazendo. Neste sentido sujeito e objeto não são prédeterminados, são construídos na medida em que o tempo passa, e são ressignificados a cada momento. A vida, dessa forma, passa a ser produção, criação de diferenças. Somente nesta experiência do tempo ocorre o novo, advém a criação; tudo mais são representações, são elementos já conhecidos. O que nos distancia de estarmos sempre presentes no aqui e agora são nossos interesses práticos, pois, para darmos conta deles, alienamo-nos de nossos impulsos criativos. Portanto, para se conhecer o todo, não é preciso sair de si mesmo, pelo contrário, tem-se que voltar para dentro de si para poder apreender o todo que coexiste com o momento presente. Neste sentido, para que a intuição possa emergir, é necessário desinteressarse da vida prática e saber ver a passagem do tempo em seu duplo jogo simétrico, ou seja, estar presente no aqui e agora, sentindo a passagem do tempo. E, para que isso possa se dar é necessário, de acordo com Bergson, esvaziar a mente ou deixá-la livre de representações, com apenas os sentidos presentes na duração do tempo e ao que acontece a sua volta, para que a sensibilidade possa apreender aquele momento em sua totalidade. Vivenciar a duração bergsoniana e ser capaz de criar e intuir algo novo implica um certo desprendimento do ego ou do self, para poder situar-se na duração e estar presente no acontecimento e não no próprio umbigo, amarrado a sua teia de significados. A intuição ocorre quando o pensamento racional - nos moldes da inteligência prática/interesseira - é submetido à crítica, permitindo que a atenção se volte para o espírito ou para a sensibilidade. Neste momento, o sujeito vive a duração presente; e, num lapso de tempo, por meio de uma consciência imediata pautada nos sentidos e na sensibilidade, sobrevém um problema ou uma nova idéia. Para Bergson, colocar o problema é mais crucial do que resolvê-lo, pois implica uma invenção, ao passo que a resolução advém, cedo ou tarde. Assim como o domínio da inteligência é a matéria, para Bergson o domínio da intuição é o espírito. E sugere que existe algo de divino no espírito que se insere como criador de novas idéias, fruto do pensamento intuitivo, porque, para ele, somente esse conhecimento é realmente criador, no sentido de trazer algo novo, pois somente o pensamento intuitivo consegue captar o momento presente em todas as instâncias que o compõem – denominado por Bergson de “Todo”. Isto é, consegue sintetizar ou elaborar conscientemente as diferentes idéias e sentimentos dos diferentes fluxos e durações presentes numa dada situação (a totalidade para Bergson não é prédeterminada, mas é uma totalidade aberta e em processo). O pensamento intelectual, por outro lado, re-elabora idéias já preconcebidas. A intuição apresenta-se sempre como uma totalidade, sob a forma de síntese, mas logo em seguida vem o pensamento racional para elaborar, comparar e analisar aquilo que foi intuído, recorrendo ao conhecimento que o sujeito já possuía anteriormente: nisto consiste o Método Intuitivo proposto pelo autor. Essas duas formas de pensamento não são, portanto, excludentes, mas sim complementares. Convém esclarecer que não estamos opondo razão à intuição, a razão está presente tanto no pensamento intelectual quanto no intuitivo, só que no primeiro caso ela está pautada em idéias previamente concebidas e no segundo, a razão está a serviço da intuição.

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A intuição é, neste sentido, a capacidade de o espírito captar, sem mediação da razão e de uma maneira sintética, aquilo que foi apreendido pelo corpo. Esta reação do espírito pode ser percebida por meio de uma forte emoção que o arrebata. Essa emoção, que Bergson denominou de criadora, é caracterizada por um estremecimento afetivo da alma, advindo da sintonia com a duração do todo, que se expressa na criação de algo novo. É como se o impulso vital se auto-afetasse (Maciel Jr., 1997). Nesse estado, os processos conscientes de pensamento dão vazão aos sentimentos, permitindo que a intuição funcione como um gatilho para impulsionar e trazer à tona os estados inconscientes do ser, por meio de um processo associativo. Desse modo, o espírito é capaz de captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Por sua vivência, a intuição auxilia o sujeito a distinguir o essencial do não essencial. A intuição é a própria criatividade expressando-se na vida, por isso o restabelecimento da saúde dá-se por meio da criação de novas formas de vida, como ressaltou Canguilhem (1978), por vezes superiores às antigas. Convém esclarecer que o terapeuta/profissional de saúde não faz o diagnóstico com base em uma “inspiração divina”. É essencial a formação e o conhecimento construído e acumulado durante todos os anos de aprendizagem e exercido na prática clínica do profissional para que ele tenha condições de fazer diagnósticos e estabelecer terapias. O método intuitivo de Bergson está sendo proposto para ser aplicado na instância da clínica como mais um instrumento a auxiliar este profissional no seu trabalho cotidiano. A intuição se dá a partir dos sentidos e da sensibilidade que se expressam quando o sujeito está em sintonia com o momento presente, pulsando junto com o outro e com o “Todo”, e atento aos sinais e sintomas trazidos por seu paciente/cliente. É bom enfatizar que a intuição necessita do pensamento racional para elaborar, discernir e avaliar aquilo que foi intuído no corpo pelos sentidos, e também da instância de elaboração racional que foi construída anteriormente à captação intuitiva pelo profissional de saúde e que se encontra armazenada em sua memória. O julgamento intuitivo é uma maneira de sentir/julgar própria de cada pessoa, como já foi dito anteriormente, mas que não se dá a partir de um nada e sim a partir de uma mente preparada e em sintonia com a situação do momento que envolve o outro, a percepção de si mesmo (percepção duplicada, em que o sujeito se vê vendo na situação presente) e de tudo aquilo que os circundam. A intuição não emerge de uma postura centrada no ego, mas, ao contrário, de uma atenção voltada para o momento presente, diluída no “Todo” bergsoniano. Aspectos que descrevem o pensamento intuitivo Iremos agora nos deter em explorar uma pesquisa realizada na Escola de Enfermagem da Universidade de Connecticut, USA, em que o professor Cheryl Tatano Beck (1998) solicitou a vinte e um enfermeiros que descrevessem uma experiência em que tivessem feito uso da intuição em sua prática clínica. Como resultado, as seguintes características do pensamento intuitivo foram identificadas: · uma descarga de emoções arrebata os enfermeiros quando eles percebem que algo não vai bem;

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· ouvir sua própria intuição envolve um compromisso consciente em acompanhar persistentemente o estado de seu paciente; · intuição envolve observação astuta de insinuações sutis não-verbais e mudanças no comportamento normal do paciente. Vamos nos deter um pouco em cada um desses itens. O primeiro ponto relaciona a intuição a uma descarga de emoções. Como já foi abordado anteriormente, para Bergson (1974), a intuição provém dos sentidos e da sensibilidade e é obtida por meio de um tipo de emoção que se manifesta de modo arrebatador, num lapso de tempo, sob a forma de uma descarga. Este tipo de emoção não é suave nem está condicionada por hábitos e obrigações, pelo contrário, é vivenciada como um arrebatamento do espírito, conferindo um certo grau de certeza com relação àquilo que foi intuído. Essas emoções simplesmente chegam à mente de quem intui sem que se saiba o modo ou os degraus percorridos. Em muitos casos, essa descarga de emoções é associada a sensações físicas que podem se expressar por sintomas, como por exemplo, pele ruborizada, boca seca, tensão muscular e pulso acelerado (King & Appleton, 1997). E é justamente pelo fato de o profissional de saúde não saber identificar com precisão o modo como o pensamento intuitivo chega a sua mente, que esse tipo de pensamento ou julgamento é, em muitos casos, menosprezado pela comunidade médica. Segundo Benner & Tanner (1987), a maior parte dos insights e julgamentos significativos podem ser descartados ou desacreditados, em virtude de sua aparente falta de evidência concreta. O profissional fica com um sentimento de desvantagem por não possuir um conhecimento legitimado, mesmo estando certo de seu julgamento clínico. O segundo ponto refere-se à necessidade de o profissional de saúde acompanhar de perto o estado de saúde de seu paciente. King & Appleton (1997) também reconhecem a importância dessa atitude e afirmam que conhecer o paciente ou cliente e envolver-se com seu cuidado são elementoschave que fortalecem a intuição dos profissionais. Este ponto pode ser desdobrado em pelo menos dois aspectos que, de uma certa maneira, se complementam. O primeiro diz respeito ao cuidado e o segundo ao envolvimento emocional. Benner, ao comentar o artigo de Orlick (Orlick & Benner, 1988), acentua o papel fundamental que o cuidado desempenha na reintegração do indivíduo à sociedade e na sua conseqüente recuperação. Segundo a autora, o cuidado reintegra o indivíduo doente ao seu mundo e constitui um ingrediente essencial para sua recuperação, pois os pacientes não são persuadidos a retornar a um mundo que é frio, impessoal e técnico, pelo contrário, eles são persuadidos pelo cuidado e freqüentemente esse cuidado precisa ser expresso de maneira individualizante, que fuja da convenção e da rotina hospitalar. A autora conclui afirmando que enfermagem é mais do que mera técnica. A palavra cuidado, de acordo com Boff (1999), deriva do latim cura, usada em um contexto de relações de amor e amizade. Outros derivam cuidado de cogitare-cogitatus, tendo o mesmo sentido de cura: cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar uma atitude de desvelo e de preocupação. O cuidado faz parte da essência humana e não é apenas um ato pontual, mas sim a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os

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outros (Boff, 1999). Requer uma atitude de envolvimento, de preocupação e de responsabilização para com o próximo, pois compreende o acolhimento, a escuta do sujeito, o respeito por seu sofrimento e por sua história de vida. A relação não é de domínio sobre, mas de con-vivência, e sua centralidade não é ocupada pelo logos - razão, mas pelo pathos - sentimento. Por outro lado, Illich (1975), ao abordar a questão do cuidado, faz uma crítica ao cuidado heterônomo, expropriador da saúde dos indivíduos, presente na medicina atual, isto é, um cuidado que vem sob a forma de prescrições médicas, exterior ao indivíduo e imposto a ele de forma coercitiva. O autor associa saúde ao grau de liberdade de lutar e de se auto-afirmar que um indivíduo possui. Nesse sentido, entende que a medicina atual, pautada no desenvolvimento tecnológico, expropriou a saúde dos indivíduos, na medida em que delegou para si o saber referente ao cuidado com a saúde, desqualificando as práticas tradicionais e/ou alternativas, e deixando o homem moderno despreparado para lidar com o adoecimento, o sofrimento e a morte. Acresce-se a isto o fato de que, em geral, na medicina dominante em nossa sociedade, especialmente no atendimento público de saúde, os sujeitos são vistos como portadores de doenças, não sendo tratados de modo integral e nem valorizados em sua humanidade e individualidade. Outro fator agravante nesse sentido é o fato de que a medicina privilegia os aspectos físicos/biológicos da doença em detrimento dos fatores subjetivos que influenciam no adoecimento dos sujeitos, esfera restrita aos atendimentos psicológicos. A questão do cuidado remete a um outro ponto que se relaciona ao envolvimento emocional do profissional de saúde com o paciente. De início, acreditamos que sem envolvimento não há cuidado, no sentido integral do termo, pois sem uma atitude de desvelo e de atenção para com o outro, a intenção de cura não se apresenta e, portanto, não se efetiva. O trabalho mecânico e técnico do profissional de saúde, mesmo que tenha o objetivo de cuidar do paciente, pode salvar vidas, mas não consegue atingir o sentimento e o sofrimento de quem adoece (Tesser, 1999). No artigo de Easen & Wilcockson (1996) os autores afirmam que a interação entre estados emocionais e processos cognitivos é crucial para o processo da intuição, e que as percepções associam-se a emoções. Relatos de diferentes médicos e enfermeiros ressaltam o valor positivo do envolvimento emocional com o paciente. Eles dizem ter vivido uma certa incongruência entre o que haviam aprendido nas escolas ou faculdades e o que experimentavam no cotidiano com os pacientes. Nas escolas, ensinavam que não deveriam envolverse emocionalmente com os indivíduos doentes e que deveriam manter uma certa distância e frieza técnica a fim de preservar o bom trabalho clínico e alcançar melhores resultados no tratamento. Na prática, especialmente nos hospitais, muitos profissionais de saúde demonstraram satisfação ao tratarem seus pacientes de uma forma humana, calorosa e atenciosa, pois desse modo os pacientes reagiam melhor ao tratamento e os profissionais sentiam-se mais seguros. Com base no Método Intuitivo proposto por Bergson e aplicado à instância da prática terapêutica, para que a intuição possa emergir é necessário que tanto terapeuta quanto paciente se envolvam por completo na relação que se instaura no momento da consulta e/ou atendimento. O que chamaremos de

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envolvimento por completo é a presença, em especial do profissional de saúde, com todo o seu ser, incluindo seu corpo e seu espírito, em tudo que diz respeito ao seu paciente: seus gestos, olhares, palavras, silêncio. É necessário que haja um caminho de ida e volta entre o paciente e o profissional de saúde, de modo que a percepção se duplique e o espírito se veja presente na situação do momento. Ou seja, ao mesmo tempo em que o profissional de saúde está com sua atenção voltada para o paciente, ele também se volta para si mesmo, tendo consciência do seu ser presente naquele momento. Isto requer uma atenção rigorosa, isto é, uma consciência de si, do outro e da interação que está se dando entre ambos. Requer também que a mente não esteja ocupada com lembranças ou antecipações que não fazem parte do universo presente naquela situação. Esta visão retoma o viver o aqui e o agora preconizado pelos Pré-Socráticos e também pelos Budistas. É necessário, portanto, um certo “quietismo de sentir”, um certo “vazio”, ou ainda um desprendimento do ego, para que só o espírito ou a sensibilidade possa viver neste fluxo. Assim, o tempo, o processo e o co-funcionamento são cruciais para que a consciência possa se desprender dos interesses práticos e de modelos predefinidos, para entrar no próprio fluxo do tempo, que Bergson denomina de duração, no qual estão presentes os sinais capazes de dar as chaves para os caminhos da cura. Um ponto explorado por diferentes autores refere-se à relação entre o processo intuitivo e a receptividade do profissional de saúde e do paciente ao tratamento. Eles consideram que o “estar aberto” para receber novas informações ou idéias e para lidar com dados incompletos e pouco claros são atributos que facilitam a intuição; como também o “estar atento” às “sincronicidades” e às coincidências significativas. Por essas coincidências, muitas vezes o profissional de saúde consegue compor um todo que antes se encontrava disperso. E se não há atenção para perceber essas coincidências, elas passam sem que se note qualquer diferença. Conforme Muniz (1988) assinala, muitas vezes observamos que na situação clínica, comunicações de vários tipos, soltas aparentemente sem significado específico naquele instante, vão se “agrupando” até emergirem subitamente num insight do analista, do paciente ou de ambos. O terceiro ponto levantado na pesquisa de Tatano Beck refere-se à importância da observação precisa e criteriosa de insinuações ou gestos sutis, e está relacionada à capacidade de perceber pequenas mudanças no comportamento dos pacientes, na maior parte dos casos demonstrados de maneira não-verbal. No artigo de Benner & Tanner (1987) foi mencionado que a observação da vida cotidiana é um componente necessário para qualquer processo de diagnose. Clínicos experts aprendem a usar o que foi denominado "material tolo - a quê os pacientes se assemelham, como falam, como se alimentam etc., em suas compreensões ordinárias e triviais" -, no reconhecimento de tendências sutis das doenças. Para Muniz (1988), a expressão “olho clínico” é de amplo conhecimento de todos para designar a qualidade sensitiva na capacidade de diagnosticar, que inclui os atributos pessoais além da experiência acumulada. Concordamos com esses autores e ressaltamos a importância da atenção apurada para se observar os pequenos detalhes, os sinais imperceptíveis, os gestos inconscientes, os toques e os silêncios, pois eles podem traduzir aquilo

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que as palavras muitas vezes não conseguem expressar. Um paradigma de conhecimento que incorporava esse princípio da observação de pequenas sutilezas ou indícios quase imperceptíveis existiu na humanidade mais primitiva e povoou a medicina do final do século XIX, entretanto não vingou diante do modelo biomédico que se tornou hegemônico. Ele nos foi apresentado pelo historiador Carlo Ginzburg (1991) e constituía-se em um paradigma indiciário baseado na semiótica médica; “a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo” (p.151). O que caracteriza esse saber, segundo Ginzburg, é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente. Ele quer nos mostrar que são justamente os pormenores mais negligenciáveis, ou seja, os elementos subtraídos ao controle da consciência ou os pequenos gestos inconscientes, ou ainda os indícios quase imperceptíveis, que nos permitem captar uma realidade mais profunda que, de outra forma, seria inatingível. Por meio de exemplos retirados de diversos momentos históricos, Ginzburg (1991) aponta para a relevância do saber nascido da experiência, como ele afirma, da concretude da experiência, residindo aí a força desse tipo de saber. São, portanto, formas de saber mudas, no sentido de que suas regras não se prestam a serem formalizadas nem ditas. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo elementos imponderáveis, tais como: faro, golpe de vista, olhar-clínico, intuição. Esse tipo de saber indiciário aplica-se bem à medicina, uma vez que esta trabalha qualitativamente com casos individuais, em situações conjeturais específicas, em que cada situação vivida pelo terapeuta e o paciente é única em relação a todas as demais. Enfim, esses três pontos mencionados acima e levantados a partir da pesquisa coordenada pelo professor Tatano Beck (1998) foram passados para os graduandos de enfermagem que, ao saberem dos resultados, se sentiram aliviados em poder expressar os sentimentos intuitivos que já haviam sentido anteriormente em suas experiências clínicas. Considerações finais No contexto atual da clínica médica observamos uma certa crise do modelo dominante, no qual algumas “verdades” até então inabaláveis estão sendo colocadas em cheque. A prática clínica tem apontado para a não dissociação do corpo e da alma, e os profissionais de saúde já admitem recorrer à intuição em determinados julgamentos clínicos. A questão é isso ser assumido, expandido e aperfeiçoado. O Método Intuitivo de Bergson mostra-se eficaz uma vez que incorpora tanto o conhecimento racional acumulado pelo saber médico, quanto o imprevisível que permeia a relação terapeuta-paciente. Sua singularidade recai, sobretudo, em uma atitude de despojamento diante das idéias preconcebidas e, portanto, fixas e imutáveis, em função de um deixar-se fluir, junto ao tempo, para que a partir dessa vivência harmônica na duração possam emergir os signos e sinais capazes de dar as chaves para a compreensão do sofrimento do outro. A partir dessa vivência compartilhada, permeada pelo cuidado e por afetos, sensações, idéias e percepções sensíveis, o terapeuta torna-se mais apto

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a intuir, por sua sensibilidade, aquilo que pode estar afligindo seu paciente, ou seja, por meio de sua intuição o terapeuta pode conseguir captar algo do espírito de seu paciente, facilitando o processo de cura. Procuramos mostrar que a medicina ocidental vem, nos últimos séculos, privilegiando a ciência das doenças, devido a seu grau de determinação e objetividade; e deixando de lado, em contrapartida, a arte de curar, que implica uma certa criatividade, pois exige do terapeuta mais do que apenas assimilação de conhecimento, exige sensibilidade e intuição para lidar com o novo, o contingente e o desconhecido. Habilidades que o terapeuta necessita ter, pois o trabalho médico, como mostrou Lilia Schraiber (1997), é uma estrutura instável, pois lida de forma particular com cada indivíduo e a cada vez em que ele é atendido. Esta pesquisa também procurou mostrar ser o paradigma técnicocientificista a reger a medicina ocidental contemporânea insuficiente para dar conta da questão da cura. A prática clínica é uma forma de ação que escapa ao modelo da filosofia clássica e aos ditames da ciência moderna, sobretudo a aplicada à medicina, uma vez que reduz a prática médica a intervenções mecânicas e técnicas, centradas na doença e não no indivíduo doente. Não podemos subestimar o valor da técnica e da ciência para a medicina e para o aumento da expectativa de vida das pessoas, não se trata de superá-las. Mas levar em conta somente estes aspectos é não estar atento para a totalidade da vida, não sendo, com isto, fiel à completude do real. Referências BENNER, P.; TANNER, C.Clinical judgment: How expert nurses use intuition. Am. J. Nurs., v.87, n.1, p. 2331, 1987. BERGSON, H. Introdução à metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores). BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. BRUGGER, W. Dicionário de filosofia. São Paulo: Pedagógica e Universitária, 1977. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978. CIOFFI, J. Heuritics, servants to intuition, in clinical decision-making. J. Adv. Nurs., v.26, n.1, p.203-8, 1997. DELEUZE, G. El bergsonismo. Madrid: Cátedra, 1987. DELEUZE, G. A imagem do pensamento. In: DELEUZE, G. Diferença e repetição. São Paulo: Graal, 1988. p.215-73. EASEN, P.; WILCOCKSON, J. Intuition and rational decision-making in professional thinking: a false dichotomy? J. Adv. Nurs., v.24, n.4, p.667-73, 1996. ENGLISH, I. Intuition as a function of expert nurse; a critique of Benner’s novice to expert model. J. Adv. Nurs., v.18, n.3, p.387-93, 1993. GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p.143-79. GUIMARÃES, M. B. Intuição e arte de curar: pensamento e ação na clínica médica. Rio de Janeiro: UERJ/IMS, 2000. (Estudos em Saúde Coletiva, 203).

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GUIMARÃES, M. B. L. Intuición, pensamiento y acción en la clíínica. Interface - Comunic., Educ. v.9, n.17, p.317-32, mar/ago 2005. Saúde, Educ., Este trabajo es un estudio de naturaleza teórico-conceptual, con dos líneas de narrativa: una en el campo de la filosofía y otra en el plano del análisis sociológico del conocimiento o de la cultura, que, en este caso, tuvo lugar en el campo del discurso de la clínica. Este estudio se propone contribuir al análisis de la cuestión de la diagnosis, de la terapéutica y del cuidado en la cultura occidental contemporánea. El objetivo específico fue trabajar con la categoría de la intuición como elemento básico del conocimiento de la práctica clínica, a través del análisis del proceso manifestado en terapeutas y pacientes durante el tratamiento. Hicimos uso del Método Intuitivo propuesto por Henri Bergson, con la intención de delimitar un pensamiento estrictamente racional y proponer la trasposición de este método a la instancia clínica. En este estudio, la intuición fue tratada como una forma sintética de percepción/pensamiento, en la cual la realidad es comprehendida por una consciencia inmediata, regida por la sensibilidad. PALABRAS CLAVE: intuición; relaciones profesional-paciente; experiencia; juicio clínico. Recebido para publicação em: 24/09/04. Aprovado para publicação em: 20/04/05.

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Sobr elação entr Sobree a rrelação entree Educação e Psicanálise no contexto das nov as formas de novas subjetiv ação subjetivação

Maria Regina Maciel

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MACIEL, M. R. On the relation between education and psychoanalysis in the context of new forms of subjectivity. Interface - Comunic., Saúde, Educ., Educ. v.9, n.17, p.333-42, mar/ago 2005.

This article explores the relationship between education and psychoanalysis in the context of new forms of subjectivity. It discusses Freud’s references to education, as well as some of the most recent works on the theme. Taking into account the changes that both fields have undergone regarding their theories and their practices, it proposes an intersection between them, to take place within the school environment, contributing to the emergence of more creative subjects. KEY-WORDS: education; psychoanalysis; singularities; creativity. Este artigo tece relações entre educação e psicanálise no contexto das novas formas de subjetivação. Discute as referências de Freud à educação, bem como algumas das mais recentes publicações sobre o tema. Levando em consideração as transformações por que têm passado ambos os campos em suas teorias e em suas práticas, propõe uma interseção entre eles, que se daria no espaço escolar, contribuindo para a existência de sujeitos mais criativos. PALAVRAS-CHAVE: educação; psicanálise; singularidades; criatividade.

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Psicanalista, professora adjunta, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ. <mrmaciel@ig.com.br>

Rua Almirante Sadock de Sá, 120/304 Ipanema, Rio de Janeiro - RJ 22.411-040

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Introdução A proposta deste artigo é fazer um balanço preliminar da relação entre psicanálise e educação no contexto das novas formas de subjetivação. Nesse novo contexto, é fundamental refletir sobre que subjetividade e que tipo de cidadania queremos ter como alvo e finalidade nas práticas educacionais contemporâneas. Uma questão central na atualidade é pensar sobre o que significa educar e psicanalisar hoje, diante da crise de fundamentos nos saberes que norteavam nossas práticas, até então, de forma inconteste. Com tal proposta em mente, iremos nos reportar, primeiramente, às referências de Freud quanto à educação, posto que são os textos fundadores desta reflexão. Em seguida, passaremos a nos referir às articulações feitas por alguns pesquisadores, nos últimos anos, sobre as relações entre esses dois saberes. No que tange especificamente a esse segundo eixo de análise, é importante assinalar o crescente interesse pelo estudo das relações entre psicanálise e educação, tanto entre educadores, quanto entre psicanalistas. O entrecruzamento desses dois campos de saber tem uma história marcada por variadas tendências. Num preliminar levantamento bibliográfico sobre o tema entre os psicanalistas, é possível afirmar que, nas mais recentes publicações (últimos cinco anos), predomina uma proposta de junção desses dois campos, diferentemente do que ocorria há dez ou vinte anos atrás, quando predominava um tipo de leitura da questão em que se ressaltavam as impossibilidades de encontro entre eles. O que aconteceu para que essa mudança de posição tenha ocorrido? Sabemos que estamos vivendo, segundo diversos autores das ciências humanas e sociais, um momento em que se verifica uma série de problemas nos atuais processos de subjetivação e nas patologias a eles associadas. Dentre eles, podemos destacar dois: a apatia e a denominada “cultura do narcisismo”, na qual podem-se observar atos de violência sem qualquer objetivo de transformação ou projeto histórico. O terceiro e último sub-item do presente texto diz respeito, portanto, à maneira como a psicanálise e a educação podem contribuir, ao se encontrarem no espaço escolar, para a existência de sujeitos mais criativos. São considerados como temas balizadores desta articulação o processo de subjetivação, a criatividade e a singularidade. Referências de Freud à educação Podemos afirmar que, basicamente, as contribuições de Freud à educação dizem respeito primeiramente à transmissão de conhecimento através dos Inconscientes. Devemos esclarecer que o Inconsciente é o conceito fundamental da psicanálise, sendo considerado por ele a terceira ferida narcísica da humanidade (Freud, 1917 a e b)2. Com esse conceito, podemos nos conceber também como sujeitos do desconhecimento, no qual algo sempre escapa à pretensão de controle consciente, como, por exemplo, de tudo o que aprendemos. Outra referência de Freud à educação diz respeito à importância da relação professor-aluno, o que nos leva a pensar na questão da transferência sob o aspecto de um fenômeno que não se passa apenas entre paciente e terapeuta, mas que perpassa todas as relações humanas. Embora o que se

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2 Freud, em dois de seus textos (1917 a e b), se refere a “três severos golpes” sofridos pelo homem no seu “amor próprio”, no seu “narcisismo universal”. O primeiro ocorreu com Copérnico e seu “golpe cosmológico”, quando a terra deixou de ser vista como o centro do universo. O segundo, com Darwin e seu “golpe biológico”, quando o homem deixou de ter uma ascendência divina sobre os animais. E o terceiro, finalmente, com o Inconsciente e seu “golpe psicológico”, quando deixamos de ser “senhor de nossa própria casa”.


SOBRE A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E PSICANÁLISE...

A noção de sujeito do desejo em psicanálise se refere ao fato deste se relacionar não só com objetos de necessidade, mas também com objetos de desejo que passam pelos significados construídos nas interações que os sujeitos estabelecem entre si.

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passa na escola seja diferente, na psicanálise a transferência constitui seu próprio instrumento de trabalho. Finalmente, uma terceira contribuição encontrada nos textos freudianos aponta para o papel da educação como auxiliar da sublimação sexual (já que seus argumentos afirmam que a curiosidade intelectual é derivada da curiosidade sexual). Quanto a essa última referência, devemos ter em mente que esse desvio pulsional necessário não deve ser excessivo e chegar a inibir o sujeito do desejo3. Alguns de seus textos que mencionam a educação são: - “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (Freud, 1912), no qual, ao ligar a atividade educativa à capacidade sublimatória e ao se referir às indicações feitas pelos professores de livros a serem lidos, alerta para o risco de os educadores quererem modificar os alunos à sua imagem, tomando para si a função de modelo. - “Algumas reflexões sobre a psicologia escolar” (Freud, 1914), no qual afirma que a aquisição de conhecimento depende da relação do aluno com seus professores e seus colegas, numa referência à relação transferencial que faz com eles, enquanto representantes de seus pais e irmãos. Em suas palavras: “... é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres” (p. 286). É importante mencionar que o conceito de transferência designa o processo utilizado pelos desejos inconscientes para, não só na relação analítica, repetir nossas experiências infantis vividas, agora, como atualidade. - “Prefácio à juventude desorientada de Aichhorn” (Freud, 1925). Nesse texto, ao mencionar a importância do professor para o aluno - posto que aquele pode orientá-lo, servindo como modelo -, Freud aponta para o valor profilático de uma psicanálise para o próprio educador. Este não tem, portanto, que se contentar somente com uma instrução teórica da teoria psicanalítica. - “Explicações, aplicações e orientações” em Novas Conferências Introdutórias à psicanálise (Freud, 1933), no qual se refere à tentativa da “educação psicanalítica” procurar um “ponto ótimo” que possibilite “proibição de pulsão” sem “doença neurótica”. Freud afirma que cada criança tem seu ponto. Isso nos leva a questionar o valor de uma educação de massa e pré-programada, pois nos parece colocar aí a questão da singularidade. A partir dessa menção, podemos dizer que o professor não tem controle total dos efeitos de suas palavras sobre os alunos. Não saberá o que o aluno fará com aquelas idéias e com o que as associará. - “Análise terminável e interminável” (Freud, 1937), no qual afirma que o psicanalisar, o educar e o governar são profissões impossíveis, posto que sempre chegam a resultados insatisfatórios. Entretanto, a partir das indicações deixadas por Freud, que desenvolvimento essas relações sofreram nos últimos anos? Articulações contemporâneas entre Psicanálise e Educação O livro de Millot, publicado pela primeira vez na França, em 1979, marcou aqueles que estudam o campo da interseção educação/psicanálise (Millot,

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1987). Ele foi, pode-se dizer, uma referência obrigatória para os interessados nessa conexão. No seu livro, a autora afirmava a impossibilidade de aplicar psicanálise à educação. No máximo, a psicanálise poderia transmitir ao educador uma ética, um modo de ver e de entender a prática educativa. Seguindo os ensinamentos de Lacan, a posição de Millot radicalizava as separações existentes entre esses dois campos. Ela se contrapunha claramente à tradição psicanalítica que entendia a psicanálise como educação das pulsões, tendo um objetivo profilático com relação às neuroses. Anna Freud encaixavase aqui como uma representante dessa outra tendência, na qual tanto educadores quanto psicanalistas deviam colar-se ao lugar do saber. Ou seja, a análise da criança era associada a medidas educativas, tendendo a transformarse em pedagogia (Freud, 1971). Esse tipo de posição era, portanto, criticada por Millot. No Brasil, Kupfer, dez anos depois da publicação do livro de Millot, seguia a mesma linha de raciocínio (Kupfer, 1989). No entanto, em seu mais recente livro, publicado em 2001, a mesma autora confessa que mudou de idéia no que tange à afirmação anterior de que psicanálise e educação não se casavam. Hoje, ela admite que é possível conceber uma educação orientada pela psicanálise. Propõe, assim, a “educação terapêutica” como “conjunto de práticas interdisciplinares de tratamento, com especial ênfase nas práticas educacionais, que visa à retomada do desenvolvimento global da criança”. A educação terapêutica, segundo a autora, não é mais psicanálise em seu sentido clássico, pois não busca tocar o real pelo simbólico e sim instituir o simbólico em torno do real; não é apenas educação em seu sentido clássico, pois não visa moldar a criança ao ideal do eu do educador, já que a criança psicótica quase nunca está atenta aos ideais e, portanto, não coloca o educador no lugar de modelo identificatório como fazem as outras crianças. Também não é educação ‘stricto sensu’, porque seu tempo já passou e qualquer esforço de retomá-la produzirá algo novo, e será sempre uma reeducação. (Kupfer, 2001, p.83, 115)

A autora estende, inclusive, sua proposta de “educação terapêutica” para ser aplicada não só à educação especial (de crianças psicóticas e autistas, por exemplo), mas para a educação de crianças de maneira mais ampla (Kupfer, 2001). Temos aí um exemplo de como esses dois campos foram se entrelaçando cada vez mais com o passar dos anos. Em um livro publicado também no Brasil (Bacha, 2002), vemos uma interessante ligação entre educação e psicanálise, vindo de uma outra tradição psicanalítica que não a lacaniana. Bacha (2002, p.20) propõe-se a explorar a dimensão imaginária dos processos cognitivos, aprimorando a sua performance, ampliando o seu pensamento, alargando a sua capacidade de conhecer e de se conhecer. E, finalmente, ‘formar’ o leitor iniciando-se nessa realidade surreal tramada pelo artista com os fios da fantasia e da razão, e sonegada já na infância por uma formação indolente.

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4 Ver Castoriadis, 1982 e 1997; e Valle, 2002.

Ela tenciona olhar para a educação pela perspectiva exclusiva da criança, que é diferente, segundo ela, da noção de psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem. Ou seja, a autora não encerra a contribuição da psicanálise para a educação na noção de desenvolvimento humano (Bacha, 2002). A perspectiva da criança, a que a autora se refere, diz respeito aos fantasmas inconscientes que a situação formativa acorda no professor. Isso é o que, segundo Bacha, deve ser trabalhado ao se pensar psicanálise e educação. A autora se pergunta: por que não fazer o professor se ver no lugar da criança? Para ensinar bem, é preciso “inquietar a razão e desfazer os hábitos do conhecimento objetivo”. É preciso, portanto, reconhecer o inconsciente no território da razão, o que significa admitir a “surrealidade da educação” que aponta para o “fantasma da sedução” (Bacha, 2002, p.32 e 63). A autora afirma que “educar é nutrir, e nutrir com Eros”. Recorrendo a um trabalho de Renato Mezan – que analisou os vários aspectos da sedução e os agrupou em duas faces, a ética (que remete ao domínio de um indivíduo sobre o outro) e a estética (que pode vir a despertar ou a refinar uma sensibilidade)-, ela nos faz pensar no lugar do professor como o do sedutor, mas sedutor no sentido estético, um “Don Juan do bem”, por assim dizer (Bacha, 2002, p.97). Esse livro se insere aqui com o intuito, portanto, de mostrar como nas mais recentes publicações acerca da relação psicanálise/educação esses laços têm sido refeitos. No parágrafo anterior, referimo-nos à questão estética. Ao nos depararmos com tal questão na relação professor/aluno, na qual a construção dos conceitos pode adquirir uma dimensão de imaginação e pode-se aprender criativamente, um autor que se impõe como fundamental é Castoriadis (1997; 1982). Ele nos permite unir psicanálise e educação, agora sob a ótica da criatividade. Seriam elas espaços possíveis de criação?4 Castoriadis afirma a natureza indeterminada e indeterminável do fazer educativo. A partir da menção de Freud, em que o educar, junto ao psicanalisar e ao governar, são tidas como atividades impossíveis (Freud, 1937), Castoriadis as concebe como atividades prático-poéticas. Assim como a política e a psicanálise, a educação teria como finalidade a construção da autonomia humana, em outras palavras, a sua auto-criação. Algo, no entanto, sempre escapa à pretensão desses três campos do saber. Isso ocorre exatamente porque há uma dimensão no humano que diz respeito a sua possibilidade de construir a si mesmo. E, contudo, esses três campos de saber sugerem uma intervenção externa, ali onde o que existe é a auto-criação. Caindo nesse engodo e esquecendo-se da liberdade humana, a educação, ao lado dos outros dois saberes, muitas vezes fica reduzida a um espaço de mera aplicação de teorias a priori. Teorias essas que são construídas pelos “especialistas” e passam ao largo das possíveis contribuições que poderiam dar, por exemplo, os próprios professores e alunos que vivem o dia a dia de suas instituições. Ainda recorrendo a Castoriadis, vale lembrar que o projeto de autonomia não deve ficar só no âmbito individual, mas é também um projeto necessariamente social. Por isso a necessidade de se criticar uma sociedade heteronômica em que o sujeito não pode exercer sua autonomia, posto que

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funciona à sua revelia. Esse tipo de sociedade é considerada não-democrática e aliena o sujeito, encobrindo seu poder de auto-criação. Assim, vemos a importância de não esquecer o âmbito da política ao abordarmos os laços possíveis entre psicanálise e educação. Neste sentido, o trabalho de Patto (1990), entre outros, é importante para que não se deixe de articular o discurso social ao se tentar entender, como psicanalistas e educadores, um problema de aprendizagem, por exemplo. Esta autora nos mostra, sob esse aspecto, que o fracasso acadêmico se produz no interior das relações cotidianas do espaço escolar, as quais muitas vezes negam e desqualificam a diferença social ou o desencontro de vivências e linguagens entre as crianças concretas de uma determinada escola e o ideal esperado e mais de acordo com o grupo social dominante. A Educação no contexto das novas formas de subjetivação É possível observar uma transformação geral no registro da construção das subjetividades contemporâneas. Entre essas mudanças, enfatizamos duas: um certo estilo de ser depressivo – uma certa apatia reinante nos processos de subjetivação contemporâneos – e a violência narcísica de atos distantes de qualquer ideal coletivo. Diversos são os autores que se referiram a esses aspectos. É o caso, por exemplo, de Sennett (2000; 1998), Birman (1999), Bauman (1998), Ehrenberg (1998), Costa (1984), Lipovetsky (1993) e Lasch (1987; 1983) . Encontramo-nos em uma sociedade extremamente individualista que, longe de se contrapor às tendências da apatia e da violência narcísica acima citadas, pode vir a impedir tanto o exercício da criatividade, quanto o reconhecimento intersubjetivo das demandas de seus sujeitos. Seu extremo individualismo em nada contribui para aquilo que Winnicott (1983; 1975) chamou de “continuidade do sentimento de existência”, que, sustentado pelo reconhecimento mútuo, permite que nossa “criatividade primária” se transforme efetivamente em “experiência criativa”. Pretendemos, no entanto, enfatizar, neste item do trabalho, a possibilidade de a educação e a psicanálise serem, ao contrário dessa tendência, espaços de criação democráticos e que estimulem os processos alteritários em detrimento dos narcísicos5. Nesse caso, propomos pensar, aqui, mais especificamente, em novas práticas educacionais alternativas que se encaminham por essa direção. Tomemos o que se pode observar principalmente a partir dos anos 1980 – com as reivindicações das feministas, do multiculturalismo ou da terceira idade, para citar alguns exemplos –, quando vimos emergir novos sujeitos dos processos educativos. Esses novos sujeitos vivenciam a fragmentação das paisagens culturais de classe, gênero, etnia, nacionalidade etc., sob o aspecto daquilo que nos forneciam, até então, sólidas localizações como indivíduos sociais. Foram essas localizações, aliás, que, como nos mostra Hall, contribuíram para criar padrões de alfabetização universais (mediante um sistema educacional nacional), uma única língua, uma cultura homogênea (Hall, 2003). Hoje, contudo, diante das híbridas nações culturais modernas e do fenômeno da globalização que, por seu turno, fez emergir uma tensão entre

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5 Em seus textos, como, por exemplo, “Além do princípio do prazer” (1920) e “O mal-estar na civilização” (1930), Freud afirma que a pulsão de vida/Eros (aquela que constitui ligações) e a pulsão de morte (aquela que é desagregadora) governam o processo vital. Este, por seu turno, é feito de processos narcísicos (nos quais nos voltamos para nós mesmos) e processos alteritários (nos quais somos postos para fora de nossa redoma narcísica autosuficiente, rumo aos objetos do mundo).


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o “global” e o “local”, a educação necessita repensar-se e pôr na pauta de suas discussões a questão do local, da diferença, da singularidade, da alteridade, e não apenas o tema do universal. Levando-se em conta este tipo de discussão, um autor que também deve ser mencionado é Cambi. Ele afirma que essas novas emergências, de certa forma, obrigaram a educação – e nós acrescentaríamos, a psicanálise – a ser capaz de re-descrever seu papel e território de atuação. A educação pode, assim, mostrarse um campo teórico e prático aberto, sem estereótipos, que trabalha as diferenças, por exemplo, de gênero, de culturas “outras” (em relação à ocidental, greco-cristã-burguesa) etc. (Cambi, 1999). O autor mencionado acima, ao se referir às questões educacionais contemporâneas, especificamente às da terceira idade, afirma: “isto implica a predisposição de ‘percursos educativos’: de aprendizagem (tipo universidade livre), de recreação (de jogo, de espetáculo, de viagem), de intercâmbio social (em associação de bairro ou outros)”. Ele aponta aí, portanto, uma via concreta possível para a educação se colocar como um espaço mais criativo, buscando tornar-se um “saber aberto sobre as práxis formativas e capaz de iluminá-las criticamente, sem ir à procura de objetivos eternos e de certezas não variantes” (Cambi, 1999, p.405). Filiamo-nos aqui a uma tradição libertária da Escola, na qual esta não só reproduz a sociedade, mas pode transformá-la. Acreditamos que o espaço escolar pode não só repetir a língua oficial, mas também fazer vir à tona os discursos esquecidos, massacrados. Nesse sentido, educação e psicanálise se aproximam enquanto campos teóricos e práticos em que se pretende dar espaço aos discursos latentes em detrimento aos manifestos. Ainda neste intuito de aproximar psicanálise e educação, fazemos referências ao texto de Felman (2000). Seu artigo muito nos auxilia em nosso objetivo de articular psicanálise e educação por meio de temas como os das novas formas de subjetivação, da criatividade e da singularidade. Felman parte da noção de trauma, tão pertinente ao nosso século de catástrofes históricas. Ela pergunta se o trauma poderá instruir a experiência pedagógica. Para uma resposta afirmativa, passa pelas lições literárias e psicanalíticas sobre o testemunho. A autora faz-nos pensar sobre o valor do testemunho. Nele, texto e vida se fundem num processo singular e coletivo ao mesmo tempo. O testemunho, segundo ela, é uma prática discursiva, um ato de fala que pode criar o novo e gerar a verdade. Felman, portanto, discute este conceito como aquilo que nos faz deparar com a estranheza, que é imprevisível e só pode ser captado no movimento de sua própria produção. Afirma, então, que “testemunhar é, precisamente, engajar-se no processo de reencontrar seu nome próprio, sua assinatura” (Felman, 2000, p.64). Em “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino” é oferecido um exemplo vivo da transformação nas subjetividades dos alunos mediante o relato da experiência da autora em um seminário de pós-graduação. É relatada a crise que se instalou em seus estudantes quando Felman proporcionou a eles contato com testemunhos de escritores e sobreviventes do holocausto. Ela afirma que, a partir daí, os próprios trabalhos escritos de final de curso “terminaram por ser uma declaração sobre o trauma pelo qual tinham passado

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e sobre a importância de terem assumido a posição de testemunha”. A autora termina por concluir que o ensinar ocorre apenas por meio de uma crise. Ensinar é, portanto, mais do que transmitir alguns fatos; é fazer algo acontecer. Segundo suas palavras: “o ensinar é uma atividade performática e não cognitiva, como aliás a psicanálise, à medida que ambos lutam por produzir, e possibilitar, uma mudança” (Felman, 2000, p.66-7).

SÍLVIA MECOZZI, detalhes

Conclusão O encontro entre Educação e Psicanálise pode ser bastante frutífero. Ele tem uma história, que começa nos primeiros escritos de Freud sobre o tema e se estende até textos de psicanalistas e educadores mais contemporâneos. No que se refere a este artigo, os temas das novas formas de subjetivação, criatividade e singularidade foram considerados os marcos desse embate. Estes temas podem ser articulados no valor do testemunho. Um ensino que dê espaço a nosso potencial narrativo, sem esquecer que somos dependentes uns dos outros na construção dessas narrativas, contribui para a existência de sujeitos mais presentes e atuantes na experiência do mundo e de si próprios. Acreditamos que esses dois campos podem funcionar como campos teóricos/ práticos de auto-criação do sujeito. Eles podem ser tidos como práticas poéticas que visam à autonomia humana. Isso, se, por exemplo, a Escola puder ser um espaço de encontro intersubjetivo, no qual transformações podem ser operadas em seu cotidiano. Em outras palavras, se a Escola puder se fazer de lugar de passagem até que o aluno comece, ele próprio, a se interrogar. Afirmamos o que foi dito acima, entretanto, sem desconhecer que a Escola, enquanto lugar de aplicação desses saberes, é também um lugar de reprodução do instituído, na qual questões como as desigualdades entre as classes sociais tendem a se repetir. Afinal, a Escola por si só não pode transformar a sociedade da qual é apenas um elemento. Ela depende também de políticas públicas efetivas e concretas do Estado. Finalmente, é possível concluir que, além de ser lugar de “informação” da tradição – e, nesse sentido, comprometida com as diversas formas de dominação –, a Escola pode ser também lugar de “transmissão” – e, de certa maneira, espaço criativo de sujeitos singulares.

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SÍLVIA MECOZZI, Série Esferas, 2004

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MACIEL, M. R. Sobre la relació ón entre educación y psicoanálisis dentro del ambiente de las nuevas formas de subjetivación. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.333-42, mar/ago 2005. El presente artículo establece relaciones entre educación y psicoanálisis dentro del contexto de las nuevas formas de subjetivación. Discute las referencias de Freud sobre la educación, así como algunas de las publicaciones más recientes sobre el tema. Considerando las transformaciones por las que estas dos áreas han pasado en sus teorías y en sus prácticas, propone una intersección entre ellas que tendría lugar en el espacio escolar, contribuyendo a la existencia de sujetos más creativos. PALABRAS CLAVE: educación; psicoanálisis; singularidades; creatividad.

Recebido para publicação em: 17/01/05. Aprovado para publicação em: 23/05/05.

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O demônio nos "par aísos ar tificiais": "paraísos artificiais": considerações sobre as políticas de comunicação para a saúde relacionadas ao consumo de drogas

Mônica Benfica Marinho

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MARINHO, M. B. The devil in “artificial paradises”: thoughts on healthcare communication policies regarding drug consumption. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.9, n.17, p.343-54, mar/ago 2005.

The phenomenon of drug consumption in contemporary society is the theme of broad discussions. Regarding healthcare communication policies in Brazil, there is a blatant lack of regard for the constitutive dimensions of this phenomenon. As a result, conduct related to the prevention of drug consumption involves the said consumption in marginal significances that, far from fostering a sensibility to behavioral change, generate prejudice against and segregation of the user. This can be seen in the prevention campaigns – whether governmental or otherwise – against the use of legal and illegal drugs and that are part of these communication policies. Therefore, an understanding of how the consumption phenomenon reaches certain significances and how the campaigns express these significances is what this article proposes to achieve. KEYWORDS: drugs; communications policies; campaigns; prevention; health promotion. O fenômeno do consumo de drogas na sociedade contemporânea é tema de amplas discussões. No que diz respeito às políticas de comunicação para a saúde no Brasil, há uma gritante desconsideração das dimensões constitutivas deste fenômeno. Disto decorre que as condutas relacionadas à prevenção ao consumo de drogas envolvam esse consumo em significações marginais que, longe de propiciar uma sensibilidade para mudanças de comportamento, geram preconceito e segregação em relação ao usuário. Isto pode ser observado nas campanhas de prevenção — governamentais e não governamentais — ao uso de drogas lícitas e ilícitas, que são parte dessas políticas de comunicação. Compreender, portanto, como o fenômeno do consumo de drogas alcança determinadas significações e como as campanhas expressam estas significações é a proposta deste trabalho. PALAVRAS-CHAVE: drogas; políticas de comunicação; campanhas; prevenção; promoção da saúde.

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Professora, Curso de Comunicação Social, Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Ba. <monica.benfica@uol.com.br>

Rua Clóvis Beviláqua quadra 40, lote 07, casa 03 Condomínio Real Mar, Praias do Flamengo Salvador, BA 41.603-120

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O consumo das drogas É incontestável que o fenômeno do consumo de drogas na sociedade contemporânea vem ganhando uma visibilidade cada vez maior. Ele está presente na televisão, nos jornais e na internet. É tema de discussão em várias instituições que, ou buscam as causas e conseqüências de seu uso e propõem políticas para gerenciar um consumo adequado, ou investem em um trabalho de condenação, produzindo e reforçando uma significação marginal associada a essas substâncias. É importante lembrar que a noção de drogas envolve tanto aquelas chamadas de lícitas como as ilícitas. Além disso, apesar de seu consumo ser apreendido como o “problema das drogas”, não se pode desconsiderar que sua produção, circulação e relação com o aparato do Estado são dimensões fundamentais, pois propiciam a construção de um governo paralelo caracterizado por violência, crime e corrupção. Cientistas sociais que se dedicam à compreensão do fenômeno do consumo de drogas costumam afirmar que este não é contemporâneo e que a definição de drogas lícitas e ilícitas, legalidade ou ilegalidade, responde a determinadas formas de organização social. Em Las drogas: de los orígines a la prohibición, Antônio Escohotado (1994) aborda como, desde a Antiguidade, cada sociedade vai estabelecer com as drogas uma relação definida pelo que ele chama de “espírito do tempo”. O trabalho de Escohotado é um indicador de como as referências históricas sobre o consumo de drogas pode ter um papel esclarecedor sobre as significações elaboradas pela sociedade atual sobre esse consumo. Neste artigo vamos utilizar o recorte correspondente à sociedade americana no século XX, que se ajusta mais a nossos propósitos. Na história das drogas levantada por Escohotado (1994), ele mostra como nos EUA, até 1900, todas as drogas conhecidas encontravam-se disponíveis em farmácias e drogarias, podendo também ser pedidas pelo correio. Isso acontecia em nível mundial, pois ocorria no restante da América, na Ásia e na Europa. As propagandas que acompanhavam esses produtos eram também livres e muito intensas, como as de qualquer outro produto. Não era um assunto jurídico, político ou de ética social2. Mas um proibicionismo, associado a um puritanismo em relação ao consumo de drogas, que vigorou nos EUA desde as primeiras décadas do século XX, veio transformar a relação dessa sociedade com as drogas, fazendo florescer um comércio ilegal e, com ele, a corrupção e a instituição do crime organizado, em que começaram a vigorar o contrabando e a violência. A vigência da lei seca nos EUA, instituída em 1920, é um exemplo expressivo dessa relação, pois com ela veio, de acordo com o autor, o surgimento de meio milhão de novos delinqüentes e uma corrupção em todos os níveis. Em 1933, a lei foi revogada, compreendendo-se que ela produziu injustiça e hipocrisia. Associados à proibição do álcool estavam o ópio, a morfina e a cocaína. O objetivo era acabar com todo uso não médico de tais substâncias. Estas mudanças trouxeram tanto o crime, como o aumento do consumo e uma mudança no perfil do consumidor3: atualmente, nos EUA, a proibição, principalmente da heroína, propicia a perpetuação do crime organizado (Escohotado, 1994). A história levantada por Escohotado vem ao encontro das idéias de

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2 “Tras centenares de comunicaciones en revistas más ou menos científicas, el joven Sigmund Freud empreende una investigación global con el fármaco, que incluye autoensayos, revisión de toda la literatura existente y propuestas de uso. Parke Davis le pagará en especie — quizá también en metálico — por declarar que su cocaína es ‘preferible’ a la de Merk , aunque Freud aparece también en prospecto de la cocaína Merk loando el producto”. (Escohotado, 1994, p.79)

3 “[...] si antes era en su mayioría alguien de clase media y con más de cuarenta años, sin historial delictivo, ahora empieza a concentrarse en gente mucho más joven y pobre, con antecedentes penales y por eso mismo un mejor acceso al mercado negro”(Escohotado, 1994, p.94).


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4 "[...]isso parece ter acontecido quando os anticoncepcionais por via oral foram introduzidos e muitas mulheres tiveram edemas, depressão, dificuldades vasculares e outros efeitos indesejados que ninguém, na época, atribuía à pílula". (Becker, 1977, p.186)

Gilberto Velho (1999) em seu trabalho.“A dimensão cultural e política dos mundos das drogas”, ao lembrar que “[...]quando se consome a droga em cada período se consome um significado diferente”, insistindo ainda que a “[...]compreensão do fenômeno das drogas, assim como de qualquer outro, é passo indispensável a sua contextualização. Todas as tentativas de explicações genéricas, baseadas em premissas fisiológicas e psicológicas, tenderam a ficar no nível da rotulação e da estigmatização” (Velho, 1999, p.27). Uma outra referência é “La consumantion de tabac dans les processus de civilization”, de Janson Hughes (2001), que explora, de maneira interessante, as diferentes significações que o consumo do tabaco ganha na Europa entre os séculos XVI e XX. Ele mostra como o consumo do tabaco e também as tecnologias associadas a seus usos tiveram funções terapêuticas, recreativas, de distinção de classes. O aumento ou declínio de seu uso vagam entre a instituição social de valores positivos e negativos ligados ao seu consumo. Uma das dimensões do fenômeno do consumo de drogas, muito pouco discutida, diz respeito aos efeitos das substâncias. Howard Becker (1977) define três cenários de uso de drogas: “o uso ilegal de drogas por prazer”, “o uso de drogas receitadas medicamente” e a “ingestão involuntária de drogas por vítimas da guerra química”. E chama atenção para o fato de que, quando uma pessoa ingere uma droga, sua experiência subseqüente é influenciada por suas idéias e crenças sobre aquela droga. O que ela sabe sobre a droga influencia a maneira como a usa, como interpreta seus efeitos múltiplos e responde a eles, e a maneira como lida com as conseqüências da experiência. No caso do uso ilícito de drogas por prazer, os efeitos da experiência dependem dos laços sociais e entendimentos culturais que surgem entre aqueles que usam a droga. Para Becker, enquanto o consumidor de drogas “ilícitas por prazer” encontra-se amparado com o controle sobre sua experiência, o consumidor de drogas lícitas receitadas por médicos não pode contar com este mesmo amparo. Este consumidor desconhece a ação das drogas no organismo não tendo, portanto, o domínio sobre seus efeitos. O autor faz referência a várias experiências com drogas lícitas que, ainda em fase de teste, são receitadas a pacientes e como seus 4 efeitos colaterais são desconhecidos até pelo próprio médico . Assim, é possível compreender os efeitos das drogas como intrinsecamente ligados a um contexto social que produz e faz circular conhecimentos sobre determinada droga e que vai servir de guia para o consumidor. Estes dados levam Becker a insistir na importância dos canais de informação necessários para que estes conhecimentos circulem. Nessa mesma perspectiva, Norman Zinberg (1980), em “The social setting as a control mechanism in intoxicant use”, trata dos mecanismos de controle desenvolvidos no interior do meio social, que ele chama de sanções e rituais. Ele discute e faz ilustrações sobre os processos de aprendizado social pelos quais todos esses mecanismos se tornam ativos no controle do uso. A posição que ele defende é a de que uma decisão individual para o uso de uma droga, os efeitos que tem sobre o usuário e as implicações psicológicas e sociais deste uso não dependem somente das propriedades farmacêuticas da droga e das atitudes e personalidade do

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usuário, mas também do meio social e físico em que tal uso tem lugar. Quando se fala em sanções aplicadas ao uso de drogas ilícitas, a emergência dos conflitos entre controles sociais formais e informais é inevitável: enquanto as leis condenam o uso, o grupo social do usuário o aprova. Segundo o autor, devido a isso, surge a impossibilidade de uma educação formal para um uso controlado. Quando tal tentativa é feita, desemboca em um ardoroso insucesso, pois como falar de procedimentos adequados de consumo em uma cultura que não aceita o uso controlado das drogas ilícitas? Isto dificulta uma socialização centrada na família, nos meios de comunicação ou na escola. Resta assim, aos grupos de pares, a função de controlar o uso. O autor mostra, por meio de pesquisas, como uma série de procedimentos se torna parte da rotina de um “usuário controlado”, que busca combinar o consumo de uma determinada substância com o desempenho de vários papéis sociais sem prejudicá-los. Todas essas formulações situam-se no campo da contextualização do consumo das drogas e seus efeitos. Mostram a importância da produção de espaços de comunicação para fazer circular informações sobre a natureza de determinadas substâncias e seu consumo adequado. Apontam, enfim, para uma compreensão não simplista, reducionista e moralista sobre o consumo de drogas. As políticas de comunicação As políticas e práticas institucionais relativas à questão das drogas vêm caracterizando-se como uma insistência de sucessivas ações em dois planos: o do consumo e o da produção/circulação. No primeiro plano, o do consumo, investe-se na condenação do usuário. Esta ação responde de forma positiva a uma opinião pública sempre pronta a formar juízos morais. Em “Problemas sociais, políticas públicas”, Antônio Paixão (1994, p.134) afirma que [...] a persistência do problema do tóxico, apesar dos altíssimos investimentos governamentais no combate a ele, parece não afetar o suporte público a políticas fracassadas de criminalização de usuários e traficantes.

E, ainda, que as políticas “[...]respondem menos ao cálculo de custo e benefício e mais a mitos ambientais sobre a droga como ingrediente de desordem” (Paixão, 1994, p.136). Assim, o problema do uso de drogas é deslocado para o plano da moralidade. No segundo plano, o da produção e circulação, um enfoque considerado pelo autor pode ser esclarecedor: [...]tóxico é mercadoria e o equacionamento adequado do problema por ele representado pressupõe o conhecimento do mercado de produção, distribuição e circulação de drogas. Se o mercado é a ‘instrumentalidade institucional’ que monta o problema, portanto é o objeto a ser alterado pela legislação e pelas políticas públicas, quaisquer que sejam as justificativas mobilizadas. (Paixão, 1994, p.142)

Em relação ao mercado, o autor propõe a desregulamentação

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[...] já que os mecanismos convencionais de intervenção do estado em mercados criminosos (ampliação pela repressão, dos custos e riscos envolvidos no engajamento individual do crime) ali funcionam perversamente. (Paixão, 1994, p.140)

Interessa, aqui, a dimensão do consumo de drogas lícitas e ilícitas na forma como é apresentado pela mídia, e, de forma específica, como é problematizado pelas políticas de comunicação em saúde. É importante lembrar que hoje dificilmente um fenômeno está desvinculado da comunicação midiática. Como muito bem coloca Monclar Valverde (1996), nas sociedades complexas em que vivemos, não vivemos simplesmente a experiência da comunicação interpessoal. Os meios de comunicação têm uma dimensão planetária jamais experimentada por outra cultura. Emerge, assim, como primordial, a compreensão do “[...]papel dos media na formação e na transformação dos modos de significação que conferem sentido coletivo a nossas experiências” (Valverde, 1996, p.68). Isto leva à compreensão da mídia como experiência de nossa cultura. As palavras de Thompson (1998) expressam bem o significado dos meios de comunicação para o mundo moderno: Se ‘o homem é um animal suspenso em teias de significado que ele mesmo teceu’ como Gertz uma vez observou, então os meios de comunicação são rodas de fiar no mundo moderno e, ao usar estes meios, os seres humanos fabricam teias de significação para si mesmos. (Thompson, 1998, p.20) O temo mídia aqui é usado em seu sentido mais amplo e refere-se não somente aos meios de comunicação de massa, mas a quaisquer meios de comunicação. Sobre a cultura das mídias e a crise da hegemonia da comunicação e cultura de massa, ver Santaella, 2002. 5

No campo da mídia5, onde o fenômeno do consumo de drogas ganha visibilidade, encontra-se uma comunicação, governamental e nãogovernamental, específica, voltada para a prevenção do consumo de drogas lícitas e ilícitas, que compõe as chamadas políticas de comunicação para a saúde. As políticas de saúde - que se desenvolvem no país a partir da década de 20 do século XX com o campanhismo sanitarista - e a comunicação para a saúde - que se impõe na década de 1960, com os preceitos desenvolvimentistas, como uma linha de investigação - têm um núcleo comum como alvo dos discursos críticos que ganham força e visibilidade a partir da década de 1970, como reação ao modelo desenvolvimentista e àqueles que vigoram na atualidade: o modelo unilinear que formata essas práticas (Natansohn, 2004; Pitta,1995; Teixeira, 1997). Uma reflexão sobre esse modelo remete, no que diz respeito à comunicação para a saúde, a algumas considerações sobre as teorias da comunicação que informam a comunicação no campo da saúde. Se uma concepção unidirecional da relação Emissor/Receptor é a marca das incipientes teorias da comunicação vigentes nas décadas de 30 e 40 do século XX, a trajetória das teorias da comunicação - que vigoraram entre 1930 e 1970, constituindo o campo das pesquisas sobre os meios de comunicação de massa - mostra que paulatinamente vão sendo consideradas

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variáveis, que se interpõem entre o emissor e o receptor, quebrando a linearidade do processo comunicativo e questionando o poder irrestrito do emissor. Assim, o receptor vai ganhando importância a partir do reconhecimento de sua complexa presença no processo comunicacional6. Nos anos 1980, as teorias da recepção se instituem no campo das teorias da comunicação, como demonstra o trabalho de Gomes (2000). A partir daí, vários estudos vêm contrariar uma concepção epistemológica “condutista” “[...] que faz da recepção unicamente um lugar de chegada e nunca um lugar de partida” (Martín-Barbero, 1995, p.41). Na década de 1990, às discussões sobre o campo da recepção como lugar de produção de sentido foram agregadas às reflexões sobre comunicação e saúde. Buscando um distanciamento das concepções do processo comunicacional que acentua a importância seja do emissor ou do receptor nesse processo, propõe-se uma reflexão sobre o terreno da produção/ recepção das políticas de comunicação para a saúde, partindo da compreensão desse terreno como uma multiplicidade social na qual os discursos são tecidos. É essa tecitura que vai ser apropriada pelo modus operandi de determinadas mediações, que, enquanto produto, estará em relação com o espectador, de modo a gerar novos significados. Ainda sobre essa questão, como acredita Bougnoux (1994, p.51), A relação pragmática ou de sujeito a sujeito impõe um certo limite intrínseco à influência. Há uma certa magia, uma feitiçaria da coletividade e da ação sobre as consciências que as modernas ‘técnicas de comunicação’ estão bem longe de dominar[...]

Se o processo comunicativo é entendido como fluxo, circularidade, na formulação autor a nenhum dos pólos é dada a capacidade de iniciar um processo comunicativo no sentido inaugural. As campanhas de prevenção Neste momento será dada atenção a um produto marcante das políticas de comunicação para a saúde, que são as campanhas de prevenção. Acredita-se que estas campanhas constituam espaços privilegiados para se dar conta de como os sentidos produzidos sobre determinado fenômeno articulam-se, são expressos e reelaborados constantemente nesses produtos. Geralmente, busca-se alcançar sua lógica partindo-se da idéia de que são atos comunicativos que se pautam por estratégias persuasivas em que se identifica um objetivo, que é o de obter um determinado efeito, sendo este a mudança de comportamento. Este procedimento, no entanto, deixa de lado algumas questões que, ao serem negligenciadas, impõem o risco de se trilhar por caminhos inconsistentes. Buscando evitar um olhar reducionista sobre essas campanhas, gostaria de lembrar que sua produção está impregnada de fluxos interativos contínuos em um campo social complexo. Em relação às campanhas públicas, uma questão muito importante a se considerar é que elas são apenas uma parte das ações de prevenção do Estado, embora uma parte muito significativa, pois a mais visível e a mais exposta. Geneviève Paicheler (2000), em um trabalho intitulado La

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6 Mauro Wollf (1994), em um excelente estudo sobre as teorias da comunicação, traça a trajetória dessas teorias desde a década de 1930 até a década de 1970. Ele mostra como, no seu desenvolvimento, a dimensão da recepção foi sendo cada vez mais considerada na produção das mensagens veiculadas pelos meios de comunicação de massa. A mensagem, no seu percurso, encontraria obstáculos a serem transpostos como a psicologia do receptor, como concebia a teoria empírico-experimental ou da persuasão; ou a cultura dos grupos, identificada pela teoria empírica de campo. A primeira formulou suas bases teóricas apoiando-se no desenvolvimento da psicologia social e a segunda, na sociologia. Estas teorias tiveram como grande representante Lazarsfeld. É verdade que, apesar de se reconhecerem esses obstáculos, essas teorias pressupunham poder superá-los mediante estratégias corretas e obter os efeitos desejados.


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7 Sobre as estratégias das campanhas governamentais e não governamentais de prevenção a Aids veiculadas pela televisão brasileira, ver Marinho, 1999.

comunication publique sur a sida en France: un bilan des stratégies et des actions (1987-1996), mostra como o engajamento do Estado na prevenção revela esta ação sob a perspectiva de duas ameaças: não apenas a insatisfação da população, mas sobretudo a de grupos significativos, podendo pesar sobre a opinião pública ou agir diretamente sobre o Estado, constituindo grupos de pressão. Isto demonstra que a comunicação pública é o viés pelo qual o Estado veicula informações, mas não deve ser encarada, unicamente, sob seu aspecto operacional. Ela se dirige a uma larga audiência que testemunha o interesse do Estado por um problema particular. E, ao extremo, pode substituir a ação. O Estado não controla as informações difundidas sobre determinado fenômeno que é tema de uma campanha. Às campanhas se juntam numerosas mensagens de uma multiplicidade de instituições e atores, difundidas pelos mais variados “meios”. Os discursos transmitem as informações sobre determinado fenômeno, seus efeitos, meios de prevenção, enfim, veiculam uma visão de mundo. No entanto os poderes públicos não desconhecem a potencialidade da visibilidade. Ela aparece como fundamental, pois permite que a “opinião pública” “veja” o compromisso que esses poderes estabelecem em relação a determinados fenômenos, sua orientação, em função de suas obrigações. O fenômeno da Aids demonstrou muito bem isso. Em fins dos anos 1980 e nos anos 1990, as campanhas de prevenção da Aids veiculadas pela televisão colocaram em debate as estratégias de comunicação do governo7. As campanhas que tiveram como objetivo desenvolver estratégias preventivas, inicialmente foram criticadas por não abordarem as formas de redução de risco de uma maneira clara e apresentarem a proposta de abstinência sexual como a melhor forma de prevenção. Aliados a isso, revelavam-se sentimentos de medo e pânico somados a um desconhecimento da doença, que borbulhavam no interior da sociedade como um fato global, e que encontraram canal de expressão nessas campanhas. Ao colocarem em circulação a dimensão simbólica da doença - traduzida na associação da sexualidade e morte e de noções como a de grupo de risco -, as campanhas também foram acusadas de “gerar imagens distorcidas da doença e de suas vítimas alimentando preconceito e discriminação” (Parker, 1994, p.104). As campanhas de prevenção ao consumo de drogas lícitas e ilícitas As palavras elucidativas de Aldous Huxley parecem oportunas para se dar início a uma reflexão sobre as campanhas de prevenção ao uso de drogas: Nossa era, entre outras coisas, é a idade do automóvel e da vertigem da velocidade. O álcool é incompatível com a segurança nas estradas e sua produção, bem como a do tabaco condena praticamente à esterilidade muitos milhões de hectares dos mais férteis solos. Os problemas criados pelo álcool e pelo tabaco não podem ser e isto não admite contestação — resolvidos pela proibição. O impulso universal e permanente para a autotranscendência não pode ser dominado pelo simples fechar das tão solicitadas Portas na Muralha. (Huxley, 2001, p.36)

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Como já foi constatado, cada período estabelece com as drogas uma relação que vai ser definida por uma significação positiva ou negativa. No momento atual, insurge contra elas um verdadeiro movimento de interdição. As campanhas de prevenção ao uso de drogas, lícitas e ilícitas, para dar forma a uma intenção proibicionista têm utilizado elementos caracterizados pelo terror, dor e morte, que vêm evidenciar uma significação marginal das drogas. Entre as campanhas de prevenção ao uso de drogas lícitas, as campanhas contra o cigarro ganharam um investimento fabuloso. Em 1965, o presidente Lyndon Johnson sancionou lei que obrigava a colocação de aviso na embalagem de cigarros, para advertir sobre os efeitos do fumo sobre a saúde. De lá para cá, ações do governo americano contra o cigarro se multiplicaram: espaços para fumantes foram restringidos, empresas produtoras de cigarro foram responsabilizadas por doenças causadas pelo fumo; buscam-se provas de que a nicotina causa câncer. Em 1999, Bill Clinton fecha o cerco contra as indústrias do tabaco, prometendo processar os produtores para ressarcir o governo federal dos gastos que teve com pessoas que adoeceram por causa do hábito do fumo. Na Europa, em 1997, em uma situação contraditória, campanhas contra o cigarro estavam convivendo com a realidade da criação de empregos pela indústria do cigarro: naquele período,“[...]14 países já tinham banido totalmente as campanhas de cigarros da TV e do rádio”. E, ainda, de acordo com analistas, não se pode garantir que a propaganda antifumo cumpriu seus objetivos. A queda do consumo do cigarro foi atribuída muito mais aos aumentos dos preços dos cigarros do que aos “US$ 15 milhões anuais investidos no continente em campanhas para combater o hábito (ou o vício, como queiram) de fumar" (Aith, 2000). Em 2002, o Parlamento Europeu aprovou uma medida: Cada um dos países que compõem a UE poderá requisitar aos fabricantes que estampem no maço de cigarros fotografias chocantes, como de pulmões enfisematosos ou cânceres bucais, moléstias ligadas ao hábito de fumar. A advertência legal sobre os riscos do tabagismo, que hoje ocupa 4% da embalagem, deverá cobrir pelo menos 30% da frente do maço e 40% da parte posterior. (Brooke, 2000)

O Ministro da Saúde do Canadá no período, Allan Rock, é um dos fervorosos defensores dessa política. Pesquisas do governo canadense concluíram que ... maços com alertas com fotos têm sessenta vezes mais probabilidade de sensibilizar os fumantes do que as advertências usando apenas palavras. Embora o Canadá e a Califórnia já tenham exibido fotografias de pacientes com câncer em cartazes e na TV, seria a primeira vez que fotos de tumores cancerosos seriam impressas em maços de cigarros. Não existe, entretanto, um consenso sobre a eficácia de tais imagens. Alguns analistas têm o bom senso de declarar que “as imagens chocantes não

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O DEMÔNIO NOS "PARAÍSOS ARTIFICIAIS":... convencerão muitos fumantes a abandonar o cigarro. Uma das características da dependência é justamente desprezar os perigos associados ao vício. Por mecanismos ainda não bem conhecidos, o dependente, em nome do prazer agora, deixa de ligar para o que lhe possa acontecer no futuro. (Folha de São Paulo, 2001)

8 Da verba total de R$ 55 milhões que o setor destina à publicidade, R$ 33 milhões vão para as emissoras de televisão, R$ 14 milhões para revistas e os R$ 8 milhões restantes para painéis e cartazes de rua.

9 Tanto o Carlton como o Free patrocinavam festivais de dança (Carlton Dance) e de música (Free Jazz Festival).

Em 2000, o Ministério da Saúde do Brasil veicula a primeira contrapropaganda do cigarro: "'Cigarro faz mal até na propaganda’ é o slogan da campanha do governo, que custou R$ 4,5 milhões" (Folha de São Paulo, 2000). Aqui, inicia-se uma obsessiva luta contra o cigarro que ganha o estatuto público de droga. Nesse mesmo ano, foi elaborado pelo Ministério da Saúde um projeto de lei que proíbe a propaganda de cigarros na televisão, na imprensa e na rua8. Como o veto total das propagandas contraria a Constituição, que estabelece que poderá haver publicidade de agrotóxicos, bebidas alcoólicas e cigarros, desde que com restrições, o projeto admite a exibição de pôsteres e cartazes de propaganda em recintos fechados. Outra proibição prevista no projeto de lei diz respeito aos produtores de cigarro enquanto patrocinadores de eventos esportivos e artísticos9. “‘O objetivo da campanha e do projeto é evitar que os fabricantes de cigarro continuem a fazer propaganda enganosa, a vender ilusões e a viciar adolescentes e jovens’, diz Serra”, ministro da Saúde no governo de Fernando Henrique Cardoso (Serra, 2001). Seguindo a trilha da União Européia, o governo brasileiro institui, em 2002, a obrigação de que maços de cigarro estampem fotos coloridas de doentes afetados pelo cigarro seguidas de “mensagens duras”. No Brasil, a campanha dos maços de cigarro — a campanha mais recente — tem como temas o câncer do pulmão, o infarto, o fumo na gravidez, a nicotina como droga que causa dependência, a impotência sexual, o adulto como responsável pela disseminação do vício entre as crianças. Entre as campanhas de prevenção ao consumo de drogas ilícitas, destacam-se as veiculadas pela televisão. Ao contrário das campanhas contra o cigarro, elas têm as Organizações Não-Governamentais como seus maiores investidores. A Associação Parceria Contra Drogas pode ser considerada uma das organizações mais presentes na televisão. Constituída por empresários de vários setores da iniciativa privada ela está em operação desde abril de 1996. As agências de propaganda criam voluntária e gratuitamente as campanhas. A mídia cede tempo e espaço, sem custos, para a

A organização já conta com mais de cinquenta filmes, alguns deles premiados nacional e internacionalmente.

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veiculação das mensagens. E as empresas colaboram com recursos financeiros, que se destinam a pagar os inevitáveis custos de produção dos anúncios para TV, rádios, jornais, outdoor e revistas”10. (UOL, 2004)

O símbolo visual da organização é uma mão branca espalmada sobre um losângulo vermelho. Esta imagem remete a idéia de “Pare, não ultrapasse o limite da segurança da experiência sem drogas”. Textos carregados de ameaças e acusações, slogans de alerta e imagens

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aterrorizantes são elementos característicos das campanhas de prevenção ao uso de drogas ilícitas produzidas e veiculadas nos últimos anos. Faz-se uma ressalva à campanha que vem tentando, de forma simplista e estereotipada, propor a prevenção, abordando o consumidor como o culpado da violência gerada pelo tráfico de drogas. Essa questão é um excelente exemplo de como a questão das drogas no Brasil vem sendo tratada de forma a não se olhar uma questão crucial, que é a de como historicamente a proibição perpetuou o crime organizado e gerou violência. Não é a proposta, aqui, analisar a eficácia das campanhas governamentais e não-governamentais de prevenção de drogas lícitas e ilícitas. Pois, como muito bem coloca Paicheler (2000), dar conta da eficácia de uma campanha é uma tarefa escorregadia, porque, em primeiro lugar, é impossível separar as campanhas de um contexto complexo em que numerosas comunicações, em diferentes níveis, se entrelaçam. E, também, os efeitos da comunicação para prevenção ao uso de drogas não são imediatos, eles só podem ser analisados a longo prazo, sem que seja possível separar o que pode ser atribuído positivamente às campanhas propriamente ditas. Freqüentemente, os estudos dos efeitos da comunicação se fazem por meio de sondagens, buscando mensurar a eficácia da mensagem. Procura-se, geralmente, saber se ela cumpriu seu objetivo, se foi ou não passada sem encontrar oposições ou resistências. Os limites de tais sondagens não permitem ir além de situações externas, não alcançando dimensões que indiquem uma real compreensão do problema. O que importa aqui é evidenciar a questão que diz respeito à maneira como a droga pode ser considerada um fenômeno resultante de diferentes construções de sentido, realizadas pela estratégia de várias instituições: médicas, políticas, religiosas, policiais etc. Ela ganha visibilidade e face próprias à medida que vai sendo publicizada, principalmente pelas notícias e campanhas (Fausto Neto, 1999). Por enquanto, a medida deste trabalho permite arriscar, em um primeiro momento, que o fenômeno do uso de drogas não pode ser compreendido fora de um campo histórico e social no qual um sentido dominante sobre as drogas é construído a partir de interesses de várias instituições e da visibilidade que consegue alcançar. Em segundo, as políticas de comunicação preventiva e, de forma mais específica, as campanhas são objetivações privilegiadas que expressam e renovam este sentido social dominante. Questionar, pois, este sentido, foi o intuito deste trabalho. Referências AITH, M. Indústria do fumo tem vitória nos EUA. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 mai. 2000. Editoria Cotidiano, p.c3. BECKER, H. Consciência: poder e efeitos da droga. In: BECKER, H. (Org.) Uma teoria da ação social coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p.180-204. BOUGNOUX, D. Introdução às ciências da informação e da comunicação. Trad. Guilherme João de Freitas. Petrópolis: Vozes, 1994. BROOKE, J. Canadá quer fotos de câncer no maço. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 mai. 2000. Editoria Mundo, p.A13. ESCOHOTADO, A. Las drogas: de los orígenes a la prohibición. Madrid: Alianza Editorial, 1994.

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O DEMÔNIO NOS "PARAÍSOS ARTIFICIAIS":...

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MARINHO, M. B.

SÍLVIA MECOZZI, Série Actínia, 2003

MARINHO, M. B. El demonio en los “paraísos artificiales”: consideraciones sobre las políticas de comunicación para la salud relacionadas al consumo de drogas. Interface - Comunic., Saúde, Educ., Educ. v.9, n.17, p.343-54, mar/ago 2005. El fenómeno del consumo de drogas en la sociedad contemporánea es tema de amplias discusiones. En Brasil, en las políticas de comunicación para la salud hay una ostensiva desconsideración de las dimensiones constitutivas de este fenómeno. De allí que las conductas relacionadas a la prevención del consumo de drogas revistan a ese consumo de significaciones marginales que, en lugar de despertar una sensibilidad que propicie los cambios de conducta, generan prejuicios y segregación con relación al usuario. Esto puede observarse en las campañas - gubernamentales y no gubernamentales - de prevención del uso de drogas lícitas e ilícitas que integran esas políticas de comunicación. Por lo tanto, la propuesta de este trabajo es comprender cómo el fenómeno del consumo de drogas alcanza determinadas significaciones y cómo las campañas expresan estas significaciones. PALABRAS CLAVE: drogas; políticas de comunicacíon; campañas; prevención; promoción de la salud.

Recebido para publicação em: 13/07/04. Aprovado para publicação em: 13/05/05.

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SÍLVIA MECOZZI

An experiment with PBL in higher education as appraised by the teacher and students*

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Luis Roberto de Camargo Ribeiro 2 Maria da Graça Mizukami

RIBEIRO, L. R. C.; MIZUKAMI, M. G. An experiment with PBL in higher education as appraised by the teacher and students. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.357-68, mar/ago 2005.

PBL (Problem-based Learning) has gained worldwide acceptance as an effective instructional approach that helps students to acquire knowledge as well as develop desired professional skills and attitudes. Contrary to other conventional methods that use problems after theory has been introduced, PBL uses a problem to initiate, focus and motivate the learning of new concepts. This paper presents and discusses the students’ and the teacher’s viewpoints on the implementation of PBL in an Administration Theory course of an engineering curriculum at a public university in Brazil. The data were collected by means of unstructured interviews, participant observation and an open-ended questionnaire responded by the students at the end of the course. The results show that despite increasing the workload for the teacher and the students, both evaluated PBL positively because it is more motivating and dynamic. KEY WORDS: problem-based learning; higher education; teaching methodology. A Aprendizagem Baseada em Problemas (Problem-based Learning ou PBL) tem sido reconhecida mundialmente como uma abordagem instrucional capaz de promover a aquisição de conhecimentos pelos alunos ao mesmo tempo que os ajuda a desenvolver habilidades e atitudes profissionais desejáveis. Ao contrário de outros métodos convencionais que usam problemas de aplicação depois que a teoria foi apresentada, a PBL utiliza um problema para iniciar, enfocar e motivar a aprendizagem de novos conceitos. Este trabalho apresenta e discute os pontos de vista dos alunos e professor sobre uma implementação da PBL em uma disciplina de Teoria Geral de Administração de um currículo de engenharia de uma universidade pública no Estado de São Paulo, Brasil. Os dados foram coletados mediante entrevistas não estruturadas, observação participante e um questionário respondido pelos alunos ao final do semestre. Os resultados mostram que, apesar de aumentar a carga de trabalho para o professor e os alunos, ambos avaliaram a PBL positivamente por ser mais motivadora e dinâmica. PALAVRAS-CHAVE: aprendizado baseado em problemas; educação superior; metodologia de ensino.

* The authors are grateful to the teacher, who volunteered to take part in this research, and to CAPES, for the financial support. 1

Professor, Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Metodologia de Ensino, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP. <luisrcr@itelefonica.com.br> 2

Professora, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Medotologia de Ensino, Universidade Federal de São Carlos. <dmgn@power.ufscar.br> 1

Rodovia Washington Luís, km 235 São Carlos, SP 13.565-905

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RIBEIRO, L. R.; MIZUKAMI, M. G.

Introduction Recent studies about the goals of higher education have consistently linked them to the students’ future professional careers. For instance, we find in Tynjälä (1999) that higher education should aim at the students’ professional training, life-long learning, and preparation for their professional practice and for the professional world in general, which may be accomplished by integrating theory with practice into the curriculum, promoting the students’ acquisition of specific and general knowledge, fostering their ability to think analytically and conceptually, encouraging them to develop written and oral communication skills and interpersonal skills, and providing them with opportunities to reflect on, and learn from, practical situations. In engineering education, these objectives have been supported by surveys about desired professional profiles carried out among academics, prospective employers, and practicing engineers (Ning, 1995). The results of these studies indicate the need for both depth and breadth in engineering education – a curriculum that can promote the acquisition of scientific and technological knowledge, as well as the development of skills and attitudes. However, as the curricula are already overburdened and it is impractical to extend the courses, it is mandatory that these three categories of knowledge, i.e. technical and scientific knowledge, skills and attitudes, are dealt with simultaneously in the curriculum. There are several educational approaches that aim at providing depth as well as breadth in higher education, such as student-centered education, active learning, case-based learning and inquiry-based learning, to name a few. One such approach is Problem-based Learning (PBL), which seems to encompass many of the characteristics of other alternative approaches and is renowned, according to Savin-Baden (2000), for its capacity to foster knowledge acquisition and the development of professional skills and attitudes, without the need for subjects especially conceived to this end. Problem-based Learning (PBL) Contrary to conventional methods that pose application problems after theory has been introduced to the students, PBL is an instructional approach that uses a problem to initiate, focus and motivate learning. Although originally conceived for the teaching of medicine (McMaster University, Canada, mid1960’s), PBL has since expanded to the teaching of other university disciplines, including engineering (Woods, 1996), and to other educational levels. Furthermore, even though it was conceived to be implemented in the whole curriculum, PBL has also been used as a partial method of instruction, such as in one subject within a traditional course (Wilkerson & Gijselaers, 1996) or even in some parts of a single subject (Stepien & Gallagher, 1998). As a result, PBL implementations may vary according to many factors, including the contexts, disciplines, curricula and institutions where it is used. However, most of the uses of this method are characterized by the following process (Barrows, 2001; Engel, 1998): a) a problem is presented to the students, who, in teams, try to define it and solve it with whatever knowledge they may have; b) by means of discussion they elicit the aspects of the problem they do not understand; c) they prioritize the learning issues and decide how,

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when and by whom they will be investigated, to be later shared with the other team members; d) when they meet again they explore the previous learning issues and integrate the new knowledge into the context of the problem; and e) after having finished working with the problem, they assess the process, themselves and their peers. It should be remarked that the PBL process does not solely aim at teaching students how to be successful problem solvers. In spite of its name, the development of an effective problem-solving process is just one of the goals of PBL. This method is also intended to assist students in the acquisition of an integrated knowledge base structured around real-life problems and in the development of skills and attitudes, including teamwork and self-directed learning skills, cooperation, ethics and respect for other people’s points of view. Needless to say, the adoption of PBL implies structural and curricular changes in the schools and/or courses. However, these changes alone do not suffice; there is also the need for cultural change, especially regarding the roles played by the main actors: teachers and students. PBL calls for a teacher role different from that found in conventional classrooms, as it demands that teachers act as facilitators, mentors or tutors in the process of knowledge construction carried out by the students instead of just imparting knowledge to them. Although this role may not be entirely unfamiliar to higher education teachers (as many also act as graduate students’ advisors), this change may not come about so easily due to diverse internal and external pressures, such as their fear of losing control (as regards content coverage and classroom management) and an increase in their workload. This change can also be hindered by the students themselves, especially recent school leavers, who – having been through (and thrived in) years of a type of schooling rooted in passive information reception – might expect the same instructional approach from all teachers. On the contrary, the students must play a distinct role in PBL, by taking up responsibility for their own learning so that the educational goals of this instructional method may be attained. Therefore, it seems that securing the teacher and students’ understanding of, and commitment to, PBL is fundamental to the success of an implementation of this method, by granting them the opportunity to voice their opinions and concerns. Based on this assumption, this study seeks to investigate the implementation of PBL in a subject offered at the undergraduate and graduate levels of a public university in Brazil by focusing on how the students and the teacher evaluate this method of instruction as compared to more conventional ones. In so doing, this study also intends to contribute to the literature on PBL given that, according to Savin-Baden (2000), there has been little research to date on the impact of this method on the teachers’ and students’ lives. Methodology This research adopted a qualitative approach as this design is recommended when one wishes to study things in their natural settings, “attempting to make sense of, or interpret, phenomena in terms of the meaning people bring

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to them” (Denzin & Lincoln, 1994, p.4). It also adopted a collaborative approach inspired by Cole & Knowles (1993) in that the planning, implementation and, to some extent, data collection and assessment were shared by the researchers and the teacher (a researcher himself in the field of Business Administration). Based on the aforementioned principles and activities, PBL was implemented simultaneously in two Administration Theory courses (of the undergraduate and graduate industrial engineering curricula at a public university in Brazil in 2002) taught by the same teacher and covering a similar syllabus. The undergraduate class (UG) had 28 students (24 M and 4 F, 19-20 years of age) and the graduate class (G) had 23 students (17 M and 6 F, 24-50 years of age). The students had one class per week lasting 100 minutes (UG) and 200 minutes (G) during 15 weeks, in which 12 problems were presented (1 per week). The students divided themselves into teams (4-6 students each), in which they took up different roles (leader, spokesperson, scribe, and participating members), rotating every week. (These teams were changed at mid-term to promote exchange of teamwork experiences and more impersonal interactions.) The PBL cycle began in the second half of each class with the introduction of the problem, followed by group discussion and presentation of a preliminary report containing the team’s problem identification, hypotheses, learning issues and teamwork plan for the subsequent week. During this phase the teacher walked around the classroom, assisting in the teamwork and answering pertinent theoretical questions. In the first half of the following class the scribes had to hand in a final report (with the items from the previous preliminary report plus the team’s solution to the problem and the theoretical framework used), which was then presented orally by the spokespersons. Each presentation was followed by a short debate between the team, the teacher and other classmates. When all the teams had finished presenting their solutions the teacher commented on them and synthesized the theory prompted by the problem. Afterwards the leaders individually assessed the process, their own performance and that of their team members. The teams also evaluated the educational process (the problem, the presentations, the teacher’s synthesis etc.). The students’ final grades were composed of marks received for their presentations, the preliminary and final reports, and the selfand peer-evaluations for the 12 problems introduced during the semester. Research data was collected by means of unstructured interviews with the students and the teacher, participant observation of classes and perusal of artifacts produced by the teacher (problems, performance evaluation forms etc.) and the students (reports, self- and peer-evaluations, posters etc.). In addition, a questionnaire was given to the students at the end of the semester (responded by 26 UG and 21 G students) in which they were asked to evaluate the adopted method of instruction and indicate whether the course goals (knowledge, skills and attitudes) had been achieved. Results and discussion On the whole, most of the UG students (85%) and nearly all of the G students (91%) evaluated the instructional method positively, as illustrated by the

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following excerpts: “The instructional method, after it was grasped, worked very well because […] it favored competencies other than technical ones” (UG04) and “I liked the adopted method very much […], the class was more dynamic, and it was more easily understood” (G19). This level of student satisfaction is consistent with the literature and has been used, according to Albanese & Mitchell (1993, p. 63), as a strong argument in favor of PBL, as it may “instill in students a joy of learning that will nurture them so that they become life-long learners”. The teacher’s general appraisal of the methodology was also positive, because, among other things, it made his classes more dynamic and interesting. His satisfaction also supports the findings of Albanese & Mitchell’s (1993) meta-analysis. The students’ perceptions of the method Besides making the class more pleasurable, both student cohorts credited PBL with the potential to promote self-directed learning: “The advantage is that the students do not get the theory on a platter, and as a result, they have to search for it. Hence, they learn better” (UG01); more integration between theory and practice and between class work and the students’ future professional practice: “By having us do research, as in the real world, we found the knowledge needed for our work and our lives” (G09) and “I personally think [the method] was very good, especially the change of teams [at midterm], which simulated a real-life situation in organizations” (G10); more student involvement: “I liked the method very much because we are continually in touch with the subject matter, and always updating our knowledge” (UG23) and “The method encourages more commitment and responsibility [on the part of the students]” (G07); more integration among the students; multiple visions about the same topic etc. G12’s comment sums up these points: [The method] allows a greater scope of research throughout the semester. It enables us to value other teams’ understandings and contributions, to exchange ideas between the team members and to reach consensus. [Because there is] the need to do research on a weekly basis, [it compels us] to think up effective methods of doing research, writing reports, communicating with other team members...

Despite the fact that PBL was evaluated as satisfactory by the majority of the students from both cohorts, some of them saw some disadvantages in this instructional approach. One of the shortcomings they cited was its overdependence on the students’ self-directedness and motivation: “It depends too much on the students being motivated to search for knowledge” (UG03) , and “One disadvantage is that in order to work well all students must be willing to participate” (G13). Indeed, student participation is a sine qua non of PBL, and differs from conventional education where students can, to some extent, be aloof or absent in some classes and catch up later during the course. This constant pressure for participation may also have been perceived as taxing by some students as illustrated in “[The method] forces students to participate and this may sometimes inhibit them because of their [more

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RIBEIRO, L. R.; MIZUKAMI, M. G.

reserved] personalities” (G02). Evidently, the students’ personalities, learning styles and comfort level should always be taken into account when adopting an active-learning method such as PBL (Kaufmann & Mann, 2001). However, students should be informed from the beginning that the PBL activities involving teamwork and presentations have not been devised solely to enhance learning, but also to prepare them for situations they are likely to encounter in their future professional practice. Although deemed as of lesser importance by some academics, these skills may be vital to engineers, as many reach managerial positions ten years after graduation (Hadgraft, 1993). The students also expressed the concern that PBL increased the workload and was more time-consuming than conventional methods. This may be especially true in this implementation context, in which the steady workload required by the approach may have conflicted with the demands of their other subjects and personal commitments: “I think the method is interesting, but the constant work gets out of hand, because the team members have other subjects to study” (UG20) , and “It is a motivating method, but it requires much more commitment and responsibility from the students” (G06). While it was observed that the method did increase the students’ workload and study time, this concern has to be analyzed vis-à-vis the educational contexts under consideration. The UG students had a full timetable (a common fact in engineering courses in Brazil), and most of the PG students held jobs and/or lived in other places. Also, the students’ perception of greater workload and time demands may be more related to the fact that they had to put in work on a weekly basis than to the amount of work itself. Indeed, it was generally observed that the approach challenged the students’ capacity to manage their time and other constraints (e.g. some G teams held on-line meetings). In short, in this implementation the students had to manage their study time differently and perhaps more efficiently, and some students may not have been completely successful in adjusting to this change. Another negative assessment was that the content was superficially learned under PBL: “The method is good but the exploration of the topics is superficial” (UG02), “I feel I have learned a lot of things, but I don’t have a clear and organized picture of what I have learned” (UG10) and “There is just one thing I would like to remark: the students with no previous knowledge in Administration may not have been able to adequately construct the building that houses the administration theories” (G06). First of all, it must be explained that the subject was general in nature and covered a wide range of theories, which made it impracticable to explore each one of them in depth irrespective of the method of instruction used. Secondly, it should be said that the capacity of PBL to promote content acquisition is still a source of debate, as some studies show a small advantage in favor of more conventional methods. However, some authors, such as Stinson & Milter (1996), challenge this difference even though it is small, because they believe it is based on results of standardized objective tests, which only measure the students’ capacity to memorize non-contextualized concepts, and also because they may be indicative of weaknesses in the implementations rather than in PBL itself. At any rate, contrary to G06’s perception, a recent meta-analysis on

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PBL research suggests that it favors the development of a better structured knowledge base in comparison to lecture-based methods (Dochy et al., 2003). The aforementioned time and workload issue must also have prevented the students, particularly the UG ones, from looking at the topics in detail. Given that students using PBL are the ones primarily responsible for the topic investigation, insufficient time may have resulted in superficiality, thus inadequate knowledge acquisition. Also, the comments coming especially from older G students, who were themselves teachers, on the need for previous knowledge – which is contrary to PBL principles – may be attributed to their schooling in conventional environments (where teaching is usually equated to learning), personal beliefs about what a good class and a good teacher should be and deficient pedagogical training. The combination of these factors may have helped to forge their idea that lecturing is the most effective way of teaching theory at all times. Despite these negative reactions the majority of the students from both cohorts stated that the method favored the acquisition of knowledge, as illustrated by the following excerpts: “I think so [the method promoted content acquisition], because I consider what I have learned to be of great benefit to my career, and even to my life!” (UG23) and “Yes, it did. I began to see the function of Administration in other ways, with special emphasis on the consequences of a decision made without taking into account all the factors involved in the process” (G03). On the whole, the students also acknowledged the development of some of the skills attributed to PBL (Albanese & Mitchell, 1993), such as problemsolving skills: “Rather than just learning the theory […] we learned where to look for solutions to the problems, how to analyze the solutions and appraise them” (UG21) and “The students developed a stronger attitude towards investigating the topics in books, on the Internet… always in search of a better solution to the problems” (UG01); teamwork skills: “Knowledge was acquired through the activities, which also contributed to the development of our ability to work in teams” (G17); oral and written communication skills: “In the first problems [weeks] we all seemed to be lost […], but in the last classes it was easy to see the students’ progress. Owing to their accumulated experience they worked better, produced better reports and felt more confident to present them” (UG17); self-directed learning: “It was interesting to be able to develop different skills […] and learning how to learn” (PG04). Regarding attitudes, the students from both cohorts either were vaguer or did not differentiate them from the skills, which may reflect the fact that these attributes are seldom singled out or assessed in conventional syllabuses. Besides, as indicated by some students’ comments, some unwanted attitudes took place, such as corporatism and ‘free rides’ (which led the teacher to rearrange the teams at mid-semester): “I was honest and considered the team as an organization […]. However, many students were just concerned about the grades, even compromising to give E’s [Excellent] to all team members, regardless of their performance in the process that week” (G15). This excerpt illustrates how difficult it is to promote attitudes and to change study strategies forged in an educational culture based on getting grades to pass.

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However, in spite of that, other students did report the promotion of some desirable attitudes: “[The students] developed the ability to work in teams, […] respecting other people’s opinions” (UG01) and “[The students developed some] attitudes concerning the team and the class as a whole, such as collaboration, time planning, complying with deadlines, respecting other students’ difficulties” (G12) etc. The teacher’s views about the method In general, the teacher’s views were in agreement with that of the students. Besides affirming that PBL made the class more interesting and dynamic, he stated that it might have favored the students’ acquisition of knowledge and development of skills and attitudes. He also believed the method was more efficient in promoting self-directed learning and critical thinking as compared to more conventional ones: My impression is that the method does bring about research…I mean, it is good because it is only through research and reflection on what we’ve found that we can learn. That is what we do as [academic] researchers; we are always trying to solve a problem […]. It is the opposite of conventional teaching, which does not provoke anything…

Nevertheless, the teacher also felt that PBL demanded greater maturity and more intrinsic motivation from the students in order to function properly: It is evident that [the method] demands much more responsibility, more commitment to the team and to the class as a whole. […] Other conventional methodologies don’t. Even if the students do nothing, the teacher lectures on, and the course goes on… Not with this approach! If the students don’t realize that they are actively constructing this course, this subject, it is harder for this method to work.

On the other hand, whereas it is true that the method demanded more active participation from the students, it did not reduce the participation of the teacher in and outside the classroom. On the contrary, it was observed that the role change resulted in more work for the teacher in both instances; however, the work was different from the kind of work he used to do. Even though the method may have lightened his role as the provider of knowledge, it seems to have increased his responsibility in the management of the instructional process. This means that the method may have been more timeconsuming to him as much as it was to the students, in comparison to his former way of teaching. Indeed, it was observed that the instructional approach increased the workload and time expenditure for the teacher, in the same way it did for the students. As it distributed the work evenly throughout the semester, the method also required that the teacher control his time more carefully. It made it more difficult for him to postpone work (e.g. marking the reports) and miss

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a class due to other academic commitments (e.g. conferences) or personal matters (e.g. sickness). Moreover, the teacher reported that he had provided more feedback to the students and had done more assessment (of students’ self-, peer and process evaluation forms, presentations and reports) than he would have done in a more conventional method of instruction, and this is per se a time consuming activity: I don’t know. I haven’t paid attention to time… I think I took me more than one hour to handle all the [preliminary and final] reports [of the week before]… to sort them out according to the teams, to give them written feedback… I think that’s time-consuming, I mean, giving them written feedback. But this is so important! I even heard some students whisper […]: ‘Oh, he [the teacher] gives feedback!

Furthermore, as the implementation allowed for on-going process evaluation, this meant that the classes (problem-solving cycles and problems) could not be entirely prepared in advance. There were always changes and improvements to be made in the format of the reports, problems and presentations in response to the students’ evaluations as well as the teacher’s classroom observations in the previous week. This differed from the teacher’s former class planning mode, which was mostly done during the students’ vacations. Thus, besides increasing the teacher’s time expenditure, the method also seems to have restrained the management of his time – an important point of consideration when implementing PBL in a research university such as the one in question. In addition to increasing the time devoted to the subject, the teacher also felt that PBL would not suit beginning teachers or teachers with limited knowledge of the content under consideration. In his opinion PBL worked better with expert teachers. This is the reason that despite being an accomplished academic, he chose to implement the method in just one of his subjects, i.e., Administration Theory, which he had been teaching at the university for over twenty years. He basically perceived PBL as increasing the degree of unpredictability in the classroom as compared to conventional teaching, and this unpredictability could sometimes challenge the teacher’s expertise in unwanted ways. For example, when the students come up with issues beyond or outside the teacher’s knowledge of the subject matter: I think that for the teachers that [lecturing] system is easier, because they can prepare their classes as they please and everything is extremely predictable. The students are just there receiving information without questioning it. [Whereas in PBL] we could say that there is a degree of unpredictability with regard to the teacher’s class planning. […] The teacher instigates the students with a problem, and he or she does not have precise control of what is going to happen in response.

Although this excerpt is focused more on the teacher’s feelings before and in

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RIBEIRO, L. R.; MIZUKAMI, M. G.

the beginning of the implementation, it is important in that it illustrates how conventional faculty members may view instructional innovations such as PBL. As a possible outcome of the unpredictability of teaching using this method, the teacher was concerned about how the students would react to the eventual lack of knowledge on his part: You [the teacher] can say that you don’t know something once or twice… that you will check it out and tell them next class, but a third time…well, the students will begin to think you are not qualified to teach the subject.

This uneasiness may have its origin in the culturally shared archetype of a good teacher, i.e., that of the expert and knowledge imparter, as well as in the way he developed his teaching practice: “from scrap”. Without having had any pedagogical training (a common fact among Brazilian engineering educators), he constructed his practice in a long, solitary process of trial and error, based on his experiences as a student in more conventional educational environments, and by emulating the practice of his teachers. This may be one of the reasons why so many engineering teachers resist alternative methods: their practice mode (which worked for them after all), however imperfect, is all they know, and because they have expended time and effort in its construction, they are not willing to give it up easily. This unpredictability may also be the source of some faculty’s fear of losing control over the course content, especially those used to a more linear and sequential teaching mode. In the beginning the teacher was noticeably concerned that the students would come up with solutions to the same problem grounded on too disparate administration topics, such as leadership, strategy, structure etc. He believed that they would not be able to learn anything in depth and that he would be unable to produce a consistent final synthesis of the theory generated by the problem. Although this diversity of visions may be construed as positive (as most real-life problems have multiple causes), it can also make it more difficult to examine a topic in detail in a classroom context. At any rate, this concern proved to be unfounded as the problems themselves succeeded in directing at least some of the teams to the topic in question. In addition, the occurrence of less suitable solutions – related to other topics – was also beneficial to the teacher, as these secondary topics assisted him in the construction of his synthesis (by serving as counter-arguments) and in understanding his students’ reasoning through the problem-solving process: Engineering students are so positivist! They always think that an organizational problem is caused by people, employees…for them it is always a Human Relations problem … they never blame it on the organization structure, process...

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AN EXPERIMENT WITH PBL IN HIGHER EDUCATION...

Conclusion Despite the aforementioned concerns expressed by the teacher and the students, the results of this study explicitly favor the adoption of PBL as a viable instructional method for this context. Nevertheless, the main issues that were brought up by these actors need to be carefully addressed. In particular, time expenditure has to be closely monitored so as not to interfere with the students’ and the teacher’s remaining academic and/or personal commitments. It is clear that time pressures will lead to the students’ lack of depth in research and cursory performance of activities that could otherwise enhance their professional training, promote life-long learning, and prepare them for their future practice and the professional world. On the other hand, excessive work also affects teachers in the sense that it deprives them of the time they need to reflect on and improve their practice, which seems to have been encouraged by this PBL implementation. It was observed that the teacher constantly assessed the institutional culture, his values and beliefs, his practice and the students’ reasoning through the problem-solving process. Therefore, as long as there is sufficient time, the sum of these reflections may lead teachers to become better professionals, a desired outcome in the Brazilian engineering education context, where so many teachers lack formal pedagogical training. Although it should not be expected that this method of instruction is capable, by itself, of making up for this deficiency, the findings of this study suggest that it can become a powerful aid in this quest. Likewise, the collaborative design adopted in this research also played an important part in this process by providing opportunities for the exchange of ideas between the researchers and the teacher and promoting the dialogue between teachinglearning theory and practice in the teacher’s workplace. References ALBANESE, M. A.; MITCHELL, S. Problem-based learning: a review of literature on its outcomes and implementation issues. Acad. Med., v.68, n.1, p.52-81, 1993. BARROWS, H. S. Problem-based learning (PBL). Available from: <http://www.pbli.org/pbl/>. Accessed: June 16, 2001. COLE, A. L.; KNOWLES, J. G. Teacher development partnership research: a focus on methods and issues. Am. Educ. Res. J., v.30, n.3, p.473-95, 1993. DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Entering the field of qualitative research. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Eds.) Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publications, 1994. p.1-17. DOCHY, F.; SEGERS, M.; VAN DEN BOSSCHE, P.; GIJBELS, D. Effects of problem-based learning: a metaanalysis. Learning and Instruction, v.3, p.533-68, 2003. ENGEL, C. E. Not just a method but a way of learning. In: BOUD, D.; FELETTI, G. (Eds.) The challenge of problem-based learning. London: Kogan Page, 1998. p.17-27. HADGRAFT, R. A problem-based approach to civil engineering education. In: RYAN, G. (Ed.) Research and development in problem-based learning. Sydney: University of Sydney-MacArthur Press, 1993. p.29-39. KAUFMANN, D. M.; MANN, K. V. I don’t want to be a groupie. In: SCHWARTZ, P.; MENNIN, S.; WEBB, G.

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SÍLVIA MECOZZI, detalhe

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RIBEIRO, L. R. C.; MIZUKAMI, M. G. Un experimento con el PBL en la educación superior evaluado por el profesor y los estudiantes. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.357-68, mar/ago 2005. El Aprendizaje Basado en Problemas (Problem Based Learning o PBL) ha sido reconocido mundialmente como un abordaje instruccional capaz de promover en los alumnos la adquisición de conocimientos, al mismo tiempo que los ayuda a desarrollar habilidades y aptitudes profesionales deseables. Contrariamente a los métodos convencionales que recurren a problemas de aplicación después de haber impartido la teoría, el PBL usa un problema para iniciar, enfocar y motivar el aprendizaje de nuevos conceptos. Este texto presenta y discute los puntos de vista de los estudiantes y del profesor respecto a la implementación del PBL en la asignatura Teoría General de la Administración, del currículo de ingeniería, en una universidad publica de Brasil. Los datos fueron recolectados por medio de entrevistas no estructuradas, observación participante y un cuestionario respondido por los estudiantes al final del semestre. Los resultados muestran que, a pesar de aumentar la carga de trabajo del profesor y de los estudiantes, todos clasificaron al PBL positivamente por ser más motivador y dinámico. PALABRAS CLAVE: aprendizaje basado en problemas; educación superior; metodología de enseñanza.

Recebido para publicação em: 08/10/04. Aprovado para publicação em: 03/03/05.

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Competência: distintas abordagens e implicações na formação de profissionais de saúde

Valéria Vernaschi Lima

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LIMA, V. V. Competence: different approaches and implications in the training of healthcare professionals. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.369-79, mar/ago 2005.

This article presents some of the main conceptions of competence in the educational field, analyzing these distinctive approaches according to the theoretical reference that is their base, their component dimensions and consequent implications for curriculum organization. In line with the new meaning provided by the dialogical approach to competence, this article points to an integration of theory and practice in the education of healthcare professionals. KEY WORDS: Education; health; curriculum; competence; professional practice.

Este texto apresenta algumas das principais concepções sobre currículos orientados por competência, analisando essas distintas abordagens em função do referencial teórico que as fundamenta, de suas dimensões constituintes e das conseqüentes implicações na organização curricular. Aponta, no novo significado trazido pela abordagem dialógica de competência, um caminho para a integração da teoria e da prática na formação de profissionais de saúde. PALAVRAS-CHAVE: Educação; saúde; currículo; competência; prática profissional.

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Professora, Faculdade de Medicina de Marília, Marília, SP. <valeriavl@uol.com.br>

Rua Francisco José Capelini, 192 Marília, SP 17.514-170

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LIMA, V. V.

No senso comum, encontram-se dois enfoques semânticos para o termo competência: um relacionado à legitimidade atribuída por lei ou por reconhecimento a uma pessoa ou organização para apreciar ou julgar determinada questão ou pleito; e outro relacionado ao reconhecimento de características pessoais (qualidades) vinculadas à capacidade e idoneidade para resolver certos assuntos, inclusive os de natureza profissional (Hillau, 1994). No mundo do trabalho, pode-se observar a transição do conceito clássico de qualificação profissional para uma concepção de competência, em função das novas demandas do setor produtivo e da falência dos métodos destinados a adaptar as pessoas ao mercado e aos postos de trabalho. A crise na qualificação decorre da inserção das economias em mercados globalizados, da crescente exigência de produtividade e competitividade e da vertiginosa incorporação de novas tecnologias que requerem flexibilidade e polivalência dos trabalhadores (Valle, 2003). Há, neste campo, uma polarização acerca da natureza desse deslocamento conceitual (Ramos, 2001). Alguns sociólogos interpretam que as mudanças nas funções dos trabalhadores com a incorporação de atividades mais intelectuais, subjetivas e reflexivas servem aos interesses do capital e que, por isso, representam uma renovação do capitalismo em função de suas novas necessidades (Boltansky & Chiapello, 2001). Por outro lado, Burawoy (1979) aponta que o local e as relações de trabalho produzem, de modo dialético, não só conflitos, mas também consensos; não só reprodução, mas também transformação. Ressalta que os novos conceitos de produção são resultantes de construções histórico-político-econômicas que requerem novas relações sociais, uma vez que o próprio processo de trabalho se transforma em objeto de luta e o controle sobre ele deixa de ser exclusivo de um dos lados. Nesse sentido, a gestão do trabalho foi ampliada para além do produto e precisou incorporar as inter-relações entre as pessoas, ganhando uma abordagem intersubjetiva e distinta daquela estritamente objetivista, característica da qualificação nos modelos taylorista-fordista (Valle, 2003). Embora haja o reconhecimento de que a ampliação de autonomia e integração dos trabalhadores no processo de trabalho tenha um recorte determinado pelo interesse e visão da direção das organizações, a gestão matricial, a horizontalização dos organogramas, a desconcentração do poder de planejar e de decidir e a construção de espaços coletivos com capacidade de análise e reflexão possibilitam a constituição e o fortalecimento de sujeitos e da democracia, no sentido da alteração dos esquemas de dominação (Campos, 2000). Para Merleau-Ponty (1980, p.275), “a regulação que circunscreve o indivíduo não o suprime (....), sendo que o maior interesse dessa nova investigação consiste em substituir as antinomias por relações de complementariedade". Essa polarização de interpretações, também reproduzida nos campos da administração e da educação, vem sendo traduzida nas múltiplas definições de competência que, apesar de ser um tema bastante debatido nas últimas três décadas, mantém-se polissêmico, variando seu significado segundo autor, setor e país. Na literatura educacional, pode-se verificar três relevantes abordagens

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COMPETÊNCIA: DISTINTAS ABORDAGENS E IMPLICAÇÕES...

conceituais sobre competência: uma considera competência como sendo uma coleção de atributos pessoais; outra vincula o conceito aos resultados observados/obtidos (tarefas realizadas) e uma terceira propõe a noção de competência dialógica, originada na combinação de atributos pessoais para a realização de ações, em contextos específicos, visando atingir determinados resultados. Na abordagem dialógica, há um resgate integrador dos dois enfoques semânticos do termo competência, uma vez que coloca os atributos pessoais em relação com distintas construções sociais que legitimam esses atributos de acordo com a história das sociedades em diferentes épocas. A definição do que uma determinada sociedade considera como sendo legítimo e/ou legal é uma construção determinada pela história, pela cultura e pelo desenvolvimento técnico-científico e ético-cultural dessa sociedade. Nesse sentido, tanto os processos de formação como os de certificação profissional e de acreditação institucional, também colocam a questão da competência no campo dos conflitos de interesse, das relações sócio-econômicas, das disputas ideológicas e de poder nas sociedades (Ribeiro, 2003; Hernández, 2002). A abordagem dialógica de competência reconhece e considera a história das pessoas e das sociedades nos seus processos de reprodução ou de transformação dos saberes e valores que legitimam os atributos e os resultados esperados numa determinada área profissional. Esta explicitação permite um processo mais aberto de exploração das distintas concepções, interesses, valores e ideologias, que invariavelmente governam e determinam a intencionalidade dos processos educativos, porém nem sempre são discutidos de um modo mais participativo e democrático pela sociedade. Nesse sentido, a abordagem guarda relação com a compreensão interacionista da relação escola-sociedade na qual a escola é potencialmente capaz de influenciar a sociedade, sendo por ela constituída (Moglika, 2003). Programas educacionais orientados por competência A definição de currículos orientados por competência requer uma opção conceitual em relação ao que se define como competência. As matrizes referenciais para as diferentes escolhas têm raízes histórico-sociais nos países nos quais foram desenvolvidas e representam disputas ideológicas nos campos da educação e do trabalho. As tendências hegemônicas (condutivisvo e funcionalismo) são predominantes nos Estados Unidos e na Inglaterra. A abordagem condutivista advém do comportamentalismo da pedagogia e psicologia. Estruturada e defendida por educadores e psicólogos dos Estados Unidos, guarda relação com a eficiência e adaptação para o mercado de trabalho. O desempenho efetivo é o elemento central nessa abordagem, voltada à qualificação para o emprego (Valle, 2003). O funcionalismo, vinculado ao pensamento funcionalista da sociologia, foi aplicado como diretriz fundamental do sistema de competência profissional da Inglaterra. Nesta abordagem interessam os resultados (produtos) e não os processos desenvolvidos para atingi-los. Listas de conhecimentos e de especificações de avaliação são agregadas às tarefas,

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porém sem que se estabeleça um vínculo entre atributos e tarefas, ou mesmo entre as próprias tarefas (Ramos, 2001; Valle, 2003). O construtivismo francês traz uma abordagem voltada à construção social de competência e à relação das capacidades individuais e coletivas, numa investigação participante que envolve trabalhadores/organizações e, embora alguns defendam a participação de formadores, essa abordagem é fortemente orientada pelo trabalho e diretamente referida aos conteúdos dos empregos típicos. Neste sentido, mesmo definida de uma maneira mais ampliada e a partir do trabalho, a competência é expressa sob a forma de uma lista de atividades segundo emprego e, por isso, também focaliza os resultados (Bouyx, 1998; Ramos, 2001). O modelo australiano, impulsionado pelo governo desse país, considera o contexto e a cultura do local de trabalho e confere à competência uma dimensão relacional entre tarefas e atributos. Embora partam do mundo do trabalho por meio do levantamento das tarefas ou ações, identificam os atributos que fundamentam a realização dessas ações, incorporando a ética e os valores como elementos integrantes do desempenho competente (Hager & Gonczi, 1996; Gonczi et al., 1998; Ramos, 2001). Assim, a construção de currículos e programas educacionais orientados por competência seleciona os conteúdos legítimos e relevantes para a formação e define seus processos pedagógicos para o desenvolvimento prioritário: . de tarefas e resultados (fazer) fundamentadas por um modelo comportamental da educação e psicologia; . de atributos, fortemente centrados no conhecimento (saber), uma vez que quem sabe ou conhece é capaz de fazer; ou . da prática profissional em diferentes contextos, a partir de uma combinação de atributos empregados para a realização de ações, segundo padrões de excelência socialmente construídos. Historicamente, o desenvolvimento da concepção de competência na educação tem fortes raízes no comportamentalismo (behaviorismo), e influenciou a organização curricular nos anos 1960 e 1970. Essa influência ainda é marcante na formação de profissionais técnicos de nível médio e traduz-se pela utilização de listas de tarefas e sub-tarefas, cuja realização é verificada mediante check lists. Essa abordagem está apoiada na premissa de que há uma “única e melhor maneira” de realizar as tarefas e ações da prática profissional. A concepção dialógica de competência trabalha com o desenvolvimento de capacidades ou atributos (cognitivos, psicomotores e afetivos) que, combinados, conformam distintas maneiras de realizar, com sucesso, as ações essenciais e características de uma determinada prática profissional. Assim, diferentes combinações podem responder aos padrões de excelência que regem essa prática profissional, permitindo que as pessoas desenvolvam um estilo próprio, adequado e eficaz para enfrentar situações profissionais familiares ou não familiares. Essa abordagem, considerada holística, precisa ser construída no diálogo entre a formação e o mundo do trabalho, na qual as práticas profissionais são desenvolvidas. Assim, é na ação, no desempenho perante as situações da prática que o

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COMPETÊNCIA: DISTINTAS ABORDAGENS E IMPLICAÇÕES...

estudante pode utilizar conhecimentos e habilidades resignificados por meio do conjunto de seus valores pessoais. A “capacidade de mobilizar diferentes recursos (....) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações” foi conceituada como competência por diversos autores da área educacional (Hager et al., 1994; Hager & Gonczi, 1996; Perrenoud, 1999; Hernández, 2002). A competência não é algo que se possa observar diretamente, mas pode ser inferida pelo desempenho. Numa determinada profissão, agrupamentos de desempenhos de natureza afim conformam áreas de competência complementares. Neste sentido, o conceito de competência profissional é empregado no singular, pois retrata a síntese de conjuntos de desempenhos (capacidades em ação) agrupados em áreas de competência que conformam o campo da prática profissional, segundo contexto e padrões de excelência. É importante ressaltar que, na perspectiva construtivista, tampouco o conceito de desempenho se restringe a uma série de tarefas discretas, definidas de modo tecnificado e avaliadas por uma abordagem descontextualizada e fragmentada. Um enfoque de competência centrado nesta abordagem reduzida de desempenho implica a subestimação do desenvolvimento e da avaliação das capacidades que subjazem e fundamentam os desempenhos, centrando a aprendizagem e sua certificação na verificação do cumprimento de tarefas. Por outro lado, um enfoque de competência centrado só nas capacidades/ atributos corre o risco de favorecer o desenvolvimento desarticulado dos domínios cognitivo, psicomotor e afetivo e de reduzir a prática a simples campo de aplicação da teoria. Formação orientada por competência: pressupostos psicopedagógicos Dimensões psicológica e pedagógica fundamentam tanto as teorias sobre a aprendizagem como a formação por competências. Embora não se conheçam todas as possíveis maneiras e processos usados pela mente para aprender, sabe-se que a aprendizagem, como uma mudança permanente na relação entre as pessoas e destas com a sociedade, pode ser desenvolvida de diversas maneiras (Coll, 2000). Sabe-se, também, que em nenhuma outra espécie essa relação com a vida coletiva tem uma influência tão profunda sobre o desenvolvimento do indivíduo como ocorre com os seres humanos. Sem a aprendizagem não seríamos capazes de funcionar como pessoas e membros de um grupo, ou sociedade (Elias, 2001). A combinação entre os elementos “experiência”, “ambiente”, e “capacidades individuais/maturação” permite a constituição das diferentes maneiras de aprender. Desde a habituação (estímulo-resposta) e os condicionamentos clássicos e operantes até a formação de comportamentos complexos. A aprendizagem por condicionamento (teoria comportamentalista), considerada, por muito tempo, uma das alternativas mais importantes para propiciar a aprendizagem, concebia a aprendizagem dos seres humanos somente como resposta aos estímulos do ambiente. A teoria cognitivista, por outro lado, elevou as pessoas a um patamar distinto ao compreendê-las

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como agentes/sujeitos e não meramente reagentes no processo de aprendizagem. Considerando-se a idéia de um processo dinâmico na construção da aprendizagem (Piaget, 1995), outros pesquisadores apontaram que esse desenvolvimento também está condicionado por dimensões não exploradas na formulação da teoria genética; observaram que o contexto de vida, constituído pelas condições materiais e culturais (psicologia cultural), as experiências e a ação de terceiros na aprendizagem (teoria da atividade e zona proximal de desenvolvimento), bem como a teoria de que existem muitos domínios de atividades que não são comuns a todas as crianças, mostraram que o desenvolvimento e a aprendizagem ocorrem de modos distintos para as pessoas (Coll, 2000; Cole, 1981; Vygotsky, 1977; 1999). A teoria da aprendizagem significativa (Ausubel et al., 1980) também ampliou outras dimensões da aprendizagem, destacando as repercussões das experiências educativas prévias sobre a assimilação do conhecimento novo e ressaltando duas condições para a construção de significado: um conteúdo potencialmente significativo e uma atitude favorável para aprender significativamente. Assim, a aprendizagem significativa requer do aprendiz uma postura pró-ativa que favoreça o estabelecimento de relações entre o novo e os elementos já presentes em sua estrutura cognoscitiva. Essa estrutura representa um conjunto de esquemas de conhecimento constituído por dados, conceitos, situações, fatos, seqüência de acontecimentos, ações e seqüências de ações, que podem estar mais ou menos organizados e coerentes e que permitem o estabelecimento de redes e relações de diferentes matizes de extensão e complexidade. Segundo Coll (2000, p.60), os aspectos complementares das teorias de base cognitivista permitem apontar que “uma concepção construtivista da ação pedagógica pressupõe criar condições adequadas para que os esquemas de conhecimento, inevitavelmente construídos pelos estudantes, sejam os mais corretos e ricos possíveis”. Para tanto, é preciso romper com o equilíbrio inicial dos esquemas com relação ao novo conteúdo da aprendizagem e à construção de novos significados. Porém, se o conteúdo novo não apresentar funcionalidade, isto é, possibilidade de utilização ou relação com as circunstâncias nas quais o estudante estiver envolvido, ele pode até memorizá-los, porém não há garantia a respeito do tempo de retenção, nem do grau de integração ou modificação que serão produzidas sobre as relações e esquemas de conhecimento previamente adquiridos. Na abordagem dialógica de competência, a construção de significado pressupõe a transferência da aprendizagem baseada nos conteúdos para uma aprendizagem baseada na integração teoria-prática. É na reflexão e na teorização a partir das ações da prática profissional, preferencialmente realizadas em situações reais do trabalho, que estudantes e docentes constroem e desenvolvem capacidades. Orientar o processo ensinoaprendizagem por competência tem, por definição, um caráter prático e social. Os conteúdos passam a ser explorados considerando-se o significado a eles atribuídos e sua consistência e funcionalidade para o enfrentamento de situações reais e complexas, segundo padrões de excelência socialmente definidos.

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COMPETÊNCIA: DISTINTAS ABORDAGENS E IMPLICAÇÕES...

O paradigma da prática reflexiva, ao integrar teoria e prática, constitui-se como processo de investigação da ação, articulando a criatividade revolucionária da prática ao potencial emancipatório da teoria e da reflexão (Girox, 1986; Moglika, 2003). A utilização de situações reais ou simuladas da prática profissional garante uma aproximação imediata da aprendizagem ao mundo do trabalho, favorecendo a construção de novos saberes a partir do reconhecimento da prática em questão e do potencial significativo das ações observadas e/ou realizadas, assim como da funcionalidade das capacidades a serem desenvolvidas para melhor qualificar essas ações. Avaliação de competência: certificação profissional Os padrões de competência utilizados para certificação explicitam o que o profissional deve saber e ser capaz de fazer para desempenhar sua prática com sucesso, possibilitando o desenvolvimento de profissionalismo (padrões de qualidade). Refletem os valores atribuídos, por uma sociedade, a uma determinada carreira e orientam os processos de formação e de avaliação profissionais. A certificação é um processo que pode ser impulsionado pelo Estado e/ou por setores da sociedade civil organizada. No entanto, é importante destacar que a garantia de participação e pactuação dos diferentes atores/instituições e segmentos interessados amplia a validação e credibilidade dos parâmetros utilizados para a formação e avaliação do desempenho dos profissionais de uma determinada carreira. A pactuação tem por base o reconhecimento da natureza social da construção do perfil, da competência, dos critérios de excelência e da necessidade de conferir legitimidade ao processo pela participação ativa e reflexiva dos atores relevantes envolvidos e interessados no processo. A fragilidade do processo de avaliação, durante a graduação, pode ser revelada pela ocorrência de vários insucessos da prática profissional atribuídos à desqualificação da formação profissional ou à presença de valores pessoais incompatíveis com uma postura ética e de responsabilidade social no exercício da profissão. Se a avaliação focalizar apenas os aspectos cognitivos (saber) e/ou as habilidades e destrezas (fazer), a inadequação desse processo estará mantida, uma vez que reduz e fragmenta a avaliação de competência. Resignificar a avaliação no processo educacional é um eixo estruturante nas mudanças curriculares. Torná-la uma atividade inerente ao processo educacional e, por isso, contínua e sistematizada; reconhecê-la como uma das atividades educacionais mais expressivas do ponto de

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vista da mobilização dos aprendizes e, por isso, estratégica; ampliá-la pela análise integradora dos atributos pessoais em relação aos resultados obtidos e, por isso, orientada à avaliação da prática profissional. Finalmente, assegurar a coerência entre as avaliações de processo (formativas) e as avaliações que definem a progressão dos estudantes (somativas) e dessas duas com o perfil profissional desejado e os princípios filosóficos, pedagógicos e ideológicos do programa (Lima, 2004). Competência nos programas da área da saúde Na área da saúde, este tema também tem ocupado um espaço cada vez mais expressivo e relevante levando-se em conta a ampliação da cobrança da sociedade por uma maior responsabilidade social, por parte das instituições formadoras e dos próprios profissionais, além dos desdobramentos desencadeados pelo processo de globalização, que passa a requerer padrões universalizados para intercâmbio. No Brasil, novas exigências na formação profissional em saúde estão refletidas nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em várias carreiras, inclusive Medicina, e propõem um novo perfil profissional fundamentado no desenvolvimento e na avaliação de competência dos egressos desses programas. O desafio de participar ativamente da construção desse novo perfil profissional para as carreiras da saúde vem constituindo uma importante abertura para a discussão das diferentes concepções de competência e, ainda, numa oportunidade de transformação da prática profissional. Experiências instigantes, apoiadas por organizações internacionais, foram desencadeadas principalmente em programas de medicina e enfermagem, em algumas instituições brasileiras, a partir da década de 1990 (Feuerwerker, 2002). As atuais políticas nacionais de saúde e de educação apontam para a necessidade de mudanças nos processos de formação profissional e têm estimulado e apoiado iniciativas no sentido da ampliação da responsabilidade social e da pactuação para a definição de competência e para o desenvolvimento das diretrizes curriculares nacionais. Cabe ressaltar que, embora as diretrizes curriculares sejam uma síntese das perspectivas de diferentes atores envolvidos na formação e apresentem os elementos e as dimensões dos novos perfis profissionais desejados, não há nenhuma explicitação da concepção de competência utilizada, existindo, ainda, uma certa confusão no emprego dos termos competência e habilidades. O debate sobre campo e núcleo do trabalho profissional e, neste sentido, sobre as áreas de competência que caracterizam as diferentes carreiras da saúde também são aspectos importantes na definição de competência e, mais especificamente, na significação do processo de trabalho em equipes de saúde (Campos, 2003). A orientação dos currículos por competência, na área da saúde, implica a inserção dos estudantes, desde o início do curso, em cenários da prática profissional com a realização de atividades educacionais que promovam o desenvolvimento dos desempenhos (capacidades em ação), segundo contexto e critérios. Nesse sentido, cabe ressaltar como aspectos de progressão do estudante o desenvolvimento crescente de autonomia e domínio em relação às áreas de competência. Essa inserção pressupõe uma

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COMPETÊNCIA: DISTINTAS ABORDAGENS E IMPLICAÇÕES...

estreita parceria entre a academia e os serviços de saúde, uma vez que é pela reflexão e teorização a partir de situações da prática que se estabelece o processo de ensino-aprendizagem. A organização curricular passa a focalizar o desenvolvimento das áreas de competência com a integração e exploração dos conteúdos a partir de situações-problema reais ou simulados da prática profissional. Essas situações representam estímulos para o desencadeamento do processo ensino-aprendizagem. Nas situações reais, sob supervisão, a responsabilização e o vínculo desenvolvidos pelos estudantes com pacientes, com as equipes de saúde e com a própria organização e avaliação dos serviços prestados também são considerados elementos constitutivos da competência. Na abordagem dialógica de competência, há uma forte mudança no papel dos serviços e dos profissionais de saúde na formação profissional. Conseqüentemente, há também uma mudança no papel da escola e dos docentes na relação com estudantes e com os parceiros. Os referenciais dessa mudança encontram-se ancorados no reconhecimento dos diferentes saberes e perspectivas dos atores envolvidos na formação e no princípio de que não há subordinação e sim complementariedade na integração teoriaprática. Embora a parceria academia-serviço seja historicamente utilizada na realização de estágios em todas as carreiras da área da saúde, geralmente os profissionais dos serviços ficam responsáveis pela supervisão do desempenho dos estudantes e os docentes pela teorização e supervisão geral do estágio. Num currículo orientado por competência o trabalho de apoio e de facilitação ao desenvolvimento de capacidades dos estudantes em situações reais ocorre em ação e, por isso, a prática educacional ganha novo sentido. Dessa forma, docentes e profissionais dos serviços necessitam construir e/ou resignificar suas próprias capacidades tanto na área educacional como na área de cuidado à saúde de pacientes e comunidades. A relação educacional, como constrói e resignifica saberes, requer maior horizontalização, ação cooperativa, solidária e ética, postura ativa, crítica e reflexiva, desenvolvimento da capacidade de aprender a aprender, identificação dos próprios valores e abertura para a superação de limites e constrições. A avaliação ocupa um espaço estratégico tanto no desenvolvimento e melhoria do processo ensino-aprendizagem, como na própria gestão curricular. Considerações finais No contexto da formação de profissionais de saúde, a abordagem dialógica de competência possibilita a reflexão sobre as práticas profissionais e uma construção dialogada entre os mundos da escola e do trabalho com a sociedade, a partir da explicitação de diferentes interesses, valores e saberes, social e historicamente constituídos. Os currículos orientados por esta abordagem são desenvolvidos em torno de eixos que articulam e integram: teoria e prática; capacidades e ações; contextos; e critérios de excelência.

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LIMA, V. V.

A noção de competência como construção social e o caráter reflexivo e dialógico dessa construção são elementos distintivos desta abordagem, num campo em que a polissemia do termo traduz disputas sobre o papel das escolas nas sociedades. Embora haja resistência ao processo reflexivo sobre nossas práticas profissionais, que realmente considere a perspectiva de outros atores, e insegurança em relação aos elementos inovadores dessa abordagem, ressalta-se que as atuais políticas de saúde e de educação têm estimulado iniciativas e oferecido oportunidades que podem ser consideradas como fatores positivos para o enfrentamento dessas dificuldades. Neste sentido, a construção de competência na abordagem dialógica e sua tradução curricular apresenta-se como uma alternativa consistente e estratégica para a formação de profissionais de saúde orientada às necessidades sociais, porém ainda um desafio a ser conquistado. Referências AUSUBEL, D.; NOVAK, J.D.; HANESIAN, H. Psicologia educacional. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980. BOLTANSKY, L; CHIAPELLO, È. Le nouvel espirit du capitalisme. Paris: Éditions Gallimard, 2001. BOUYX, B. El sistema francês de formación profesional. In: ARGÜLLES, A (Comp.) La educación tecnológica en el mundo. México: Editorial Limusa, 1998. p.31-50. BURAWOY, M. Manufacturing consent: changes in the labor process under monopoly capitalism. NY: The University of Chicago Press, 1979. CAMPOS, G.W.S. Um método para análise de co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. CAMPOS, G.W.S. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. COLE, M. Society, mind and development. CHIP Report 106. San Diego: University of California Press, 1981. COLL, C. Psicologia e currículo: uma aproximação psicopedagógica à elaboração do currículo escolar. São Paulo: Ática, 2000. ELIAS, N. A solidão dos moribundos: envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. FEUERWERKER, L.C.M. Além do discurso de mudança da Educação Médica: processos e resultados. São Paulo: Hucitec, 2002. GIROX, H. Praticando estudos culturais nas faculdades de educação. In: SILVA, T. (Org.) Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. p.93124. GONCZI, A.; HEGERTY, F.; WOODBURNE, G. Temas actuales de la educación y la capacitación professional en Australia. In: ARGÜILLES, A. (Org.) La educación en el mundo. México: Editorial Limusa, 1998. p.205-37. HAGER, P.; GONCZI, A. What is competence? Medical Teacher, v.18, n.1, p.15-8, 1996. HAGER, P.; GONCZI, A.; ATHANASOU, J. General issues about assessment of competence. Asses. Eval. High. Educ., v.19, n.1, p.3-15, 1994. HERNÁNDEZ, D. Políticas de certificación de competências em América Latina. In: CINTERFOR.

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LIMA, V. V. Competencia: distintos abordajes e implicaciones en la formación de profesionales de la salud. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.369-79, mar/ago 2005. Este artículo presenta algunas de las principales concepciones sobre currículos orientados por competencia, y analiza esos distintos abordajes en función de la referencia teórica que los fundamenta, de sus dimensiones constituyentes y de las consecuentes implicaciones en la organización curricular. Señala al nuevo significado de competencia - traído por el abordaje dialógico - como un camino hacia la integración de la teoría y de la práctica en la formación de profesionales de la salud. PALABRAS CLAVE: Educación; salud; currículo; competencia profesional; práctica profesional.

Recebido para publicação em: 02/02/04. Aprovado para publicação em: 12/04/05.

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SÍLVIA MECOZZI, Actínia II, 2001

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Conhecimento de alunos concluintes de Pedagogia sobre saúde bucal 1

Jainara Maria Soares Ferreira 2 Andreza Cristina de Lima Targino Massoni 3 Franklin Delano Soares Forte 4 Fábio Correia Sampaio

FERREIRA, J. M. S. et al. The knowledge of oral health of undergraduate students of Pedagogy . Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.381-8, mar/ago 2005. The aim of this article was to evaluate the oral health knowledge of pedagogy students from the Federal University of Paraíba. In order to do this students present in class rooms answered a questionnaire containing the objective requirements relative to basic knowledge on the subject. The data were analyzed using descriptive statistics techniques. Out of 100 students, 83% have had access to information relating to Preventive Dentistry. The most quoted source of information was the dentist (64%). Aspects relating to bacterial plaque were generally not known by the participant group (31%), in contrast to the etiological factors that cause dental caries (55%). Although 92% of the students stated that pacifiers are harmful to the facial development of children, only 9% could identify the age limit for abandoning use of this article. Furthermore, 20% selected the ideal time for the first visit of a child to the dentist. It can be concluded that the students had a reasonable knowledge of oral health. The promotion of educational programs directed at these professionals is needed, particularly in the academic curriculum, since these professionals of the future will contribute to the children’s formation, by establishing daily practices that lead to good health. KEYWORDS: oral health; education in health; dental caries. O objetivo desta pesquisa foi avaliar o conhecimento sobre saúde bucal de concluintes do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba. Para tanto, alunos em sala de aula responderam um questionário contendo quesitos objetivos relativos ao tema. Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva e os resultados indicam que 83% dos cem participantes tiveram acesso a informações de odontologia preventiva, 64% pelo cirurgião-dentista. Os acadêmicos conhecem pouco sobre placa bacteriana (31%), ao contrário da etiologia da cárie dentária (55%). Embora 92% dos concluintes afirmem ser a chupeta prejudicial ao desenvolvimento facial da criança, apenas 9% identificaram a idade limite de desuso. Adicionalmente, 20% acertaram o momento ideal do primeiro contato entre criança e dentista. Concluiu-se que os estudantes apresentam conhecimento razoável em relação à saúde bucal, sugerindo a instituição de programas educativos dentro do currículo acadêmico, uma vez que esses futuros profissionais contribuirão para a formação da criança, estabelecendo práticas diárias capazes de gerar saúde. PALAVRAS-CHAVE: saúde bucal; educação em saúde; cárie dentária.

1 Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Odontologia Preventiva e Infantil, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB. <jainara.s@ig.com.br> 2 Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Odontologia Preventiva e Infantil, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB 3 Professor, Departamento de Clínica e Odontologia Social, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB. 4 Professor, Departamento de Clínica e Odontologia Social, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.

1 Avenida Mar da Noruega, n. 66, Res. Franmar, ap.303 Intermarres - Cabedelo, Paraíba – Brasil 58310-000

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FERREIRA, J. M. S. ET AL.

Introdução A cárie dentária é a patologia mais comum da cavidade bucal, possuindo etiologia complexa e multifatorial, que inclui microbiota, dieta, hospedeiro, além de fatores coadjuvantes como socioeconômicos e ambientais. Embora os benefícios das mudanças de hábitos (higiene e dieta) sejam conhecidos pelo cirurgião-dentista, as informações sobre saúde bucal ainda são pouco divulgadas entre a população em geral. A educação e motivação são capazes de despertar interesse pela manutenção da saúde, desenvolvendo nas pessoas consciência crítica das reais causas de seus problemas (Santos et al. 2003; Petry & Pretto, 2003; Moysés & Watt, 2002). Neste sentido, é essencial o trabalho conjunto entre profissionais de saúde e educação (Dalto & Ferreira, 1998), atuando como colaboradores dos programas educativos-preventivos. A escola é um ambiente propício para o desenvolvimento de programas de saúde, pois reúne crianças em idades que favorecem a assimilação de medidas preventivas, como hábitos de higiene bucal e dieta, que são formados na infância (Almas et al., 2003; Mastrantonio & Garcia, 2002; Vasconcelos et al., 2001). Os professores e alunos do magistério podem colaborar com a educação em saúde, pelo fato de seu constante convívio com escolares favorecer o desenvolvimento de orientação quanto aos cuidados com a saúde bucal agindo, assim, como parceiros dos programas preventivo-educativos. Diversos estudos ressaltam a importância do professor de ensino fundamental na veiculação de informação sobre saúde bucal para crianças (Campos & Garcia, 2004; Almas et al., 2003; Santos et al., 2003; Jiang et al., 2002; Santos et al., 2002; Sofola et al., 2002; Vasconcelos et al., 2001; Abegg, 1999; Dalto & Ferreira, 1998; Moimaz et al., 1992). Abegg (1999) ressaltou que deveria haver integração dos currículos de escolas dos níveis fundamental, médio e superior no que diz respeito à educação em saúde, sobretudo nos cursos de formação de docentes, onde deveriam ser contemplados conteúdos de educação em saúde, de forma a capacitar e preparar futuros professores para desenvolverem práticas adequadas de educação em saúde no cotidiano da escola, nos mais diversos níveis de escolaridade. Nesse contexto, os professores do ensino fundamental são capazes de identificar problemas de saúde bucal em seus alunos, orientando-os quanto à prevenção? Esse profissional tem conhecimento suficiente para isto? O que é importante que ele saiba? Há, portanto, necessidade de maior integração entre a odontologia e a pedagogia para que estas questões sejam esclarecidas. O propósito deste trabalho foi avaliar o conhecimento sobre a prevenção em odontologia, percepção e conhecimento sobre a cárie dentária e hábitos saudáveis na infância de acadêmicos concluintes do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) - Campus I. Metodologia O estudo foi desenvolvido entre setembro e novembro de 2004, com 101

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CONHECIMENTO DE ALUNOS CONCLUINTES ...

acadêmicos, de ambos os gêneros, regularmente matriculados no último ano do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), nos turnos diurno e noturno. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Hospital Universitário Lauro Wanderley, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba, segundo a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Obteve-se também a autorização da Coordenação do Curso de Pedagogia da UFPB para realização do estudo. Só participaram da amostra aqueles que estiveram presentes em sala de aula no dia da coleta e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. A amostra foi composta por 101 alunos (56,11%) do universo estimado de 180 matriculados no curso. Apenas um concluinte não completou adequadamente o questionário, o qual foi conseqüentemente excluído da amostra, perfazendo um total de cem participantes. Utilizou-se a técnica de coleta por meio de questionários anônimos e auto-aplicáveis. O cenário da coleta de dados foi constituído por salas de aulas do Centro de Educação da UFPB. Inicialmente foram explicados os objetivos do estudo e aplicado o instrumento de coleta especialmente elaborado para a pesquisa. O roteiro abordou questões sobre a prevenção em odontologia, percepção e conhecimento sobre a cárie dentária e hábitos saudáveis na infância. Os dados foram processados em dois grupos de respostas: as de múltipla escolha, nas quais apenas uma resposta estava correta e aquelas em que se considerou mais de uma resposta correta. Os dados foram digitados no SPSS v.10.0, disponível no Programa de PósGraduação em Odontologia da UFPB, e analisados pela estatística descritiva. Resultados Verificou-se que 83% dos concluintes do curso de pedagogia investigados já haviam recebido informações voltadas para a odontologia preventiva. Os veículos por meio dos quais os concluintes do estudo receberam informações relativas à saúde bucal estão expressos na Figura 1. O cirurgiãodentista foi citado por 64% dos participantes, seguido pelo item leitura, por 51%, e meios de comunicação, por 44%. Figura 1- Distribuição dos meios de informação sobre Odontologia Preventiva. João Pessoa/PB, 2004*.

dentista

família

escola

leitura

meios de

graduação

comunicação * cada participante pôde optar por mais de uma resposta.

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FERREIRA, J. M. S. ET AL.

Na Figura 2 destacam-se aspectos relacionados com a cárie dentária, onde a placa bacteriana é definida por 47% dos acadêmicos como uma “massa amarelada”, enquanto 77% acredita que a sua remoção deva ser realizada pelo cirurgião-dentista. Foi ainda considerada por 33% destes como uma doença não transmissível.

Figura 2 - Conhecimento dos participantes sobre cárie dentária. João Pessoa/PB, 2004. PERGUNTAS

RESPOSTAS

%

1. O que é placa bacteriana?

Restos de alimentos Massa amarelada Grupo de bactérias Não sabe Total

13 47 31 9 100

2. Como esta pode ser removida?

Raspagem pelo dentista Fio dental Não sabe Total

77 13 10 100

3. A cárie

Não é doença Doença não transmissível Doença transmissível Não sabe Total

22 33 29 16 100

4. Quando surge a cárie?

Higiene bucal inadequada Consumo de açúcar em excesso As 3 opções Não sabe Total

26 4 55 14 100

5. Dente de leite cariado deve ser restaurado?

Sim Não Não sabe Total

74 12 14 100

n=100

Observando as questões relacionadas com a odontologia preventiva, agrupadas na Figura 3, percebemos que 77% dos estudantes acredita ser possível ter dentes saudáveis por toda a vida. Já em relação ao flúor, constatou-se que a sua função é associada, por 82% destes, com a prevenção da cárie, sendo os locais de acesso ao flúor mencionados: água, dentifrício e dentista (61%), dentista (12%) e água (3%). Em relação ao consumo de alimentos doces, para 41% dos acadêmicos estes devem ser totalmente restritos. Os cuidados com a saúde bucal na primeira infância foram evidenciados nas questões presentes na Figura 4.

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CONHECIMENTO DE ALUNOS CONCLUINTES ... Figura 3 - Conhecimento dos participantes sobre Odontologia Preventiva. João Pessoa/PB, 2004. PERGUNTAS

RESPOSTAS

%

1. É possível ter dentes saudáveis por toda vida?

Sim Não Não sabe Total

77 18 5 100

2. Para que serve o flúor?

Deixar o dente branco Evitar gengivite Evitar cárie Não sabe Total

9 3 82 6 100

3. Onde o flúor é encontrado?

Água Creme dental Aplicação pelo dentista As 3 opções Não sabe Total

3 8 12 61 16 100

4. Quantidade de dentifrício ideal para escovação?

“Grão de ervilha” Cobrir toda escova Produção de espuma Não sabe Total

31 34 21 14 100

5. Como deve ser o consumo de doces?

Totalmente restrito Em qualquer momento Após as refeições principais Não sabe Total

41 10 29 20 100

n=100 Figura 4 - Conhecimento dos participantes sobre Odontologia na Primeira Infância. João Pessoa/PB, 2004. PERGUNTAS

RESPOSTAS

%

1. Qual o momento ideal para primeira visita ao dentista?

Antes do nascimento dos dentes No momento do nascimento dos 1ºs dentes (6 meses) Dentição de leite completa (2 anos) Não sabe Total

20 32 34 14 100

2. Uso prolongado da chupeta é prejudicial para criança?

Sim Não Não sabe Total

92 5 3 100

3. Qual a idade limite para o abandono deste hábito?

1 ano 3 anos 6 anos Não sabe Total

78 9 0 13 100

n=100

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FERREIRA, J. M. S. ET AL.

Discussão Os resultados indicam o acesso dos participantes do estudo à informação sobre saúde bucal. Em estudos semelhantes, Santos et al. (2002) observaram valores acima deste estudo (91,67%). Todavia, Vasconcelos et al. (2001) verificaram que apenas 44% dos participantes afirmaram ter acesso a informações sobre saúde bucal. Os profissionais da odontologia ocupam um local de destaque como veículo de informação. Estes resultados foram confirmados por Campos & Garcia (2004), Santos et al. (2002) e Jiang et al. (2002) ao observarem que a maioria dos professores entrevistados havia recebido informações de cirurgiõesdentistas com valores de 79,2%; 75,3% e 60,5%, respectivamente. Na Figura 1 observa-se a deficiência nas atividades acadêmicas quanto à implementação de programas educativos em saúde bucal, visto que apenas 4% dos entrevistados se referem à graduação como veículo de informação, demonstrando a necessidade se serem trabalhados, nos currículos acadêmicos, conteúdos voltados para saúde bucal. A maioria dos acadêmicos participantes do estudo desconhece aspectos como constituição e remoção da placa bacteriana (Figura 2), o que é corroborado por Santos et al. (2002) e Campos & Garcia (2004), em cujos estudos observaram que a remoção da placa bacteriana, segundo os seus entrevistados, deve ser realizada pelo cirurgião-dentista, em 49,1% e 63,1%, respectivamente, sugerindo uma provável confusão entre placa bacteriana e cálculo dental. Grande parte dos acadêmicos afirmou ser a cárie uma doença, entretanto os mesmos não acreditam no caráter de transmissibilidade da mesma (Figura 2), fato este ainda em debate na Cariologia (Fejerskov, 2004). Quanto aos fatores etiológicos da cárie dentária, nosso estudo reflete bom nível de conhecimento dos participantes em relação à multifatoriedade que leva ao surgimento. Resultados diferentes foram observados por Santos et al. (2002), onde apenas 20,4% dos entrevistados associaram cárie e multifatoriedade, e também por Almas et al. (2003), que verificaram ser a cárie dentária resultante da escovação incorreta, de acordo com 88% de seus entrevistados. Com relação à restauração dos elementos decíduos cariados (Figura 2), observou-se que a maior parte dos entrevistados (74%) a considera indicada. Sendo este resultado confirmado por Dalto & Ferreira (1998), cujos entrevistados acreditam que os dentes decíduos devam ser restaurados em 74,40%. Resultados diferentes foram encontrados por Moimaz et al. (1992), pois grande parte dos participantes de seu estudo não considera indicada esta restauração. É provável que isto se justifique por estes acreditarem ser tais elementos substituídos pelos sucessores permanentes. Quanto à possibilidade de se ter dentes saudáveis por toda a vida, a maioria dos acadêmicos expressa uma opinião positiva. Unfer & Saliba (2000) observaram que 64,7% dos participantes acredita na durabilidade dos elementos dentais. Tal achado favorece a quebra do estigma de “fatalidade” e perda dos elementos dentais com o passar do tempo. A função do flúor é compreendida de forma correta pelos participantes de nossa pesquisa (Figura 3). Entretanto, quanto aos locais de acesso citados, observa-se que este é associado principalmente ao dentista, ao contrário da associação com a água, que foi mínima (3%). Dados semelhantes foram

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CONHECIMENTO DE ALUNOS CONCLUINTES ...

observados por Unfer & Saliba (2000), verificando que o dentista foi citado por 26,2% dos entrevistados, enquanto a água por apenas 5,6%, sugerindo a necessidade de divulgação da importância deste veículo, o qual representa um método simples e eficaz de se atuar junto a todas as classes da população. A utilização correta do dentifrício é questionável, visto que a maioria afirma preencher toda a escova, achado que pode refletir o forte apelo da mídia, a qual enfatiza o dentifrício como o meio mais eficiente no controle da cárie, negligenciando aspectos como técnica de escovação e controle da dieta (Figura 3), bem como a necessidade do controle de ingestão de dentifrício pelas crianças abaixo dos 6 anos, como forma de evitar fluorose. Os resultados apresentados na Figura 3 sugerem a necessidade de orientação quanto ao consumo de alimentos doces, os quais não devem ser totalmente eliminados, mas consumidos ocasionalmente. Em relação ao momento adequado para a primeira visita ao dentista, percebemos que o grupo estudado não apresenta conhecimento satisfatório, pois apenas 20% acreditam que esta deva ocorrer antes que o os elementos dentais irrompam. Ao contrário de nosso resultado, Dalto & Ferreira (1998) obtiveram uma resposta positiva por 90,77% da amostra. A respeito do uso da chupeta (Figura 4), pôde-se observar que a maior parte dos estudantes considera o uso prolongado prejudicial à criança, entretanto poucos demonstraram conhecimento sobre a idade limite para o seu abandono (entre três e quatro anos), período no qual o desenvolvimento facial pode ser comprometido. A odontologia para bebês tem papel fundamental na promoção de saúde, pois difunde hábitos de higiene bucal mais precoces, resultando em uma postura mais preventiva da população. Uma forma efetiva e eficiente no desenvolvimento de atividades educativas em escolas ocorre pelo estabelecimento de parcerias entre profissionais de saúde e professores, pois introduz aspectos relacionados à saúde bucal e reforça conteúdos discutidos em sala anteriormente (Almas et al., 2003). Diante do exposto, concluiu-se que a população estudada apresentou conhecimento razoável em relação aos cuidados com a saúde bucal. Os dados indicam a necessidade de se aplicar e implementar programas educativos voltados para estes profissionais, principalmente dentro do currículo acadêmico, afim de torná-los mais capacitados para abordar este tema em sala de aula com seus futuros alunos. Referências ALMAS, K.; AL-MALIK, T. M; AL-SHEHRI, M. A.; SKAUG, N. The knowledge and practices of oral hygiene methods and attendance pattern among school teachers in Riyadh, Saudi Arabia. Saudi. Med. J., v.24, n.10, p.1087-91, 2003. ABEGG, C. Notas sobre a educação em saúde bucal nos consultórios odontológicos, unidades de saúde e nas escolas. Ação Coletiva, v.2, n.2, p.25-8, 1999. CAMPOS, J. A. D. B.; GARCIA, P. P. N. S. Comparação do conhecimento sobre cárie dental e higiene bucal entre professores de escolas de ensino fundamental. Cien. Odontol. Bras, v.7, n.1, p.58-65, 2004.

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FERREIRA, J. M. S. et al. Conocimientos sobre salud bucal de los estudiantes avanzados de Pedagogía. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.81-8, mar/ago 2005. El objetivo de esta investigación fue evaluar el conocimiento sobre salud bucal de los estudiantes avanzados de la carrera de Pedagogía de la Universidad Federal de Paraíba. Con este fin, los estudiantes contestaron a un cuestionario que contenía preguntas objetivas sobre el tema. Los datos fueron analizados utilizando estadística descriptiva. De los 100 participantes, el 83% había tenido acceso a informaciones sobre Odontología Preventiva, el 64% de éstos a través del cirujano dentista. Los resultados indican que el 31% de los estudiantes poseen pocos conocimientos sobre la placa bacteriana, mientras que el 55% conoce la etiología de la caries dental. Aunque el 92% de los estudiantes encuestados afirma que el uso del chupete es perjudicial para el desarrollo facial del niño, solamente el 9% de estos identificó la edad límite para interrumpir su uso. Además, el 20% acertó en la cuestión del momento ideal para el primer contacto entre el niño y el dentista. Se concluye que los estudiantes demostraron un conocimiento razonable con respecto a la salud bucal. Esto sugiere la implantación de programas educativos como parte del currículo académico, ya que estos futuros profesionales contribuirán a la formación del niño, estableciendo prácticas diarias capaces de generar salud. PALABRAS CLAVE: salud bucal; educación en salud; caries dental. Recebido para publicação em: 26/04/05. Aprovado para publicação em: 25/07/05.

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debates

Humanização na saúde: um novo modismo? The humanization of healthcare: a new fad? Humanización en la salud: ¿Un nuevo modismo?

Regina Benevides 1 Eduardo Passos 2

SÍLVIA MECOZZI, Anêmona V, 2002

Acompanhamos o debate em torno do tema da humanização no campo da saúde, impulsionado recentemente pela construção da Política Nacional de Humanização da atenção e da gestão na saúde (PNH), com a qual estivemos implicados em 2003 e 2004 na posição de integrantes da equipe da Secretaria Executiva (SE) do Ministério da Saúde (MS). Ainda que timidamente, este tema se anuncia desde a XI Conferência Nacional de Saúde, CNS (2000), que tinha como título “Acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social”, procurando interferir nas agendas das políticas públicas de saúde. De 2000 a 2002, o Programa Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar (PNHAH) iniciou ações em hospitais com o intuito de criar comitês de humanização voltados para a melhoria na qualidade da atenção ao usuário e, mais tarde, ao trabalhador. Tais iniciativas encontravam um cenário ambíguo em que a humanização era reivindicada pelos usuários e alguns trabalhadores e, no mínimo, secundarizada (quando não banalizada) pela maioria dos gestores e dos profissionais. Os discursos apontavam para a urgência de se encontrar outras respostas à crise da saúde, identificada por muitos como falência do modelo SUS. A fala era de esgotamento. De fato, cada posição neste debate se sustenta com as suas razões. Por um lado, os usuários por reivindicarem o que é de direito: atenção com acolhimento e de modo resolutivo; os profissionais, por lutarem por melhores condições de trabalho. Por outro lado, os críticos às propostas humanizantes no campo da saúde denunciavam que as iniciativas em curso se reduziam, grande parte das vezes, a alterações que não chegavam efetivamente a colocar em questão os modelos de atenção e de gestão instituídos. Vale destacar que entre os anos 1999 e 2002, além do PNHAH, algumas outras ações e Programas foram propostos pelo Ministério da Saúde voltados para o que também ali ia se definindo como

1 Professora, Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ; coordenadora da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde de jan. 2003 a jan. 2005. <rebenevi@terra.com.br> 2 Professor, Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ; consultor da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde de jul. 2003 a fev. 2005. <e.passos@superig.com.br>

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Departamento de Psicologia/UFF Campus do Gragoatá, bloco O, 2º andar Gragoatá - Niterói, RJ 24.000-000

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campo da humanização contornado pelo debate sobre busca da qualidade na atenção ao usuário. Apenas para citar alguns, destacamos a instauração do procedimento de Carta ao Usuário (1999), Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares – PNASH (1999); Programa de Acreditação Hospitalar (2001); Programa Centros Colaboradores para a Qualidade e Assistência Hospitalar (2000); Programa de Modernização Gerencial dos Grandes Estabelecimentos de Saúde (1999); Programa de Humanização no PréNatal e Nascimento (2000); Norma de Atenção Humanizada de Recém-Nascido de Baixo Peso – Método Canguru (2000), dentre outros. Ainda que a palavra humanização não apareça em todos os Programas e ações e que haja diferentes intenções e focos entre eles, podemos acompanhar uma tênue relação que vai se estabelecendo entre humanização-qualidade na atenção-satisfação do usuário. A humanização, expressa em ações fragmentadas e numa imprecisão e fragilidade do conceito, vê seus sentidos ligados ao voluntarismo, ao assistencialismo, ao paternalismo ou mesmo ao tecnicismo de um gerenciamento sustentado na racionalidade administrativa e na qualidade total. Para ganhar a força necessária que dê direção a um processo de mudança que possa responder a justos anseios dos usuários e trabalhadores da saúde, a humanização impõe o enfrentamento de dois desafios: conceitual e metodológico. Desafio conceitual Não podemos retomar o conceito de humanização sem considerar o cenário no qual ele vem ganhando destaque crescente em Programas no campo da saúde pública. Tal concentração temática indica o que poderíamos chamar de um modismo que, enquanto tal, padroniza as ações e repete modos de funcionar de forma sintomática. Neste sentido, é possível afirmar que a humanização ganha, no início dos anos 2000, um aspecto de conceito-sintoma. Estamos chamando de conceito-sintoma a noção que paralisa e reproduz um sentido já dado. É como tal que o tema da humanização se reproduziu em seus sentidos mais estabilizados ou instituídos, perdendo, assim, o movimento pela mudança das práticas de saúde do qual esta noção adveio, movimento que se confunde com o próprio processo de criação do SUS nos anos 1970 e 1980. Sabemos, por outro lado, que a luta pela humanização das práticas de saúde já estava colocada na pauta do movimento feminista na década de 1960, ganhando expressão no debate em torno da saúde da mulher (Carnot, 2005; Costa, 2004; Vieira, 2002; Almeida, 1984). Dos anos 1960 aos 1980, podemos, então, acompanhar o movimento instituinte pela mudança das práticas de saúde. Este movimento chega aos anos 2000 encontrando ou se chocando com o que, paradoxalmente, dele resulta: formas instituídas, marcas ou imagens vazias, slogans já sem a força do movimento instituinte. É assim que a humanização se apresenta como um conceito-sintoma presente em práticas de atenção: a) segmentadas por áreas (saúde da mulher, saúde da criança, saúde do idoso) e por níveis de atenção (assistência hospitalar); b) identificadas ao exercício de certas profissões (assistente social, psicólogo) e a características de gênero (mulher); c) orientadas por exigências de mercado que devem “focar o cliente” e “garantir qualidade total nos serviços”. Apontar este caráter sintomático do conceito de humanização impõe que, ao mesmo tempo, identifiquemos o que aí se paralisa, mas também aquilo que insiste como índice de um movimento que não se esgota, sua face positiva. Colocar em análise o conceitosintoma é permitir a retomada de um processo pelo qual se faz a crítica ao que se instituiu nas práticas de saúde como o “bom humano”, figura ideal que regularia as experiências concretas. A necessidade de recolocação do problema da humanização obriga-nos, então, a forçar os limites do conceito resistindo a seu sentido instituído. Contra uma idealização do humano, o desafio posto é o de redefinir o conceito de humanização a partir de um

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3 Na XII CNS a PNH fez sua primeira apresentação nacional. Na ocasião, foi feito um registro das imagens do estande HumanizaSus onde os delegados davam depoimentos acerca de experiências de humanização da saúde em seus municípios. Essas imagens foram editadas no video “PNH na XII CNS” (2004) em que as falas dos delegados apareciam sob o emblema “ O SUS que dá certo”.

“reencantamento do concreto” (Varela, 2003) ou do “SUS que dá certo”3. Esta crítica ao Homem como figura-ideal desencarnada e ao seu sobrevôo regulatório, longe de abandonar todo e qualquer princípio de orientação, coloca em questão as práticas normalizadoras apostando, em contraste, na “normatividade” do vivo como capacidade menos de seguir do que de criar normas (Canguilhem, 1978). É neste sentido que a humanização não pode ser pensada a partir de uma concepção estatística ou de distribuição da população em torno de um ponto de concentração normal (moda). O que queremos defender é que o humano não pode ser buscado ali onde se define a maior incidência dos casos ou onde a curva normal atinge sua cúspide: o homem normal ou o homem-figura-ideal, metro-padrão que não coincide com nenhuma existência concreta. Partir das existências concretas é ter de considerar o humano em sua diversidade normativa e nas mudanças que experimenta nos movimentos coletivos. Tal desidealização do Homem (Benevides & Passos, 2005) dá como direção o necessário reposicionamento dos sujeitos implicados nas práticas de saúde. Assim, redefinindo o conceito, tomamos a humanização como estratégia de interferência nestas práticas levando em conta que sujeitos sociais, atores concretos e engajados em práticas locais, quando mobilizados, são capazes de, coletivamente, transformar realidades transformando-se a si próprios neste mesmo processo. Trata-se, então, de investir, a partir desta concepção de humano, na produção de outras formas de interação entre os sujeitos que constituem os sistemas de saúde, deles usufruem e neles se transformam, acolhendo tais atores e fomentando seu protagonismo. Mas a redefinição do conceito de humanização deve ganhar outra amplitude quando estamos implicados na construção de políticas públicas de saúde. Afinal, de que nos serve este esforço conceitual se isso não resultar em alteração nas práticas concretas dos serviços de saúde, na melhoria da qualidade de vida dos usuários e na melhora das condições de trabalho dos profissionais de saúde? Neste sentido, impõe-se um outro desafio, o da alteração dos modos de fazer, de trabalhar, de produzir no campo da saúde. Desafio metodológico Quando falamos de modos de fazer estamos às voltas com o processo de construção de uma política pública que não pode se manter apenas como propostas, Programas, portarias ministeriais. Da política de governo à política pública não há uma passagem fácil e garantida. Construir políticas públicas na máquina do Estado exige todo um trabalho de conexão com as forças do coletivo, com os movimentos sociais, com as práticas concretas no cotidiano dos serviços de saúde (Benevides & Passos, 2005). Neste sentido, a Política de Humanização só se efetiva uma vez que consiga sintonizar “o que fazer” com o “como fazer”, o conceito com a prática, o conhecimento com a transformação da realidade. Os termos postos aqui em contraste não podem ser entendidos como opostos, mas ligados numa relação de pressuposição recíproca. Se teoria e prática se distinguem, mas não se separam, somos levados, então, a inverter uma afirmação do senso comum de que conhecemos, teorizamos, definimos conceitos para em seguida aplicá-los a uma realidade. Seguindo a indicação institucionalista (Lourau et al., 1977a; 1977b) é preciso transformar a realidade para conhecê-la. E de que realidade estamos falando? Aquela das práticas de saúde e, mais especificamente, das práticas de construção de políticas de saúde com que estamos envolvidos ao afirmar a importância do debate em torno da humanização. Transformar os modos de construir as políticas públicas de saúde impõe o enfrentamento de um modus operandi fragmentado e fragmentador, marcado pela lógica do especialismo e do que se supõe como especificidade da humanização em determinadas áreas. Entretanto, fazer este movimento de mudança da lógica da racionalidade técnico-burocrática nas práticas de saúde e de compartimentalização/ individualização taylorista dos processos de trabalho, sempre poderá incorrer no risco da

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defesa de um sentido de humanização tão amplo que acabaria por se confundir com o que é princípio do SUS. Tal perigo é apontado por críticos da humanização que a entendem como apenas repetindo o princípio da integralidade. De fato, o princípio da integralidade é um anseio que o SUS elege como uma das direções-norte do sistema de saúde. Assim, não caberia mesmo pensar numa “política da integralidade” como afirma Ruben Mattos em entrevista à RET-SUS (Fiocruz, 2005). Uma política não pode se confundir com um princípio e a humanização como política pública de saúde deve estar efetivando, no concreto das práticas de saúde, os diferentes princípios do SUS. Uma política se orienta por princípios, mas está comprometida também com modos de fazer, com processos efetivos de transformação e criação de realidade. Se a humanização não pode ser tomada como um princípio, mas se propõe como política, é porque sua efetividade não se faz enquanto proposta geral e abstrata. No entanto, não basta defender o caráter específico e concreto das práticas de humanização, pois tomá-las em sua especificidade pode incorrer no risco de repetir a tendência a compartimentalização e isolamento das ações como, por exemplo, a separação entre a humanização do parto e a humanização das emergências. Daí a difícil questão: qual o sentido de uma política de humanização que não se confunda com um princípio do SUS, o que a tornaria ampla e genérica, nem abstrata porque fora das singularidades da experiência, nem que aceite a compartimentalização, mas que se afirme como política comum e concreta nas práticas de saúde? O SUS é uma conquista que se expressa, sem dúvida, como proposição geral e abstrata na forma do texto da lei, das portarias e normativas. No entanto, o projeto ele mesmo do SUS não pode suportar uma existência descolada do plano das experiências concretas no qual o movimento instituinte da Reforma Sanitária fez valer a aposta em mudanças nas práticas de saúde. É a idéia de “único”, encontrada no SUS, que indica o tipo de projeto e, sobretudo, a forma de sua implantação no socius. Um Sistema de saúde para ser único precisa implantar-se como um plano comum que conecta diferentes atores no processo de produção de saúde. É neste sentido que os princípios do SUS não se sustentam numa mera abstração, só se efetivando por meio da mudança das práticas concretas de saúde. Mas como garantir esta implantação? Realizar mudanças dos processos de produção de saúde exige também mudanças nos processos de subjetivação, isto é, os princípios do SUS só se encarnam na experiência concreta a partir de sujeitos concretos que se transformam em sintonia com a transformação das próprias práticas de saúde. Apostar numa Política Nacional de Humanização do SUS é definir a humanização como a valorização dos processos de mudança dos sujeitos na produção de saúde. Há, portanto, uma inseparabilidade entre estes dois processos, o que faz da humanização um catalisador dos movimentos instituintes que insistem no SUS. Devemos, ainda, desdobrar a pergunta anterior argüindo o que estamos designando como processos de mudança subjetiva. Como realizar estas mudanças? A humanização enquanto política de saúde se constrói com as direções da inseparabilidade entre atenção e gestão e da transversalidade. Tais direções indicam o “como fazer” desta política que se concretiza como “tecnologias relacionais”. É a partir da transformação dos modos de os sujeitos entrarem em relação, formando coletivos, que as práticas de saúde podem efetivamente ser alteradas. Mudamos as relações no campo da saúde quando, por um lado, experimentamos a inseparabilidade entre as práticas de cuidado e de gestão do cuidado. Cuidar e gerir os processos de trabalho em saúde compõem, na verdade, uma só realidade, de tal forma que não há como mudar os modos de atender a população num Serviço de saúde sem que se alterem também a organização dos processos de trabalho, a dinâmica de interação da equipe, os mecanismos de planejamento, de decisão, de avaliação e de participação. Para tanto são necessários arranjos e dispositivos que interfiram nas

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formas de relacionamento nos serviços e nas outras esferas do sistema, garantindo práticas de co-responsabilização, de co-gestão, de grupalização (Campos, 2000). Por outro lado, não há como mudar as formas de relacionamento nas práticas de saúde sem que aumentemos os graus de comunicação, de conectividade e de intercessão (Deleuze, 1992) intra e intergrupos nos serviços e nas outras esferas do sistema. Chamamos de transversalidade (Guattari,1981) o grau de abertura que garante às práticas de saúde a possibilidade de diferenciação ou invenção, a partir de uma tomada de posição que faz dos vários atores sujeitos do processo de produção da realidade em que estão implicados. Aumentar os graus de transversalidade é superar a organização do campo assentada em códigos de comunicação e de trocas circulantes nos eixos da verticalidade e horizontalidade: um eixo vertical que hierarquiza os gestores, trabalhadores e usuários e um eixo horizontal que cria comunicações por estames. Ampliar o grau de transversalidade é produzir uma comunicação multivetorializada construída na intercessão dos eixos vertical e horizontal. Na qualificação do SUS, a humanização não pode ser entendida como apenas mais um Programa a ser aplicado aos diversos serviços de saúde, mas como uma política que opere transversalmente em toda a rede SUS. O risco de tomarmos a humanização como mais um Programa seria o de aprofundar relações verticais em que são estabelecidas normativas que devem ser aplicadas e operacionalizadas, o que significa, grande parte das vezes, efetuação burocrática, descontextualizada e dispersiva, por meio de ações pautadas em índices a serem cumpridos e metas a serem alcançadas independentes de sua resolutividade e qualidade. Com isto, estamos nos referindo à necessidade de adotar a humanização como política transversal que atualiza um conjunto de princípios e diretrizes por meio de ações e modos de agir nos diversos serviços, práticas de saúde e instâncias do sistema, caracterizando uma construção coletiva. A humanização como política transversal supõe necessariamente ultrapassar as fronteiras, muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que se ocupam da produção da saúde. Entendemos, entretanto, que tal situação de transversalidade não deve significar um ficar fora, ou ao lado, do SUS. A humanização deve caminhar, cada vez mais, para se constituir como vertente orgânica do Sistema Único de Saúde fomentando um processo contínuo de contratação, de pactuação que só se efetiva a partir do aquecimento das redes e fortalecimento dos coletivos (Passos & Benevides, 2004). Mas, sua afirmação como política transversal deve garantir o caráter questionador das verticalidades pelas quais estamos, na saúde, sempre em risco de nos ver capturados. O confronto de idéias, o planejamento, os mecanismos de decisão, as estratégias de implementação e de avaliação, mas principalmente o modo como tais processos se dão, devem confluir na construção de trocas solidárias e comprometidas com a produção de saúde, tarefa primeira da qual não podemos nos furtar. De fato, a tarefa se apresenta dupla e inequívoca: produção de saúde e produção de sujeitos. Construir tal política impõe, mais do que nunca, que o SUS seja tomado em sua perspectiva de rede, criando e/ou fortalecendo mecanismos de coletivização e pactuação sempre orientados pelo direito à saúde que o SUS na constituição brasileira consolidou como conquista. É no coletivo da rede SUS que novas subjetividades emergem engajadas em práticas de saúde construídas e pactuadas coletivamente, reinventando os modelos de atenção e de gestão. Se partimos da crítica ao conceito-sintoma, concluímos afirmando a humanização como um conceito-experiência que, ao mesmo tempo, descreve, intervem e produz a realidade nos convocando para mantermos vivo o movimento a partir do qual o SUS se consolida como política pública, política de todos, política para qualquer um, política comum.

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Recebido para publicação em: 23/05/05. Aprovado para publicação em: 28/05/05.

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Humanização como processo conflitiv o, conflitivo coletiv o e contextual coletivo Humanization as a conflictive, collective and contextual process Humanización como proceso conflictivo, colectivo y contextual

Denise Gastaldo 1

Este comentário apresenta as reflexões que a leitura do texto de Regina Benevides e Eduardo Passos me suscitaram. Escrevo uma quase-resposta, acrescentando algumas novas idéias a questões que para mim ficaram pendentes, numa tentativa de diálogo. Após descrever como leio o texto dos autores, passarei às três questões que considero importantes discutir: 1. a relatividade e diversidade na humanização como problemáticas; 2. a tensão entre o individual e o coletivo no processo de mudança social; e 3. a produção de humanização como prática numa sociedade fortemente desumanizada. Benevides e Passos mostram-se críticos da rigidez de conceitos, como o conceitosintoma de humanização porque “paralisa e reproduz um sentido já dado” e está fragmentado na prática por programas, níveis de atenção e profissões, entre outros. Esta forma de pensar conduz a uma crítica da normalização, pois não captura a singularidade de nenhum indivíduo em particular, e da tendência de se idealizar aspectos de nossa humanidade, enquanto o que é criativo, reciclado ou marginal freqüentemente é rechaçado pelo sistema. Ao apostar na diversidade normativa e numa reflexão que contemple vários coletivos, os autores crêem que as pessoas se transformariam ao participar de estratégias de mudança social. No que tange à humanização como política pública, sugerem que é necessário superar abstrações para que a política chegue aos atores sociais e estes experimentem formas de se relacionar em co-gestão com o sistema, no qual a produção de saúde seja também produtora de subjetividades.

1 Associate Professor; Faculty of Nursing & Department of Public Health Sciences; Faculty of Medicine; University of Toronto, Canada. <denise.gastaldo@utoronto.ca>

50, St. George Street Toronto - Ontario, Canada M6J 2G4

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Minha primeira reação ao texto foi pensar que o pedido de diversidade e valorização da diferença não combinava com o vocábulo “Homem” para descrever os seres humanos de ambos os sexos e distintas orientações sexuais. Pessoalmente, não percebo a humanidade em sua diversidade na palavra homem, seja ela com maiúscula ou minúscula. A seguir, numa reflexão um pouco mais detida, percebi que minha reação ao texto era de incredulidade nas propostas de humanização ali levantadas por sua relatividade, pela ausência de uma descrição explícita dos valores e tipos de subjetividades desejados pela política de humanização, um problema freqüente em textos de orientação pós-estruturalista e pósmoderna. Reconheço que os autores apontam para a co-gestão, trocas solidárias e comprometidas, mas estes são valores de processo mais do que efeitos desejados. Ou seja, é preciso humanizar porque o sistema é considerado hoje, por alguns - entre eles os formuladores da política - como desumano, inadequado, ineficiente etc. Neste contexto, não estamos falando de produção de subjetividades em geral, mas de alguns tipos de subjetividade e, assim, o processo de humanizar-se não é menos prescritivo que qualquer outro, mesmo quando explicita a diversidade como valor que deve orientar o processo de humanizar-se. A criação de subjetividades ocorre hoje nas práticas do cotidiano do SUS e este processo, de subjetividades criadas e re-criadas, gera grande parte da resistência ao que se propõe como humanização. Infelizmente, receio que se fizéssemos prevalecer o pensamento dos(as) profissionais que trabalham para o SUS hoje, além de uma óbvia diversidade de opiniões, talvez nos deparássemos com muitos que pensam que sistema público é “assim mesmo”, que com as atuais condições de trabalho e os limites educacionais e financeiros da população “a gente faz o que pode”. Esta é uma subjetividade, a de vítima do sistema ou da situação. Outra é a subjetivação de privilégios, na qual alguns médicos(as) se percebem menos responsáveis por cumprir horário que outros profissionais, pois eles “precisam” ter um melhor salário. Ou seja, o SUS, desde sua criação, colabora na produção de formas de pensar e praticar cuidados e tratamentos de doenças e, neste processo, se produzem subjetividades individuais que têm muitas características compartilhadas no coletivo. Uma outra lacuna no texto, também derivada de seu relativismo, é a ausência de referências a conflitos e sistemas de privilégios. Suponho que o atendimento desumanizado seja benéfico para alguns, pois se a desumanidade na atenção fosse ruim para todas as pessoas envolvidas já teríamos presenciado mudanças mais abrangentes. Além disso, o discurso da valorização da diferença tem, à primeira vista, um caráter imobilizador, se não for mediado por valores explícitos. Como se deve respeitar todas as diferenças (inclusive as que desumanizam o sistema) e estas apontam para caminhos distintos na implementação de programas e práticas, na micro-física das relações de poder do cotidiano torna-se difícil justificar uma forma de atuação sobre outra, por exemplo: valorizar o horário que é mais conveniente à população que aos trabalhadores. Esta crítica não se deve ao fato de que eu ignore os objetivos e valores claramente definidos para o SUS, os quais servem de marco para o desenvolvimetno da política de humanização. Também entendo que, no cotidiano dos serviços, a tradução de princípios como universalidade ou integralidade necessitam do que os autores descreveram como políticas transversais que ajudem a concretização de práticas humanizadas. No entanto, humanizar é explicitar agendas e conflitos. Por exemplo, na gestão de diferenças de gênero, como trabalhar o acolhimento e o suporte emocional se não nos referimos ao papel social que está atrelado às mulheres nesta área porque vivemos numa sociedade com marcados valores patriarcais? Ou, como responder a questões de desigualdade de

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gênero vivenciadas pelas clientes se estas também permeiam as relações de trabalho, talvez de formas mais sutis? Os exemplos que utilizei até o momento remetem a meu segundo ponto. Um dos possíveis resultados de um processo coletivo de busca de humanização nos serviços pode ser uma ruptura nas relações da equipe, pois subjetividades antagônicas se consolidam no grupo. Talvez isso seja parte do processo que os autores descrevem como construção coletiva, mas tenho dificuldade de entender a sintonia do processo de indivíduos e coletivos que eles relatam. Parto da premissa que discursos dominantes e emergentes constituem as subjetividades de pessoas que participam de um mesmo processo e que elas transformam suas subjetividaes de maneiras díspares no processo de tentar atingir um mesmo objetivo. Assim, uma vez mais, acredito que a noção de conflito ou co-existência de rupturas e continuidades que co-existem na produção de subjetividades pode ser útil para entender o processo de busca de práticas e visões de mundo mais próximas a um sistema de saúde humanizado para usuários(as) e profissionais. A última questão que me ocorre a partir da leitura do texto é a de que a política de humanização tem diante de si um desafio incomensurável: o de humanizar numa sociedade em que prevalecem tantas e tão profundas formas de injustiça e violência no cotidiano, a desumanidade à brasileira. O colonialismo, transformado no último século em um acentuado classismo, e as persistentes expectativas de subserviência da população economicamente desfavorecida, ou negra, ou feminina, por parte de muitos em nossa sociedade permeiam as relações do cotidiano a ponto de ser muito difícil distingüir exterioridade e interioridade neste processo. Considero também importante lembrar que o acesso a serviços de saúde de qualidade é apenas um entre mais de uma dezena de determinantes sociais da saúde, como distribuição eqüitativa de renda, inclusão social, condições de trabalho e educação... Além disso, os serviços de saúde são responsáveis por apenas 10 a 15% de todos os cuidados de saúde que ocorrem nas sociedades de países ditos desenvolvidos, estando a cargo da sociedade a maior parte dos cuidados. Para concluir, quero ressaltar que em muitos pontos concordo com os autores, mas como acadêmica cabe a mim fazer críticas para aprimorar formas de teorizar e praticar a promoção da saúde. Em síntese, sugiro que a teoria desenvolvida por Benevides e Passos se beneficiaria de maior atenção aos conflitos e tensões que o processo de humanização poderá desencadear, inclusive nos processos de produção de subjetividades, de uma pauta de diversidade para assegurar a inclusão social, o que é benéfico para a saúde de toda população e, finalmente, de uma reflexão do significado da proposta de humanização do SUS no contexto da desumanidade dos determinantes sociais da saúde, aos quais a maioria da população brasileira está submetida em seu cotidiano.

Recebido para publicação em: 16/06/05. Aprovado para publicação em: 20/06/05.

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Humanização na saúde: um projeto em defesa da vida? The humanization of healthcare: a project for defending life? Humanización en la salud: ¿un proyecto en defensa de la vida? Gastão Wagner de Sousa Campos 1

A professora Regina Benevides, o professor Eduardo Passos e eu temos uma história de colaboração acadêmica e política bastante produtiva. Assim, debater o artigo Humanização na saúde: um novo modismo? é somente mais uma etapa de um longo diálogo que vimos entabulando nos últimos dez anos. Parto da constatação por eles apresentada de que os princípios gerais ou as diretrizes genéricas de uma política, inclusive no caso do SUS, devem ser examinados em sua concretude, ou seja, articulados com a descrição dos modos como poderiam ser levados à prática. Assim, partindo do princípio da Integralidade ou da Humanização podem ser armadas políticas amplas ou restritivas e projetos reformistas ou medíocres. A discussão de princípios abstratos termina, freqüentemente, em declarações fundamentalistas e em embates puramente ideológicos. Um valor apresentado em confronto a outros. Por outro lado, princípios e diretrizes são importantes para compor imaginários utópicos e indicar novos rumos e objetivos para as políticas. Neste sentido, o debate sobre Humanização deve contemplar estas duas dimensões: sua capacidade de produzir novas utopias, mas também o de interferir na prática realmente existente nos sistemas de saúde. Os autores apresentam a humanização como um “conceito-sintoma” que, em determinadas circunstâncias, poderia se transformar em um “conceito-experiência”. Sintoma de quê, caberia perguntar? A moda da Humanização seria apenas um movimento demagógico tendente a simplificar conflitos e problemas estruturais do SUS? Ou refletiria uma tendência real do sistema de saúde para desvalorizar o ser humano. Provavelmente as duas coisas vêm acontecendo. Sem dúvida, há um processo de burocratização e, em muitos casos, até mesmo de embrutecimento das relações interpessoais no SUS, quer sejam relações entre profissionais, quer seja destes com os usuários. Há evidências dessa degradação tanto em episódios como o da crise da atenção hospitalar no Rio de Janeiro ou em pesquisas que indicam modos de funcionamento dos serviços com baixo grau de envolvimento das equipes em sua tarefa primária que é produzir saúde. A essa constatação muitos têm aposto o diagnóstico genérico de serviços desumanizados. Daí, para explicações simplistas há um caminho aberto: a receita seria a catequese ou a sensibilização dos trabalhadores de saúde para que adotassem posturas e comportamentos “cuidadores” – mais um neologismo inventado como saída mágica para um contexto complexo.

1 Professor, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas, SP. <gastaowagner@mpc.com.br>

Departamento de Medicina Preventiva e Social FCM, Unicamp - caixa postal 6111 Campus Universitário Zeferino Vaz Campinas, SP 13.083-000

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Cada um destes conceitos-diretrizes tem uma potencialidade implícita em seu modo de produção. Integralidade nos remete para o mundo dos sistemas de saúde, integração de saberes e de técnicas. Ainda que possa abrigar qualquer outra discussão, já que integral significa “total, inteiro e global”; ou seja, o mundo, o universo e suas cercanias. Humanização carrega esta mesma ambigüidade. Deverão, portanto, ser discutidos, acoplados aos projetos concretos, elaborados em seu santo nome. De qualquer modo, sinto-me atraído pela utilização do conceito-síntese Humanização. Isto porque ele fala diretamente sobre os seres humanos e parece-me que um dos grandes problemas da lógica dominante contemporânea é o esquecimento das pessoas. Políticas econômicas têm sido avaliadas de acordo com sua capacidade de produzir crescimento ou estabilidade monetária e não necessariamente de melhorar as condições de vida das pessoas. A ordenação do espaço urbano há muito deixou de lado a preocupação com o bem-estar das pessoas. Em saúde é comum a redução de pessoas a objetos a serem manipulados pela clínica ou pela saúde pública. O humano diz respeito ao Sujeito e à centralidade da vida humana. A Humanização tem relação estreita com dois outros conceitos muito fortes em meu percurso como pesquisador e sanitarista: o de defesa da vida e o de Paidéia. A defesa da vida é um ótimo critério para orientar a avaliação de políticas públicas. É também um objetivo permanente, uma meta central a ser buscada por qualquer política ou projeto de saúde. O conceito Paidéia é ainda mais radical, porque nos empurra a pensar modos e maneiras para o desenvolvimento integral dos seres humanos, sejam eles doentes, cidadãos ou trabalhadores de saúde. Sempre que falo em Humanização estou colando nesta palavra-valor o tema de defesa da vida e o de Paidéia. Rosana Onocko no artigo Humano demasiado humano: uma abordagem do mal-estar na instituição hospitalar criticou o viés antropomórfico presente quando denominamos a injustiça, a exploração, o mal e a perversidade como sendo atributos desumanos. A desumanização existente nos serviços de saúde é um produto humano, ainda quando resulte de uma combinação de problemas estruturais com posturas alienadas e burocratizadas dos operadores (Onocko Campos, 2004). Afinal as estruturas sociais são também produto humano e, em tese, poderiam ser refeitas mediante trabalho e esforço humano. Há de fato um paradoxo nessa caracterização. De qualquer modo, tende-se a qualificar de desumanas relações sociais em que há um grande desequilíbrio de poder e o lado poderoso se aproveita desta vantagem para desconsiderar interesses e desejos do outro, reduzindo-o a situação de objeto que poderia ser manipulado em função de interesses e desejos do dominante. Partindo deste pressuposto, não há como haver projeto de Humanização sem que se leve em conta o tema da democratização das relações interpessoais e, em decorrência, da democracia em instituições. No SUS a Humanização depende, portanto, do aperfeiçoamento do sistema de gestão compartilhada, de sua extensão para cada distrito, serviço e para as relações cotidianas. Envolve também outras estratégias dirigidas a aumentar o poder do doente ou da população em geral perante o poder e a autoridade do saber e das práticas sanitárias. Valorizar a presença de acompanhantes nos processos de tratamento, bem como modificar as regras de funcionamento de hospitais e outros serviços também em função de direitos dos usuários. Mecanismos preventivos e que dificultem o abuso de poder são essenciais à humanização. A predominância de saídas jurídicas, pos factum, é um sintoma da perversidade de instituições e das normas vigentes. A Humanização, considerando-a nesta perspectiva, é uma mudança das estruturas, da forma de trabalhar e também das pessoas. A humanização da clínica e da saúde pública depende de uma reforma da tradição médica e epidemiológica. Uma reforma que consiga combinar a objetivação científica do processo saúde/doença/intervenção com novos modos de operar decorrentes da incorporação do sujeito e de sua história desde o momento do diagnóstico até o da intervenção. O trabalho em saúde se humaniza quando

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busca combinar a defesa de uma vida mais longa com a construção de novos padrões de qualidade da vida para sujeitos concretos. Não há como realizar esta síntese sem o concurso ativo dos usuários, não há saber técnico que realize por si só este tipo de integração. A humanização depende ainda de mudanças das pessoas, da ênfase em valores ligados à defesa da vida, na possibilidade de ampliação do grau de desalienação e de transformar o trabalho em processo criativo e prazeroso. A reforma da atenção no sentido de facilitar a construção de vínculos entre equipes e usuários, bem como no de explicitar com clareza a responsabilidade sanitária são instrumentos poderosos para mudança. Na realidade, a construção de organizações que estimulem os operadores a considerar que lidam com outras pessoas durante todo o tempo, e que estas pessoas, como eles próprios, têm interesses e desejos com os quais se deve compor, é um caminho forte para se construir um novo modo de convivência. A Humanização poderá abarcar um projeto com este teor. Ou não. De qualquer modo, é um conceito que tem um potencial para se opor à tendência cada vez mais competitiva e violenta da organização social contemporânea. A Humanização tende a lembrar que necessitamos de solidariedade e de apoio social. É uma lembrança permanente sobre a vulnerabilidade nossa e dos outros. Um alerta contra a violência. Como diria o Luiz Odorico, a Humanização produz uma ‘tensão paradigmática’ (Andrade, 2004) entre a frieza da racionalidade economicista ou administrativa ou mesmo do pragmatismo político com a preocupação em organizar-se um mundo para a humanidade. Quando se fala muito em humanização fica mais difícil esquecer-se da lógica em defesa da vida. Ainda que seja sempre possível. A humanização como conceito-experiência. Este é o desafio, este é o caminho para construção de sentido e de significado para políticas de humanização, assim nos ensinaram Regina e Eduardo. Referências ANDRADE, L. O. O dilema da intersetorialidade: um estudo de caso, Fortaleza e Curitiba. 2004. Tese (Doutorado) - Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas.

Recebido para publicação em: 13/06/05. Aprovado para publicação em: 20/06/05.

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SÍLVIA MECOZZI, detalhe

ONOCKO CAMPOS, R. Humano, demasiado humano: uma abordaje del mal-estar em la institución hospitalaria. In: SPINELLI, H. (Org.) Salud Colectiva. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2004. p.103-21.


DEBATES

O projeto ético-político da humanização: conceitos, métodos e identidade The ethical and political humanization project: concepts, methods and identity El proyecto ético-político de la humanización: conceptos, métodos e identidad

Suely Ferreira Deslandes 1

Debater o texto de Regina Benevides e Eduardo Passos é uma oportunidade ímpar de reflexão. Primeiro pela profundidade de sua argumentação; segundo, pela experiência privilegiada destes autores na proposição e consolidação de uma política de humanização para o País. São autores, portanto, que têm a perfeita dimensão das possibilidades e obstáculos existentes para tal projeto. Então, aceitando frontalmente a imprescindível e inquietante proposta de Regina e Eduardo, buscarei refletir, a partir de suas colocações, os desafios conceituais e metodológicos postos no projeto éticopolítico da humanização da produção de cuidados em saúde. O primeiro passo seria argumentar sobre o conceito e seu contexto de reconhecimento; o conceito e suas diferentes formas de institucionalização, seja na letra da Política, seja no campo das “práticas instituintes-instituídas”, tecendo, aí, alguns de seus desafios metodológicos. Como lembram Regina e Eduardo, a plasticidade e polissemia do conceito de humanização já foram amplamente debatidas (Casate, 2005; Deslandes, 2004; Puccini & Cecílio, 2004). Suas possibilidades interpretativas variam desde o senso comum do “ser bom com o outro que sofre”, num mix de altruísmo caritativo e humanismo naif, passando por leituras essencialistas da busca do que seria o fundante do Humano, até as leituras de um humanismo revisitado, aberto sinergicamente ao singular de cada experiência humana em suas necessidades e ao mesmo tempo ancorado numa ética da vida, portanto universal (Benevides & Passos, 2005). Anexo ainda a proposição de um modelo de produção de cuidados mais resolutivo, centrado em comunicação que articula a troca de informações e saberes, diálogo, escuta de expectativas/demandas e a partilha de decisões entre profissionais, gestores e usuários (Benevides & Passos, 2005; Deslandes, 2004; 2005). Pensar a comunicação traz implícita a tarefa de discutir politicamente os diferentes capitais e agentes envolvidos nesta proposta e os meios de comunicabilidade (comunhão e negociação de sentidos e interpretações).

1

Pesquisadora, Fundação Oswaldo Cruz/Instituto Fernandes Figueira, Rio de Janeiro, RJ. <desland@iff.fiocruz.br>

Av. Rui Barbosa, 716 Flamengo - Rio de Janeiro, RJ 22.250-020

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Muito apropriadamente Regina e Eduardo alertam quanto ao contexto real no qual se inserem as (im)possibilidades desta proposta: um modelo de assistência secularmente hierarquizado, fragmentado e calcado numa lógica técnico-burocrática. Vemos ainda que o conceito de humanização se alinha a uma série de propostas de revisão e de mudança das relações entre equipes, profissionais, gestores e usuários dos serviços. A aposta nas “tecnologias relacionais” é clara. Fala-se do emprego das tecnologias de escuta, acolhimento, diálogo e negociação para a produção e gestão do cuidado. A Política Nacional de Humanização (PNH) (Brasil, 2004), por sua vez, não demarca um conceito, habilmente afirma apenas um “entendimento” do seu coletivo de formuladores: Assim, entendemos Humanização como: valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores; fomento da autonomia e do protagonismo desses sujeitos; aumento do grau de co-responsabilidade na produção de saúde e de sujeitos; estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão; identificação das necessidades de saúde; mudança nos modelos de atenção e gestão dos processos de trabalho tendo como foco as necessidades dos cidadãos e a produção de saúde; compromisso com a ambiência, melhoria das condições de trabalho e de atendimento. (Brasil, 2004) Esta opção semiótica e política evita o fechamento de uma definição programática, é certo. Por outro lado, não possibilita a vinculação com uma “imagem-objetivo” clara, além de permitir a identificação destas assertivas com vários princípios e orientações já disseminados pelo modelo de políticas e práticas de saúde que o SUS busca construir (valorização dos sujeitos, processos de gestão participativa e solidária, protagonismo dos sujeitos, ações de saúde centradas nas necessidades reais de saúde das populações e dos indivíduos, democratização das relações). A primeira vista, parece faltar nesta definição uma identidade do que busca designar. A leitura do documento permite perceber que, de fato, os itens desta proposição reaparecem como alguns dos princípios da mesma Política. Se a definição do conceito ganha a forma de uma proposição “principialista” o que isso pode nos indicar? Aventuro como especulação que o desejo da transversalidade que a política almeja então se amplia, dado que este conceito-princípio pode estar presente em vários níveis da produção de cuidados de saúde, da recepção do usuário à gestão e planejamento das ações. Contudo, um elemento isolado desta proposição (valorização dos sujeitos, fomento de autonomia e protagonismo etc) não parece garantir a identidade de um projeto de humanização, pois sua aplicação estaria aberta a inúmeras possibilidades de leituras formalizantes e burocratizadas. Regina e Eduardo assumem este dilema: uma política não pode ser genérica a ponto de se confundir com os próprios princípios do SUS, nem cair na especificidade de uma definição ortopedicamente reguladora. Apontam um elemento diferencial do que poderia ser um eixo identitário da proposta de humanização: processos de subjetivação transformadores, isto é, envolvendo sujeitos coletivos que nas práticas concretas e cotidianas transformam o modo de produzir cuidados de saúde, transformando-se a si também. Daí a estratégica posição que a proposta de humanização passa a desfrutar ao ter o estatuto de uma Política. Aglutina um poder mobilizador de debate e de ações que não haveria se fosse vista como mais uma diretriz das ações de saúde.

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Ao pensar nesses processos de subjetivação voltamos ao jogo das interações, das relações face-a-face que constróem o cotidiano do que costumamos chamar de “assistência”. Mas, como sabemos, este projeto somente se realiza se for tomado como um modo de gestão, um modo de realizar a atenção em saúde, uma praxis. Carece, portanto, de estratégias não só de produção, mas de reprodução deste modelo. Neste sentido, o investimento na formação de profissionais e gestores é estratégia importante, cuja sustentabilidade se dá a partir da disseminação de mecanismos ideológicos contrahegemônicos e de alianças que garantam adesão e continuidade de tal projeto. Cabe ainda indagar, qual modelo se deseja? Certamente esta resposta só é possível a partir de múltiplas vozes e expressões. A PNH (Brasil, 2004) defende como “marcas” a serem atingidas um atendimento resolutivo e acolhedor, combatendo a despersonalização a que são submetidos os usuários dos serviços, garantindo-lhes seus direitos instituídos em “códigos dos usuários”, além de garantir educação permanente aos profissionais bem como a participação nos modos de gestão. Sem entrar na argumentação destas marcas propostas, que por si só dariam longa reflexão, penso que dois desafios se apresentam à construção deste modelo e, conseqüentemente, aos seus agentes: a produção de um cuidado orientado pelo reconhecimento de pessoa (o sentido de ser membro, de pertencimento a um ethos, a uma cultura, a um grupo que define os próprios significados do “eu”) e de sujeito (o sentido de uma identidade a partir de uma biografia singular, articulada a uma cultura, capaz de dotar de legitimidade a autonomia de cada um). Resgato aí a crucialidade da politização do estatuto de pessoa e de sujeito. A definição de pessoa passa pelo reconhecimento e respeito a outros e distintos referenciais culturais. A noção de sujeito nos lança ao discurso ético da autonomia, das escolhas e decisões à luz das condições de gênero, posição social e etnia/raça. É sempre oportuno perguntar quem goza do status de pessoa e de sujeito nas práticas de assistência prestada nos serviços de saúde? Quais capitais de protagonismo e autonomia os diferentes atores usufruem? Quais as margens e mecanismos de negociação e ampliação destas fronteiras? Penso que buscar enfrentar estas questões é, como bem pontuam Regina e Eduardo, criar as bases de um movimento realmente instituinte do projeto de humanização em contexto ao ideário do SUS. Referências: BENEVIDES, R.; PASSOS, E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Ciênc. Saúde Colet., v.10, n.3, 2005. (no prelo). BRASIL. Ministério da Saúde. 2004. Política Nacional de Humanização. Disponível em: <http:// portal.saude.gov.br/saude/area.cfm?id_area=390>. Acesso em: 5 fev. 2005. CASATE, J. C.; CORRÊA, A. K. Humanização do atendimento em saúde: conhecimento veiculado na literatura brasileira de enfermagem. Rev. Lat-Am. Enfermag., v.13, n.1, p.105-11, 2005. DESLANDES, S. F. Análise do discurso oficial sobre humanização da assistência hospitalar. Ciênc. Saúde Colet., v.9, n.1, p.7-13, 2004. DESLANDES, S. F. A ótica de gestores sobre a humanização da assistência nas maternidades municipais do Rio de Janeiro. Ciênc. Saúde Colet., v.10, n.3, 2005. (no prelo). PUCCINI, P. T.; CECÍLIO, L. C. O. A humanização dos serviços e o direito à saúde. Cad. Saúde Pública, v.20, n.5, p.1342-53, 2004.

Recebido para publicação em: 28/06/05. Aprovado para publicação em: 04/07/05.

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RÉPLICA Hentre Hos Hanimais Hestranhos Heu Hescolho Hos Humanos Arnaldo Antunes

Nunca escrevemos sós, não apenas porque podemos fazer um texto em parceria (como é o nosso caso), mas também e, sobretudo, porque em qualquer situação escrevemos para alguém, sempre acompanhados e provocados por esse outro que, geralmente, se mantém invisível: o leitor. É um privilégio, portanto, escrever na sessão Debates da revista Interface, quando podemos dar visibilidade ao plano de interlocução que faz do texto uma realização de muitos. Ter Gastão Wagner, Denise Gastaldo e Suely Deslandes como debatedores nos auxilia na tarefa sempre incompleta de construção de argumentos acerca de um tema complexo como o da humanização da saúde. Mais ainda, ter estes debatedores que se colocam ao lado para pensar o tema é prazer e certeza do compromisso de construção da saúde pública no Brasil. Vamos tomar como caminho, nesta réplica, não uma discussão individualizada com cada um dos debatedores, cujos textos mais que comentar, propuseram inflexões singulares e clarificadoras para o problema em debate. Extrairemos algumas linhas que atravessam os textos e que, acreditamos, nos auxiliam no esclarecimento das idéias. Linha 1: desnaturalização e não relativismo Defendemos a humanização como um conceito-experiência que enquanto tal exige a crítica à maneira sintomática com que ele vem se apresentando no campo da saúde. Ir do conceito-sintoma ao conceito-experiência é realizar a desnaturalização de práticas ditas humanizantes que perderam a força de problematização do já instituído. Desnaturalizar o conceito de humanização impõe, portanto, apontar para o jogo de forças, conflitos ou poder que institui sentidos hegemonizados nas práticas concretas de saúde, apostando, em contrapartida, na criação de um novo modo de fazer. Mais do que um novo objetivo ou uma nova meta, este modo de fazer pressupõe, então, um reposicionamento dos sujeitos implicados no processo de produção de saúde, criando-se as condições para a crise de uma subjetividade assujeitada a padrões já cristalizados em práticas de saúde não democráticas, com baixo padrão de responsabilização e de manutenção de privilégios de classes socio-culturais, de gênero, de categorias profissionais etc. A operação de desnaturalização desestabiliza as formas dadas e os seus sentidos sedimentados, fazendo aparecer o plano de produção tanto das práticas instituídas no campo da saúde quanto dos sujeitos comprometidos com a reprodução dessas práticas. Tal plano se caracteriza, de fato, por uma multiplicidade de determinantes, de maneira que esta sobredeterminação nos impede de supor uma relação de causalidade linear que garantiria a primazia de qualquer um dos vetores (econômicos, culturais, de gênero, étnicos etc) e, conseqüentemente, uma homogeneidade dos efeitos. São muitos determinantes, sendo múltiplos também os seus efeitos, o que torna o campo da saúde uma realidade complexa e heterogênea, onde convivem diferentes práticas, diferentes

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valores e diferentes atores. Cairíamos assim num relativismo? Afirmar que a aposta da humanização do SUS se faz pela produção de subjetividades nos levaria a ter que equivaler, igualar os diferentes atores presentes no campo? Precisamos dizer, então, que subjetividades díspares produzem a realidade e são produzidas (não são naturais, portanto) a partir deste plano de multideterminação que não deixa de ter direções em conflito, lutas por hegemonia. Há seguramente subjetividades-vítima, subjetividades-privilegiadas que, mais do que serem produzidas, reproduzem modos de funcionamento que ainda prevalecem. É justamente por entendermos que as subjetividades são produzidas, que o trabalho de explicitação do plano de produção do instituído deve ser acompanhado por um outro trabalho que é o de criar condições para a emergência de efeitos-subjetividades compatíveis com as mudanças das práticas de saúde preconizadas pelo SUS. Trata-se, portanto, de uma aposta na produção de subjetividade com uma orientação que retoma, é verdade, os princípios do SUS (o que faz do conceito da humanização um “conceito-princípio”). No entanto, esta orientação não ganha um sentido prescritivo forte nem tampouco programático, mantendo-se apoiada em valores que norteiam um processo de produção sem a definição explícita dos tipos de subjetividade a serem alcançados ou da imagem ideal de uma realidade almejada. Mas como valorar a autonomia, o protagonismo, a coresponsabilidade, a co-gestão, pré-determinando o que se espera alcançar a partir da ação inventiva desses sujeitos comprometidos com o processo de produção de saúde? Afirmar a inseparabilidade entre processo de produção de saúde e processo de produção de subjetividade é para nós uma direção ético-metodológica que deve sustentar uma política de humanização do SUS. É bem verdade que a noção de método, aqui, subverte seu sentido tradicional, pois que no lugar de pressupor uma definição prévia da meta a ser alcançada (meta-hódos), investimos num processo de construção coletiva das metas elas mesmas. Humanizar ganha, então, este sentido de uma prática coletiva ou de um caminhando (hódos) que só coletivamente constrói suas metas (hódo-meta). Linha 2: A noção de coletivo como um terceiro termo O conceito de humanização, como direção privilegiada para uma política pública de saúde, pressupõe a desestabilização do caráter unitário e totalitário de Homem. É no concreto das práticas de saúde que experiências subjetivas singulares ganham efetivamente a capacidade de transformação dos modelos de gestão e atenção. Tais experiências concretas se dão numa tensão com um padrão-ideal que se impõe como força sobrecodificadora e repetidora do instituído. Humanizar, neste sentido, é valorizar menos o Homem do que um homem-qualquer que, em sua concretude, é sempre variação do padrão trazendo sua história, suas características, seu gênero, etc, como fatores decisivos no processo de produção de si e do mundo. O SUS enquanto resultado de um movimento instituinte pela democratização na saúde, se fez tomando a saúde como um tema a um só tempo público e coletivo. Qual o lugar do indivíduo aí? A defesa dos direitos à saúde não pode ser entendida sem consideramos o dever do Estado em garantir aos indivíduos universalidade de acesso, integralidade na atenção e equidade na distribuição dos recursos com participação em todas as instâncias. Para o SUS , o que é direito de qualquer um só se sustenta no direito que é de todos. Assim, coloca-se como desafio a superação da dicotomia indivíduo/ sociedade. Esta superação, acreditamos, deve ser orientada pelo conceito de coletivo enquanto um terceiro termo que não se reduz nem a um conjunto de

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indivíduos com sua heterogeneidade em conflito, nem ao pertencimento a uma cultura entendida como um conjunto de regras ou formas de sociabilidade. O coletivo é por nós pensado como um plano que está aquém ou além das formas, portanto, aquém e além das pessoas e aquém e além das regras instituídas. Este plano é o das forças instituintes identificadas com os movimentos sociais, plano impessoal para o qual não podemos ter uma atitude prescritiva nem determinar antecipadamente as formas nas quais os princípios do SUS se atualizarão. Afirmar, como insistimos, a inseparabilidade entre singular e coletivo não pode significar o encobrimento de conflitos e tensões que caracterizam o plano das forças de produção da realidade, seja das práticas de saúde, seja das práticas de si. Esta inseparabilidade não equivale a uma indiferenciação, mas ao contrário, indica o sentido positivo do processo de produção enquanto diferenciação. A ênfase, portanto, para uma política de humanização da saúde deverá incidir mais nos processos de diferenciação do que numa coletânea de diferentes. A questão não é da defesa dos diferentes tipos de práticas e sujeitos atuantes no campo da saúde, mas sim do que pode diferir do já instituído. Linha 3 : A ressonância das lutas pela democracia e a humanização como prática de resistência Sim, a humanização é um conceito-experiência, um conceito-princípio, um conceitosíntese. É só pelo “reencantamento do concreto” que o conceito de humanização deixa o domínio abstrato dos princípios para se atualizar como política pública agindo nos e pelos coletivos. O que o conceito sintetiza, portanto, é uma dupla face da concretude na qual ele está sempre inscrito: a das práticas e a dos sujeitos. Humanizar a saúde nos compromete não com regras abstratas, que poderiam conduzir a um fundamentalismo dos princípios do SUS, mas à alteração das práticas de saúde e dos sujeitos aí implicados. São exatamente nestas práticas (concretas) e com estes sujeitos (concretos) que o processo de mudança pode garantir a continuidade do movimento instituinte do SUS. Seguir este movimento significa, por outro lado, manter-se numa atitude de resistência no duplo sentido da palavra: de oposição e de criação. Resistimos quando nos opomos ao modo como o socius está organizado de maneira a reproduzir valores, práticas e instituições competitivas e violentas. Por outro lado, no sentido positivo de resistência, a humanização deve ser entendida como afirmação da solidariedade e da potência de criação do coletivo. Neste sentido, consideramos que diferentes lutas ressoam na direção da democratização das relações, fazendo com que políticas públicas de saúde estejam conectadam com todas essas outras lutas que no contemporâneo se sintonizam com a defesa da vida. Regina Benevides e Eduardo Passos

Recebido para publicação em: 07/07/05. Aprovado para publicação em: 11/07/05.

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livros

Las historias en los tiempos del cóler a cólera

BRIGGS, C.; BRIGGS, C. M. Ed. Nueva Sociedad, 2004. 483p.

O retorno silencioso do cólera Uma calamidade é geralmente uma “presa” de narrativas, como a dos noticiários jornalísticos, dos relatórios das fontes institucionais – defesa civil, serviços de saúde, obituários, policiais etc – ou ainda dos imaginários, junto a quem ela sobra como alguma coisa, povoando lembranças ou a memória dos que sobrevivem, inclusive daqueles que puderam dela ainda dizer algo. Sobram, assim, relatos peculiares, sobre a epidemia do cólera, ocorrida na Venezuela, nos anos de 1992/1993, feito pelos pesquisadores Charles Briggs e Clara MartiniBriggs, na forma de livro, “Las histórias en los tiempos del cólera”, publicado em espanhol pela Editora Nueva Sociedad, em sua primeira edição, no ano passado. O livro não é apenas um relato técnico, escrito a quatro mãos - um antropólogo e uma sanitarista - que, em tempos recentes, estiveram literalmente afetados com o cólera, lá nas áreas venezuelanas que foram largamente afetadas pela epidemia. É um múltiplo documento, antes de tudo, de caráter humano e no qual se misturam vários textos ou “posições de leitores” assumidas pelos autores. Nele se manifestam, além das marcas enunciativas da epidemiologia e da medicina social, a fina e sólida investigação antropológica; a agilidade da metodologia jornalística da apuração e da cobertura: a

sensibilidade estética para com a organização das mensagens fotográficas, que por si só, “fazem falar os objetivos deste produto editorial; o texto analítico do pensador social e formulador das políticas; sem esquecer, os cuidados com a análise dos discursos, segundo as referências das “boas escolas” que permitiram aos autores “deixar falar” os diferentes atores sociais protagonistas deste comovido e complexo episódio. A resenha de um texto significa sempre a “tomada de posição” daquele que a elabora. Exercício textual, sobre o texto, o qual deve provocar aquele que o lê, sem contudo, atraílo como presa ao seu “contrato de leitura”. De qualquer modo, o leitor é convidado, pelos “efeitos de discursividade” da estratégia enunciativa, a entrar na cena e seguir, como um co-protagonista, os autores nas suas estratégias narrativas, colocando-se, assim, como uma espécie de um co-enunciador. Para isso, o livro é pródigo de fortes recursos, na medida em que além do estilo dos autores, está tecnicamente bem editado, reunindo com clareza a articulação entre as mensagens - textos, imagens fotográficas, notas de pés de páginas, índices de matérias, e sem esquecer a fala de outros protagonistas, igualmente presentes, que são os atores sociais. O leitor (resenhador) é convidado a co-dividir com os autores uma rica reflexão para dar conta do modo de ser de uma

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LIVROS

sociedade que sofre por dentro os efeitos do que “vem de fora” também para conhecer os mecanismos de funcionamentos dos seus poderes; as disputas entre os diferentes campos sociais envolvidos com a epidemia e a eficácia dos discursos como possibilidades de nomeação e de explicação dos enfrentamentos a que são submetidas as pessoas pobres. Esta obra, ao falar a respeito da epidemia, é antes de tudo um estratégico pretexto sobre o modo de ser do que, antigamente, chamava-se de sociedades dependentes e hoje interligadas pela globalização. Certamente não sabemos em quanto tempo este livro foi escrito, mas os efeitos de sua escritura deixam a entrever que sua produção parece ter ocorrido “em ato”. Na medida em que Charles e Clara ali estavam com vários sentimentos e, dali recolhiam os materiais que eram levados para seus “manuais de campo”, de onde saíram quase que intactos para a forma editorial, a tal ponto que estas duas formas de recolhimentos e edição de materiais se confundem. Pode-se afirmar que se trata de um livro permeado por uma outra temporalidade, aquela na qual se realiza a convergência entre o lugar da intervenção profissional e o do analista e do crítico social, e o de seres humanos solidários com a dor, a desolação e o sofrimento diante da penúria alheia. Aquele que resenha deve, contudo, ter cuidado para não se regozijar, solitariamente, com os efeitos da sua leitura. Leal à expectativa formulada por uma demanda, que prevê antes de tudo que a primeira leitura seja submetida a outras pessoas, o trabalho daquele que resenha deve, assim, apresentar a obra a fim de que o possível leitor possa para ela se deslocar, participando assim de um protocolo interpretativo. É o que propõe a resenha sobre o livro de Charles e Clara, chamando atenção para o “índiceconvite” de endereçamento às questões por eles tratadas.

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A natureza da construção da epidemia O livro está organizado em 13 capítulos, ou se preferirmos, momentos, que não deixam de ser espécies de cenas. No capítulo 1, descrevem os autores os investimentos discursivos realizados pelas agências internacionais, nacionais, das mídias e governamentais que estruturam um “cinturão interpretativo” e que operou como a única referência a possibilitar aos venezuelanos as noções sobre a epidemia. Espécie de transação de discursos entre agentes dos diferentes campos, as causas da epidemia já são forjadas no âmbito destas “máquinas-significantes”. A doença começa a partir de narrativas. Constrói-se a “retórica da culpa”, na medida em que o cólera está associado à pobreza, pois sua ocorrência é reportada à existência de pobres, com ambulantes, migrantes e vendedores sendo transformados em bodes expiatórios. Explicase a existência de uma patologia associada à questão geográfica-fronteiriça (epidemia que é causada pelo Peru); e ainda opta-se por um modelo informativo cujo papel do “braço midiático” é instaurar em suas “políticas de sentidos” uma divisão entre indivíduos salubres e insalubres. O capítulo 2 descreve o processo de intervenção das diferentes agências especializadas, com suas respectivas metodologias, para enfrentar a epidemia. Destaca que as preocupações dominantes, especialmente as da esfera política, e as do Estado, eram mais no sentido de legitimar as ações institucionais envolvidas, do que considerar a epidemia de sua perspectiva estrutural, ou da própria realidade social e histórica da população. Sobre a intervenção das diferentes instituições, lembram os autores que não se trata de uma mera intervenção técnica na medida em que subjacente aos procedimentos, estão colocados fundamentos que ajuízam a existência do cólera por parte dos discursos das instituições. Tais construções cuidam, como decorrência, de orientar as práticas sanitárias segundo critérios discriminatórios

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pelos quais a população é colocada num lugar de passividade, mesmo sobre “suspeita” face às políticas e campanhas de esclarecimentos. Sendo causadora da crise e da epidemia, a população (leia-se os pobres) deve efetivamente se colocar no lugar de paciente, pois seus membros devem ser tratados como insalubres, enquanto marginais. O capítulo 3 chama atenção para a existência de outras discursividades, ou seja, as narrativas sobre a epidemia das próprias populações vitimadas pelo cólera. São relatos atravessados por vários imaginários e/ou lógicas de inteligibilidades que, contudo, não sensibilizam os setores científicos, políticos, sanitários etc. Tais narrativas têm um “efeito interno” sobre a própria população: criar significados específicos, restabelecer “fios de memórias”, enfatizar o papel de certos rituais como possibilidades de levar o corpo à superação da dor, dos seus incômodos e de morte; abrir as possibilidades de novas percepções sobre o momento em que viviam as populações pobres. Contudo, a eficácia desta narrativa não conseguiu permear os cinturões discursivos oficiais sobre a epidemia, e este nos parece um aspecto central nesta obra: mostrar que o enfrentamento de fenômenos biológicos, culturais, políticos etc, passa necessariamente por políticas de disputas de sentidos. Nestas circunstâncias, como dizem os autores, nenhuma história contada pela população teve a possibilidade de influir na forma como outras pessoas perceberam e reagiram diante da epidemia. Segundo a hipótese deles, as populações foram proibidas de enfrentar a epidemia, na medida em que seus relatos, segundo suas respectivas lógicas, não foram levados em conta por aqueles que definiam as políticas institucionais. Um olhar mais específico sobre o modo de enfrentar o cólera no contexto de uma pequena clínica de província, é o tema do capitulo 4. São descritos os procedimentos para coibir o vírus e atender a população num contexto de sofrimento e de extrema pobreza. O que nos parece mais rico nas

observações desses momentos, da parte dos autores, é o fato de chamarem atenção para os modos pelos quais os protocolos de conhecimentos de prestação de socorro são avaliados e, conseqüentemente, criticados segundo a lógica do povo. Este aspecto é exemplificado da seguinte maneira: as pessoas são separadas pelo atendimento do pessoal de saúde, na Clínica, segundo os níveis de gravidade de sua situação. E, passam a ser chamadas pelo nome, para serem atendidas, no caso, receberem medicamentos. Uma mulher, insistentemente chamada pelo nome, não comparece ao atendimento, somente o fazendo momentos depois. Tentando compreender porque ela não respondera à convocação, a mulher é inquirida por um médico, mas permanece calada. Mas um outro paciente, responde no seu lugar: “o problema é que esta gente chegou cansada de tanta diarréia, depois de horas de viagem, e portanto, aqui, uma pessoa não tem que ter nome para que lhe dêem esta pastilha”. A explosão da crise, com desdobramentos no tecido social são tratados nos capítulos 5 e 6, nas quais particularmente se descreve alguns processos de contenção mobilizados pelas instituições visando evitar que a epidemia fornecesse munições para movimentos sociais que, por seu turno, concebiam o cólera como algo mais amplo do que um fenômeno biomédico. Destaca-se, sobretudo, o papel das mídias, cuja cobertura em muito colaborou para a entrada em cena de intervenções conjunturais de instituições, intervenções estas que não tinham, assim, caráter duradouro. Uma das conseqüências é o confinamento de populações “suspeitas” de terem contraído o cólera, em torno de circunscrições territoriais, fenômeno este que é nomeado pelos autores como um ato de extremo racismo contra as populações indígenas, que a sua maneira, estavam dispostas a ir mais longe para protestar (cap. 7) contra as políticas de reclusão a que foram submetidas pelas autoridades sanitárias. Uma das passagens mais importantes da

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obra é a inserção da fala médica, tratada no capítulo 8. No relato, protagoniza sua inserção naquele processo, vivendo as situações de médico e de paciente. O relato dessas circunstâncias produz, como efeito, a existência de uma certa situação reflexiva em que o médico, além de um ator estratégico, é também alguém que elabora sua própria inserção naquela realidade, mas a partir de pânico, medo, miséria, de angústia e de incertezas. Mas a voz da autoridade médica desaparece enquanto tal, na medida em que ela não pode se manter, de um lugar outro, em relação à doença, pois os sintomas daquele sofrimento passam pela própria pele da medicina: o médico fora acometido pelo cólera. Isso dá origem a um duplo ponto de vista: o do especialista, que cuida, mas que ao mesmo tempo vive no corpo a experiência do outro. E a vive, de modo singular, ao narrar a ascensão do próprio quadro sintomatológico sobre seu corpo, fazendo valer como dimensões explicativas, o encontro das interpretações da medicina e da magia... À procura da causa Falar e escrever sobre o cólera – de onde veio, a quem e porque afetou – foi parte crucial das ações e os eventos que deram forma a epidemia. E, neste particular, mostram os capítulos 9 e 10 dois problemas antagônicos. No primeiro, o trabalho discursivo das diferentes instituições envolvidas com a epidemia, no sentido de construir enunciados que procuraram fazer equivaler ao cólera a uma experiência de cultura da própria população. As narrativas oficiais atribuíam à alimentação especialmente o consumo de carangueijos, e também à higiene, à geografia fluvial, como fatores causadores da manifestação do cólera entre os pobres, especialmente ainda o fato de pertencerem a classes sociais com baixos níveis culturais. Vale mencionar que algumas coberturas jornalísticas trabalhadas pelos autores mostram o papel que tem a “retórica do carangueijo” ao transformar esses crustáceos em uma narrativa epidemiológica.

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No capítulo 10, destaca especialmente um conjunto de outras lógicas construídas pelas populações, segundo estoques simbólicos muitos distintos e pelos quais outras retóricas se colocam nos horizontes em contraposição às construções oficiais. Elas operavam como uma espécie de “contra discurso”, ainda que seu grau de efetividade tenha sido limitado, diante do poder das estratégias discursivas e análises oficiais, que tratam, a seu modo, de “silenciar” outras histórias. E o fizeram, pelo que é cuidadosamente apontado pelos autores, ao revelar o papel das técnicas muito sintomáticas: a estatística e sua leitura associando a epidemia a uma existência de valor social (capítulo 11). Nos capítulos finais (12 e 13), os autores mudam de cenário: saem das localidades pobres de Tucupita, Barrancas e Mariusa, onde o cólera dizimou as pessoas, para dizer que as origens do cólera estão noutros lugares, no caso no ambiente das grandes instituições que tiveram um papel decisivo na determinação do seu curso nas regiões pobres da Venezuela, particularmente. O cólera é uma “sombra discursiva” discursiva”, isto é, uma decorrência de práticas de narrativas, feitas na forma de protocolos vários, esboçados pelas políticas das instituições: documentos, papéis, manuais, papers, estatísticas, e outros discursos frutos de transações de modelos e de interesses. Estes protocolos, segundo eles, são a gênese da epidemia. Talvez, dizemos nós, os efeitos da informação que “excede”. Falam que, se as instituições fossem outras, ou tivessem outras concepções políticas, os efeitos do cólera sobre as populações, ou os modos de combatê-lo, seriam igualmente, outros. Como os efeitos foram limitados, danosas foram suas conseqüências, na medida em que o cólera e as políticas de combate deixaram rastros, especialmente a deterioração da vida das pessoas. Se outrora, populações indígenas foram acantonadas em ambientes para se conter a corrida do vírus, dizem os autores, depois, “o índio deixou de ser um

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personagem distante”, ou escondido pela reclusão das instituições, para se converter num personagem midiático ao perambular como esmoler pelas ruas de Caracas. A isso, chamam do “retorno silencioso do cólera”... Este livro é uma reflexão vigorosa – um texto de amor nos tempos de cólera – sobre o papel das narrativas na construção das inteligibilidades, especialmente aquelas sobre fenômenos que afligem as maiorias, hoje, ainda privadas até mesmo das possibilidades de proferir discursos, e fazerem valer suas próprias narrativas. Convidam-nos, os autores, com esta obra, a uma outra

militância: operar e analisar discursos e seus efeitos para que se possa ajudar, ali, onde estão as pessoas, aqueles que precisam de algo, que necessitam ser conectadas aos regimes de reconhecimentos. Somente assim, poderemos superar o que chamam a cumplicidade global cujas políticas, apesar de dissimular discursivamente, continuam a produzir a enfermidade e a morte. Antônio Fausto Neto Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, RS <fausto@icaro.unisinos.br>

SÍLVIA MECOZZI

Recebido para publicação em: 19/04//05. Aprovado para publicação em: 27/04/05.

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Par to normal ou cesár ea? O que toda mulher dev arto cesárea? devee saber (e todo homem também) DINIZ, S. G.; DUARTE, A. C. Editora UNESP, 2004. 179p.

A cesariana é a cirurgia de grande porte mais freqüentemente realizada nos Estados Unidos e (também) a mais freqüente cirurgia realizada sem necessidade. Hoje em dia, cerca de uma em cada quatro mulheres que ultrapassa as portas de um centro obstétrico será submetida a uma cirurgia abdominal de grande porte. Muitas dessas operações, que apresentam riscos de complicações maternas, inclusive morte, maiores que os partos vaginais, são medicamente desnecessárias. É impensável que a cirurgia cesariana desnecessária seja cotidianamente realizada em milhares de mulheres, esbanjando valiosos milhões de dolares dos serviços de saúde, enquanto quase 40 milhões de americanos não têm acesso aos serviços básicos de saúde. (Gabay & Wolfe, 1994, p.7. tradução da autora da resenha)

O relatório Unnecessary Cesarean Sections – Curing a National Epidemic, publicado pelo Public Citizen’s Health Research Group (1994), também denunciava que, dos 3.159 hospitais para os quais havia dados disponíveis, a mais alta taxa de cesáreas encontrada era de 63,7%, seguida de outro hospital com taxa no valor de 57,1%. Referia, por outro lado, a satisfação de haver

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encontrado ao menos noventa hospitais notoriamente recomendáveis: esses apresentavam taxas de cesárea inferiores a 15% e taxas de parto normal após cesárea (PNAC) iguais ou superiores a 45%. Se no hemisfério Norte valores assim elevados de cesarianas são considerados ultraje ao bom exercício da Obstetrícia – que podemos dizer de nosso país? Terá essa epidemia migrado para nossas plagas? Teremos conseguido impedir que nossos profissionais se ‘contaminem’ dessas práticas inadequadas? Infelizmente, a situação aqui é ainda mais grave: já há algumas décadas essa epidemia ‘contagiou’ nosso país, e pesquisas mostraram que a prática obstétrica em nossos hospitais não é nada exemplar – ao menos no estado de São Paulo, houve hospitais que chegaram a praticar taxas de até 100%!!! (Rattner, 1996). Apesar das medidas adotadas pelo governo federal e até por alguns seguros-saúde para coibi-las, o número de cesáreas desnecessárias continua a ascender, mostrando que outras estratégias, além das governamentais e coercitivas, se fazem necessárias. É inquestionável que a indicação de cirurgia é atribuição dos médicos. Mas até que ponto as mulheres não foram involuntariamente cúmplices, por absoluto

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desconhecimento de como seu corpo funciona e de qual a lógica que subjaz no aconselhamento profissional que muitas recebem durante o acompanhamento prénatal? Ou por terem embarcado na ‘moda’ de que cesárea é parto ‘tecnologicamente avançado’? Mais prático, não requer preparação, é possível agendar, e outras ‘vantagens’? Mulheres (e homens!) agora já podem contar com muita informação, e informação é poder! É o poder de compreender o que se passa para poder fazer escolhas sobre o que é melhor para si e para poder negociar, com o profissional que a acompanha, como deseja que seja atendido o seu parto Vale a pena – de forma esclarecida e lutar por um parto consciente. Este singelo livro é normal depois da o mapa da mina para quem cesárea? anda em busca do bom parto! p.133

O livro elucida em linguagem acessível os mais recentes avanços do conhecimento: esclarece os fundamentos da medicina baseada em evidências científicas; comenta sobre o contexto da atenção ao parto em nosso país; em linguagem coloquial, por meio de perguntas e respostas, vai, pouco a pouco, iluminando o trajeto para quem busca saber mais: Como é a dor no caso da cesárea? Por que o parto dói? O que é a dor provocada pela assistência ao parto (dor iatrogênica)? O que é mais seguro, para a mulher e o bebê, o parto normal ou a cesárea? Por que, no Brasil, não se O que me dá pânico informam adequadamente de parto é pensar em os riscos da cesárea ou dos cortar minhas partes procedimentos usados no mimosas. Toda mulher parto? Por que é tem que fazer o tal importante manter o pique para o bebê perineo íntegro no parto? O nascer? Se for preciso que deixa a mulher mais cortar embaixo, prefiro satisfeita: o parto normal uma cesárea. p.95 ou a cesárea? Adotando um tom bem humorado para suas explicações, vai desvendando de quem

deve ser o protagonismo no parto, se da mulher e seu bebê, ou do profissional – e como pode ser em cada caso. Numa perspectiva feminista, de empoderamento feminino, vai sendo constituído o cenário Em meu livrinho de para o parto do seu convênio há quase desejo: com presença cinqüenta nomes de de acompanhante? médicos. Se eu marcar De doula? Onde? uma consulta por Qual profissional semana, vou chegar no prestará assistência? final da gestação sem Como fazer a lista de conhecer todos eles. expectativas (plano Como encontrar um de parto)? Como bom profissional de negociá-la com o saúde para me acompanhar na profissional? Quais gestação e no parto? são os sinais de que o p.69 profissional tem escuta para essas expectativas e pretende atendê-las? E quais os sinais que apontam para o oposto? Por outro lado, não omite que, às vezes, a cirurgia pode ser indicativa, essencial para o sucesso da finalização de uma trajetória de nove meses de espera. O capítulo ‘Quando a cesárea é necessária’ informa de forma honesta e sem o subterfúgio do linguajar técnico as ocasiões em que a cirurgia deve ser indicada, ao mesmo tempo em que aponta alguns dos artifícios adotados por maus profissionais para induzir a mulher a acreditar que a cirurgia se fez Esta semana encontrei uma amiga e ela disse que o médico necessária (falta recomendou uma cesárea porque de dilatação, o bebê estava com o pé bacia muito enganchado na costela dela. Mas estreita, bebê se o bebê está no útero, como o pé muito grande, dele estava preso na costela? Juro gestante jovem que não entendi. p.119 demais (adolescente), gestante idosa demais... É de forma bem carinhosa que as autoras introduzem o homem – o companheiro – no cenário: “a participação do parceiro não deve ser pensada como um dever, uma

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obrigação, mas como um direito, que pode ou não ser exercido”. No mesmo estilo coloquial e bem humorado vão sendo oferecidas respostas aos questionamentos que porventura o parceiro possa colocar. No contexto atual de recente sanção do Presidente à tão aguardada Lei do Acompanhante – Lei 11.108 de 7 de abril de 2005 -, esse capítulo é Gostaria muito de um grande recurso para estar no parto. Aliás ela esclarecer e dar está me cobrando segurança aos isso. Mas passo mal companheiros que só de estar em um desejam ser mais hospital. Tenho medo participantes. Salientede desmaiar na hora. se, todavia, que a lei Isso aconteceu com dispõe que o/a um amigo meu. Não é acompanhante será a coisa de boiola, para pessoa de escolha da outros assuntos eu mulher – contemplando sou muito macho. p.149 mulheres que eventualmente não tenham companheiro. Diferentemente do livro do insigne escritor Michel Odent - também lançado recentemente (2004), um outro excelente recurso que aborda questões referentes à cesárea, principalmente nas perspectivas antropológico-cultural, obstétrica, primal (da sabedoria instintiva primitiva) e reflexiva este é um guia eminentemente prático, com respostas claras às questões que podem afligir quem busca uma vivência enriquecedora do nascimento de sua criança. Ao final consta um glossário de termos do âmbito médico e uma lista de outros recursos de informação, como livros, vídeos e páginas da internet recomendadas: recursos eletrônicos disponíveis para quem busca mais informações para consusbstanciar uma decisão consciente e informada. Com 179 páginas e preço bem acessível (R$ 22,00), em breve se tornará referência constante para casais (e, possivelmente, para profissionais de saúde abertos a questionamentos da prática obstétrica atual). Se a consumidora tem sempre razão e muitas mulheres decidirem que não abrem mão da vivência

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enriquecedora de um parto normal, com tudo o que lhes é de direito, certamente este será o “ponto de mutação” das curvas ascendentes de nossas taxas de cesarianas desnecessárias. Enfim, como consta na capa posterior, este livro valoriza as dimensões saudáveis, positivas, emocionantes e belas da experiência do parto, para que não seja vivido como uma tortura imposta às mulheres pelo pecado original ou pela natureza, mas, sim, como uma experiência emocional, social e corporal saudável, uma aventura humana que pode ser vivida com segurança graças às técnicas disponíveis.

Ou, como também foi comentado por Maria Cecilia Dias de Miranda (2005), a respeito do lançamento: “É mais do que um livro, um coringa para trazer no bolso. Tudo aquilo que precisávamos para virar a maca, quero dizer dobrar a mesa.” Daphne Rattner Área Técnica de Saúde da Mulher, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Ministério da Saúde. <drattner@ibest.com.br>

Referências GABAY, M.; WOLFE, S.M. Unnecessary cesarean sections: curing a national epidemic. Washington (DC): Public Citizen’s Health Research Group, 1994. (brochura) RATTNER, D. Sobre a hipótese de estabilização das taxas de cesárea no Estado de São Paulo. Rev. Saúde Pública, n.30, p.19-33, 1996. ODENT, M. A cesariana. Florianópolis: Saint Germain, 2004. MIRANDA, M. C. D. Lista de discussão. Disponível em: <rehunabrasil@yahoogrupos.com.br>. Acesso em: 23 mar. 2005.

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Recebido para publicação em: 13/05//05. Aprovado para publicação em: 20/05/05.


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A mediação da cultur a docente na formação médica cultura

URTIAGA, M. E. O. Editora Universidade Federal de Pelotas, 2004. 180p.

O tema da formação médica tem atraído progressivamente o interesse de pesquisadores e gestores da área da saúde, havendo o entendimento que ele é central para a organização do sistema de saúde no Brasil e para o futuro da medicina em nosso país. Enfoques diversificados como medicina e tecnologia, ética, graduação, reforma de currículo, métodos pedagógicos, pósgraduação, tendências de mudanças, mercado de trabalho, organização do Sistema Único de Saúde, saúde coletiva, entre muitos outros, estão sendo abordados por diferentes autores e a literatura disponível, antes escassa, é enriquecida constantemente, nos últimos anos. O texto de Maria Elizabeth de Oliveira Urtiaga, da Universidade Federal de Pelotas, traz algumas novidades de abordagens importantes que faz com que ele se saliente entre os demais, provavelmente devido à própria formação singular da autora: médica, com especialidade em Capacitação Docente em Medicina Geral, em Ciências Políticas, em Teoria e Técnica Psicanalítica Aplicada à Psicoterapia, desenvolve ainda projetos de extensão e ensino na área de Bioética. Ela nos disponibiliza agora sua dissertação de mestrado, que aborda o estudo da subjetividade do professor de medicina e a relação dele com seus alunos, em forma de livro.

O foco na função mediadora do professor e na cultura docente, insistentemente sustentado ao longo dos diferentes capítulos do livro, coloca-nos diante da realidade inarredável que, qualquer que seja a transformação proposta na educação médica, ela deve necessariamente passar pelo desejo dos médicos de mudanças na cultura construída por eles mesmos. Portanto, a construção de instrumentos e práticas para a promoção de novas e necessárias realidades na área da saúde, com vistas à humanização, qualificação do cuidado, e ao trabalho integrado multiprofissional e resolutivo deve envolver o conjunto dos médicos, na construção permanente do seu fazer/saber diários. Desde a seleção dos sujeitos da pesquisa, professores repetidamente homenageados pelos alunos ao final do curso de medicina e os próprios alunos, expondo os motivos de suas escolhas, ao rigor metodológico do estudo de casos com a utilização de entrevistas narrativas semi-estruturadas e uma ótima revisão bibliográfica de sustentação dos argumentos, a autora consegue manter a atenção do leitor por meio de uma escrita fluente. A função mediadora do professor diante de um aluno que não é passivo, mas antes é também agente do processo de ensino-aprendizado, se desnuda na pesquisa qualitativa, na qual se

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médica que forma e muitas vezes deforma o estudante, futuro profissional, é determinado pelos docentes médicos e suas práticas, fica evidente a importância de construir este diálogo de mudança pela reflexão conjunta de médicos em geral, docentes, alunos, usuários, gestores públicos e privados e muitos outros representantes da sociedade civil. Esta complexa mensagem é sugerida ao longo do agradável e sensível texto da docente de medicina Maria Elizabeth Urtiaga, que nos oferece mais esta obra sobre a educação médica, que enriquece, a partir de agora, a biblioteca dos estudiosos e interessados no tema.

SÍLVIA MECOZZI

salientam aspectos históricos da vida acadêmica, o afeto presente na relação entre professores e alunos e os principais determinantes do complexo processo da formação de um médico. Destaca-se, por relatos fascinantes, o ambiente cultural docente, no qual a figura do professor surge como modelo a ser observado e imitado ou mesmo refutado. A reflexividade crítica da autora não deixa de apontar os principais problemas presentes na educação médica e não perde a dimensão de que esta mudança necessária é uma tarefa coletiva que precisa romper limites corporativos e buscar novos cenários para as práticas de ensino-aprendizado, que tenham como centro as pessoas, usuárias do sistema de saúde, em suas múltiplas e variadas necessidades. Se o processo de internalização da cultura

Rogério Amoretti Diretor Técnico do Grupo Hospitalar Conceição Porto Alegre, RS <ranna@terra.com.br>

Recebido para publicação em: 21/02//05. Aprovado para publicação em: 03/03/05.

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teses

Cuidando de quem cuida: cuida notas cartográficas de uma intervenção institucional em prol da montagem de uma equipe de saúde como engenhoca mutante para produção da vida

Looking after car etakers: cartographical notes regarding institutional intervention for setting up a caretakers: healthcare team as a changing device for the production of life. Esta é uma pesquisa cartográfica que conta a análise e intervenção institucional produzidas com trabalhadores de saúde de uma Unidade Básica do município de Ribeirão Preto, que também dispõe de trabalhadores do Programa de Saúde da Família. Propõe-se delimitar as linhas em produção molares, moleculares e de fuga, os “marcos” acerca do trabalho produzido na Unidade e também da produção da equipe de saúde nesse cotidiano. O referencial teórico-metodológico utilizado é o da análise institucional, especialmente da linha esquizoanalítica. O método é o da bricolagem em que diversos objetos, idéias, fragmentos de texto de autores de diferentes orientações teóricas são colocados lado a lado sem a pretensão da permanência ou da totalidade. A intervenção teve por norte a produção da auto-análise e da auto-gestão. Realizamos encontros grupais semanalmente, ora no período da manhã, ora à tarde, para facilitar a participação voluntária dos trabalhadores. Os encontros grupais foram gravados, transcritos e analisados. A equipe é definida como máquina a ser construída desmontando referências da totalização e da equipe grandefamília, raspando superfícies de registro e controle. Na equipe é necessário que ocorram distintas articulações de saberes e fazeres para a produção de cuidados diferenciados para os usuários e para as famílias, uma vez que suas necessidades são diferentes. Daí a terminologia engenhoca mutante: uma permanente produção e que pode ser agenciada pela supervisão externa. Construímos três territórios de análise:

Agenda, Paranóia e Aprenderes. Em cada território buscamos demarcações, ares, levezas, pesares, afetos... Agenda traz o modo como os trabalhadores se relacionam entre si e com a população para incluir ou excluir os usuários do serviço. O imprevisto próprio do trabalho em saúde faz os trabalhadores procurarem as certezas, as lógicas instituídas como o número de vagas por trabalhador médico, e resulta em diversos contornos e delineamentos no trabalho. Paranóia desenha as relações dos trabalhadores, traz momentos de resistência à mudança e de crise da equipe. Aprenderes conflui as possibilidades de transversalizar a equipe pelo seu encontro com o trabalhador agente comunitário de saúde, alguns aprendizados da própria equipe sobre si mesma, sobre o trabalho e ainda aprendizagens da equipe de análise e intervenção. Cinira Magali Fortuna Tese de Doutorado, 2003 Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. <cinirafortuna@yahoo.com.br>

Acesso versão completa: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde31032005-114033/> PALAVRAS-CHAVE: trabalho de equipe; processo de trabalho em saúde; cartografia; Saúde da Família. KEY-WORDS: team work; health care work process; cartography, Family Health Care. PALABRAS CLAVE: trabajo en equipo; proceso de trabajo en salud; cartografía; Salud de la Familia. Recebido para publicação em: 12/04/05. Aprovado para publicação em: 22/04/05.

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TESES

Encontros e desencontros entr abalhador es e usuários entree tr trabalhador abalhadores na S aúde em tr ansformação: um ensaio cartográfico do acolhimento Saúde transformação: Encounters and div er gence between healthcar ansformation: a diver ergence healthcaree workers and users in tr transformation: cartographic rehearsal of welcoming reception

Este é um estudo cartográfico da auto-análise e auto-gestão de uma equipe de trabalhadores de unidade básica de saúde, na perspectiva da produção do acolhimento. Utilizamos o referencial teórico-metodológico da esquizoanálise e a micropolítica do processo de trabalho em saúde. Destacamos três aspectos intrinsecamente relacionados: a configuração de uma nova ordem, a da sociedade mundial de controle, e o risco de esta lógica dar a tônica a práticas como as de Saúde da Família; o desafio da construção de uma grupalidade na equipe de trabalhadores, face aos intensos processos de produção de subjetividade inerentes ao trabalho em saúde; e a micropolítica da relação

trabalhador-usuário comandada por investimentos de interesse e de desejo, conscientes e inconscientes, e o modo como reproduzimos ou não a subjetividade dominante no processo de trabalho em saúde. Vai-se evidenciando que a produção do acolhimento do usuário é, o tempo todo, atravessada por questões do trabalhador, da equipe e dos processos de gestão do serviço de saúde. Em meio a dores e sofrimentos de usuários e trabalhadores, a equipe foi percebendo a produção da exclusão dos usuários camuflada por critérios técnicos, clínicos, burocráticos e administrativos, tendo grande dificuldade em afastar-se de suas próprias questões para, enfim, cuidar do usuário.

Silvia Matumoto Tese de Doutorado, 2003. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. <smatumoto@uol.com.br>

Acesso versão completa: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/tde18052004-094556/ PALAVRAS-CHAVE: acolhimento; trabalho em equipe; cartografia; Saúde da Família; organização de serviços de atenção primária. KEY-WORDS: welcoming reception; team work; cartography; Family health care; primary attention service organization.

SÍLVIA MECOZZI

PALABRAS CLAVE: acogimiento; trabajo en equipo; cartografía; Salud de la familia; organización de servicios de atención primaria.

Recebido para publicação em: 12/04/05. Aprovado para publicação em: 22/04/05.

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TESES

O ensino da Medicina atr avés das Humanidades Médicas: através análise do filme “And the band played on” e seu uso em atividades de ensino/ aprendizagem em Educação Médica

Teaching Medicine through Medical Humanities: an analysis of the movie “And the band played on” and its use in medical teaching and learning activities

O modelo epistemológico humanista na Medicina redefine o bom médico como um profissional que detém tanto excelência técnica quanto traços humanísticos. Os currículos médicos tiveram de se adaptar e se preocupar com projetos pedagógicos que dessem conta de promover o ensino/ aprendizagem desses traços humanísticos. Esses projetos têm tentado resgatar a Educação Liberal nos currículos de Medicina pela introdução das Humanidades Médicas. Esta introdução tem sido tentada ao redor do mundo nos últimos quarenta anos e requer cada vez mais novos projetos pedagógicos. Esta tese propõe o uso de uma atividade instrucional específica no campo das Artes Cinemáticas (enquanto Humanidade Médica) com a finalidade de mediar junto aos alunos a consecução de objetivos humanísticos pertinentes à Educação Médica. Pretendeu-se analisar o filme And the band played on, produzindo possibilidades interpretativas sobre ele, justificando-as e comunicando-as por meio de uma síntese elucidativa; identificar aspectos de relevância médica cujo ensino/aprendizagem pode ser mediado pela discussão estruturada do filme como atividade instrucional; compilar esses aspectos em termos de objetivos educacionais humanísticos e de sua alocação a uma das taxonomias de objetivos educacionais nas Humanidades Médicas e prover exemplos concretos de possibilidades de ensino/ aprendizagem relacionadas a essa atividade instrucional. A análise fílmica abordou a obra nos seus aspectos narratológicos (como personagens e

convenções de ponto de vista e narração) e estilísticos específicos do cinema. Observou os vários eixos que geram significação no cinema (linguagem verbal, linguagem escrita, visualidade, ruídos e música). Foi macroanalítica (analisando a obra como um todo), mas necessitou de momentos de microanálise (seqüências e planos específicos). Envolveu a análise descritiva e formal da obra e sua interpretação por meio da análise interna (aspectos inerentes como iconografia e simbolismo) e externa (sistemas referenciais externos como teorias psicológicas) de sentido. Os aspectos de relevância médica passíveis de ensino/ aprendizagem pelo uso dessa atividade instrucional foram procurados e alocados nos campos das grandes taxonomias que organizam os objetivos educacionais (Taxonomia de Objetivos Educacionais, Campos de Significado e Competências). Descreveram-se possibilidades de uso do filme de duas maneiras instrucionais: assistência do filme inteiro e assistência de excertos, em ambos os casos com posterior discussão. Em relação ao filme como um todo, duas propostas interpretativas diferentes foram geradas com base no seu potencial uso no ensino/aprendizagem em Medicina. A primeira baseia-se na narrativa romanesca da crise vocacional vivenciada pelo protagonista e a segunda centra-se na análise da instância narrativa e seus dispositivos. Em relação aos excertos, pinçaram-se algumas seqüências para ilustrar alguns de seus possíveis usos instrucionais. O filme pode ser usado instrucionalmente

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com vistas à abordagem educacional de objetivos humanísticos. Esses objetivos são pertinentes a diversas áreas do conhecimento, entre as quais citam-se os Domínio Afetivo e Emocional, os Campos Ético e Sinoético, e as Competências Adaptativa, Contextual, de Identidade Profissional e Motivação para Aprendizagem Continuada.

Esses objetivos abordam áreas de conteúdo relevantes, como a relação médicopaciente, a vocação médica, o contar notícias ruins, a persona médica, o arquétipo do médico ferido, a comunicação humana e a identidade profissional médica, entre outras. Ricardo Tapajós Martins Coelho Pereira Tese de Doutorado, 2004. Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo. <ritapajos@uol.com.br>

Acesso versão completa: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5134/tde25042005-191419/> PALAVRAS-CHAVE: educação médica; Humanidades; filmes; relações médico-paciente; infecções por HIV.

SÍLVIA MECOZZI

KEY WORDS: medical education; Humanities; motions pictures; physician patient relations; HIV infections. PALABRAS CLAVE: educación médica; Humanidades; películas; relaciones médico-paciente; infecciones por VIH.

Recebido para publicação em: 01/05/05. Aprovado para publicação em: 07/05/05.

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Políticas públicas e movimentos sociais: atenção à infância e o Programa de Saúde da Família Public policies and social mov ements: attention to childhood and the Family' Health Program movements:

O presente trabalho dedica-se à investigação da implementação de dois programas sociais em uma região empobrecida da cidade de São Paulo (Brás e Belém), caracterizada pela presença de cortiços, ex-cortiços, e pela atuação do movimento social de luta por moradia urbana. Pretende-se conhecer e apreender a política de saúde firmada pela Prefeitura de São Paulo, pelo Programa de Saúde da Família (PSF), para o qual estão previstas ações de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), pessoas da própria comunidade que integram a equipe do PSF. Há, na região, a atuação de cinco ACS, dos quais três são membros do movimento de moradia. Investiga-se o processo de educação popular envolvido no trabalho dos Agentes Comunitários, sua compreensão do programa pelo qual são responsáveis pela execução nas comunidades, e como lidam com problemáticas para além do campo da saúde. Articuladamente, estuda-se o Projeto Casarão – Centro de Cultura e Convivência da Celso Garcia, que se caracterizou como parceria entre a comunidade e a Universidade, para a atenção a infância e juventude. O projeto foi desenvolvido entre os anos de 1999 e 2002. Como procedimentos metodológicos realizaram-se entrevistas com atores envolvidos nos dois programas e utilizou-se a observação participante. No Projeto Casarão trabalhou-se, também, com a pesquisa participante. Objetivou-se apreender se a implantação de políticas públicas e projetos sociais em comunidades organizadas possibilita a produção de formas de consolidação e/ou ampliação das redes sociais de suporte para a população em situação de vulnerabilidade social e/ou desfiliação (dupla fragilização social). Dentre as análises realizadas, a partir do acompanhamento do movimento de luta por moradia urbana do

Casarão, observou-se que o processo de educação popular vincula-se à participação no movimento social, porém, ao se buscar a continuidade das lutas após a conquista da casa, não há uma assunção da comunidade local por outras demandas. O PSF, por sua vez, embute potencialidades na intervenção dos ACS, porém precisa expandir seu escopo de atuação para além das demandas já reconhecidas na saúde. Quando as lideranças locais lidam com tais demandas, isto se dá mais por um investimento pessoal do que por uma diretriz governamental. Contudo, podese dizer que a criação e/ou ampliação das redes sociais de suporte pelas políticas e projetos atuais dá-se de maneira individualizada, particular, sem estruturação para a construção de macro ações nas redes sociais de suporte de comunidades em situação de vulnerabilidade social. As políticas sociais atuarão nas redes sociais de suporte dos indivíduos se ampliarem seus horizontes de intervenção e buscarem o campo intersetorial. As políticas públicas devem atuar de forma integrada com o movimento popular.

Ana Paula Serrata Malfitano Dissertação de Mestrado, 2004. Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas <amalfitano@uol.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas; movimentos sociais; educação popular; saúde da família. KEY-WORDS: public policies; social movements; popular education; family health. PALAVRAS CLAVE: política pública; movimiento social; educación popular; salud de la familia.

Recebido para publicação em: 30/05/05. Aprovado para publicação em: 07/06/05.

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Potência virótica da vida: afecto, escrita e subjetivação The virus-like power of life: affection, writing and subjectivity

O presente trabalho traz a escrita de uma experiência inicialmente configurada no plano da saúde pública, especialmente o trabalho ambulatorial em HIV/Aids. Na medida em que este encontro começa a bordejar outros campos, próprios do percurso humano, como a filosofia e a literatura, a escrita toma novo fôlego para colocar em questão a experiência de estar com o outro, da exposição, dos encontros. Tal experiência tem seu limiar de ação na busca de um exercício de reconhecimento do potencial virótico da vida, ou seja, o poder de contaminação gestado nos encontros. Desta maneira, o potencial virótico é tomado como metáfora para pensarmos como o modelo de prevenção vem se configurando como um modelo produzido para evitar o contato com o outro, fortalecer-se na experiência individual, reduzir os riscos de contaminação e tomar de assalto o corpo e o homem. A partir da constatação histórica e política dos dispositivos de gerenciamento da vida,

inicia-se uma viagem à experiência da morte, da noite, da alteridade, do intensivo, utilizando como via de afecto a experiência literária. O principal vetor de propagação é composto pela proposição de uma experiência dos encontros (clínica) que esteja à altura das situações limites, que tenha a potência de produzir afectos e transformá-los em atos. Quatro movimentos de texto compõem esta estratégia. Todos eles buscam a potência de produzir uma narrativa cambiante, em que procedimentos sócio-histórico-políticos e experimentações literárias movimentem-se em contraste. O texto caminha contrapondo-os e chocando-os, recortando-os e recombinandoos, percurso de tropeços e fracassos, mas também de crença e alegria. Ângela Donini Dissertação de Mestrado, 2003 Núcleo de Estudos da Subjetividade, Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo <angela.donini@aids.gov.br>

PALAVRAS-CHAVE: saúde pública; instituições de assistência ambulatorial; HIV; síndrome de imunodeficiência adquirida. KEY WORDS: public health; ambulatory care facilities; HIV; acquired immunodeficiency syndrome. PALABRAS CLAVE: salud publica; instituciones de atencion ambulatória; VIH; síndrome de imunodeficiência adquirida.

Recebido para publicação em: 01/05/05. Aprovado para publicação em: 07/05/05.

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Ter apia ocupacional e saúde mental: erapia construindo lugares de inclusão social*

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Occupational therapy and mental health: building places for social inclusion Ter apia ocupacional y salud mental: construyendo lugares de inclusión social erapia

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Marli B. Santos Ribeiro 2 Luiz Roberto de Oliveira

Introdução O movimento de transformação da assistência psiquiátrica no Brasil A tendência central da assistência aos loucos, no Brasil, desde seus primórdios, foi de excluí-los, num primeiro momento, junto com os desocupados, os inadaptados e perturbadores da ordem social nas santas casas, onde eles recebiam um tratamento diferente dos demais, amontoados nos porões, sem assistência médica, tendo seus sintomas reprimidos por espancamentos ou contenção em troncos, condenados à morte por maus tratos físicos, desnutrição e doenças infecciosas. Neste período, eles não se diferenciavam das outras categorias marginais pelos conceitos nosográficos ou psicopatológicos e sim, pelos critérios de razão e desrazão. Posteriormente, com o surgimento da psiquiatria, os mesmos passaram a ser colocados em hospícios e considerados doentes mentais (Resende, 1987). Os primeiros hospícios vieram responder à demanda de organização das cidades, relacionada com o projeto ideal (valores morais, éticos e políticos) da sociedade moderna que estava se constituindo no país. A partir da inauguração do Hospício D. Pedro II, em 1852, houve uma constante necessidade de ampliação e solidificação deste equipamento como única forma de tratamento dos doentes mentais (Araújo, 1999). Aos poucos a psiquiatria foi-se tornando científica, reconhecida como especialidade médica e foi avançando nos estudos anatomo-clínicos que relacionavam a doença com dano cerebral, passando-se a compreendê-la numa abordagem biológica (Silva Filho, 1987). Esta abordagem localiza fatores internos ao indivíduo como causa da doença, sendo eliminadas todas as variáveis externas que podem contribuir para o desenvolvimento da mesma. Nesta lógica, as propostas de intervenção são a administração de psicofármacos e a contenção dos sintomas por meio da internação psiquiátrica (Lussi, 2003). O período da ditadura militar compreendido entre 1964 a 1985, provocou sérias

* Elaborado a partir de dissertação de Mestrado (Ribeiro, 2003), projeto financiado pela FAPESP (Proc. N. 2002/02101-4). 1

Terapeuta ocupacional, Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, FMB-Unesp, Botucatu, SP. <marlisribeiro@ig.com.br> 2

Professor, Departamento de Saúde Pública, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, FMB-Unesp. <luizoliv@fmb.unesp.br>

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Rua Luiz Castelletti, 348 Distrito de Rubião Júnior - Botucatu, SP 18.618-000

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transformações sociais, políticas e econômicas no país. Estas transformações levaram a uma política de privatização da assistência e, conseqüentemente, a um sucateamento da saúde pública, devido à falta de investimento do governo. Na assistência psiquiátrica optou-se pela contratação de leitos em hospitais privados que aumentaram rapidamente, pois os donos dos hospitais visavam obter lucro com as internações (Resende, 1987). Enquanto os países europeus e os Estados Unidos vivenciavam um processo de transformação da assistência psiquiátrica com ênfase na desospitalização, os brasileiros assistiam a uma expansão dos leitos nos hospitais privados financiados pelo Estado. Para se ter uma idéia desta expansão, em vinte anos (de 1950 até 1970), a população brasileira cresceu 82% e a população dos hospitais psiquiátricos 213% (Cezarino, 1989). Este aumento resultou no agravamento da situação dos hospitais psiquiátricos brasileiros, com superpopulação, deficiência de pessoal, maus tratos, péssimas condições de hotelaria e pouca utilidade para o tratamento. No final da década de 1970, aproveitando o momento político de redemocratização do país, os profissionais que trabalhavam nesses hospitais, de maneira organizada, denunciaram a violência, ausência de recursos para a área, negligência, utilização da psiquiatria como instrumento técnico-científico de controle social e reivindicaram a criação de projetos alternativos ao modelo asilar (Amarante, 2000). O movimento de reforma sanitária que teve início na década de 1970 foi importante para impulsionar as transformações na área de assistência psiquiátrica. Esse movimento, que se concretizou por meio da realização de conferências de saúde, tinha como lema: a saúde como direito de todos e dever do Estado, e baseava-se em princípios como regionalização, hierarquização, participação comunitária, integralidade e eqüidade (Yasui, 1999). Em 1987 realizou-se a primeira conferência de saúde mental, a segunda foi em 1992 e a terceira conferência aconteceu em 2001, com expressiva participação dos usuários e familiares. Nesta conferência discutiu-se a necessidade da reorientação do modelo assistencial, por meio de eixos fundamentais como: controle social, acessiblidade e direitos, financiamento para a área e recursos humanos (Brasil, 2002). Desde 1989 tramitava no Congresso Nacional uma lei de autoria do Deputado Paulo Delgado que só foi aprovada em 2001, após uma mobilização intensa dos trabalhadores da área, dos usuários, dos familiares e da mídia. Esta lei regulamenta os direitos do doente mental em relação ao tratamento, propõe a extinção progressiva dos manicômios, a substituição dos hospitais psiquiátricos por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória (Amarante, 2000). Ao longo desses anos foi criada uma rede diferenciada e normalizada de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico: hospitais-dia, centros de atenção psicossocial, destacando-se o tipo III (com funcionamento 24 horas e aos finais de semana), leitos psiquiátricos em hospitais gerais, centros de convivência, oficinas terapêuticas, serviços residenciais terapêuticos, entre outros. O processo de transformação da assistência psiquiátrica brasileira foi fortemente influenciado pelas experiências de reformas realizadas nos Estados Unidos e na Europa (Pitta, 1984; Amarante, 2000).

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O movimento de psiquiatria preventiva ou comunitária, que aconteceu nos Estados Unidos, no início na década de 1950, preconizava que o objeto da psiquiatria não devia ser a doença, mas, a saúde mental. Numa definição de Saraceno (2001, p.145), a saúde mental seria “a condição de saúde mental dos indivíduos e o conjunto de ações para promovê-la e mantê-la”, passando-se “a considerar as dimensões psicológicas e sociais de saúde e os fatores psicossociais que determinam saúde e doença”. Para o entendimento da doença buscaram-se outras áreas de conhecimento, como a psicologia, a sociologia e a antropologia, retirando-se a exclusividade da medicina (Amarante, 2000). Do continente europeu as influências vieram da França, da Inglaterra e, sobretudo, do movimento da psiquiatria democrática italiana. Esta experiência, que começou na década de 1960, teve como princípio básico romper com a lógica segregativa e violenta da instituição psiquiátrica e transformar as relações entre doente, médico, equipe hospitalar e sociedade (Basaglia, 1991). Propunha o deslocamento da clinica centrada na doença para a invenção de cuidados dirigidos à pessoa doente, a desconstrução do hospital psiquiátrico e a criação de serviços substitutivos, em que se respeitasse o direito social e aumentasse o poder contratual dos usuários (Mângia, 2002). A atuação da terapia ocupacional diante da transformação da assistência psiquiátrica A profissão terapia ocupacional foi criada no início do século XX, nos Estados Unidos. Teve sua prática reconhecida no contexto da reabilitação física e mental pela necessidade de reinserir os traumatizados de guerra na sociedade (Benetton, 1991). No Brasil, a profissão foi criada em 1959. Na área de psiquiatria tinha sua prática voltada a assistência hospitalocêntrica, com a tarefa de ocupar os pacientes, num processo de manutenção e organização dos hospitais e de reabilitação, tendo em vista que, com o advento das terapêuticas biológicas e farmacológicas, os pacientes melhoravam rapidamente dos sintomas (Benetton, 1991). Diante das transformações na assistência psiquiátrica, esta profissão vem buscando uma legitimidade enquanto área de atuação e de produção de saber. Para tanto, os terapeutas ocupacionais têm procurado aprimorar-se teorica, tecnica e politicamente para a atuação na rede de serviços substitutivos, em nível de prevenção e promoção de saúde, tratamento, reabilitação e inclusão social. No final da década de 1970, algumas terapeutas ocupacionais defendendo a função terapêutica, incorporam conceitos psicodinâmicos baseados na psicanálise e na psicologia e criam um método de tratamento. Neste método, a terapia ocupacional é definida por uma dinâmica relacional entre terapeuta-paciente-atividade em que se compõe uma trilha associativa num campo transferencial (Benetton, 1991). Este método tem sido amplamente divulgado entre os terapeutas ocupacionais e aplicado em pacientes com transtornos mentais graves, com o objetivo de manter a saúde mental e a sociabilidade. A experiência da desinstitucionalização italiana trouxe inovações para a terapia ocupacional no campo da reforma psiquiátrica, ao assumir como objeto da ação terapêutica a pessoa e suas necessidades e não a doença e os sintomas. Neste contexto, a ação terapêutica deve investir na complexidade da vida cotidiana da pessoa, englobando os aspectos: práticos, concretos, simbólicos, relacionais e materiais, de forma a produzir movimentos capazes de oferecer suportes, proteção e resolução de

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problemas que contribuam para a superação da situação existencial. Este modelo considera que o sujeito deve compartilhar e ser parceiro dos projetos e processos e, que é por meio dos espaços relacionais que ele restaura sua contratualidade de cidadão e de produtor de sentido para sua vida (Mângia, 2002). Apesar do movimento de transformação da assistência, as pessoas com transtornos mentais no Brasil ainda têm sido marginalizadas e excluídas socialmente. Nesta perspectiva, surgem as práticas pautadas pelo paradigma social de reabilitação que visam a inclusão social, isto é, a construção de espaços sociais receptivos para atender populações com algum tipo de diferença ou deficiência, e sujeitos com o desejo de ocupar um lugar de participação na vida social (Ghirardi, 1999). Os "Centros de Convivência e Cooperativas" (CeCCOs) adotados pela prefeitura de São Paulo, no período de 1989 a 2000, foram baseados neste paradigma. Estes equipamentos propunham a convivência entre pessoas portadoras de transtorno mental, portadores de deficiência física e/ou sensorial, idosos, crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, e a população em geral em espaços públicos, tais como, parques, praças, centros comunitários. Como estratégia de ação utilizavam-se de oficinas nas quais se desenvolviam vários tipos de atividades, partindo-se das necessidades dos usuários, valorizando-se sua história e sua identidade sócio-cultural (Lopes & Leão, 2002). Ao analisar a participação de terapeutas ocupacionais nos CeCCos, os autores referem que a terapia ocupacional tem um espaço importante nestes equipamentos porque “os fundamentos da profissão vêm ao encontro da proposta de produzir e conceber saúde e, principalmente, pelo uso do recurso ”atividade” para a busca de autonomia e da participação social” (Lopes & Leão, 2002, p.62). Como exemplo de uma prática da terapia ocupacional promotora de estratégias de inclusão social, pode-se citar a experiência da Associação Arte e Convívio (AAC), no município de Botucatu–SP, tema de uma dissertação de mestrado (Ribeiro, 2003). Esta associação da área de saúde mental foi criada em 1995, a partir da iniciativa de profissionais, pacientes e pessoas da comunidade, diante da falta de oficinas terapêuticas e de convivência na rede pública de assistência. Embora tivesse contado com participação multiprofissional, a estruturação desta Associação fundamentou-se em pressupostos e formas de atuação da terapia ocupacional. A AAC teve como ponto de partida o tratamento clínico dos pacientes nos serviços de saúde mental. Neste processo observava-se que embora os pacientes estivessem fora dos hospitais psiquiátricos, viviam como se estivessem internados, isolados em suas casas, sem executar atividades nem mesmo de lazer. Não tinham participação social nem política e enfrentavam diversas dificuldades para se inserirem no mercado de trabalho. Viviam numa rotina pobre e sem sentido. O reconhecimento do sofrimento causado pela situação existencial dos pacientes foi o grande mobilizador do projeto. As estratégias que a AAC utiliza para lidar com estas questões são: a criação de espaços de convivência entre usuários (adultos e adolescentes), familiares, trabalhadores dos serviços de saúde mental e pessoas da comunidade; a realização de oficinas terapêuticas, de geração de renda e de relaxamento; a organização de festas, viagens, passeios e eventos científicos, entre outras. Os produtos das oficinas de geração de renda são

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comercializados e parte do dinheiro arrecadado é destinada aos usuários. Além disto, os profissionais procuram exercer uma prática de cuidado horizontalizada, estimulando os usuários a compartilharem e serem parceiros dos projetos e decisões, bem como a se conscientizarem de seus direitos de cidadãos. A AAC tem desenvolvido uma práxis que rompe com o modelo asilar excludente de tratar as pessoas com transtorno mental, envolvendo a sociedade desde a fase de sua construção ideológica. Tem sido um lugar de possibilidade de existência criativa para os usuários e conseguido a inclusão de alguns no mercado de trabalho (Ribeiro, 2003). Considerações finais Com a implantação da rede de serviços substitutivos, o terapeuta ocupacional passa a ter uma prática voltada para atender os pacientes graves fora da internação psiquiátrica. Diferente da ação periférica e desqualificada desenvolvida no hospital, cuja atuação era basicamente ocupá-los para manter a ordem, com pouca interferência na promoção de saúde e na melhora da condição de vida dos mesmos (Mângia, s/d, apud Terapia, 2004). Segundo Medeiros (2003), o instrumental da profissão mostra-se condizente com as proposições da transformação assistencial atual, uma vez que o usuário dos serviços passa a ser encarado como um indivíduo que se realiza e restabelece sua saúde mediante sua (re)inclusão social. Desta forma, o paradigma utilizado não poderá ser somente o biológico centrado na doença e nos sintomas, independente do contexto, mas sim aquele que busca atender o usuário em suas necessidades e com toda a complexidade da sua condição socioeconômica e cultural. Por ser uma profissão que congrega conhecimentos de várias disciplinas, a terapia ocupacional pode “ser um elemento importante na construção de novos rumos para a atenção à saúde, integral, globalizante e na perspectiva da totalidade, subjetividade e singularidade das pessoas” (Medeiros 2003, p.173). Neste sentido, os terapeutas ocupacionais que buscam um aparato teórico e técnico para o tratamento e para se ocuparem das dificuldades e necessidades dos pacientes, procurando reinventar o cotidiano deles e atender aos interesses sociais, políticos e à saúde pública, abrem com isto, um campo interessante, bastante ampliado e valorizado de atuação da profissão na comunidade.

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Since its inception, Brazilian psychiatric care has been based on interning the mentally ill in psychiatric hospitals and on the social exclusion of patients. Ever since the end of the military regime in the eighties, this assistance has been undergoing a transformation that proposes the treatment of the mentally ill by means of community services, replacing psychiatric hospitals. The occupational therapy profession, whose practice used to focus on the occupation of patients within hospitals, in the light of the transformation of psychiatric care, has sought theoretical, technical and political development for working in these substitutive services, in terms of prevention, health promotion, treatment, rehabilitation and social inclusion. The objective of this article is to present certain occupational therapy practices based on paradigms that emphasize the importance of treatment and inclusion of the mentally ill in society, highlighting an experience that is currently being carried out in Botucatu, São Paulo State, Brazil, by a non-governmental organization. It was possible to conclude that the profession, in uniting interdisciplinary understanding and in concerning itself with the needs and difficulties of patients’ daily lives, presents an instrument conducive to community assistance. KEY WORDS: Psychiatric care; mental health; social inclusion; occupational therapy. A assistência psiquiátrica brasileira, desde seu início, era baseada na internação dos doentes mentais em hospitais psiquiátricos e em sua exclusão social. Desde o final do regime militar, na década de oitenta, esta assistência vem passando por transformações que propõem o tratamento dos doentes mentais em serviços comunitários substitutivos ao hospital psiquiátrico. A profissão terapia ocupacional cuja prática voltava-se para a ocupação dos pacientes no interior dos hospitais, diante das transformações da assistência psiquiátrica, vem buscando um aprimoramento teórico técnico e político para a atuação nos serviços substitutivos, em nível de prevenção, promoção de saúde, tratamento, reabilitação e inclusão social. O presente trabalho tem como objetivo apresentar algumas práticas de terapia ocupacional baseadas em paradigmas que enfatizam a importância do tratamento e da inclusão do doente mental na sociedade, destacando-se uma experiência que vem sendo realizada em Botucatu-SP (Brasil), por uma organização não governamental. Conclui-se que a profissão, por congregar conhecimento interdisciplinar, e se ocupar das necessidades e dificuldades dos pacientes no cotidiano, apresenta um instrumental condizente com a assistência comunitária. PALAVRAS-CHAVE: Assistência psiquiátrica; saúde mental; inclusão social; terapia ocupacional. La asistencia psiquiátrica brasileña, desde su inicio, se basaba en la internación de los enfermos mentales en hospitales psiquiátricos y en su exclusión social. Desde el final del régimen militar, en la década de los ochenta, esta asistencia viene sufriendo transformaciones que proponen el tratamiento de los enfermos mentales en servicios comunitarios sustitutivos del hospital psiquiátrico. Ante las transformaciones de la asistencia psiquiátrica, la profesión Terapia Ocupacional, cuya práctica se abocaba a la ocupación de los pacientes en el interior de los hospitales, está empeñada en perfeccionarse teórica, técnica y políticamente para la actuación en los servicios sustitutivos, en las áreas de prevención, promoción de la salud, tratamiento, rehabilitación e inclusión social. El presente trabajo tiene como objetivo presentar algunas prácticas de terapia ocupacional fundamentadas en paradigmas que enfatizan la importancia del tratamiento y de la inclusión del enfermo mental en la sociedad, y destaca una experiencia que viene siendo realizada en Botucatu-SP (Brasil), por una organización no gubernamental. Se concluye que la profesión, por congregar conocimiento interdisciplinario y ocuparse de las necesidades y dificultades cotidianas de los pacientes, presenta un instrumento apropiado para la asistencia comunitaria. PALABRAS CLAVE: Asistencia psiquiátrica; salud mental; inclusión social; terapia ocupacional.

Recebido para publicação em: 02/03/04. Aprovado para publicação em: 03/03/05.

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SÍLVIA MECOZZI, Actínia I, 2001

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O agente de saúde e a mudança: do espanto ao encanto* The healthcare agent and change: from amazement to enchantment El agente de la salud y el cambio: del espanto al encanto Jorge Bichuetti 1 Silvana Martins Mishima 2 Silvia Matumoto 3 Cinira Magali Fortuna 4

O trabalho: diário de bordo, analisado sob a perspectiva da mudança do agir e do próprio agente das práticas de saúde. O evento: um seminário na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP. Local: uma sala de aula da universidade, cheia de gente: o pessoal da lida sofrida do atendimento em saúde - agentes comunitários de saúde, enfermeiros do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e Programa de Saúde da Família (PSF), médicos, auxiliares e técnicos de enfermagem, pessoal da Unidade Básica de Saúde (UBS) e Unidade Básica e Distrital de Saúde (UBDS), do nível central da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), alunos da graduação e pós-graduação, docentes. O motivo: deixar seus afazeres para numa tarde sentarem nos bancos da universidade e compartilharem esse espaço-tempo de criação de vida, para que possamos reavivar a vida em nós e transformar em produção de vida nossa tarefa de cuidar de outras vidas. O tema: PSF e sociedade mundial de controle - por uma prática transversal de inclusão, cidadania e solidariedade. Em debate: a crise da saúde e da família; a equipe; o controle que propõe um agir sem médicos e sem doentes, no sentido de monitorar e anular riscos potenciais; a dor de cuidar e a necessidade de refazer nosso modo de operar numa relação de inclusão, cidadania e solidariedade, isto é, um novo agir generoso, de vínculos e coresponsabilização, de cuidado humanizado e humanizante (Bichuetti, 2003a). Estranhamento: coletivo heterogêneo, de homens e mulheres com saberes diferentes; num único espaço cruzam-se conhecimento científico e saber do povo e suas experiências vitais... Espanto pelo tema complexo e simples, teoria da última geração e reflexões do próprio dia-a-dia.

Elaborado a partir de Seminário, parte do projeto de pesquisa “O trabalho de enfermagem em atenção primária na organização dos serviços locais de saúde”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.

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Diretor clínico, Fundação Gregório F. Baremblitt, Uberaba, MG. <utopiaativa@terra.com.br> Docente, Departamento Materno Infantil e Saúde Pública, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP. <smishima@eerp.usp.br> 3 Secretaria Municipal da Saúde de Ribeirão Preto; docente, Universidade de Ribeirão Preto. <smatumoto@uol.com.br> 4 Secretaria Municipal da Saúde de Ribeirão Preto; docente, Universidade de Ribeirão Preto. <cinirafortuna@yahoo.com.br> 2

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Rua Capitão Domingos, 418 Uberaba, MG 38.025-010

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ESPAÇO ABERTO

E espanto para uma pesquisa coletiva produzida no encontro: a confecção de um Diário de Bordo. Um bloco de papel e uma caneta para fazer as anotações de tudo que passasse pela mente, pelo coração, pelo corpo — idéias, lembranças, opiniões, durante as quatro horas de trabalho coletivo. De mão em mão, o diário correu a roda, viajou pelas pessoas; nele as pessoas registravam suas impressões, analisando-as. Assim pudemos trabalhar alguns elementos desta problemática nuclear nos serviços de saúde e nos projetos de mudança do modelo assistencial: - Quem somos? Nós os atores das práticas de saúde... - E para onde vamos? O que podemos levar? Nós os que desejamos ver no dicionário das práticas cotidianas dos serviços de saúde as práticas se acoplando com a vida, na plenitude do que pode a vida. Diário de bordo Adotamos um método de pesquisa qualitativo, o estudo cartográfico. No relato anotam-se as ocorrências da viagem. Nele, um novo método – bricolagem; roubos, colagens... A A cartografia é um mapa-relato, intuição... Nada demasiadamente abstrato, nem concreto: objetivo e subjetivo, que expressa relato de ressonâncias, experimentações... Que geram a singularidade desta viagem, uma caixa-de-ferramentas (Bichuetti, 2003b) capaz de embora sirva a outros “para nortear, sem considerações a priori, novas experiências. construir sua própria trajetória, O diário de bordo contém notas, apontamentos de uma sempre experimental, sempre viagem. É único, singular. É também instrumento de apoio aventureira” (Baremblitt, 1998, de novas e novas aventuras. p.59). Aqui, ele foi usado com duplo sentido: o de uma ... é desenho em movimento de técnica metodológica de investigação e o de um artefato transformação de paisagens, vivo e vivificante de pedagogia, da Pedagogia Klínica inclusive paisagens desenvolvida por Amorim (2002), com inspiração no psicossociais, que capta o pensamento de Deleuze & Guattari (1966) e que introduz desmoronamento de certos na educação o corporal-afetivo-e-experiencial da própria mundos — sentidos perdidos; e vida. a criação de novo mundos e Contudo, se constatamos sua relevância pedagógica e sentidos (Rolnik, 1989). sua riqueza enquanto instrumento de investigação, na cartografia identificamos a capacidade de criar um espaço e um tempo em que processos de subjetivação novos, livres, se afirmam e se relevam. A viagem O espaço de encontro: no entre, subjetividades florindo um devir coletivo Os serviços de saúde delimitam espaços rígidos. O encontro é evitado. Cada um no seu lugar. O lugar do médico, do enfermeiro, do agente, do assistente social etc — e o lugar do usuário. As reuniões são raras. Quando acontecem são hierarquizadas. Movem-se fabricando bodes expiatórios. Falta espontaneidade. O espaço se revela fecundo na gestação de um devir coletivo. O encontro Emerge o sentimento de se ser equipe. O encontro foi, assim, percebido: “O espanto nos olhos! O que isto? Não é uma aula? Uma palestra?”

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ESPAÇO ABERTO

-... “um momento de vários aprendizados” -... “mais oportunidades de aprendizados”, “o momento é mágico, portanto, imperdível” -“já percebi que aqui tem de tudo um pouco” - e uma “possibilidade de compartilhar conhecimentos” A potência do encontro só é possível de ser explorada se ela se dá permeada de entre, de espaços criativos (Bichuetti, 2003a): -“Muitos de nós, diferentes viagens, sentir, descobrir, viver este momento tão rico de trocas, de contatos, de gente, de corpos, de desejos, de vida. Que bom tanta gente junto!” -“O receio do encontro com o outro, do sentir o outro, do abraçar o outro” ... “não quer explicar, querer viver, sentir, amar”. -“adoção de linguagem nova, olhar para o difícil. Superar a pequenez da iniciativa isolada, mesmo que não tenha a priori o projeto completo”. O grupo diz: aqui não fomos atravessados pelo instituído (Baremblitt, 1994), e fomos agenciados, maquinamos um dispositivo instituinte coletivo. Romperam-se as hierarquias formais, verticais do saber/poder instituído, e, também, a horizontalidade da série dos grupos amorfos, finalísticos e sem sentido/projeto comum. Não existe subjetivação livre, grupo sujeito sem o entre... O entre criativo do encontro... Espaço de criatividade, de liberação (Orlandi, 2000) dado pelo entre-momentos e entretempos... Ruína dos lugares predeterminado, do já previsto, do já prescrito e do já indiferente. Ali, no encontro, podia-se criar; livres da rostidade dos representantes inquestionáveis do instituído. Vozes relataram um devir coletivo: -“Estrangeiros – viajantes de uma época em busca de nós próprios” - aqui, o “trabalho em equipe” - nele somos – “protagonistas na arena saúde”. Este devir coletivo só se viabiliza quando, ao interagir, o agente de saúde como gruposujeito se transversaliza nas relações (Guattari, 1981). Uma produção coletiva, somos... agentes de saúde. O agente das práticas de saúde O agente de saúde é uma construção coletiva que institui na prática de saúde um novo protagonista, coletivo e híbrido, feito de experts de várias especialidades e de experts-não experts-fabricados pela universidade da vida, gente do povo, da comunidade. O agente de saúde: é todo e qualquer trabalhador dos serviços de saúde; é membro de uma equipe; é um aprendiz, aprendendo a não se agredir, a cuidar de si, a dar valor às realizações e saberes coletivos, a conhecer a si e às pessoas da maneira como elas são (Lancetti, 2000).

O trabalhador de saúde possui uma subjetividade... Dores ocultas: “cansaço”, “quanta saudade”, “um sorriso triste”, “o cansaço nos leva a não pensar”, “repensar ... solidão .... ausência”. Trazer para a realidade, “com o sono, está difícil manter olhos abertos”, “preciso relaxar”.

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ESPAÇO ABERTO

Cuidamos. Acolhemos as lágrimas, as úlceras, as dores do humano. Nossa prática – cuidar do humano. Todavia, somos humanos. Com lágrimas, úlceras, dores... Temos tensões, desgaste, sonhos. E labutamos reprimindo o humano, e nos pretendemos robóticos. “Somos seres humanos e não máquinas. Precisamos ajudar aos outros”. Adoecemos. Nossos filhos adoecem... E nem sempre somos fortes para levar nossos filhos e deixarmos eles terminarem “sua jornada em nossos braços”.

O agente de saúde – sabe necessitar de espaço/lugar para que ele se sinta, se perceba e permita humano; para, então, devir-se cuidar.

Potências inexploradas: “o guia é o amor”, superado a tristeza de não saber sorrir, “prá começar, é só tentar”, “o pensamento navega, balança”, “respeitar o jeito de viver da pessoa”, dar “carinho, amor, compreensão”, “faça o que gostaria que lhe fizessem”...

Valores, sentimentos. Um devir amoroso, terno, solidário e generoso surgiram como signos da arte de cuidar, desejadas e identificadas na verticalidade do agente de saúde que se subjetiva na viagem da mudança, da “transformaçãopossibilidade” ... “uma benção de Deus”.

A mudança em saúde: revelou-se muito mais do que mera renovação técnica, ou do que uma inovação pragmática da política ou ainda do que uma novíssima descoberta do saber. A mudança revelou-se uma máquina de produção de vida, articulada pela ação de transversalização de saberes e interconexão de sentires, materializando um processo em que se notará uma insígnia “Há vida na saúde”: -“Devemos usar em tudo o que fazemos o sentimento, o coração, e sempre nos colocarmos um pouco no lugar do outro, e acreditar sempre que alguma coisa pode mudar”. -... Entendermos uns aos outros, porque estamos só de A linha de fuga, de mudança, passagem. emergiu em relatos poéticos, -“Aprimoramento, capaz de desenvolver o trabalho” de fé, sentimentais. Marcados -“A paciência na vida é a melhor coisa pra mudar” por uma compreensão, a de -“esperança que o sol venha a brilhar” que os serviços de saúde - e “que todos os agentes sejam respeitados”. devem perder seu ar ciumento, “Sonhar sempre”. “Querer é poder”... frases guerreiras de asséptico e se fazerem mais profissionais que já vimos, em outros espaços, resignados e afetivos, calorosos. Aconchego submissos, descrentes e desmotivados. à dor e cumplicidade na estrada. 436

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ESPAÇO ABERTO

A experiência Vivemos uma prazerosa viagem. Nela, fizemos juntos boas descobertas. Descobrimos a potência do vínculo amoroso, do devir equipe e do cuidado – encargo (co-responsabilização) como trajetórias da mudança em saúde. Redescobertas, oportunas. Re-descobrimos, também, o agente de saúde e nele pequenos nós corporativos. Porém, talvez, a mais fecunda foi vivenciar um novo espaço de construção. A universidade-povo e o povo-universidade; os trabalhadores de saúde anotaram ressonâncias, recordações, opiniões e, anonimamente, gestaram um produto coletivo: o agente e a mudança... Dizeres que nos parecem ser a própria mudança em curso. A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles. Entregue suas flores a quem cuidar delas, e comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva. (José Saramago, 2003, p,14)

Referências AMORIM, O. Pedagogia Klinica: notas e comentários. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari, 2002. (mimeogr.) BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994. BAREMBLITT, G. Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari, 1998. BICHUETTI, J. PSF e sociedade mundial de controle: por uma prática de inclusão, cidadania e solidariedade. Uberaba: Instituto Félix Guattari, 2003a. (mimeogr.) BICHUETTI, J. A desmistificação do não-saber. Uberaba: Instituto Félix Guattari, 2003b. (mimeogr.) DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Antiédipo. Lisboa: Assírio e Alvin, 1966. GUATTARI, F. A revolução molecular. Brasília: Brasiliense, 1981. LANCETTI, A. Saúde mental nas entranhas da metrópole. In: JATENE, A. D.; LANCETTI, A.; MATTOS, S. A. F.; CRUZ, M. L. S.; RODRIGUES, M. S. M.; ROCHA, S. M.; DAVID, M. R. F.; MELO, V. L. A.; PEREIRA, W. A. B.; FRANCO, L.; GONÇALVES, P. L.; CASÉ, V.; CABRAL, B.; SILVA, M. C. F.; SAMPAIO, J. J. C.; BARROSO, C. M. C. SaúdeLoucura7: saúde mental e saúde da família. São Paulo: Hucitec, 2000 . p.11-52. ORLANDI, L. As linhas de ação de diferença. In ALLIEZ, E.(Org) Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000. ROLNIK, S. Cartografia sentimental. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. SARAMAGO, J. Viagem a Portugal. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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ESPAÇO ABERTO This article is a cartography of a meeting of the employees of the healthcare services network, graduate and post-graduate students and professors, at a seminar at EERP-USP, at which the PSF Family Health Program was discussed, as well as the challenge posed by inclusive and solidary health practices. It is a group production recorded in a log in which affections and perceptions were recorded during the course of the seminar and then analyzed from the perspective of change and changing the style of action, as well as of the healthcare practice agents themselves. KEYWORDS: family health; subjectivity; cartography. O presente texto é uma cartografia do encontro de trabalhadores da rede de serviços de saúde, graduandos, pós-graduandos e docentes em um seminário na EERP-USP que discutiu a temática PSF e o desafio das práticas de saúde inclusivas e solidárias. Trata-se de uma produção coletiva, registrada num diário de bordo no qual foram relatados afectos e perceptos durante o seminário e analisados sob a perspectiva da mudança, mudança do agir e do próprio agente das práticas de saúde. PALAVRAS-CHAVE: saúde da família; subjetividade; cartografia. El presente texto es un análisis del encuentro de trabajadores de la red de servicios de salud, graduantes, graduados y docentes en un seminario en la EERP-USP que discutió la temática PSF y el desafío de las prácticas de salud inclusivas y solidarias. Se trata de una producción colectiva, registrada en un diario de abordo en el que fueron relatados afectos y preceptos durante el seminario y analizados bajo la perspectiva del cambio, cambio en la actuación y en el propio agente de las prácticas de salud. PALABRAS CLAVE: salud de la familia; subjetividad; análisis.

SÍLVIA MECOZZI

Recebido para publicação em:18/03/05. Aprovado para publicação em: 13/06/05.

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O processo criativ o e a tessitur a de criativo tessitura projetos acadêmicos de pesquisa Carlos Antonio Alves Pontes 1 Abel Menezes Filho 2 André Monteiro Costa 3

A vida não se faz de vez A Vanda Aquino, que nos inspirou e reuniu.

Os estudantes de pós-graduação se deparam com dificuldades e tensões, ao terem que se envolver com a construção de trabalho monográfico, requisito necessário para a obtenção do grau de doutor, mestre ou especialista. É imprescindível a elaboração de um projeto obviamente adequado para cada grau de titulação, o que resulta em níveis de dificuldades e de tensões crescentes. Embora existam muitos obstáculos a superar no curso das disciplinas teóricas, podemos afirmar que no processo de elaboração dos projetos e, posteriormente, nas monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado os desafios são ainda maiores. A situação de ter de apresentar um projeto de pesquisa, um documento escrito de sua própria autoria e submetê-lo à apreciação de uma banca de examinadores pode mexer com o estado emocional do estudante, a ponto de, muitas vezes, não conseguir elaborar um texto com a qualidade que seria esperada e correspondente ao nível de aprendizagem alcançado com a conclusão das disciplinas ou, até mesmo, não lograr cumprir os prazos de entrega. Em suporte a tal situação, é possível encontrar uma farta literatura técnico-científica sob diversos títulos: metodologia científica, elaboração de projetos de pesquisa, como fazer uma tese etc., que vão compor os inúmeros manuais disponíveis em qualquer livraria especializada. Esses tratam de propor estruturações de projetos, evidentemente fundamentadas, tanto epistemológica quanto metodologicamente. Alguns manuais desenvolvem, inclusive, uma discussão sobre o processo de elaboração de um projeto, tanto no que diz respeito aos conteúdos quanto à dinâmica para desenvolvê-los. No entanto, há uma lacuna no que diz respeito ao próprio processo do escrever, da produção do texto em si.

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Pesquisador e professor visitante, Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, PE. <cpontes@cpqam.fiocruz.br> 2 Pesquisador e professor, Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE. <abelm@cpqam.fiocruz.br> 3 Pesquisador e professor, Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, PE. <andremc@cpqam.fiocruz.br> 1 Av. Moraes Rego, s/n Campus da UFPE - Cidade Universitária Recife, PE 50.670-420

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O encontro com o papel em branco (a tela em branco na era digital), de um modo geral, é um momento de desafio que, para a maioria das pessoas (principalmente para os iniciantes), pode constituir tensão, angústia e imobilidade. A metáfora mais comum é “vamos ver como o pensamento fica no papel”. A aposta é que “num momento de inspiração vou sentar no computador e escrever o texto completo”. A expectativa é a de que o texto, de uma só vez, vai sair pronto e acabado. Só então, poderá ser submetido à apreciação de terceiros. As conseqüências, muitas vezes, são, quando não ocorre o descumprimento do prazo, o texto ser de baixa qualidade e o sentimento ser de frustração. Com o objetivo de contribuir para a superação de tais dificuldades, o presente artigo pretende propor uma metáfora vital, com movimentos sucessivos e diferenciações simultâneas aplicáveis ao processo de escrever, de modo a torná-lo mais prazeroso e produtivo e com menores níveis de desgaste emocional. Inicialmente, são apresentados os fundamentos teóricos no campo da produção do conhecimento e do processo de aprendizagem, tendo como referência uma concepção construtivista para a introdução de uma analogia que vai identificar o texto como um organismo. Em seguida, é assumida uma estrutura de referência de um “projeto-padrão” da literatura disponível, a partir da qual discorremos como se pode processar a elaboração de um projeto. Aplica-se a essa estrutura de referência um processo não-linear de produção em que o texto deve ser escrito como um todo orgânico que, a partir de núcleos indiferenciados, vai desenvolvendo-se, seguindo um processo similar ao desenvolvimento embrionário. E, por fim, discorremos sobre as posturas que julgamos adequadas à tessitura propriamente dita. Ser, emocionar, conhecer Desde Immanuel Kant (1724-1804), sabe-se que a realidade em si é inatingível pelo entendimento humano, pelo menos no que se refere à Razão, entendida aqui como sendo a instância intelectual humana. Dessa forma, só teríamos acesso aos fenômenos (como aparecem à nossa experiência), e não aos números (a coisa em si). Para a produção do conhecimento, segundo Kant, seria necessária a existência, a priori, de intuições espaçotemporais capazes de organizar as percepções produzidas pelos sentidos e também de categorias, a priori, do entendimento, que é a “faculdade de pensar o objeto da intuição sensível”. Não se deve separá-las, mas distingui-las. O conhecimento surge da reunião de ambas, pois “sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado” (Kant, 1996, p.92). Assim, Kant dá início a uma forma de conceber a produção do conhecimento por uma via que não se baseia, apenas, na experiência nem, exclusivamente, na capacidade inata do sujeito epistêmico. Essa via ficou conhecida como sendo uma concepção construtivista do conhecimento. A partir de Kant, outras contribuições foram acrescentadas, notadamente as de Jean Piaget (1896-1980) na primeira metade do século XX e as de Humberto Maturana & Francisco Varela no final desse mesmo século. Piaget demonstra que as estruturas cognitivas vão desenvolvendo-se em uma interação complexa, do organismo com seu ambiente (Piaget, 2000). Maturana & Varela (2001) sustentam que a cognição é inerente ao ser vivo, introduzindo o conceito de autopoiese (o que se cria a si mesmo). A cognição, para Maturana & Varela (2001), é entendida como um ato de um dado organismo manter a coerência do seu acoplamento estrutural com o seu ambiente. Quando o organismo não é mais capaz de manter essa coerência, fazendo as alterações estruturais próprias, ele perece. Os seres humanos acrescentamos uma dimensão simbólica, ampliando o escopo da cognição ao desenvolver a linguagem. Segundo Maturana (2001), a linguagem surgiu na convivência entre indivíduos que viveram há cerca de três milhões de anos, organizados em pequenos bandos. Assim, nós, seres humanos, nos construímos

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como seres de linguagem, entrelaçando-a ao fluir das emoções. Emoção, para os citados autores, é a disposição corporal, para agir, que especifica um domínio de ação. Dependendo da emoção que vivenciamos num dado momento, só podemos agir dentro do campo que a emoção permite. Mas a emoção, depois de elaborada, também amplia o campo e nos eleva a outros patamares de autoconsciência. A emoção surge antes da linguagem. Os animais são capazes de experimentá-la. O entrelaçamento do “linguagear” com o “emocionar” vai constituir o conversar. São as conversações que vão constituir as culturas, na medida em que se conservam e são transformadas gerações após gerações (Maturana & Verden-Zöller, 2004). Dessa forma, a dimensão simbólica se edifica e encontra sustentação a partir do conversar. Antes de sermos racionais, somos seres emocionais. É no fluir das conversações que somos gerados tanto como indivíduos quanto como coletivos. Um ser da nossa espécie que não conviveu entre humanos, no fluir das conversações de uma dada cultura, não se torna humano. O exemplo de seres de nossa espécie criados por outros animais é notório e dramático: quando houve tentativas de socialização humana, esses seres não se adaptaram e logo morreram. As conseqüências de tal concepção - que envolve o conhecer como algo inerente ao ser vivo - e as relações da linguagem, com as emoções e a noção de que o humano só existe por causa de outro humano, são: viver é aprender; as conversações constituem o ser; a aprendizagem é um processo contínuo; e, ainda, tudo tem que ser aprendido, inclusive, a ser “ser humano”. Para Piaget (2000), a aprendizagem é um processo de desequilibração e reequilibração de estruturas cognitivas. Todo conhecimento está ligado a uma ação. À medida que se entra em contato com algo novo a ser aprendido, as estruturas cognitivas anteriores são postas em desacordo. Para haver aprendizagem, é necessário que haja uma re-estruturação interna, com a conseqüente assimilação daquilo a ser aprendido. O processo de aprendizagem vai consistir em transformar, continuamente, os elementos internos construídos pelo sujeito em sua experiência de vida. Piaget sintetiza que a inteligência organiza o mundo, organizando-se a si mesma (Piaget, 2000). Do mesmo modo, a construção de um objeto de estudo, que é um processo de construção do conhecimento, não se dá de forma imediata, mas por aproximações sucessivas, de desequilíbrios e re-equilíbrios, de nexos emocionais e racionais. O próprio ato de escrever um projeto de pesquisa deve ser visto como uma oportunidade de operar essas aproximações. Embora se tenha a idéia, de forma clara, de qual deve ser a estrutura de um projeto, ou seja, que conteúdos cada parte deva conter, o comum é esperar que sua escrita se dê de forma linear: escrevem-se a problematização e as perguntas; definem-se os objetivos; desenvolve-se a fundamentação teórica; descrevem-se os métodos; traçam-se os contornos operacionais, computando-se os recursos materiais e de tempo; perfilam-se as referências bibliográficas; e, por fim, atende-se às considerações éticas. Mas é forçoso reconhecer que tais partes vão compor um todo organizado; vão constituir um sistema complexo, “um tecer juntos”. Isso significa dizer que as partes vão guardar, entre si, relações de interdependência e de interdefinibilidade, características constitutivas desse tipo de sistema (Garcia, 1994). Os objetivos deverão ser redefinidos em função de aspectos operacionais. O problematizar de uma determinada questão pode ser redirecionado com a compreensão que o fundamento teórico venha a revelar na medida em que é elaborado. O mesmo se pode dizer em relação aos métodos que vão sendo escolhidos em função dos objetivos cujo alcance vai depender dos recursos disponíveis. Assim, devemos reconhecer que a construção de um projeto de pesquisa não é um processo linear; por conseguinte, o ato de escrevê-lo também não o será, pois é reflexo do próprio processo de cognição. É possível, então, admitir que um texto pode ser visto como um organismo e, por analogia, entender que a sua elaboração seria um processo similar ao desenvolvimento embrionário

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de um organismo: uma célula-ovo, indiferenciada, que se divide sucessivamente, fazendo surgir, sincronicamente, novas células, que se vão diferenciando e dando origem a tecidos e órgãos até formarem um organismo maduro. Devemos também considerar o emocionar no momento de escrever. Sabemos que o momento é de tensão - e não poderia ser de outro modo -, afinal, estamos concentrando atenção para uma determinada tarefa e vamos produzir algo que será submetido à apreciação de terceiros. O olhar do outro nos pode reconhecer como fazendo parte de um grupo, mas a sua desaprovação significaria, para nós, o sentimento de rejeição. Que esperaríamos como resultado de uma escrita se estamos receosos, ansiosos, impacientes, inseguros, desconfortáveis? A palavra “dança”, em várias línguas européias - danza, dance, tanz - deriva da raiz tan, que, em sânscrito, significa “tensão” (Garaudy, 1980): os músculos tensos, o corpo todo envolvido, para expressar o indizível com a máxima intensidade. Porém a tensão não precisa ser excessiva, estressante; existe um tônus que nos mantém de pé: é a nossa resistência ante a gravidade. Qualquer ação leva ao aumento dessa tensão básica. A dança - ritmo, emoção, técnica e arte - alterna o tenso com o relaxamento. O processo criativo é tenso, mas não precisa ser de sofrimento; como a dança, pode ser vivido com alegria, confiança, conforto, acolhimento. Da estrutura ao processo: a embriogênese é a metáfora Há uma literatura vasta que tem a finalidade, direta ou indiretamente, de auxiliar estudantes de pós-graduação na realização de seus trabalhos monográficos. Existe um campo mais geral acerca da metodologia científica e um outro, sobretudo, a respeito da elaboração de monografias e projetos de pesquisa. Dentre estes, os mais tradicionais e abundantes são os manuais que se referem, em geral, às normas, à estrutura e ao planejamento da pesquisa, como os de França et al. (2003), Costa & Costa (2001), Parra Filho & Santos (2001), Rother & Braga (2001), Rudio (1999), Salomon (1999), Sá et al. (1997), Spector (1997), Gil (1996), Severino (1996), Bastos et al. (1995), Rey (1993) e Lakatos & Marconi (1992). Outros trabalhos sugerem elementos relevantes aos quais os pesquisadores devem estar atentos nesse processo e que pretendem contribuir para a compreensão de como construir as partes de um projeto, de modo mais consistente, como os de Goldenberg (1999), Beaud (1997), Contandriopoulos et al. (1994) e Eco (1993). Um terceiro grupo de publicações, além daqueles elementos, se propõem a contribuir para a percepção do que ocorre ao pesquisador, na tentativa de resolver as suas dificuldades, e para construção de percursos, como os de Pacheco (1988), Perrota (2004) e o de Tobar & Yalour (2001). Estes últimos autores vão além no sentido da preocupação com as tensões inerentes ao processo. No livro “Como fazer teses em saúde pública”, propõem uma estrutura formada, basicamente, por seis componentes: formulação do problema; marco teórico; metodologia; aspectos operacionais; referências bibliográficas; anexos. Para os propósitos deste artigo, sugerimos um desdobramento da referida estrutura, para destacar, do componente formulação do problema, a enunciação dos objetivos e criar mais um item, para incorporar os aspectos éticos, como no roteiro a seguir adaptado de Tobar & Yalour (2001): Conteúdo dos componentes de um projeto de pesquisa Formulação do problema - A que pergunta quero responder? Objetivos - Geral Específicos: E1, E2, E3 Marco teórico - O que sabemos até hoje sobre o problema? Quem estudou? Há mais de uma posição sobre o problema? Como estudaram? Como vou ler

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einterpretar os dados que obtiver em meu estudo? Metodologia - Que tipo de pesquisa (desenho) me proponho fazer? Com que dados vou trabalhar? Meus dados serão números ou palavras? Como vou obter os dados? Que quantidade de dados será suficiente para alcançar os resultados a que me proponho? Que vou fazer quando conseguir os dados? Vou processá-los de algum modo? Vou interpretá-los segundo o marco de uma teoria? Aspectos operacionais - Quais são os resursos humanos, físicos, tecnológicos e econômicos necessários para concretizar meu estudo? Como vou organizar meus recursos no tempo e no espaço? De que forma vou dividir o trabalho? Que fases ou etapas terá minha pesquisa? Que resultados parciais poderá oferecer? Quanto tempo vai levar a pesquisa? Quanto tempo vai levar cada fase? Aspectos éticos - Quem são os sujeitos da pesquisa? Quais os riscos e os benefícios? Quais as medidas de cuidado e proteção às pessoas que participarão da pesquisa? Referências bibliográficas Anexos

O destaque dos objetivos é proposto em razão da possibilidade de serem vistos em seu papel de integradores dos demais componentes; são a especificação de ações para responder às perguntas formuladas e, por sua vez, orientam a metodologia a ser desenvolvida. Portanto, devem manter coerência com a pergunta e a metodologia, além do que vão sofrer restrições pelo menos quanto à sua extensão, ao serem cotejados com os aspectos operacionais, para a realização do projeto. Em outras palavras, o alcance dos resultados desejados deve ser compatível com os recursos disponíveis, particularmente no que se refere ao tempo oferecido a cada nível de formação. Quanto aos aspectos éticos, sua inclusão se apresenta como essencial em projetos de pesquisa que envolvem seres humanos em particular ou seres vivos de uma forma geral. A inclusão também vai constituir-se em uma oportunidade de refletir e explicitar o sistema de valores que estão em jogo e que vão legitimar uma prática moralmente correta. Embora um projeto de pesquisa possa estar formulado de modo correto, tanto do ponto de vista científico quanto metodológico, pode, no entanto, apresentar implicações éticas nãoaceitáveis, por trazer algum tipo de prejuízo ou constrangimento às pessoas que eventualmente dele participem. A História mostra como é possível cometer crimes hediondos contra a humanidade e desrespeitar os mais elementares direitos da pessoa, do cidadão, em nome da “pesquisa, do progresso e do conhecimento”. Portanto, além de serem orientados para o alcance de resultados, científica e academicamente relevante, os projetos devem conter os cuidados necessários para proteger as pessoas, explicitando as responsabilidades dos pesquisadores para com elas, de forma a obter legitimidade social e moral; por tal razão, devem ser submetidos à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) institucionalmente constituído (Schramm, 1999). Para que fique mais claro o processo criativo, não-linear, e o que estamos dizendo com “a embriogênse é a metáfora”4, descreveremos, sucintamente, o desenvolvimento embrionário e suas correspondências com o texto-projeto (Enciclopédia Mirador, 1986). 4 Na construção dessa metáfora agradecemos a contribuição da Professora Idê Gomes Gurgel.

Fecundação: encontro de espermatozóide e óvulo: a primeira semente, o desejo, gera o tema; Ovo ou Zigoto: ativação do novo ser: primeira palavra-chave;

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Blastômeros: a partir do ovo, início da multiplicação celular: multiplicidade, tumulto das palavras, das idéias. Período de busca das fontes, das pessoas, dos meios de comunicação e de informação, das referências bibliográficas, do mapeamento etc; Mórula (células em forma de amora): multiplicação celular em estágio mais avançado: primórdios de uma organização do projeto e do texto. Elaborada a primeira versão; Blástula: fase de implantação, fixação uterina: projeto e texto mais organizados, nutridos por maior clareza das palavras, idéias e conceitos. Elaborada a segunda versão; Folhetos (ectoderma, endoderma e mesoderma): diferenciação celular em tecidos e órgãos: texto e projeto esboçados - constam todos os seus elementos, mas faltam ajustes e correções. Elaborada a terceira versão; Embrião: ser formado, completo: texto e projeto prontos. Versão final.

Figura 1: Associação dos componentes de um projeto acadêmico de pesquisa a células de uma mórula

Na figura 1 está representada uma mórula, que é, como vimos, uma seqüência do desenvolvimento de um organismo em algumas espécies. Às suas células está associado cada um dos componentes de um projeto, a partir dos quais será desenvolvido o texto, mantendo-se os nexos causais que comporão, assim, o projeto correspondente. Embora seja possível estabelecer momentos no desenvolvimento de um organismo como um todo, suas partes componentes crescem simultaneamente. Assim, de maneira análoga ao que acontece no desenvolvimento embrionário, é possível proceder a versões sucessivas no processo de construção do projeto e trabalhar, ao mesmo tempo, nos seus vários componentes. Nossa experiência com alunos do Nesc/CPqAM/Fiocruz nos cursos de especialização em Saúde Coletiva dá uma indicação de que, em três momentos sucessivos, é possível chegar a uma versão completa de um projeto. Nossa indicação é que a primeira versão seja elaborada a partir da própria experiência do estudante, enriquecida pelo estudo das disciplinas teóricas cursadas e orientada pelos desejos para um determinado tema. Essa é uma dimensão de partida, essencial, pois, como aponta Alves (2000, p.41), “o mundo humano se organiza em torno de desejos”. E não há nada mais desgastante do que fazer uma pesquisa sem desejo pelo tema. Assim, propomos que o estudante trabalhe na montagem de um documento que contemple a estrutura do quadro 1, tentando responder às questões colocadas para cada componente.

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Espera-se que a primeira versão contenha o esboço de um problema na forma de uma pergunta; objetivos gerais e específicos; questões do marco teórico a serem desenvolvidas; e as primeiras propostas de desenvolvimento metodológico. A formulação do problema é essencial, pois, conforme também sugere Alves (2000), o conhecimento só ocorre em situações-problema. Portanto, a pergunta adequada se constitui em algo central na ciência (Tobar & Yalour, 2001), porque, como vimos, da pergunta iremos construir os objetivos e destes, a metodologia. Para a segunda versão, o estudante vai trabalhar no sentido de a) desenvolver os textos respectivos a cada componente, procurando apoiar-se na literatura disponível, de modo a contextualizar e reformular, com maior precisão, o seu problema; b) desenvolver um roteiro para orientar a revisão bibliográfica e sistematizar o conhecimento já produzido por outros estudos; c) dar maior amplitude aos procedimentos metodológicos; d) fazer um elenco dos recursos necessários para o desenvolvimento da pesquisa; e) anunciar e hierarquizar as atividades, procurando situá-las no tempo, f) apresentar a versão para crítica do coletivo. Para a produção da terceira versão é importante o aprofundamento teórico para maior coerência interna, de modo a obter maior precisão e consistência entre as partes do projeto. Embora a Ética, em particular a Bioética, seja ponto de partida e atravesse todo o processo, achamos que este é o momento especialmente adequado para refletir sobre quem são os sujeitos da pesquisa, quais os riscos e benefícios a que estão submetidos, quais as medidas de salvaguardas e cuidados para a proteção das pessoas da pesquisa. Por fim, propomos que a terceira versão, com data de referência estabelecida, também deverá ser apresentada e criticada no coletivo, a exemplo do que foi feito com a segunda versão. Após esse crivo, a versão final poderá ser elaborada. Os períodos de tempo necessários para elaborar cada versão variam e dependem do tempo total disponível; além do mais, devemos considerar os tempos individuais, que, em geral, são diferentes. E ainda: devem ser respeitados os tempos institucionais dos programas de pós-graduação. Assim, quem está na condução de um processo deste tipo deve estar atento aos requisitos específicos de um determinado lugar ou grupo e de cada pessoa envolvida. Uma outra questão merecedora de destaque é a menção a respeito do momento emocional que o estudante vivencia ao longo do processo. Na elaboração da primeira versão, é comum que se viva um momento de muita incerteza: o autor fica em dúvida, até mesmo, da área temática que gostaria de explorar. O que propomos é que seja feita uma escolha de um tema de interesse entre aqueles expressos pelo estudante e que seja suficientemente desenvolvido a ponto de compor uma primeira versão. Em outras palavras, sair da hesitação ou do temor pela mobilidade; iniciar o processo, dando forma material às primeiras idéias, que serão re-elaboradas, refeitas no próprio caminhar; procurar liberar-se de censuras internas, lançar-se, porque que o momento é de começar. No intervalo entre as versões, à medida que explora a literatura e participa de alguma discussão, conversação ou troca sobre o problema que está sendo formulado, é freqüente o estudante experimentar sensações de insegurança, inquietude, ansiedade ou angústia e sentir-se fragmentado ou em desconexão com um contexto estruturado. Em outras palavras, instaura-se um processo de desequilíbrio, uma vez que a pessoa está vivenciando a criação de algo novo, desconhecido, incerto. Aqui sugerimos que, após um período de imersão, de contato intenso com as idéias e a sua formulação escrita, o estudante busque vivenciar outros espaços e cenários, mais amplos, abertos; procure outros interlocutores e campos temáticos, conversa, diversão e arte; busque alguma atividade corporal prazerosa e, também, outras condutas que o levem a entrar em contato consigo mesmo e proporcionem, de algum modo, uma harmonia interior. Assim, é possível conseguir um re-equilíbrio de suas estruturas emocionais, cognitivas, cuja recomposição o permitirá encontrar o sentido para

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aquilo que está sendo formulado. Claro que, nesse processo, o objeto de estudo que está sendo composto poderá distanciar-se muito das primeiras idéias, o que é bastante natural e previsível, pois, se, por um lado, as idas e vindas permitem nossa reorganização interior, por outro, dão-nos maior clareza e consistência na forma de expressão escrita do projeto. A vida, o cotidiano são um fluxo contínuo de impressões que não se repetem (Alves, 2000). Assim, também nesses momentos específicos de criatividade, de intensa emoção e cognição, não poderia ser diferente, ou, como disse Heráclito (apud Alves, 2000, p.44): “tudo flui, nada permanece. Não se pode entrar duas vezes num mesmo rio”. Diante do branco: o papel, a tela, o desafio A respeito dos novos rumos da ciência, o que vem sendo discutido é o re-encantamento do mundo, no qual o universo narrativo é essencial para a conexão dos saberes. Para Prigogine (2001, p.100) A ciência é um diálogo, não um solilóquio, como mostram as transformações conceituais às quais fomos levados nas últimas décadas. Na verdade, a ciência faz parte da procura transcendental que é comum a outras tantas atividades culturais: arte, música, literatura. Sendo a poesia considerada a quintessência da linguagem e, simultaneamente, algo o mais próximo possível da origem, esse movimento é uma tentativa de ser coerente quanto à forma e, em linguagem poética, dizer a gênese do texto a partir de uma palavra. Mas, também, é uma sugestão de como preparar o corpo e o clima propícios à criação. O processo criativo é um diálogo permanente entre o caos e o cosmos: um fluxo entre o abismo, o indiferenciado, o sem-forma, o que ainda não se junta e o borbulhar das palavras, das idéias, dos conceitos, das perguntas. Primeiro, é preciso expandir, andar, ouvir, respirar, para, depois, contrair, concentrar, sentar, respirar. Aqui recordamos Nietzsche (1844-1900), que recomendava só confiar em pensamentos que do movimento vêm vindo... Por isso, não é suficiente apenas o intelecto. Um texto com o corpo todo se escreve; a carne se faz verbo; a luz vira pele. Sobre a origem do mundo, algumas culturas fazem uma relação de similitude simbólica desse início, unindo a água, o ovo, o caos, o sopro e o verbo (Chevalier & Gheerbrant, 1988). É nesse espírito que estamos propondo a embriogênese, como uma metáfora do processo criativo do texto, do projeto. Em meio ao caos, buscar as fontes e os meios de comunicação, de informação, as referências bibliográficas e as pessoas que queiram trocar o saber, compartilhar. Advertimos que, para algumas pessoas, talvez seja importante nesta fase registrar, em um diário, palavras-chave, intuições, imagens, sonhos, livros, filmes, poemas, músicas, consultas à Internet, fantasias, delírios, conversas, idéias e conceitos. Cada etapa é essencial para a construção, pois é um todo o processo criativo. O momento de escrever o texto é o instante de mergulhar, ainda mais profundamente, no caos, pois é sabido que, dessa massa informe, cria-se uma organização, tal e qual os gases na compressão, formação, fornalha das estrelas. Aqui, tudo o que foi sentido, lido, visto, pesquisado, conversado, vivido e em seu diário registrado - palavras, idéias e conceitos sintéticos - precisa ser relacionado, interconectado, buscando-se correspondências, analogias, divergências, convergências, descartes. Cadência, dança das imagens, ímãs, frases, elos, modelos, montagens. A palavra é quem convoca. No início, é o ritmo: toque, batuque, atabaque, coração sístole-diástole, tesão, onda, flutuação, vibração, respiração. Um texto bem respirado pode ser mais corajoso. Uma simples palavra que fica ressoando pode estimular todo um imaginário. A palavra-chave, a palavra-valise, que contém em si outras

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palavras, pode conduzir ao texto: um tecido, uma tessitura, uma tecelagem, um vaivém narrativo, um labirinto, uma tentativa-erro-acerto, risco, jogo, antes de tudo, prazeroso. Nesta fase, os dicionários, especialmente os etimológicos e simbólicos, são ainda mais essenciais, por permitirem distinções, esclarecimentos, classificações, ampliações. É preciso estar aberto ao acaso, ao inesperado, ao improviso, aos acontecimentos fortuitos, misteriosos, sutis, encantados, poéticos, ao que não estava no início, integrando-os ao texto e mesmo transmutando-o. A pressa é inimiga da afeição. Qualquer gênero de texto precisa de emoção, dedicação, tempo, envolvimento, paixão. Não ter pressa, mas, também, não perder tempo, o que significa dizer: evitar a ansiedade, essa maneira de não estar à vontade em lugar algum, porém sempre em trânsito permanente, inquieto, impaciente. Algo atemporal, o brincar é inerente aos humanos e a outras espécies - é uma arte usufruir o durante. Não rentabilizar cada instante, tempo não é dinheiro; nem se render ao contágio coletivo, que confunde eficiência com velocidade. Temos cronogramas e prazos, mas é preciso saber saborear. Senso do dever, sim, mas nunca esquecer que flui mais fácil o que vem do prazer... Compreendemos o espaço-tempo como uma tentativa do bem-viver. Aprender a ser, para bem dizer. À nossa criatividade se oferece cada dia a ser vivido: é uma música, uma dança, uma pintura, um amor, um poema, uma obra de arte. A obra aberta vida Para a redação do texto, gostaríamos, ainda, de sugerir um roteiro de critérios que pudesse servir de orientação, avaliação, instrumento de navegação. É inspirado no livro Seis propostas para o próximo milênio (Calvino, 1990) e aqui está adaptado livremente. Leveza: linguagem arejada, sóbria, despojada, sem excesso de rebuscamento estilístico nem artificialismo; simples, sutil, delicada, cuidadosa, atraente. Rapidez: é a vibração, o entusiasmo do texto; mesmo que envolva divagações, que salte de um assunto para outro, não perder o fio do relato; evitar redundância, que é comum e necessária na comunicação oral, mas cansativa na escrita. Rapidez de estilo e de pensamento quer dizer agilidade, mobilidade, desenvoltura. Exatidão: senso de medida, parcimônia, precisão; projeto bem definido e calculado; escrita enxuta, sintética - ter coragem de cortar o supérfluo, o excessivo, o que nada acrescenta; uma compressão máxima, exatidão, é a busca do quase inefável, o limite entre o silêncio e a linguagem. Visibilidade: é o jogo entre a visualização e a verbalização do pensamento. A imaginação, embora siga outros caminhos que não os do conhecimento científico, pode coexistir com este último e mesmo ampliá-lo, porque a ciência não precisa ser seca, sem graça. O texto deve evidenciar, de modo claro e raro, as essências e medulas do sentir, pensar, ver, imaginar, ser, fazer. Visibilidade é criar encantamento, imagens memoráveis. Multiplicidade: é abrangência, rede de relações, conexões entre pessoas, fatos, coisas do mundo; analogias, pontes entre os diversos campos dos saberes, dos sabores. É preciso levar em conta a pluralidade, complexidade, especificidade, diversidade e singularidade das linguagens, dos sistemas e estruturas, das culturas. A incompletude é inevitável não só pela imperfeição ou impossibilidade de apreender a coisa em si, mas também pelos limites de expressão inerentes a toda obra. Entretanto esse inacabamento é também necessário para estimular novos desafios e permitir abertura - continuidade, desdobramento e criatividade para nós mesmos e, principalmente, para os outros. Consistência: não houve mais tempo para Calvino (1923-1985). Essa proposta não chegou a ser escrita, porém ousamos imaginá-la. O critério foi etimológico. Em latim con-sistere: ser constituído, compor-se, sustentar-se, fundar-se; perseverança, firmeza, constância, compatibilidade; estar tranqüilo, seguro, senhor de si; ser conduzido a parar, cessar, acabar, terminar (Saraiva, 2000). Sinuosa, teimosa, autopoiética, incompleta, a vida é obra aberta. E a vida humana, sendo também linguagem, é símbolo, “joga unindo”, busca significado. E tudo indica que o que dá

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sentido é a criatividade: inacabada, encantada, infinita... Portanto, nossas criações nunca têm considerações finais. Assim, um texto é sempre aperfeiçoável e um projeto está para ser iniciado; no seu decorrer, é mudado, desdobrado, ampliado. Mas há um momento em que decidimos cessar, terminar, porque, dentre os critérios sugeridos, há consistência. Então, abandonamos a nossa cria, porque ela precisa ganhar o mundo, andar sozinha, por si mesma tentar contribuir e porque, também, o permanente criar traz novas alegrias e a vida continua... O silêncio O tanto que foi escrito sobre a elaboração de textos e projetos é um vasto e precioso acervo. Nossa intenção não é esgotar o assunto, mas agregar algo ao que nos parece serem lacunas desses trabalhos: a insuficiência de indicações quanto à postura corporal, emocional e cognitiva bem como de referências quanto ao próprio processo criativo do texto e do projeto; e ainda pouca ênfase na construção não-linear do processo. Este artigo, e outros desdobramentos das reflexões aqui feitas só foi possível graças à experiência permanente de trocas, dúvidas, tentativas e realizações compartilhadas com os nossos estudantes, aos quais muito agradecemos. O silêncio do texto é um paradoxo. O texto começa e termina com o silêncio. O silêncio final é um momento de relaxamento, de aconchego, de saborear o dever cumprido e o prazer sentido, de meditar, parar o interior diálogo, silenciar. Referências ALVES, R. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Loyola, 2000. CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. BASTOS, L.R.; FERNANDES, L.M.; PAIXÃO, L.; DELUIZ, N. Manual para a elaboração de projetos e relatórios de pesquisa, teses, dissertações e monografias. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1995. BEAUD, M. Arte da tese. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988. CONTANDRIOPOULOS, A. P.; CHAMPAGNE, F.; POTVIN, L.; DENIS, J. L.; BOYLE, P. Saber preparar uma pesquisa: definição, estrutura, financiamento. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1994. COSTA, M.A.F.; COSTA, M.F.B. Metodologia da pesquisa: conceitos e técnicas. Rio de Janeiro: Interciência, 2001. ECO, U. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1993. ENCICLOPÉDIA MIRADOR. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Ltda, 1986. FRANÇA, J.L.; VASCONCELLOS A.C.; MAGALHÃES, M.H.A.; BORGES, S.M. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. Belo Horizonte: UFMG, 2003. GARCIA, R. Interdisciplinariedad y Sistemas Complejos. In: LEFF, Enrique. (Org.) Ciencias sociales y formación ambiental. Barcelona: Gedisa,1994. p.41-65. GARAUDY, R. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1996. GOLDENBERG, M. A arte da pesquisa. Rio de Janeiro: Record, 1999. KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1996. LAKATOS, E.M.; MARCONI, M.A. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Atlas, 1992.

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This article aims to contribute to the study of the production of academic texts and research projects by post-graduate students. It relies on the constructivist conception of knowledge, whereby learning is seen as a continuous process of recomposition of cognitive structures, with contributions from Humberto Maturana on the central role of emotion and language in coming-to-be. It is suggested that the metaphor of embryogenesis is an apt one for the evolution of a research project. The research project begins with a template and takes shape during the course of successive phases, like an embryo, attributing its components to undifferentiated cells, which simultaneously differentiate themselves, giving rise to the project as a whole. The article also presents a series of criteria for evaluation of writing and reflection based on flows of emotion and attitudes, as a way of overcoming the challenge posed by the blank page or screen, which can help us to use our creative process in a more productive, consistent and pleasurable manner. KEYWORDS: creative process; text-production; writing research projects; constructivism; emotion; cognition. Este artigo pretende contribuir para o processo de criação de textos e projetos de pesquisa acadêmicos por estudantes de pós-graduação. Tomamos por base uma concepção construtivista do conhecimento, a aprendizagem como um processo contínuo de recomposição das estruturas cognitivas e contribuições de Humberto Maturana quanto ao papel central da emoção e da linguagem no nosso devir. É a partir de uma metáfora, a embriogênese, que propomos a geração de um projeto que, partindo de uma estrutura-padrão, vá constituindo-se em movimentos sucessivos, de forma similar ao desenvolvimento embrionário, associando seus componentes a células indiferenciadas que vão, simultaneamente, diferenciando-se e dando origem a esse todo-projeto. Ademais, incorporamos sugestões de um roteiro de critérios, para avaliar a redação, e de reflexões acerca dos fluxos emocionais e atitudes perante o desafio diante do papel ou da tela em branco, que nos podem auxiliar na vivência do processo criativo, de modo mais produtivo, consistente e prazeroso. PALAVRAS-CHAVE: processo criativo; texto; elaboração de projetos de pesquisa; construtivismo; emoção; cognição. Este artículo pretende contribuir al proceso de creación de textos y proyectos de investigación académica, por estudiantes de postgrado. Tomamos como base una concepción constructivista del conocimiento; el aprendizaje como un proceso continuo de recomposición de las estructuras cognitivas y contribuciones de Humberto Maturana en lo que respecta al papel central de la emoción y del lenguaje en nuestro devenir. Es a partir de una metáfora, a embriogénesis, que proponemos la generación de un proyecto que, partiendo de una estructura estándar, se va constituyendo en movimientos sucesivos, de forma similar al desarrollo embrionario, asociando sus componentes a células indiferenciadas que van, simultáneamente, diferenciándose y dando origen a ese todoproyecto. Además, incorporamos sugerencias de un guión de criterios, para evaluar la redacción, y de reflexiones acerca de los flujos emocionales y actitudes ante el desafío frente al papel o frente a la pantalla en blanco, que pueden auxiliarnos en la vivencia del proceso creativo, de forma más productiva, consistente y placentera. PALABRAS CLAVE: proceso creativo; texto; elaboración de proyectos de investigación; constructivismo; emoción; cognición.

Recebido para publicação em:18/05/05. Aprovado para publicação em: 02/07/05.

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criação

Doutor es da ética da alegria outores

Morgana Masetti 1

Quem dá conselhos a um homem doente adquire uma sensação de superioridade sobre ele, não importando se eles são acolhidos ou rejeitados. Por isso

Juan Esteves

há doentes suscetíveis e orgulhosos que odeiam os conselheiros mais que a doença. (Nietzche, 2001, p.198)

Os Doutores da Alegria são uma organização artística do terceiro setor, que desde os anos 1990 leva o trabalho de atores profissionais para dentro de hospitais. Utilizando a figura do palhaço que acredita ser médico e realiza “exames” e “consultas”, o artista passa a fazer parte do dia-a-dia das enfermarias, visitando duas vezes por semana todas as unidades em que há crianças e adolescentes internados e interagindo, também, com seus acompanhantes e profissionais do hospital. Em 1991, Dr. Zinho, palhaço pioneiro, possibilitou com essa iniciativa que muitas crianças vissem pela primeira vez um palhaço e uma intervenção teatral. O hospital, então, passou a experimentar fronteiras no mínimo não usuais a sua realidade, reinserindo questões da vida à rotina asséptica e controlada.

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Psicóloga, coordenadora do Centro de Estudos dos Doutores da Alegria Formação e Desenvolvimento. <morgana.ops @terra.com.br>

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Rua Alves Guimarães, 73 Pinheiros - São Paulo, SP 05.410-000

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CRIAÇÃO

Juan Esteves

Naquela época, a figura do palhaço era algo absolutamente incomum ao cenário das macas e enfermarias. Graciosamente destoante, habilmente desconcertante e não ameaçador. Uma imagem que propunha aos adultos que cruzavam seu caminho um tempo de reflexão para tentar aproximar o mundo médico ao do circo. Isso representava algo novo em uma época em que o pensamento médico evoluía em alguns conceitos. Evoluir? Na ocasião não pensávamos nisso, o programa precisava sobreviver em um contexto ainda dormente para investimento em ações culturais. Entretanto, a semente encontrou um solo propício. Dra. Emily, Dra. Ferrara, Dr. Dog, Dra. Sirena e tantos outros vieram em seguida e vivem com suas inúmeras histórias para contar (hoje são 36 atores, que atuam em dez hospitais, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife).

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Juan Esteves

Em treze anos, o terceiro setor cresceu no país. Mais e mais os hospitais passaram a abrir suas portas para atividades “extracurriculares” aos diagnósticos e intervenções técnicas. O tempo passou. Dr. Escrich, Dra. Manela, Dr. Zorinho, Dr. Zapatta Lambada... E mais histórias. Histórias da vida de um povo. Da saúde do país. Com o que víamos nos hospitais, com os depoimentos dos artistas durante nossas reuniões e os relatórios de atividades escritos por eles, fomos estabelecendo um referencial para a construção de uma ética que valida nosso fazer. Não foi só a decisão de levar o palhaço ao hospital. Agora era também o que o hospital nos contava e sobre o que nos convidava a pensar. A miséria da morte e da vida. A violência do filho espancado, dos órfãos da Aids. Criança com cordão umbilical chegando da lata de lixo. Falta de remédio, falta de sabão, de mãos. E a proposta de continuar a se surpreender com este cenário. Essas imagens passaram a nos habitar, juntamente com o respeito aos profissionais de saúde cujas carreiras estão repletas delas e, mesmo assim, continuam a investir nas relações humanas. Hoje, treze anos depois, a humanização se instala como a palavra que ordena essas ações: brinquedotecas, bibliotecas circulantes, contadores de histórias, recreacionistas, música, artes plásticas. O número de voluntários cresceu enormemente nos hospitais e a quantidade de grupos que se utilizam da máscara do palhaço também: mais de 180 grupos cadastrados em pesquisa realizada pelo Centro de Estudos Doutores da Alegria em 2001.

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Hoje, nossa inquietude é muito maior que no início de nossas atividades. Surgem perguntas diversas: será que todo esse caminhar, aliado ao reconhecimento crescente dos departamentos de humanização, fará com que corramos o risco de ir para casa e dormir tranqüilos, acreditando ter dado conta da complexidade do trabalho a que nos propusemos? Chegaremos a criar uma ISO da humanização para os hospitais? Ou então algo como os “dez passos” para humanizar? Esperamos continuar nas questões essencialmente humanas, para honrar a complexidade do tema. A atualidade nos traz angústia e oportunidade. A angústia: percebermos que, mais do que nunca, estamos conectados a uma enorme rede. Tudo o que acontece no mundo nos diz respeito, atinge-nos visceralmente. Cada vez mais acordamos para nossa conectividade com outros fusos, com a sociedade planetária da qual fazemos parte. A chamada a essa consciência é palavra de ordem em fóruns sociais, publicações e em nosso trajeto cotidiano. Hoje sabemos que nossa ação individual pode influir, indicar direções, não precisamos mais esperar governos ou instituições e essa lucidez leva-nos para o outro lado da angústia: a oportunidade. Por que falar disto? Porque qualquer temática social não pode perder de vista essas questões. Elas acarretam conseqüências à opção de ser um Doutor da Alegria que vão muito além da exigência de um nariz vermelho. Faz com que pensemos na educação do futuro, no mundo em que as crianças de hoje viverão, na oportunidade de criar uma legislação planetária mais justa, menos excludente. Esse cenário contextualiza nossos anseios para encontrarmos a medicina do futuro. O oficio do palhaço fala do esforço do homem de se entregar à única condição possível de existência: a da relação humana. Ele nos re-conecta com essa potencialidade e com a essência da medicina, esse fascinante universo pelo qual anda nosso imaginário sobre vida e morte, por onde circulam afetos e desejos impressos nos corpos. Espaço em que os sentidos do olhar, ouvir e tocar fazem circular esses acontecimentos. Por que, então, a necessidade de o palhaço ocupar esse cenário? Talvez porque a medicina, em seu movimento de capitalização, esteja se afastando desse sentir, ameaçando as pessoas à medida que essa riqueza cultural é privatizada e inserida numa lógica econômica. E porque é possível que a atuação do palhaço nos ajude a constatar o absurdo que a apropriação desse imaginário pode significar.

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O aumento pela procura de terapias alternativas mostra que parte da sociedade está buscando formas de questionar a medicina oficial. Um momento de ambigüidades, em que convivem o modelo médico capitalista americano implantado em hospitais-hotel (ou serão hotéis-hospital?) e os hospitais públicos. Um tempo em que parte do mal-estar da civilização moderna está ligado ao desaparecimento de espaços que incentivem e dêem sentido às forças e questões da vida. Uma época em que a depressão aparece como o segundo problema mundial de saúde, já com projeção para tornar-se o primeiro em dez anos. Uma conjuntura em que o utilitarismo médico fortalece esse mal-estar ao deixar de ser continente para tais questões. Neste jogo de forças, o cenário das Organizações Não-Governamentais no Brasil está dividido: muitas deixaram de buscar capital para cumprir sua função mobilizadora e tornaram-se uma nova possibilidade de geração de renda dentro da lógica de mercado: bem colocadas no marketing empresarial travestido de responsabilidade social. Peter Pál Pelbart (2000) ajuda-nos a entender um pouco esse movimento. Em seu livro A vertigem por um fio ele nos mostra como o capitalismo, mediante a incorporação de tendências, gestos, modos e opiniões, devora fronteiras e elimina exterioridades, o que Deleuze (1978) chama de “as forças do fora”. Essas forças nos ajudam a colocar o pensamento em estado de exterioridade, quando diversos pontos de vista podem se relacionar. A saúde, por meio da loucura, exemplifica essa possibilidade. A forma como o louco vê o mundo coloca o homem em contato com uma exterioridade enigmática, na qual ele pode se confrontar com outros lados de si mesmo. Com a lógica atual, tanto a loucura como o inconsciente se incorporam ao cotidiano banalizado. A cada dia criam-se novos rótulos médicos para comportamentos bizarros que são descritos e, se possível, medicados. Esses comportamentos podem, então, circular no mercado com seu poder de venda e compra de tratamentos, ganhando um espaço de circulação social e perdendo sua exterioridade. Segundo Pelbart (2000), uma grande evidência da incorporação dessa exterioridade ao humano como processo seria o irônico nome de humanização, "através dele e de sua dialética diabólica teremos conseguido o impensável: abocanhar nosso próprio exterior" (p.57). Sabemos, então, que qualquer tentativa de questionamento atual percorre esses sinuosos e sutis caminhos. A experiência artística construída pelos Doutores da Alegria ajuda a pensar questões da medicina atual, criando exterioridades. Essas linhas de fuga são criadas a partir do modo como o palhaço enxerga a realidade a sua volta. Por meio de sua máscara, esse personagem tem autorização da comunidade para operar sobre uma lógica de pensamento não linear ou racional. O erro, o ridículo, o absurdo são bem vindos como materiais que tornam efetivo esse olhar. Novos pontos de vista são criados: o carrinho das refeições dos hospitais pode se transformar em um trem, devido a seu barulho; e o posto da enfermagem pode virar um balcão de pizzaria. Ou seja, o foco é totalmente concentrado no presente e na construção de uma relação lúdica. Desta forma, um médico pode assistir a um palhaço interagindo com uma criança inconsciente em uma UTI. Esse fato abre espaço para que algo novo se interponha na lógica cotidiana que diz que ali não existe forma de contato. O palhaço que trabalha com uma criança poucos momentos antes de ela morrer resgata a força do aqui e do agora, interrompendo a lógica do prognóstico que

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define, em geral, o investimento de energia das relações dentro do hospital. A complexidade desses fatores nos levou a criar um Centro de Estudos de pesquisa e desenvolvimento na área. Mediante publicações científicas (ver Masetti, 1998) e Programas de Formação (<www.doutoresdaalegria.org.br>), buscamos criar estados de exterioridade, espaços de potência. Desejamos colaborar para que a medicina se religue à complexidade social da experiência médica. Como atores desse movimento, estamos inseridos em um enfrentamento entre a lógica da medicina como fenômeno social e a lógica capitalista. Nossa capacidade de criar espaços propícios de reflexão e estabelecer alianças com a sociedade será vital para influir nos acontecimentos futuros. Referências DELEUZE, G. Espinosa e os signos. Portugal: Editora Reis, 1978. MASETTI, M. Soluções de palhaços: transformações na realidade hospitalar. São Paulo: Palas Athena, 1998. PELBART, P. P. A vertigem por um fio: políticas de subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000. NIETZSCHE, F. Humano, demasiadamente humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia da Letras , 2001.

Juan Esteves

<http://www.doutoresdaalegria.org.br>

Recebido para publicação em: 31/05//05. Aprovado para publicação em: 07/06/05.

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informes

VIII ComS aúde 2005 ComSaúde

A Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), juntamente com a Cátedra da UNESCO de Comunicação, no Brasil, vai realizar de 5 a 7 de outubro de 2005, no câmpus de São Leopoldo, o VIII COMSAÚDE. O evento vai reunir instituições, professores, pesquisadores, profissionais e estudantes dos campos da Comunicação e da Saúde, em torno do tema “Mídia, Saúde e Trabalho”. No encontro, refletem-se sobre aspectos da comunicação nos níveis da teoria e da prática, contribuindo para o desenvolvimento de políticas e o implemento de práticas de saúde voltadas para o interesse da sociedade, especialmente junto aos setores sociais mais carentes desses benefícios. A reunião de São Leopoldo é provocada por uma questão que inquieta os profissionais – nas suas mais diferentes atividades – dos dois campos: como a mídia está contribuindo para prevenir e reduzir os problemas de saúde relacionados ao trabalho? Como pode a Comunicação e, em particular a mídia, colaborar para diminuir o sofrimento e os gastos desnecessários causados por “acidentes” de trabalho? A proposta do VIII COMSAÚDE , com o tema “Mídia, Saúde e Trabalho”, é realizar um conjunto de atividades que tenham como referência contribuições nacionais, e especialmente na região Sul, de pessoas que estejam engajadas em projetos cujas práticas sejam permeadas por processos e linguagens comunicacionais. Além do debate sobre as experiências em desenvolvimento, um dos objetivos da COMSAÚDE é o fortalecimento de suas redes de interação e de cooperação que se ampliam e se fortalecem a cada encontro.

Histórico do evento As Conferências de Comunicação e Saúde realizam-se anualmente desde 1998, numa parceria da Cátedra Unesco para o Desenvolvimento Regional, sediada na Universidade Metodista de São Bernardo do Campo (UMESP), com várias universidades do país. O último encontro aconteceu em Olinda, PE, em 2004, na AESO (Ensino Superior de Olinda) e teve o tema“Mídia e Alimentação: da fome à obesidade”. A estrutura do encontro deste ano está organizada em torno de três painéis temáticos temáticos: Mídia e acidentes de trabalho; Mídia e saúde ocupacional; e Mídia e saúde ambiental. Os grupos de trabalho incluem: 1 comunicação popular; 2 comunicação comunitária; 3 comunicação interpessoal; 4 comunicação institucional; 5 comunicação digital; 6 jornalismo; 7 publicidade, propaganda e relações públicas; 8 mídia impressa, sonora e audiovisual; 9 políticas de comunicação aplicadas à saúde; 10 projetos de comunicação aplicados à saúde. Informações e inscrições: Prof. Antônio Fausto Neto <fausto@unisinos.br> Profª. Maria Lília Castro <mlilia@unisinos.br>

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SÍLVIA MECOZZI, detalhe 460

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