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ISSN 1414-3283

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação v.9, n.16, set.2004/fev.2005


Interface - comunicação, saúde, educação/ Fundação UNI/UNESP, v.9, n.16, set.2004/fev.2005 Botucatu, SP: Fundação UNI/UNESP Semestral ISSN 1414-3283 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde I Fundação UNI II UNESP

Filiada à




APRESENTAÇÃO Este número de Interface brinda-nos com textos que analisam as possibilidades de o Programa de Saúde da Família (PSF) contribuir para o desenvolvimento de um novo paradigma no Sistema Único de Saúde e de formação dos trabalhadores de saúde. Além do Dossiê sobre o PSF e dos Debates sobre Educação Permanente em Saúde, a revista traz uma análise da produção científica sobre programas de prevenção do consumo de drogas, bem como artigos que privilegiam os sujeitos das práticas de saúde, sejam os negligenciados pelo modelo médico hegemônico, como mães ou idosos, sejam aqueles submetidos a espaços de aprendizagem e de encontro e troca entre professores e alunos. Os textos do Dossiê apresentam um olhar sobre o sistema de serviços de saúde no Brasil a partir dos modelos de atenção, destacando desafios quanto à realização do princípio da integralidade na produção de cuidados. Reconhecem o PSF como uma das estratégias de reorientação do modelo de atenção, ainda que incapaz, até o momento, de viabilizar a ruptura do modelo hegemônico. Nas palavras de Scherer et al. (2005): ou o SUS se consolida, respeitando-se seus princípios e diretrizes, pela implantação efetiva de suas estratégias operacionais, tal como o PSF, ou se mantém o modelo dominante clínico/biológico/flexneriano. Já o artigo de Iêda da Silva e Leny Trad, ao problematizar a articulação técnica e a interação entre os agentes-sujeitos no trabalho em equipe, ilumina aspectos da questão que transcendem o PSF, apontando a problemática dessa forma de trabalhar em saúde nas sociedades capitalistas contemporâneas. Reconheço o PSF como uma das políticas públicas mais exitosas implementadas no Brasil, não só pela dimensão quantitativa que alcançou, mas sobretudo pelas novas relações que engendrou na construção do SUS. A despeito de sua expansão e de seus avanços, mantém-se subalterno às políticas de saúde hegemônicas. Mesmo em municípios considerados exemplares e em equipes reconhecidas como mais desenvolvidas, constata-se a defasagem entre a realidade e as proposições do Ministério da Saúde, com sérios reflexos no cotidiano do trabalho. A cobertura insuficiente do programa diante da ocupação desordenada do espaço urbano e da ampliação da miséria, penaliza as equipes comprometidas com seu ideário e com a qualidade da atenção e tende a reforçar a focalização em vez de políticas que radicalizem o projeto da Reforma Sanitária Brasileira. Trabalhar com quase duas mil famílias cadastradas e atendendo 14 consultas em turnos de quatro horas significa retornar a problemas “pré-históricos” dos modelos de atenção e reproduzir o “modelo de desatenção” vigente, desacreditando o PSF perante a população. Enquanto o paciente “roda” pelos pronto-socorros e pela unidade de saúde da família que não foi capaz de resolver seu problema, desmoraliza-se todo o discurso do programa e desqualifica-se o projeto ético-político de proponentes e dirigentes do SUS. Se os critérios, agentes e condutas utilizados na triagem não passam pelo crivo da discussão com a comunidade como imaginar que pessoas doentes e fragilizadas aceitem de bom grado que não serão atendidas, especialmente tratando-se de crianças, gestantes ou urgências? Que dificuldades técnicas ainda impedem consultas com hora marcada? Como aceitar que se estabeleça o mesmo número de consultas para o profissional do PSF e para uma unidade básica convencional? Enfim, sem superar problemas de infra-estrutura, como enfrentar novas questões para promoção da saúde, prevenção de danos e riscos e para o cuidado integral, incluindo aspectos psicossociais? A oferta organizada e a vigilância da saúde não constituem propostas de mudança de modelos assistenciais para racionar ou reduzir custos da assistência, mas mudar a racionalidade ou, no mínimo, possibilitar maior racionalização no uso dos recursos visando a alcançar maior efetividade. Rotinas draconianas que estabelecem 50% das vagas de odontologia para a faixa etária de zero a 14 anos, que asseguram apenas um retorno para as demais faixas etárias e que estabelecem cota mensal de consultas e procedimentos para cada equipe na atenção especializada só podem gerar stress nos trabalhadores comprometidos, conflitos entre membros da equipe e perda de legitimidade do PSF diante dos cidadãos. As tensões observadas na vida cotidiana das equipes e na participação dos sujeitos no planejamento do trabalho, particularmente o local e o municipal, colocam novas questões no sentido de desobstruir as passagens de agentes da equipe para sujeitos-agentes históricos. Em vez de contrapor o agir comunicativo ao agir estratégico, o cotidiano dos serviços pode ser pensado como espaço político para instauração de relações sociais voltadas para a emancipação dos sujeitos. Para tanto, entraves na

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construção de um projeto assistencial comum precisam ser enfrentados. Uma supervisão com caráter político-pedagógico e técnico merece ser considerada pelos responsáveis pelo PSF. A consciência da potência do trabalho pode sugerir alguns caminhos que transcendam o educativo e o cultural na organização pública de saúde e reponham a ação política no cotidiano institucional e os cálculos de “custo-benefício” realizados pelos sujeitos nas suas escolhas. Assim, o controle democrático sobre o processo de trabalho não pode ser escamoteado. Não se trata do controle interno efetuado verticalmente pela enfermeira sobre os auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde, ignorando-se como se dá o trabalho do médico e do dentista, mas de alternativas de supervisão de equipes que problematizem o autoritarismo dos profissionais e mesmo dos agentes comunitários de saúde sobre os usuários e que fomentem valores de autonomia e de emancipação dos sujeitos. Nesse particular, as reflexões apresentadas por Silvia Matumoto et al. (2005) acerca da supervisão de equipes no PSF redimensionam a concepção dominante de supervisão e sugerem pistas para o desenvolvimento de abordagens alternativas: supervisão externa com o objetivo de facilitar o enfrentamento de dificuldades, dos movimentos de resistência que produz, mediante sucessivos processos de idas e vindas, de auto-análise e auto-gestão que podem encorajar a arriscar novas formas de produzir as ações de saúde. Trata-se de uma supervisão centrada em práticas político-pedagógicas e não apenas gerenciais. Daí ser imprescindível a crítica da formação pedagógica em saúde, uma das possíveis vias de reprodução do modelo médico hegemônico no campo da saúde. Os trabalhadores de saúde que têm sido formados, conformados e reformados como “sujeitos assujeitados” dentro e fora das universidades têm muita dificuldade de estabelecer relações educativas dialógicas junto aos cidadãos. É ilustrativo o fato de profissionais de saúde do PSF, mesmo em municípios que o adotaram como estratégia de reorientação do sistema de serviços de saúde, apontarem dificuldades para o desenvolvimento de práticas educativas. Todavia, não basta argüir a pertinência de mudanças na formação universitária desses profissionais e de implantação de programas de educação permanente nos serviços. Cabe pensar e agir sobre os processos de trabalho, acionando dispositivos para alterar relações técnicas e sociais (políticas, ideológicas e simbólicas) nas organizações. Nesse sentido, o investimento e a aposta na capacidade comunicativa e dialógica dos sujeitos, bem como a valorização e promoção de espaços de reflexão conjunta dos agentes não representam apenas proposições políticas da luta contra-hegemônica mas expressam uma necessidade concretamente estabelecida pelo próprio modo de produção do cuidado em saúde. Na medida em que os profissionais de saúde não têm sido preparados para ser sujeitos autônomos, face à educação bancária que recebem e à supremacia da cultura biomédica, não é de estranhar a reprodução dessas relações e valores junto aos pacientes, às famílias e às comunidades. Vânia Alves, em seu artigo, revisa o estado da arte referente às práticas educativas em saúde e discute uma proposta dialógica considerada coerente com o PSF. A identificação de tendências contra-hegemônicas, ainda que minoritárias, em certas organizações de saúde, no pensamento de intelectuais formuladores e na prática de alguns profissionais, sugere que o modelo dialógico é possível e indica a necessidade de alianças para a mudança na atual correlação de forças. As reflexões produzidas por Ricardo Ceccim, Mario Rovere e Emerson Merhy sobre educação permanente em saúde representam uma ilustração das possibilidades dessas alianças. Nessa perspectiva, impõe-se, permanentemente, uma análise escrupulosa da realidade e uma contextualização dos conceitos e categorias de análise para que idéias, suposições ou hipóteses possam se distinguir de proposições políticas conseqüentes em cada situação concreta. A passagem de “recursos humanos” para a situação de atores sociais não depende só de um ato de vontade, como assinala Rovere: “Esta transformação é complexa e profundamente social já que incluir-se nas lutas pelo direito à saúde requer condições e tempos de maturação”. A construção de uma prática educativa em saúde, culturalmente sensível e dialógica, dentro ou fora do PSF, não será resultante apenas de uma transformação cultural ou pedagógica, mas de uma nova distribuição do poder em saúde como um dos componentes estratégicos da construção cotidiana da mudança societária. Isto é política, além de pedagogia e cultura. Jairnilson Silva Paim Professor, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia <jairnil@ufba.br> 6

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PRESENTATION This issue of Interface presents us with texts analyzing the possibility of the Family Health Program (PSF – Programa de Saúde da Família) contributing to the development of a new paradigm for the Single Healthcare System (SUS – Sistema Único de Saúde) and the training of healthcare workers. In addition to the dossier on the Family Healthcare Program and the Debates on Permanent Healthcare Education, the magazine offers an analysis of scientific production about drug use prevention programs, as well as articles focusing on those who are the subjects of healthcare practices, regardless of whether they are overlooked by the hegemonic medical model, such as mothers or senior citizens, or whether they are subject to the arenas of learning and interchange between professors and students. The Dossier texts cast a glance over the healthcare services system in Brazil from the standpoint of care models, highlighting challenges to the realization of the principle of integrality in the production of care. They recognize the Family Healthcare Program as one of the strategies for reorienting the care model, although it has showed itself incapable, thus far, of enabling a rupture from the hegemonic model. In the words of Scherer et al, (2005): either the Single Healthcare System (SUS) becomes consolidated and its principles and guidelines are respected, through the effective implementation of its operating strategies, such as the Family Health Program, or the dominant clinical / biological / Flexnerian model will be maintained. As for the article of Iêda da Silva and Leny Trad, in problematizing the technical articulation of and the interaction between the agents-subjects in teamwork, it casts a light upon aspects of the issue that transcend the Family Health Program, pointing to the problematics of this way of working in the healthcare field in contemporary capitalist societies. I recognize that the Family Health Program is one of the most successful public policies implemented in Brazil, not only because of the quantitative dimensions it has reached, but above all because of the new relations is has established in the construction of the Single Healthcare System. Despite its expansion and advances, however, it remains subject to hegemonic healthcare policies. Even in towns regarded as exemplary and among teams recognized as the most developed ones, one can see there is a gap between reality and the proposals put forth by the Ministry of Health, with severe effects on day-to-day work. The program’s insufficient coverage in the face of a haphazard occupation of urban space and of the expansion of poverty penalizes the teams that are committed to its ideas and to the quality of care, tending to enhance a narrow focus, to the detriment of policies that radicalize the project of Brazilian Sanitary Reform. Working with almost two thousand registered families and carrying out 14 consultations in four-hour shifts means slipping back to the “prehistoric” problems of care models and reproducing the “inattentive model” that is currently in force, thereby discrediting the Family Health Program in the eyes of the population. As the patient goes round and round emergency rooms and the family health unit that was unable to solve his problem, the entire line of discourse underlying the program becomes demoralized and the ethical and political project of the proponents and heads of the Single Healthcare System (SUS) become disqualified. If the criteria, agents and conducts employed in the sorting process do not undergo a critical examination by and a discussion with the community, how can one imagine that people who are both sick and in a frail position will be happy to accept that they will not be seen to, especially when children, pregnant women or urgencies are involved? What are the technical difficulties that still stand in the way of making appointments for a set time? How can one accept that the same number of consultations be established for a Family Health Program professional and for a conventional basic unit? In sum, unless infrastructure issues are overcome, how can one face new issues regarding the promotion of health, the prevention of damage and risks and the fostering of overall care, including psychosocial aspects? Organized offerings and vigilance of health issues do not constitute a proposal for changing care models in order to rationalize or reduce care costs, but for changing the rationality or, at the very least, enabling a more rational use of resources, with a view to attaining greater effectiveness. Draconic routines that establish that 50% of the dental slots must be allocated to the zero to 14 years of age group, that only ensure one return for the other age groups and that establish a monthly quota of consultations and procedures for each team where specialized care is concerned can only generate stress among committed workers, conflict among the team members and loss of the legitimacy of the Family Health Program among citizens. The tensions observed in the day-to-day life of the teams and the participation of the subjects in planning the work, especially local work and municipal work, pose new questions regarding the removal of obstructions to the transformation of team agents into historical subjects–agents. Instead of contraposing communicative action to strategic action, the daily activities of the services can be thought of as a political arena for the establishment of

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social relations focused on the emancipation of the subjects. To this end, hindrances in the construction of a common care project must be faced. A supervision of a political, pedagogical and technical nature must be considered by those responsible for the Family Health Program. An awareness of the power of the work may suggest certain paths that transcend educational and cultural aspects in the organization of public healthcare and replace political action in the institutional quotidian and “cost-benefit” calculations worked out by the subjects as part of their choices. Thus, democratic control over the work process cannot be snatched. The issue is not the topdown internal control of the nurse over the nursing aides and community healthcare agents, the process whereby the dentist’s and the physician’s work is carried out being ignored, but team supervision alternatives capable of problematizing the authoritarianism of professionals and even of community healthcare agents vis à vis the users and of fostering the values of subject autonomy and emancipation. Regarding this particular issue, the reflections put forth by Silvia Matumoto et al (2005) concerning team supervision in the Family Health Program lend new dimensions to the dominant conception of supervision and provide clues for the development of alternative approaches: external supervision with the purpose of making it easier to face difficulties and the resistance produced, by means of successive processes of coming and going, of auto-analysis and auto-suggestion that may encourage one to risk new ways of producing healthcare actions. This is a type of supervision centered on political and pedagogical practices, rather than only on managerial practices. Hence the fact that it is indispensable to have a critical view of pedagogical training in the health care area, this being one of the possible paths for reproduction of the hegemonic medical model in the healthcare field. Healthcare workers that have been educated, conformed and reformed as “subjects devoid of will” both within and without universities have a great deal of difficulty establishing dialogical, educative relations with citizens. An illustration of this is the fact that healthcare professionals from the Family Health Program, even in towns that have adopted the program as a reorientation strategy for their healthcare services system, point to difficulties in the development of educational practices. However, arguing in favor of the relevance of changes in the higher education of these professionals and in the implementation of permanent educational programs in the services is not enough. It is necessary to think and to take action concerning the work processes, by activating possibilities for altering technical and social relations (political, ideological and symbolic) in the organizations. In this sense, an investment and a bet on the communicative and dialogical capacity of the subjects as well as recognition of the value of promoting joint reflection arenas for the agents do not merely represent political propositions for the counter-hegemonic struggle, but express a concretely established need for the very way of producing care in the healthcare field. To the extent that healthcare professionals have not been prepared for becoming autonomous subjects, as a result of the banking education that they are given and the supremacy of biomedical culture, it is no wonder that there occurs a reproduction of these relations and values vis à vis patients, families and communities. Vânia Alves, in her article, reviews the state of the art where healthcare educational practices are concerned and discusses a dialogical proposition seen as coherent with the Family Health Program. The identification of counter-hegemonic trends, even if they are minority ones, in certain healthcare organizations in the thought of formulating intellectuals and in the practice of certain professionals suggests that the dialogical model is possible and indicates a need for alliances for changing the current correlation of forces. The reflections produced by Ricardo Ceccim, Mario Rovere e Emerson Merhy on permanent education in the healthcare field represent an illustration of the possibilities that these alliances offer. From this standpoint, a scrupulous analysis of reality imposes itself, as well as a contextualization of the concepts and categories of analysis so that the ideas, suppositions or hypothesis may stand out from the consequent political proposals in each concrete situation. The transformation from “human resources” into the situation of social players does not depend only on an act of will, as Rovere points out: “This transformation is complex and profoundly social, given that being included in the struggle for the right to healthcare requires conditions and a certain period of maturation.” The construction of educative healthcare practices, both culturally sensitive and dialogical, within or without the Family Health Program, will not result merely from a cultural or pedagogical transformation, but from a new distribution of power in the healthcare field as one of the strategic components of the daily construction of social change. This is policy, in addition to pedagogy and culture. Jairnilson Silva Paim Professor, Collective Health Institute, Universidade Federal da Bahia (The Federal University of Bahia)

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dossiê

Supervisão de equipes no Programa de Saúde da Família: reflexões acerca do desafio da produção de cuidados Silvia Matumoto 1 Cinira Magali Fortuna 2 Silvana Martins Mishima 3 Maria José Bistafa Pereira 4 Nélio Augusto Mesquita Domingos 5

MATUMOTO, S. et al. Team supervision in the Family Health Program: reflections concerning the challenge of producing care, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.9-24, set.2004/fev.2005.

This paper analyzes an experience of supervising family health teams in the district of Ribeirao Preto. PichonRivière’s institutional and operational group analysis was utilized in order to facilitate self-analysis and selfmanagement in a continuous construction-deconstruction-reconstruction process as to knowledge and practice – constructing group awareness within teams and collective projects aiming at shifting team focus from the production of procedures to the production of care. We focus more on difficulties faced by supervisors in breaking the procedure production matrix than on care; in handling the social and technical division of labor in health; searching for more democratic and participative forms of work that respect differences; for coping with issues of prejudice and workers’ pre-conceptions with respect to users and deconstruction of the power/ knowledge relationship; for supporting teams in their analyses of the implications as to how services are rendered, how relationships and responsibilities are established, aspects which usually remain obscure, hidden behind technical work. Aspects usually considered obstacles might actually facilitate care. They may also lead to a number of possibilities of creation and action, once analyzed by the team. KEY-WORDS: Family health; family health program; supervision. Investiga-se uma experiência de supervisão de equipes de saúde da família no município de Ribeirão Preto, utilizando o referencial da análise institucional e de grupo operativo de Pichon-Rivière como forma de facilitar a auto-análise e auto-gestão, num processo contínuo de construção, desconstrução e reconstrução de saberes e práticas, construção de uma grupalidade na equipe e de um projeto coletivo, com o propósito de deslocar a atenção da equipe, da produção de procedimentos para a produção de cuidado. Enfocam-se as dificuldades do supervisor em romper com as próprias matrizes de produção de procedimentos mais que de cuidados; de lidar com a divisão técnica e social do trabalho em saúde, buscando um trabalho mais democrático, participativo e de respeito às diferenças; de lidar com a questão dos preconceitos e com as pré-concepções dos trabalhadores em relação aos usuários e com a desconstrução da relação poder/saber; de apoiar a equipe na análise das implicações inerentes à própria relação de atendimento, do estabelecimento de vínculo e responsabilização que tem se mantido escondido atrás do trabalho técnico. Os aspectos assinalados como dificultadores podem ser também facilitadores pela potência de abrir-se para múltiplas possibilidades de ação e criação, ao serem analisados pela equipe. PALAVRAS-CHAVE: Saúde da família; programa saúde da família; supervisão.

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Enfermeira, Secretaria Municipal da Saúde, Ribeirão Preto, SP; professora, Universidade de Ribeirão Preto. <smatumoto@uol.com.br> Enfermeira, Secretaria Municipal da Saúde, Ribeirão Preto, SP; professora, Universidade de Ribeirão Preto. <cinirafortuna@yahoo.com.br> 3 Professora, Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública, EERP-USP. <smishima@eerp.usp.br> 4 Professora, Departamento Materno-Infantil e Saúde Pública, EERP-USP. <zezebis@eerp.usp.br> 5 Médico pediatra, Secretaria Municipal de Saúde, Ribeirão Preto, SP. <neliod@ig.com.br> 2

1 Rua Patrocínio, 2205 Campos Elíseos - Ribeirão Preto, SP 14.085-530

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MATUMOTO, S. et al.

Introdução Para o Ministério da Saúde, a estratégia utilizada pelo Programa Saúde da Família (PSF) visa a reversão do modelo assistencial vigente. Por isso, sua compreensão só é possível através da mudança do objeto de atenção, forma de atuação e organização geral dos serviços, reorganizando a prática assistencial em novas bases e critérios. (Brasil, 1998, p.8)

Em nosso entendimento há necessidade de deslocar o foco da produção de procedimentos para a produção de cuidados como nos demonstra Merhy (2002) e este nos parece ser também o ponto central daquilo que o Ministério da Saúde denomina “mudança do objeto de atenção”. Nossa realidade é resultado de uma construção histórica e social e para transformá-la necessitaremos de dispositivos6 capazes de provocar a quebra de certezas construídas ao longo do processo histórico, refletir sobre essas certezas perante a demanda atual e reconstruí-las, arriscando novas formas de fazer saúde. A supervisão de equipes aparece, hoje, como um desses dispositivos para a construção da grupalidade e de um projeto de trabalho na perspectiva de possibilitar que as próprias equipes analisem suas práticas e reflitam sobre como trabalham e que resultados alcançam. Não estamos nos referindo à supervisão administrativo-gerencial de serviços de saúde realizada por especialistas segundo sistematização de normas e procedimentos técnicos preconizados pelo Ministério da Saúde (Brasil, 1982; 1983) que é fundamentada no planejamento, organização e avaliação de serviços e tem objetivo centrado no controle dos processos e resultados obtidos segundo normas e padrões previamente estabelecidos. Aqui tomamos supervisão como um trabalho conjunto de equipes; da equipe de supervisão e da equipe de trabalhadores (no caso, equipes de saúde da família), em que a primeira tem o papel de facilitar que a equipe de trabalhadores, num só processo, realize sua auto-análise e sua auto-gestão, ou seja, trata-se de um trabalho de análise e intervenção institucional (Baremblitt, 1996). A supervisão foi introduzida nas ciências psicológicas pela psicanálise, embora a prática de trabalho supervisionado remonte à Idade Média. Com as transformações da grupoterapia, a supervisão também foi mudando sua concepção, metodologia e prática. Hoje não é mais considerada como uma super-visão, de alguém com visão privilegiada e que detém o saber desejado, mas como uma co-visão, um olhar atento, que assinala os caminhos trilhados pelo grupo supervisionado, de maneira a favorecer que este perceba seu modo de sentir, pensar e agir (Osório, 1997). Neste artigo temos como objetivo apresentar reflexões acerca de experiência com equipes de saúde da família do município de Ribeirão Preto, e discutir aspectos relacionados à mudança da lógica da produção de procedimentos para a de cuidados, identificados na supervisão. Ao realizá-la, deparamos com dificuldades: a construção do papel de supervisor, o exercício

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6 Dispositivo é uma montagem de elementos, os mais diversos, que se caracteriza por seu modo de funcionamento, sempre pronto à invenção de acontecimentos novos e capaz de promover transformações (Baremblitt, 1996).


SUPERVISÃO DE EQUIPES NO PROGRAMA DE SAÚDE...

de práticas democráticas na saúde e a ruptura no modo de fazer centrado em procedimentos técnicos, passando para o modo de produção de cuidados.

7 Incluímos aqui questões relativas à concepção de saúdedoença, culturais, ideológicas e outras que conformam uma certa opção, consciente ou não, por um projeto tecno-políticoassistencial.

8 Utilizamos o termo tecnológico não só para máquinas e equipamentos mas para todo arsenal necessário à assistência, incluindo as tecnologias materiais e não-materiais (como conhecimentos, saberes e tecnologias leves). (Mendes Gonçalves, 1994; Merhy, 2002)

9 Tecnologias dura, levedura e leve refere-se a conceito cunhado por Merhy et al. (1997). Tecnologias duras são os instrumentos, equipamentos, ferramentas, objetos utilizados no processo de trabalho. Tecnologias leve-duras são os conhecimentos, saberes como os da clínica, da epidemiologia, da psicanálise, que dão uma certa racionalidade instrumental ao processo de trabalho. As tecnologias leves são aquelas produzidas/ utilizadas no momento em que se produz a ação de saúde, são as tecnologias de relações como o vínculo, o acolhimento, a gestão do processo de cuidar.

A produção na saúde A produção na saúde vem se dando em meio a uma série de crises que vão além do avanço do conhecimento científico e do desenvolvimento de equipamentos específicos. As pessoas percebem essas situações críticas de diferentes modos a depender do lugar, da posição em que estão ao senti-la7. Para gestores e gerentes trata-se principalmente de uma questão financeira, que os impede de ter recursos disponíveis para oferecer um serviço mais bem estruturado, com equipamentos e serviços segundo as demandas que lhes chegam. Para uma grande parte dos usuários, a crise parece mais de falta de interesse dos serviços de saúde em se responsabilizarem por prestar uma assistência que busque a resolução de seu problema. Trata-se de uma crise tecnológica8 e assistencial (Merhy, 2002). Ao produzir um ato de saúde, o trabalhador intervém em problemas de saúde. A forma com que este trabalhador reconhece o que é problema de saúde e como ele pensa que deve abordá-lo interfere diretamente no resultado que pode alcançar e na satisfação da necessidade do usuário. A representação do problema de saúde faz o trabalhador desenhar em seu pensamento a ação e a escolha de instrumentos e recursos. Isso constitui sua caixa de ferramentas, cujo eixo orientador é a finalidade do seu trabalho compondo, assim, um certo processo de trabalho (Mendes Gonçalves, 1992; Merhy, 1997; 2002). Há uma lógica predominante nos processos de produção das ações de saúde — a da produção de procedimentos, que vem conformando modelos assistenciais. Ou seja, os modelos configuram-se mais como produtores de procedimentos (consultas médicas, curativos, vacinas e outros), sem assumir compromissos com os usuários e suas necessidades (Merhy, 2002). Os processos produtivos voltam-se mais para objetos do que propriamente para aquilo que seria sua finalidade, a de produzir cuidados para que as pessoas vivam melhor suas vidas. Merhy (2002) ajuda-nos a compreender alguns aspectos do paradoxo — produção de procedimentos e produção de cuidados — ao destacar as tensões básicas próprias da produção de atos de saúde, existentes na configuração de qualquer modelo assistencial. Uma ação de saúde centrada na lógica da produção do procedimento irá se constituir somente pelos elementos que lhe são próprios, como por exemplo, consultas, visitas domiciliares, aplicações de vacinas ou curativos, utilizando principalmente tecnologias duras e leve-duras9. Os procedimentos passam a ser a finalidade última do trabalho e, assim, configura um modelo que é contraditório com a missão do próprio SUS: o cuidado. O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado encontra-se o ethos fundamental do humano (a toca, a casa humana, o âmago, o conjunto de princípios que regem o comportamento). No cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir. (Boff, 1999)

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MATUMOTO, S. et al.

A ação de saúde centrada na lógica da produção do cuidado traduz-se no trabalho orientado aos problemas, às necessidades e à qualidade de vida do usuário. São ações que, além de produzir os procedimentos inerentes ao caso, como uma sutura, uma consulta ou um curativo, por exemplo, centram atenção nas relações humanas, na produção de vínculo, no acolhimento (Matumoto, 2003), na autonomia do usuário no cuidado de si. Utiliza principalmente as tecnologias leves10 que produzem bens-relação. Outro foco de tensão ao se produzir atos de saúde, indicado por Merhy (2002), situa-se na produção do trabalho em saúde como resultado das ações de um conjunto de trabalhadores, de uma equipe, e do gerenciamento do cuidado versus a produção de intervenções mais restritas e presas às competências específicas de determinados trabalhadores. Ou seja, quando se trabalha sob a ótica do modelo médico-centrado, o trabalho se organiza para atuar sobre problemas específicos por meio do atendimento do médico, subordinando os saberes e ações dos outros profissionais à lógica médica, diminuindo, assim, o espaço da dimensão cuidadora da equipe, empobrecendo a possibilidade de incorporação de outros saberes para ampliação da ação clínica e o campo de busca de solução para os problemas, reforçando as competências específicas já tão valorizadas pelas especializações. Essas tensões apontadas por Merhy (2002) são intensamente vividas e sentidas pelo trabalhador de saúde, tanto ao realizar seu trabalho quanto nos momentos de reflexão sobre o mesmo e nos encontros de supervisão do trabalho da equipe. Este trabalhador é o operador do cuidado. Nesse papel, vive tensões ao ser o clínico (partimos da concepção de que todos fazem clínica), e também ao ser o gerente do processo de cuidar, quando identificado como o responsável pelo projeto terapêutico. No papel de clínico, vive a tensão da produção de procedimentos versus produção de cuidados; no papel de gerente do processo de cuidar, vive a tensão do trabalho de equipe versus trabalho especializado mais individualizado. Para atuar como operador do cuidado, na ótica que estamos defendendo, o trabalhador de saúde necessita assumir e incorporar seu papel de cuidador e ampliar a composição de sua caixa de ferramentas com as tecnologias leves, nos processos relacionais da clínica e da gestão, capacitando-se, assim, a atuar nas tecnologias leves, tecnologias de relação como vínculo, acolhimento, responsabilização, além de lidar com os processos gerenciais para operar a produção do cuidado, articulando as necessidades dos usuários, trabalhadores e organizações, promovendo ganhos de autonomia dos usuários e compromissos com a defesa da vida individual e coletiva. Essas questões parecem-nos de extrema importância para o trabalho de supervisão como dispositivo junto às equipes de saúde da família na criação de processos de produção e gerenciamento do cuidado. Conformam-se os desafios de procurar um modo de produzir o melhor cuidado em saúde, isto é, cuidado que resulte em cura, promoção e proteção da saúde e da vida individual e coletiva. Que esse modo de produzir saúde viabilize a produção de procedimentos e cuidados, sem prejuízo deste em função daquele. Que essa produção se organize por meio de arranjos transdisciplinares e multireferenciados de forma a envolver os gestores do cuidado como

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Ver nota anterior.


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responsáveis pelos seus resultados e, à medida que a produção do cuidado em saúde se faz nestes termos, vai-se constituindo “a figura do gestor do cuidado, que poderá ou não ser um médico, mas que sempre será um cuidador” (Merhy, 2002, p.133). A construção da grupalidade na equipe: o grupo operativo e a supervisão No Programa de Saúde da Família, o trabalho em equipe está colocado como um dos pilares para o alcance de sua finalidade, como uma estratégia para a mudança do atual modelo de saúde (Ciampone & Peduzzi, 2000). Há diversos autores que enfatizam a importância do trabalho em equipe para a realização do trabalho na saúde tais como Sherer & Campos (1987); Testa (1992), Campos (1997), Peduzzi (1998), Fortuna (1999), Guimón (2002). Equipe e trabalho em equipe são tipos de organização que em princípio se tem escolhido para trabalhar, especialmente na área de saúde mental (Martín, 1990), contribuindo para lidar com a complexidade da produção do trabalho em saúde e criar intervenções sobre o processo de saúde-doença. “El equipo aparece como una necesidad. Necesidad de defendese de esa ansiedad y necesidad de organizar una respuesta técnica mais colectiva a esas demandas” (Martín, 1990, p.193). Existem diferentes formas de se considerar trabalho em equipe e também diferentes finalidades para sua proposição. Dentre as principais concepções de equipe, as mais discutidas são duas: equipe como um conjunto de profissionais (agrupamento) e equipe como uma organização grupal (grupo) (Martín, 1990). A constituição de uma equipe de saúde não se estabelece somente pela contratação de trabalhadores de diferentes categorias, alocando-os em um mesmo espaço. O trabalho em saúde implica a interação constante e intensa de um conjunto de trabalhadores para a realização da tarefa assistencial, do atendimento integral, da reconstrução dos modos de lidar com os saberes e disciplinas necessários para o atendimento em saúde (Campos, 1997; Fortuna, 1999; 2003). Um dos desafios para os trabalhadores do Saúde da Família contratados para constituir uma equipe é justamente compreender a dinâmica do seu próprio processo de construção-desconstrução-reconstrução. Para facilitar a construção da grupalidade é importante assinalar a necessidade de as equipes orbitarem em torno da idéia da possibilidade da recomposição dos saberes, da equipe como totalidade, embora saibamos que essa totalidade não existe, nem a uniformidade de idéias e de modos de ver a vida entre os membros da equipe, ou seja, a equipe perfeita não existe. No trabalho de supervisão, os supervisores precisam ajudar a equipe a suportar a quebra desse mito da equipe perfeita, perceber e lidar com sua incompletude, ou seja, suportar um sentimento de falta permanente e usar positivamente a potência de produção daquilo que já detém para a produção do cuidado. Sem essa superação, a equipe se imobiliza pela falta (falta um determinado profissional, um exame, recursos materiais etc) e não consegue saltar para um processo criativo a partir dos recursos que já possui. A ruptura do mito da equipe perfeita e completa e/ou da imobilização pela falta está estreitamente

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ligada à concepção de saúde que conforma a finalidade do processo produtivo. Consideramos o trabalho de equipe em saúde como uma rede de relações (de trabalho, de poder, de afeto, de gênero etc) entre pessoas, produzidas permanentemente no dia-a-dia, com múltiplas possibilidades de significados, de encontros e desencontros, satisfações e frustrações, lágrimas e sorrisos. Podemos dizer que o trabalho em equipe é gerido e concretizado no mesmo instante do ato do trabalho. A equipe torna-se equipe enquanto produz o cuidado do usuário. Nesse sentido, faz-se necessário que a própria equipe possa se analisar na produção de seu trabalho. Consideramos que a equipe necessita de espaçotempo para esse processo. Disso decorre a necessidade de supervisão externa, com o objetivo de facilitar o enfrentamento de suas dificuldades, dos movimentos de resistência que produz. Avaliar, então, qual a direcionalidade que o trabalho como um todo tem assumido e se o resultado obtido está coerente com a finalidade para a qual aquela equipe foi constituída. Isso se faz em sucessivos processos de idas e vindas, de auto-análise e auto-gestão que podem encorajá-la a arriscar novas formas de produzir as ações de saúde. Para analisar a rede de relações na e da equipe, utilizamos (neste artigo e na supervisão) o referencial teórico da análise institucional e de grupos operativos. Alguns fenômenos de processos grupais ocorrem nas equipes e a compreensão desses pode auxiliá-las a re-construir sua práxis. Para Bleger (1995, p.55) “a estrutura da equipe só se consegue na medida em que opera”. O autor defende a utilização de grupos operativos para treinar o conjunto de trabalhadores a operarem como equipe. O grupo operativo a que se refere é a técnica desenvolvida por Pichon-Rivière. A escola pichoniana define grupo como conjunto de pessoas ligadas por constantes de tempo e espaço, articuladas pela mútua representação interna, propondo-se, explícita ou implicitamente, a uma tarefa que constitui sua finalidade, interagindo por meio de complexos mecanismos de assunção e adjudicação de papéis (Quiroga, 1994). Embora haja diferenças conceituais e processuais entre equipe e grupo operativo, Martín (1990) afirma que é possível tomar os elementos desta técnica como base conceitual que permita desenvolvimentos e modificações pertinentes, como por exemplo, o papel do coordenador de uma equipe institucional, no caso, o coordenador de uma equipe de saúde da família. Aprender e desenvolver alguns aspectos do papel de coordenador de grupos operativos pode ser facilitador para que uma equipe realize sua tarefa e alcance os objetivos propostos (Fortuna, 1999). Também para o supervisor analista institucional, o referencial pichoniano de grupos constitui importante ferramenta de trabalho. Podemos também dizer que o supervisor de equipes assume o papel de coordenador de grupos operativos nesta equipe, desempenhando o papel de copensor, ou seja, daquele que pensa junto sobre os obstáculos com que a equipe se depara ao realizar sua tarefa de produção de cuidado, ao se ver diante dos sofrimentos, dores, medos da morte, da loucura, da fome, e ainda, ao lidar com o impacto que todas essas questões geram no trabalhador. Facilitar, na supervisão, que a equipe busque visualizar os obstáculos, compreendê-los e modificá-los. Também, auxiliar o grupo a pensar em seu próprio processo e dar

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significados a ele (Manigot, 1987). Para a elaboração de sua tarefa, a equipe se depara com movimentos de resistência à mudança que precedem os momentos de operatividade e de aprendizagem, na concepção pichoniana denominados de pré-tarefa (Manigot, s/d; Beller, 1987; Quiroga, 1994). São momentos caracterizados pelo medo do ataque e da perda que, ao se exacerbarem, aumentam a ansiedade circulante, fazendo com que o grupo permaneça sem chegar à tarefa. O predomínio de ansiedades e de medos se expressa por meio de conflitos e resistências. O medo do ataque e da perda está relacionado ao medo de sermos atacados nas nossas certezas, medo de perdermos aquilo que já é conhecido, medo da censura e da não aceitação, medo de nos deslocarmos do território conhecido para outro novo, que pode nos desestruturar, mas que pode abrir brechas para a criação do novo. Aprender algo implica um caminhar em que se sai de um ponto para outro ao mesmo tempo em que se toma consciência de onde se está e para onde se quer ir, ou seja, é preciso quebrar a matriz de aprendizagem que temos arraigada, desenvolver a crítica que possa levar a uma adaptação ativa à realidade, transformando-nos e também o meio em que estamos inseridos. O trabalho em equipe na prática apresenta dificuldades de ordem técnica e principalmente de ordem interpessoal, sendo necessário estabelecer uma supervisão das equipes para que seus membros adquiram a flexibilidade necessária para adaptar-se às necessidades dos usuários (Guimón, 2002). Esse mesmo aspecto é discutido por Pichon-Rivière como sendo os obstáculos epistemológicos (do campo do conhecimento) e epistemofílicos (do campo dos sentimentos, da subjetividade). Na realidade, essas divisões são apenas didáticas para facilitar a compreensão dos processos grupais e a lida com os movimentos de resistência à mudança. Consideramos que nas equipes acontecem processos grupais que precisam ser conhecidos pelos próprios trabalhadores. Quando é possível rever e problematizar as ações realizadas, os membros da equipe atualizam as relações que estabelecem entre si, com os usuários, com as famílias e comunidade, com os problemas de sua lida diária e tudo o mais que compõe suas circunstâncias de trabalho e que também estabelece novos significados. Martín (1990) também afirma que só a técnica de grupo operativo não é suficiente para dar conta dos fenômenos que ocorrem nas equipes, sendo necessário um Esquema Conceitual Referencial Operativo (ECRO) que permita observar e analisar os fenômenos grupais e as relações que se estabelecem nas equipes e nas instituições. Bricchetto & Bricchetto (1974), ao tratarem do tema da aprendizagem em grupo, o fazem a partir desse ECRO: Esquema, como conjunto de noções e conceitos sobre a aprendizagem; Conceitual faz referência a um conjunto de idéias básicas e fundamentais para o trabalho de um grupo que provém de um marco teórico e de um trabalho concreto que se realiza na vivência grupal; Referencial diz respeito ao esquema de referência do grupo, pois certas situações por ele vividas poderão ser entendidas e re-significadas por esse mesmo grupo; finalmente Operativo permite trabalhar ativamente a aprendizagem individual e grupal. O ECRO vai sendo construído pelo grupo ao longo de sua história por meio do estabelecimento de uma linguagem comum, de significados acordados e que

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podem favorecer a modificação dos conhecimentos anteriores e a construção de novos. A construção de um ECRO possibilita à equipe uma forma de entender suas relações e ações ao lidar com as demandas que se apresentam no serviço trazidas pelos usuários. Estudos apontam a influência das demandas sobre as relações das equipes (Martín, 1990; Guimón, 2002). As demandas geram ansiedades e angústias nos trabalhadores tanto pela quantidade (demanda reprimida, população mais adoecida pelas condições de vida, demanda por consumo tecnológico etc), quanto por seu conteúdo (dores, sofrimentos, pobreza, violência, loucura etc). São muitas vezes demandas que solicitam apoio, soluções e escuta diferentes, de outra referência, de outro ECRO, implicando uso de outras tecnologias, como as leves. Os contatos com essas demandas colocam as equipes e seus trabalhadores perante a complexidade do objeto da saúde, diante da impotência em dar respostas por meio apenas dos procedimentos técnicos habituais, estereotipados, burocratizados e homogeneizadores, pois as demandas ultrapassam o âmbito para o qual os trabalhadores foram preparados: o biológico, o corpo, as partes, as disciplinas de cada profissão. A construção do ECRO também está estreitamente relacionada às questões da divisão técnica e social do trabalho, reforçando ou transformando as clássicas atribuições de núcleo e campo de competência e responsabilidade de cada trabalhador da equipe. Nesse aspecto, é fundamental que a supervisão ajude a equipe a repensar seus papéis e atribuições tomando por referência a produção do cuidado e o papel de gestor desse cuidar. O trabalho de supervisão, na ótica do movimento institucionalista, é composto por um conjunto de escolas e tendências diferentes que têm em comum propor-se a “propiciar, apoiar, deflagrar nas comunidades, nos coletivos, nos conjuntos de pessoas, processos de auto-análise e processos de auto-gestão” (Baremblitt, 1996, p.14). No institucionalismo, auto-análise refere-se à capacidade que os coletivos têm de se tornarem protagonistas da compreensão e expressão de suas necessidades e potencialidades; autogestão é a capacidade de auto-organização destes coletivos para alcançarem seus objetivos. Isso se dá mediante processos de reflexão sobre a realidade, para entendê-la e transformá-la, procurando sempre a realização dos desejos e projetos. A supervisão como favorecedora da auto-análise e auto-gestão tem o propósito de facilitar que as equipes de saúde analisem seu modo de se relacionar no trabalho, de produzir ações, quer na direção da produção de procedimentos quer na de cuidados, ou seja, que se analisem como equipe. A análise pode ser facilitada pelo reconhecimento da função (modo como essa equipe trabalha, o que é formalmente aceito como o propósito da organização, o que leva para uma ação de reprodução) e do funcionamento do estabelecimento em que a equipe supervisionada opera (designa o movimento das forças instituintes que tem potência transformadora, que dá o caráter singular a essa equipe, segundo Baremblitt, 1996). Na vivência da análise institucional em situação concreta, Baremblitt (1996) sugere alguns passos, nem sempre possíveis, nem sempre separáveis, tais como: ·a análise da oferta e demanda, isto é, o próprio supervisor analisa o que oferece para a geração da demanda que lhe chega;

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·a análise da demanda oficial formulada pelos responsáveis e da demanda implícita que se encontra nas entrelinhas da demanda oficial; ·a análise dos obstáculos à experiência de análise em relação a horários, número de reuniões, periodicidade, modalidades de pagamento e outras como os segredos da organização, os não-ditos, os não-saberes, os conteúdos censurados que podem revelar os limites e restrições presentes; ·a análise da transversalidade, enfrentando as resistências dos instituídos, as relações sociais dominantes da sociedade que se manifestam nos microespaços das organizações; ·a análise da implicação do analista com sua tarefa; ·a construção ou elucidação de analisadores que podem facilitar a revelação das relações de poder da organização. Uma vez que os analisadores, ao introduzirem contradições na lógica da organização, enunciam e revelam as determinações a que está submetida. Lidando com a construção de um projeto assistencial de cuidados Apresentaremos alguns aspectos da nossa lida na supervisão de equipes de saúde da família, nossas principais dificuldades para a produção de análise pela equipe, na perspectiva da produção de um projeto assistencial de cuidados. O contrato de supervisão Uma das dificuldades da análise orientada para a produção de cuidados configura-se quando o contrato entre supervisores e equipe não é suficientemente discutido em seus aspectos operacionais como: objetivo, tempo do trabalho, forma de pagamento, obrigações mútuas etc., ficando pouco claro para a equipe o que compete a ela e o que compete aos supervisores realizar. Parece acentuar-se a matriz de depositar em aspectos externos as dificuldades de trabalho, de esperar que alguém resolva por eles, os trabalhadores, seus problemas, e a resistência aos processos de mudança. Quando os supervisores não se atentam para os aspectos do contrato, abrem espaço para estabelecimento de “não ditos” que acentuam os obstáculos assinalados. Em nossa experiência, a questão do pagamento é um dos aspectos não abordados que desencadearam não-ditos obstacularizadores. Não recebemos pagamentos financeiros para realizar a supervisão, pois nos serviços de saúde não se prevê esse tipo de atividade e nem recursos necessários para seu desenvolvimento. Mesmo assim, nossa experiência tem apontado para a importância da explicitação do não-pagamento em dinheiro. Rodrigues et al. (1992), da linha socioanalítica do movimento institucionalista, apontam a relação dinheiro/pagamento como um analisador importante que não pode ser negligenciado: “uma proposta socioanalítica não deve, a priori, prescindir de qualquer de seus analisadores; dentre eles, deve incluir como pontos cruciais de gestão e análise coletiva, o contrato e o dinheiro” (Rodrigues et al., 1992, p.207). Ressaltamos que os supervisores e os trabalhadores têm interesses próprios que precisam ser conhecidos e explicitados. Temos, como supervisores, vivenciado o interesse de aprender a realizar supervisão e de experimentar

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outro modo de trabalhar na saúde; os trabalhadores, por sua vez, podem se mover por diversos interesses como o de tornar o trabalho menos penoso, ter um espaço para si próprios, entre outros interesses. Os supervisores, ao trabalhar com a direcionalidade da produção do cuidado, precisam voltar-se para o desafio de facilitar à equipe a percepção dos ganhos que espera receber ao realizar as ações de saúde. Temos observado que alguns trabalhadores não se sentem remunerados devidamente, não só em termos financeiros, mas de reconhecimento pelas ações realizadas. Em uma espécie de contrato não explícito esperam dos usuários alguma forma de pagamento e quando isto não ocorre consideram-nos como devedores. A explicitação dos termos do contrato supervisor-equipe pode auxiliar na construção e vivência do contrato terapêutico a ser estabelecido entre trabalhadores e usuários, uma vez que um contrato terapêutico claro incide positivamente sobre a produção da saúde. A produção de cuidado requer atitudes de mútua responsabilidade entre os trabalhadores e usuários. Outro contrato necessário para a produção de cuidados é o que se estabelece entre os diferentes trabalhadores da equipe, auxiliando na aprendizagem da construção de outros saberes/fazeres no cotidiano. As matrizes do supervisor: pontos de cegueira Para Quiroga (1984), matrizes são concepções arraigadas que temos sobre determinados assuntos e que escapam ao nosso julgamento objetivo, norteando nossas ações e relações com outras pessoas. Na supervisão de equipes, deparamo-nos com a dificuldade de o supervisor romper com algumas de suas próprias matrizes, pois este carrega consigo seu modo de ver e pensar o mundo. Como trabalhadores de saúde, também aprendemos que o trabalhar em saúde implica produzir procedimentos. Essa matriz pode fazer com que o supervisor não esteja atento para interrogar certos modos de funcionamento da equipe durante as reuniões de supervisão externa com os trabalhadores. Muitas vezes, em reuniões de supervisão, a equipe de trabalhadores expressa a sensação de não estar produzindo trabalho quando conversa, se reúne, discute, troca idéias. Isso pode estar relacionado com a matriz de trabalho como produção de técnicas e procedimentos orientados pela lógica da produtividade. Mas esta posição também pode ser expressão de resistências às mudanças que são vividas nos grupos. É comum, nesses instantes, os trabalhadores solicitarem da equipe de supervisão atos concretos, respostas prontas, constituindo movimento de dependência para com os supervisores. A demanda dos trabalhadores pode mobilizar o supervisor a complementar essas solicitações acionando outra matriz muito fortemente arraigada: a de que a equipe de supervisão é a responsável pelo caminhar do grupo e da equipe supervisionada. Essa idéia descortina o desejo de reconhecimento narcísico do supervisor e a fragilidade de sua concepção de que é o próprio grupo que constitui seu caminho, bem como a de seu papel de supervisor como co-pensor, daquele que “pensa junto” e não do que “pensa por”. Na nossa lida com as equipes de saúde nos espaços de supervisão, temos percebido dificuldades na abstração do que seja cuidar, uma vez que cuidar se

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define num espaço imaginário e virtual, bem diferente dos procedimentos que são contáveis, mensuráveis e que se utilizam de objetos concretos. Por exemplo, é fácil para os trabalhadores identificarem a produção de procedimento, pois essa é concreta para eles, assim, podem dizer: hoje fiz quinze vacinas, usando seringas, mapas etc. Muito diferente da produção de cuidado, que é simbólica, não palpável, não mensurável; temos de provocar uma “quebra” na concepção do que é cuidar. Para facilitar às equipes a construção vivencial do que seja produção de cuidado, é necessário que a equipe de supervisores invista-se da tarefa de cuidar dos trabalhadores, partindo das dificuldades das equipes em revisitar suas matrizes de produção de procedimento e cuidado. Nossa definição de cuidar precisa superar nossa matriz de fazer por, pensar por, proteger, enfim, o supervisor precisa permanentemente se perguntar: estou cuidando na perspectiva da dependência? Estou facilitando o protagonismo desses trabalhadores e sua responsabilização pelo cuidar? Para Pichon-Riviére (1994) é importante que o coordenador assuma o papel de depositário do grupo, isto é, receba qualquer coisa que o grupo queira depositar, boa ou má, sendo capaz de cuidar e no momento oportuno, fazer a devolutiva desse conteúdo já elaborado, favorecendo a construção da operatividade. Suportar essa depositação das ansiedades circulantes é um cuidado dos supervisores para com os trabalhadores. Os preconceitos e as pré-concepções dos trabalhadores em relação aos usuários: a desconstrução da relação poder/saber Na experiência de supervisão de equipes, deparamo-nos com nossos preconceitos e pré-concepções em relação às pessoas. As dificuldades de lidar com tão delicado assunto ampliam-se perante a multiplicidade de facetas que estas questões podem apresentar. Uma dessas dificuldades é a de tolerar as diferenças de modos de representação dos trabalhadores em relação aos usuários. Por exemplo, quando ouvimos referências a usuários que procuram desnecessariamente os serviços de saúde, que estes não têm o que fazer, que só querem agredir os trabalhadores, que não obedecem as orientações dadas. Estes são exemplos de representações que geram em nós sentimentos de indignação e perplexidade, intolerância e raiva, uma vez que os trabalhadores só estão ali porque existem os usuários a serem atendidos, que na perspectiva da produção do cuidado tal posição está muito distante daquela desejada para o projeto assistencial saúde da família. Como supervisores, temos de suportar tanto os sentimentos dos trabalhadores quanto os nossos e ajudá-los a perceber o lugar que ocupam nessa relação trabalhador-usuário e o lugar que é reservado ao usuário e refletir sobre as implicações desse contato. Também nós, supervisores, como já dissemos, temos de refletir sobre nossas formas de representar os trabalhadores a partir das matrizes que foram nos conformando e das implicações decorrentes. Muitas vezes referimo-nos aos trabalhadores como aqueles que não sabem, não querem fazer o que devem, não querem assumir seu papel de cuidadores. Esquecemo-nos que, como nós, esses trabalhadores estão imersos em uma sociedade com fortes determinantes

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da lógica capitalista em função da produção de objetos, voltados para o lucro e para a individualização. Nesse contexto de competição, as disputas na esfera do poder-saber também se manifestam na relação supervisor-equipe supervisionada, não havendo espaço para o não-saber, numa lógica onipotente de domínio. Esse modo capitalista de viver gera um modo próprio de produção de subjetividades, que nós mesmos, como supervisionados, temos que trabalhar, sem o que não há como ajudar as equipes a enfrentar as mesmas dificuldades em relação aos usuários. A divisão técnica e social do trabalho: outros pontos de cegueira Toda equipe reproduz a sua maneira a dinâmica das relações sociais. Assim, no trabalho em saúde e, mais especificamente no trabalho de supervisão de equipes, isso acontece com muita intensidade. O aspecto a ser aqui abordado é o da divisão social e técnica do trabalho. Ele está intimamente relacionado a nossas matrizes incorporadas, ou seja, é tomado como algo natural, já dado. Cabe ao supervisor uma especial atenção à divisão técnica e social, pois esta pode configurar um obstáculo para o desenvolvimento de sua tarefa. Os trabalhadores geralmente lidam com estes aspectos naturalizando-os, numa espécie de “cegueira”, tratando-os como intocáveis ou como “não percebidos”. A divisão social do trabalho é inerente aos diversos modos de produção da sociedade e reflete a divisão de classes sociais, tendo em vista as diferenças que as constituem. A divisão decorrente do trabalho parcelado é própria do modo de produção capitalista; esta divisão tem ficado cada vez mais acentuada na medida dos avanços tecnológicos (máquinas). Portanto, neste modo de produção, há um parcelamento do trabalho em numerosas operações que são executadas por diferentes trabalhadores, caracterizando assim a divisão técnica, que também não deixa de ser uma divisão social. O trabalho manual geralmente é executado por trabalhadores de classes sociais menos favorecidas enquanto o trabalho intelectual cabe àqueles que pertencem às classes mais privilegiadas. No processo de trabalho da equipe de saúde essa divisão técnica é mais visível e mais fácil de ser apreendida e analisada. A própria formação e contratação para uma dada função define minimamente esta divisão. Além da divisão por categorias profissionais (dentistas, médicos, psicólogos, assistentes sociais etc.) há dentro de uma mesma categoria sub-divisões por especialidades, como na categoria de médicos há os pediatras, clínicos, oftalmologistas, cardiologistas e muitos outros especialistas como os oncopediatras, os neonatologistas etc. Esta divisão técnica incide diretamente sobre a produção de cuidados. O parcelamento é tomado como natural, mas, ao mesmo tempo, faz-nos perder o objeto de nossa atenção: o usuário. O supervisor precisa estar atento para ajudar a equipe a explorar na análise aspectos que denunciam a artificialidade desta divisão, pois os problemas apresentam uma complexidade muito maior e ultrapassam o âmbito do próprio setor da saúde. Ao analisar esta divisão, a equipe pode se deparar com sua impotência e imobilidade perante os problemas dela conseqüentes, especialmente se tratados no limite estrito da divisão técnica. De certa forma, para se proteger dessa sensação do não-saber, mas principalmente sob a pressão da lógica de produção capitalista, o trabalhador tende ao movimento hegemônico da produção de

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Esta apresentação segmentada de divisão técnica e divisão social tem um caráter mais didático, pois como já discutimos rapidamente a divisão é técnica e social ao mesmo tempo.

procedimentos. Também essa divisão técnica define nitidamente os territórios de atuação de cada membro da equipe no sentido explícito das atribuições oficiais, mas gera também expectativas em relação ao que se espera do desempenho uns dos outros, entre os trabalhadores, e destes em relação aos usuários. Raramente essas expectativas são explicitadas nas relações cotidianas, transformando-se em substrato para o surgimento de obstáculos para desenvolvimento do trabalho da equipe. O trabalho de supervisão da equipe no intuito de clarear e explicitar os desencontros entre os trabalhadores pode viabilizar a produção de cuidados. Já a divisão social11, que também está presente, aparece mais camuflada, mas pode ser apreendida em diferentes momentos como por exemplo: na diferença de remuneração; na flexibilização do cumprimento da jornada de trabalho para uns e não para outros; na liberação diferenciada para participação de cursos de formação que ocorre quando se trata do médico ou enfermeiro ou auxiliar de enfermagem ou agente comunitário de saúde; na indicação para representar a equipe em diferentes eventos. Nas reuniões de equipe é freqüente observar uma hierarquização nas manifestações: primeiro fala o mais graduado, o socialmente mais reconhecido, para, em seguida, vir a fala dos demais, numa espécie de escala graduada pela posição-valor daquele profissional naquele micro-espaço social. Percebe-se uma polarização de falas entre os integrantes de formação universitária, tomando grande parte do tempo disponível. Os trabalhadores de nível médio colocam-se de forma muito acanhada e raramente se ouve os agentes comunitários. O conteúdo da fala tem impacto diferente a depender de quem fala e também do lugar que ocupa a pessoa que fala. Observa-se um movimento da equipe no sentido de delegar a decisão final ao médico, ao coordenador da equipe. As relações de poder estabelecidas nas divisões de classe também são reproduzidas na divisão social/técnica do trabalho assim como as relações políticas e ideológicas, conforme os lugares das classes sociais de que são provenientes os trabalhadores, aceitas e reforçadas culturalmente como inerentes às relações sociais. O trabalhador médico tem muita dificuldade de se colocar na categoria de trabalhador, geralmente se coloca na condição de possuidor dos meios de produção; o mesmo acontece com a enfermeira quando esta estabelece relação com os trabalhadores de nível médio e elementar. Até a própria denominação nível universitário, médio e elementar marca essa diferença da rede de relações no processo produtivo. A naturalização das posições na relação entre os diferentes trabalhadores da equipe pode se reproduzir na relação supervisor-trabalhador e, por sua vez, na relação do trabalhador com o usuário. Isto tende a levar mais comumente a relações de subjugação e também a homogeneização do conjunto de usuários, ignorando as diferenças sociais. Em uma relação trabalhador-usuário predominantemente vertical, a produção de cuidado dificilmente se configurará como uma prática emancipatória, respeitadora dos direitos e produtora de protagonismo dos sujeitos. O espaço de supervisão pode ser utilizado como um espaço para o exercício da participação e da democratização das relações sociais. O supervisor precisa estar atento para aproveitar os momentos em que essas

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questões vêm à tona, para facilitar à equipe o analisar estes aspectos inerentes ao trabalho em saúde. Apontar o estranhamento é fundamental para que esses fatos possam ser percebidos e compreendidos como constituintes da conformação da divisão social e técnica do trabalho, que é vinculada ao modo de produção na nossa sociedade; tal percepção pode ajudar a equipe a compreender seu modo de funcionamento interno e a dinâmica do atendimento dos usuários. É necessário, também, reconhecer que alguns obstáculos para o desenvolvimento de um outro modo de agir em saúde têm suas raízes assentadas nas contradições da estrutura do sistema de produção capitalista. Nesse sentido, acreditamos ser a supervisão um dispositivo para que os integrantes da equipe possam entender que diferenças existem. Que o fato de não conhecerem “quais são condições reais em que [se] está trabalhando” (Baremblitt, 1996, p.89) proporcione a possibilidade de analisar os conflitos, os sentimentos de impotência, os mal-entendidos, os não-ditos, os sentimentos de mal-estar presentes no processo de trabalho, não os tomando, como já dissemos, como naturais ou do campo de conflitos pessoais. A equipe em auto-análise produz conhecimento sobre si e pode encaminhar/ construir processos cuidadores mais comprometidos com as necessidades dos usuários e suas famílias. Considerações finais Enfrentar o desafio de construir novas bases para o desenvolvimento das práticas assistenciais em saúde coloca-nos um desafio maior, o de desconstruir as matrizes sobre as quais nós, trabalhadores de saúde, fomos formados. A supervisão de equipes, na perspectiva da análise institucional por meio da auto-análise e auto-gestão, ajudou-nos a perceber nossas dificuldades no papel de supervisor: romper com nossas próprias matrizes de produção de procedimentos; lidar com a divisão técnica e social do trabalho na equipe, buscando um trabalho mais democrático, participativo e de respeito às diferenças; lidar com a questão dos preconceitos e com as pré-concepções dos trabalhadores em relação aos usuários e com a desconstrução da relação poder/ saber; apoiar a equipe na análise das implicações inerentes à própria relação de atendimento, no estabelecimento de vínculo e responsabilização, que tem se mantido escondido atrás do trabalho técnico. Por fim, ressaltamos que os aspectos assinalados pela equipe como dificultadores indicam ao mesmo tempo os pontos facilitadores para a produção do cuidado pela potência de abrir-se para múltiplas possibilidades de ação e criação.

Referências BAREMBLITT, G.F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 3.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996. BELLER, D. Grupo operativo, clases dictadas en la primera escuela privada de psicologia social. Buenos Aires: Ediciones Cinco, 1987. BLEGER, J. Temas de psicologia: entrevistas e grupos. Trad. Rita Maria M. de Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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MATUMOTO, S. et al. Supervisión de equipos en el Programa de Salud de la Familia: reflexiones acerca de la producción de cuidados, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.9-24, set.2004/fev.2005. En este trabajo se investiga una experiencia de supervisión de equipos de salud de la familia en el municipio de Ribeirão Preto, utilizando el referencial del análisis institucional y de grupo operativo de Pichon-Riviére como forma de facilitar el autoanálisis y autogestión, en un proceso continuo de construcción, desconstrucción y reconstrucción de saberes y prácticas, construcción de un agrupamiento en el equipo y de un proyecto colectivo, con el propósito de dirigir la atención del equipo, de la producción de procedimientos hacia la producción de cuidados. Se enfocan las dificultades del supervisor en romper con las propias matrices de producción de procedimientos más que de cuidados; de lidiar con la división técnica y social del trabajo en salud, buscando un trabajo más democrático, participativo y de respeto a las diferencias; de lidiar con la cuestión del prejuicio con las preconcepciones de los trabajadores con relación a los usuarios y con la desconstrucción de la relación poder-saber; de apoyar al equipo en el análisis de las implicaciones inherentes a la propia relación de atención, del establecimiento de vínculo y responsabilidad, que se ha mantenido escondido detrás del trabajo técnico. Los aspectos señalados como dificultadores pueden ser también facilitadores por la potencia de abrirse a múltiples posibilidades de acción y creación, al ser analizados por el equipo. PALABRAS CLAVE: Salud de familia; programa salud de la familia; supervisión.

Recebido para publicação em 02/10/03. Aprovado para publicação em 04/06/04.

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O trabalho em equipe no PSF: investigando a articulação técnica e a interação entre os profissionais Iêda Zilmara de Queiroz Jorge da Silva1 Leny A. Bomfim Trad2

SILVA, I. Z. Q. J.; TRAD, L. A. B. Team work in the PSF: investigating the technical articulation and interaction among professionals, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.25-38, set.2004/fev.2005.

Work in multi-professional teams is considered an important premise for the reorganization of the work process in the scope of the Family Health Program -PSF, seeking for an integral approach that is more efficient in resolving health problems. It implies in changes in the organization of work and in the patterns of individual and collective activity, lending support to a greater integration among the professionals and within the activities they carry out. This study analyzed the experience of a PSF team in a community in the State of Bahia, attempting to identify evidence of articulation between action and interaction among the professionals of that team directed towards the construction of a common health care project. Focus groups, participant observation and semi-structured interviews were the research techniques utilized in this study. The data disclosed the occurrence of articulations between the actions developed by different professionals, although there were some limitations. In terms of interaction directed towards the construction of a common project, one of the favorable aspects identified was the fact that different professionals partook of some decisions with respect to the dynamics of the unit. On the other hand, it was observed that planning actions tends to be an individual activity that is concentrated in the hands of professionals with higher education. KEY WORDS: Team work; Health Family Program; technical articulation; professional interaction. O trabalho em equipe multiprofissional é considerado um importante pressuposto para a reorganização do processo de trabalho no âmbito do Programa de Saúde da Família - PSF, visando uma abordagem mais integral e resolutiva. Isto pressupõe mudanças na organização do trabalho e nos padrões de atuação individual e coletiva, favorecendo uma maior integração entre os profissionais e as ações que desenvolvem. Este estudo analisou a experiência de uma equipe de PSF em um município baiano, buscando identificar evidências de articulação entre ações e interação entre os profissionais da equipe de saúde da família, com vistas à construção de um projeto assistencial comum. Os dados foram obtidos por meio de grupos focais, observação participante e entrevistas semiestruturadas. Identificou-se a ocorrência de articulação entre as ações desenvolvidas pelos diferentes profissionais, embora com algumas limitações. Do ponto de vista da interação, com vistas à construção de um projeto comum, foi identificado como aspecto favorável a partilha de algumas decisões referentes à dinâmica da unidade. Por outro lado, foi observado que o planejamento das ações concentra-se nos profissionais de nível superior, de forma individualizada. PALAVRAS-CHAVE: Trabalho em equipe; Programa de Saúde da Família; articulação técnica; interação profissional.

1

Secretaria Municipal de Saúde Salvador. <jcarlos@ufba.br>

2

Professora, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). <trad@ufba.br>

1 Rua Praia de Aratuba, Q-17, L-16, Vilas do Atlântico - Lauro de Freitas, BA. 40.700-000

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SILVA, I. Z. Q. J.; TRAD, L. A. B.

Introdução A implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) tem constituído um grande desafio para gestores, profissionais de saúde e sociedade como um todo. A descentralização dos processos decisórios em saúde tem possibilitado uma melhor visualização dos problemas a serem enfrentados, assim como das possibilidades e limites das intervenções. A busca por um novo modelo assistencial ganha sentido prático no esforço de dar respostas a necessidades concretas. É neste contexto que o Programa de Saúde da Família (PSF), desenhado inicialmente como um programa focalizado, dirigido a grupos da população relativamente excluídos do acesso ao consumo de serviços, vem se apresentando, em vários municípios, como estratégia de reorientação da atenção primária da saúde ou do modelo de atenção como um todo. O trabalho em equipe é destacado no conjunto das características do PSF, como um dos pressupostos mais importantes para a reorganização do processo de trabalho e enquanto possibilidade de uma abordagem mais integral e resolutiva (Brasil, 1997; 2001). A composição das equipes do PSF vem sofrendo modificações ao longo do tempo. Inicialmente eram compostas por um médico, uma enfermeira, um auxiliar de enfermagem e cinco a seis agentes comunitários de saúde (Brasil, 1997). No ano 2000, as equipes passaram a incorporar um odontólogo e um atendente de consultório dentário ou um técnico de higiene dental. Cada equipe de saúde bucal acompanhava as famílias cadastradas por duas equipes de PSF3 . A equipe de saúde da família deve conhecer as famílias do território de abrangência, identificar os problemas de saúde e as situações de risco existentes na comunidade, elaborar um plano e uma programação de atividades para enfrentar os determinantes do processo saúde/doença, desenvolver ações educativas e intersetoriais relacionadas com os problemas de saúde identificados e prestar assistência integral às famílias sob sua responsabilidade no âmbito da atenção básica (Brasil, 2002). A ampliação do objeto de intervenção para além do âmbito individual e clínico demanda mudanças na forma de atuação e na organização do trabalho e requer alta complexidade de saberes. Cada profissional é chamado a desempenhar sua profissão em um processo de trabalho coletivo, cujo produto deve ser fruto de um trabalho que se forja com a contribuição específica das diversas áreas profissionais ou de conhecimento. Espera-se que os integrantes das equipes sejam capazes de “conhecer e analisar o trabalho, verificando as atribuições específicas e do grupo, na unidade, no domicílio e na comunidade, como também compartilhar conhecimentos e informações” (Brasil, 2001, p.74). De acordo com Schraiber et al. (1999), o fato de as necessidades de saúde expressarem múltiplas dimensões, complexifica o conhecimento e as intervenções acerca desse objeto. Neste sentido, a totalidade das ações demandadas no campo da saúde não pode se realizar pela da ação isolada de um único agente. Coloca-se, pois, a necessidade de recomposição dos trabalhos especializados, seja no interior de uma mesma área profissional ou na relação inter-profissional. Segundo os autores, a idéia de recomposição na

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3 A partir de 2003, a Portaria nº 573/GM reviu as normas estabelecidas anteriormente, definindo que o gestor municipal tem autonomia para definir o número de equipes de saúde bucal a serem implantadas, desde que não ultrapasse o número de equipes de PSF.


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direção da atenção integral, todavia, não se tem mostrado possível pela mera locação de recursos humanos de diferentes áreas profissionais em um mesmo local de trabalho. Estudos recentes sobre o trabalho em equipe no PSF revelaram: ausência de responsabilidade coletiva do trabalho e baixo grau de interação entre as categorias profissionais (Pedrosa & Teles, 2001); que apesar do discurso de teor igualitário, os membros das equipes de saúde da família mantêm representações sobre hierarquia entre profissionais e não-profissionais, nível superior e nível médio de educação, médico e enfermeiro (Bastos, 2003). Podemos considerar que, apesar do esforço de reestruturação das práticas sanitárias a partir de uma proposta que privilegie o trabalho em equipe, também no PSF é possível observar a existência de uma tensão entre fragmentação e integração do processo de trabalho, havendo assim o risco de os profissionais se isolarem em seus “núcleos de competência” (Franco & Merhy, 1999, p.8), ou de que as ações sejam realizadas de forma isolada e justaposta. São reproduzidos assim vários planos de fragmentação, tanto na organização do trabalho e dos saberes, quanto na interação entre sujeitos entre os profissionais e destes com os usuários (Peduzzi & Palma, 1996). Outro risco potencial é que sejam mantidas as relações de poder que “engessam” o trabalho coletivo em saúde. É possível sugerir, então, que a multiprofissionalidade por si só não é condição suficiente para garantir a recomposição dos trabalhos parcelares na direção de uma atenção integral. O trabalho de equipe é por vezes recomendado “como se fora uma panacéia capaz de solucionar, por si mesma, os problemas das práticas de saúde decorrentes da complexidade do processo saúde-doença em indivíduos singulares e no âmbito populacional” (Paim, 2002, p.444). Como salienta Schraiber et al. (1999), a eficiência e a eficácia dos serviços, nesta perspectiva, requerem uma modalidade de trabalho em equipe que traduza uma forma de conectar as diferentes ações e os distintos profissionais. Ao estudar o trabalho em equipe é importante conhecer como cada profissional conjuga seu trabalho no âmbito individual e coletivo e identificar evidências de articulação das ações desenvolvidas pelos diferentes profissionais. Em uma equipe multiprofissional, a articulação refere-se à recomposição de processos de trabalhos distintos e, portanto, à consideração de conexões e interfaces existentes entre as intervenções técnicas peculiares de cada área profissional (Ciampon & Peduzzi, 2000). É preciso observar, também, como os diversos profissionais interagem entre si e se essa interação possibilita a construção de um projeto que seja compartilhado por todos. Com base nestes pressupostos, observamos a experiência do trabalho em uma equipe do PSF, buscando identificar evidências de articulação entre ações e interação entre os profissionais da equipe de saúde da família, com vistas à construção de um projeto assistencial comum, assim como os fatores que vêm facilitando ou dificultando a construção deste projeto. Metodologia Esta investigação consistiu em um estudo de caso, do tipo exploratório. A

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opção pelo estudo de caso deveu-se ao fato de este caracterizar-se como uma forma de se fazer pesquisa empírica que investiga fenômenos contemporâneos em seu contexto de vida real, em que as fronteiras entre o fenômeno e o contexto não estão claramente estabelecidas (Yin, 1994). Para obtenção dos dados fez-se uso combinado de três técnicas: observação participante, grupo focal e entrevista semi-estruturada, corroborando com as considerações de Minayo (1992) de que uma característica peculiar do estudo de caso é a flexibilidade metodológica, permitindo a inclusão de múltiplos recursos de coleta de dados. O estudo foi desenvolvido em um município baiano de grande porte, cuja escolha deveu-se às seguintes razões: 1) estar habilitado na Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde; 2) ter uma cobertura significativa do PSF; 3) ser considerado referência em termos de implantação e implementação do programa; 4) ter sido alvo de estudo anterior de avaliação qualitativa do PSF4 , coordenado por um dos autores, o que implicou acesso facilitado a um banco de dados que eventualmente poderia ser consultado; 5) constituir, desde 1998, campo de prática do curso de especialização em Saúde da Família, sob a forma de Residência, com enfoque no trabalho em equipe multidisciplinar. Para escolha da equipe utilizamos os seguintes critérios: 1) tempo mínimo de um ano de trabalho conjunto; 2) reconhecimento por parte da coordenação municipal de que esta equipe é a que trabalha de forma mais integrada; 3) disponibilidade da equipe em participar da investigação. O trabalho de campo ocorreu em um intervalo de seis meses de forma intermitente. Após alguns dias de observação, foi realizado um grupo focal com a participação de todos os profissionais. As entrevistas foram realizadas numa segunda ida. Utilizou-se um roteiro-guia, anteriormente testado, de forma bastante flexível, adequando-se as perguntas ao nível de escolaridade e ocupação dos profissionais. A entrevista abordou, entre outros aspectos, o trabalho de cada um e as possíveis conexões entre as ações dos distintos profissionais no interior da equipe. Com base na literatura sobre trabalho em equipe, mais especificamente nas contribuições de Peduzzi (1998; 2001) e Schraiber et al. (1999), elegemos as seguintes categorias de análise: - Articulação entre as ações - conexões entre as diferentes atividades que são ativas e conscientemente colocadas em evidência pelos agentes que as realizam; - Interação entre os profissionais - prática comunicativa, caracterizada pela busca de consensos, pela qual os profissionais podem argüir mutuamente o trabalho cotidiano executado e construir um projeto comum. Além das categorias centrais acima referidas, consideramos o poder enquanto categoria transversal. O poder será aqui entendido à luz de Santos (2002, p.266), que o define como “qualquer relação social regulada por uma troca desigual”. O estudo foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia tendo recebido parecer favorável.

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4 A Construção Social da Estratégia de Saúde da Família: Condições, Sujeitos e Contextos (Trad et al., 2001)


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Resultados e discussão Articulação técnica: uma possibilidade no PSF Quase todos os sujeitos entrevistados fizeram referência a situações de trabalho em que colocam em evidência a articulação das ações. De modo geral, os profissionais expressaram que em algum momento do seu trabalho buscam os demais membros da equipe para trocar informações, visando, principalmente, ao esclarecimento de dúvidas. Observamos que, no que se refere aos profissionais de nível superior, estas trocas se dão, na maioria das vezes, durante o próprio atendimento. Com efeito, a articulação ocorre no trabalho com o outro e por meio da comunicação, da mediação simbólica da linguagem, que pressupõe sujeitos em inter-relação (Peduzzi, 1998). As conexões entre as diferentes ações ou atividades são ativas e conscientemente colocadas em evidência pelos agentes que as realizam. Enquanto a médica procura a enfermeira para esclarecer dúvidas sobre vacina, notificação e encaminhamentos para a rede de referência do SUS, esta demanda a médica a buscar soluções para os problemas apresentados nas consultas que realiza com gestantes ou crianças menores de cinco anos. No que diz respeito às crianças, a troca de informação se refere aos problemas não contemplados pela estratégia AIDPI (Assistência Integral às Doenças Prevalentes na Infância). Observamos, ainda, uma certa articulação entre as ações desenvolvidas pela médica e enfermeira com aquelas realizadas pela dentista. Esta se dá, principalmente, durante o encaminhamento de hipertensos, diabéticos, idosos, gestantes e crianças menores de cinco anos. Nestes casos, tanto a médica quanto a enfermeira repassam pessoalmente à dentista tudo que consideram importante sobre o paciente, aproveitando para chamar a atenção para algum aspecto que tenham percebido durante o atendimento: manchas na boca, especialmente no palato, sangramento na gengiva etc. Percebe-se também um movimento contrário que se dá quando a dentista, ao verificar a pressão arterial dos pacientes adultos, detecta algum com pressão alta ou, ao olhar o cartão de vacina das crianças atendidas no consultório, identifica que o mesmo está incompleto. Quando situações como estas ocorrem, geralmente a dentista leva o problema ao conhecimento da profissional de referência. É possível perceber um esforço, por parte destes profissionais, em articular os distintos saberes no interior das próprias intervenções técnicas que executam. No que diz respeito à articulação entre as ações desenvolvidas pelos profissionais de nível superior e aquelas desenvolvidas pelos demais membros da equipe, observamos que esta é mais freqüente entre a médica e enfermeira com os agentes comunitários. A médica e a enfermeira estão constantemente trocando informações com os agentes comunitários, ainda que com objetivos diferenciados. Enquanto a enfermeira utiliza as informações dos agentes comunitários para planejar (visita domiciliar, intensificação vacinal etc), a médica está sempre buscando informações sobre os pacientes que acompanha. Os agentes comunitários, por sua vez, buscam orientações com as duas profissionais para o encaminhamento das diversas situações encontradas na

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área. Foi possível identificar o movimento bi-direcional dos agentes comunitários, tal como apontado por Nunes et al. (2002): aqueles que, de um lado, informam à população “modos de fazer” estabelecidos pelo sistema médico oficial e que, por outro lado, munem os profissionais de saúde de elementos-chave para a compreensão dos problemas de saúde das famílias e das necessidades da população. As auxiliares de enfermagem informaram que, quando surge alguma dúvida durante o desenvolvimento de suas ações, procuram a enfermeira ou a médica, a depender do caso, mas nem sempre vão até elas apenas para esclarecer alguma situação. Algumas vezes a procura tem o objetivo de resolver algum problema que, quase sempre, diz respeito à triagem. Além da articulação, existe também uma demanda de cooperação no trabalho por parte das auxiliares de enfermagem. Já o contato dessas profissionais com os agentes comunitários se restringe à presença dos agentes nas visitas domiciliares e agendamento de alguns casos. Observamos que, durante a visita domiciliar por parte dos demais membros da equipe, o papel do agente comunitário tem sido apenas o de indicar a residência. Geralmente este não é envolvido no processo. Sendo assim, não é estabelecida propriamente uma articulação. Esta situação também foi constatada por Bastos (2003). Vale registrar que nenhum membro da equipe mencionou qualquer conexão entre as ações que desenvolve e aquelas realizadas pela assistente de consultório dentário. Esta, por sua vez, informou que o contato maior é com a dentista, que repassa diariamente as tarefas que deve desempenhar e demonstrou conhecer pouco do trabalho dos demais profissionais. Sobre este ponto, concorda-se com Schraiber et al. (1999): a articulação das ações ou dos trabalhos requer que cada agente tenha um dado conhecimento do trabalho do outro e o reconhecimento de sua necessidade para a atenção integral à saúde. De todo modo, com base em Peduzzi (1998), é possível afirmar a existência de articulação entre as ações executadas pela maioria dos profissionais, principalmente porque os profissionais estão buscando conhecer o trabalho do outro e incorporá-lo na execução do seu próprio trabalho. Por outro lado, observamos que a articulação está sempre voltada a um determinado fim, ou seja, a comunicação manifesta-se sobretudo para atender as demandas imediatas que se expressam nas queixas apresentadas pelos usuários. Não foram observadas evidências que mostrassem a equipe buscando construir consensos e acordos acerca dos problemas de saúde da população assistida. Portanto, é preciso problematizar também a dimensão comunicativa que permeia a ação técnica. A interação entre os profissionais: o desafio de construir um projeto assistencial comum A interação é aqui entendida como construção de consensos, em relação a objetivos e resultados a serem alcançados pelo conjunto dos profissionais. Por meio dessa prática comunicativa, os profissionais constróem e executam um projeto comum pertinente às necessidades de saúde dos usuários (Peduzzi, 1998; 2001; Schraiber et al., 1999). Este pressupõe a participação

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de todos os membros nos distintos momentos do processo de trabalho: planejamento, execução e avaliação; partilha de decisões; reflexão acerca do trabalho conjunto e flexibilização da divisão do trabalho (Peduzzi, 1998). Antes de focalizar o tema da interação, convém descrever um pouco a trajetória da equipe. De acordo com os entrevistados, o primeiro ano foi o período em que a equipe conseguiu realizar o planejamento de forma mais integrada, pois se tentou uma maior participação dos diversos profissionais. Contudo, a necessidade de responder às demandas da secretaria impediu, muitas vezes, de serem colocadas em prática as ações programadas. Além disso, o grande número de atividades que cada profissional foi absorvendo, até mesmo em decorrência da quantidade de famílias cadastradas na área (1.830 famílias), bem como a mudança de alguns membros da equipe, fizeram com que, ao longo do tempo, a concepção do trabalho como um todo fosse se fragmentando. Atualmente, o planejamento é realizado de forma individualizada, isto é, cada profissional de nível superior define suas ações e programa suas atividades, socializado-as na reunião semanal, da qual todos os membros da equipe participam. Foi possível observar que na equipe investigada os profissionais de nível superior trabalham com um amplo espectro de independência no planejamento de suas intervenções privativas. Já no que se refere à avaliação, conforme depoimento a seguir, esta não se dá rotineiramente e, quando ocorre, é sempre realizada pela enfermeira que apresenta alguns dados do Sistema de Informação de Atenção Básica (SIAB) à equipe. A enfermeira considera que o tempo disponível é insuficiente para trabalhar melhor os dados do SIAB: Eu acho que o que prejudica mesmo o nosso trabalho de equipe, de estar planejando e avaliando, é a questão do tempo. [...] Eu informo os dados gerais: temos tanto gestante, tanto pré-natal, não tem como estar mostrando tudo. Às vezes isso ocorre trimestralmente, mas no ano passado fiz só a avaliação anual, nem trimestralmente tive condições de fazer. (E.E.)

Constatou-se que a avaliação se restringia, quase exclusivamente, aos produtos do trabalho. Além disso, mesmo com relação à avaliação dos resultados, esta se refere, na maioria das vezes, à quantificação da produtividade do serviço. O preenchimento dos instrumentos do SIAB serve muito mais para atender aos compromissos com a coordenação municipal do que para organizar a dinâmica da equipe, com readequação das atividades que venham responder às necessidades de saúde da população. Dessa forma, o valor das informações geradas pela equipe nem sempre é incorporado na sua prática de trabalho. No que diz respeito à reflexão conjunta do trabalho, apesar da reunião semanal de equipe ser colocada enquanto espaço destinado a este fim, percebemos que a mesma dá conta apenas parcialmente deste propósito, concentrando-se na soluções dos problemas de natureza administrativa. Normalmente é coordenada pela enfermeira, que inicialmente apresenta uma pauta contemplando alguns problemas relativos a organização interna do

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trabalho, surgidos durante a semana, como também socializa a programação da semana seguinte: divisão de tarefas para a realização de ações demandadas pela coordenação municipal, escalas dos agentes nos grupos, escalas das auxiliares de enfermagem, atendimento na unidade etc. Esta pauta é aberta a inclusão de outros pontos. Mais do que um espaço de elaboração coletiva do planejamento e avaliação do impacto das ações, este encontro semanal se restringe à socialização do que foi programado individualmente pelos profissionais de nível superior. Percebemos que os demais membros, especialmente os agentes comunitários, não se sentem à vontade para opinar com relação ao que é apresentado na referida reunião. Nesse sentido, podemos sugerir que as decisões não têm sido partilhadas no momento de concepção do trabalho, o que acaba comprometendo a construção do plano comum, uma vez que este pressupõe a participação de todos os membros nos diversos momentos do processo de trabalho. Consistiria no modelo assistencial construído na prática comunicativa do trabalho cotidiano (Peduzzi, 1998).Vale mencionar ainda, o fato relatado pelo conjunto dos profissionais, de que se evita comentar e emitir opinião sobre o trabalho do outro, principalmente quando se refere a um profissional de nível superior. Assim mesmo a reunião em questão é bastante valorizada pelos agentes comunitários e auxiliares de enfermagem, que a consideram um momento para “aliviar as angústias” e “tirar dúvidas”, constituindo para eles espaço para transmissão de algumas informações técnicas. Pode-se concluir que, apesar das limitações antes referidas, a reunião tem desempenhado uma função importante enquanto possibilidade dos diversos membros da equipe conhecerem o trabalho do outro e de discussão dos problemas que se apresentam na prática cotidiana da equipe. As soluções para os problemas identificados são negociadas e se procura construir consensos. Embora sempre provisórios, estes consensos buscam refletir os interesses dos profissionais ou ao menos, a opinião da maioria. Entraves na construção de um projeto assistencial comum Entre os fatores identificados como restritivos à interação comunicativa entre os profissionais com vistas à construção de um projeto comum, destacamos inicialmente o fato de a equipe ter sob sua responsabilidade quase o dobro do número de famílias preconizado pelo Ministério de Saúde, afetando a dinâmica da mesma, uma vez que acaba sobrecarregando excessivamente todos os membros. Com relação aos profissionais de nível superior, essa sobrecarga refere-se, principalmente, às ações assistenciais. No caso da dentista, esta situação se agrava ainda mais, tendo em vista que esta atende todas as famílias cadastradas na área da unidade. A manutenção da dentista e da assistente de consultório dentário nas duas equipes também pode estar dificultando a realização de um planejamento conjunto, uma vez que as referidas profissionais só conseguem participar quinzenalmente das reuniões da equipe investigada, ficando muitas vezes alheias à programação. Além da grande demanda interna, a sobrecarga de trabalho se agrava, de acordo com a equipe, em decorrência das freqüentes solicitações da coordenação municipal. Quase sempre, destacam os profissionais, deixa-se de

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lado o que tinha sido programado para poder responder em tempo hábil a esta demanda, que envolve principalmente os agentes comunitários e a enfermeira. No caso dos agentes, a solicitação mais freqüente refere-se ao levantamento de dados para programação de campanhas de vacina (número de mulheres em idade fértil, número de idosos etc). Quanto às solicitações dirigidas à enfermeira, englobam, segundo destaca a profissional, qualquer atividade que foge à rotina da equipe. Além disso, a coordenação municipal transfere para ela a responsabilidade de dividir estas tarefas com os demais membros da equipe. Talvez por isso a enfermeira atribua a sobrecarga de trabalho à falta de uma melhor divisão das tarefas burocráticas. Um outro fator restritivo diz respeito ao tamanho da equipe. O grande número de famílias cadastradas exigiu a contratação de mais agentes comunitários, ampliando a equipe (de 12 para 16 integrantes). De acordo com Starfield (2002), o tamanho da equipe interfere em uma função central dessa modalidade de trabalho: a transferência das informações necessárias à coordenação da atenção. Para Sttot (apud Starfield, 2002), a tomada de decisão em equipe fica otimizada com seis membros e altamente improvável com mais de doze. O fato é que o número elevado de profissionais na equipe investigada revelou-se um elemento complicador no processo comunicacional. Contudo, o problema com relação à distribuição das informações vai além dessa questão. Ao abordar as diferenças individuais na equipe, a enfermeira fez a seguinte colocação: [...] A gente sabe que aqui na equipe cada um é diferente, um é mais melindroso, o outro é mais tímido, um fala mais, um é mais extrovertido, um pergunta mais, o outro pergunta menos, um quer saber até demais e aí é preciso podar um pouquinho. (GF.E.)

Constatamos que a enfermeira assume nitidamente um papel de coordenação da equipe, embora isto não tenha sido formalizado. No depoimento abaixo, fica claro que ela incorpora plenamente esta função: Eu faço questão que todos os membros da equipe estejam presentes na reunião. É um dia que eu não dou folga para ninguém! Só se for morte ou doença![...] Isso foi uma coisa imposta por mim, eu falei da importância da reunião e que eu não abriria mão. (GF.E)

Durante a observação, verificamos que a enfermeira acaba mediando as relações não só entre os trabalhadores da equipe, mas também destes com a coordenação municipal. A coordenação municipal, por sua vez, reforça essa posição: as correspondências e as ligações telefônicas são quase sempre direcionadas à enfermeira, mesmo quando o assunto diz respeito a outro profissional da equipe. Este dado pode ser entendido, em um sentido mais geral, pelo fato de que historicamente, o profissional de enfermagem tem assumido preferencialmente funções de gerência e administração nos serviços de saúde. Com efeito, a enfermeira desta equipe já havia assumido anteriormente a

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função de gerência em uma unidade básica de saúde. Além disso, integrar a equipe desde sua implantação é apontado pela enfermeira como um fator que contribui para a posição que ela aí ocupa: A liderança foi algo espontâneo, partiu da equipe. Talvez por eu ser um dos poucos membros que nunca foi trocado, que sempre esteve aqui, que conhecia toda a rotina. No começo do trabalho, a médica não tinha uma visão de como era o PSF, os agentes eram novos, as auxiliares tinha vindo do PACS. [...] Então eu tinha, de certa forma, um entendimento maior do que era o programa. (E.E.)

A existência de um líder na equipe é destacada por Scherer & Campos (1997) como uma condição importante para a coesão do grupo. Já Oliveira (2000) argumenta que a permanência prolongada de uma pessoa no poder pode contribuir para suscitar comportamentos e atitudes passivas dos demais membros da equipe, seja em relação aos processos decisórios ou à execução das ações. O autor recomenda o exercício flexível da liderança como forma de evitar a cristalização de posições. Ainda no terreno relativo ao poder, percebe-se a tendência por parte de alguns profissionais, em reiterar as relações assimétricas de subordinação. Eu acho que para nossa equipe trabalhar como equipe seria necessário que alguns descessem do salto, fossem mais simples. Têm muitos que quando questionamos alguma coisa ou fazemos alguma sugestão, tratam a gente assim como se dissessem “ponha-se no seu lugar”. Na verdade, tem profissionais aqui que só nos procuram quando precisam do nosso trabalho, quando querem saber de alguma informação[...]. Dizem que somos o elo com a comunidade, que somos importantes e coisa e tal. (E.ACS1)

Vale lembrar que os profissionais ocupam uma posição diferenciada no âmbito da hierarquia profissional e sócio-econômica. Como lembra Santos (2002), numa determinada situação de exercício de poder, pode ocorrer uma convergência entre elos da cadeia de desigualdade. De acordo com Peduzzi (1998; 2001), as relações de subordinação podem ser transformadas pela prática comunicativa, porque a argüição dos valores implícitos nos atos da fala permite discriminar e manter as diferenças técnicas de trabalhos executados por sujeitos sociais iguais. O trabalho em equipe, nesse sentido, refere-se à relação entre trabalho e interação de agentes técnicos distintos, mas sujeitos iguais. Peduzzi & Palma (1996) destacam a supervisão como meio que pode auxiliar a interação entre os profissionais de saúde no trabalho em equipe, seja pelo seu caráter gerencial, educativo ou de articulação política. No município investigado, as equipes de PSF encontram-se diretamente ligadas à coordenação da atenção básica, sendo atribuição desta a realização da supervisão de equipe. Com a ampliação do número de equipes, o processo de acompanhamento por parte da coordenação viu-se comprometido. A partir de então vem-se priorizando o acompanhamento mais sistemático das

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equipes consideradas problemáticas, em detrimento daquelas consideradas mais organizadas e comprometidas com o trabalho. Embora reconheçam o compromisso da coordenação municipal e as dificuldades que esta vem enfrentando, ressentem-se de uma supervisão mais efetiva e salientam que esta foi se tornando menos freqüente ao longo do tempo: No início, quando o PSF foi implantado, a gente tinha reuniões mensais das equipes e era interessante porque cada um ia

THEO VAN DOESBURG, Composição Aritmética, 1930

colocando seus problemas e como superou e tal. Na medida que foi crescendo o número de equipes o pessoal da coordenação não teve pernas para acompanhar. Passou a ter reuniões com representantes de cada equipe. Depois acabaram com a reunião de equipe e colocaram um supervisor, mas nessa equipe o supervisor era ausente, ele também não tem tempo. Hoje, quando tem alguma reunião, é por categoria, de acordo com a necessidade e não existe uma periodicidade. É mais para os médicos e enfermeiras. [...] A coordenação só aparece quando tem algum “pepino”, só na hora da emergência. (E.D.)

Conforme o depoimento anterior, o trabalho da equipe está carecendo de integração, de atividades que lhe confira unidade, de espaços de controle do processo de trabalho com vistas ao cumprimento de sua finalidade, tal como recomendam Peduzzi & Palma (1996). Deficiências relacionadas com a capacitação da equipe foram apontadas como um fator que repercute no processo de trabalhos. Destacou-se aqui o fato de que a temática do trabalho em equipe, que envolve dimensões administrativa, psicológicas etc. é muito pouco discutida, tendo sido incluída de modo superficial, apenas no treinamento introdutório. Um outro aspecto citado foi de que apenas dois, dos dez agentes comunitários, fizeram o treinamento introdutório. De acordo com a enfermeira, isso acaba prejudicando o trabalho da equipe, pois os agentes comunitários têm dificuldade de entender termos como perfil epidemiológico, área de risco etc. Concordamos com Paim (1993) que, embora os treinamentos e as capacitações não sejam suficientes para transformar as práticas de saúde, podem contribuir para uma progressiva politização e socialização do saber, repercutindo sobre as relações de poder no contexto do trabalho. Neste sentido, o investimento na capacitação do conjunto da equipe pode propiciar um maior equilíbrio entre os diferentes sujeitos, constituindo-se um elemento facilitador na construção do projeto comum. Considerações finais Na equipe investigada, evidenciou-se a articulação entre as ações no âmbito do processo de trabalho, refletida principalmente no interesse em conhecer o trabalho do outro, o que consideramos um avanço, tendo em vista a tendência à fragmentação. De modo geral, a articulação ocorre durante o próprio atendimento do usuário e tem como objetivo produzir o melhor resultado das intervenções técnicas, o que é relevante e desejável. Constata-se, entretanto, que a articulação entre as ações se expressa de

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forma diferenciada no que se refere à relação entre as distintas categorias profissionais. Deste modo, a troca de informações se revela mais efetiva entre a enfermeira, a médica e os agentes comunitários. Em contrapartida, observamos uma conexão ainda tênue entre as ações desenvolvidas pelas auxiliares de enfermagem e dentista com aquelas realizadas pelos agentes comunitários. No caso das auxiliares de enfermagem e dentista ocorre mais freqüentemente uma emissão-recepção de mensagem, o que não resulta propriamente em articulação. No tocante à interação, entendida aqui enquanto a dimensão comunicativa que permeia a ação, chama a atenção o fato de que a comunicação no interior da equipe se destine, basicamente, à troca ou transmissão de informações de caráter técnico, sendo pouco referidas situações em que se exercite a discussão crítica em torno de problemas e necessidades da equipe e da população na busca de consensos coletivos. É por meio da prática comunicativa caracterizada pela busca de consenso que os profissionais podem argüir mutuamente o trabalho cotidiano, construir e executar um projeto comum pertinente às necessidades dos usuários (Peduzzi, 1998). Identificamos que o planejamento e a avaliação das ações concentram-se nos profissionais de nível superior, de forma individualizada. A programação, realizada nestes moldes, é socializada na reunião semanal de equipe, na qual os agentes comunitários e os profissionais de nível médio não se sentem à vontade para opinar sobre o que está sendo proposto. Neste sentido, podemos inferir que as decisões relacionadas a concepção do trabalho não têm sido partilhadas por todos. Este fato acaba por comprometer a construção do projeto comum, uma vez que este pressupõe a participação de todos os membros nos diversos momentos do processo de trabalho. Entre os fatores que podem ser considerados restritivos à articulação efetiva entre as ações desenvolvidas e a interação entre os agentes, podemos destacar: pressão interna decorrente do número de famílias cadastradas ser quase o dobro do preconizado pelo Ministério da Saúde; pressão externa por parte da coordenação municipal; grande número de atividades que foram sendo absorvidas por cada profissional; mudança de alguns integrantes da equipe, como agentes comunitários (apenas um agente comunitário trabalha na equipe desde sua implantação) e médico e falta de supervisão sistemática por parte da coordenação municipal. Sobre este ponto convém ressaltar que a coordenação municipal deve ter uma estrutura compatível com o número de equipes, pois do contrário a supervisão não consegue atingir seu propósito enquanto espaço de monitoramento do processo de trabalho e, sobretudo, de apoio nas situações de conflito e acolhida das dificuldades que emergem no cotidiano dos serviços. Quanto aos aspectos favoráveis à construção do projeto comum na equipe investigada, observamos: a flexibilização da divisão do trabalho, uma vez que, além das ações específicas os profissionais, também participam de ações comuns a outros membros da equipe; a partilha de decisões de problemas relacionados à dinâmica da unidade. Com base nos dados apresentados, é possível afirmar que a construção de

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um projeto comum ainda é um desafio para a equipe investigada, uma vez que, de modo geral, ainda há uma sobreposição da razão instrumental e estratégica nas situações em que deveria predominar a razão comunicativa. Fica evidente também que a desigualdade entre os membros da equipe quanto à oportunidade para propor, julgar e decidir o trabalho, reforçada pela tendência, por parte de alguns profissionais, em reiterar as relações assimétricas de subordinação, constitui um importante obstáculo ao florescimento de uma prática comunicativa. É necessário reconhecer que a construção de um projeto comum no PSF depende não só das formas concretas de organização do trabalho, mas também da distribuição de poder na equipe (Paim, 1992). Referências BRASIL Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação de Saúde da Comunidade. Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília: Ministério da Saúde, 1997. BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia prático do Programa de Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde, Departamento de Atenção Básica. Avaliação da implantação do programa de saúde da família em dez grandes centros urbanos. Síntese dos principais resultados. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. BASTOS, L. G. C. Trabalho em equipe em atenção primária à saúde e o Programa Saúde da Família. 2003. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo. CIAMPONE, M. H. T.; PEDUZZI, M. Trabalho em equipe e trabalho em grupo no Programa de Saúde da Família. Rev. Bras. Enferm., v.53, n. esp., p.143-7, 2000. FRANCO, T.; MEHRY, E. E. PSF: contradições e novos desafios. Disponível em: <http:// www.datasus.gov.br/cns>. Acesso em: 15 mar. 1999. MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 1992. NUNES, M. O.; TRAD, L.B.; ALMEIDA, B. A.; HOMEM, C. R.; MELO, M.C.I.C. O agente comunitário de Saúde: construção da identidade desse personagem híbrido e polifônico. Cad. Saúde Pública, v.18, n.6, p.1639-46, 2002. OLIVEIRA, V. Comunicação, informação e ação social. In: BRASIL. Organização do cuidado a partir do problema: uma alternativa metodológica para atuação da equipe de saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde, 2000. p.65-74. PAIM, J.S. Burocracia y aparato social: implicaciones para la planificación e implementación de políticas de salud. In: TEIXEIRA, S.F. (Org.) Estado y políticas sociales en América Latina. México: Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco; São Paulo: FIOCRUZ / ENSP, 1992. p. 293-312. PAIM, J.S. A reorganização das práticas de saúde em distritos sanitários. In: MENDES, E. V.(Org.) Distritos sanitários: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec, Rio de Janeiro: Abrasco, 1993. p.187-220. PAIM, J.S. A investigação em sistemas e serviços de Saúde. In: PAIM, J.S. Saúde política e reforma sanitária. Salvador: CEPS/ISC, 2002. p.435-44. PEDROSA, J. I. S.; TELES, J. B. M. Consenso e diferenças em equipes do Programa de Saúde da Família. Rev. Saúde Pública, v. 35, n. 3, p.303-11, 2001.

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SILVA, I. Z. Q. J.; TRAD, L. A. B. El trabajo en equipo del PSF: investigando la articulación técnica y la interacción entre los profesionales, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.25-38, set.2004/fev.2005. El trabajo en un equipo multiprofesional es considerado una premisa importante para la reorganización del proceso de trabajo en el alcance del Programa de Salud de la Familia PSF, objetivando un abordaje más integral y resolutivo. Ello implica en cambios en la organización del trabajo y en los padrones de actuación individual y colectiva que favorezca la integración entre los profesionales y las acciones que desarrollan. En esta dirección, la presente investigación analizó la experiencia de un equipo del PSF en una ciudad de Bahia, procurando identificar evidencias de articulación entre las acciones e interacción entre los profesionales, con vistas a la construcción de un proyecto asistencial común. Los datos fueron obtenidos a través de grupos focales, observación participante y entrevistas semiestructuradas. Fue identificada la ocurrencia de articulación entre las acciones desarrolladas por los distintos profesionales, con algunas limitaciones. Del punto de vista de la interacción, en la perspectiva de construcción de un proyecto común, se identificaron algunos aspectos favorables, como la flexibilización de la división del trabajo y el reparto de algunas decisiones en lo referente a la dinámica de la unidad. Por otro lado, fue observado que la planificación de las acciones se concentra en los profesionales de nivel superior, de un modo individualizado. PALABRAS CLAVE: Trabajo en equipo; Programa de Salud de la familia; articulación técnica; profesional interacción.

Recebido para publicação em 14/06/04. Aprovado para publicação em 07/10/04.

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Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial

Vânia Sampaio Alves 1

ALVES, V. S. A health education model for the Family Health Program: towards comprehensive health care and model reorientation, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.39-52, set.2004/fev.2005. This paper aims at critically examining health education practices in the Family Health Program (PSF – Programa de Saúde da Família, Brazil) by building on the assumption that health policies are brought up to date in services by social actors and their everyday actions. The extent to which the principle of integrality is embodied in such practices is investigated, thus contributing to the debate on the grounds and limits of PSF’s strategies towards reorienting its model of assistance by focusing on basic care. In the context of current Brazilian health policy, PSF has played a decisive role in building and consolidating the Brazilian Unified Health System (Sistema Único de Saúde - SUS). Health education practices and their underlying sanitary principles are historically reviewed in order to determine the rationale for such practices. The prevailing health education model, shown to be essentially at odds with the principle of integrality, is then characterized and analyzed against an emerging health education model – herein called “dialogic model” – the logic of which would be in accordance with the integrality of care. KEY WORDS: Principle of integrality; Family Health Program; health education; care model. Partindo da concepção de que as políticas de saúde se materializam nos serviços, mediante as ações de atores sociais e suas práticas cotidianas, este ensaio tem o objetivo de refletir sobre as práticas de educação em saúde no contexto do Programa Saúde da Família (PSF). Pretende-se apreciar a assimilação do princípio da integralidade nessas práticas e, desta maneira, contribuir para o debate sobre os alcances e limites da estratégia do PSF para a reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica. Na conjuntura atual da política de saúde brasileira, o PSF tem desempenhado papel estratégico para a construção e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir de uma revisão histórica das práticas de educação em saúde e dos discursos sanitários a elas subjacentes, são reconstituídas as racionalidades determinantes de tais práticas. O modelo hegemônico de educação em saúde, em sua essência divergente do princípio da integralidade, é caracterizado e discutido em comparação a um modelo de práticas de educação em saúde emergente, denominado neste ensaio de modelo dialógico, cuja lógica manteria coerência com a integralidade da atenção. PALAVRAS-CHAVE: Princípio da integralidade; Programa Saúde da Família; educação em saúde; modelo assistencial.

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Psicóloga, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). <vaniasampa@yahoo.com.br>

Condomínio Jardim das Limeiras, Edifício Lima Imperatriz, bl. 304 B, apto. 204 Vale dos Lagos - Salvador, Ba 41.250-440

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ALVES, V. S.

Introdução A construção de um sistema de serviços de saúde democrático – universal, igualitário e integral – constitui um processo social e político que se realiza por meio de formulação de políticas públicas voltadas para a saúde, mas também, e essencialmente, no cotidiano dos serviços de saúde. A perspectiva de que as políticas de saúde se materializam na “ponta” do sistema, ou seja, mediante ação de atores sociais e suas práticas no cotidiano dos serviços (Pinheiro & Luz, 2003), tem sido relevante para a reflexão crítica sobre os processos de trabalho em saúde, visando à produção de novos conhecimentos e ao desenvolvimento de novas práticas de saúde consoantes com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Para a construção do SUS é fundamental a reorientação do modelo assistencial vigente e hegemônico no país. Este modelo, resultante de uma combinação complementar e ao mesmo tempo antagônica do modelo médico-assistencial privatista e do modelo assistencial “sanitarista” (Paim, 2003a), dicotomiza assistência e prevenção. Paim (2003a) discute ser o modelo assistencial uma das áreas nas quais se concentram os mais relevantes entraves de um sistema de saúde. O autor relaciona os principais problemas de saúde identificados quanto ao modelo assistencial durante a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986: “desigualdade no acesso ao sistema de saúde, inadequação dos serviços às necessidades, qualidade insatisfatória dos serviços e ausência de integralidade das ações” (Paim, 2003a, p.567). Esta realidade apontava não apenas a necessidade da reorientação do modelo assistencial, como também sinalizava a direção que esta reorientação precisava assumir de forma que se adequasse a proposta do SUS, em discussão. Dentre as bandeiras de luta pela Reforma Sanitária Brasileira, que se sustentavam nas críticas às práticas, às instituições e à organização do sistema de saúde, estava a bandeira da Integralidade (Mattos, 2001). Na década de 1990 tem início a implementação da estratégia do Programa Saúde da Família (PSF) que, no contexto da política de saúde brasileira, deveria contribuir para a construção e consolidação do SUS. Tendo em sua base os pressupostos do SUS, a estratégia do PSF traz no centro de sua proposta a expectativa relativa à reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica (Brasil, 1997). Os alcances e os limites desta proposta têm alimentado discussões, cujos argumentos visitam desde estatísticas oficiais sobre a expansão do número de equipes até a reflexão crítica sobre as práticas de saúde desenvolvidas no contexto das unidades de saúde da família. Para acompanhar este debate, principalmente sob a ótica da segunda perspectiva, é essencial compreender o que traduz um modelo assistencial e, sobretudo, o que implica sua reorientação. Segundo Paim (2003a, p.568), modelo de atenção ou modelo assistencial “... é uma dada forma de combinar técnicas e tecnologias para resolver problemas e atender necessidades de saúde individuais e coletivas. É uma razão de ser, uma racionalidade, uma espécie de ‘lógica’ que orienta a ação”. Esta concepção de modelo assistencial fundamenta a consideração de que o fenômeno isolado de expansão do número de equipes de saúde da família implementadas até então não garante a construção de um novo modelo

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assistencial. A expansão do PSF tem favorecido a eqüidade e universalidade da assistência – uma vez que as equipes têm sido implantadas, prioritariamente, em comunidades antes restritas quanto ao acesso aos serviços de saúde. Entretanto, não se pode admitir, só pelas estatísticas, que a integralidade das ações deixou de ser um problema na prestação da atenção. Para tanto, faz-se necessário análises qualitativas do PSF (ou dos PSFs) em desenvolvimento nos municípios brasileiros, particularmente quanto às práticas de saúde e aos processos de trabalho cotidianos. Este ensaio parte da concepção de modelo assistencial enquanto racionalidade e da pressuposição de que para a construção de um novo modelo é fundamental o desenvolvimento de novas racionalidades. Dentre os princípios e diretrizes do SUS, admite-se ser o da integralidade aquele que confronta incisivamente racionalidades hegemônicas no sistema – tais como o reducionismo e fragmentação das práticas, a objetivação dos sujeitos e o enfoque na doença e na intervenção curativa. Em face da relevância deste princípio para a reorientação do modelo assistencial, este ensaio tem o objetivo de refletir sobre as práticas de educação em saúde no contexto do PSF e a assimilação do princípio da integralidade nessas práticas. A integralidade e reorientação do modelo assistencial De acordo com o texto constitucional, complementado e aperfeiçoado pela Lei Orgânica da Saúde, a assistência à saúde pelo SUS deve abranger tanto as ações assistenciais ou curativas quanto, e prioritariamente, as atividades de promoção da saúde e prevenção de doenças (Carvalho & Santos, 2002). Esta, entretanto, seria apenas uma das dimensões do conceito da integralidade. No campo da saúde, a integralidade tem sido reconhecida como expressão polissêmica, com seus muitos possíveis sentidos convergindo quanto a contraposição ao reducionismo, a fragmentação e objetivação dos sujeitos (Mattos, 2001). No que diz respeito à organização dos serviços e das práticas de saúde, a integralidade caracteriza-se pela assimilação das práticas preventivas e das práticas assistenciais por um mesmo serviço. Assim, o usuário do SUS não precisa dirigir-se a unidades de saúde distintas para receber assistência curativa e preventiva. No caso do PSF, a equipe de saúde da família está capacitada para executar desde ações de busca ativa de casos na comunidade adscrita, mediante visita domiciliar, até acompanhamento ambulatorial dos casos diagnosticados (tuberculose, hanseníase, hipertensão, diabetes, entre outras enfermidades) com o fornecimento de medicamentos. Seguindo o princípio da integralidade, as atividades de educação em saúde estão incluídas entre as responsabilidades dos profissionais do PSF. Uma noção de integralidade também relacionada à organização dos serviços e das práticas encontra-se associada à necessidade de horizontalização dos programas de saúde. A política de saúde no Brasil tem sido marcada pela verticalização destas ações. As respostas governamentais às doenças, assim como as próprias doenças a serem incluídas na agenda governamental, tradicionalmente eram fundamentadas pelo saber técnico, particularmente pelo saber produzido pela saúde pública. Em conseqüência, estas respostas, que assumiam a forma de programas especiais de saúde

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pública (Paim, 2003a), caracterizavam-se pela “centralização de sua formulação, pela verticalização de sua implementação e por um caráter autoritário” (Mattos, 2003, p.49). Estas respostas atravessavam os serviços e as práticas de saúde atropelando muitas vezes as necessidades específicas e reais da população assistida. Neste nível, a assimilação da integralidade na organização dos serviços e das práticas repercutiria na identificação dos problemas de saúde a serem enfrentados pelas equipes de saúde a partir do horizonte da população atendida. No contexto da estratégia do PSF, esta perspectiva está de acordo com o princípio da vigilância da saúde, com o qual se propõe trabalhar. Sustentado em três pilares básicos: o territórioprocesso, os problemas de saúde e a intersetorialidade (Mendes, 1996), o princípio da vigilância da saúde contribui para a reorientação do modelo assistencial à medida que orienta uma intervenção integral sobre momentos distintos do processo saúde-doença (Paim, 2003b). A integralidade contrapõe-se à abordagem fragmentária e reducionista dos indivíduos. O olhar do profissional, neste sentido, deve ser totalizante, com apreensão do sujeito biopsicossocial. Assim, seria caracterizada pela assistência que procura ir além da doença e do sofrimento manifesto, buscando apreender necessidades mais abrangentes dos sujeitos: Não podemos aceitar que um médico responda apenas ao sofrimento manifesto do paciente (...) A atitude do médico que, diante de um encontro com o paciente motivado por algum sofrimento, aproveita o encontro para apreciar fatores de risco de outras doenças que não as envolvidas no sofrimento concreto daquele paciente, e/ou investigar a presença de doenças que ainda não se expressaram em sofrimento, ilustra um dos sentidos de integralidade. (Mattos, 2001, p.48-9)

Em conformidade com o princípio da integralidade, a abordagem do profissional de saúde não deve se restringir à assistência curativa, buscando dimensionar fatores de risco à saúde e, por conseguinte, a execução de ações preventivas, a exemplo da educação para a saúde. Uma situação ilustrativa é a de um atendimento a um paciente com crise hipertensiva, que além da administração da medicação necessária durante uma consulta médica seria orientado quanto à importância de uma alimentação hipossódica e de exercícios físicos regulares. Assistência e educação para saúde durante a consulta ambulatorial, sem que o paciente espere o momento de encontro do grupo dos hipertensos numa determinada data e horário para receber as referidas orientações: isto expressa integralidade da assistência. Para que haja assimilação do princípio da integralidade na relação entre profissional de saúde e usuários, o que favoreceria uma intervenção em saúde para além da doença ou do corpo doente, com apreensão de necessidades mais abrangentes dos sujeitos, é necessário superar, ressalta Teixeira (2003), mais uma das modalidades de fragmentação no campo da saúde: a “cisão eu-outro” (p.90). Para o referido autor, trata-se da necessidade de superação do “monopólio do diagnóstico de necessidades” e de integração da “voz do outro” neste processo (Teixeira, 2003, p.91).

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Integrar ações preventivas, promocionais e assistenciais; integrar profissionais em equipes interdisciplinar e multiprofissional para uma compreensão mais abrangente dos problemas de saúde e intervenções mais efetivas; integrar partes de um organismo vivo, dilacerado e objetivizado pelo olhar reducionista da biomedicina, e reconhecer nele um sujeito, um semelhante a mim mesmo; nisto implica a assimilação do princípio da integralidade em prol da reorientação do modelo assistencial. Esta assimilação deve se processar cotidianamente nos encontros entre profissionais e usuários nos serviços de saúde, locus de exercício de racionalidades, sejam estas de manutenção do modelo assistencial vigente e hegemônico – marcadamente reducionista, biologicista, individualista, centrado na doença e orientado para a cura – ou de construção de um novo modelo assistencial – integral, humanizado e compromissado com o atendimento de necessidades e com a garantia do direito à saúde da população. Educação em saúde: conceito e breve histórico A educação em saúde constitui um conjunto de saberes e práticas orientados para a prevenção de doenças e promoção da saúde (Costa & López, 1996). Trata-se de um recurso por meio do qual o conhecimento cientificamente produzido no campo da saúde, intermediado pelos profissionais de saúde, atinge a vida cotidiana das pessoas, uma vez que a compreensão dos condicionantes do processo saúde-doença oferece subsídios para a adoção de novos hábitos e condutas de saúde. Dentre os diversos espaços dos serviços de saúde, Vasconcelos (1989; 1999) destaca os de atenção básica como um contexto privilegiado para desenvolvimento de práticas educativas em saúde. A consideração do autor justifica-se pela particularidade destes serviços, caracterizados pela maior proximidade com a população e a ênfase nas ações preventivas e promocionais. Para Mendes (1996), os serviços de atenção básica precisam apropriar-se de uma tecnologia de alta complexidade que envolve conhecimentos, habilidades e técnicas, dentre as quais é possível reconhecer a educação em saúde. Relacionando as funções de um médico de atenção básica, o autor destaca prestar atenção preventiva, curativa e reabilitadora, ser comunicador e educador em saúde. No âmbito do PSF, a educação em saúde figura como uma prática prevista e atribuída a todos os profissionais que compõem a equipe de saúde da família. Espera-se que esta seja capacitada para assistência integral e contínua às famílias da área adscrita, identificando situações de risco à saúde na comunidade assistida, enfrentando em parceria com a comunidade os determinantes do processo saúde-doença, desenvolvendo processos educativos para a saúde, voltados à melhoria do auto-cuidado dos indivíduos (Brasil, 1997). Em seus diferentes momentos históricos, os saberes e as práticas de educação em saúde foram impregnados por um discurso sanitário subjacente e fizeram uso de estratégias comunicacionais com estes discursos coerentes. O discurso higienista e as intervenções normalizadoras tradicionalmente têm marcado o campo de práticas da educação em saúde. Para compreender a natureza deste discurso, Costa (1987) trata o tema da educação e saúde a

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partir de sua vinculação com o Estado e das relações de poder entre classes sociais. Nesta perspectiva e em consonância com a compreensão de Donangelo (1979) relativa à natureza social da prática médica, o autor reconhece as práticas de educação em saúde enquanto práticas sociais com propósitos ideológicos, políticos e econômicos. Desta maneira, mediante um discurso higienista e moralista, o Estado exerceria sua função de civilizar e moralizar a grande massa da população a fim de assegurar o desenvolvimento das forças produtivas. Em conformidade com os interesses das classes dirigentes do Estado e com objetivo de controle social sobre as classes subalternas, o discurso desenvolvido em torno da questão saúde no século XVIII foi essencialmente normalizador e regulador. De acordo com Costa (1987, p.7), a estratégia da educação em saúde foi regulamentar, enquadrar, controlar todos os gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos das classes subalternas e destruir ou apropriar-se dos modos e usos do saber estranhos a sua visão do corpo, da saúde, da doença, enfim do ‘bom’ modo de andar a vida.

Na segunda metade do século XIX, o crescimento de cidades européias, em virtude da industrialização, favorece a precarização das condições de trabalho, moradia e nutrição das classes populares. Este cenário configurava uma ameaça às classes dominantes. Por um lado, pelo risco de rebelião dos populares, cuja aglomeração nos bairros poderia precipitar a organização política. Por outro, pelas epidemias que a estes inicialmente acometiam, associadas a condições de vida, atingindo em seguida as classes dominantes. Assim, justificavam-se as ações de disciplinamento das classes populares com difusão de regras de higiene e de condutas morais: o exercício do controle social e sanitário (Costa, 1987). No Brasil do século XIX, o discurso sanitário segue a tendência européia, concentrando-se nas cidades e desenvolvendo-se em torno da moralidade e disciplinarização higiênica. O hospital, o hospício, a prisão e a escola despontam como espaços de atenção, cuidado e educação à saúde. Esta época é pontuada por Costa (1987) como de fortalecimento do saber técnico do profissional, exclusivo do poder da cura e controle sobre a doença, “rotulando as eventuais resistências e os saberes alternativos de cegueira política, ignorância do povo, má-fé dos charlatães” (p.11). O percurso histórico das práticas e concepções de educação em saúde no Brasil é revisado por Smeke & Oliveira (2001). O primeiro momento abordado pelas autoras data do final do século XIX e início do século XX. Em virtude das necessidades de domínio sobre epidemias de varíola, peste, febre amarela, tuberculose, entre outras, nos grandes centros urbanos, visto que estas acarretavam transtornos para a economia agroexportadora, desenvolveram-se as primeiras práticas sistemáticas de educação em saúde. Estas voltavam-se principalmente para as classes subalternas e caracterizavam-se pelo autoritarismo, com imposição de normas e de medidas de saneamento e urbanização com o respaldo da cientificidade. Acontecimento ilustrativo desse momento foi a polícia sanitária liderada por Osvaldo Cruz, que empregou recursos como a vacinação compulsória e vigilância sobre atitudes e moralidade dos pobres com a finalidade de controlar a disseminação de doenças.

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Estas práticas eram orientadas por um discurso biologicista, que reduzia a determinação do processo saúde-doença à dimensão individual, não assimilando as implicações das políticas sociais e das condições de vida e de trabalho para a saúde. O discurso biologicista propagava que os problemas de saúde eram decorrentes da não observância das normas de higiene pelos indivíduos e que a mudança de atitudes e comportamentos individuais garantiriam a resolutividade dos problemas de saúde. Este discurso predominou no campo da educação em saúde durante as décadas seguintes, podendo ser encontrado ainda hoje como orientador de práticas educativas. A partir da década de 1940, algumas transformações começam a ser verificadas no campo da educação em saúde. Aos sujeitos que até então haviam sido culpabilizados individualmente pelos problemas de saúde que os acometiam e dos quais não se esperava mais do que a assimilação passiva das prescrições normativas dos profissionais de saúde, uma importância relativa passa a ser observada no sentido de envolvê-los no processo educativo. No início da década de 1960, com advento da Medicina Comunitária, verifica-se um apelo à participação da comunidade para a solução dos problemas de saúde nela vivenciados. Entretanto, por trás deste apelo de participação comunitária parece camuflar-se o mesmo discurso da culpabilidade dos sujeitos, com a ressalva da culpabilização passar da individualidade para a coletividade. As práticas de educação em saúde comunitárias partiam, então, do pressuposto de que as comunidades seriam as responsáveis pela resolução de seus problemas de saúde devendo, para isto, ser conscientizadas. Os determinantes sociais desses problemas, contudo, não eram levados em consideração. Durante o regime militar, o campo da educação em saúde permaneceu inexpressivo em virtude da limitação dos espaços institucionais para sua realização. Verifica-se uma expansão dos serviços médicos privados e da medicina curativa, em detrimento dos serviços de atenção preventiva. Smeke & Oliveira (2001) admitem que durante esse período a educação em saúde correspondeu ao controle sobre os sujeitos. Em contrapartida, este mesmo regime despertou uma resistência e insatisfação na população que precipitou, ao longo da década de 1970, a organização de movimentos sociais que reuniram intelectuais e populares. Neste contexto, foram retomadas as proposta pedagógicas de Paulo Freire e profissionais de saúde revisaram suas práticas a partir da interlocução com as teorias das ciências humanas por um novo projeto em saúde. Estes movimentos deram início às críticas das práticas educativas autoritárias e normalizadoras apontando, ao mesmo tempo, para uma ruptura. Dentre os movimentos que tiveram início na década de 1970 e que buscavam romper com a tradição autoritária e normalizadora da relação entre os serviços de saúde e a população, destaca-se o movimento da Educação Popular em Saúde (Vasconcelos, 2001). Este movimento foi precipitado pela insatisfação de alguns profissionais de saúde com os serviços oficiais; dirigindose para as periferias dos grandes centros urbanos e regiões rurais, aproximaram-se, assim, das classes populares e dos movimentos sociais locais. A aproximação favoreceu a convivência dos profissionais com a dinâmica do processo de adoecimento e cura no meio popular, bem como o confronto com a complexidade dos problemas de saúde nessas populações, o que levou muitos

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profissionais a buscarem a reorientação de suas práticas com a finalidade de enfrentar de forma mais global os problemas de saúde identificados. A iniciativa dos profissionais em inserir-se em serviços de saúde que prestavam assistência às classes populares se deu integrada a projetos mais amplos, dentre os quais predominava a metodologia da Educação Popular (Vasconcelos, 2001). Assim sendo, esta metodologia foi assimilada pelo movimento dos profissionais constituindo seu elemento estruturante fundamental. O movimento da Educação Popular em Saúde tem priorizado a relação educativa com a população, rompendo com a verticalidade da relação profissional-usuário. Valorizam-se as trocas interpessoais, as iniciativas da população e usuários e, pelo diálogo, buscam-se a explicitação e compreensão do saber popular. Esta metodologia contrapõe-se à passividade usual das práticas educativas tradicionais. O usuário é reconhecido como sujeito portador de um saber sobre o processo saúde-doença-cuidado, capaz de estabelecer uma interlocução dialógica com o serviço de saúde e de desenvolver uma análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento. Pela potencialidade desta metodologia, Vasconcelos (1999; 2001) vislumbra as experiências de Educação Popular como forma de superação do fosso cultural entre os serviços de saúde e a população assistida. Nos locais em que a experiência tem sido desenvolvida verifica-se a “emergência de novos padrões de enfrentamento dos problemas de saúde marcados pela integração entre o saber técnico e o saber popular e pela mútua colaboração” (Vasconcelos, 1999, p.30). Em função deste resultado, o autor compreende a Educação Popular em Saúde não como uma atividade a mais a ser realizada pelos serviços de saúde, mas como uma estratégia capaz de reorientar as práticas de saúde. A Educação Popular em Saúde tem convivido no Brasil com as modalidades de serviços hegemônicas. Desde a década de 1970, a despeito do amadurecimento da metodologia, as experiências em Educação Popular não deixaram de ser pontuais, alternativas e transitórias. De acordo com Vasconcelos (2001), a generalização dessas experiências constitui um desafio, apontando como dificuldade o embate com a racionalidade dos serviços oficiais e a formação de recursos humanos. O campo da educação em saúde tem sido, desde a década de 1970, profundamente repensado e verifica-se um relativo distanciamento das ações impositivas características do discurso higienista. Paralelamente, há uma ampliação da compreensão sobre o processo saúde-doença, que, saindo da concepção restrita do biologicismo, passa a ser concebido como resultante da inter-relação causal entre fatores sociais, econômicos e culturais. Neste momento, as práticas pedagógicas persuasivas, a transmissão verticalizada de conhecimentos, refletindo no autoritarismo entre o educador e o educando, e a negação da subjetividade nos processos educativos são passíveis de questionamentos. É também neste contexto que surge a preocupação com o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos, com a constituição de sujeitos sociais capazes de reivindicar seus interesses (Smeke & Oliveira , 2001).

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Entre dois modelos de práticas de educação em saúde A despeito da emergência de um novo discurso no campo da educação em saúde, prevalecem as práticas educativas hegemônicas. Da convivência entre as práticas emergentes e hegemônicas é possível delinear dois modelos de práticas de educação em saúde, que podem ser referidos como modelo tradicional e modelo dialógico. Estes se encontram em pólos extremos, sendo possível reconhecer modelos intermediários. O modelo tradicional, historicamente hegemônico, focalizando a doença e a intervenção curativa e fundamentado no referencial biologicista do processo saúde-doença, preconiza que a prevenção das doenças prima pela mudança de atitudes e comportamentos individuais (Smeke & Oliveira, 2001; Chiesa & Veríssimo, 2003). As estratégias desta prática educativa em saúde incluem informações verticalizadas que ditam comportamentos a serem adotados para a manutenção da saúde. Os usuários são tomados como indivíduos carentes de informação em saúde (Briceño-Léon, 1996). Desta maneira, a relação estabelecida entre profissionais e usuários é essencialmente assimétrica, uma vez que um detém um saber técnico-científico, com status de verdade, enquanto o outro precisa ser devidamente informado. Desta maneira, a comunicação profissional-usuário caracteriza-se pelo caráter informativo, na qual o primeiro, assumindo uma atitude paternalista, explicita ao segundo hábitos e comportamentos saudáveis, o que fazer e como fazer para a manutenção da saúde. Pressupõe-se, ainda, que a partir da informação recebida os usuários serão capazes de tomar decisões para a prevenção de doenças e agravos, bem como poderão assumir novos hábitos e condutas. Quanto à disseminação de informação em saúde, particularmente por meio de campanhas e veiculadas pelos meios de comunicação de massa, Rice & Candeias (1989) falam do efeito temporário desta estratégia em relação a mudanças de hábitos e condutas. As autoras afirmam que a população não muda de comportamento em definitivo, mas apenas reage a um estímulo temporário. Com a supressão do estímulo, o comportamento tende à extinção. A principal crítica a este modelo de educação, entretanto, tem sido referente a não consideração dos determinantes psicossociais e culturais dos comportamentos de saúde. Ao tomar os usuários como objeto das práticas educativas e carentes de um saber sobre a saúde, perde-se de vista que os comportamentos são orientados por crenças, valores, representações sobre o processo saúde-doença – todos estes representantes de formas outras de saber. Neste sentido, tem-se discutido sobre a consideração dos determinantes psicossociais e culturais nas práticas de educação em saúde (Gogna, 1998; Chor, 1999; Filgueiras & Deslandes, 1999). Propõe-se que estas sejam sensíveis às necessidades subjetivas e culturais dos usuários. Para tanto, reconhece-se a necessidade de abandonar estratégias comunicacionais informativas e a adoção de uma comunicação dialógica. A proposição de práticas educativas sensíveis às necessidades dos usuários insere-se no discurso emergente de educação em saúde – o modelo dialógico. Em oposição ao modelo tradicional, trabalha-se com a perspectiva de sujeitos das práticas de saúde (Ayres, 2001). Neste sentido, Briceño-Léon

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(1996) apresenta dois princípios básicos na orientação das ações de saúde. Primeiramente, é necessário conhecer os indivíduos para os quais se destinam as ações de saúde, incluindo suas crenças, hábitos e papéis, e as condições objetivas em que vivem. O segundo princípio parte da premissa de que é preciso envolver os indivíduos nas ações, o que se contrapõe a sua imposição. O autor pondera que apenas com a participação comunitária é possível assegurar sustentabilidade e efetividade das ações de saúde. O modelo emergente de educação em saúde pode ser referido como modelo dialógico por ser o diálogo seu instrumento essencial. O usuário dos serviços é reconhecido sujeito portador de um saber, que embora diverso do saber técnico-científico não é deslegitimado pelos serviços. De acordo com BriceñoLéon (1996), em um modelo dialógico e participativo, todos, profissionais e usuários, atuam como iguais, ainda que com papéis diferenciados. O objetivo da educação dialógica não é o de informar para saúde, mas de transformar saberes existentes. A prática educativa, nesta perspectiva, visa ao desenvolvimento da autonomia e da responsabilidade dos indivíduos no cuidado com a saúde, porém não mais pela imposição de um saber técnicocientífico detido pelo profissional de saúde, mas sim pelo desenvolvimento da compreensão da situação de saúde. Objetiva-se, ainda, que essas práticas educativas sejam emancipatórias. A estratégia valorizada por este modelo é a comunicação dialógica, que visa à construção de um saber sobre o processo saúde-doença-cuidado que capacite os indivíduos a decidirem quais as estratégias mais apropriadas para promover, manter e recuperar sua saúde (Chiesa & Veríssimo, 2003). Como contexto das práticas educativas, considera-se que estas tanto podem ser formais e desenvolvidas nos espaços convencionais dos serviços, com realização das palestras e distribuição de cartilhas e folhetos, como também podem ser informais, desenvolvida nas ações de saúde cotidianas. Entretanto, dada a relevância da comunicação dialógica, valoriza-se o espaço das relações interpessoais estabelecidas nos serviços de saúde como contextos de práticas educativas. Nesse sentido, L’Abbate (1994) e Smeke & Oliveira (2001) concordam quanto à compreensão de que todo profissional de saúde é um educador em saúde em potencial, sendo condição essencial a sua prática seu próprio reconhecimento enquanto sujeito do processo educativo, bem como o reconhecimento dos usuários enquanto sujeitos em busca de autonomia. A partir do diálogo e intercâmbio de saberes técnico-científicos e populares, profissionais e usuários podem construir de forma compartilhada um saber sobre o processo saúde-doença. Este compromisso e vinculação com os usuários possibilita o fortalecimento da confiança nos serviços. Por esta circunstância, o modelo dialógico tem sido associado a mudanças duradouras de hábitos e de comportamentos para a saúde, visto serem ocasionados não pela persuasão ou autoridade do profissional, mas pela construção de novos sentidos e significados individuais e coletivos sobre o processo saúde-doença-cuidado. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família Para a reorganização da atenção básica, a que se propõe a estratégia do PSF, reconhece-se a necessidade de reorientação das práticas de saúde, bem como de renovação dos vínculos de compromisso e de co-responsabilidade entre os

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serviços e a população assistida. Cordeiro (1996) avalia que o desenvolvimento de um novo modelo assistencial baseado nos princípios do PSF não implica um retrocesso quanto à incorporação de tecnologias avançadas, conforme a compreensão inicial de que o PSF corresponderia a uma medicina simplificada destinada para os pobres; antes disso, tal proposta demanda a reorganização dos conteúdos dos saberes e práticas de saúde, de forma que estes reflitam os pressupostos do SUS no fazer cotidiano dos profissionais. Admite-se, nesta perspectiva, que o PSF “requer alta complexidade tecnológica nos campos do conhecimento e do desenvolvimento de habilidades e de mudanças de atitudes” (Brasil, 1997, p.9). Pensar no PSF como estratégia de reorientação do modelo assistencial sinaliza a ruptura com práticas convencionais e hegemônicas de saúde, assim como a adoção de novas tecnologias de trabalho. Uma compreensão ampliada do processo saúde-doença, assistência integral e continuada a famílias de uma área adscrita são algumas das inovações verificadas no PSF. Ayres (1996) observa que o reconhecimento de sujeitos está no centro de todas as propostas renovadoras identificadas no setor saúde, dentre as quais encontra-se a estratégia do PSF. De fato, os objetivos do programa, entre outros, incluem: a) humanização das práticas de saúde por meio do estabelecimento de um vínculo entre os profissionais e a população; b) a democratização do conhecimento do processo saúde-doença e da produção social da saúde; c) o desenvolvimento da cidadania, levando a população a reconhecer a saúde como direito; d) a estimulação da organização da comunidade para o efetivo exercício do controle social (Brasil, 1997). Notase, a partir desses objetivos, a valorização dos sujeitos e de sua participação nas atividades desenvolvidas pelas unidades de saúde da família, bem como na resolutividade dos problemas de saúde identificados na comunidade. Quanto à reorientação das práticas de saúde, o PSF pretende oferecer uma atuação centrada nos princípios da vigilância da saúde (Brasil, 1997; Santana & Carmagnani, 2001), o que significa que a assistência prestada deve ser integral, abrangendo todos os momentos ou dimensões do processo saúde-doença (Mendes, 1996). De acordo com o princípio da integralidade, o PSF deve ofertar prioritariamente assistência promocional e preventiva, sem, contudo descuidar da atenção curativa e reabilitadora. A abordagem da vigilância da saúde contempla o enfoque por problema, contrapondo-se, desta maneira, à atuação orientada por programas (Mendes, 1996). Enquanto este caracteriza-se pela definição apriorística dos problemas de saúde, traduzindo-se freqüentemente em intervenções verticalizadas, o enfoque por problemas parte do reconhecimento da área adscrita e de sua população para a identificação, descrição e explicação de seus problemas de saúde, para assim sobre eles intervir. Deste diagnóstico da situação de saúde local espera-se a participação ativa da comunidade, o que favorece o desenvolvimento da consciência sanitária pela possibilidade de compreensão sobre os problemas de saúde e seus determinantes. As particularidades da estratégia do PSF remetem a um modelo de educação em saúde que seria mais coerente com os princípios do SUS incorporados pelo PSF, particularmente o da integralidade. Pelo nível de

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compromisso e responsabilidade esperado dos profissionais que compõem as equipes de saúde da família, pelo nível de participação desejado da comunidade na resolução dos problemas de saúde, pela compreensão ampliada do processo saúde-doença, pela humanização das práticas, busca da qualidade da assistência e de sua resolutividade, depreende-se que o modelo dialógico de educação em saúde corresponderia ao modelo mais pertinente para o contexto de atividades do PSF. Ao nível da atenção preventiva, o PSF prevê o desenvolvimento de práticas de educação em saúde voltadas para a melhoria do auto-cuidado dos indivíduos. Estas devem ser desenvolvidas por todos os profissionais em seus contatos com indivíduos sadios ou doentes, conforme definição de suas atribuições básicas. Verifica-se, desta maneira, que a prática educativa no PSF não conta necessariamente com um espaço restrito e definido para seu desenvolvimento, antes disso adverte-se os profissionais que devem oportunizar seus contados com os usuários para “abordar os aspectos preventivos e de educação sanitária” (Brasil, 1997, p.15). Educar para a saúde implica ir além da assistência curativa, significa dar prioridade a intervenções preventivas e promocionais. Deste modo, o desenvolvimento de práticas educativas no âmbito do PSF, seja em espaços convencionais, a exemplo dos grupos educativos, ou em espaços informais, como a consulta médica na residência das famílias em ocasião da visita domiciliar, expressa a assimilação do princípio da integralidade pelas equipes de saúde da família. Dentre os modelos de educação em saúde, o modelo dialógico conformase à proposta da integralidade uma vez que favorece o reconhecimento dos usuários enquanto sujeitos portadores de saberes sobre o processo saúde-doença-cuidado e de condições concretas de vida. Nesta mesma direção, este modelo contribui para uma apreensão mais abrangente das necessidades de saúde dos sujeitos e na humanização da ação educativa, tornando-as mais sensíveis a seus destinatários. Para tanto, reconhece-se, ainda, a necessidade da transformação da relação profissional-usuário para a construção de um modelo assistencial alternativo, capaz de acumular experiências contra-hegemônicas. Paim (2002, p. 363) pondera que “apesar da relevância da implantação do PSF faltam, contudo, evidências que apontem esse programa como estratégia suficientemente eficaz para a reorientação dos modelos assistenciais dominantes”. Nesta empreitada, é fundamental a reformulação dos discursos e das racionalidades subjacentes.

HANS HARTUNG, T 1956/7, 1956/7

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ALVES, V. S. Un modelo de educación en salud para el Programa Salud de la Familia: por la integralidad de la atención y reorientación del modelo asistencial, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.39-52, set.2004/fev.2005. Partiendo de la idea de que las políticas de salud se materializan en los servicios, a través de las acciones de actores sociales y sus prácticas cotidianas, este ensayo tiene el objetivo de reflexionar sobre las prácticas de educación en salud en el contexto del Programa Salud de la Familia (PSF). Se pretende apreciar la asimilación del principio de integralidad en estas prácticas y, de esta manera, contribuir con el debate sobre los alcances y limitaciones de la estrategia del PSF para la reorientación del modelo asistencial a partir de la atención básica. En la actual coyuntura de la política de salud brasileña, el PSF desempeña un papel estratégico para la construcción y consolidación del Sistema Único de Salud (SUS). A partir de una revisión histórica de las prácticas de educación en salud y de los discursos sanitarios subyacentes a ellas, se reconstruyen las racionalidades determinantes de tales prácticas. El modelo hegemónico de educación en salud, en esencia divergente del principio de integralidad, es caracterizado y discutido en comparación con un modelo emergente de prácticas de educación en salud, al que en este ensayo se denomina modelo dialógico, cuya lógica mantendría coherencia con la integralidad de la atención. PALABRAS CLAVE: Principio de integralidad; Programa Salud de la Familia; educación en salud; modelo asistencial.

Recebido para publicação em 18/03/04. Aprovado para publicação em 30/09/04.

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Rupturas e resoluções no modelo de atenção à saúde: reflexões sobre a estratégia saúde da família com base nas categorias kuhnianas

Magda Duarte dos Anjos Scherer1 Selma Regina Andrade Marino2 Flávia Regina Souza Ramos3

SCHERER, M. D. A. et al. Ruptures and resolutions in the health care model: reflections on the Family Health Strategy based on Kuhn’s categories, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.53-66, set.2004/fev.2005. This paper reflects upon the possibilities for the Family Health Strategy to establish a rupture with the clinical/ biological/Flexnerian model that has been historically hegemonic in the configuration of health policies in Brazil. It analyzes the change in the health care model implied in the consolidation of the Brazilian Unified Health System (Sistema Único de Saúde - SUS), and focuses on its political-operational dimension, based on the categories proposed by Thomas Kuhn (1922-1996) concerning the development of science. It elects the Flexnerian model and SUS as exemplar paradigmatic expressions for the analysis of the process of transition and crisis that characterizes the current moment of reformulation of health models and practices. Finally, the article considers that the paradigmatic change in health care isn’t limited to the Family Health Strategy, but encompasses the entire Health Care System. The knowledge of the health sector’s social dimensions goes beyond the use of the categories studied. KEYWORDS: Family health; science philosophy; health system; basic standards for health care. O ensaio propõe uma reflexão sobre as possibilidades da Estratégia de Saúde da Família significar uma ruptura com o modelo clínico/biológico/flexneriano historicamente hegemônico na conformação das políticas de saúde do Brasil. Aborda a mudança do modelo de atenção à saúde implicada na consolidação do SUS, com foco principal em sua dimensão político-operacional, a partir de categorias propostas por Thomas Kuhn (1922-1996) acerca do desenvolvimento da ciência. Elege o modelo flexneriano e o SUS como expressões paradigmáticas exemplares para a análise do processo de transição e de crise que caracteriza o atual momento de reformulação do pensamento e das práticas em saúde. Finaliza considerando que a mudança paradigmática na saúde não se limita à Estratégia Saúde da Família, mas engloba todo o Sistema de Saúde. A explicação da realidade social do setor saúde vai além da possibilidade de aplicação das categorias estudadas. PALAVRAS-CHAVE: Saúde da Família; filosofia da ciência; sistema de saúde; normas básicas de atenção à saúde.

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Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina; bolsista do CNPq. <magscherer@hotmail.com> 2

Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina. <selma@big.univali.br>

3

Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina.<flaregina@brturbo.com>

1

Rua Desembargador Pedro Silva, 2630 BL C, apto. 21 Florianópolis, SC 88080-701

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Por que propor tal reflexão? A Saúde está em crise. Esta poderia ser apenas mais uma frase solta, de efeito moral, sem criatividade, já tantas vezes repetida no campo do debate sanitário, se crise não representasse uma “pré-condição necessária para a emergência de novas teorias” (Kuhn, 2001, p.107). O significado das crises no processo das revoluções científicas, descrito por Kuhn (2001), consiste no fato de que estas indicam a necessidade de renovar os instrumentos, ou seja, de produzir novos instrumentos, alternativos aos existentes, capazes de resolver os problemas, aparentemente sem respostas até então oferecidas pelo modelo teórico vigente. A superação da crise estrutural sanitária exige mudança substantiva no modelo médico, o que implica um novo sistema, mudanças políticas, culturais e cognitivo-tecnológicas (Mendes, 1996). No caso do setor de saúde brasileiro, o modelo legalmente instituído e praticado até 1988 estava estabelecido na Lei 6.229/75, criando dicotomias entre curativo e preventivo, individual e coletivo, por meio de práticas assistenciais fortemente centradas em hospitais, restritas aos contribuintes previdenciários. Esta concepção de modelo de atenção à saúde seguia, em parte, a herança do pensamento médico ocidental do século XVIII, descrito por Foucault (1999), fundado no desenvolvimento da clínica e no surgimento do hospital, como forma de compreender a doença a partir da disfunção de seus elementos orgânicos e como espaço privilegiado de intervenção e sistematização de um saber sobre esta doença. De outra parte, as influências da Escola Norte-Americana, via modelo flexneriano, fundamentado na especialização da medicina orientada ao indivíduo, tiveram profundas repercussões não só na formação médica, mas, sobretudo na estrutura organizacional e funcional do sistema público de saúde. A história recente da Saúde Pública brasileira tem sido descrita com o movimento da reforma sanitária, cujo marco fundamental foi a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Nela foram deliberados os princípios e diretrizes incorporados na Política Nacional de Saúde, aprovados na Constituição de 1988. Demarca-se, legalmente, um novo modelo de atenção à saúde, em substituição ao existente. Modelo de atenção à saúde, segundo Paim (1999), é a forma de organização das relações entre sujeitos (profissionais de saúde e usuários) mediadas por tecnologia (materiais e não materiais) utilizadas no processo de trabalho em saúde, cujo propósito é intervir sobre problemas (danos e riscos) e necessidades sociais de saúde historicamente definidas. O atual modelo de atenção à saúde inclui elementos de diferentes modelos, ao propor ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação, tanto ao indivíduo, quanto à família e comunidade, por meio de serviços assistenciais (ambulatoriais, hospitalares e de apoio diagnóstico), quanto de vigilância em saúde (ambiental, epidemiológica e sanitária). A adoção de novos pressupostos e métodos, compartilhados por membros de uma comunidade, para a resolução de problemas, implica uma mudança paradigmática. Nos diversos campos da investigação científica, abordagens alternativas indicam uma clara insatisfação com o paradigma dominante. O campo científico da saúde, segundo Paim & Almeida Filho (2000, p.26), “também passa por uma crise epistemológica, teórica e metodológica, isto

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é, uma crise paradigmática”. O conceito de paradigma é particularmente importante para compreender, não apenas a ciência, mas a própria vida em sociedade. Na análise do desenvolvimento científico, paradigmas correspondem às “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Kuhn, 2001, p.13). Paim & Almeida Filho (2000) argumentam que o paradigma dominante no campo científico da saúde fundamenta-se em uma série de pressupostos oriundos do positivismo. Neste paradigma, a realidade é que determina o conhecimento e opera como se todos os entes constituíssem mecanismos ou organismos, sistemas com determinações fixas, condicionados pela própria posição dos seus elementos. Esta visão ainda é adotada na saúde, em especial na clínica médica, cuja aplicação é individualizada. (Paim & Almeida Filho, 2000, p. 24)

A conotação do termo paradigma no sentido de movimento ideológico, que se tem apresentado no campo da saúde, corresponde a um “conjunto de noções, pressupostos e crenças, relativamente compartilhados por um determinado segmento de sujeitos sociais, que serve de referencial para a ação” (Paim & Almeida Filho, 2000, p.30), dentre os quais são identificados, por exemplo, os modelos flexneriano, da medicina preventiva, da saúde comunitária, da saúde coletiva e da promoção da saúde, sendo que os quatro últimos opõem-se em seus princípios ao primeiro e que, em certa medida, estão incluídos no Sistema Único de Saúde – SUS, compreendido como atual modelo de atenção à saúde legalmente instituído no país. Outras denominações vêm sendo propostas para essa mudança paradigmática, tal como produção social da saúde (Mendes, 1996); vigilância à saúde (Mendes, 1993); campo de saúde (Dever, 1998), promoção da saúde (Ferraz, 1994), Saúde Coletiva (Paim & Almeida Filho, 2000). O SUS, fruto de um processo de longo debate e de lutas por melhores condições de saúde, surge como um novo paradigma na atenção à saúde, cujos princípios e diretrizes rompem com o paradigma clínico flexneriano, porém cria a necessidade de imprimir uma nova forma de produzir e distribuir as ações e serviços de saúde, ou seja, de configurar e definir este novo modelo de atenção em saúde. Segundo Mendes (1993), a mudança no modelo de atenção à saúde delimita o processo de construção do SUS em, pelo menos, três dimensões ou espaços de transformação: político-jurídico, político-institucional e políticooperacional. As duas primeiras dimensões dizem respeito ao conjunto de regras básicas de ordenação e funcionamento do sistema, contemplando a doutrina, os princípios e as diretrizes do sistema, além de direitos, deveres e responsabilidades do cidadão, da sociedade e do Estado (Castro & Westphal, 2001). Na primeira dimensão pode-se afirmar que a criação do SUS já constitui um novo paradigma e, na segunda, observa-se um grande avanço na transformação dos meios e estruturas, consubstanciado na descentralização da gestão e na definição das competências e atribuições para os Estados e

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municípios. Embora sejam consideradas condição necessária para o funcionamento do sistema de saúde, as dimensões político-jurídico e políticoinstitucional não são suficientes para garantir a mudança paradigmática. A dimensão político-operacional diz respeito a existência de serviços de saúde, públicos e privados, ambulatoriais, hospitalares e de apoio diagnóstico e à forma de produção e distribuição destes serviços, numa relação direta e de reciprocidade com uma dada população definida, em termos de suas necessidades, problemas e demandas de atenção à saúde. (Castro & Westphal, 2001, p.93)

É nesta dimensão que se encontra o maior desafio: implementar novas práticas de atenção à saúde que de fato garantam à população o acesso universal, a integralidade e a eqüidade, numa rede hierarquizada de serviços resolutivos. Como uma possível resposta ao desafio de reorientar o modelo de atenção no espaço político-operacional, o Ministério da Saúde lançou, em 1994, o Programa de Saúde da Família – PSF, que em 1998 passa a ser chamado de Estratégia de Saúde da Família, por ser considerado estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde. Nesse contexto, e tendo como foco principal a dimensão políticooperacional do SUS, este ensaio apresenta, como motivação ao debate, o seguinte questionamento: as diretrizes da Estratégia de Saúde da Família significam ruptura com o modelo clínico/biológico/flexneriano? A reflexão tem o objetivo de apresentar algumas considerações sobre esta questão, formuladas a partir das categorias propostas por Thomas Kuhn (1922-1996) acerca do desenvolvimento da ciência, descritas no livro A Estrutura das Revoluções Científicas (Kuhn, 2001). A tematização é desenvolvida em três tópicos, sendo o primeiro relativo aos elementos constituintes dos modelos de atenção à saúde (flexneriano e SUS), o segundo sobre a Estratégia de Saúde da Família e, por fim, o PSF à luz das categorias kuhnianas, procurando destacar sua possibilidade de provocar ruptura e/ou resolução (mudança) do modelo de atenção à saúde, no plano político-operacional do sistema. Elementos do modelo flexneriano e os princípios do Sistema Único de Saúde Paim & Almeida Filho (2000) afirmam que as modificações do panorama político e social do mundo e da situação de saúde, principalmente a falta de mudanças esperadas, põem em xeque as premissas e previsões de antigos modelos, em especial do clínico/biológico/flexneriano. Argumentam que talvez a lacuna para as mudanças esteja localizada em nível mais profundo, não apenas dos modelos, mas também do paradigma científico que fundamenta esse campo de prática social e técnica. Até a Constituição de 1988, quando, por força legal, foi prescrito o novo modelo denominado Sistema Único de Saúde, o modelo clínico/biológico/ flexneriano era adotado oficialmente como paradigma da saúde. Este modelo consolidou-se em virtude das recomendações apontadas por Abraham Flexner

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(1866-1959) em relatório encomendado pela Fundação Carnegie dos Estados Unidos, em 1910 (Novaes, 1990), cujas conclusões tiveram amplo impacto na formação médica em quase todo continente americano. O modelo flexneriano, baseado num paradigma fundamentalmente biológico e quase mecanicista para a interpretação dos fenômenos vitais, gerou, entre outras coisas, o culto à doença e não à saúde, e a devoção à tecnologia, sob a presunção ilusória de que seria o centro de atividade científica e de assistência à saúde. A evolução do conceito de saúde influenciou e continua influenciando a forma como a comunidade científica incorpora o paradigma da saúde, num processo de reconstrução, tanto por força das inovações científicas, quanto dos métodos e das práticas sanitárias. “O paradigma flexneriano é coerente com o conceito de saúde como ausência de doença e constitui uma âncora que permite sustentar a prática sanitária da atenção médica” (Mendes, 1996, p.239). A formação médica e o modelo de assistência em proposição neste modelo revelava diversas influências (Mendes, 1996; Novaes, 1990), como o mecanicismo, o biologismo, o individualismo, a especialização e o curativismo. O mecanicismo tomou o corpo humano em analogia a uma máquina, cujas estrutura e funções pudessem ser meticulosamente analisadas e tratadas de modo instrumental, isolando-se a parte adoecida do resto do corpo. O biologismo ocultou a causalidade social da doença ao reconhecer a natureza biológica de suas causas e conseqüências, dada a ênfase na microbiologia e nas teorias dos germes e da história natural das doenças. O individualismo constituiu o objeto individual da saúde, ao considerar o paciente como abstração à parte da coletividade e, portanto, excluído de todos os demais aspectos sociais da vida. Associada ao individualismo, a especialização impôs a parcialização abstrata do objeto global, cuja preocupação dirigia-se principalmente para a excelência técnica de especialidades clínicas orientadas ao indivíduo, além da tecnificação do ato médico, que estruturou a engenharia biomédica, mediadora da ação entre profissional de saúde e paciente. Finalmente, o curativismo, que centrou a prática sanitária, em todos os seus níveis, nos aspectos curativos, prestigiando o processo fisiopatológico, em detrimento da(s) causa(s) geradoras do processo. O modelo de atenção à saúde no Brasil tem sido historicamente marcado pela predominância da assistência médica curativa e individual e pelo entendimento de saúde como ausência de doença, princípios definidores do modelo flexneriano. O rompimento deste paradigma veio com o ordenamento jurídico-institucional de criação e implantação do SUS, uma vez que o modelo clínico/flexneriano não respondia aos problemas da organização das ações e serviços de saúde de maneira a atender às necessidades de saúde da população. Ao mesmo tempo novos princípios emergiam da sociedade como apelo à sedimentação do conceito de saúde como condição de cidadania. Convém assinalar que princípios são os mandamentos básicos e fundamentais nos quais se alicerça uma ciência, isto é, são as diretrizes que orientam uma ciência e dão subsídios à aplicação de suas normas. Os princípios são considerados como normas hierarquicamente superiores às demais normas que regem uma ciência.

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Neste sentido, são incorporados, além de princípios de organização do sistema (descentralização, regionalização, hierarquização, resolubilidade e complementaridade do setor privado), os princípios doutrinários de universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; de integralidade da assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; de eqüidade na assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; e de participação da comunidade (Brasil, 1990). O Programa de Saúde da Família: mudança “no ou do” modelo assistencial? A política do Ministério da Saúde (MS) tem se pautado por três grandes eixos que constituem os pilares do Sistema Único de Saúde: no plano administrativo, a descentralização, no plano assistencial, os Programas de Saúde da Família e de Agentes Comunitários e no plano político, o controle social. A ênfase na implantação do Programa de Saúde da Família – PSF – é justificada pela necessidade de substituição do modelo assistencial historicamente centrado na doença e no cuidado médico individualizado por um novo modelo sintonizado com os princípios da universalidade, eqüidade e integralidade da atenção. O indivíduo deixaria de ser visto de forma fragmentada, isolado do seu contexto familiar, social e de seus valores e seria possível o desenvolvimento de novas “ações humanizadas, tecnicamente competentes, intersetorialmente articuladas e socialmente apropriadas” (Brasil, 2000, p.9). O Programa Saúde da Família foi criado na década de 1990, inspirado em experiências advindas de outros países, cuja Saúde Pública alcançou níveis de qualidade com o investimento na promoção da saúde e prevenção de doenças, tais como Cuba, Inglaterra e Canadá, sendo precedido pela criação do PAS - Programa Agentes de Saúde (Ceará-1987) e PACS - Programa Agentes Comunitários de Saúde (Brasil-1991). Os princípios que norteiam o PSF são originários de propostas de diferentes grupos e articulações, tais como a Medicina Comunitária, as Ações Primárias de Saúde e os Sistemas Locais de Saúde – SILOS. O que parece diferenciá-lo é sua inserção no escopo das políticas públicas de saúde, fazendo com que seus princípios sejam assumidos, pelo menos no discurso, por praticamente todos os gestores do país. O PSF incorpora e reafirma os princípios do SUS. Além disso, tem como princípios básicos ser substitutivo do modelo bio-médico hegemônico, trabalhar em equipe multiprofissional, com território definido e adscrição da clientela e realizar a vigilância à saúde. Segundo o MS, o PSF prioriza as ações de proteção e promoção à saúde dos indivíduos e da família, tanto adultos, quanto crianças, sadios ou doentes, de forma integral e contínua. Constitui atribuição das equipes do PSF o conhecimento da realidade, a identificação de problemas de sua área de abrangência e a elaboração do planejamento local. A execução das ações segue a lógica da vigilância à saúde e da valorização da relação com o usuário e a família. Espera-se a prestação

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de assistência integral – completa e contínua em todas as fases de vida de um indivíduo, no seu contexto de vida e que apenas 15% dos casos sejam referenciados em nível de maior complexidade. Cada equipe é responsável por até 3500 pessoas no seu território. Os profissionais devem promover atividades educativas de grupo, ações intersetoriais e parcerias para enfrentamento dos problemas, além de incentivar e participar da organização dos Conselhos de Saúde. O debate entre a equipe e desta com a população, em torno do conceito de saúde, cidadania e as bases jurídicolegais que legitimam o direito à saúde deve ser permanente. Os documentos do MS têm abordado o PSF como uma estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde, com potencial para provocar importante reordenamento do modelo de atenção vigente. Nesse sentido, a operacionalização da estratégia de saúde da família não se coloca como uma tarefa simples, o que sugere a necessidade de compor uma equipe com capacidade de articular as diversas políticas sociais e recursos, de maneira a contribuir para a identificação das causalidades e das multiplicidade de fatores que incidem na qualidade de vida da população, bem como em relação à democratização do acesso e universalização dos serviços de saúde. Para as novas ações pressupõem-se mudanças nas abordagens do indivíduo, da família e da comunidade. Vale ressaltar que o termo comunidade tem sido muito utilizado, mas seu sentido não é muito preciso. Comunidade transmite a idéia de um local onde as pessoas vivem em condições homogêneas, mascarando as contradições entre os diferentes grupos sociais existentes em um determinado território. Entretanto, isso não significa que esta tenha sido a intenção dos formuladores da política de saúde. Mudar o modelo assistencial curativo, centrado na figura do médico, requer fundamentalmente interferir nos microprocessos do trabalho em saúde, nas concepções deste mesmo trabalho e construir novas relações entre usuários e profissionais e destes entre si, na tentativa de transformá-los em sujeitos, ambos produtores do cuidado em saúde (Franco & Merhy, 1999). O entendimento de que o processo saúde–doença não tem uma dimensão apenas biológica torna necessário o desenvolvimento de ações intersetoriais e interdisciplinares na atenção básica. O desenvolvimento do aprendizado e da prática multiprofissional é um elemento estratégico para a construção de novos paradigmas na educação e na prática de saúde (Feuerwerker & Marsiglia, 1996). Considerações sobre o PSF à luz das categorias Kuhnianas A escolha por realizar a análise proposta com base nas categorias delimitadas por Kuhn (2001) pareceu, em princípio, adequada devido à compreensão de que se trata de uma concepção bastante produtiva na análise de paradigmas, que amplia idéias até então produzidas acerca de paradigmas como conjuntos de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação. Inicialmente, pensou-se no próprio PSF como possibilidade de mudança paradigmática, uma vez que havia indicações para considerá-lo o condutor na reorientação do modelo de atenção à saúde. No entanto, aprofundando a discussão entre as prováveis ligações entre as categorias kuhnianas e as diretrizes do PSF, que sempre serão relativas e aproximativas, o próprio PSF passou a ser

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evidenciado como uma dimensão operacional do modelo de saúde vigente – o Sistema Único de Saúde (SUS), este sim uma proposta de paradigma nesta área, que tenta romper com o modelo hegemônico. Na obra A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn (2001) tem como objetivo principal delinear um conceito de ciência distinto do advindo do estudo de realizações científicas acabadas, tais como estão registradas nos clássicos e nos manuais, que cada geração utiliza para aprender seu ofício. Para ele, a ciência não se desenvolve por acumulação de descobertas e invenções individuais e o conhecimento científico não cresce de modo cumulativo e contínuo. A ciência para Kuhn se desenvolve por meio de saltos qualitativos, processando-se em duas fases: a fase da ciência normal e a fase da ciência extraordinária ou revolucionária. A competição entre segmentos da comunidade científica seria o único processo histórico que resultaria na rejeição de uma teoria ou na adoção de outra. A validação do conhecimento seria dada pela própria comunidade científica. Convém destacar que a visão kuhniana privilegia as ciências naturais por reconhecer o caráter pré-paradigmático das ciências sociais, atribuído ao fato de não haver ainda consenso paradigmático entre estas (Paim & Almeida Filho, 2000). Esta concepção é criticada por Santos (1995, p.43) que considera que o avanço das ciências naturais e a reflexão epistemológica que ele tem suscitado tem vindo a mostrar que os obstáculos ao conhecimento científico da sociedade e da cultura são de fato condições do conhecimento em geral, tanto científico-social como científico-natural.

Na ciência moderna o conhecimento é fragmentado e disciplinado, ou seja, “segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que a quiserem transpor” (Santos, 1995, p.46). Diz o autor que estes problemas são reconhecidos hoje, mas as soluções propostas acabam por reproduzi-los de outra forma, utilizando como exemplo o médico generalista, “cuja ressurreição visou compensar a hiper-especialização médica, [correndo] o risco de ser convertido num especialista ao lado dos demais” (Santos, 1995, p.47). A questão verdadeiramente ambígua e problemática reside no caráter limitante de um paradigma dominante, ao constranger o conhecimento em suas demarcações. Esta visão de limite pode ser complementada por Paim & Almeida Filho (2000), quando entendem que a característica mais definidora do chamado novo paradigma talvez seja a noção de não-linearidade, no sentido de rejeição da doutrina do causalismo simples também presente na abordagem convencional da ciência. Um problema teórico fundamental das diversas perspectivas paradigmáticas alternativas consiste na possibilidade de pensar que a realidade concreta se estrutura de modo descontínuo o que, portanto, exige admitir os próprios limites das concepções que se propõem a pensar este real. Com base nessas reflexões e na relativização do próprio exercício de tematização, este trabalho buscou discutir as diretrizes da Estratégia de

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Saúde da Família e seu potencial de ruptura com o modelo clínico/biológico/ flexneriano. Como ponto de partida, e em analogia ao descrito por Paim & Almeida Filho (2000) sobre Saúde Coletiva, buscou-se entender o SUS inserido em um campo científico e em um âmbito de práticas, nos quais se produzem saberes e conhecimentos acerca do objeto saúde e operam distintas disciplinas que o contempla sob vários ângulos e, também, onde se realizam ações em diferentes organizações e instituições por diversos agentes, especializados ou não, dentro e fora de espaço convencionalmente reconhecido como setor saúde. Categorias Kuhnianas e princípios/diretrizes do PSF Comunidade científica, um conceito central na obra de Kuhn, é formada pelos praticantes de uma especialidade científica, com formação similar, objetivos comuns e soluções coletivas, que compartilham um mesmo paradigma. Uma comunidade científica caracteriza-se pela prática de uma especialidade científica, por uma formação teórica comum, pela circulação abundante de informação no interior do grupo e pela unanimidade de juízo em assuntos profissionais. A comunidade científica para mudança do modelo assistencial pode ser identificada nos grupos de gestores, na academia, na equipe multiprofissional, nos representantes de diferentes segmentos sociais que participam dos mesmos fóruns de decisão e de debates para consolidação do Sistema de Saúde, o que relativiza a própria idéia de Kuhn, ao tratar de grupos de experts dedicados ao desenvolvimento de áreas científicas tradicionais. Paradigmas são as “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Kuhn, 2001, p.13). O paradigma é, neste sentido, uma concepção de mundo que, pressupondo um modo de ver e de praticar, compreende um conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação. A aquisição de um paradigma e do tipo de pesquisa mais esotérico que ele permite é considerado por Kuhn um sinal de maturidade da ciência. O sentido de paradigma pode ser empregado relativamente ao PSF quando referido ao desenvolvimento teórico e de novas práticas sanitárias (vigilância em saúde, promoção da saúde, cidades saudáveis), que articulam ensino e serviço, a exemplo da criação de Pólos Educação Permanente para o SUS, das residências e cursos de pós-graduação latu e strictu senso em Saúde da Família e da efetivação de Conselhos Locais de Saúde impulsionados pelas equipes do PSF. A Estratégia Saúde da Família se propõe a dar conta da assistência individual e coletiva, com ações abrangentes, desde a promoção e prevenção até recuperação e reabilitação, cujas atividades são desempenhadas por equipe multiprofissional e não centrada apenas no médico. Antes de se tratar de realizações científicas universalmente reconhecidas, pode ser entendido como uma formulação que indica problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes. O período em que predomina um paradigma é o da prática da ciência normal, que consiste na atualização das respostas aos problemas, obtida por meio da ampliação do “conhecimento daqueles fatos que o paradigma

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apresenta como particularmente relevantes, aumentando-se a correlação entre esses fatos e as predições do paradigma” (Kuhn, 2001, p.44). Articula-se ainda mais o paradigma, num processo chamado por Kuhn de operações de limpeza, que para ele é no que consiste a ciência normal. Nesta, os cientistas sabem de antemão os objetivos e que estes podem ser alcançados segundo determinadas regras, o que faz com que a ciência normal seja comparada à solução de complexos quebra-cabeças. O SUS não se configura como uma prática de ciência normal, primeiramente porque se constitui no embricamento de conhecimentos científicos e práticas sociais e políticas, não podendo ser reduzido apenas à dimensão das teorias cientificas que traduz e aplica e, também, porque se situa num contexto de conflito entre diferentes posições paradigmáticas, perante o qual busca alcançar credibilidade e hegemonia. O modelo flexneriano, mesmo que perturbado em sua hegemonia, ainda orienta a prática do que, por aproximação, poderíamos chamar de ciência normal, ou paradigma dominante. A cultura das instituições setoriais e da sociedade, a formação dos profissionais e o processo de trabalho, entre outros, continuam reforçando as práticas do modelo flexneriano. Os saberes e as práticas destes dois modelos, desenvolvidos no mesmo espaço e tempo, encontram-se em forte confronto. O modelo SUS em implantação, no qual o PSF constitui a dimensão operacional, pode ser entendido como o paradigma revolucionário, porque traz respostas aos problemas não solucionados pelo paradigma dominante e reorienta as pesquisas sobre os problemas. No desenvolvimento da ciência normal ocorrem momentos em que o paradigma não responde aos problemas postos, ocorrendo anomalias, as falhas ou contra-exemplos do paradigma, que podem levar a uma crise. Kuhn reconhece que a existência de anomalias ou problemas é comum, ou seja, não é pela simples existência de uma anomalia que se instala uma crise. Somente sob determinadas condições as anomalias conseguem destruir a confiança dos cientistas no seu paradigma. Para que uma anomalia provoque uma crise, ela deve ser séria e representar grave ameaça aos fundamentos de um paradigma, pela resistência a todas as tentativas empreendidas pela comunidade científica para removê-la. O paradigma flexneriano não responde à complexidade do processo saúdedoença, revelando problemas conceituais e estruturais de difícil solução e comprometendo a confiança da comunidade científica, aqui pensada a partir de diferentes atores sociais. Uma vez que o modelo flexneriano está centrado no indivíduo e com enfoque na cura, as decisões e condução do processo são exercidas quase exclusivamente por uma única categoria profissional, reificando-a, a despeito de princípios e valores universalmente assimilados no mundo ocidental, como os da integralidade e da eqüidade. O período de crise, caracterizado pela transição de um paradigma a outro, pode ser bastante longo e leva à perda da confiança no paradigma anteriormente compartilhado. A seriedade de uma crise aprofunda-se quando surge um paradigma rival, muito diferente ou mesmo incompatível com o anterior. A transição de um paradigma para outro não é um processo cumulativo, mas uma reconstrução do campo de investigação a partir de

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novos fundamentos. A falta de confiança no paradigma vigente manifesta-se nas discussões filosóficas sobre fundamentos e métodos a que recorrem os cientistas sendo, porém, quase um diálogo de surdos, já que existe incompatibilidade de paradigmas, denominados por Kuhn de paradigmas incomensuráveis. Caracterizam visões radicalmente diferentes do mundo, o que torna impossível uma solução de compromisso, na tentativa de tornar compatíveis os dois paradigmas. Não só as descobertas de anomalias, mas as teorias que procuram explicar o mesmo fenômeno sob diferentes óticas geram esta instabilidade, que pode ser tratada como uma crise no modelo científico. Esta pode ser resolvida de três maneiras: a ciência normal resolve o problema; o problema é arquivado; emerge um novo paradigma e se inicia uma batalha pela sua aceitação. A frase inicial deste trabalho – “A saúde está em crise” - descreve a categoria na qual se encontra atualmente o modelo assistencial e as respectivas estratégias de consolidação, incluindo o PSF. A necessidade no momento é de renovar e produzir novos instrumentos, alternativos aos existentes, capazes de resolver os problemas de saúde da população brasileira, aparentemente sem respostas suficientes pelo modelo biomédico flexneriano. Cabe, no entanto, reconhecer que ao se eleger o modelo clínicoflexneriano e o SUS como expressões paradigmáticas exemplares (e não exclusivas de tudo que poderia ser indicativo desta crise), não se desprezam as bases que estes foram buscar em ciências básicas, estas sim consolidadas historicamente como teorias científicas ou ciência normal. Desta forma, a crise do modelo flexneriano (que é biologicista) não significa, de modo linear, crise de igual teor na ciência biológica, mas de como certas pretensões de uso e amplitude de teorias biológicas passam a ser contestadas quando constituem justificativas científicas para as formas de conceber e intervir sobre a doença. Do mesmo modo, quando o SUS denuncia as falhas do modelo flexneriano e propõe novos modos de conceber os problemas e buscar soluções, não invalida o conhecimento da biologia ou substitui as atuais teorias sobre os fenômenos biológicos, mas aponta os limites explicativos dessas teorias e sua insuficiência quando tomadas como base capaz de organizar as respostas que se pretende dar aos fenômenos em sua expressão mais social. Semelhante raciocínio pode ser aplicado aos diferentes fundamentos do modelo flexneriano (especialização, curativismo, entre outros), ao qual o SUS se coloca como crítica revolucionária e alternativa para a criação de novas concepções, abordagens e estratégias. Apesar do PSF se propor a substituir o atual modelo, verifica-se uma grande lacuna na implantação deste programa na totalidade dos municípios brasileiros. Seu alcance ainda é limitado, o que parece tornar frágil sua própria existência. Em pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2002) em vários Estados brasileiros, foi avaliada a implantação das equipes, a infra-estrutura das unidades de saúde, o processo de trabalho, o acesso aos serviços e os procedimentos de referência e a situação dos recursos humanos. Tomando como exemplo o caso de Santa Catarina, alguns problemas identificados foram: cerca de 40% dos médicos e enfermeiras são

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contratados temporariamente ou como prestadores de serviços; mais de 60% dos médicos, 49,6% das enfermeiras, 54,5% dos auxiliares de enfermagem e 56,7% dos agentes comunitários não foram submetidos a nenhuma capacitação; mais de 50% das equipes não realizam investigação dos casos de doenças de notificação compulsória, ações de controle de casos e surtos e investigações de internações hospitalares; 59,6% das equipes não participam do Conselho de Saúde. A emergência de um novo paradigma significa uma ruptura, na qual necessariamente são alterados os critérios que determinam a legitimidade tanto dos problemas, quanto das próprias soluções propostas. Conforme Kuhn (2001), a transição para um novo paradigma é a revolução científica, sendo a transição sucessiva de um paradigma para outro por meio de uma revolução, o modelo ideal de desenvolvimento de uma ciência madura. Na ciência, um paradigma raramente é suscetível de repetição, mas um objeto a ser mais bem articulado e definido em condições novas ou mais rigorosas. Como os novos paradigmas nascem dos antigos, incorporam comumente grande parte do vocabulário e dos aparatos, tanto conceituais como de manipulação do paradigma tradicional. Dentro do novo paradigma, termos, conceitos e experiências antigas estabelecem novas relações entre si. A ruptura é uma das possibilidades de solução da crise, a partir da emergência de um novo paradigma. Acredita-se que a ruptura ocorrerá no modelo de atenção à saúde, caso se legitimem as soluções propostas pelo novo paradigma do SUS. Existe uma possibilidade de ruptura ou não do modelo hegemônico, na dependência do caminho a ser trilhado na consecução da dimensão operacional, em especial do PSF, que já está em andamento: ou se consolida como estratégia de reorientação dos sistemas de saúde ou como “apartheid sanitário”, focalizado na atenção à população pobre (Paim, 2002, p. 268). A dificuldade do PSF em contribuir para a ruptura do modelo hegemônico parece estar associada à proposta verticalizada deste programa, da sua gestão centralizada e, ainda, pela homogeneidade na oferta do serviço, sem se deter nas diferenças regionais de perfil epidemiológico. Pode-se afirmar que a escassez de recursos humanos capacitados e/ou com perfil adequado seja um dos entraves à ruptura. A resolução dos problemas a que se propõe o novo paradigma pode ser limitada e a maioria das soluções está longe de ser perfeita. O paradigma deve muito mais orientar as pesquisas sobre problemas. Para que um paradigma possa triunfar é preciso que ele conquiste adeptos (persuasão e conversão), que o desenvolverão até o ponto em que os argumentos objetivos possam ser produzidos e multiplicados. Mas nem sempre esses argumentos são decisivos; é necessária uma crescente alteração na distribuição de adesões profissionais. A adesão da comunidade científica ao novo paradigma recolocaa no exercício da ciência normal: os manuais precisam ser reescritos a cada revolução, mas dissimulam a existência da própria revolução que levou a sua mudança, e a ciência aparece mais uma vez como sendo cumulativa; os cientistas voltam-se para o enfrentamento de novos quebra-cabeças, ou seja, sabem de antemão os seus objetivos e que estes podem ser alcançados seguindo determinadas regras.

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O sucesso, a legitimidade e o alcance da condição de hegemonia do novo paradigma dependem da conquista de novos adeptos. Além disso, como dito anteriormente, a resolução dos problemas pode ser limitada e a maioria das soluções estar longe da perfeição. A resolução, compreendida aqui no contexto do SUS, não pode se limitar à esfera do PSF, mas englobar todo o sistema de saúde, nos seus diferentes níveis de complexidade e deve implicar a efetivação de ações intersetoriais oriundas da articulação das diversas políticas públicas. Considerações finais As reflexões aqui apresentadas estão no campo das ciências sociais, em particular, no campo da ciência política, isto é, da estrutura político-social das populações, em articulação com a estrutura particular das práticas de saúde e, em especial, a modelos de atenção à saúde. Embora se tenha buscado analisar as possibilidades de ruptura do modelo hegemônico, entende-se que a teoria kuhniana e suas respectivas categorias de estudo são bastante específicas para os fins colocados pelo autor em sua análise epistemológica e historiográfica das ciências (e de uma certa concepção de ciência) e, neste contexto, tornam-se relativamente limitadas para explicar aspectos tão complexos e amplos da realidade social do setor saúde. Partiu-se da idéia de que categorias kuhnianas, mesmo quando transportadas para outros contextos de análise, podem ser produtivas em sua capacidade de exercitar o questionamento e a lógica do movimento crítico que está traduzido nos conceitos de crise e ruptura. O sistema de saúde brasileiro encontra-se em transição, na luta entre o velho e o novo: ou o SUS se consolida, respeitando-se seus princípios e diretrizes, pela implantação efetiva de suas estratégias operacionais, tal como o PSF, especialmente por força e poder político do movimento da comunidade científica que o apóia; ou se mantém o modelo dominante, aqui destacado como modelo clínico/biológico/flexneriano. Finalmente, pode-se afirmar que a reformulação do pensamento em torno dos modelos assistenciais “implica mudanças abrangentes na maneira pela qual o conhecimento científico se relaciona com, e é usado para a formulação e organização das práticas sanitárias” (Czeresnia apud Paim, 2002, p.377). Significa dizer que os modelos de atenção a serem propostos, com seus fundamentos teóricos e epistemológicos, devem respeitar cada realidade para que possam cumprir seu papel de atender às necessidades de saúde da população. Em síntese, precisam ser coerentes em suas bases e, ao mesmo tempo, suficientemente abertos ao reconhecimento e enfrentamento de suas próprias falhas e crises. Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Monitoramento da implantação e funcionamento das equipes de saúde da família no Brasil. 2002. Santa Catarina. Brasília, 2002. BRASIL. Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 1990. Seção 1. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Cadernos de

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SCHERER, M. D. A et al. Rupturas y resoluciones en el modelo de atención a la salud: reflexiones sobre la estrategia salud de la familia con base en las categorías kuhnianas, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.53-66, set.2004/fev.2005. El artículo propone una reflexión sobre las posibilidades de la Estrategia de Salud de la Familia de significar una ruptura con el modelo clínico/biológico/flexneriano hegemónico históricamente en la conformación de la política de salud de Brasil. Aborda el cambio del modelo de atención a la salud implicada en la consolidación del SUS, con el enfoque principal en su dimensión político-operacional, según las categorías propuestas por Thomas Kuhn (19221996) acerca del desarrollo de la ciencia. Son escogidos el modelo flexneriano y el SUS como las expresiones paradigmáticas ejemplares para el análisis del proceso de transición y de crisis que caracteriza el momento actual de reformulación del pensamiento y de las prácticas en la salud. Finaliza considerando que el cambio paradigmático en la salud no se limita a la Estrategia Salud de la Familia, sino que engloba todo el Sistema de Salud. La explicación de la realidad social del sector de la salud va más allá de la posibilidad de aplicación de las categorías estudiadas. PALABRAS CLAVE: Salud de la Familia; filosofía de la ciencia; sistemas de salud; normas basicas de atención a la salud. Recebido para publicação em 18/08/04. Aprovado para publicação em 20/11/04.

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artigos

A formação médica segundo uma pedagogia de resistência

Ondina Pena Pereira 1 Tãnia Mara Campos de Almeida 2

PEREIRA, O. P.; ALMEIDA, T. M. C. Medical education according to a resistance pedagogy, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.69-79, set.2004/fev.2005. This article discusses the current state of healthcare education practices and the fragmented vision they offer of the human being, in that they reduce man to a technical and passive body, a mere object of invasive and medicinal intervention. By excluding from their horizon any reference to man’s holistic dimension, these practices fail to deal with the social, cultural, political and psychological injunctions that are found in the development of states of heath or sickness. Furthermore, they disregard the subjectivity of the players involved in the production of sickness and of cure itself, also disregarding their own role as craftsmen shaping a unique type of modern individualistic subjectivity. Thus, the article presents a critical view of the overly biological attitude of the dominant teachings, a view that has developed even within some of the healthcare schools and that encompasses the learnings provided by the humanities. Finally, the article presents theoretical and methodological guidelines for the development of an alternative model of medical education, one that would be capable of regarding human beings holistically, recognizing the uniqueness of each individual and their condition as subjects of their own history, breaking away from the conservative, authoritarian and market-oriented structures of current medical education. KEY-WORDS: Medical education; critical pedagogy; body and intercultural dialogue. Discute-se, neste artigo, o estado atual das práticas educativas relativas à saúde e a visão fragmentária que estas têm do ser humano, reduzindo-o a um corpo técnico, passivo, objeto de intervenções invasivas e por medicamentos. Ao excluírem de seu horizonte de referência a dimensão totalizante do ser humano, tais práticas deixam de abordar as injunções sociais, culturais, políticas e psicológicas presentes no desenvolvimento dos estados de saúde/doença. Além disto, desconhecem a subjetividade dos atores envolvidos na produção da doença e da própria cura, bem como desconhecem a si próprias enquanto artífices da modelagem de um tipo próprio da subjetividade individualista moderna. Apresenta-se, assim, uma visão crítica da excessiva biologização dos ensinamentos dominantes, surgida no interior mesmo de algumas escolas de saúde e que se favorece do saber das Ciências Humanas. Por fim, indicam-se diretrizes teórico-metodológicas para uma proposta alternativa de educação médica que considere o ser humano na sua globalidade, alteridade e condição de sujeito da sua própria história, rompendo com as estruturas conservadoras, autoritárias e mercadológicas da formação médica atual. PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; pedagogia crítica; corpo e diálogo intercultural.

1 Professora, Universidade Católica de Brasília; Coordenadora do grupo de pesquisa do CNPq “Pedagogias de Resistência”. <ondinapena@brturbo.com> 2 Professora, Universidade Católica de Brasília; Coordenadora do grupo de pesquisa do CNPq “Pedagogias de Resistência”. <tmara@pos.ucb.br>

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SQN 404, Bloco O, apto. 207 Brasília, DF 70.845-150

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Introdução 3 A necessidade e urgência da realização de mudanças no setor de saúde, amplamente reconhecidas no país, atingiu o setor da educação médica que tem recentemente se empenhado na construção de um modelo éticohumanista buscando, para tanto, a efetiva inserção das Ciências Humanas em seu saber. É bastante conhecido o crescimento do aparelho formador em medicina nas últimas três décadas, sobretudo na América Latina e no Brasil, com a conseqüente expansão do número de professores e alunos. Porém, a formação desses atores é pouco estudada, sendo precárias as informações a esse respeito. Iniciamos, então, uma pesquisa4 que busca conhecer tal realidade e volta-se para conteúdos inovadores na formação dos médicos, assim como para formas alternativas de repasse desses conteúdos. O locus de observação da pesquisa vem sendo o curso de medicina, criado pela Escola Superior de Ciências da Saúde e pela Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (DF) em 2001, por possuir um projeto pedagógico original e interdisciplinar. Sua abordagem visa superar as contradições do modelo biologicista e tecnificante, ao enfocar o ser humano também em suas dimensões psico-sócio-culturais. Além disto, o curso pretende cumprir um relevante papel social, comprometido com o aumento da qualidade de vida e a promoção da saúde em todas as comunidades em que atua. São os saberes e as práticas inovadoras, críticos à representação do ser humano enquanto mera complexidade biológica, que nos auxiliarão a identificar e a compreender determinados processos de subjetivação existentes na formação desses profissionais, bem como desvendar melhor um tipo próprio de individuação e de subjetividade ocidental moderna que se esboçam no fim do século XX e começo do século XXI. O presente artigo, portanto, é parte da reflexão inicial da referida pesquisa. Em sua primeira seção, apresentamos os traços ideológicos da história do ensino da medicina no país. Na seção seguinte, elaboramos uma crítica do corpo enquanto conhecimento biológico e fragmentado, reduzido a um corpo técnico, passivo, objeto de intervenções invasivas e medicamentosas. Em seguida, por intermédio do diálogo intercultural e de reflexões filosóficas, propomos um outro olhar sobre os corpos presentes no encontro terapêutico, ou seja, o do médico e o do doente. Por fim, servindonos de diretrizes teórico-metodológicas do curso de medicina do Governo do Distrito Federal (GDF), discutimos atos pedagógicos que consideram o ser humano na condição de sujeito de sua própria história, buscando romper com estruturas conservadoras, autoritárias e mercadológicas da formação médica atual. Breve histórico sobre a formação médica A formação do profissional da saúde vem se limitando, predominantemente, às funções de mera reprodução de conteúdos de natureza anátomo-fisiológicas e das práticas médicas dominantes. Enquanto tal, não dá lugar ao questionamento dos aspectos formais e ideológicos constitutivos das ações educativas e práticas médicas - elementos capazes de

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3 A primeira versão deste trabalho foi apresentada e discutida no II Seminário Internacional de Educação Intercultural, Gênero e Movimentos Sociais, em abril de 2003 na cidade de Florianópolis (SC). Agradecemos ao Professor Mourad Ibrahim Belaciano, Diretor da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS) do GDF, a leitura cuidadosa deste texto e as indicações de correção.

4 A pesquisa em andamento chama-se As Ciências Humanas e a Saúde: inovações teóricometodológicas na formação médica e vem sendo realizada pela Universidade Católica de Brasília, sob nossa coordenação.


A FORMAÇÃO MÉDICA SEGUNDO UMA PEDAGOGIA...

5 Os fundamentos da relevância encontramse nas novas orientações nacionais e internacionais para a educação médica, definidas nas últimas conferências internacionais de educação médica (Edimburgo, 1988; Havana, 1991 e Edimburgo, 1993), do Encontro Americano de Educação Médica (Punta Del Este, 1992), bem como do Relatório Geral da Avaliação do Ensino Medico no Brasil (1991-97). Vale ainda lembrar o pressuposto da Organização PanAmericana de Saúde que afirma serem a educação médica e a medicina práticas sociais, cujos fins e meios têm de ser definidos historicamente, considerando-se as necessidades de cada sociedade. As doenças podem não ser diferentes, mas existirão diferenças na ocorrência das mesmas, nas prioridades regionais e na estrutura cultural e social, que levarão a diferenças na prática médica e sanitarista.

interferir na consciência dos atores e de repercutir em suas intervenções, na melhoria dos serviços e nas condições de vida da população. Ora, tal formação está intimamente relacionada à estrutura econômica hegemônica na sociedade na qual se desenvolve e estabelece vínculos com outros processos. Assim, as condições históricas de produção definem, em grande parte, a importância, o lugar, as instituições e a forma de a medicina se realizar. Em um dos poucos livros que recompõem a história da educação médica no Brasil (Almeida, 1999), o autor investiga a relação entre educação médica e serviços de saúde, bem como analisa as possibilidades de mudanças no ensino diante das reformas com a implantação do Sistema Único de Saúde e a fixação da perspectiva mercadológica na área. Para esclarecer o binômio medicina-sociedade em três marcantes períodos históricos da América Latina, fundamenta-se em três conjuntos de elementos explicativos propostos pelo esquema analítico de Ferreira (1988): a tríade “quantitativo-qualitativo-relevância” – dimensões, ao mesmo tempo, interdependentes e autônomas, conforme é mostrado a seguir. Na década de 1960, a ênfase na carência de médicos levou a um enfoque quantitativo do problema e ao predomínio do modelo tradicional: número de escolas, proporção professor-aluno, cargas horárias curriculares e disciplinares, número de leitos hospitalares por aluno, número de alunos por cadáver ou por microscópio, entre outros indicadores. Nesse quadro, tiveram lugar as mudanças superficiais da educação, que se concentraram nas relações técnicas entre os agentes e o processo de ensino, canalizadas em projetos de extensão voltados para áreas de demonstração ou “laboratórios de comunidade”. Nas décadas de 1970 e 1980, a preocupação centrou-se nas dimensões qualitativas da educação, sob o prisma da excelência técnica. A ênfase recaiu nas ações pedagógicas voltadas à melhoria da qualidade do ensino e nas ações organizacionais no âmbito universitário, voltadas ao aprendizado prático nos serviços hospitalares e ambulatoriais. Houve uma certa reinterpretação das bases conceituais do modelo tradicional, tendo com isto atingido as relações sociais, com o estabelecimento de novos critérios de convivência entre os sujeitos e variadas articulações entre ensino-serviçoscomunidade. Mais radical em sua concepção, o item relevância introduziu a concepção de qualidade enquanto condição que responde globalmente às necessidades da população, deixando de ser sinônimo de excelência técnica. Haja vista que esta, elevada ao mais alto grau de sofisticação científico-tecnológica, desconsidera critérios de acessibilidade e cobertura populacional. Encontram-se aqui as mudanças recentes que propõem uma nova ordem na formação de médicos e nas suas relações com a estrutura socioeconômica. Assim, dá atenção ao contexto, aos determinantes histórico-sociais, ao sentido social da produção do conhecimento e à diversidade de paradigmas, causando forte impacto sobre as relações políticas entre os sujeitos e atores institucionais. Em suma, por essa perspectiva, abre-se espaço a saberes e aspectos pouco relevados até então: as Ciências Humanas, a ética e a eqüidade5 - ao dar

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ênfase ao desenvolvimento e à utilização da tecnologia, articulada a um pensamento que compreende a natureza biopsicossocial e intersetorial da saúde. Suas intervenções resultam em alterações globais dos conteúdos, processos e das relações, caracterizando uma metamorfose profunda na educação médica, principalmente na esfera dos valores - a qual já se encontra no projeto pedagógico do curso de medicina mencionado anteriormente. O corpo biomédico e o encontro intercultural Ainda que todas essas mudanças na formação médica no país apontem para momentos distintos de sua história, é preciso problematizar a realidade objetificada pelo saber médico desde sua constituição enquanto saber disciplinar: o corpo. Esta discussão pode oferecer uma reflexão mais profunda, no sentido de atingir bases epistemológicas do referido conhecimento e facilitar o alcance das diretrizes ideológicas e pedagógicas atuais. Michel Foucault muito nos ensina nessa empreitada. Em O Nascimento da Clínica (1963), investiga a positividade do saber médico moderno, a partir de seus objetos, conceitos e métodos, bem como da elaboração de seus princípios biológicos. Contudo, a obra não se limita a uma inter-relação conceitual de saberes que demonstra como o conhecimento da doença, considerada essência abstrata, cede lugar a um saber moderno sobre o indivíduo num corpo doente. O autor articula os saberes com o extradiscursivo, ou seja, com instituições como o hospital, a família, a escola e as transformações político-sociais. Afinal, o saber sobre o doente, associado às práticas institucionais do internamento, mostrou-se mais relevante do que o saber teórico. Foi justamente a ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento e a normalização do prazer, além da interpretação do discurso, com o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, classificar e hierarquizar, que levaram ao surgimento desta figura singular, individualizada: o ser humano. Sem dúvida, resultado da produção do poder e objeto de saber médico, em especial. Conforme aponta Machado (1996), Foucault introduziu nas análises históricas a questão do poder como um recurso capaz de explicar a produção dos saberes que intervêm materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o corpo – e desencadeando o moderno processo de individuação. Foi exposto, assim, um poder singular, nomeado disciplina ou poder disciplinar, que atua feito uma rede sem núcleos centrais ou fronteiras, fabricando o tipo de ser humano, de força de trabalho, imprescindível ao funcionamento e à manutenção da sociedade capitalista, submissa a sua dominação política e produtora com o máximo de rapidez e eficácia. Trata-se de técnicas, dispositivos ou mecanismos de poder, configurando-se como “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade...” (Foucault, 1987, p.180). Além de serem inter-relacionadas, essas técnicas adaptam-se às necessidades específicas de diversas instituições que, cada uma a sua maneira, realizam um objetivo similar, quando consideradas do ponto de vista político.

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A FORMAÇÃO MÉDICA SEGUNDO UMA PEDAGOGIA...

Ressalta-se, ainda, que a vigilância contínua, perpétua e permanente é um dos seus principais instrumentos de controle, em particular nos espaços institucionalizados, nos quais ocorre por meio de todos os agentes institucionais. Esta vigilância impregna quem é vigiado de tal modo que este adquire de si mesmo a visão controladora de quem o olha. Soma-se a isto o fato de que a disciplina implica um registro contínuo do conhecimento, pois elabora um saber ao exercer o poder, extraindo do próprio exercício seu aprimoramento. Por meio desses ensinamentos foucaultianos, podemos observar que não apenas os excessivos conteúdos de natureza anátomo-fisiológica como os rituais acadêmicos cotidianos conformam o futuro profissional em saúde, adequando-o para esquadrinhar, seccionar, observar pontualmente e moldar indivíduos a serem medicalizados. Ou seja, promovem, em conjunto, a separação do olhar técnico-especializado, com sua ação discursiva sobre a doença, das demais dimensões da experiência humana. Concomitantemente, contribuem para a construção dos corpos médicos disciplinados. O saber médico acaba por ser concebido e seu discurso enunciado como independentes do corpo que os produzem, superiores ao restante da vivência humana, bem como preparados para se dirigirem a órgãos e tecidos em si, absolutizados e isolados de um sistema mais amplo, de uma história pessoal, de uma cultura e de relações político-sociais. Nesse modelo tradicional, nada se aproveita do encontro humano e do saber iniciático, que uma relação com pretensão terapêutica pode proporcionar para todos os sujeitos nela envolvidos. Trata-se de uma relação hierárquica em que o poder se estabelece pela assimetria dos termos, reproduzindo, nos consultórios e hospitais, a mesma relação entre a autoridade ativa do professor e a passividade dos alunos, entre aquele que tudo sabe e o que nada sabe, entre a verdade objetiva enunciada pelo professor e sua procura no exame dos corpos nus pelo futuro médico. Desse modo, não há troca que não seja mercantil entre os implicados no encontro, o que restringe as chances de também promover algum tipo de auto-conhecimento, de ampliação da consciência, de aprendizado libertador e de cura ao médico: a possibilidade dialógica de se ver no outro e de se humanizar com ele. Muito tem a contribuir nessa direção a tradição antropológica que busca, na alteridade, a compreensão e o alargamento da visão de mundo e do ethos ocidental. Segundo Pereira (1993), o encontro intercultural pode ter efeitos transformadores sobre as estruturas de pensamento em jogo, levando-as ao exercício da autocrítica. Para argumentar a respeito, a autora serve-se justamente de casos etnográficos nos quais a noção biomédica de corpo sofre um processo de “desnaturalização”, ao defrontar-se com culturas que não fragmentam o corpo e que não o consideram metáfora do desejo ou portador de uma verdade. Perante outros povos, deparamo-nos com o corpo fenomenal, sem materialidade e objetividade, sem ser suporte de identidade e autonomia pessoal. Pereira (1993) lembra, ainda, que tal processo de desnaturalização de nossas categorias vem sendo realizado por pares ao romperem com a filosofia clássica (como vimos com Foucault), tanto que podemos aproximar suas proposições de construções mentais não-ocidentais. Ou seja, ela resgata a

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PEREIRA, O. P.; ALMEIDA, T. M. C.

deconstrução derridariana e a deleuziana para apontar a necessidade de se implodir os esquemas duais hierárquicos, formadores da nossa civilização – locus de poder, para Baudrillard (1979). Vê-se, então, a multiplicidade no lugar da dualidade; a contigüidade, a metonímia e a fusão no lugar da cisão e da oposição. Merleau-Ponty é também evocado pela autora para deixar claro o entrelaçamento entre sujeito e objeto, fazendo desaparecer a oposição ativo/ passivo. Emerge, assim, o entrelaçamento que une aquele que toca e o que é tocado, o olhar e a coisa vista, a teoria e o mundo. De modo curioso, o elo por excelência, que supera o afastamento entre os pólos e realiza a reciprocidade entre eles, é justamente a carne. Afinal, esta “é o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne”, pois, “onde colocar o limite do corpo e do mundo, já que o mundo é carne?” (Merleau-Ponty, 1971, p.134). Nesse exercício antropológico de nos aproximar do outro, tornando-o familiar, e, simultaneamente, afastando-nos de nossa experiência, desnaturalizando-a ao exotizá-la, podemos perceber o quanto é necessário que a formação médica inovadora reformule suas concepções sobre o corpo. O médico deve problematizar sua própria experiência corporal, integrá-la a seu saber e a seu olhar, bem como deve esforçar-se em ir ao encontro dos corpos singulares que para ele se apresentam. Contudo, para isto, é fundamental que novas práticas pedagógicas dêem conta de abarcar essa mudança de paradigma. Notas sobre uma Pedagogia de Resistência Pressupostos teóricos Para examinar o modelo que vem sendo proposto como alternativa ao tradicional ensino da medicina, será preciso lembrar rapidamente a situação atual, tentando extrair daí a teoria pedagógico-psicológica que o informa. Trata-se de uma situação bem conhecida: a presença de um grupo de alunos sentados diante de um professor, que, em geral, é um especialista que fala, enquanto os alunos escutam, buscando preencher suas questões, mal formuladas, obscuras, com as luzes que vêm do Mestre. Essa pedagogia já foi analisada por Paulo Freire, que a chamou de educação bancária, e seu traço característico é o da passividade/ignorância do aluno perante a atividade/ autoridade do professor. O objetivo de realizar a desnaturalização desse método exige, entretanto, que se apreenda a concepção de mundo que ele veicula, no que concerne às relações entre os humanos e como estas vêm refletir em seus corpos, em seus processos de subjetivação e de individuação, assim como em sua presença no meio social. Recorreremos, para tal, ao texto clássico de Platão (O Banquete) e a sua interpretação contemporânea realizada por Lacan (1991), na qual a idéia que subjaz é a do modelo transferencial, que se manifesta nas diversas relações humanas, principalmente naquelas que envolvem o exercício da aprendizagem. A transferência, como o amor, relaciona-se com a questão do saber. A relação entre os personagens de O Banquete, Sócrates e Alcibíades, é da ordem mestre-discípulo, visando à educação desse último. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de uma relação erótica. Alcibíades declara amar Sócrates, na medida em

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que este possui o agalma, algo que, embora escondido, torna-o sujeito suposto saber, objeto de desejo do discípulo. Este último, sujeito suposto não saber. Sócrates se furta a dar sinal de seu desejo por Alcibíades porque sabe que o desejo de Alcibíades é o seu saber. Ou seja, Sócrates se recusa a ser objeto de amor porque se coloca na posição de sujeito, de desejante, e espera que Alcibíades, ao perceber nele uma atitude positiva com relação ao conhecimento, sinta-se reconhecido em seu desejo. Assim deveria ocorrer em uma relação de aprendizagem: o aluno vê no professor o portador de um saber que o faria se sentir enriquecido, reconhecido como desejante de saber mais. Cabe ao professor, como coube a Sócrates diante da demanda de Alcibíades, abster-se de toda atitude compreensiva e agir com neutralidade e silêncio, levando o aluno a perceber que deve buscar, como ele, o conhecimento, instaurando sua própria diferença e autonomia em relação ao professor. O desejo, nessa perspectiva, por ter sido gerado pela conjunção de Pênia (isto é, falta, miséria, aporia) com Poros (riqueza, plenitude), tem, na sua constituição, a marca da falta, que passa a ser o único motor que nos leva a uma busca incessante. No caso da aprendizagem, tal falta se manifestaria enquanto consciência da ignorância, que faz com que deslizemos de um objeto de saber a outro, visando sempre algo que está além do já sabido, o objeto interdito, impossível. Nesse processo, tornamo-nos humanos, sujeitos que se movem numa estrutura de relações hierarquizada, na qual alguns portam, ainda que provisória e ilusoriamente, o saber, enquanto outros tudo ignoram e só vão sair dessa ignorância se puderem liquidar a relação transferencial que os infantiliza e domina. Apesar disso, é um modelo que tem perdurado e se manifesta nas relações humanas de variadas formas. Seu vigor talvez resida no fato de ter sido naturalizado e transformado numa espécie de essência do humano, naquilo que este tem de mais obscuro e que constitui sua pergunta primordial: como lidar com a imprevisibilidade do mundo, dos outros e de nós mesmos? A esta pergunta, a resposta da falta, enquanto fundante do desejo, parece ser a única possível. No entanto, não o é. Em outra perspectiva, a de Espinosa (1979), o desejo não tem uma falta anterior que o funda. Ele é positividade em função da qual o homem persevera em seu ser. Não é que algo falte e, então, torna-se desejável. Mas é o desejo que, na sua força criadora, disponibiliza o que já existe, abre novos campos de possível, conforme diriam Deleuze & Guattari (1974), inspirados nesta teoria. O desejo, aqui, torna-se produtor, “máquina desejante”. Desde esse ponto de vista, o objeto interditado, que funda o desejo na falta, torna-se distorção operada pela repressão social ao fluxo subversivo do desejo. Se o desejo cria o objeto e é sempre produção, é também ele que cria a realidade da relação professor/aluno. Esta pode tanto ser construída à maneira da falta, por meio de uma disciplina do desejo que rouba ao aluno sua produtividade, seu olhar singular sobre o mundo, como pode ser construída à maneira da positividade deleuziana, dando espaço à criação de “novos blocos de possível” (Guattari, 1986). A restituição da fala e do potencial produtivo ao aluno seria um novo campo

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do possível, talvez o mais decisivo deles no processo de constituição do saber. Supõe-se, aí, não uma falta de saber do aluno, mas um saber silenciado, ao qual se deve dar voz. Essa pequena mudança é suficiente para possibilitar que cada um maximize seu potencial criativo em cada situação que vive. Para tanto, é preciso recusar a ligação do desejo a algo sempre situado além do apreensível por nós. É justamente esta volta do desejo em direção a um além, indisponível, que está na base de todo pensamento autoritário. Assim, não tendo o aluno projetado no professor nenhum ideal de si mesmo, a este caberia a função de testemunhá-lo no acesso à fala, de fazê-lo exprimir o que já pensava, de disponibilizar, de criar “novos blocos de possível”. O professor seria, assim, o criador de situações inusitadas, inesperadas, para além dos códigos previamente conhecidos pelo aluno. O projeto do curso de Medicina do GDF O projeto pedagógico que norteia o curso de medicina do GDF, que ora analisamos, parece tentar recusar o modelo do desejo baseado na falta e permanecer, ainda que sem ter plena consciência desta proposição, fiel ao modelo do desejo enquanto positividade. Podemos constatar isto não apenas no projeto pedagógico em si, mas também nos textos e relatórios de avaliação que norteiam seus eixos e suas inovações, como por exemplo, Belaciano (1996) e Costa Neto (2000), além de documentos como a Avaliação do Ensino Médico no Brasil: Relatório Geral 1991, da Comissão Interinstitucional de Avaliação do Ensino Médico (1997), e a Avaliação das Condições de Oferta de Cursos de Graduação – Matemática, Medicina. Relatório – Síntese I, do MEC/SESU/DEDES (Brasil, 2000). Desse modo, sua metodologia, além de ser centrada no aluno e orientada à comunidade, é construída segundo a idéia da “Aprendizagem Baseada em Problemas - ABP” (Berbel, 1994, 1996a, 1996b; Holmes & Kaufman, 1994), na qual os alunos são os responsáveis pela busca de respostas às questões que lhes são expostas. Sendo, então, o agente principal da dinâmica ensinoaprendizagem, o aluno tem oportunidade de se ver em situações significativas, contextualizadas e do mundo real, motivadoras da busca por conhecimentos e habilidades para resolver problemas. Tais características da dinâmica de ensino-aprendizagem aproximam o método ABP da pedagogia crítica de Paulo Freire (1970, 1991, 1992), segundo a qual a educação libertadora só se realiza na medida em que engaja a consciência crítica e o desejo de autonomia dos estudantes no processo educativo, sempre presentes na concretude de sua experiência e história de vida e não tomados como sujeitos idealizados. Trata-se, também, de um processo permanente de indagação e discussão dos dilemas do seu meio e do seu tempo, bem como da inserção crítica em tais problemáticas. No curso de medicina em questão, o método ABP se efetiva da seguinte forma: oito estudantes são reunidos em um grupo tutorial, coordenado por um tutor, que mantém necessariamente um vínculo profissional com a rede pública de saúde. Sua função é, ao invés de transmitir saber, levar os alunos a criar soluções e a fornecer hipóteses de diagnósticos - processo no qual são obrigados a se confrontar com suas próprias experiências, seus corpos e os corpos alheios, suas falhas e deficiências, criando seu método e ritmo de

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estudo. Os alunos se empenham em buscar respostas usando diversos recursos, desde conversas com professores e profissionais, pesquisas em bibliotecas tradicionais, até a utilização de laboratórios, atuação em ambulatórios, experiência em hospitais e comunidades. Para tal, são inseridos em diversas atividades de saúde a partir do seu ingresso no curso, estimulados a realizar seus trabalhos e estudos em grupo, bem como em cooperação interdisciplinar e multiprofissional. Paralelamente a esta dinâmica da Aprendizagem Baseada em Problemas, os alunos são capacitados no eixo pedagógico “Habilidades e Atitudes” em laboratórios de habilidade, no qual elaboram conhecimentos em semiologia, comunicação, procedimentos médicos, entre outros. Além disso, no que se refere às práticas profissionais que devem adquirir, o ensino é integrado aos serviços da rede pública de saúde prestados às comunidades do Distrito Federal. Finalmente, nesse eixo de formação, denominado Interação Ensino Serviço e Comunidade (IESC), os alunos desenvolvem a capacidade de compreender a realidade da saúde em interação cotidiana com o contexto em que se insere a população atendida pelo serviço de saúde do GDF e em equipe multidisciplinar. A base para esta atividade encontra-se num modelo de atenção à saúde cujo enfoque do atendimento é a família – centro do universo de relações sociais da grande parte dos grupos que estão à margem ou ingressaram parcialmente no processo de individuação moderna. Por este prisma, então, procura-se romper com as tradicionais concepções do corpo biomédico, uma vez que o corpo “em família” apresenta-se humanizado, longe de ser mera força de trabalho, pois está inserido em uma teia de afetos e conflitos, em histórias e em complexas estruturas político-sociais. Esse corpo demanda um outro olhar e sua queixa uma outra escuta para se efetivar o diagnóstico e a cura, o que exige uma troca plena de saberes. No entanto, as observações levantadas até o momento apontam várias dificuldades na implementação desses princípios que estariam na base do projeto pedagógico da Escola de Ciências da Saúde do GDF. Dentre elas, pode-se citar as barreiras à inserção das reflexões oriundas das Ciências Humanas nos temas dos grupos tutoriais, os quais facilmente caem reféns dos discursos tradicionais sobre o corpo e sobre a relação saúde/doença. Isso se deve, principalmente, à impregnação, pelos atores da educação médica, de um imaginário social que concede ao saber médico tradicional o lugar privilegiado de produção da verdade. Tal imaginário, impregnado e expresso na formação desses tutores/facilitadores/médicos, encontra-se refletido tanto no seu comportamento diante dos alunos quanto no destes últimos, cuja motivação para a escolha da medicina é muitas vezes a atração por essa posição de poder/ saber conferida pelo ofício da medicina. Possivelmente, decorre ainda desse imaginário a refração encontrada entre os estudantes no que diz respeito às abordagens críticas que as Ciências Humanas aportam à problemática da medicina, mostrando a relação do corpo com a cultura, com a sociedade e com trajetórias individuais. Tais conhecimentos, nomeados genericamente de “psicossociais”, são tratados como de menor importância, sendo vistos na condição de complementares aos “verdadeiros” e “supervalorizados” conhecimentos médicos de base exclusivamente biológica.

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Vários outros problemas, relacionados às dificuldades encontradas pelos estudantes no contato direto com as populações-alvo, que são, em geral, de baixa renda, periférica e constituída por boa parte de excluídos. Provavelmente, tais problemas surgem em decorrência da diferença extrema de linguagem e de cultura entre esses dois grupos, conforme temos observado em nossas investigações. No entanto, o fato de o estudo estar ainda em curso exige a postergação de uma análise mais aprofundada da questão. Por ora, salienta-se que tais reflexões críticas não deverão se ater apenas ao curso pesquisado, uma vez que o próprio método ABP tem sido avaliado e criticado por alguns pedagogos, profissionais e professores (por exemplo, a breve análise feita por Soares, 2003), os quais nos apontam para a necessidade de pensarmos e investigarmos em suas direções. Desse modo, no que concerne a sua eficácia pedagógica libertadora, resta-nos ainda tirar as conseqüências teórico-metodológicas que contribuam para uma possível reconstrução do método, o que se pretende indicar ao final dessa pesquisa na forma de subsídios ao projeto pedagógico do referido curso. Assim, o que se poderia frisar no momento é a importância de se insistir na busca de um diálogo intercultural efetivo, com o objetivo de fazer emergir novos princípios e conceitos para a medicina, concepções mais libertadoras de aprendizado e diversas práticas curativas de sujeitos desejantes. Trata-se de um desafio rumo a uma verdadeira e profunda reforma educacional, na qual sejam rejeitados os esquemas mentais autoritários, mercantilistas e fragmentados. Referências ALMEIDA, M. Educação médica e saúde: possibilidades de mudança. Londrina: Ed. UEL, Rio de Janeiro: ABEM, 1999. BAUDRILLARD, J. De la seduction: l´horizon sacré des apparences. Paris: Galilée, 1979. BELACIANO, M. I. O SUS deve aceitar este desafio: elaborar proposições para a formação e capacitação de recursos humanos em saúde. Revista Divulg. Saúde Debate, n.12, p.29-33, 1996. BERBEL, N.A.N. Currículo médico e compromisso social. Revista Divulg. Saúde Debate, n.9, p.59-64, 1994. BERBEL, N.A.N. Metodologia da problematização no ensino superior e sua contribuição para o plano de práxis. Rev. Semina, v.17, ed. esp., p.7-16, 1996a. BERBEL, N.A.N. Metodologia da problematização: uma alternativa metodológica apropriada para o ensino superior. Rev. Semina, v.16, ed. esp., p.9-19, 1996b. BRASIL. Ministério da Educação. SESU. DEDES. Avaliação das condições de oferta de cursos de graduação – matemática, medicina. Relatório – Síntese I. Brasília, 2000. COMISSÃO INTERINSTITUCIONAL NACIONAL DE AVALIAÇÃO DO ENSINO MÉDICO. Avaliação do Ensino Médico no Brasil: Relatório Geral 1991 – 1997. Brasília, 1997. COSTA NETO, M. M. O currículo médico e o sistema de saúde em construção. Saúde Família, p.46-51, jul., 2000. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. El antiedipo: capitalismo y esquizofrenia. Trad. Francisco Monge. Barcelona: Barral Editores, 1974. ESPINOSA, B. Ética. In: CHAUI, M. (Trad.) Espinosa. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p.71-301. (Os Pensadores).

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A FORMAÇÃO MÉDICA SEGUNDO UMA PEDAGOGIA...

FERREIRA, J. R.; COELHO NETO, A.; COLLADO, G. B.; LINGER, C.; LUNA, R.; PARCALLAS, D. El análisis prospectivo de la educación médica en America Latina. Educ. Méd. Salud, v.22, n.3, p.9-18, 1988. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Petrópolis: Vozes, 1963. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1970. FREIRE, P. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991. FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. HOLMES, D.B.; KAUFMAN, D.M. Tutoring in Problem-Based Learning: a teacher development process. Med. Educ., n.28, p.275-843, 1994 LACAN, J. Le transfert. In: LACAN, J. Le seminaire, livre VIII. Paris: Seuil, 1991. MACHADO, R. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996. p.7-23. MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971. PEREIRA, O. A desconstrução/reconstrução do corpo no espaço transcultural. Universa, v.2, n.2, p.25968, 1994. SOARES, V. PBL: modismo ou revolução nos cursos de medicina? Diálogo Médico, p.16-7, maio/jun., 2003.

PEREIRA, O. P.; ALMEIDA, T. M. C. La formación médica según una pedagogía de resistencia, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.69-79, set.2004/fev.2005. En este artículo se discute el estado actual de las prácticas educativas relativas a la salud y la visión fragmentaria que éstas tienen del ser humano, al reducirlo a un cuerpo técnico, pasivo, objeto de intervenciones invasivas y medicamentosas. Tales prácticas, al excluir de su horizonte de referencia la dimensión totalizante del ser humano, dejan de abordar los rasgos sociales, culturales, políticos y psicológicos presentes en los estados de salud/enfermedad. Además, dichas prácticas desconocen la subjetividad de los personajes involucrados en la producción de la enfermedad y de la propia cura, así como se desconocen a sí mismas como artífices del modelaje de un tipo propio de subjetividad individualista moderna. De este modo se presenta una visión crítica de la excesiva biologización de la educación dominante, surgida en el interior de algunas escuelas de salud y que se nutre del saber de las Ciencias Humanas. Finalmente, se indican directrices teórico-metodológicas para una propuesta alternativa de educación médica que considera al ser humano en su globalidad, alteridad y condición de sujeto de su propia historia, y que rompa con las estructuras conservadoras, autoritarias y mercantilistas de la formación médica actual. PALAVRAS CLAVE: Formación médica; pedagogía crítica; cuerpo y dialogo intercultural.

Recebido para publicação em 10/10/03. Aprovado para publicação em 10/09/04.

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POLLOCK, Número 14, 1948

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Era uma vez... contos de fadas e psicodrama auxiliando alunos na conclusão do curso médico Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira 1 2 Maria Cristina Pereira Lima 3 Albina Rodrigues Torres 4 José Roberto Tozoni Reis 5 Neusa Maria Vilela Fonseca

RAMOS-CERQUEIRA, A. T. A. et al. Once upon a time... fairy tales and psychodrama to help students at the end of the medical course, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.81-9, set.2004/fev.2005. The final segment of the course is an especially stressful period for medical students, as it places them vis à vis a range of anguishing situations: the end of their days as students, the acquisition of new responsibilities and residency exams. So as to help them through this stage, the Botucatu Medical School (FMB – Faculdade de Medicina de Botucatu) has developed a number of sheltering strategies for its students. This paper describes one activity in which psychodrama was used to facilitate the expression of the feelings and emotions experienced by students at the end of their course. For two years running, sociodrama sessions were held with all the students in the sixth (i.e., last) year of the Botucatu Medical School course. Fairy tales were used as a tool for students to identify their evolution at the institution and the moment they were experiencing. Dramatization of the fairy tales enabled students to share their experiences and worries, many of which where common to several of them and typical of their context. The analysis of the fairy tales focused mainly on projective aspects of the groups; the conclusions pointed to the need for a larger number of arenas for meetings and interchange between students and teachers. KEY-WORDS: Medical education; mental health; psychodrama; sociodrama; internship and residence. O término do curso representa um período especialmente estressante para estudantes de Medicina, colocando-os perante diversas angústias: deixar de ser aluno, ter novas responsabilidades e enfrentar o exame de residência. Com o intuito de auxiliá-los nesta fase, foi desenvolvida na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) uma série de estratégias de acolhimento para os estudantes. Este trabalho descreve uma atividade na qual se utilizou o Psicodrama como facilitador da expressão dos sentimentos e emoções experimentadas ao final do curso. Por dois anos consecutivos foram realizadas sessões de Sociodrama com o conjunto dos alunos do 6o ano do curso médico da FMB. Utilizaram-se Contos de Fadas como recurso para que os estudantes identificassem sua trajetória na instituição e o momento que estavam vivendo. A dramatização dos contos possibilitou a troca de experiências entre os alunos e o acolhimento de suas angústias, muitas delas coletivas e próprias daquele contexto. A análise dos contos privilegiou aspectos projetivos grupais, concluindo na direção da necessidade de mais espaços de encontro e troca entre professores e alunos. PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; saúde mental; psicodrama; sociodrama; internato e residência.

1, 2, 3, 4 Professor(a), Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista - Unesp. <ateresa@fmb.unesp.br>; <mclima@fmb.unesp.br>; <torresar@fmb.unesp.br>; <jrtozoni@uol.com.br>. 5

Psicóloga, Serviço de Apoio Psicológico ao Estudante, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista - Unesp. <nfonseca@fmb.unesp.br> 1

Departamento de Neurologia e Psiquiatria Faculdade de Medicina de Botucatu Distrito de Rubião Júnior, s/nº Botucatu, SP 18618-970

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RAMOS-CERQUEIRA, A. T. A. ET AL.

É a isto, penso eu, que nos propomos com nossas disciplinas de Psicologia Médica... um trabalho de Sísifo: interminável, inconcluso, sempre reiniciado, cansativo, por vezes tedioso muitas vezes gratificante, mas sempre fascinante e desafiador. (Eizirik, 1984)

Introdução A existência de fontes de estresse durante a formação médica é fato bastante conhecido na literatura. Além do contato com pacientes portadores de doenças graves e muitas vezes potencialmente fatais, outros fatores aumentam os níveis de ansiedade entre os estudantes, tais como: curso longo, ministrado em tempo integral, grande volume de informações, competição entre os colegas, exame de residência e escolha de uma especialidade (Milan et al., 1998). Alguns autores consideram que existem períodos especialmente estressantes na formação médica (Rocco, 1992; Saadeh, 1995), principalmente no sistema tradicional de ensino que se divide nos ciclos básico, aplicado e internato, cada um deles durando dois anos. Este formato, conhecido como 2-2-2, retarda o contato com o paciente, reforçando a idéia de que o aluno primeiro precisa aprender “tudo” teoricamente, para então estar preparado para o contato com os doentes nos dois últimos anos do curso. A existência do internato na formação médica foi regulamentada em 1969 pela resolução da Secretaria de Educação Superior (Conselho Federal de Educação, 1969), que estabelecia que as escolas médicas deveriam possuir em seus currículos de graduação um período destinado a treinamento ou aprendizagem em serviço (Marcondes & Mascaretti, 1998). Recentemente, as novas diretrizes curriculares para os cursos médicos, divulgadas pelo Conselho Nacional de Educação (Conselho Nacional de Educação, 2001), reforçaram o caráter eminentemente prático do internato, e regulamentaram sua duração, que deveria ser de no mínimo dois anos. Inegavelmente a existência do internato foi um avanço, na medida em que determinou um período mínimo de atividade prática intensa e supervisionada. Contudo, essa vivência intensiva acabou por levar o aluno a deparar-se, súbita e cotidianamente, com situações difíceis: o seu próprio limite, os limites de seu paciente e os limites da medicina. Muitas vezes ainda não viveu, de forma gradual, outras situações de encontro com o paciente, com a comunidade e com o sistema de saúde, já entrando em contato com atendimento hospitalar terciário e quaternário. Há escolas que romperam total ou parcialmente com o formato estanque do ensino médico tradicional, colocando o aluno gradualmente em contato com a prática, com responsabilização crescente e em pequenos grupos (Cyrino, 2002; Lima et al., 2003). No entanto, mesmo nas escolas em que os alunos assumem gradualmente responsabilidade pelos pacientes, é possível que nos últimos anos do curso, quando se sentem próximos de se tornarem médicos, passem a lidar com o luto do papel de aluno, experimentando uma sensação de não haver mais espaço para “o não saber”. Segundo Saadeh (1995, p.20): “Em termos profissionais é no

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ERA UMA VEZ... CONTOS DE FADAS E PSICODRAMA...

quinto ano que o amadurecimento pessoal será posto à prova, pois neste momento, define-se uma transformação no ensino, no aprendizado, na postura e nas vivências”. Por estas razões, o internato tem sido considerado um dos momentos críticos da formação médica, ao lado da entrada na faculdade e no hospital, no que diz respeito à presença de estresse e ansiedade (Millan et al., 1998; Rocco, 1992; Saadeh, 1995). Soma-se a isto o fato de que no internato os estudantes deverão atuar em pequenos grupos nas diferentes clínicas em que estagiarão, ficando a formação destes grupos a critério da classe, na quase totalidade das escolas. Esta divisão é vivida comumente com intensa angústia (Marcondes, 1993), dada a competitividade e os sentimentos de rejeição que permeiam o processo de escolha, com os quais terão que lidar. Aqueles que não são escolhidos terão que se organizar em grupos com outros colegas igualmente “não escolhidos”. Segundo Millan et al. (1998, p.347): “Teme-se ficar no ‘lixão’, o grupo dos renegados, que é discriminado por alunos e professores”. As experiências desenvolvidas pelas escolas para tentar acolher e diminuir essas angústias descrevem, em geral, trabalhos com pequenos grupos de internos, com foco prioritariamente nas dificuldades profissionais, sobretudo na relação médico-paciente (Saadeh, 1995; De Marco, 1999). Os serviços de atendimento psicológico oferecidos aos alunos, por sua vez, freqüentemente se deparam com estas questões no contexto do atendimento psicoterápico, em geral individual, restringindo uma análise mais coletiva das situações vivenciadas pelo conjunto dos alunos. Em nossa experiência na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) - UNESP, quer como docentes, quer no atendimento clínico prestado aos alunos, deparamo-nos também com dificuldades vividas pelos alunos na transição para o internato e no término do curso. A constatação destes problemas levou o Conselho de Curso da FMB a solicitar aos professores da área de Saúde Mental (Psiquiatria e Psicologia Médica) e às psicólogas do Serviço de Apoio Psicológico ao Estudante que desenvolvessem estratégias para propiciar o enfrentamento destas dificuldades. O objetivo deste trabalho é descrever uma dessas estratégias, realizada em dois anos consecutivos com os alunos do sexto ano do curso médico, e discutir as possíveis implicações das questões trazidas por eles para o ensino médico como um todo. Objetivos da atividade A atividade desenvolvida com os estudantes do 6º ano teve como objetivos: possibilitar que os alunos identificassem e expressassem aspectos positivos e negativos na sua trajetória acadêmica, assim como sentimentos a ela relacionados; e possibilitar que os alunos resgatassem a identidade da classe como um todo, a partir do compartilhamento dessas vivências e afetos. Metodologia da atividade Participantes: Todos os alunos do 6º ano da FMB foram convidados a participar da atividade e dispensados de seus estágios no período de realização da mesma (quatro horas de duração, no início do ano letivo). Instrumento: O Sociodrama, instrumento escolhido para o trabalho

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com os alunos, pertence ao conjunto de estratégias utilizadas no Psicodrama, sendo um recurso técnico a partir do qual é possível trabalhar um tema comum ao grupo, sem que com isto sejam expostos aspectos individuais dos participantes. No método psicodramático os procedimentos terapêuticos podem ser abertos ou fechados. O tratamento aberto, como é o caso do Sociodrama, é realizado no seio da comunidade (“in situ”) e a essência é a situação social comum compartilhada por vários sujeitos, para que se avaliem as forças atuantes no grupo (Moreno, 1975). Segundo Menegazzo et al. (1995), este recurso possibilita trabalhar com grupos, visualizando seus conflitos internos e fazendo com que, a partir de sua compreensão, estes conflitos possam ser resolvidos. O Sociodrama nasceu exatamente da necessidade de uma forma especial de Psicodrama, que projetasse seu foco sobre os fatores coletivos. Cada indivíduo vive num mundo que lhe parece inteiramente privado e pessoal, mas os mundos privados se sobrepõem em grande parte, constituindo-se em elementos coletivos ou supra-individuais. Assim, o verdadeiro sujeito do Sociodrama é o grupo, e não cada um dos participantes, não havendo assim espectadores e atores, com todos os sujeitos sendo protagonistas daquela cena - por vasto que seja o grupo, é como um paciente coletivo. O método baseia-se no pressuposto de que o grupo já está organizado pelos papéis sociais e culturais compartilhados. Trata-se de um procedimento particularmente adequado para o estudo das inter-relações culturais de pessoas que estão num processo contínuo de interação e permuta de valores, mas que requer um planejamento cuidadoso (Moreno, 1975). Procedimentos: O trabalho desenvolveu-se segundo as três fases clássicas do Psicodrama: aquecimento, dramatização e o “sharing” ou compartilhar (quadro1). A coordenação ficou a cargo dos autores deste trabalho, que dirigiram a atividade, propondo técnicas para o aquecimento e favorecimento da produção grupal e, ao final, ajudando os alunos na leitura das questões emergentes. Um registro escrito foi elaborado imediatamente após cada vivência por um dos coordenadores e partilhado com os demais, que acrescentaram outras observações consideradas relevantes. A análise da experiência foi discutida e elaborada conjuntamente pelos autores, a partir do delineamento dos temas comuns trazidos pelos alunos. Análise das cenas: Uma das características do Psicodrama é que não se trabalha com hipóteses pré-concebidas, e o direcionamento é dado pelos conteúdos emergentes, de modo improvisado. Segundo o próprio Moreno, cada sessão é única, original e não se pode repetir. Nem os problemas nem seu percurso são previamente estabelecidos ou “estabelecíveis”(Moreno, 1974). A utilização dos contos de fadas como facilitador da expressão dos sentimentos vivenciados pelos alunos, conduziu à escolha do referencial proposto por Bettelheim na leitura dos contos e seus possíveis significados, contextualizados para o momento do grupo.

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Quadro 1 - Descrição das fases do sociodrama realizado com alunos do 6o. ano do curso médico FMB-UNESP, 2002/2003 Fase do trabalho AQUECIMENTO

6 Referência ao Exame Nacional de Cursos, do Ministério da Educação.

Descrição da orientação dada aos alunos Pensar em suas vivências como aluno do curso médico ao longo dos seis anos. Escolher um conto de fadas, de preferência o primeiro que viesse à mente, que simbolizasse essa vivência. Agrupar-se pela similaridade dos contos escolhidos.

DRAMATIZAÇÃO

Escolher um trecho do conto de fadas e encená-lo para o restante da classe.

COMPARTILHAR

Explicitar os sentimentos evocados com as cenas dramatizadas e, após isto, cada pequeno grupo formado a partir das escolhas dos contos de fada elaboraria um trecho que deveria compor o discurso de formatura, que seria lido para todos.

Resultados A participação dos alunos variou de 90% (grupo de 2002) a 40% (grupo de 2003) nos dois anos em que a atividade foi desenvolvida. Os contos de Fada dramatizados foram: Branca de Neve e os sete anões, Os três porquinhos, João e o Pé de Feijão, Pinóquio, Cinderela, O patinho feio, “Shrek”, A Cigarra e a Formiga, Chapeuzinho Vermelho, A Tartaruga e a Lebre, A galinha ruiva, A bela adormecida e A galinha e a águia. Outros contos que não foram dramatizados em função de terem sido escolhidos por apenas uma pessoa foram: Os doze trabalhos de Hércules, Dumbo, O mágico de Oz, A galinha dos ovos de ouro, João e Maria e A raposa e as uvas. De modo geral, observou-se que as dramatizações expressavam a expectativa com os exames finais (residência médica e “provão-MEC6 ”) e uma espécie de balanço da relação com a instituição. Surgiram também manifestações que podem ser interpretadas como fantasias paranóides e depressivas (estar na Faculdade há tanto tempo e “não saber nada”, inseguranças, medo do desempenho, medo de não passar no exame de residência, de ser preterido pelos professores, medo de ir mal no “provão” etc). Resistências ao trabalho psicodramático puderam ser observadas na fase de aquecimento e escolha das cenas, quando alguns alunos referiam, por exemplo, não conseguir escolher entre os diversos contos que lhe vinham à mente e mesmo na dificuldade de alguns no aquecimento. Em todo o processo de trabalho foram observados movimentos de solidariedade e identificação intra-grupo. Os “discursos finais de formatura” explicitaram essa identificação, na medida em que formaram conjuntos homogêneos de conteúdo, pela soma das produções de cada subgrupo. Discussão Historicamente o Psicodrama se origina dos princípios do jogo e é reconhecido o valor educacional da brincadeira, tão antiga quanto a humanidade. A utilização dos contos de fadas (que poderiam ter sido substituídos por outros recursos culturais comuns como provérbios, filmes, letras de músicas etc) funcionou de certa forma apenas como um veículo entre a fantasia e a experiência de realidade, permitindo de forma indireta, espontânea, criativa e lúdica a emergência de temas e afetos individuais, que foram então analisados em seus aspectos comuns, propiciando a identidade

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e a coesão grupal. Portanto, a técnica apenas estimulou a expressão verdadeira das situações e conflitos reais, por meio da dramatização. Espontaneidade e criatividade são pilares conceituais do psicodrama moreniano, condições indispensáveis para o bom desenvolvimento dos diferentes papéis sociais, pelos quais se dão todas as relações humanas, tanto mais saudáveis quanto mais flexíveis, espontâneas e criativas (Moreno, 1974). Sobre a aplicação dos contos no Psicodrama, Zamboni afirma que: Os contos de fadas são dirigidos às crianças; mas pelo valor simbólico, se dirigem a todas as idades, falando com seriedade, de forma breve e categórica, dos dilemas e ansiedades existenciais como o medo da morte, de não ser amado, de não ter valor etc... (Zamboni, 1984, p.162)

Bettelheim é, entre outros, o responsável por difundir uma leitura dos contos de fadas a partir dos pressupostos da Psicanálise (Bettelheim, 1992). Em “A Psicanálise dos contos de fadas”, o autor busca apreender os significados que estariam implícitos nos contos, para tentar compreender como eles sobreviveram por centenas de anos. Utilizando as propostas de análises de Bettelheim7 para os contos apresentados pelos alunos, observouse uma série de dificuldades e conflitos que poderiam estar subjacentes às escolhas dos contos. O conflito entre o princípio do prazer e o princípio da realidade que, segundo Bettelheim, é o eixo de contos como “Os três porquinhos” e “A cigarra e a formiga”, parece refletir as escolhas que estes alunos tiveram que fazer ao longo do curso: não ir às festas por estar de plantão ou não visitar os pais por terem que estudar para provas, entre tantas outras renúncias. Após seis anos de muitas renúncias – para não mencionar as dos anos de cursinho descritos pelos alunos como de intensos estudos e sacrifícios – é esperado que haja uma recompensa. É o que se vê em “Cinderela” e “João e o Pé de Feijão”. Neste último conto, Bettelheim chama a atenção para o significado simbólico da escalada que João faz no pé de feijão: ele se torna mais adulto, amadurece e só assim é capaz de enfrentar o gigante (ter sucesso nas provas de residência, boa classificação em concursos, ser valorizado pela instituição). Em praticamente todos os contos os heróis recebem sua recompensa e os inimigos são castigados, como o lobo de “Chapeuzinho Vermelho” e “Os três porquinhos”. Porém, depois do percurso na Faculdade de Medicina, o futuro lhes parece ainda incerto: sentem-se inseguros, não sabendo se a recompensa virá para eles. Em breve não estarão mais sob a tutela da Escola/ Mãe, experimentando neste momento de passagem uma crise de identidade semelhante àquela observada na adolescência (Aberastury, 1988). Pode-se supor que contos como “Pinóquio”, “O Patinho Feio” e “A Galinha e a Águia”, reflitam estas inseguranças. Não saber se é pato ou cisne, se é (será) bom ou mau médico, são dúvidas prevalentes neste momento de final de curso. Sabe-se que há poucas oportunidades de troca entre os alunos no que diz respeito aos problemas, medos, culpas, angústias e outros sentimentos que

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7 As análises que Bettelheim faz para os contos de fada dizem respeito a aspectos importantes do desenvolvimento emocional das pessoas. A intenção nesta discussão é adaptá-las a um outro objeto: ao universo emocional de estudantes de medicina em final de curso. Ainda que a transposição seja difícil, acreditamos que contribua para a reflexão das experiências emocionais desses alunos.


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surgem no cotidiano da relação médico/aluno/paciente. A respeito disto, Millan et al. (1998, p.141) afirmam que: A falta de um espaço para a troca de idéias a respeito dessas experiências contribui para acentuar o isolamento, trazendo a crença de que se trata de um problema único que não pode ser compartilhado, pois ninguém mais estaria passando por isso e não o compreenderia.

No presente trabalho, os autores tinham como pressuposto que a verbalização de angústias, ansiedades e medos, assim como a expressão cênica dos mesmos, possibilitariam uma melhor elaboração destes sentimentos e melhorariam a organização grupal. Trabalhar com a classe toda possibilitou que os alunos reencontrassem os colegas de turma, agora em outros subgrupos, e restabelecessem a identidade junto aos pares, na medida em que puderam expressar coletivamente as dificuldades pertinentes a este momento da formação. A utilização de jogos e dramatizações também pareceu auxiliar a expressão dos afetos experimentados pelos alunos. Freqüentemente, durante a formação médica há momentos de extremo desencantamento com relação à prática profissional quando confrontada com a visão idealizada com a qual o aluno chega à escola. Este desencantamento leva muitas vezes ao desenvolvimento de mecanismos de defesa perante o sofrimento dos pacientes e um distanciamento, não apenas destes doentes, mas também de sua própria experiência emocional (Martins, 1994). Para Cassorla (1994, p.23) existe uma dificuldade imensa dos médicos em lidar com os aspectos emocionais de seus pacientes (e, evidentemente, também dos próprios médicos). Muitos procuram fugir destes aspectos, reduzindo sua atividade à abordagem do biológico.

“Brincar” com os contos de fadas, “inocentes” lembranças de suas infâncias, auxiliou na diminuição das resistências e catalisação dos afetos e angústias. No caso, pode-se supor que o procedimento sociodramático utilizado não teve apenas valor exploratório de atitudes e sentimentos, mas pode também ter propiciado modificações nos grupos envolvidos, não apenas por seu efeito catártico, como também “iluminador”. Cabe uma reflexão sobre a diferença de participação nos dois anos em que a atividade foi conduzida. Embora os dois grupos de alunos soubessem que seria conduzida uma atividade com técnicas psicodramáticas, havia algumas diferenças entre eles: o primeiro havia passado por uma série de inovações curriculares ao longo do seu curso, tendo vivenciado inclusive um sociodrama em seu primeiro ano de curso. O segundo grupo possuía um número maior de alunos (25% a mais) e provavelmente já estavam de posse de maiores detalhes sobre a atividade, sendo possível que parte dos alunos tenha se ausentado em função das resistências a trabalhar com suas dificuldades. A direção da escola e as instâncias que tratam de problemas dos

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alunos forneceram todo o apoio necessário, não interferindo no trabalho desenvolvido e possibilitando a livre expressão dos alunos. Considerações finais O internato, assim como outros momentos da formação médica, é fonte potencial de sofrimento psíquico, havendo a necessidade de colocar o tema em pauta e desenvolver estratégias de manejo destas dificuldades. O Sociodrama é uma das estratégias possíveis, na medida em que possibilita a expressão de afetos comuns ao conjunto dos alunos, sem expor a fragilidade de cada um dos indivíduos. Para que o trabalho se desenvolva, é fundamental que o papel da Instituição não seja de fiscalização, mas sim o de fornecer espaço de acolhimento para coordenadores e alunos. Apesar das dificuldades apontadas, houve predomínio, no final, de uma postura otimista por parte dos alunos e um sentido de fortalecimento pela coesão/identidade grupal. As novas diretrizes curriculares para o ensino médico no país têm estimulado a existência de atividades práticas desde os primeiros anos do curso, em especial atividades junto às comunidades locais e em programas que estimulem um olhar mais humanizado e mais próximo das necessidades das populações. É possível que as mudanças curriculares propiciem também mudanças em relação aos níveis de ansiedade e estresse vivenciados pelos alunos. Avaliações deverão ser conduzidas com a finalidade de mensurar o impacto que as mudanças terão tanto sobre a qualidade do profissional como também sobre o grau de estresse presente no processo formativo. Obviamente, uma única atividade ilhada no meio de seis anos de percurso não tem por si só a força transformadora necessária para aliviar de modo significativo o estresse e humanizar o ensino médico. Na verdade, estudantes e professores das escolas médicas necessitam de muitos e de amplos espaços para reflexão e catarse. Na cena de Pinóquio, trazida pelos alunos, a fada o toca com a varinha de condão e diz: “Antes você era um médico de pau e agora você é um médico de verdade”. Esta cena protagoniza a necessidade de ampliarmos os espaços de humanização nas escolas médicas - para alunos e professores - e talvez este seja o toque “mágico” para que formemos menos “médicos de pau” e mais médicos “de verdade”. Referências ABERASTURY, A; KNOBEL, M. Adolescência normal. 6.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988. BETTELHEIM, B. Psicanálise dos contos de fada. 9.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. CASSORLA, R. M. S. Dificuldades no lidar com aspectos emocionais na prática médica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Rev. ABP-APAL, v.16, n.1 p.18-24, 1994. CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO. Resolução n.8, outubro de 1969. Dispõe sobre a criação de internato nos cursos médicos. Brasília, 1969. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Câmara de educação Superior, Resolução n.4, 7 de novembro de 2001. Brasília, 2001. CYRINO, E. G. Desafios à reforma curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu: as iniciativas de mudanças e a avaliação dos cursos de Pediatria e Saúde Coletiva do 3o. ano médico. 2002. Tese (Doutorado) - Faculdade de Medicina de Botucatu, Botucatu.

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RAMOS-CERQUEIRA, A. T. A. et al. Había una vez … los cuentos de hadas y el psicodrama ayudando alumnos que están concluyendo el curso medico, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.81-9, set.2004/fev.2005. El término del curso representa un período especialmente estresante para los estudiantes de medicina, en el que se deparan con diversas angustias: abandonar el papel de alumno, asumir nuevas responsabilidades y enfrentar el examen de residencia. Con la intención de ayudarlos en esta fase, la Facultad de Medicina de Botucatu (FMB) creó una serie de estrategias de acogimiento para los estudiantes. En este estudio se describe una actividad en la cual se utilizó el Psicodrama como facilitador de la expresión de sentimientos y emociones vivenciadas al final del curso. Por dos años consecutivos fueron realizados Sociodramas con los alumnos del ultimo año del curso de medicina. Se utilizaron los cuentos de hadas como recurso para que los estudiantes identificasen su trayectoria dentro de la institución y el momento que estaban viviendo. La dramatización de los cuentos posibilitó el intercambio de experiencias entre los alumnos y el acogimiento de sus angustias, que en su mayoría eran colectivas y propias de aquel contexto. El análisis de los cuentos privilegió aspectos proyectivos grupales llevando a la conclusión de que son necesarios más espacios de encuentro e intercambio entre profesores y alumnos. PALABRAS CLAVE: Educación Médica; salud mental; internato; psicodrama; sociodrama.

Recebido para publicação em 31/05/04. Aprovado para publicação em 30/09/04.

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Grupo de adesão ao tratamento: espaço de “ensinagem” para profissionais de saúde e pacientes Lia Márcia Cruz da Silveira1 Victoria Maria Brant Ribeiro2

SILVEIRA, L. M. C.; RIBEIRO, V. M. B. Compliance with treatment groups: a teaching and learning arena for healthcare professionals and patients, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.91-104, set.2004/fev.2005. This article presents a healthcare practice – the Compliance with Treatment Group – that provides a potential treatment, teaching and learning arena for patients and healthcare professionals, a stage for the interaction of different people, concepts, values and cultures, in which each player is at once unique but able to see himself in others, through dynamics that enable talking, listening, feeling, questioning, reflecting and learning to think. Its chief characteristic is being an informative and reflexive support group that is homogeneous where the diseases of the participating patients are concerned, under the coordination of two or more healthcare professionals from different categories, whose objective is to make it easier for patients to comply with treatment through dialogue. The study presents an analysis of the work carried out with groups of patients suffering from chronic illnesses and stresses the use of group practice as a therapeutic setting and an arena where patients and healthcare professionals teach and learn. It emphasizes the pedagogical aspects of this practice by encouraging learning through contact with problem situations. This enables adding political, ethical, economic, affective, social and cultural dimensions to current specific knowledge (the health issue). The article also points out the possibility of using this technique for developing communication and work team practices in the field of healthcare education. KEY WORDS: Practices in group therapy; treatment adherence; teaching and learning space; health multidisciplinary team.

O artigo apresenta uma prática de atenção à saúde - Grupos de Adesão ao Tratamento – que tem evidenciado um campo potencial de terapêutica, de ensino e de aprendizagem para pacientes e profissionais de saúde. Trata-se de cenário de interação de diferentes pessoas, conceitos, valores e culturas no qual cada ator se diferencia e se reconhece no outro em dinâmicas que possibilitam falar, escutar, sentir, indagar, refletir e aprender a pensar. Caracteriza-se por ser um grupo informativo, reflexivo e de suporte, homogêneo quanto à enfermidade dos pacientes, coordenado por dois ou mais profissionais de saúde de diferentes categorias que, pelo método dialógico, têm por objetivo facilitar a adesão dos pacientes ao tratamento. O estudo apresenta uma análise do trabalho com grupos de pacientes com doenças crônicas e ressalta a utilização da prática grupal como cenário de terapêutica e de ensino e aprendizagem para pacientes e profissionais de saúde. Enfatiza o aspecto pedagógico desta prática por propiciar a aprendizagem pelo contato com situações-problema que permitem agregar ao conhecimento específico a questão saúde - dimensões políticas, éticas, econômicas, afetivas e sócio-culturais. Aponta-se a possibilidade da utilização desta prática para desenvolver competências comunicativas e de trabalho em equipe no campo da educação em saúde. PALAVRAS-CHAVE: Prática grupoterápica; adesão ao tratamento; equipe muldisciplinar em saúde; espaço de “ensinagem”.

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Professora, Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO); bolsista CAPES <lia.silveira@uol.com.br> Professora, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUTES/UFRJ); pesquisadora CNPq. <victoria@nutes.ufrj.br> 2

1 Av. Major Frazão, 181, 5º andar Duque de Caxias - Rio de Janeiro, RJ 25.071-200

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SILVEIRA, L. M. C.; RIBEIRO, V. M. B.

Introdução Muito se tem discutido, atualmente no Brasil, sobre como produzir estratégias educacionais que repercutam na formação provocando mudanças substanciais na prática dos profissionais de saúde, coerentes com os princípios preconizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Pode-se dizer que existe quase uma exigência social de que se mude o processo de formação para que se produzam profissionais diferentes, com formação geral, capazes de prestar uma atenção integral e humanizada às pessoas, que trabalhem em equipe, que saibam tomar decisões considerando não somente a situação clínica individual, mas o contexto em que vivem os pacientes, os recursos disponíveis, as medidas mais eficazes. (Feuerweker, 2001, p.12)

Na realidade, a formação do profissional de saúde tem sido orientada por um modelo de atenção biologista fundamentado no paradigma positivista da ciência, cuja racionalidade sustenta-se na fragmentação, no aprofundamento e na descrição de partes para se compreender a unidade humana. Este modelo deu origem a “preceitos especializantes, nos quais a tecnologia avançou muito sobre as partes, mas perdeu a perspectiva do indivíduo como um todo” (Rodrigues, 1979, p.25). E esta tem sido a racionalidade preponderante na formação profissional que, embora tenha potencialidades e em um dado momento tenha sido fundamental para os avanços que hoje temos no campo da saúde, também tem seus limites. Isto porque, na busca da clareza e do sentido unívoco, “desvaloriza a diversidade, a singularidade, a interação das diferentes dimensões que compõem o sujeito” (Deveza, 1983, p.82), reduzindo os eventos de saúde e doença à dimensão biológica. Este paradigma epistemológico, orientador do modelo de formação do profissional de saúde, repercute diretamente na sua prática laboral, mostrando-se pouco resolutiva, impessoal, desvinculada da realidade das condições de vida da população e reducionista à medida que coloca como foco de atenção a doença e não os sujeitos que adoecem. Isto sinaliza que, para transformar o processo de formação dos profissionais da saúde, colocam-se como estratégicas a reflexão e a discussão dos diferentes elementos que dão substrato a este processo, dos quais destaca-se, em especial, o homem, objeto de estudo ao qual se destina a formação. Destacam-se também entre estes elementos: o conceito de saúde, o processo saúde/doença, as práticas assistenciais, os espaços onde se desenvolvem e os sujeitos nelas envolvidos, criando um campo propício ao rompimento da clivagem teoria - prática e fomentando uma articulação transformadora que se configure em um novo cenário de atenção à saúde. Caracteriza este novo cenário a integração do cuidado e da aprendizagem na qual desenvolvam-se: ações de saúde adequadas e compatíveis com e para o homem na sua totalidade e que aproximem os atores envolvidos; práticas que utilizem métodos de trabalho nos quais o cotidiano das pessoas adoecidas esteja presente na cena, com base nas experiências delas mesmas;

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situações que favoreçam a detecção de problemas, o desvelamento de contradições e conflitos, permitam maior visibilidade das necessidades existentes e a busca de superação das dificuldades relacionadas ao cuidado à saúde; oportunidades que propiciem o diálogo para que os indivíduos explicitem suas reais dificuldades e a percepção dos recursos que dispõem para lidar com a situação de sofrimento; situações freqüentes que coloquem equipe de saúde e paciente em uma relação direta, e que estimulem o compromisso e a implicação de ambos na busca de soluções para os problemas de saúde. Em síntese, cenários e procedimentos metodológicos que permitam consolidar uma concepção do homem em sua integralidade, ampliar o foco na compreensão do processo saúde/doença, e que dêem sustentabilidade a uma formação em saúde mais reflexiva, integrada, humanizada, possibilitando pensar o homem de modo mais contextualizado, sem dissociar a história da pessoa do seu processo saúde/doença. É nesta perspectiva que, neste ensaio, apresentamos uma reflexão teórica do método utilizado em experiência de trabalho com grupo de pacientes crônicos, denominada grupo adesão, realizada em ambulatório de um Hospital Universitário e que, ao acontecer, tem se configurado um campo potencial de terapêutica, de ensino e de aprendizagem para pacientes e para os profissionais de saúde. Sobre adesão O adoecimento traz para o ser humano, em maior ou menor escala, apreensão e ameaça, podendo produzir desequilíbrio e desconforto que levam o homem a debruçar-se sobre o limite de sua própria condição, indagar-se sobre ela e pensar na vulnerabilidade, na finitude e na imprevisibilidade, implícitas no ato de viver. Sanada a situação de adoecimento, o indivíduo se reequilibra e, como é próprio da condição humana, busca neste equilíbrio restabelecer o sentimento de invulnerabilidade que o faz sentir-se forte para lidar com as adversidades da vida. Mas, quando as doenças são denominadas crônicas, de longa duração, o equilíbrio está em viver e conviver autonomamente com esta condição, pois não se curam com remédios; como a própria expressão nos diz, elas são “remediadas, e quando tratadas como uma condição também crônica é passível de duas formas de dependência: a dos remédios e a do médico” (Mello Filho, 2000, p.25). Assim, o tratamento do paciente portador de doença crônica deve favorecer a adaptação a esta condição, instrumentalizando-o para que, por meio de seus próprios recursos, desenvolva mecanismos que permitam conhecer seu processo saúde/doença de modo a identificar, evitar e prevenir complicações, agravos e, sobretudo, a mortalidade precoce. Neste sentido, inclui-se no tratamento um item significativo, de relevância para o sucesso do cuidado e que representa um desafio para ambos – profissionais e pacientes – pelo intrincado de variáveis que traz em si, que é a adesão ao tratamento. No campo da saúde, adesão corresponde ao “grau de seguimento dos pacientes à orientação médica” (Fletcher et al., 1989, p.7), e relaciona-se à maneira como o indivíduo vivencia e enfrenta o adoecimento. Segundo Botega (2001, p.49) “(...) devemos conceber adesão ao tratamento como um processo, com três componentes principais: a noção de doença que

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possui o paciente, a idéia de cura ou de melhora que se forma em sua mente, o lugar do médico no imaginário do doente”. Usualmente, quando se pensa em adesão o foco é no paciente, no uso que faz dos medicamentos prescritos, no seguimento das orientações e restrições indicadas, nas modificações que necessita fazer no estilo de vida para equilibrar sua saúde. Há ainda, por parte dos profissionais, preocupação de que as orientações sejam as mais adequadas possíveis visando resultados benéficos para a saúde dos pacientes. Em função deste objetivo, utilizam diferentes métodos para medir adesão: comportamentais (contagem de pílulas, por exemplo), inquérito com os pacientes, relatos colaterais, técnicas bioquímicas, revisão de resultados clínicos, entre outros. Essa forma de avaliar, em que a maioria dos indicadores está relacionada ao aspecto medicamentoso, evidencia uma preocupação com a adesão aos medicamentos em lugar da adesão ao tratamento como se fossem fatores dissociados. Esta compreensão do profissional é norteada por um modelo de atenção à saúde que privilegia a doença e não o doente com suas características, seu estilo e seu contexto de vida, o significado que a doença tem para ele, além de desconsiderar a devida relevância que, neste processo, tem suas relações com a pessoa assistida e com a instituição à qual está vinculada para tratar-se. Adesão, do latim adhaesione, significa, do ponto de vista etimológico, junção, união, aprovação, acordo, manifestação de solidariedade, apoio; pressupõe relação e vínculo. Adesão ao tratamento é um processo multifatorial que se estrutura em uma parceria entre quem cuida e quem é cuidado; diz respeito, à freqüência, à constância e à perseverança na relação com o cuidado em busca da saúde. Portanto, o vínculo entre profissional e paciente é fator estruturante e de consolidação do processo, razão pela qual deve ser considerado para que se efetive. Sob este ponto de vista, adesão ao tratamento inclui fatores terapêuticos e educativos relacionados aos pacientes, envolvendo aspectos ligados ao reconhecimento e à aceitação de suas condições de saúde, a uma adaptação ativa a estas condições, à identificação de fatores de risco no estilo de vida, ao cultivo de hábitos e atitudes promotores de qualidade de vida e ao desenvolvimento da consciência para o autocuidado. Considera, também, fatores relacionados ao(s) profissional(is), comportando ações de saúde centradas na pessoa e não exclusivamente nos procedimentos, que aliam orientação, informação, adequação dos esquemas terapêuticos ao estilo de vida do paciente, esclarecimentos, suporte social e emocional. Nesta perspectiva de ação, a atitude acolhedora do profissional que cuida respalda o paciente para novas atitudes perante o adoecimento, e o medicamento é mais um recurso terapêutico na promoção da saúde. Há também fatores ligados à instituição de saúde, cuja finalidade é promover e estimular ações que contribuam para que os indivíduos envolvidos possam caminhar em direção à eficácia e à qualidade do tratamento. Por tratar-se de um processo no qual os sujeitos estão em contato com uma variedade de fatores que influenciam sua continuidade ou a descontinuidade, facilitar a adesão e aderir ao tratamento não são tarefas fáceis; são desafios que sofrem oscilações e demandam atenção contínua. Pelo entendimento da complexidade do processo e pela amplitude

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requerida no manejo da adesão, faz-se oportuno um outro momento, além da consulta individual, para discussão, esclarecimento e reforço da necessidade de incorporar este tipo de cuidado à vida dos pacientes. Daí a estratégia do grupo de adesão ao tratamento, um espaço solidário que permite o acesso à informação, a troca de experiências, o intercâmbio de motivações, o apoio mútuo e a vivência de uma pluralidade de situações que criam oportunidades para pacientes e profissionais de saúde posicionarem-se, tirarem dúvidas, interagirem e superarem dificuldades no processo de tratamento. O Grupo de Adesão ao tratamento Grupo adesão é uma prática de saúde que se fundamenta no trabalho coletivo, na interação e no diálogo. Trata-se de um grupo homogêneo quanto à enfermidade dos pacientes, aberto com relação à entrada destes em cada reunião e multidisciplinar no que diz respeito à coordenação. Tem caráter informativo, reflexivo e de suporte, e sua finalidade é identificar dificuldades, discutir possibilidades e encontrar soluções adequadas para problemáticas individuais e/ou grupais que estejam dificultando a adesão ao tratamento. É um ambiente de motivação para o tratamento pelo compartilhar de dificuldades e pela busca de alternativas para superá-las, de construção de vínculos, de acolhida, de respeito à diferença e de reforço da auto-estima, em que se busca estimular a pessoa a encontrar recursos para lidar com as questões do adoecer, da doença e dos seus efeitos sobre sua vida. É um cenário de interação de diferentes pessoas, conceitos, valores e culturas no qual cada ator se diferencia e se reconhece no outro em uma dinâmica que possibilita falar, escutar, sentir, indagar, refletir e aprender a pensar para superar resistências à mudança e promover adaptação do estilo de vida à condição de saúde. Marca sua diferença do tratamento psicológico grupal por constituir um grupo terapêutico, centrado na tarefa de tomar consciência da necessidade do cuidado e de promover o autocuidado, no qual busca-se identificar obstáculos que impedem o encontro de soluções para o processo de adesão ao tratamento. Mas também é um grupo de ensino e de aprendizagem pelo que se “aprende ali no dia-a-dia, cada um ensinando ao outro o que sabe sobre a sua doença, pelas trocas de experiências que enriquecem, previnem iatrogenias, fortalecem as pessoas para os futuros embates” (Mello Filho, 2000, p.16). Portanto, é um grupo em que o cuidado está presente na ação pedagógica e na ação terapêutica e que funciona estruturado no princípio que afirma que “toda aprendizagem bem realizada e toda educação [são] sempre, implicitamente, terapêuticas” (Bleger, 1998, p.63). Trata-se, portanto, de um trabalho que mescla apoio e aprendizagem, uma prática de saúde que une o cuidar e o pensar, buscando transformar os pacientes de “receptores passivos dos cuidados em saúde em co-autores dos resultados, procurando fazer com que utilizem, que ‘se encarreguem’ de suas potencialidades como seres humanos (Bleger, 1998, p.59). Esse direcionamento faz com que, em determinados momentos, “o grupo torne-se um ambiente composto por vários pacientes, com vários terapeutas, já que os pacientes exercem, reciprocamente, um papel terapêutico em diversas

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ocasiões” (Mello Filho, 2000, p.139), caracterizando um mecanismo de interação que institui a cultura do cuidado como um caminho para a adesão ao tratamento. Assim como o cuidado, no grupo adesão a aprendizagem e o ensino são bilaterais, integrantes de um processo mútuo e solidário, no qual todos ensinam e todos aprendem, assemelhando-se a um processo pedagógico baseado na exemplaridade, na simetria, na interação e na reciprocidade que permite aos seres humanos, reunidos naquele ambiente, colocarem-se uns frente aos outros, aprenderem uns com os outros, encurtando a distância entre profissionais e pacientes em uma aproximação que possibilita diminuir o fosso entre os serviços de saúde e o cotidiano da população assistida. Este ambiente marcado pelo zelo e pela conscientização baseia-se em uma proposta de atenção comprometida com a solidariedade e com a cidadania. Esta combinação cria um campo atravessado por conceitos e princípios que se articulam e que são representados pelo princípio da integralidade, pela dinâmica dos grupos operativos de Pichon-Rivière (1982), pelo processo de ensinar e aprender sob a ótica de José Bleger, e ainda pela proposta de ensino-aprendizagem de Paulo Freire. Do princípio da integralidade vem o entendimento do homem biopsicossocial que se estrutura como sujeito pela estreita interação de suas diversas dimensões e por suas relações com o meio. Esta concepção que considera o indivíduo em sua totalidade orienta o entendimento do processo saúde/doença incidindo sobre a prática dos profissionais de saúde, influenciando seu modo de tratar o paciente e colocando o foco da atenção na pessoa e não na doença. Como um princípio orientador, transforma as relações de quem cuida com quem é cuidado, na medida em que a partir dele a impessoalidade da relação sujeito-objeto dá lugar à relação sujeito-sujeito, possibilitando aproximações mais compromissadas e humanizadas. Essa aproximação permite o conhecimento recíproco e abre caminho para o diálogo, por meio do qual se constrói uma relação interpessoal que “descoisifica” os sujeitos, possibilita perceber diversidades, cria vínculos, facilita a compreensão das necessidades de quem sofre e influencia o processo de trabalho e as ações de saúde. Complementarmente, da Psicologia vem a contribuição no sentido de formatar a prática aqui apresentada, configurada por um grupo homogêneo4 , com uma estrutura5 na qual as pessoas se aproximam, se vinculam e interagem, estabelecendo uma relação dialógica que opera a integração do conhecimento intelectual com a vivência, o que facilita a transformação da atitude perante o cuidado com a saúde naquilo que chamamos grupo operativo com finalidade terapêutica. A grupoterapia com pacientes portadores de doenças crônicas nos serviços de saúde é uma prática assistencial secular que varia em múltiplas modalidades, moldadas pela finalidade, pela técnica e pela fundamentação teórica. Os procedimentos terapêuticos e as ferramentas técnicas variam e combinam-se de acordo com o objetivo do trabalho grupal. Neste ensaio, o grupo em questão é o de pacientes somáticos, um grupo operativo que mescla terapêutica e ensino-aprendizagem e cuja finalidade é promover a adesão ao tratamento. Esta prática assistencial é terapêutica e pedagógica

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4 Assim, no campo da saúde, os grupos de atendimento a paciente somático são classificados por Mello Filho (2000, p.432) em homogêneos e heterogêneos. São denominados homogêneos os grupos que reúnem pessoas com enfermidade comum (grupos de hipertensos, diabéticos, pacientes HIV+) e heterogêneos aqueles que apresentam doenças diferentes.

“Estrutura é o conjunto de vínculos que une um grupo” (Oliveira Júnior, 1997, p.56), diz respeito à intencionalidade de um grupo, ao objetivo comum, a determinados tipos de laços, relações, papéis. 5


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A proposta de Freire parte do Estudo da Realidade (fala do educando) e a Organização dos Dados (fala do educador). Nesse processo surgem os Temas Geradores, extraídos da problematização da prática de vida dos educandos. Os conteúdos de ensino são resultados de uma metodologia dialógica. Cada pessoa, cada grupo envolvido na ação pedagógica dispõe em si próprio, ainda que de forma rudimentar, dos conteúdos necessários dos quais se parte (Feitosa,1999). 6

por possibilitar a ampliação da consciência sobre a doença, potencializar a capacidade humana de superar dificuldades, promover transformação da atitude perante o processo saúde-doença, e propiciar aprendizagem mútua e recíproca à medida que quando se trabalha uma determinada situação não é só a situação que se modifica, mas também o sujeito que, transformado, contribui para modificar a situação. Grupo operativo, conceituado e sistematizado por Pichon Rivière, de acordo com Zimerman & Ozório (1997, p.76), pode ser definido, então, como um conjunto de pessoas que tentam operar como equipe com o objetivo comum de realizar uma determinada tarefa, razão pela qual este tipo de grupo é considerado um continente de todos os demais grupos, os terapêuticos e aqueles que lidam nos campos de ensino-aprendizagem, comunitários, institucionais, dando origem a ramificações que se interpõem e se complementam. Esse processo interativo de pessoas e conhecimentos apoia-se no método dialógico, participativo, evidenciando uma bilateralidade em que o sujeito afeta e é afetado, confirmando que ensino e aprendizagem são “passos dialéticos e inseparáveis, integrantes de um processo único em permanente movimento” (Bleger, 1998, p.56), concepção que na Pedagogia fundamentase no método de Paulo Freire6 para orientar o procedimento na ação, levando em conta, principalmente, o respeito ao educando, a conquista da autonomia e a plena dialogicidade. Com base nessa proposta pedagógica, a tarefa a ser realizada no grupo adesão parte da realidade dos pacientes, dos fatos de sua vida cotidiana que emergem à medida que o grupo se desenvolve e o vínculo se estabelece entre as pessoas; então, as experiências trazidas são discutidas, valorizadas, associadas à questão saúde/doença, dando oportunidade de desvelar aspectos desta situação que poderiam passar despercebidos pelos atores envolvidos, tornando infecunda a ação em prol da saúde. A relação dialógica estabelecida no ambiente grupal permite perceber os conteúdos de diversas naturezas que fazem parte do processo saúde-doença e contextualiza o paciente na ação de saúde, criando para os facilitadores do grupo adesão oportunidade de integrar os diferentes aspectos contidos naquele processo à finalidade do trabalho. Este tipo de fazer a ação encontra respaldo nas idéias de Freire (1997, p.70) ao afirmar que “não há pensamento que não esteja referido à realidade, direta ou indiretamente marcado por ela, do que resulta que a linguagem que o exprime não pode estar isenta destas marcas”. Em síntese, os conceitos e os princípios que se inter-relacionam e se complementam são os pilares que dão sustentação à prática de saúde aqui apresentada: grupo adesão como espaço de ensino e de aprendizagem, no qual se desenvolve uma ação de saúde baseada no diálogo, que prioriza o homem e valoriza a potencialidade humana, que permite entrar em contato com outros modos de pensar e viver a vida e traz para o cotidiano dos serviços de saúde a possibilidade de discutir problemas importantes que estejam dificultando a adesão ao tratamento. O pensar sobre o fazer Na prática com grupo adesão, considerada dinâmica, que possibilita o

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contato efetivo e afetivo com diferentes pessoas, questionam-se certezas, mobilizam-se conhecimentos, provocam-se sentimentos, influenciam-se atitudes e maneiras de pensar, razão pela qual é de fundamental importância que sejam criados momentos de reflexão sobre o trabalho que os profissionais desenvolvem. Por entender que é “pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática” (Freire, 1996, p.43), propõe-se a ocorrência sistemática, em paralelo ao grupo com pacientes, com uma regularidade previamente combinada, de reuniões de reflexão sobre o trabalho com os facilitadores, momentos considerados de avaliação. Nestas reuniões, coordenadas por um profissional de saúde mental experiente no manejo de grupos, podem-se perceber os rumos do trabalho, viabilizar possíveis correções, acompanhar a consonância dos objetivos traçados em relação ao trabalho desenvolvido, pensar alternativas para transpor dificuldades, discutir e tomar decisões. É o momento de pensar sobre o que se faz, de consolidar, sistematizar e aprender com o trabalho, pois se para Freire (1997, p.13) o “diálogo é a base da educação”, para Bleger (1998, p.64), “pensar é o eixo da aprendizagem”; portanto, refletir sobre o que se pratica promove a ampliação da capacidade de análise e de intervenção no campo em que se atua. É o momento de reconhecer e analisar os conteúdos subjetivos e objetivos do trabalho que vem sendo realizado tais como: ansiedades, medo de perder a identidade, esclarecimentos e busca de sintonia no desempenho da tarefa, reforço da alternância de papéis na equipe de coordenação, discussão sobre situações de dificuldade encontradas na condução do grupo, na relação da equipe e a busca de rumos para solucioná-las. É quando se explicita a interação ideológica e afetiva da equipe, que se unem reflexão e ação, criando um campo propício ao desenvolvimento de potencialidades que geram novas estratégias e parcerias baseadas na solidariedade e não na competitividade; quando se rompe a cisão entre teoria e prática, serviço e aprendizagem, momento, portanto, de romper a divisão entre pensar e fazer, pois (...) A divisão entre o pensar e o fazer, ao longo da história do homem, é um excitante desafio que permanece, exigindo exames cada vez mais aprofundados. As ações de saúde e a formação de recursos humanos nessa área não estão imunes a essa cisão. A formação acadêmica evidencia as dificuldades de trabalho, priorizando ora a prática ora a teoria (...). Essa nociva dicotomia tem mobilizado o pensar, que na falta de retroalimentação da realidade do meio, está mais próxima do verbalismo que da teorização. Em contrapartida, a prática, pouco crítica e alijada do pensar, tem se transformado num ativismo não reflexivo. (Rezende, 1989, p.9)

O processo de “ensinagem” A prática do grupo adesão é norteada pela concepção de educação em que o

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homem é um ser de relações em constante interação, integralmente incluído em tudo aquilo que ele participa, “(...) que ele sente, percebe e sobre a qual exerce uma prática transformadora” (Freire, 1997, p.75), relações de ambivalência, simbolismos, diferenças que dão ao homem a dimensão humana do próprio homem. Ao incluir a dimensão humana nas ações terapêuticas e pedagógicas, percebe-se uma dinâmica, como foi anunciado anteriormente, na qual o sujeito afeta e é afetado, caracterizando um processo de influência mútua. Neste processo, a relação interpessoal é uma via, um instrumento, um recurso a ser incorporado e utilizado no cuidado e na aprendizagem. O resultado desta dinâmica é uma dupla humanização em que a prática humaniza os sujeitos e os sujeitos humanizam a prática que desenvolvem, entendimento que se reforça no pensamento de Bleger (1998, p.62) ao afirmar que “quando se trabalha um objeto, não apenas o objeto está sendo modificado, mas também o sujeito (...), e as duas coisas ocorrem ao mesmo tempo”. É nesta perspectiva dialética que se afirma o grupo adesão enquanto espaço pedagógico, no qual o processo de ensino e de aprendizagem é bilateral, acontece em mão dupla, construído em bases de reciprocidade entre pessoas e saberes, que se reforça na premissa de que “não existe ser humano que não possa ensinar algo, quando mais não seja pelo simples fato de ter certa experiência de vida” (Bleger (1998, p.58). Se, no grupo adesão, há momentos em que na cena há vários sujeitos que se cuidam entre si, há também esta dinâmica no que diz respeito a ensinar e aprender. E nestes momentos, em que ensino e aprendizagem, passos dialéticos e inseparáveis, solidariamente relacionados se fundem, gerando um processo único em permanente movimento, caracteriza-se uma ação que Bleger (1998, p.59) denominou de “ensinagem”. Neste processo o aprender/ensinar não tem o sentido limitado de recolher, transmitir informação, mas sim converter em ensino e aprendizagem toda conduta e experiência, relação ou ocupação, energizando a capacidade dos participantes para que se encarreguem, dinamizem suas potencialidades como seres humanos. No ambiente do grupo adesão, as pessoas estão em busca de aprender, de facilitar e se ajustar a um acontecimento que evidencia seu processo saúde/ doença e elas “aprendem, com sua participação direta, a problematizar e a empregar os instrumentos para encontrar soluções e estabelecer as possíveis vias de solução” (Bleger, 1998, p.61). E os profissionais de saúde que ali estão percebem que sua função, como facilitadores de grupo que se propõem a contribuir para que os pacientes se vinculem ao tratamento, é acolhê-los e ouvi-los para que tragam experiências, situações vividas, dúvidas, por meio das quais se explicitem as dificuldades em cuidar-se, identifiquem quais os recursos de que dispõem para dar conta deste seu momento e então estabeleçam conexões entre os conhecimentos, as informações e as vivências, para que novos entendimentos possam processar novas formas de condutas em prol da saúde, oportunizando uma “aprendizagem vital que pressupõe uma mudança de atitude a respeito da pessoa inteira” (Folkes & Anthony, 1972, p.14). Tal qual a relação que se estabelece entre professores e alunos, a relação entre facilitadores e pacientes no grupo adesão é, portanto, sempre uma

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relação pedagógica porque o espaço de convívio é mediado por conhecimentos que são, intencionalmente, ensinados e aprendidos, desconstruídos, construídos e/ou reconstruídos em atividades que os colocam frente a frente produzindo teorias, discutindo conceitos e experiências, criando novos fatos, enfim, interagindo, valorizando a contribuição de cada um e de todos, produzindo momentos de “ensinagem”, “de modéstia e humildade no conhecimento, e das limitações humanas frente ao desconhecido” (Bleger, 1998, p.77). Tal qual entre professor e aluno, também a relação de reciprocidade entre profissionais e pacientes no grupo adesão não significa total igualdade de papéis. O profissional tem sua função e nela, por vezes, ocupa o lugar de “suposto saber” em que o paciente o coloca. No entanto, a convivência propicia ao profissional uma tomada progressiva de consciência que lhe permite perceber que sabe (ou deveria saber) sobre sua especificidade profissional, e com humildade para reconhecer que quem sabe sobre si mesmo é o paciente. Contudo, isso não lhe retira a possibilidade de aprender com e no grupo e de assumir-se como parceiro no processo de adesão ao tratamento. Nesse sentido, a formação de profissionais de saúde deve, por um lado, necessariamente incluir um momento no qual sejam feitas reflexão e crítica sobre as formas e o significado de ensinar, de trazer o outro para sua perspectiva e com ele também aprender, um momento de experimentar situações desse acontecimento “feiticeiro” que se chama trabalhar em grupo para facilitar a adesão ao tratamento; por outro, deve ensejar a compreensão da complexidade do processo de formação e de seus determinantes, que transcendem, e muito, o espaço do próprio grupo e apontam possibilidades para sua transformação, fomentada em processos de ensino-aprendizagem em que o falar, o pensar, o sentir e o agir coexistem, sucedem-se e potencializam-se, e que se fundamenta na “crença de que os homens podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o mundo” (Freire, 1977, p.74). Portanto, pela possibilidade que oferece ao profissional de saúde de exercer sua função transformadora com resolutividade e responsabilidade social e também de produzir alternativas que respondam aos desafios na busca de adesão ao tratamento, consideramos a prática com grupo adesão como um espaço de aprendizagem no qual os sujeitos que dele compartilham, de acordo com Rovere (1992, p.12), “são problematizados e problematizam uma determinada realidade desenvolvendo competências para intervir sobre ela”. Com o propósito de ouvir o que pensam a esse respeito os profissionais de saúde que atuam em grupo adesão, respaldando o estudo teórico que estamos apresentando, a eles foi perguntado, em um primeiro momento, se consideravam o grupo um cenário de aprendizagem para pacientes e, em um segundo momento, se o consideravam um cenário de aprendizagem para profissionais de saúde. Em unanimidade, os facilitadores avaliaram ser este cenário propício à aprendizagem bilateral, de profissionais e pacientes, o que reforça a hipótese levantada no decorrer desse trabalho e que foi anunciado pelos entrevistados: [o grupo] é importante para o paciente e para o profissional, que se capacitam mutuamente.

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Cabe notar que no grupo adesão ensinar e aprender estão articulados desde sua concepção, quando se discute como será o grupo, quando se planeja a atuação no grupo, quando se busca estratégia de divulgação, quando se divulga o trabalho, ações que parecem simples, mas que foram apontadas pelos entrevistados como uma lacuna que mostra a necessidade de mudança na formação profissional. Aprende-se e ensina-se no grupo a se aproximar das pessoas, a estabelecer relação como sujeitos, a interagir respeitando regras de convivência e o saber do outro, a observar e escutar, a se comunicar dialogando, a emitir opiniões explicitando conflitos e buscando consenso, a admitir que outros pensem de modo diferente, a perceber o que se diz e o que realmente se faz porque é [um momento] mais real do que a consulta individual. Aprende-se e ensina-se com o grupo a compartilhar conhecimentos e a incorporar novos saberes e práticas, a facilitar e simplificar as informações, a compreender a comunicação humana nas sutilezas da expressão dos afetos, a se desarmar para receber o outro, a lidar com situações de imprevisibilidade e a deixar fluir o potencial criativo, a problematizar, a indagar, a ser crítico, porque ali a vida acontece. Aprende-se e ensina-se no grupo a trabalhar em equipe, a viver e conviver com o outro, a estabelecer parcerias, a reconhecer as capacidades e os limites dos colegas e dos pacientes, a ter esperança e crença, “(...) a crença em que os homens podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o mundo” (Freire, 1997, p.74). Para os profissionais entrevistados, o trabalho em grupo adesão representa uma mudança no trabalho que se reflete na vida pessoal. Considerações finais Como demonstrado no decorrer deste ensaio, o trabalho com grupos em unidades de saúde é um recurso potencial para ser incorporado pelas instituições e pelos profissionais no desempenho da tarefa de promover saúde. Uma atividade que procura dar aproveitamento a todos os recursos com que conta cada pessoa na busca por viver melhor, que otimiza recursos financeiros e o período de trabalho dos profissionais, que potencializa a ação de saúde tendo, ainda, aplicação pedagógica na formação e no aprimoramento profissional de quem a desempenha é, sem dúvida, uma atividade a ser exercida amplamente para o bem público. Trata-se de uma prática secular que alia condições vantajosas com situações problemáticas e por ser uma prática não instituída com regularidade nos serviços de saúde, o trabalho com grupos de pacientes crônicos, por vezes, caracteriza-se por uma iniciativa ingênua, na qual os profissionais têm boa vontade para desempenhar a ação, mas não estão capacitados a fazê-la com suficiente rigor teórico e criticidade, caindo no paternalismo gerador de dependência, em que alguns colocam-se como foco da ação e, na ausência deste profissional, o trabalho não vai adiante. Portanto, trata-se de uma prática que para ser realizada exige profissionais competentes, do ponto de vista de conhecimentos, habilidades e atitudes, que se não exercitados deixam de ser incorporados uma vez que se trata de uma prática que capacita pelo desempenho: o aprender fazendo e o fazer aprendendo.

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Sobre as práticas grupais, Luz (2001, p.34) assinala que (...) há uma tendência ascendente em incluir tais práticas na rede pública de serviços, sendo propiciada pela política de saúde descentralizadora vigente no país. A tendência ao crescimento desta incorporação está estreitamente ligada, a meu ver, ao papel que a cidadania poderá representar na descentralização das políticas públicas nos próximos anos.

Porém, a institucionalização deste tipo de prática, pressupõe mudança; e seria ingenuidade supor mudança apenas no processo de formação profissional. Pressupõe, antes de tudo, mudança de atitude dos homens perante os outros homens e, aqui, não estamos falando apenas nas relações que se estabelecem na atividade de trabalho; pressupõe mudança nos homens, fundamentalmente na forma como se percebem na vida, como bem traduz Bleger (1998, p.112): (...) Sei que não ofereço soluções fáceis e às vezes nem sequer soluções difíceis, mas as soluções só podem emergir, no melhor dos casos, de uma proposição correta dos problemas que devemos enfrentar, e com isto entendo, assim mesmo, que estamos envolvidos como agentes de mudança, mas, também, como agentes que asseguram uma organização que constitui uma resistência à mudança.

Pelas razões apresentadas, o grupo adesão, que evidencia a riqueza da variedade humana, propicia a compreensão do homem como um ser integral, do processo saúde-doença e seus determinantes, do conceito de saúde em uma perspectiva ampliada, e cria condições para a interação dos participantes, permite ampliar a capacidade dos profissionais de trabalhar junto e há de ser entendido como espaço de ensino e de aprendizagem, um espaço de “ensinagem”. Cabe um insistente reforço e disseminação desta concepção, de modo a beneficiar um maior número de pessoas com práticas humanizada e coletiva na atenção à saúde. Diante do exposto, ficam-nos algumas questões: em quê a universidade pode contribuir para concretizar uma prática que tem se revelado eficaz? Se pode, por que ainda não a incorporou aos currículos da área da saúde? As Diretrizes Curriculares para a área da saúde estão homologadas pelo Ministério da Educação desde 2001 (Brasil, 2001). Qual notícia temos de movimentos que pretendem se aproximar desta concepção de prática coletiva, humanizada, igualitária que, além de partir da realidade das pessoas que recebem cuidado, retroalimentam a formação profissional? Estas e outras questões ficam como indagações para nós, da saúde e da educação, que acreditamos no potencial dos homens. E servem para outros estudos que talvez possam se valer daquilo que foi apresentado neste trabalho.

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GRUPO DE ADESÃO AO TRATAMENTO: ESPAÇO...

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SILVEIRA, L. M. C.; RIBEIRO, V. M. B.

SILVEIRA, L. M. C.; RIBEIRO, V. M. B. Grupo de adhesión al tratamiento: espacio de “enseñanza” para profesionales de la salud y pacientes, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.91-104, set.2004/fev.2005. El ensayo presenta una práctica de atención a la salud -Grupos de Adhesión al Tratamientoque han evidenciado un campo potencial de terapéutica, de enseñanza y de aprendizaje a pacientes y a profesionales de la salud. Esto se trata de un escenario de interacción de personas diferentes, conceptos, valores y culturas donde cada personaje se diferencia y se reconoce en el otro por medio de dinámicas en que sea posible hablar, escuchar, sentir, indagar, reflexionar y aprender a pensar. Se caracteriza por ser un grupo informativo, reflexivo y de soporte, homogéneo en lo que se refiere a la enfermedad de los pacientes, coordinado por dos o más profesionales de salud de diferentes categorías, que por medio del método “dialógico” tiene como objetivo facilitar la adhesión de los pacientes al tratamiento. PALABRAS CLAVE: Practicas en terapia de grupo; adhesion al tratamiento; espacio de enseño y de aprendizaje; equipo multidisciplinar en salud.

Recebido para publicação em 29/01/04. Aprovado para publicação em 22/10/04.

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Discutindo a relação entre espaço e aprendizagem na formação de profissionais de saúde*

Norma Carapiá Fagundes1 Teresinha Fróes Burnham2

FAGUNDES, N. C.; FRÓES BURNHAM, T. Discussing the relation between space and learning in the training of health professionals, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.105-114, set.2004/fev.2005.

This article discusses the relation between space and learning, as a way of thinking of modifications or curricula innovations, based on demands from practice. It analyzes experiences with communities developed by nursing schools, schools of dentistry and medical schools. The epistemological / methodological proposal is based on the theories of complexity and of multiple references. Analysis revealed significant learning experiences for the subjects and indicated that it is not enough to define new teaching sites; it is necessary to reflect upon practice, so that it may be a reference for questioning and transforming traditional forms of conceiving the curricula. Furthermore, it indicated that rethinking the curricula signifies developing a new relationship with knowledge, which implies in changes in the relations between the university and the diverse forms of knowledge in existence and the recognition of the value of learning (re)constructed in experience. In conclusion, the article stresses that the university should institute mechanisms for listening to what various actors have to say about the practices it develops and invest in a solid cultural education that is critical with respect to the students. KEYWORDS: Curriculum; training; learning; spaces; education medical. Discute-se a relação entre espaço e aprendizagem, como uma forma de pensar modificações ou inovações curriculares a partir de demandas da prática. Analisam-se experiências com comunidades desenvolvidas pelos cursos de enfermagem, odontologia e medicina. A metodologia tem como substratos as teorias da complexidade e da multirreferencialidade. O estudo revelou aprendizagens significativas para os sujeitos e trouxe a questão de que não basta definir novos locais de ensino; é preciso exercitar a reflexão sobre a prática, para que esta possa ser uma referência para interpelação e transformação das formas tradicionais de conceber currículo. Revelou, ainda, que repensar o currículo significa o desenvolvimento de uma nova relação com o saber, implicando mudanças nas relações entre a universidade e os diversos saberes existentes e na valorização da aprendizagem (re)construída na experiência. Como conclusão, destaca-se que a universidade deve instituir “escutas” das práticas desenvolvidas e investir numa formação cultural sólida e crítica dos estudantes. PALAVRAS-CHAVE: currículo; formação; espaços; aprendizagem; educação médica.

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Artigo elaborado a partir de Fagundes, 2003 (Tese de Doutorado em Educação, UFBA).

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Professora, Departamento de Enfermagem Comunitária, Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia. <fagundes@ufba.br>; <normafagundes@terra.com.br> 2

Professora, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. <tfroesb@ufba.br>

1

Rua Professor Sabino Silva, 823, apto. 102 Edifício Vivenda Sam Matheus Jardim Apipema - Salvador, Ba 40.155-250

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Introdução A idéia de que o que se aprende tem relação com o local, com a interação entre as pessoas e com o momento, tem sido preconizada por grandes nomes da educação, destacando-se, dentre eles, Anísio Teixeira. Aprofundando essa questão, autores como Fróes Burnham (2000) e Young (2000) discutem que o processo de formação não ocorre somente na escola. Acontece em múltiplos espaços, assim como são múltiplas as aprendizagens que ocorrem em cada um desses espaços. Para esses autores, o que define o sentido da formação profissional é, predominantemente, a relação que se estabelece nos espaços nos quais se materializa a educação (especificamente na área de saúde: sala de aula, laboratórios, serviços de saúde, espaços da comunidade). Para discutir as possíveis relações entre espaço e aprendizagem, o estudo tomou para análise atividades de ensino junto a comunidades do Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho em Salvador, realizadas por diferentes escolas da área de saúde da Universidade Federal da Bahia, buscando compreender como estas experiências podem contribuir para o desenvolvimento de aprendizagens plurais, extrapolando o limite das puramente instrumentais/ técnico/científicas, hegemonicamente demandadas pelos currículos de formação de profissionais de saúde. Esta análise toma como base crítica a constatação de que os atuais currículos, ao trabalharem com um modelo de organização que pressupõe a precedência da aprendizagem de referenciais teóricos para depois “aplicá-los” na realidade, reduzem os “espaços da prática” a meros “receptores” de conteúdos fragmentados, estudados em sala de aula. Nesta concepção de organização curricular, os “campos de prática” são percebidos como instâncias que pouco têm a oferecer em termos de articulação de novas aprendizagens e da socialização/produção de novos conhecimentos. É preciso, pois, compreender as circunstâncias nas quais as aprendizagens ocorrem, para que se possa pensar em modificações ou inovações curriculares a partir da estreita relação teoria-prática (Toralles-Pereira, 1997). O dia a dia do trabalho docente, a participação em comissões de currículo e debates, projetos, eventos, cujo centro da discussão é a formação de profissionais da área de saúde, tem evidenciado que, apesar das particularidades de cada curso (que profissional formar; com que competências; em que cenário sócio-cultural; em que espaço tempo-histórico; para qual mercado de trabalho; com qual currículo), existem questões significativas que dizem respeito ao conjunto dos cursos de formação dos profissionais da área, tais como a fragmentação; o tecnicismo; a separação da formação em “ciclo básico” e “ciclo profissionalizante”; a ênfase na “transferência do conhecimento” do “teórico para o prático”; o descompromisso com os serviços de saúde e com a população usuária desses serviços (Paim, 1994). Além destas, outras questões que têm recebido pouca atenção nos questionamentos à formação e, conseqüentemente, na proposição de experiências curriculares, são os processos relacionais/comunicacionais inerentes à prática profissional, incluindo-se, aí, a multiprofissionalidade, intersetorialidade e interdisciplinaridade que atravessam o campo da saúde.

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Questões como estas demandam uma discussão mais global dos currículos da área, posto que elas estão diretamente relacionadas às formas de se conceber saúde e educação. O trabalho em comunidades foi tomado como referência para o estudo, por ser este um espaço privilegiado de representação da realidade sanitária e social do País, no qual as questões supracitadas ficam bastante evidenciadas. A comunidade caracteriza-se por ser um espaço em que cruzam diversas referências que vão dar origem a saberes distintos daqueles que circulam nas instituições onde, tradicionalmente, as práticas dos cursos da área de saúde ocorrem. A reflexão sobre o exercício de compartilhar experiências e saberes no trabalho cooperativo pode contribuir para que a universidade repense suas práticas e, assim, encontre novos eixos para os seus currículos, ofertando, aos futuros profissionais, oportunidades de práticas para além de um saber eminentemente técnico. Assim, sentimentos, atitudes, cooperação, solidariedade e responsabilidade social estarão envolvidos num mesmo propósito, colocados como elementos necessários ao processo de aprendizagem (Fróes Burnham, 2000; Ayres, 2002). Uma das principais motivações para o estudo foi buscar formas de mudanças nos currículos de graduação que não se pautassem apenas na definição e fixação a priori de diretrizes normativas, traduzidas em seqüências rígidas de atividades, às quais os professores e estudantes devem se submeter. Esta busca está referida principalmente às dificuldades encontradas no trabalho em “comissões de currículo”, nas quais se percebe que a insistência no imperativo da necessidade de mudar o currículo como um todo e de uma só vez, muitas vezes cria mais “resistências” do que “adesões”. Compartilhando dessa preocupação, Fróes Burnham (2000) argüi que pensar o currículo de graduação como um objeto estático e totalmente planejado a priori deixa de ter razão ou sentido na contemporaneidade, em que as grandes e velozes transformações do conhecimento e da tecnologia influem diretamente na organização do trabalho, aqui se inclui o de saúde, que a cada dia se torna mais complexo, heterogêneo e mutável. Esse processo faz com que os cenários estabelecidos para a realização do trabalho envelheçam rapidamente. Pensar em currículos mais sensíveis às necessidades do trabalho, às demandas localizadas, significa o desenvolvimento de uma capacidade de escuta às práticas curriculares nos espaços em que elas ocorrem e a outros espaços sociais em que se aprende saúde, como fonte de questionamentos e de demandas para o processo de formação. Esta compreensão tem na noção de “espaços de aprendizagem” um importante norte. Fróes Burnham (2000) denomina como “espaços de aprendizagem”, aqueles locais que articulam, intencionalmente, processos de aprendizagem (produção imaterial de subjetividades e conhecimentos – escolas, universidades, institutos de pesquisa) e de trabalho (produção material de bens e serviços – locais de trabalho, agências de serviços, grupos culturais, ações de movimentos políticos e sociais). Para a autora, está existindo, cada vez mais, uma interpenetração entre estas duas formas de organizações de aprendizagens. A necessidade de uma permanente interação entre as organizações

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especialistas e as não especialistas em aprendizagens tem demandado mudanças nas formas de a universidade se relacionar com outros setores da sociedade. Um dos grandes desafios para isto tem sido o de identificar objetivos comuns e explorar novas formas de parceria e de instituição de espaços de aprendizagem necessários aos processos de formação demandados na contemporaneidade. Uma das justificativas para que a universidade aceite este desafio é o de que o confronto entre as visões de mundo na universidade e as visões encontradas em outros espaços sociais contribui para a formação de novos conhecimentos, saberes e novas idéias para a solução de problemas reais e, reflexivamente, para a concepção de novas formas de construir currículos (Fróes Burnham, 2002). As práticas curriculares dos cursos de graduação da área de saúde são realizadas em diversos espaços (hospitais, postos e centros de saúde, creches, asilos, espaços da comunidade, além daqueles da própria universidade, como a sala de aula, laboratórios, bibliotecas, entre outros). Cada um deles constitui-se como espaço de inter-relacionamentos distintos que, conseqüentemente, produzirão, também, aprendizagens distintas. Entretanto, o reconhecimento da autonomia (relativa) desses espaços, como locais de articulação de novas aprendizagens e da socialização/produção de novos conhecimentos, não parece muito claro nas formas tradicionais de organização dos currículos. Para autores como Fróes Burnham (2000) e Young (2000), o que define o sentido da formação profissional é, predominantemente, a relação que se estabelece, nos espaços em que se materializa a educação. Essa maneira de conceber a formação amplia a idéia de aprendizagem para além daquelas estritamente escolares. Pensar em organizações curriculares, tomando como base a concepção de “espaços multirreferenciais de aprendizagem” significa, antes de tudo, o reconhecimento de que os processos de acesso, construção e socialização do conhecimento não ocorrem, apenas, no espaço da escola e nem com base nas formas tradicionais veiculadas pelo sistema escolar. Nesse contexto, o conceito de aprendizagem tende a se ampliar cada vez mais, e a noção de espaços articuladores dessas aprendizagens torna-se fundamental para a criação de novas formas de inteligibilidade e legitimidade dos conhecimentos produzidos. Na concepção de Young (2000), uma transformação efetiva na forma de conceber o currículo só ocorrerá quando houver mudanças nas relações entre os teóricos da universidade e aqueles acerca dos quais teoriza. Para o autor, um caminho para isto seria o estabelecimento de vínculos mais explícitos entre o aprendizado no trabalho, na comunidade e o aprendizado nas salas de aula. Young vê isso como um reconhecimento de que boa parte das mudanças curriculares não terão, necessariamente, início nas escolas ou nas universidades, mas em outros espaços sociais. Um maior vínculo entre a universidade e outros espaços da vida social, poderia, na percepção do autor, oferecer o contexto para o desenvolvimento de teorias com maior base prática, bem como de práticas com melhor base teórica. Metodologia Observar em que medida a “saída” da universidade do seu espaço físico/

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Estágio Curricular em Rede Básica (Escola de Enfermagem), Odontologia em Saúde Coletiva (Faculdade de Odontologia) e Introdução à Medicina Social (Faculdade de Medicina).

Além das práticas das disciplinas analisadas, foram também incluídas aí ações de programas como o Projeto UNI (Uma nova iniciativa em saúde – financiado pela Fundação Kellogg), do “UFBA em Campo” e da “Atividade Curricular em Comunidade”, ambos propostos e coordenados pela PróReitoria de Extensão da UFBA. Estes programas, apesar de não fazerem parte diretamente do objeto do estudo, tiveram destaque na análise, por terem sido amplamente citados pelos sujeitos da pesquisa. 4

acadêmico para outros espaços da sociedade pode contribuir para interpelação e transformação das formas tradicionais de fazer currículo, trouxe grandes desafios para a realização do estudo. A construção de um referencial de análise que ajudasse a compreender as especificidades da relação entre os espaços das práticas de formação (no caso, o trabalho com comunidades) e a construção de aprendizagens significativas, em uma pesquisa com múltiplos sujeitos, com distintos saberes, interesses e perspectivas sobre o trabalho coletivo entre a universidade e a comunidade, trouxe a necessidade de se lançar mão de várias abordagens identificadas no processo como contributivas para a compreensão do objeto de estudo. Assumir que todo conhecimento humano é relativo, parcial e incompleto foi um aprendizado possibilitado pela incursão no pensamento complexo (Morin, 2000), na abordagem multirreferencial (Ardoino,1998) e na hermenêutica (Heidegger, 1998; Gadamer, 1997). O trabalho de campo foi realizado no período de abril a junho de 2001, por meio de grupos focais e da observação direta. Foram realizados oito grupos focais, três deles com professores (dos cursos de enfermagem, medicina e odontologia - um com cada grupo específico), outros três com estudantes (seguindo a mesma sistemática dos professores). Foram realizados, ainda, grupos com lideranças comunitárias e com agentes comunitários de saúde. O critério para seleção dos professores e dos estudantes foi de estar atuando em ou cursando uma das disciplinas selecionadas para o estudo3 , durante o período do trabalho de campo ou terem dela(s) participado/ cursado até dois semestres antes de 2001. As lideranças comunitárias selecionadas para o estudo foram aquelas que participam mais diretamente no planejamento, acompanhamento e avaliação das atividades dos estudantes na comunidade. Os agentes comunitários convidados foram aqueles que estavam participando, ou que haviam participado recentemente (até um ano antes), de trabalhos com alunos e professores dos cursos envolvidos, em sua área de atuação. Obteve-se a autorização dos participantes mediante assinatura de “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”. No caso dos agentes comunitários de saúde (ACS), foi solicitada também a autorização das enfermeiras supervisoras e da coordenação do distrito sanitário ao qual os ACS estavam ligados. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética interno da Faculdade de Educação da UFBA. Para a análise qualitativa dos dados, foram utilizadas as técnicas de “análise temática” e “análise de enunciação” (Minayo, 1996; Bardin, 1979). Análise e discussão dos resultados A análise do material produzido/recolhido no campo revelou que, na opinião de todos os grupos envolvidos, o maior ganho proporcionado pelo trabalho cooperativo4 foi o processo de construção de vínculos mais sólidos, como parte de um novo compromisso firmado entre a universidade e a comunidade. Neste processo, muitos projetos e objetivos comuns foram construídos. As práticas analisadas podem ser consideradas iniciativas que visam, de alguma forma, repensar a inserção da universidade na sociedade,

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pois representam um contraponto à formação enclausurada de profissionais, e uma tentativa de respostas éticas, solidárias, às críticas e pressões de vários setores da sociedade à universidade pública brasileira. Contudo, questões apontadas pelos representantes das comunidades, estudantes e professores indicam a necessidade de uma permanente reflexão sobre essas práticas para que possam, de fato, contribuir para a instituição de uma universidade mais sensível, cooperativa e produtiva no que se refere à interação com a sociedade. Especificamente no campo da saúde, nos espaços tradicionais da formação, sobretudo nos hospitais e um pouco menos nos centros de saúde, as hierarquias e as rotinas são muito rígidas. A postura autoritária dos profissionais é em grande parte modelada nestes espaços. Daí a necessidade apontada pelos alunos, de participarem de outros cenários favoráveis ao estabelecimento de relações mais simétricas, em que o efetivo compartilhamento de saberes/práticas, inclusive de vivências de problemas, possibilite a busca e a produção de alternativas voltadas para uma maior articulação teoria/prática; academia/serviço que levem também à construção de conhecimentos necessários à solução dos problemas partilhados. Entretanto, a mudança de foco do ensino em relação a estas questões não é um processo que ocorra automaticamente; a tendência observada no estudo foi a de que a universidade, quando toma o “espaço comunidade” como referência para práticas curriculares, o faz, na maioria das vezes, reproduzindo ou tentando reproduzir os modelos prescritivistas e autoritários que a tem caracterizado. Observou-se, nas práticas analisadas, a necessidade da instituição de um “saber escutar antes de intervir”. Este é um aprendizado que requer uma mudança radical no comportamento habitual da universidade de já chegar ensinando, ordenando, classificando, a partir de uma listagem elaborada previamente, de coisas que devem ser observadas e modificadas. A percepção da prática, apenas como local de “reconhecimento” de problemas já traduzidos instrumentalmente, visando ao consumo cognitivo de algum conteúdo, deixa de lado a necessidade de pensar, de desentranhar o sentido de uma experiência nova e os caminhos de uma ação por fazer. Ao se abdicar disso, como lembra Chauí (2001), a tendência é repetir, sempre, os modelos adestrados e tomar a prática como uma aplicação mecânica desses modelos sob a forma de táticas e estratégias. A própria idéia da ação como práxis social pode se transformar em pura técnica de agir circunscrita ao campo do provável e do previsível, isto quando vivemos em uma sociedade que está em constante mutação, em que situações inesperadas e imprevisíveis acontecem freqüentemente. Se temos como prática o costume de apenas nos instalarmos de forma segura em nossas teorias e idéias, que nem sempre têm possibilidade de acolher o novo, teremos muita dificuldade de aprender a enfrentar as incertezas do mundo (Morin, 2000). Aprender a lidar com as incertezas, com o imprevisível, traz a necessidade de um certo “luto” da vontade do “domínio absoluto” do outro, da natureza. A ênfase em problemas e na “transmissão” de informações, ambos sistematizados em outros contextos, fez com que se observasse pouco interesse por parte dos representantes da universidade (estudantes e

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professores) pelo que as pessoas pensam de seus problemas e soluções que buscam espontaneamente, perdendo-se, assim, oportunidades de buscar temas de estudo, de desenvolvimento de novas tecnologias socialmente apropriadas, a partir das soluções encontradas pela população, ou seja, de se buscar novas formas de colaboração, diálogo e interfecundação entre os saberes práticos, tácitos, não sistematizados e saberes sistematizados. Uma outra questão discutida pelos sujeitos da pesquisa foi a excessiva fragmentação disciplinar dos currículos. Este é, certamente, um dos problemas relacionados a currículos escolares mais discutidos atualmente, sobretudo nas universidades. Tomando-se como exemplo os currículos de graduação, observa-se que, na maioria das vezes, as disciplinas são tratadas de modo reificado, como conteúdos estanques, com pouca ou nenhuma interconexão, tanto entre si, quanto em relação ao mundo concreto e à experiência vivida; quando muito, aborda as práticas de trabalho de forma mecânica, vazia de reflexão. Isto não só dificulta ao aluno uma compreensão mais abrangente do saber historicamente produzido pela humanidade, como, também, contribui para reforçar a visão quase que puramente tecnicista e instrumental que tem caracterizado a educação superior (Fagundes & Fróes Burnham, 2001). A fragmentação existente em instituições como a universidade não é casual ou irracional, é deliberada, obedece aos fundamentos do taylorismo que ainda é a regra predominante na organização de nossas instituições (Chauí, 2001). Esta é uma questão fundamental, mas, a nosso ver, não é o único aspecto da fragmentação que precisa ser questionado na formação e no trabalho dos profissionais de saúde; existem outros, cuja tematização e superação é essencial para a transformação desses processos. Um destes aspectos é o da multiprofissionalidade que atravessa este campo. Nas experiências analisadas, não foi observado nenhum esforço de contribuir para o aprofundamento das questões relacionadas ao tema. Este “silêncio” é surpreendente, dada a ênfase que a temática, juntamente com a interdisciplinaridade e a intersetorialidade, vêm tendo nas discussões e propostas de mudanças curriculares na área da saúde. Um dos prováveis motivos deste “silêncio”, na percepção de Peduzzi (1998), é o não compartilhamento da qualidade interativa do trabalho entre os profissionais de saúde. Para a autora, falta a esses profissionais a percepção de que estão trabalhando em interação. E, à medida que não concebem o trabalho como instância interativa, buscam apenas na autonomia técnica individual a possibilidade de se expressar como sujeitos da ação. Assim, a interdependência que existe entre o trabalho dos diversos atores deixa de ser contemplada. O ensino na graduação em enfermagem tem possibilitado a percepção in loco da pouca articulação no conjunto da assistência à saúde prestada à população, devido, em grande parte, à desintegração entre os profissionais cuidadores. Essa falta de integração é, também, percebida na formação. Nesse campo, percebe-se, ainda, uma carência muito grande de projetos que visem encontrar formas de superar a fragmentação do cuidado em saúde. O isolamento e o confinamento de cada curso em si mesmo contribui para que os futuros profissionais não percebam a interação de seu trabalho com o dos

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demais trabalhadores da área e de outros setores da sociedade, perdendo-se, assim, como apontam Almeida e Mishima (2001), a oportunidade de formar profissionais mais comprometidos com a superação do “modelo de atenção desumanizado, fragmentado, centrado na recuperação biológica individual e com rígida divisão do trabalho e desigual valoração social dos diversos trabalhos” (p. 151). Uma outra “demanda” que o trabalho com comunidade traz para o processo de organização curricular, é a necessidade de uma valorização mais explícita dos saberes (re)construídos na experiência. Os saberes da prática têm uma relação direta com a interação entre as pessoas. Os estudantes referiram-se a diversos tipos de saberes (aprendizagens) articulados nesse processo que podem ser elencados como: 1) melhor capacidade de comunicação (falar e escutar), incluindo-se aí o esforço de encontrar formas para “driblar” a assimetria naturalmente existente entre a linguagem técnica e a linguagem popular; 2) aprender a se relacionar e a acolher o outro; 3) perceber que a população tem seus próprios saberes, portanto a não presumir sempre a ignorância do outro nas questões de saúde; 4) gerir situações que ocorrem no cotidiano do trabalho; 5) resolver problemas criativamente; 6) atentar para uma prática profissional humanizada; 7) compreender de forma mais ampla os limites e as possibilidades da atuação profissional. Estes são aprendizados que, na maioria das vezes, não tinham sido previstos nos objetivos das disciplinas, o que sugere que os professores não lhes prestam muita atenção, mas que os estudantes dão muita ênfase. Práticas que facilitem a conciliação entre conhecimentos teóricos e conhecimentos forjados na experiência é fundamental para o desempenho dos profissionais de saúde. Tomar decisões que afetam a vida de outras pessoas faz parte da rotina desses profissionais. Neste processo, participam saberes éticos, técnico/científicos e em grande parte saberes da experiência (Bernadou,1996). Os saberes da experiência (implícitos, tácitos) na concepção de Therrien (1997) são aqueles que verdadeiramente orientam a prática, daí sua grande importância no processo de formação. A reflexão sobre as aprendizagens da prática, a fim de que essas possam ser compartilhadas, tornadas explícitas, requer, como fala Pozo (2002), um planejamento de atividades com esta finalidade, ou melhor, requer que a aprendizagem seja, de fato, objeto de preocupação e estudo nos currículos escolares. Conclusões De acordo com o que foi discutido pelos sujeitos da pesquisa e o diálogo com os outros autores convocados para a reflexão, pode-se concluir que a instituição de formas de “escuta” às práticas poderá trazer subsídios para que a universidade encontre novos eixos para seus currículos, visando à formação de cidadãos socialmente responsáveis e com capacidade de reflexão sobre seu próprio trabalho. Sem esse processo de “escuta”, de reflexão, dificilmente ocorrerão mudanças significativas nos processos de formação. Discutir e praticar formas de mudanças nos currículos que não se pautem apenas pela definição e fixação a priori de diretrizes normativas, traduzidas

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DISCUTINDO A RELAÇÃO ENTRE ESPAÇO E ...

em seqüências rígidas de atividades às quais professores e estudantes devem se submeter, é um norte a ser seguido se se quer contribuir para a instituição de uma universidade que intercambia conhecimentos, que acolhe outras visões de mundo, que se preocupa com os problemas do contexto social no qual está inserida. Em face às incertezas do mercado de trabalho e à volatilidade das informações profissionais que ele reclama, considera-se, como Sousa Santos (1997), que é cada vez mais importante desenvolver com os estudantes uma formação cultural sólida e ampla, quadros teóricos/analíticos gerais, uma visão global do mundo e de suas transformações, de modo a desenvolver o espírito crítico, a criatividade, a disponibilidade para inovação, o desejo de aprender, a atitude positiva perante o trabalho individual e em equipe e a capacidade de negociação que os preparem para enfrentar, com êxito, as exigências cada vez mais sofisticadas do mundo do trabalho. É, neste sentido, que Demo (1998) chama a atenção para o lugar simbólico que a universidade ocupa, do qual ela pode enxergar a possibilidade, a força e o valor estratégico de espaços diferenciados de aprendizagem que, ao serem vivenciados, ativam o potencial transformador dos sujeitos implicados, na direção de um entendimento da relevância do conhecimento como algo que não apenas conhece as coisas, e sim como algo que pode mudar as coisas. Repensar o currículo, significa, sobretudo, o desenvolvimento de uma nova relação com o saber. Neste contexto, o professor não pode ser visto apenas como distribuidor e os alunos, como receptores do que foi produzido alhures. Uma outra relação com o saber implica, necessariamente, uma redefinição profunda desses papéis. As questões da relação pedagógica, do compartilhamento dos saberes, do trabalho crítico e reflexivo sobre o conhecimento é que definirão, segundo Nóvoa (2000), mudanças significativas nos currículos e na universidade como um todo. Referências ALMEIDA, M.C.P.; MISHIMA, S.M. O desafio do trabalho em equipe na atenção à Saúde da Família: construindo “novas autonomias” no trabalho. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v. 5, n. 9, p.150-3, 2001. ARDOINO, J. Abordagem multirreferencial (plural) das situações educativas e formativas. In: BARBOSA, JG. (Org.) Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p.24-42. AYRES, J.R.C.M. Práticas educativas e prevenção de HIV/AIDS: lições aprendidas e desafios atuais. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v. 6, n.11, p.11-23, 2002. BERNADOU, A. Savoir théorique et savoir pratiques. L’exemple medical. In: BARBIER, J. M. (Dir) Savoirs thériques et saviors d’action. Paris: PUF, 1996. p.65-84. CHAUÍ, M.S. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora UNESP, 2001. DEMO, P. Extensão como pesquisa. UFBA em campo 1996-1998: uma experiência de articulação ensino/ pesquisa e sociedade. Universidade Federal da Bahia, Pró-Reitoria de Extensão, p.19-22, 1998. FAGUINDES, N. C. Em busca de uma universidade outra: a instituição de “novos” espaços de aprendizagem na formação de profissionais de saúde. 2003. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador. FAGUNDES, N.C; FRÓES BURNHAM, T. Transdisciplinaridade, multirreferencialidade e currículo. Rev.

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FAGUNDES, N.C.; FRÓES BURNHAM, T

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FAGUNDES, N.C.; FRÓES BURNHAM, T. Discutiendo la relación entre espacio y aprendizaje en la formación de profesionales de la salud , Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.105-14 , set.2004/fev.2005. Discute la relación entre espacio y aprendizaje, como una forma de pensar modificaciones o innovaciones curriculares a partir de demandas surgidas en la práctica. Analiza experiencias con comunidades desarrolladas por los cursos de enfermería, odontología y medicina. La metodología tiene como sustratos las teorías de la complejidad y de la multireferencialidad. El análisis les reveló importantes aprendizajes a los sujetos y trajo la cuestión de que no basta definir nuevos locales de enseñanza, es necesario ejercitar la reflexión sobre la práctica, para que esta pueda ser una referencia para la interpelación y la transformación de las formas tradicionales de concebir el currículum. Reveló, también, que repensar el currículum significa el desarrollo de una nueva relación con el saber, que implica cambios en las relaciones entre la universidad y los diversos saberes existentes y en la valorización del aprendizaje reconstruido en la experiencia. Como conclusión, se destaca que la universidad debe instituir “escuchas” de las prácticas desarrolladas e invertir en una formación cultural sólida y crítica de los estudiantes. PALABRAS CLAVE: Curriculum; formación; espacio; aprendizaje; educación médica. Recebido para publicação em 18/05/04. Aprovado para publicação em 30/09/04.

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Programas de prevenção ao consumo de drogas no Brasil: uma análise da produção científica de 1991 a 2001* Bianca Canoletti 1 Cássia Baldini Soares 2

CANOLETTI, B.; SOARES, C. B. Drug consumption prevention programs in Brazil: analysis of the scientific production from 1991 to 2001, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.115-29, set.2004/fev.2005.

This study deals with drug-consumption prevention programs. It presupposes that in Brazil, mainly during the 90s, important changes occurred in prevention practices. Systematic analysis of scientific production on drug prevention programs may contribute to the evaluation of these practices in favor of both critical analysis as well as the proposition of new projects. The objective of this study was: to select and analyze studies published in Brazil, whose object was drug prevention during the period from 1991 to 2001. Methodology was based on two procedures: 1) a bibliographic survey from on-line data bases, using the key-words drug and prevention; 2) analysis of selected studies according to: type of publication; study objective; theoretical approach and characterization of key elements of the projects. Results revealed that most of the selected studies aimed to orient drug prevention, using an approach that tends to draw closer to the conceptions and strategies of the harm reduction approach in different degrees. The publications that are concerned with the development of projects are mainly from the Rio-São Paulo axis; approximately half utilize epidemiological studies or their own mechanisms of evaluation; most aim at providing information for both students and teachers. KEY-WORDS: Prevention; drugs; periodicals. Este estudo trata dos programas de prevenção ao consumo de drogas. Parte-se do pressuposto de que no Brasil, a partir principalmente da década de 1990, processaram-se mudanças significativas nas práticas de prevenção. A análise sistemática da bibliografia pode contribuir com a avaliação dos rumos que essas práticas vêm tomando e favorecer a crítica e a formulação de novos projetos. O objetivo deste estudo foi: levantar e analisar os trabalhos publicados no Brasil, cujo objeto é a prevenção ao consumo de drogas no período de 1991 a 2001. A metodologia compreendeu dois procedimentos: levantamento bibliográfico em bancos de dados on-line, utilizando-se o descritor: prevenção de drogas e análise dos trabalhos selecionados, segundo: tipo de publicação; objetivo do trabalho; abordagem teórica e caracterização de outros elementos internos ao desenvolvimento dos projetos de prevenção propriamente ditos. Os resultados mostraram que a maior parte dos textos selecionados objetiva fornecer orientações para a prevenção, utilizando uma abordagem que tende em graus diferentes às concepções e estratégias da abordagem de redução de danos. Os trabalhos que dizem respeito ao desenvolvimento de projetos encontram-se majoritariamente no eixo São Paulo-Rio; cerca de metade vale-se de estudos epidemiológicos ou de mecanismos de avaliação próprios; a maior parte visa fornecer informações a estudantes e professores. PALAVRAS-CHAVE: Prevenção; drogas; publicações periódicas.

*

Artigo elaborado a partir de projeto de pesquisa financiado pelo CNPq (Proc. 016419/2002-2).

Enfermeira, Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. <biacanoletti@uol.com.br> 1

2

Professora, Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. <cassiaso@usp.br>

1

Rua Henri Martins, 35 Vila São Remo - São Paulo, SP 05.864-070

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Introdução A complexidade e a magnitude do problema contemporâneo do consumo de drogas no Brasil têm sido discutidas por diferentes setores da sociedade civil e do Estado (Brasil, 2003). Uma primeira análise das ações que vêm sendo tomadas para compreender e solucionar o problema mostra duas grandes fases: até o advento da Aids, quando o Brasil se caracterizava pela ausência quase total de pesquisas e pela inadequação de programas de prevenção ao consumo de drogas; e após a constatação da epidemia da Aids, quando os programas de prevenção à transmissão do HIV passaram a preocupar-se com o compartilhamento de materiais para o uso de drogas injetáveis - um dos modos de transmissão. Assim, o Brasil até os anos 1990 era um país em que pouco se pesquisava sobre esse assunto, tendo a ausência de investigações científicas levado, para além da negligência, a equívocos relacionados à importação de modelos de outras realidades. Embora o consumo de drogas ilícitas no Brasil fosse considerado baixo em relação a outros países, continuava-se a tomar como parâmetro os números, tipos e as realidades de consumo de drogas totalmente diferentes dos nossos (Bucher, 1992; Carlini-Cotrim, 1992). Não havia programas solidamente instituídos, mas ações esparsas e descontínuas de prevenção, que refletiam o descaso do Estado e os equívocos e o desânimo das instituições públicas para tratar do tema (Bucher, 1992; Carlini-Cotrim, 1992; Soares, 1997; Noto & Galduróz, 1999). Numa segunda fase, quando as preocupações com a disseminação da Aids aumentaram no Brasil, procurou-se incluir nos programas de prevenção à Aids a atenção a usuários de drogas, principalmente injetáveis. Assim, no período de 1994 a 1998 começou a ser implantado no país o programa Aids1, de responsabilidade da Coordenação Nacional de DST/Aids (CN-DST/Aids) do Ministério da Saúde, com ações que visavam conter a crescente epidemia de transmissão do HIV, utilizando-se basicamente de ações educativas, componentes de três linhas de atividades: formação de professores à distância (Projeto “Prevenir é sempre melhor”), formação de adolescentes multiplicadores e formação presencial de professores e alunos em dez capitais brasileiras, com o “Projeto Escolas” (Rua & Abramovay; 2001). A partir de 1999 até 2002 teve início a fase 2 do programa ministerial para Aids (Aids-2) na esfera estadual, abrangendo projetos de prevenção já existentes. Por outro lado, nessa segunda fase, sofreu-se influência da Europa que já reequacionava os objetivos da prevenção ao consumo de drogas em geral, desde 1972, enfatizando o papel da educação. Desse modo, no ano de 1993, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura) passou a investir em projetos que visavam a “educação preventiva contra o abuso de drogas”; o principal exemplo é o PEDDRO - Projeto Prevenção, Educação e Drogas, em parceria com a Comissão Européia, que enfoca a informação, formação de pessoal e o intercâmbio de conhecimentos, considerando a escola, a família e a comunidade os lugares privilegiados para uma ação preventiva (Castro & Abramovay; 2002). Para complementar, com a intensificação do processo de globalização econômica e de incorporação dos preceitos neoliberais na América Latina e particularmente no Brasil, vem ficando cada vez mais evidente a face violenta

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PROGRAMAS DE PREVENÇÃO AO CONSUMO DE DROGAS...

do narcotráfico e seus vários braços, como o tráfico de armas e a formação de quadrilhas. O Estado não imprime esforços no sentido de adequar a distribuição de renda e garantir os direitos sociais, aumentando, assim, a parcela de marginalizados. As conseqüências são sempre mais perversas nos bairros pobres, que constituem os setores privilegiados de recrutamento de narcotraficantes e de consumidores (Kaplan, 1997). Estudos (Zaluar, 1994; 1996) chamam a atenção para o fato de que os jovens de periferia contraem dívidas, envolvem-se em grupos de distribuição de drogas e outras formas de criminalidade e violência. Para agravar, argumentam, é justamente nesses espaços que a corrupção policial é maior e a polícia detém, na prática, o poder de determinar a diferença entre o traficante e o consumidor de drogas. Por todos esses motivos, ocorre o que Becker (apud Zaluar, 2002) denomina de motivação do ato desviante, ou a revolta do agente contra a ordem social e o jogo político que se apresenta, facilitando seu encontro com a droga, o tráfico e a violência (Velho, 1994; Zaluar, 2002). Pesquisa avaliativa de âmbito nacional, das ações vinculadas ao binômio prevenção de DST/Aids e uso indevido de drogas em ambiente escolar, enfoca indicadores relacionados ao consumo de drogas injetáveis; mostra o predomínio de palestras e a focalização em disciplinas específicas entre as atividades de prevenção; e aponta a ausência de gestão e de institucionalização das ações, demonstrando a persistência de padrões inconsistentes nos programas e recomendando, no caso específico da prevenção ao uso indevido de drogas, reforços no esclarecimento dos jovens quanto ao uso de drogas lícitas e ilícitas (Rua & Abramovay; 2001). Este estudo tem a finalidade de colaborar com o conhecimento do conteúdo efetivo das mudanças nas práticas de prevenção ao consumo prejudicial de drogas no Brasil que vêm ocorrendo nos últimos anos, notadamente no período que se seguiu ao advento da aids e à promulgação do Sistema Único de Saúde e do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, que operacionalizam o direito à saúde e o direito das crianças e adolescentes à proteção social. Considerando-se que a análise sistemática da bibliografia referente aos programas de prevenção desenvolvidos no Brasil possa contribuir para a avaliação dos rumos que as práticas relacionadas têm tomado e portanto favorecer a crítica e a formulação de novos projetos, os objetivos deste estudo foram: levantar os trabalhos publicados no Brasil, que tomaram como objeto a prevenção ao consumo de drogas, entre os anos 1991 e 2001; analisar os trabalhos relacionados diretamente ao desenvolvimento de programas de prevenção. Considerações teóricas: o campo da prevenção ao consumo de drogas Neste trabalho, considera-se que a droga é uma mercadoria e que o consumo de drogas deve ser analisado à luz da estrutura e dinâmicas do modo de produção capitalista, que conformam os contextos da sociedade contemporânea. Assim, trata-se de reconhecer que o consumo de drogas está submetido às possibilidades de reprodução social dos indivíduos,

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famílias e classes ou grupos sociais, bem como reflete as conseqüências das políticas sociais públicas adotadas pelo Estado. Portanto, a política e os programas de prevenção ao consumo de drogas deveriam estar voltados tanto para mudanças em contextos de socialização e interação dos indivíduos, delimitados e específicos a sua condição de classe, quanto para mudanças estruturais mais gerais que melhorem a distribuição da renda e o acesso aos bens socialmente produzidos (Soares, 1997). Toma-se também como referência teórica neste trabalho uma abordagem educacional emancipatória, considerada potente para formar sujeitos com capacidade crítica, habilitados para propor mudanças, capazes de refletir sobre suas escolhas e não resignados a aceitar, como único caminho, aquele do prejuízo relacionado ao consumo de drogas (Soares, 1997). Nesse sentido, concorda-se aqui com os autores que defendem que os programas de prevenção deveriam seguir princípios de valorização da vida, muito mais do que exercitar olhares moralistas e repressivos (Bucher, 1992; Brasil, 1994), fortalecendo, com isso, os indivíduos e grupos sociais para compreender a teia causal do consumo de drogas (Soares, 1997), que compõem uma parcela da vertente crítica à política da guerra ou combate às drogas, que reúne especialistas de diversas áreas em torno da tendência à adoção de estratégias de redução de riscos/danos (Bastos, 1996). A literatura mostra, no entanto, que historicamente o modelo de prevenção hegemônico tem sido o do combate ou guerra às drogas, modelo que teve sua maior expressão por volta de 1989, nos Estados Unidos, sob o governo de George Bush que afirmava que a prioridade dos programas de prevenção era reduzir nacionalmente o consumo global do uso de drogas – o primeiro uso, o uso ocasional, o uso regular e os quadros de dependência. Segundo documento divulgado em 1989, os usuários ocasionais de drogas são considerados contaminantes dos não usuários, e por isso um perigo nacional (Carlini-Cotrim, 1992). Nessa abordagem, para alcançar o único objetivo – abstinência de qualquer consumo de drogas ilícitas - são propostas: a persuasão moral, que intenta que os indivíduos não “queiram” usar drogas, e a repressão, que objetiva que os indivíduos temam as conseqüências, principalmente legais, deste consumo. Finalmente, esta ideologia concentra em si a idéia de intolerância, o desejo de banir completamente as drogas ilícitas da sociedade (Carlini-Cotrim, 1992). Uma revisão mostra que a abordagem de redução de riscos/danos, apesar de ter origem em práticas que remontam a 1926, na Inglaterra, foi abandonada por longo tempo, somente ressurgindo no cenário da saúde pública por conta da epidemia da Aids. Esse modelo pondera que se o consumo de drogas é impossível de ser eliminado por completo, a melhor maneira de agir seria reduzindo os problemas que podem surgir em decorrência. Ainda, pela ótica da redução de riscos/danos, as drogas lícitas como álcool, tabaco e medicamentos são as que acarretam mais problemas à sociedade, devendo ser também objeto da prevenção (Soares, 1997). Além disso, Carlini-Cotrim (1992) chama a atenção para a ponderação de alguns defensores dessa perspectiva, de que não se deveria interferir no direito que o cidadão tem sobre seu próprio corpo. Em tese, o uso de drogas

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PROGRAMAS DE PREVENÇÃO AO CONSUMO DE DROGAS...

propriamente dito não necessariamente interferiria negativamente sobre a sociedade. Sendo assim, a competência do Estado sobre o consumo de drogas deveria circunscrever-se às ações que interferem diretamente na sociedade, isto é, os danos relacionados à saúde e à violência principalmente. Portanto, seria sobre esses danos, e não sobre o arbítrio dos cidadãos sobre si mesmos que deveriam recair as políticas de prevenção ao uso de drogas; o que se configuraria em programas realistas, eficientes, eticamente corretos, e providos de credibilidade. A história brasileira dos programas de prevenção de drogas mostra nítida aderência à abordagem de guerra às drogas, embora mais recentemente algumas práticas mostrem-se simpáticas à perspectiva da redução de riscos/ danos, agregando-se em maior ou menor grau aos pressupostos, à ideologia, aos objetivos e às estratégias desse movimento (Soares & Jacobi, 2000). As avaliações dos programas delineados a partir da abordagem da guerra às drogas mostram clara ineficiência e pelo contrário suscitam a curiosidade e leviandade no trato de um assunto tão complexo (Carlini-Cotrim, 1992; Bucher, 1992). Já quando se fala em avaliação de programas de redução de riscos/danos esbarra-se em políticas públicas de saúde, na legislação e na própria realidade do local (Soares, 1997). Além de sua importância na avaliação dos programas de prevenção ao consumo de drogas, o conhecimento da realidade local é imprescindível para o sucesso de qualquer ação, uma vez que determina as estratégias que devem ser utilizadas (Soares & Jacobi, 2000). A participação dos jovens na elaboração e desenvolvimento das ações de prevenção pode tornar os programas mais atraentes, diminuindo o risco de sua inoperância. A participação dos jovens reflete-se na responsabilidade destes perante as ações que desenvolvem, bem como perante seus pares, conferindo um tom realista à prevenção. Merece atenção especial sua participação como multiplicadores por ser uma prática que inadvertidamente pode responsabilizar o jovem por desenvolver um trabalho que cabe ao Estado, no qual ele entra como colaborador e não como trabalhador (Soares & Jacobi, 2000). Procedimentos metodológicos Este estudo constitui pesquisa bibliográfica (Gil, 1991), realizada em bancos de dados disponíveis on line, utilizando o descritor prevenção de drogas, aceito pelo sistema Ciências da Saúde adotado pela BIREME. Foram utilizadas, ainda, palavras-chave de significado próximo ao descritor, na intenção de resgatar os trabalhos que, embora tratassem da prevenção de drogas, não estivessem utilizando descritores padronizados (projeto de prevenção de drogas, programas de prevenção de drogas, substâncias psicotrópicas). Os bancos de dados pesquisados foram basicamente três: CEBRID – Centro Brasileiro de Estudos sobre Drogas Psicotrópicas, DEDALUS – Banco de Dados Bibliográficos da USP, e Biblioteca Virtual em Saúde. A Biblioteca Virtual em Saúde é composta, por sua vez, por diversos outros bancos de dados, dos quais foram utilizados: LILACS – Literatura Latino-Americana e do Caribe em Saúde Pública, ADSAÚDE – Administração de Serviços de Saúde,

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CANOLETTI, B.; SOARES, C. B.

MS – Acervo da Biblioteca do Ministério da Saúde, FSP – Acervo da Biblioteca da Faculdade de Saúde Pública da USP, e ENSP – Acervo da Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública. Após o levantamento, foi realizada leitura exploratória da bibliografia, selecionando-se os artigos pertinentes ao objeto pesquisado com base nos seguintes critérios: ano de publicação entre 1991 e 2001; publicação não restrita a resumo; referir-se a drogas psicoativas (lícitas ou ilícitas) e não a outras drogas; não se tratar de texto da área de tratamento ou da área de classificação de drogas; não se tratar de catálogo; estar publicado em língua portuguesa, referindo-se a aspectos brasileiros. O passo seguinte à seleção dos artigos foi classificá-los segundo ano e tipo de publicação, isto é, se se tratava de artigo de revista, manual ou documento oficial, manual não oficial, livro ou capítulo, dissertação, tese, entre outros. A seguir, foi realizada leitura analítica dos textos selecionados, classificando-os segundo a abordagem em que se baseavam. Foram utilizadas quatro categorias para proceder a essa classificação: combate ou guerra às drogas, redução de riscos/danos ampla, transição e redução de danos para prevenção da Aids (Quadro 1). A construção dessas categorias baseouse no estudo de Soares & Jacobi (2000). Embora voltada à área de tratamento, não se pode deixar de fazer alusão também à publicação de Moreira & Silveira (2003), que compara a política de guerra às drogas ao movimento da redução de danos, a partir de uma síntese realizada por outros autores.

Quadro 1 - Categorias de análise da bibliografia segundo a abordagem utilizada na prevenção. São Paulo, 2003. Combate ou guerra às drogas

A droga é considerada causa dos problemas dos indivíduos; idealiza-se uma sociedade livre de drogas, aceitando-se somente a abstinência como meta; as informações são tendenciosas; os métodos são alarmistas, amedrontadores e generalizadores; responsabiliza-se o indivíduo pelo consumo e se requer exclusivamente dele os esforços para mudança de comportamento.

Redução de riscos/ danos ampla

Crítica explícita à política de guerra às drogas; a demanda e a oferta de drogas lícitas ou ilícitas fazem parte do processo histórico e social contemporâneo; os objetivos da prevenção abrangem qualquer avanço que minimize os prejuízos que possam advir do consumo de drogas; admite-se diferentes tipos de uso; a educação deve despertar a crítica, com projetos de fortalecimento dos indivíduos e grupos ou classes sociais; os métodos são participativos e inclusivos; os projetos são específicos para cada situação.

Transição

O uso de drogas é em geral tomado como disfuncional, multifatorial e identificado com os pressupostos da prevenção primária; há superposição de perspectivas teóricometodológicas; objetiva-se prevenir ao mesmo tempo o uso, o uso indevido ou o abuso; apresenta comunalidades com a abordagem da redução de risco/danos, principalmente no que se refere à: aceitação de que o consumo de drogas é histórico e processual; utilização de informação científica e ênfase na formação educacional e na utilização de métodos participativos.

Redução de danos aplicada à aids

O objetivo central é a prevenção da transmissão do HIV pelo compartilhamento de material de uso de drogas injetáveis.

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Os textos também foram classificados segundo o objetivo a que se propunham: orientação para a prevenção (artigos de reflexão e análise) ou relato do desenvolvimento de projeto de prevenção (artigos de estudo de caso, em qualquer fase), conforme descrito no quadro 2. Quadro 2 - Categorias de análise da bibliografia segundo o objetivo da publicação. São Paulo, 2003. Orientação

A linha mestra é a análise crítica acerca da prevenção de drogas, orientações e propostas para o desenvolvimento de programas.

Desenvolvimento do projeto

Diz respeito àqueles textos que descrevem projetos de prevenção em fase de proposta, implantação, desenvolvimento e/ou avaliação.

Após esta fase classificatória, foram analisados aqueles estudos que tratavam do desenvolvimento de projetos de prevenção propriamente ditos. Essa análise abrangeu aspectos como local e ano de implantação do projeto, população a que o projeto se destinava, estratégias adotadas, presença de estudo epidemiológico prévio, inclusão da formação de multiplicadores, processo de avaliação, e ainda se havia proposta de distribuição de materiais preventivos, como agulhas, seringas ou preservativos. Resultados e análise Seleção das publicações Dos sete bancos de dados pesquisados, o Lilacs apresentou a maior freqüência de trabalhos mencionados (447 artigos), seguido pelo CEBRID com 241 artigos. No total, foram encontradas 928 menções, sendo selecionados, numa primeira etapa, 194 trabalhos (tabela 1).

Tabela 1 - Distribuição dos trabalhos segundo os bancos de dados consultados. São Paulo, 2002. Bancos de dados on line

Trabalhos encontrados

Trabalhos selecionados

CEBRID DEDALUS LILACS AdSaúde MS FSP-USP ENSP

241 132 447 49 11 42 6

58 36 46 19 9 23 3

Total

928

194

Mediante leitura dos resumos selecionados, eliminaram-se as repetições de artigos provenientes de publicações indexadas em diferentes bancos. Assim, foi possível obter uma lista de 133 publicações para análise e classificação. Conservaram-se as publicações distintas, ainda que, algumas vezes, se referissem ao mesmo projeto. O tipo de publicação mais freqüentemente encontrado foi livro (36 – 27,1%), seguido de artigos de periódicos (23 – 17,3%). Além de dez teses

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CANOLETTI, B.; SOARES, C. B.

ou dissertações (7,5%), também foram encontradas diversas publicações institucionais (documentos oficiais e manuais - 48 – 36,1%). O ano de 1992 foi o que apresentou maior freqüência de textos, com 24 publicações (18%). Já 1998 teve a menor freqüência, com apenas sete trabalhos publicados (5,3%). Objetivo das publicações Os textos selecionados foram requisitados nas respectivas bibliotecas, obtendo-se um total de 122 (92%). Muitos deles, não acessados, encontram-se no acervo da Biblioteca do Ministério da Saúde e aparentemente sugerem orientações para o desenvolvimento de programas de prevenção. Os 122 textos selecionados e obtidos foram primeiramente classificados segundo seu objetivo, a partir de duas categorias distintas (tabela 2). O ano de 1992 apresentou a maior freqüência de publicações com o objetivo de orientação ou análise crítica (21-17,2%). Em contrapartida, a menor produção (3-2,5%) foi constatada no ano de 1991, seguido pelo ano de 2001 (5-4,1%). Já os textos de relato de desenvolvimento de projeto se apresentaram mais freqüentes nos anos de 1993 (4-3,3%) e 1997 (54,1%), sendo que os anos de 1994 e 1998 apresentaram, cada qual, um (0,8%) registro de texto com este objetivo.

Tabela 2 - Distribuição dos textos selecionados segundo objetivo. São Paulo, 2003. Objetivo

N

%

Orientação

94

77

Desenvolvimento do projeto

28

23

Total

122

100

Abordagem que orientou a prevenção A distribuição dos textos analisados conforme a utilização de abordagens preventivas diversas está demonstrada na tabela 3. Pode-se perceber que mais da metade dos textos (63- 51,6%) apresentou-se na categoria transição, e que a abordagem da redução de riscos/danos ampla representou 23,0% do total (28 textos). A categoria redução de riscos/ danos relacionada à prevenção da aids foi apontada em 18,9% dos trabalhos analisados (23). A abordagem do combate às drogas constitui uma minoria (6,6% - 8 publicações) na década de 1990. Tabela 3 - Distribuição dos textos selecionados segundo a abordagem preventiva. São Paulo, 2003.

122

Abordagem

N

%

Transição Redução de riscos/danos ampla Redução de riscos/danos aplicada à aids Combate às drogas

63 28 23 08

51,6 23 18,9 6,6

Total

122

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Características dos relatos de desenvolvimento de projetos Os 28 textos selecionados como relato de desenvolvimento de projeto foram alvo de uma análise mais aprofundada, cumprindo um dos objetivos deste estudo. O Estado brasileiro de origem dos projetos de prevenção ao consumo de drogas que mais se destacou foi São Paulo (oito), seguido pelo Rio de Janeiro (seis). Havia também representação dos Estados do Rio Grande do Sul (dois), e Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, Paraná e Ceará contaram cada um com um relato de projeto. Seis publicações diziam respeito a programas de âmbito nacional desenvolvidos pelo Ministério da Saúde e em uma não havia referência ao local do projeto. No que diz respeito aos componentes de um projeto de prevenção estudo epidemiológico preliminar, objetivo de fornecer algum tipo de informação sobre drogas, participação/formação de agentes de prevenção/ multiplicadores e processo de avaliação formal, em qualquer etapa - a amostra se distribuiu da seguinte maneira: 25 projetos incluíam o fornecimento ou discussão de informação científica sobre drogas em alguma etapa do projeto; 17 indicaram preocupações ou previram atividades de avaliação formal; 15 faziam referência à participação de agentes de prevenção ou à formação de multiplicadores, e 11 dos projetos analisados indicaram ter partido de estudos epidemiológicos preliminares (tabela 4).

Tabela 4 - Distribuição dos projetos segundo menção de seus componentes. São Paulo, 2003. Componentes dos projetos

N 28

Informação sobre drogas Processo de avaliação formal Participação de multiplicadores Estudo epidemiológico preliminar

25 17 15 11

O público-alvo dos projetos localiza-se principalmente na escola, focalizando estudantes (dez) e professores (nove), quase sempre concomitantemente, com poucos envolvendo outros membros da escola, inclusive pais (três), e apenas um desenvolvendo atividades com estudantes universitários. Alguns objetivavam atingir moradores de um determinado território ou “comunidade” (cinco), usuários de drogas injetáveis (seis) ou apenas usuários de drogas (três), profissionais de saúde (quatro) e jovens “de rua” e/ou “em risco” (um). Vale notar que alguns projetos referiram a existência de alguns subprojetos e, nesse caso, todos os subgrupos foram considerados. Os projetos estudados indicaram a utilização de várias técnicas pedagógicas concomitantemente: dinâmica de grupo e discussão empataram em primeiro lugar (oito), seguidas por oficinas (sete). Em terceiro lugar estavam a utilização e elaboração de material informativo e recursos audiovisuais (seis). A aplicação de questionários ou entrevistas foi utilizada por cinco projetos. Jogos e estudo dirigido foram estratégicos em quatro. Em três, cursos, teatros e debates foram também utilizados. Apenas dois

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projetos referiram palestras, e, finalmente, treinamento à distância e rádio foram indicados em um projeto. Por fim, procurou-se reconhecer a estratégia de distribuição de material preventivo. Os materiais distribuídos pelos projetos eram: preservativos (cinco), folhetos informativos (quatro), seringas e agulhas descartáveis (quatro) e hipoclorito de sódio (três). Discussão A busca bibliográfica sobre prevenção de drogas nos bancos de dados atuais mostrou que, apesar de se levantar uma quantidade significativa de artigos, somente uma parcela bastante reduzida diz respeito ao desenvolvimento de projetos de prevenção propriamente dito, alguns deles, inclusive, referindose ao mesmo projeto, como é o caso de algumas publicações de projetos ministeriais ou como é o caso de teses que foram posteriormente publicadas em forma de artigo. Como foi possível observar, o ano de 1992 apresentou a maior freqüência de publicações. Sabe-se que no final da década de 1980 e início dos anos 1990 a discussão social em torno da aids foi bastante fortalecida tanto pela academia quanto pelas ONGs preocupadas com a disseminação do HIV, forçando órgãos governamentais - Ministério da Saúde, especialmente a CN-DST/Aids, criada para conter a epidemia de Aids, e Ministério da Educação - a se posicionarem. Ao mesmo tempo, diversas organizações internacionais passaram a financiar projetos na área de prevenção do HIV relacionada ao uso de drogas, entre elas o Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP), o Banco Mundial, os governos da Alemanha, França e Japão, o Centre for Disease Control (CDC), a Comunidade Européia e a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID). O estudo mostrou que a maior parte das publicações apresentou como finalidade orientar para a prevenção. Apesar de já se ter passado quase uma década, o documento do Ministério da Educação e Cultura (MEC), publicado em 1994, concorda que são raros os trabalhos em que a prevenção ultrapassa o nível da discussão e exortação. A abordagem do combate às drogas – que se deixa transparecer na maior parte das vezes por uma linguagem bélica - representa uma minoria entre as aproximações teóricas e práticas utilizadas nos estudos selecionados, o que provavelmente seja fruto de uma mudança de discurso do Estado e da sociedade civil, principalmente do setor acadêmico, que passa, durante a década de 1990, a censurar tanto os discursos alarmistas e estritamente repressivos, como a redução do problema das drogas a apenas um de seus ângulos – a droga propriamente dita -, negligenciando tanto os contextos sociais que favorecem um uso prejudicial quanto as pessoas que utilizam drogas (Bucher, 1992; Carlini-Cotrim, 1992; Soares & Jacobi, 2000). A significativa freqüência de textos que se encaixaram, em maior ou menor grau, na abordagem aqui denominada de transição e aqueles relacionados à redução de danos – ampla e relativa à prevenção do HIV/Aids - demonstra que pesquisadores e formuladores de políticas passaram a tomar como objeto a crescente epidemia de Aids, o que por sua vez

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fomentou a procura de novas formas de fazer prevenção. Nesse contexto, o consumo de drogas que era visto como a “escolha” de alguns – normalmente marginais -, passou a ser visto como um acompanhante indesejável do HIV, que pode ser transmitido pelo compartilhamento de seringas e por relações sexuais não protegidas (Bastos, 1996). A maioria dos 28 relatos de projetos encontrados no estudo foi desenvolvida no eixo São Paulo - Rio de Janeiro. Isto se deve ao fato de que estes dois Estados representam juntos a maior força econômico-política da federação brasileira e, por conseguinte, onde se encontram o maior número de instituições – universidades, ONGs – do país (UNDCP, 1994). A criação e desenvolvimento de políticas e programas de prevenção ao consumo de drogas, como todas as demais, são conseqüência de decisões políticas, estando, pois, sujeitas a pressões e vulneráveis às reviravoltas políticas (Weiss, 1982). Como resposta ao contexto de pressões internacionais e de grupos organizados no país, com relação principalmente à crescente transmissão do HIV, o Ministério da Saúde passou a se posicionar também perante a necessidade de políticas de prevenção ao consumo de drogas, criando, na década de 1990, a CN-DST/Aids, incumbida de impulsionar o desenvolvimento de um conjunto de projetos, também com relação às drogas (Rua & Abramovay, 2001) - objeto de três dos textos analisados -, e cuja influência está presente na maior parte dos projetos analisados, encontrando apoio nos centros de referência (NEPAD/UERJ, CETAD/UFBa) ou outros núcleos ligados a universidades e a secretarias municipais e estaduais de saúde e educação. O estudo levantou, ainda, a presença de alguns componentes considerados indispensáveis ao desenvolvimento de projetos de prevenção. O primeiro deles diz respeito à realização de estudo epidemiológico preliminar. O planejamento de qualquer programa deve ser baseado na avaliação inicial da situação sobre a qual se pretende interferir, determinando quais ações serão necessárias para atingir as metas propostas e evitando importar dados de realidades diferentes. O levantamento epidemiológico auxilia na avaliação da extensão do problema de acordo com as características da região (MEC, 1994). Conforme foi visto, menos da metade dos programas analisados fizeram referência a um estudo epidemiológico preliminar, estando os demais projetos sujeitos ao descompasso entre a realidade local e os objetivos e as estratégias adotadas. Bucher (1992) discute a importância de se fornecer informação correta sobre drogas. A informação subsidia a reflexão crítica acerca do tema, possibilitando um diálogo aberto e confiável entre os sujeitos da prevenção. Representa um dos componentes dos programas de educação preventiva e não a educação propriamente dita. A informação eficiente é aquela que possibilita uma análise em relação às opções possíveis, quais sejam: o uso racional e responsável de drogas ou os benefícios da abstinência. A informação alarmista e repressiva ou a “pedagogia do terror” mostra-se ineficiente e poderia até mesmo suscitar nos jovens o desejo de desafiar o mal e afrontar o que é proibido (Bucher, 1992; Carlini-Cotrim, 1992). A capacitação e participação de agentes de saúde ou multiplicadores nos projetos é também um componente importante e complexo. Importante

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porque permite que o grupo da população a que o projeto se destina principalmente usuários de drogas injetáveis e jovens adolescentes – possam ser abordados mais diretamente e numa situação de transversalidade, pelos pares (Bastos, 1996). O jovem pode trazer ao projeto problemas reais e soluções concretas; é portanto um sujeito social capaz de mudar o que está instituído (Moraes, 2003). Complexo pois envolve a possibilidade de se incorrer no erro de transferir para o multiplicador a responsabilidade da prevenção, sem no entanto dar subsídios para que este possa desenvolver as atividades. Isso se traduz em dois aspectos: o primeiro diz respeito à falta de apoio financeiro, uma vez que os projetos de multiplicadores são essencialmente destinados a grupos com dificuldade de reprodução social, necessitando trabalhar para ajudar na manutenção da vida (moradia, alimentação, saúde, educação). O segundo aspecto remete à insuficiência da supervisão que visa apoiar os multiplicadores, gerando insegurança no desenvolvimento de suas atividades e um sentimento de que se “aprende mais do que ensina” (Moraes, 2003). Finalmente, é preciso discutir que, apesar da importância do processo formal de avaliação, ele não vem sendo explicitado nas publicações. A avaliação de projetos de prevenção compreende ponderar sobre resultados que serão atingidos a médio e longo prazo, por transformações de difícil mensuração, e deve ser parte integrante do planejamento de qualquer projeto, como atividade constante ao longo das atividades. O processo de avaliação funciona como dispositivo auto-regulador das ações e resultados alcançados ou não, buscando a qualidade e instrumentalizando ações futuras (MEC, 1994; Aggleton, 1995). Além disso, especialistas em avaliação de projetos chamam a atenção para o fato de que futuros financiamentos estão condicionados ao sucesso das atividades avaliadas (Aggleton, 1995). A avaliação fornece ainda argumentos para a continuidade ou desdobramento de determinados projetos, como foi o caso dos Aids-1 e Aids-2, financiados pelo governo brasileiro e Banco Mundial (Rua & Abramovay, 2001). A maioria dos projetos analisados tem por objetivo atingir a escola (alunos e professores), influenciados pela produção importante de especialistas que advogam o espaço escolar como privilegiado para o desenvolvimento da educação preventiva (Bucher, 1992; Carlini-Cotrim, 1992; Soares, 1997). Desde 1994 o Ministério da Saúde, especialmente a CN-DST/Aids e área de saúde mental, e o MEC procuram desenvolver atividades preventivas nas escolas (Rua & Abramovay, 2001). Há projetos voltados à população em geral, atendendo recomendação do MEC (1994), que considera a atuação, para além da escola, em outros espaços de socialização no bairro. Outros projetos envolvem profissionais de saúde que teriam como responsabilidade fornecer informações corretas e imparciais acerca da questão, influenciando negativa ou positivamente na determinação da iniciativa do usuário de drogas em procurar auxílio, se achar pertinente, questões hoje reconhecidas pela política oficial (Brasil, 2003). Constatou-se que as técnicas mais amplamente utilizadas pelos projetos analisados foram aquelas que buscam problematizar o consumo de drogas e levar a uma reflexão crítica, desmistificando o mal da droga em si e auxiliando na tomada de decisão segura, sadia e informada, de acordo com o contexto

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específico de cada sujeito, conforme defendido por especialistas (Bucher, 1992; Carlini-Cotrim, 1992; Brasil, 2000). Diferentemente, Rua e Abramovay (2001), ao analisarem o desenvolvimento de projetos- piloto em escolas públicas monitoradas pelo Ministério da Saúde, notam a persistência da palestra, realizada principalmente por agentes extra-escolares, como médicos e policiais. É possível que essa diferença se explique porque os projetos aqui analisados refletem idéias pioneiras e exemplares, condicionadas pelas exigências inerentes aos processos da publicação e guardando considerável distância da realidade social mais ampla, seja escolar, seja no bairro. Finalmente, percebe-se que é rara a adoção de estratégias de distribuição de materiais preventivos pelos projetos. Apesar de notar-se uma mudança em relação à abordagem utilizada na prevenção, não se incorpora a distribuição de materiais que efetivariam algumas das estratégias de redução de danos. Isso pode ser tanto fruto dos impedimentos legais, que apenas nos últimos anos da década de 1990 passaram a ser afastados, como pode advir do próprio receio da população de que se houver uma distribuição de seringas e agulhas descartáveis, por exemplo, a conseqüência pode ser um aumento do número de usuários de drogas injetáveis. Conclusões Pode-se perceber que, apesar do alastrado temor social em relação às drogas, a sociedade civil, e notadamente o Estado, somente procuraram novas alternativas para a prevenção do consumo prejudicial de drogas a partir da disseminação do HIV. Grave e fatal, a Aids impôs uma preocupação social, antes de foro individual, de se preservar as pessoas dos danos que podem advir do exercício da própria sexualidade, quando desprotegida. Em decorrência, a sociedade começou a aceitar metas diferentes também para a prevenção ao consumo de drogas, não se limitando à da abstinência propriamente dita. A produção científica acerca do tema drogas é abundante no que diz respeito aos aspectos farmacológicos da droga em si, e ao tratamento da dependência, como tradicionalmente o tema vem sendo tratado na área da saúde (Soares & Campos, 2003). A parcela que se refere à prevenção, pelo menos na década de 1990, consiste consideravelmente de reflexões acerca das avaliações negativas dos programas de prevenção que seguiam os pressupostos e os métodos da guerra às drogas, desenvolvidos em todo o mundo. Alguns estudos consistem de levantamentos epidemiológicos preocupados em diagnosticar níveis de consumo em populações específicas. Ambos os casos fundamentam um conjunto de orientações a respeito de como proceder para desenhar ou implementar programas de prevenção. Essa produção parece refletir um estágio de experimentação em que se produzem orientações e propostas. Somente os centros de excelência na área e instituições governamentais, notadamente de esfera federal, conseguem relatar o desenvolvimento de programas de prevenção propriamente ditos. Sabe-se que há um descompasso entre as proposições e programas críticos e inovadores advindos dos chamados núcleos acadêmicos e a realidade dos textos oficiais (Bucher & Oliveira, 1994), e das propagandas veiculadas pela mídia e dirigidas a adolescentes (Ribeiro et al., 1998).

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Resguardadas as limitações de um trabalho de natureza classificatória – limitante por si mesmo diante de um objeto tão complexo – pode-se dizer que as estratégias utilizadas pelos programas analisados se encontram agregadas majoritariamente numa categoria transitória entre o modelo hegemônico (guerra às drogas) e o novo modelo em construção (aqui chamado de redução de danos ampla); por um lado, por incorporar mudanças de orientação da sociedade em relação ao consumo de drogas; e por outro, por ser este um discurso “politicamente” mais correto do que o discurso estritamente repressivo, que de uma maneira geral continua sendo bastante expressivo no cotidiano dos serviços. Referências AGGLETON, P. Monitoramento e avaliação de educação em saúde e promoção da saúde voltada para o HIV/Aids. In: CZERESNIA, D., SANTOS, E.M., BARBOSA, R.H.S., MONTEIRO, S. (Orgs). Aids: pesquisa social e educação. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1995. p.193-206. BASTOS, F. I. Ruína e reconstrução: aids e drogas injetáveis na cena contemporânea. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ABIA/IMS/UERJ, 1996. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de projetos educacionais especiais. Diretrizes para uma política educacional de prevenção ao uso de drogas. Brasília, 1994. BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de DST/Aids. Manual do multiplicador: adolescentes. Brasília, 2000. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Secretaria de Atenção à Saúde. Coordenação Nacional DST/Aids. A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, 2003. BUCHER, R. Drogas e drogadição no Brasil. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. BUCHER, R.; OLIVEIRA, S. O discurso do “combate às drogas” e suas ideologias. Rev. Saúde Pública, v.28, n.2, p.137-45,1994. CARLINI-COTRIM, B. H. A escola e as drogas: realidade brasileira e contexto internacional. 1992. Tese (Doutorado) - Departamento de Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. CASTRO, M. G.; ABRAMOVAY. M. Drogas nas escolas. Brasília: UNESCO, Coordenação DST/ Aids do Ministério da Saúde, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, CNPq, Instituto Ayrton Senna, UNAIDS, Banco Mundial, USAIDS, Fundação Ford, CONSED, UNDIME, 2002. GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1991. KAPLAN, M. Tráfico de drogas, soberania estatal, seguridad nacional. Sistema, n.136, p.43-61, 1997. MORAES, T. C. L. Estudo de um programa de prevenção em DST/Aids: a presença do jovem. 2003. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. MOREIRA F.; SILVEIRA, D. Posicionamento do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD). J.l Bras. Psiquiatr.,v.52, n.5, p.366-70, 2003. NOTO, A R.; GALDURÓZ, J.C.F. O uso de drogas psicotrópicas e a prevenção no Brasil. Ciênc. Saúde Coletiva, v.4, n.1, p.145-54, 1999. RIBEIRO, T.W.; PERGHER, N.K.; TOROSSIAN, S.D. Drogas e adolescência: uma análise da ideologia presente na mídia escrita destinada ao grande público. Psicol. Reflex. Crít., v.11, n.3, p.421-30, 1998. RUA, M.G.; ABRAMOVAY, M. Avaliação das ações de prevenção as DST/Aids e uso indevido de

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drogas nas escolas de ensino fundamental e médio em capitais brasileiras. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde/Grupo Temático UNAIDS/UNDCP, 2001. SOARES, C.B. Adolescentes, drogas e AIDS: avaliando a prevenção e levantando necessidades. 1997. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. SOARES, C. B.; JACOBI, P. R. Adolescentes, drogas e aids: avaliação de um programa de prevenção escolar. Cad. Pesq., n.109, p.213-37, 2000. SOARES, C.B.; CAMPOS, C.M.S. A responsabilidade da universidade pública no ensino da prevenção do uso prejudicial de drogas. Mundo da Saúde, v.28, n.1, p.110-5, 2004. UNDCP. Programa Nacional das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas. Prevenção ao abuso de drogas com ênfase especial na prevenção do HIV entre usuários de drogas intravenosas no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 1994. VELHO, G. A dimensão cultural e política dos mundos das drogas. In: ZALUAR, A. (Org.) Drogas e cidadania: repressão ou redução de danos. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.23-9. WEISS, C. Pesquisa avaliativa no contexto político. In: GOLDBERG M.A.A.; SOUZA, C.P. (Orgs.) Avaliação de programas educacionais: vicissitudes, controvérsias, desafios. São Paulo: EPU, 1982. p.23-8. ZALUAR, A. Introdução: drogas e cidadania. In: ZALUAR, A. (Org.) Drogas e cidadania: repressão ou redução de danos. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.7-21. ZALUAR, A. Da revolta ao crime S. A. São Paulo: Moderna, 1996. ZALUAR, A. Um panorama no Brasil e no mundo. Ciênc. Hoje, v.31, n.181, p.32-5, 2002.

CANOLETTI, B.; SOARES, C. B. Programas de prevención del consumo de drogas en Brasil: un análisis de la producción científica de 1991 a 2001, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.115-29, set.2004/fev.2005. Este estudio trata de los programas de prevención del consumo de drogas. Se parte del supuesto que en Brasil, principalmente a partir de la década del 1990, se procesaron cambios significativos en las prácticas de prevención. El análisis sistemático de la bibliografía puede contribuir con una evaluación de los rumbos que esas prácticas vienen tomando además de favorecer la crítica y la formulación de nuevos proyectos. El objetivo de este estudio fue: reunir y analizar los trabajos publicados en Brasil, cuyo objeto es la prevención del consumo de drogas en el período de 1991 a 2001. La metodología comprendió dos procedimientos: relevamiento bibliográfico en bancos de datos on-line, utilizando el descriptor prevención de drogas y análisis de los trabajos seleccionados según: tipo de publicación; objetivo del trabajo; enfoque teórico y caracterización de otros elementos internos al desarrollo de los proyectos de prevención propiamente dichos. Los resultados mostraron que la mayor parte de los textos seleccionados tiene el objetivo de proporcionar orientaciones para la prevención, utilizando un enfoque que se orienta en grados diferentes a las concepciones y estrategias de la reducción de daños. Los trabajos que tratan del desarrollo de proyectos se encuentran principalmente en el eje Rio-São Paulo; cerca de la mitad se vale de estudios epidemiológicos o de mecanismos de evaluación propios; la mayor parte busca brindar informaciones a estudiantes y profesores. PALABRAS CLAVE: Prevención; drogas; publicaciones periodicas. Recebido para publicação em 10/04/04. Aprovado para publicação em 04/11/04.

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BARAVELLI, Eixo, 1995

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Hermenêutica e narrativa: a experiência de mães de crianças com epidermólise bolhosa congênita*

Andrea Caprara 1 Maria do Socorro Castro e Veras 2

CAPRARA, A.; VERAS, M. S. C. Hermeneutics and narrative: mothers’ experience of children affected by epidermolysis bullosa, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.131-46, set.2004/fev.2005.

The paper analyses the narrative of three mothers of children affected by Epidermolysis Bullosa (EB), adopting an approach inspired by the phenomenological hermeneutics of P. Ricoeur. Epidermolysis Bullosa is a severe and rare disease affecting mostly the skin and mucosae, producing deep skin troubles and suffering to the children affected and the family members involved in caring for him or her. Experience of suffering, stigma, fear of contagion, relation with health professionals, particularly medical doctors, care practices, are some of the issues that have been considered in the paper. The exchange of experiences promoted by social networks can improve the quality of life of EB patients as well as providing social support to family members. Moreover, the improvement of this movement can stimulate health professionals and health managers to adopt more effective and equitable public policies. KEY WORDS: Hermeneutics; narrative analysis; epidermolysis bullosa. Analisam-se os discursos de três mães de crianças portadoras de Epidermólise Bolhosa (EB) congênita, com uma abordagem inspirada na hermenêutica fenomenológica de P. Ricoeur. A Epidermólise Bolhosa é uma grave e rara doença que se manifesta na pele e mucosas que, ao serem afetadas, produzem rupturas e sofrimentos para as crianças portadoras e os familiares diretamente envolvidos com o cuidado. A experiência do sofrimento, o estigma, o medo do contágio, a relação com os profissionais de saúde e em particular com os médicos, as práticas de cuidado, são alguns dos principais temas analisados. A troca de experiências promovidas por redes sociais pode proporcionar avanços na melhoria da qualidade de vida dos portadores de EB, além de apoio social para familiares e, pela expansão destas redes, sensibilizar profissionais de saúde e gestores para a adoção de políticas públicas efetivas e eqüitativas. PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica; análise de narrativa; epidermólise bolhosa.

*

Texto apresentado no Simpósio de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da ABRASCO, realizado na UERJ em maio de 2004, com o título: A experiência de mães de crianças com Epidermólise Bolhosa Congênita: uma análise das narrativas. 1

Professor, Departamento de Saúde Pública, Universidade Estadual do Ceará, UECE. <a.caprara@flashnet.it>

2

Odontóloga, Grupo de Pesquisa: Educação, Saúde e Humanidade, Universidade Estadual do Ceará, UECE. <socorro.veras@ig.com.br>

1

Av. Paranjana, 1700 Itaperi - Fortaleza, CE 60.740-000

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CAPRARA, A.; VERAS, M. S. C.

Introdução Este artigo pretende analisar os discursos de três mães de crianças 3 portadoras de Epidermólise Bolhosa (EB) congênita , com uma abordagem inspirada na hermenêutica fenomenológica de P. Ricoeur e na leitura sucessiva, deste autor, feita por René Geanellos (1998a, 1998b, 2000), Inger Ekman (Ekman et al., 2000) e Lena Wiklund (Wiklund et al., 2002), na área das ciências da saúde. A Epidermólise Bolhosa é uma grave e rara doença que se manifesta na pele e mucosas que, ao serem afetadas, produzem rupturas e sofrimentos para as crianças portadoras e os familiares diretamente envolvidos com o cuidado. As crianças necessitam, desde o nascimento, de um cuidado contínuo por parte das mães, que terão que reorganizar completamente suas atividades diárias. As histórias apresentadas neste trabalho são de mães cearenses, duas residentes na cidade de Fortaleza e uma nascida e residente na região do sertão central do Ceará que, ao vivenciarem a experiência comum de terem filhos portadores de EB, têm a oportunidade de contribuir para a compreensão do processo de sofrimento ligado a esta grave e rara doença. Apropriada para esses casos, a pesquisa narrativa adquire um significado importante, pois permite verbalizar a história colocada no centro do interesse da pesquisa. Por ser a narrativa uma projeção, e estando em continuidade com a vida individual, reflete o cotidiano de cada um de nós, permitindo a exteriorização de esquemas e emoções internas. Nos últimos anos tem sido desenvolvida a análise de narrativas na pesquisa qualitativa na área da saúde, inspirada nas premissas filosóficas da fenomenologia, da hermenêutica e do existencialismo. Estas premissas constituem as bases de diferentes abordagens (Geanellos, 2000; RobertsonMalt, 1999; Todres & Wheeler, 2001). Por fenomenologia entende-se a corrente filosófica elaborada por Husserl, que parte das situações experienciadas pelos sujeitos. Esta corrente se desenvolveu nos primeiros anos de 1900 e depois da conferência de Husserl em Paris em 1929, sua influência estendeu-se em toda Europa (Pinto, 1998). Por existencialismo, termo desenvolvido nos anos trinta do século 20, designa-se a corrente filosófica que aborda a natureza do Dasein, existência humana cotidiana, de ser no mundo (Dreyfus, 1991). A temática existencialista desenvolvida na Europa depois da 1ª Guerra Mundial, considerada “renascimento kierkegaardiano”, e a análise existencialista de K. Jaspers e M. Heidegger influenciaram J. P. Sartre, M. Merleau-Ponty e Simone de Beauvoir, na França. O termo hermenêutica, na filosofia grega, expressa a arte de interpretar. Com o passar do tempo adquiriu um significado mais amplo, indicando, no âmbito filosófico, diversas formas de teoria da interpretação. Os filósofos que pertencem a esta linha de pensamento se ocupam da existência humana, não do ponto de vista da observação, mas da reflexão filosófica. Nesta perspectiva, o homem é considerado não somente enquanto organismo biológico, mas algo mais, assim como a medicina é considerada algo mais do que a ciência natural (Caprara, 2003). Ao centro da abordagem hermenêutica está a compreensão do texto, procurando entender a multiplicidade dos significados, tentando clarear o que é confuso, escondido, fragmentado (Ricoeur, 1991; 1995). Por meio

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3

Agradecemos às mães entrevistadas e dedicamos a seus filhos este artigo.


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do processo interpretativo, segundo Ricoeur, não se procura identificar as intenções do autor, mas entender os sentidos do texto, propiciando o desenvolvimento do conhecimento intersubjetivo. Por meio do conceito de “fusão dos horizontes”, Gadamer tem modificado a perspectiva hermenêutica porque para ele o significado não está no texto nem no autor, mas na relação que existe entre eles (Gadamer, 1997). Neste sentido, a perspectiva narrativa é dialógica: Mishler (1986), por exemplo, critica o fato que exista uma relação entre o pesquisador e a pessoa entrevistada, um objeto a ser conhecido; este autor fala de pessoas em relação entre elas quando afirma que não estamos entrevistando alguém, mas aprendendo dele. Para Mishler, então, não podemos separar as respostas das perguntas e do contexto. Segundo Alves & Rabelo (1999) a experiência da enfermidade é entendida como: “a forma pela qual os indivíduos situam-se perante ou assumem a situação de doença, conferindo-lhe significados e desenvolvendo modos rotineiros de lidar com a situação” (p.171). Eles complementam também que: “as respostas aos problemas criados pela doença constituem-se socialmente e remetem diretamente a um mundo compartilhado de práticas, crenças e valores” (Alves & Rabelo, 1999, p.171). O que nos interessa é compreender a dinâmica cotidiana das interações que vivenciam as mães de portadores de EB, os fatores psicossociais relacionados à experiência, bem como os mecanismos de adaptação e superação à doença dos filhos. Neste trabalho procura-se entender o significado da experiência de vida mediante as narrativas analisadas enquanto texto. As palavras vão surgindo nos discursos de acordo com os temas colocados e revelam o mundo de cada uma delas em torno da experiência de ser mãe de portador de EB. Na primeira parte apresentaremos a abordagem teórico-metodológica escolhida, e em seguida, alguns conhecimentos essenciais sobre a EB. Na terceira parte, abordaremos o contexto histórico e social das histórias apresentadas, e na quarta e última parte, a análise das narrativas. Abordagem teórico-metodológica Para Ricoeur, a interpretação coloca-se entre a linguagem e a vida vivenciada por meio de uma série de conceitos interpretativos entre os quais o distanciamento, a apropriação, a explicação, a compreensão (Ricoeur, 1991; 1995). No distanciamento, a objetivação do texto reduz a intenção do autor, eliminando a idéia de que exista uma única forma de compreensão. Um texto tem vários significados e as pessoas interpretam diferentemente o mesmo texto. O distanciamento produz a objetivação do texto libertando-o do seu autor e de suas intenções, fornecendo uma vida própria (Geanellos, 1998a). O distanciamento não é imposto metodologicamente, ao contrário, é um aspeto constitutivo da sua transformação em texto escrito por meio da fixação da língua falada em língua escrita (Ricoeur, 1991; 1995). Um outro conceito é representado pela apropriação, quando o intérprete apropria-se do significado de um texto, transformando este em algo familiar, próprio. A apropriação do significado do texto é similar ao sentimento de pertença a uma tradição (Geanellos, 1998 a; 1998b; Wiklund et al., 2002 ). O processo interpretativo pode ser representado em algumas etapas principais como a vida vivenciada expressa por meio da linguagem, recolhida mediante entrevistas, transcrita em

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textos e interpretada (Geanellos, 2000). Seguindo este processo metodológico, inicialmente foram feitas freqüentes visitas, por parte de um dos autores, nas casas das mães com filhos portadores de EB, participando das práticas de cuidado, observando e anotando as atividades diárias. Depois deste conhecimento inicial e vida compartilhada, realizamos, com as mães, as entrevistas gravadas em fitas de áudio e transcritas. Sucessivamente elaboramos uma primeira interpretação superficial dos textos, por meio de leituras múltiplas, para entender o conteúdo nas suas linhas gerais e identificando alguns temas principais como a experiência do sofrimento, o estigma e o medo do contágio, a relação com os profissionais de saúde e em particular com os médicos, as práticas de cuidado. Em seguida, tentamos analisar os temas principais explicitando nossas pré-compreensões, evidenciando como as interpretações são influenciadas por estas, abrindo um diálogo com os autores que abordaram estes conceitos (Ricoeur, 1995). As précompreensões são discutidas com a estrutura teórica e os principais conceitos. Podemos citar, por exemplo, Erwin Goffman (1983) e o conceito de estigma, a relação médico-paciente tal como abordada por Gadamer (1994) e Balint (1988), a ética do cuidado elaborada por Leonardo Boff (1999). Em uma fase sucessiva tentamos construir um diálogo entre nós, pesquisadores, sobre as experiências individuais perante fatos comuns, identificadas nos fragmentos dos discursos, e a abordagem teóricometodológica escolhida. Tentamos analisar as unidades de significação, assim como descrito por Ekman et al. (2000), representadas por pequenos fragmentos de discurso, subtemas mais profundos que se expressam, por exemplo, por meio das metáforas e outras figuras de estilo narrativo. Nesta fase procuramos entender as relações entre as partes do texto e o todo. Este processo pode ser representado em forma de espiral que passa do geral ao particular e vice-versa. Epidermólise bolhosa O termo epidermólise bolhosa (E.B) inclui um grupo de doenças caracterizado pela tendência a produzir vesículas na pele e em algumas vezes nas membranas mucosas. As vesículas e bolhas, usualmente, se desenvolvem após pressão mecânica ou fricção, mas podem ocorrer espontaneamente (Braun-Falco et al., 1991). A pele é constituída por várias camadas ligadas entre si por fibras protéicas de colágeno. Na E.B., estas fibras de união não funcionam eficazmente, com isso as várias camadas de pele se separam facilmente. O espaço que se forma entre as camadas é preenchido por soro ou por fluido rico em proteínas, surgindo, assim, uma bolha (Diniz & Vieira, 1995). A Epidermólise Bolhosa Congênita representa um grupo heterogêneo de patologias de caráter genético caracterizado pela formação de bolhas na região cutâneo-mucosa, após trauma mínimo, como resultado de fragilidade do epitélio. Mais de vinte subtipos têm sido descritos, de acordo com o tipo de padrão genético, distribuição regional das lesões e aparência individual destas, presença ou não de atividade extracutânea e achados ultraestruturais e imunohistoquímicos. Estes subtipos são divididos em três categorias: EB simples, EB juncional e EB distrófica (Eady, 1990; Fine, 1999). Dependendo da formação de posteriores cicatrizes e conseqüentes atrofias, Braun-Falco et al.

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(1991) classificaram as EB como distróficas e não-distróficas. A problemática da nomenclatura complicou-se ainda mais face à doença designada de epidermólise bolhosa adquirida, afecção não integrável neste grupo porque não apresenta determinação genética e é provavelmente de natureza auto-imune (Diniz & Vieira, 1995). O grupo das EB distróficas é dos que impõem restrições mais severas e é especialmente significativo, pois requer adaptações sociais e educacionais a seus portadores, visto que a separação das camadas localiza-se abaixo da junção da epiderme com a derme, onde se encontram vasos sangüíneos e nervos. Deste modo, as bolhas podem ser profundas, dolorosas e com sangue. Algumas bolhas são mais superficiais. As unhas têm tendência a deslocar-se e a cair. Infelizmente, na EB distrófica, as bolhas tendem a aumentar de volume. Usualmente, procede-se a sua abertura para tentar reduzir seu crescimento, esvaziando, assim, seu conteúdo. Isto origina uma ferida, que pode cicatrizar satisfatoriamente, mas que, com freqüência, infecta, causando problemas. As crianças referidas nesse estudo são portadoras desse tipo de EB. Tarefas simples, como engatinhar, caminhar, utilizar determinados tipos de roupas ou sapatos demandam esforços suficientes para provocar a formação de bolhas. As bolhas de maior profundidade formam cicatrizes que têm a aparência de uma queimadura. As repetidas cicatrizes levam a complicações como a pseudosindactilia, condição na qual o crescimento das cicatrizes causa a perda do movimento dos dedos do paciente, evoluindo para uma distrofia, especialmente nas mãos (APPEB, 2000). O tratamento é multidisciplinar e nenhum tipo específico de terapêutica existe. Deve-se evitar traumas cutâneo-mucosos, observar escrupulosas condutas de higiene dos cuidadores e do lar; as infecções secundárias devem ser tratadas com antimicrobianos tópicos e/ou sistêmicos e a dieta rica em proteínas, ferro e zinco. Acompanhamentos psicológicos, nutricionais, odontológicos, fisioterápicos, hematológicos, enfim integrais são fundamentais para a melhoria da qualidade de vida dos acometidos (Fine et al., 1999a). Diniz & Vieira (1995) relatam que o nascimento de uma criança com EB afeta profundamente a família e acarreta conseqüências de ordem psíquica e, ainda, que a condição econômica desfavorável agrava inevitavelmente a situação. George (1988) constatou tal afirmação em relato de experiência na Nigéria. Nos Estados Unidos existe um registro nacional de EB, o National Epidermolysis Bullosa Registry (NEBR), que estima a incidência em, aproximadamente, vinte casos de EB em um milhão de nascidos vivos (Fine et al., 1999b). O NEBR foi criado em 1986, para informação epidemiológica, acompanhamento e identificação de casos de EB. A exemplo disto, outros países também têm seus registros, como Noruega, Japão, Croácia, Suécia (Fine et al., 1999b). No Brasil não há um registro nacional e a estimativa não pode ser feita. O contexto social Buscando entender como se dão as relações das mães envolvidas no estudo com o mundo, no jogo das relações sociais, em termos de habilidades, flexibilidade e adaptações às mudanças, busca-se como sugerem Gomes et al. (2002) promover uma compreensão das vivências da doença ao situar as expressões

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dos sujeitos no contexto em que tais aspectos foram produzidos; fazer uma releitura de suas posições em face da doença; fazer inferências para se articular o vivido e o experado da doença presente no cotidiano e interpretar os sentidos para compreender as regras constitutivas das particularidades inerentes à doença vivenciada. As crianças são portadoras de Epidermólise Bolhosa Distrófica Recessiva, um dos subtipos raros. Somente uma dessas crianças teve o diagnóstico confirmado laboratorialmente e as outras tiveram o diagnóstico clínico confirmado pelas características das lesões. Sem privilegiar individualidade ou condições destas e, para resguardar a identidade e privacidade das famílias, trocamos os nomes das mães. Em razão da religiosidade católica professada, as mães entrevistadas são aqui identificadas como Assunção, Conceição e Fátima, em alusão às santas de devoção do povo cearense. Todas as entrevistadas foram estimuladas para contar a própria experiência da doença. Partiu de Fátima a iniciativa de aproximação dessas mães; embora Conceição e Assunção não se conheçam pessoalmente, por morarem em cidades distantes, as três compartilham experiências entre si, sendo Fátima o ponto de contato entre elas. Mesmo apresentando algumas características comuns, o discurso de cada uma é próprio e as trajetórias individualizadas de acordo com aspectos sociais, econômicos e culturais de cada família. Assunção é casada com um primo e nunca tinha ouvido falar da doença até o nascimento da primeira filha. O casal tem duas filhas, hoje com 18 e dez anos, portadoras de EB. A família mora em um bairro da zona norte de Fortaleza. A mãe é professora licenciada para acompanhamento das filhas e o pai é autônomo. As irmãs, com o passar dos anos, apresentaram lesões em várias partes do corpo e têm seqüelas, como contraturas digitais (freqüentes nos portadores de EB), acarretando déficit funcional das mãos. Porém não foi impedimento para que elas aprendessem a ler e escrever, tendo sido alfabetizadas em casa. A maior limitação, hoje, é a presença de extensas lesões, que as mantém, na maioria das vezes deitadas e isoladas de contatos externos, e que requerem o uso contínuo de pomadas antibióticas e lubrificantes (isolantes) em todo o corpo, além das lesões de mucosa que dificultam a alimentação. O uso de roupas, por vezes é inviável devido à extensão e localização das lesões. Contudo, as irmãs se locomovem sozinhas, assistem aula em casa, gostam de brincar de boneca, maquiagem e fazem pintura em papel e tecido brilhantemente, além de gostarem de passear como a maioria das meninas de igual idade. Elas aguardam, ansiosamente, o passeio anual ao shopping para ver a decoração natalina. A família tem o apoio profissional do mesmo pediatra desde o nascimento da primeira filha, e parte da medicação é doada pela Secretaria de Saúde do Estado. O benefício do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), conseguido em 2002, auxilia na aquisição de outros medicamentos e alimentação adequada para as irmãs. Antes da concessão do benefício, por algumas vezes, Assunção percorreu jornais e emissoras de televisão, pedindo ajuda financeira, tendo recebido doações de medicamentos, alimentos, produtos de limpeza. Até hoje, algumas pessoas ainda ajudam neste sentido. Assunção, sendo católica praticante, vai às missas todo dia 13 (alusivas a N. Sra. de Fátima), ensina e transmite às filhas sua formação católica, tendo realizado, com grande emoção, os rituais sacramentais da igreja católica, o

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batismo e a primeira comunhão das meninas. A família de Conceição mora na zona rural de uma cidade do sertão central cearense, distante duzentos km da capital e a três km da sede do município, em uma fazenda, na qual o pai é empregado. O casal tem quatro filhos, não tem laços de parentesco, e o terceiro é portador de EB. Aos quatro anos, apresenta sinéquias nos pés, movimenta-se pela casa de velocípede ou arrastando-se e, de um modo geral, desenvolve-se bem. Conceição, por tentativas, descobriu que a melhor forma de seu filho não se machucar era vaselinando-o e enrolando-o com bandagens e em seguida vestindo-o normalmente. São feitas três trocas diariamente e, como na casa de Assunção, há sempre muitas roupas e lençóis para lavar e engomar, o que Conceição faz sempre com um sorriso contagiante. Percebe-se nela, alegria em todos os momentos do cuidado com a criança, só rompida pela preocupação com o fato de ele ainda não andar. Mas, logo supera ao lembrar que sua mãe relata ter tido “umas feridas como as do seu filho” e hoje, é sadia. Com o benefício do INSS que o filho recebe, Conceição compra remédios, fraldas descartáveis e, como ela costuma dizer, brincando, “mais sabão do que comida”. Como Conceição é a principal responsável pelos cuidados com o filho, ela não tem oportunidade de freqüentar a igreja na cidade, mas percebe-se sua devoção aos santos católicos, espalhados pela casa, pelas inúmeras vezes em que roga proteção e agradece as graças diárias. Fátima e seu marido desconheciam qualquer caso de EB na família, até o nascimento de sua filha. Para o casal foi um momento angustiante, nos primeiros dias, pela inabilidade de cuidar de uma criança susceptível a traumas ocasionados por eles próprios em momentos, aparentemente, corriqueiros, como a troca de fraldas. O ato de acariciar ou pegar ao colo um bebê com EB requer medidas de segurança, como retirar jóias, alianças, roupas com botões ou zíperes que possam, inadvertidamente, machucar a criança. Como as outras mães, uma dificuldade inicial era quanto ao uso de roupas, após várias tentativas e bolhas, optaram por deixá-la desnuda e vaselinada, dessa forma o contato era mais suave e as lesões mais escassas. Também adotaram o que poderia se chamar “manipulação mínima”, assim a criança era tocada o mínimo possível e somente era retirada do berço na hora dos banhos; na tentativa de suprir a falta de contato, procuravam falar o máximo com a criança, para que ela experimentasse outra forma de carinho, como a pediatra recomendava e, também, a apostila da Associação Alemã para Epidermólise Bolhosa (s/d). Os pais percebiam que ela conhecia vozes e músicas repetidas. Com o passar dos meses e a contínua aprendizagem, Fátima se sentia cada vez mais capaz de cuidar da filha e cultivava a esperança de vencer, com ela, as dificuldades do cotidiano. Apesar de todos os esforços, a criança faleceu aos sete meses, em casa, na hora do banho, nos braços de Fátima. Análise das narrativas Os temas principais Após essa breve construção biográfica, buscamos, nos fatos comuns da vivência relatada, compreendê-los, contudo sem esquecer que essas experiências singulares nos revelam um processo contínuo contextualizado pelas interações social, cultural e econômica, por vezes alterado pela doença.

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O nascimento: a relação com a biomedicina e a dimensão religiosa A respeito do nascimento, momento de expectativa para a maioria das mães, geralmente traduzido por perguntas sobre a morfologia dos filhos, para as três entrevistadas foi um momento marcado pela dúvida, pois as explicações iniciais sobre a doença não foram suficientemente esclarecedoras, estabelecendo um quadro de preocupação e incerteza sobre o futuro de seus filhos como, por exemplo, nesses três depoimentos: ....eu a vi , ainda na sala de parto, e achei estranho a pele do rosto [...] parecia que estava arranhado o nariz[...].Depois disso só a vi doze horas depois, quando o médico deu uma receita escrita na frente e costa e disse que ela tinha um problema mas ia ficar boa e indicou o nome de dois especialistas para eu procurar. Só consegui marcar a consulta um mês depois[...], o médico era muito procurado e bom. Ele explicou tudo e mandou fazer uma biópsia já me informando que poderia dar um resultado ruim, entreguei a Deus[...]. Quando recebi o resultado, ele disse que seria muito difícil e que talvez ela não completasse um ano, de novo me vali de Deus e fiz uma promessa de que amanheceria em Canindé4 no dia do seu primeiro aniversário... (Assunção) ....ele nasceu sem pele no pé e disseram que era a mesma doença da filha do (...), daí fiquei mais calma porque pelo menos já sabiam o quê era[...]. Fui encaminhada para Fortaleza e lá o médico e, um bocado de estudantes olhando, disse que era muito grave e que ele não passava de vinte dias[...]..e eu estava com três dias do resguardo, chorei muito[...] e, quando eu estava em uma sala sozinha um estudante me acalmou dizendo que eu confiasse em Deus... (Conceição) ...na hora que ela nasceu, a médica mostrou-me suas mãozinhas, parecia que estavam com queimaduras nos dedos e no queixo também tinha uma lesão, depois ela levou-a para a UTI, porque ela estava ‘gemente’[...]. Pouco tempo depois do parto, a médica conversou conosco, eu e meu marido, sobre o diagnóstico e pediu que chamássemos um especialista para confirmação e acompanhamento. Nós passamos a noite meio acordados e nos questionamos até como ela iria escrever com as mãos daquele jeito. Apesar de um pronto diagnóstico da doença parecia que nós não tínhamos a dimensão do problema nas primeiras horas... (Fátima)

O relato de Conceição conduz a reflexão sobre a relação médico-paciente e aponta a não-observância do contexto social pelo profissional ao referir tão delicado assunto, revelando a necessidade de humanização da prática médica assim como descrito por Caprara & Silva Franco (1999). Tal problemática é levantada por Morais (1997) ao criticar o ensino da Medicina no qual não existe tempo para perder com análises sobre a interdependência das relações,

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4 Cidade conhecida por ser centro de peregrinação católica dedicada a São Francisco das Chagas, distante cem km da capital cearense, sendo considerada o maior centro de devoção franciscana do Brasil.


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fragmenta-se o corpo e passa-se a compreender as partes, desmembrando o indivíduo, descontextualizando-o. Ao que Klafke (1991) reforça afirmando que poucas são as disciplinas que tratam do aspecto emocional do paciente, como também do aluno. Diante de um problema genético, os membros das famílias envolvidas são chamados a recordar sobre casos semelhantes e somente Conceição relata uma história que lembra EB: “Minha mãe conta que teve essas mesmas feridas até a idade de dez anos e depois ficou boa [...] ela disse que nasceu assim porque a mãe dela comeu uma carne de porco quando estava grávida...”. Ela reporta à narrativa da mãe e, mesmo conhecendo a versão biomédica da doença, refere-se a causalidade ligada a cultura popular, até porque ela traz um alento e perspectiva de cura vivenciado por uma pessoa de sua confiança. Na cidade onde Conceição vive e da qual o marido de Fátima é natural, são conhecidos outros casos relatados na história oral dos moradores; sendo comum o casamento entre consangüineos no interior cearense, é provável que se trate de casos de EB que não sobreviveram ou não foram diagnosticados. Em 2000, nasceu outra criança com EB na cidade onde Conceição vive. Esta criança foi transferida em seguida para Fortaleza, vindo a falecer com um mês de vida. O aconselhamento genético tem implicações de ordem médica, ética e psicossocial, que se refletem nas definições atribuídas a este processo (Silva & Ramalho, 1997). Estas mães tiveram acesso às informações de ordem genética, mas nenhum apoio psicológico profissional para o enfrentamento e convivência com a doença, buscando na religiosidade a maior fonte de força para a superação dos problemas decorrentes. O cuidado A principal responsável pelo cuidado nessas famílias é a mãe, e ela busca conciliar as tarefas de dona de casa e cuidadora, ao manter a ordem familiar e zela pelo filho doente e suas demandas. As mães sintetizam as alterações do cotidiano familiar na dedicação quase que exclusiva aos seus filhos portadores de EB. Evidencia-se nestes fragmentos de discurso uma carga emocional muito grande e destaca-se uma unidade de significação presente em várias partes da narrativa: a fé. Esta é sempre presente seja como forma de aceitação e conformação, seja como fonte de forças para enfrentar as dificuldades e limites da doença, nos processos de cuidados paliativos e/ou curativos. Essas mães, atualmente ou em algum momento de suas vidas, pagaram promessas feitas pedindo a saúde de seus filhos, seja freqüentando missas, usando determinadas roupas ou fazendo alguma abstinência alimentar, buscando, dessa forma, a solução para o conflito. Relatando as alterações do cotidiano familiar após o nascimento dos filhos com EB, as mães tomam a posição de principais cuidadoras: Eu estou afastada do meu trabalho para me dedicar a elas [...]. A luta é muito grande e é porque minha mãe ajuda muito... (Assunção) Eu passo o dia cuidando dele e da casa [...]que tem que ser muito limpa para não dar infecção[...].Os outros filhos têm que compreender que ele precisa de mais atenção, mas eu tento fazer o possível... (Conceição)

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Enquanto ela esteve conosco, meu marido teve que trabalhar mais ainda para compensar o tempo que eu fiquei sem trabalhar[...]. Foi um período intenso, mas não cansava[...] por mim estava bem e eu agradecia a Deus cada dia que acordávamos juntas... (Fátima)

O estigma A curiosidade e o receio de contágio, por vezes, superam as relações de cooperação e solidariedade humanas, criando tensões entre as pessoas, como nos relatos seguintes. ....com minha família nunca tive problemas[...], uma vez nós fomos a um shopping e eu notei que uma pessoa fechou o nariz quando nós entramos na loja, foi o quê mais me chocou[...], mas eu procuro esquecer e peço a Deus que perdoe essa pessoa. (Assunção) ....no começo foi difícil[...], hoje todo mundo sabe que não ‘pega’, mas fere a gente ver as pessoas se afastando da nossa casa por medo[...]. Se um dia eu sair daqui (zona rural, com vizinhos a mais de duzentos metros), não quero morar na cidade para não ser alvo de curiosidade do povo ... (Conceição) ....nós só saíamos para ir para a médica e mesmo assim em horários que não tivessem outras crianças (para protegê-la do contato com crianças doentes), mas nas poucas vezes que encontrávamos com pessoas no elevador sempre chamava atenção a condição de sua pele despertando curiosidade e indiscrição... (Fátima)

As redes de solidariedade Em 2000, a exemplo de outros países, foi criada em Brasília a Associação de Parentes, Amigos e Portadores de Epidermólise Bolhosa Congênita (APPEB, 2002), cuja intenção é localizar os demais portadores de EB para ajudar a conviver melhor com o problema, por meio da troca de experiências, uso de medicamentos e alimentação adequada e conseguir médicos e profissionais de saúde dispostos a estudar a doença para orientar as famílias e os portadores, como também sensibilizar o Poder Público para a atenção integral deste grupo. Em Minas Gerais, outra associação também foi fundada (Ampapeb). As mães entrevistadas também apresentaram interesse em reunir-se e articular uma associação local, a partir da simetria dos interesses têm a vontade do aprendizado recíproco, mostrando-se solidárias. ...eu gostaria de conhecer outras pessoas, não porque eu quero que tenha mais criança doente, é só pra conversar, até ajudar[...].As meninas ficaram felizes quando viram uma fita que tinha outras crianças iguais a elas [...]. Quem sabe uma associação dessas crianças.... (Assunção). Eu soube da filha do (...), mas fiquei muito triste quando ele disse que ela morreu [...]. Minha irmã, em São Paulo, diz que conhece

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outras crianças assim [....], no ano passado nasceu uma criança aqui e foi para Fortaleza, não durou um mês... (Conceição) Quando (...) nasceu, nós nunca tínhamos ouvido falar de EB, mas apesar de rara, quando ela foi internada aos 40 dias, havia no hospital uma outra menina, um mês mais velha que ela, com EB [...], na sala de espera da UTI, nós trocávamos experiências com os pais dela e aprendemos muito com eles [...] alguns médicos e auxiliares não conheciam, até então, como manipular estas crianças [...]. Esta criança faleceu aos quatro meses, mesmo sabendo das individualidades de cada uma, tive medo [...], também tenho cuidado ao aproximar-me de outros portadores, porque temo que minha experiência possa ser desestimulante para outras famílias... (Fátima)

A fita que Assunção relata ter assistido é uma produção da DebRA (Dystrophic Epidermolysis Bullosa Research Association of América, Inc.) e apresenta crianças americanas portadoras e depoimentos dos pais sobre a convivência com a doença. Um exemplo positivo de organização para garantir o cumprimento da Constituição Federal, no tocante ao direito à assistência social, é relatado por Assunção: A primeira vez que soube que elas tinham direito foi numa campanha que eu fui pedir auxílio na televisão[...] há muito eu tentava um auxílio do governo e só consegui quando após cinco anos o CEDECA-CE (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente – secção Ceará) entrou na Justiça, mesmo assim eles disseram que eu não conte com essa ajuda porque, às vezes, suspendem sem nem avisar e tem que começar tudo de novo [...].

Para Durham (1984), a emergência das reivindicações está associada à agudização de uma carência que provoca uma fragilização sistemática das condições de vida num determinado momento e para determinados atores sociais, assim a passagem do reconhecimento da carência para a formulação da reivindicação é medida pela afirmação de um direito, que começa a ser construído por novas representações. O desenvolvimento das redes de solidariedade humana, enquanto redes de indivíduos alternativas ao individualismo, propicia a articulação entre grupos pela conquista de direitos básicos contribuindo para o processo de democratização da sociedade. As necessidades de saúde se apresentam de várias formas e exigem ações intersetoriais que se caracterizam pela co-responsabilidade dos diferentes setores governamentais, não-governamentais e da sociedade civil, no sentido do desenvolvimento humano e da qualidade de vida como abordam Marmot & Wilkinson (1999). No modelo governamental de atenção à saúde, alcançar a integralidade proposta requer o compromisso multissetorial com a eqüidade a partir da garantia de acesso a todos os níveis de atenção. As mães (re)constróem a história, não como de sofrimento ou dor, mas com

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profundo sentimento de esperança e fé, em que as limitações e dificuldades cotidianas são superadas nos momentos da realização dos sonhos possíveis. Nisso, elas expressam que as dimensões física, emocional e espiritual estão presentes, integralizadas, nas festas e acontecimentos sociais da cultura de cada uma delas, levando em diante projetos e sonhos para que não fossem excluídas do mundo social. As meninas esperam ansiosas, como toda criança, o dia do aniversário, o das crianças, o Natal [...]. O contato com outras pessoas as deixa muito felizes [...].Elas adoram receber presentes, e às vezes, vamos ao shopping, só não vamos mais porque é difícil o transporte [...]. A gente paga uma professora que vem em casa [...]. Também teve os 15 anos da mais velha com valsa e tudo [...]. Elas duas já fizeram a 1ª comunhão e foi muito bonito, na igreja.... (Assunção) Eu tenho uma promessa pra fazer a festa de aniversário dele todo ano, e é quando eu fico mais feliz [...], o padre veio fazer o batizado dele aqui em casa. Um dia, se Deus quiser, ele vai andar... (Conceição) Com todas as mudanças de planos por causa da doença e apesar dela nós já estávamos acostumados e eu sabia das dificuldades mas sempre pensei que venceríamos todas, juntos.[...] nós brincávamos de comemorar cada ‘mêsversário’ dela... (Fátima)

O diálogo entre pesquisadores, experiências individuais e abordagem teórico-metodológica Para Ricoeur o sofrimento, quando se abate sobre alguém, é sempre solitário e inominável, o que faz de cada sofredor um sofredor, específico na sua irresolução e incomunicabilidade (Ricoeur, 1994 citado em Koury, 2002), constatado no fragmento do discurso “...só quem tem um filho com EB sabe o quanto é difícil...” . Ricoeur (1983) apresenta o conceito de fazer experiência, inspirado em Heidegger, como sendo algo que nos sucede e atinge, nos sobrevêm, nos derruba e transforma. Nesta acepção, a palavra fazer significa suportar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, integrando-nos, sem implicar, que essa experiência seja efetuada em nós mesmos. A compreensão dos sentidos é sempre um confronto entre inúmeras vozes que, nas práticas discursivas do cotidiano (a linguagem em ação), apresentam-se por meio de pessoas e suas histórias de vida (Spink & Medrado,1999). A manifestação cutânea da doença nos remete à reflexão sobre o comportamento sociocultural ligado à EB. Na unidade de significação “...as pessoas parecem ter medo de pegar a doença, não adianta explicar que é genético..” são apresentadas as tensões produzidas pelo estigma. Utilizamos o conceito de estigma de Goffman (1983) e de contágio de Czeresnia (1997) para compreender as atitudes, tendências e soluções das mães como forma de superar os limites impostos pelas concepções e o imaginário popular relativo às doenças que se manifestam na pele. Uma complexa rede simbólica liga os

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conceitos de corpo, pele, prossemia, experiência da doença. A pele, porosa, permeável, não somente aos agentes infecciosos, torna público um elemento interpretativo central por expressar a experiência dessa doença. Existe uma forte relação entre a doença contagiosa e a manifestação cutânea. O mesmo conceito de contágio deriva, etimologicamente, do ato de tocar: do tactum, tangere do latim. Ao mesmo tempo na história médica ocidental, uma estreita ligação tem mantido unida, entre eles, os diversos universos: aquele da manifestação na pele com o sistema nervoso central, desde a embriogênese. Muitos são os problemas psicológicos, como também de desequilíbrio da saúde que se expressam com manifestações cutâneas. Cada doença transmissível tem que ser interpretada a partir do contexto social no qual se insere porque coloca em jogo as relações dinâmicas entre os indivíduos de um grupo social. O risco do contágio, por exemplo, e os mecanismos pelos quais se produz a transmissão contribuem para a construção social da doença e produzem comportamentos que tentam separar o paciente da sociedade por meio da rejeição e do isolamento. Por exemplo, doenças como Aids e tuberculose, produzem um estigma que influencia as relações do paciente com a sociedade. Mas é a própria percepção do risco que produz aceitação ou rejeição, mesmo em casos nos quais a exata identificação do risco é imprecisa. Indeterminação e ambigüidade que contribuem para a definição do estigma associado à doença foram bem descritas por Goffman (1983). Além das reações de rejeição e de isolamento, temos de considerar elementos referentes à relação com os profissionais de saúde, em particular os médicos. Os fragmentos de discurso apresentados mostram a necessidade crescente em desenvolver uma comunicação mais aberta entre médicos e pacientes que possibilite uma maior qualidade na relação. Uma melhor relação médico-paciente não tem somente efeitos positivos na satisfação dos usuários e na qualidade dos serviços de saúde. Vários estudos mostram que influencia diretamente sobre o estado de saúde dos pacientes (Caprara & Rodrigues, 2004). A necessidade de humanização da prática médica é evidenciada (“...só disse que ele não vivia nem vinte dias...”) e permite a relação com outras abordagens teóricas (Balint, 1988; Gadamer, 1984). Heidegger (1993) afirma que, “do ponto de vista existencial, o cuidado se acha a priori, antes de toda atitude e situação do ser humano” (p.258). Boff (1999), retoma a origem da palavra cuidado, que deriva de cogitare-cogitatus, como também de suas modificações como coyedar, coidar, cuidar , sendo, portanto o mesmo que cura: cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, desvelo, solicitude, zelo, pois não há somente ocupação mas também preocupação e, além da intervenção, há a interação com o outro, como na unidade de significação “...eu cuido dele, dia e noite, sem cansar...”, que reflete o cuidado constante e o forte envolvimento emocional da mãecuidadora. Em pesquisa com pais de portadores de EB, Lansdown et al. (1985), concluem que esses pais necessitam, mais do que de condolências, de profissionais preparados (a despeito da raridade da doença) para superar problemas decorrentes do cotidiano e de suporte psicológico. Todos os indivíduos com EB têm uma fragilidade, que implica alterações nas suas rotinas, notadamente na escola, no trabalho e na convivência diária,

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necessitam estar rodeados de cuidados especiais e de algumas regras proibitivas. Todos temos alguma fraqueza física e na criança com EB ela está localizada na pele, sendo apenas mais visível. Diniz & Vieira (1995) sugerem explicar abertamente a todos os colegas, por mais jovens que sejam, exatamente o que essas crianças têm. Tais explicações evitarão comentários do tipo “que pele horrível você tem!”, “isso pega-se?”, “não encoste em mim, não me toque!”. Se for divulgado o “fenômeno” como sendo um problema cutâneo, de origem genética e não infecciosa, ao invés de uma doença cutânea, talvez as pessoas reconheçam e mudem as atitudes, tornando-se mais positivas, realistas e estimuladoras de autoconfiança. Isto, decerto, contribuirá para o bem estar e melhor integração de qualquer indivíduo, criança ou adulto com epidermólise bolhosa. Conclusões A teoria interpretativa de Ricoeur, escolhida para análise dos dados deste trabalho oferece múltiplos estágios de compreensão do expresso e o nãoexpresso no discurso, a interpretação simples e profunda, favorece o entendimento das partes do texto em relação ao todo e vice-versa e propicia a reflexão sobre os diferentes temas surgidos a partir das entrevistas de mães de portadores de E.B congênita. Concluímos também que a troca de experiências promovidas por redes de suporte social, mesmo que em contextos históricos e culturais diferentes, pode proporcionar avanços na melhoria da qualidade de vida dos portadores de EB, além de apoio social para familiares e, pela expansão dessas redes, sensibilizar profissionais de saúde e gestores para a adoção de políticas públicas efetivas. O desafio é sistematizar essas experiências na busca de incorporação de saberes visando ao respeito à vida em sua integralidade. REFERENCIAS ALVES, P. C.; RABELO, M. C. Significação e metáforas na experiência da enfermidade. In: RABELO, M.C.M.; ALVES, P. C.B.; SOUZA, I. M. A (Orgs.) Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. p.171-85. APPEB. Associação de parentes, amigos e portadores de epidermólise bolhosa congênita. Brasília, 2002. Disponível em: <http:www.appeb.hpg.com.br>. Acesso em 14 mar. 2002. ASSOCIAÇÃO ALEMÃ PARA EPIDERMÓLISE BOLHOSA. A criança com epidermólise bolhosa. I.E.B. Deutschland: Debra, s/d. (Apostila). BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu, 1988. BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano: compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. BRAUN-FALCO, O.; PLEWIG, G.; WOLFF, H. H.; WINKELMANN, R.K. Dermatology. Berlin: Springer-Verlag, 1991. CAPRARA, A. Uma abordagem hermenêutica da relação saúde-doença. Cad. Saúde Pública, v.19, n.4, p.923-31, 2003. CAPRARA, A.; SILVA FRANCO, A. L. A relação médico-paciente: para uma humanização da prática médica. Cad. Saúde Pública, v.15, n.3, p.647-54, 1999. CAPRARA, A.; RODRIGUES, J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico.

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CAPRARA, A.; VERAS, M. S. C. Hermenéutica y narrativa: la experiencia de madres de niños afectados por EB, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.131-46, set.2004/ fev.2005. El articulo analiza la narrativa de tres madres de niños afectados por Epidermolisis Bullosa (EB) con un abordaje inspirado en la hermenéutica fenomenológica de P. Ricoeur. La Epidermolisis Bullosa es una enfermedad severa y rara que se manifiesta principalmente en la piel y mucosa que, al ser afectadas, producen rupturas y sufrimiento a los niños portadores y a los familiares que los cuidan. La experiencia del sufrimiento, el estigma, el miedo del contagio, la relación con los profesionales de salud, particularmente con los médicos, y las prácticas de cuidado, son algunos de los temas analizados. El intercambio de experiencias promovido por las redes sociales puede proporcionar avances en la mejoría de la calidad de vida de los portadores de EB, además del apoyo social a los familiares y, por la expansión de estas redes, sensibilizar a los profesionales de la salud y a los gestores para que adopten políticas públicas más eficaces y equitativas. PALABRAS CLAVE: Hermenéutica; análisis narrativa; epidermolysis bullosa.

Recebido para publicação em 19/08/04. Aprovado para publicação em 29/10/04.

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A saúde sob o olhar do idoso institucionalizado: conhecendo e valorizando sua opinião

Renato Campos Freire Júnior 1 Maria de Fátima Lobato Tavares 2

FREIRE JR, R. C.; TAVARES, M. F. L. Health from the viewpoint of institutionalized senior citizens: getting to know and value their opinion, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.147-58, set.2004/fev.2005.

The objective of this study was to analyze the perceptions that the elderly from the Lar dos Idosos Monsenhor Rocha, Caratinga, MG, Brazil, elderly’s home have of their own health, at this time in their lives. Towards this end, a qualitative study was undertaken with a group of elderly people – residents of that asylum –, in which they were submitted to a semi-structured individual interview. So as to arrive at a more profound comprehension of the issue, we also investigated the internal documents of the institution concerning its residents. The analysis of data from the interviews revealed very interesting findings as, for example, the comprehension and the broad perspective the subjects had concerning the concept of health. Based on this concept, the main results suggest that there is a very important relation between work, social network, spirituality, state of health and happiness. Moreover, growing old in good health and being happy are concrete possibilities for these people. The situation in which they find themselves, – institutionalized –, was able to awake, within these elderly people, feelings of nostalgia and desires that emerge as expressions of exclusion and limitations. KEY-WORDS: Old age peoples’ health; elders’ health; institutionalization; health promotion. O objetivo deste trabalho foi analisar as percepções que o idoso do Lar dos Idosos Monsenhor Rocha, Caratinga, MG, têm de sua saúde, nesta idade da vida. Para se alcançar os resultados, foi realizada pesquisa qualitativa com um grupo de idosos residentes naquela instituição, por meio de entrevista semi–estruturada individual. Para que pudéssemos chegar a uma compreensão mais profunda do assunto, acessamos também os documentos internos da instituição relacionados aos residentes. A análise das entrevistas nos revelou achados interessantes como a compreensão e a visão ampla acerca do conceito de saúde. A partir dessa compreensão, os principais resultados nos sugerem que há uma relação importante entre o trabalho, a rede social, a espiritualidade e o estado de saúde e a felicidade. Além disso, envelhecer com saúde e estar feliz são possibilidades concretas para eles. A situação em que se encontram, institucionalizados, pôde despertar nesses idosos sentimentos de saudades e desejos que surgem como expressão de exclusão e limitação. PALAVRAS-CHAVE: Saúde do idoso; institucionalização; promoção da saúde.

1 Fisioterapeuta, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (DAPS/ENSP/FIOCRUZ). <renatocfjunior@hotmail.com> 2

Pesquisadora, professora, DAPS/ENSP/FIOCRUZ. <flobato@ensp.fiocruz.br>

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Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 707 Manguinhos - Rio de Janeiro, RJ 21.041-210

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Introdução Estudos (Rodrigues et al., 2000; Teixeira, 2000; Rosa et al., 2003) vêm demonstrando uma maior preocupação com o envelhecimento populacional, especialmente em países em desenvolvimento, nos quais este fenômeno ocorre no contexto de grande desigualdade social. Nestes países, o aumento de idosos vem acontecendo de forma muito rápida, sendo estimado que em 2025 entre os dez com maior número de idosos, cinco serão países em desenvolvimento (WHO, 1998). Nessa classificação inclui-se o Brasil que deverá ocupar a 6a posição, e cuja faixa central está entre oitenta ou mais anos de idade, requerendo a necessidade de um sistema de saúde mais estruturado para atender a essa demanda crescente, bem como medidas urgentes por parte do governo e da sociedade em geral (WHO, 1998, Lima-Costa, 2003). Nessa problemática, o idoso institucionalizado constitui, quase sempre, um grupo privado de seus projetos, pois encontra-se afastado da família, da casa, dos amigos, das relações nas quais sua história de vida foi construída. Pode-se associar a essa exclusão social as marcas e seqüelas das doenças crônicas não transmissíveis, que são os motivos principais de sua internação inclusive nas Instituições de Longa Permanência (ILP). Pensadas como cenários de cuidados, as ILP ainda constituem um desafio, principalmente se contrastadas com a proposta da promoção da saúde, que se funda no empoderamento, expressos, entre outros aspectos, pelo direito à individualidade, muitas vezes interditado neste contexto. O conceito de promoção da saúde em que se referencia este artigo está contido na carta de Ottawa (WHO, 1986) e sinaliza para uma reorganização da atenção visando assegurar a eqüidade, a articulação entre os saberes técnico e popular, para possibilitar que as comunidades e o próprio indivíduo tenham a oportunidade de conhecer e controlar os fatores que afetam e determinam sua saúde, visando escolhas mais saudáveis. Partindo desses pressupostos, o objetivo central deste trabalho foi identificar a percepção que aquele idoso tem de sua saúde. Identificando-o como sujeito histórico, ao levar em consideração sua cultura, sentimentos e questionamentos, poder-se-ia, a partir desse conhecimento, instruir as práticas de saúde na perspectiva da promoção da saúde, contribuindo com um aporte concreto e efetivo para reorganização da atenção. Além de contribuir como primeiro passo para a superação da interdição do diálogo que em geral acontece no cotidiano das instituições e serviços de saúde. Outro fator que sustentou a importância desta pesquisa foi o número reduzido de estudos existentes na área da saúde, com o enfoque que se quer imprimir: - desvelar o universo dos idosos brasileiros, e qual o significado que dão a esse período de sua vidas, no contexto do Lar dos Idosos Monsenhor Rocha (LIMR), localizado no município de Caratinga, Minas Gerais. Essa instituição abriga hoje cerca de cem idosos que se encontram em vários estágios: independentes, semi - independentes e dependentes funcionalmente, sendo dividida em duas partes: uma interna, subdividida em ala masculina e feminina e outra externa. Os residentes nas alas são em sua maioria, dependentes para a realização das atividades de vida diária

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(AVD´s), não possuem autonomia financeira e são tutelados pela instituição. A parte externa, localizada nos fundos das alas, é denominada Vila Ozanam e se compõe de várias moradias cedidas aos idosos, que são, em geral, independentes para as AVD‘s, embora suas despesas sejam também mantidas pelo LIMR. Metodologia Utilizou-se o método qualitativo, definindo como instrumentação uma triangulação na qual as articulações entre diversas técnicas garantiriam maior aprofundamento do assunto. Foram escolhidas, a observação participante e a análise documental como técnicas complementares e as entrevistas semi – estruturadas como eixo central. A análise documental buscou descrever em detalhes o nível empírico, enfocando a estrutura do ILMR, a organização e as dinâmicas de atendimento e as características da população referida, bem como as redes de relações que conformam essa instituição. A observação participante foi registrada em um “diário de campo” e permitiu o alcance das dimensões explicativas que os dados exigem, sendo realizada ao longo de cada entrevista. Empregou-se a modalidade de Participante - Observador, segundo a classificação de Gold (1958). Participaram das entrevistas dez idosos de ambos os sexos, a partir de 60 anos. Desses, três residiam na Vila Ozanam e sete nas alas feminina e masculina. Quanto ao sexo, sete eram mulheres e três homens, com idade média de 73 anos. Oito residiam na instituição há mais de cinco anos e todos se nomearam católicos. A amostragem seguiu os princípios do estudo qualitativo, no qual a unidade de análise é o conjunto dos entrevistados. Utilizou-se o índice de saturação (Bertaux, 1980) definido como o fenômeno pelo qual, passado certo número de entrevistas, o pesquisador tem a impressão de que a apreensão do objeto está contemplada em suas semelhanças e diferenças. Resultados e discussão O “olhar” para a saúde Na construção do conceito de saúde, os entrevistados abordaram aspectos físicos, sociais e mentais, denotando compreensão de que saúde não é apenas a ausência de doença: “Saúde é a gente comer bem, beber bem, dormir bem... e tudo mais...” (D. Yasmin). A capacidade funcional, a autonomia e a independência foram os principais fatores destacados, estando ligados ao fato de poderem trabalhar, na consideração do próprio trabalho como medidor do estado de saúde: “A gente ter saúde é bom que pode trabalhar, vai prá todo lugar que quiser ir...” (Sr. Cravo). “A saúde é a gente ser forte, ter expediente pra trabalhar...” (D. Branca). Rodrigues et al. (2000) destacam a saúde e a doença nos idosos como fenômenos clínicos e sociológicos que são dependentes, entre outros fatores, da situação econômica e social, na qual a velhice é demarcada principalmente pela aposentadoria e pela “desqualificação” como mão - de -

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obra para o mercado de trabalho. Em continuação, ressaltam que há uma transição de ruptura com o mundo produtivo, transpondo-se da categoria de trabalhador para ex-trabalhador; de cidadão ativo para inativo, com reflexo negativo para seu estado de saúde. Teixeira (2000) denomina essa situação como falência social e coloca essa saída involuntária do mercado de trabalho como um processo contrário ao empoderamento3, podendo causar também, vulnerabilidade psicológica e emocional. Quatro idosos expressaram ainda como sinônimo de saúde, a ausência de dor e outros sintomas. Suas respostas se referiam à experiência atual, o que numa análise mais atenta evidencia que os sintomas que os incomodam são mais importantes do que a doença propriamente dita: “Olha, é a gente não sofrer dor, como eu vivo sofrendo, né?...” (Sr. Cravo). “Saúde é a gente num sofrer nada... mas eu sofro um danado de uma asmática, quando me bate eu fico ruim mesmo...”(Sr. Marrom). É interessante notar que todos eles são portadores de doença crônica incapacitante, apresentando sintomas álgicos com freqüência. Sobressaiu o não entendimento dessas patologias e da necessidade diária da medicação, além da referência da cura de suas incapacidades como situação - objetivo a ser alcançada: “Tomo muito remédio...mas por enquanto ainda num acertei não...” (Sr. Azul). A análise dos documentos internos e dos prontuários, no entanto, constatou que a medicação e o tratamento são adequados, e que o atendimento é realizado por equipe multidisciplinar. Essa referência então pode sinalizar inexistência de informação mais competente quanto a essas questões. Carvalho et al. (1998) acharam repostas semelhantes em seu trabalho e acrescentaram que essa forma de pensar é especialmente prejudicial para o sucesso terapêutico. Veras et al. (2002) destaca a importância de políticas e modelos de promoção da saúde que não apenas previnam os efeitos deletérios da incapacidade funcional, mas que permitam a compreensão da morbidade pelos idosos, de modo que desenvolvam processo de empoderamento, capaz de favorecer oportunidade de controle de sua própria saúde, não mais esperando que vivam uma vida passiva. Pode-se entender, porém, que a experiência de cada um no sofrimento e na dor estabeleceu uma forma singular de ver a saúde. “A experiência da doença, necessariamente, implica alterações no modo de vida pessoal e social, podendo conter a adoção de estratégias e novas percepções sobre essa nova situação” (Gomes & Mendonça, 2002, p.117). Uma das entrevistadas que está há menos de um ano no LIMR apontou a saúde como sinônimo da relação entre felicidade e liberdade, bens recentemente perdidos: “É a gente se sentir feliz... E de maneira que a gente tá num tem alegria com nada, igual eu num tenho... Porque eu num tô querendo ficar aqui, eu quero ir embora” (D. Cristalina). Rodrigues et al. (2000) destacam como aspectos influentes nesta discussão o ambiente, entendido como físico, econômico, social. Minayo (1992, p.14) conceitua de forma ampla a saúde, incorporando a felicidade e o ambiente: “Saúde significa bem estar e felicidade: ela própria, explicitamente ou no “silêncio do corpo” é a linguagem preferida de

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3 Empoderamento - É um pressuposto da promoção da saúde, segundo o qual indivíduos, comunidades e organizações obtêm controle sobre os fatores que afetam sua saúde (Teixeira, 2000).


A SAÚDE SOB O OLHAR DO IDOSO INSTITUCIONALIZADO:...

harmonia e do equilíbrio entre o indivíduo, a sociedade e seu ecossistema”. A religiosidade e a espiritualidade estiveram presentes na fala dos idosos para conceituar saúde e ao longo das entrevistas, quando a definiram como algo transcendente, estabelecida por Deus e fora de seu controle. Apreende-se de suas falas que eles se colocam de forma passiva diante da saúde, com um certo conformismo: “Saúde é a gente pegar com Deus... O remédio num vale prá nada se num pegar com Deus...” (D. Branca; Sr. Cravo). É inegável o papel desempenhado pela religião no enfrentamento das exigências da velhice, facilitando a aceitação das perdas, sendo, por isso, um dos recursos utilizados em situações difíceis. Mais da metade dos entrevistados respondeu que se sentia saudável, relacionando o “estar saudável” com a presença de uma rede de apoio e de relacionamento interpessoal: “Sinto que eu sô saudável porque a gente tem muitos amigos, né? Muita alegria... a gente conversa com um, com outro”(D. Branca). Alguns autores (Sluzki, 1997a; Valla, 2000) confirmam que o apoio social contribui para manutenção da saúde das pessoas, aumentando a sobrevida e acelerando os processos de cura; além de permitir a superação de certos acontecimentos como a morte de alguém da família, a perda da capacidade de trabalhar, a perda de papéis sociais, o despejo da casa ou mesmo a institucionalização, entre outros. Assim, a rede de apoio e o convívio com outras pessoas podem ser entendidos como verdadeira estratégia de sobrevivência. Isto se destacou nos relatos de duas entrevistadas que tiveram várias chances de voltar para sua própria casa ou a de um familiar, se recusaram, afirmando que não poderiam ficar longe dos amigos e das pessoas do LIMR. Para a maioria, a idade em que se encontram não interfere em sua saúde, embora três tenham atribuído àquela, o aparecimento de sinais e sintomas incapacitantes, expressos pela imagem do corpo, pela menor agilidade, pela perda da força: “(A doença) Atrapalha porque... a gente já nem tem força igual a gente tinha quando novo... (Sr. Marrom). Motta (2002) descreve que os idosos apresentam clara percepção dos processos dessas perdas, muitas vezes tratadas como problemas de saúde, o que é reforçado pelo imaginário social, de forma preconceituosa. Ficou claro, pois, que eles dissociam idade e saúde, daí não ser difícil entender porque quase todos consideraram ser possível desfrutar de uma vida saudável e feliz, apresentando até mesmo certa naturalidade com relação ao processo de envelhecimento: “Tem gente mais velha do que eu que tá andando numa esperteza...” (D. Branca). “Eu era mais doente que agora, que eu tô de idade, eu tô com saúde...” (D. Margarida). Embora essa última fala expresse um estado de saúde hoje melhor do que quando era mais jovem, trata–se de uma senhora que sofreu amputação da perna esquerda há apenas quatro meses. Foi ressaltado o estilo de vida, colocando a responsabilidade sobre si próprio: “viver uma vida correta e boa...” (Sr. Cravo). A convivência com tolerância também foi citada de forma consistente, como um dos fatores para se envelhecer feliz e saudável. Para os profissionais de saúde que lidam com essa população é muito

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importante estar atento a suas respostas, mesmo contraditórias, pois elas ressaltam que envelhecer numa Casa Lar nem sempre é sinônimo de perda, mas sim uma etapa da vida em que se pode desfrutar com alegria e bem - estar. Reforçando essa questão, o comentário de uma idosa quando perguntada se é possível envelhecer feliz e saudável: “... É possível. É dizer que eu sofro... eu sô doente, mas sô feliz! Num vô importar com meu sofrimento... vou viver feliz!...” (D. Yasmim). Ela tem diagnóstico de artrite reumatóide, encontrandose presa a uma cadeira de rodas e apesar de todas as suas limitações, vem conseguindo tecer e bordar tapetes, embora apresente as deformidades crônicas e clássicas dessa patologia em ambas as mãos. Com o dinheiro da venda desses tapetes compra objetos pessoais e assim consegue estabelecer uma atitude de independência, diferindo da grande maioria de seus colegas cuja renda provém da aposentadoria, que fica sob a responsabilidade da instituição. Uchoa (2003, p.852) afirma que “a avaliação da gravidade e da relevância de um problema de saúde parece ser mais claramente determinado pela possibilidade de enfrentá-los, muito mais que pelo problema em si”. Alguns idosos associaram o processo de envelhecimento com a perda da autonomia: “... Então a gente vai fracassando... aí fica dependendo de uma coisa, dependendo de outra... depende de uma pessoa prá fazer aquilo...” (D. Cristalina). De maneira geral, pode-se concluir que os idosos não consideram o envelhecimento somente como um período de perdas e sofrimentos, nem tampouco como sinônimo de doença, buscando viver essa fase da vida, valorizando determinados aspectos que possam amenizar as perdas. A vida institucionalizada: reflexões e saudades A transferência do próprio lar para uma instituição de longa permanência (ILP) é sempre um grande desafio para os idosos, pois se deparam com uma transformação muitas vezes radical do seu estilo de vida, sendo desviados de todo seu projeto existencial. Segundo Born (1996), muitos idosos encaram o processo de institucionalização como perda de liberdade, abandono pelos filhos, aproximação da morte, além da ansiedade quanto à condução do tratamento pelos funcionários. Contudo, não devemos esquecer que, muitas vezes, essa ILP cumpre papel de abrigo para o idoso excluído da sociedade e da família, abandonado e sem um lar fixo, podendo se tornar o único ponto de referência para uma vida e um envelhecimento dignos. Suas respostas quanto ao que mais sentiam falta em sua vida antes da institucionalização, foram quase unânimes, quando destacaram sentir saudades do trabalho, dos amigos e dos parentes. Longer & Rodin (apud Teixeira, 2000) demonstraram os efeitos positivos no estado e na saúde de idosos institucionalizados ao se aumentar o sentido de responsabilidade e de controle de suas próprias vidas, afirmando que os problemas ligados ao processo de envelhecimento podem estar na falta desse controle, quase sempre agravados pela institucionalização. Cabe, pois, refletir um pouco mais sobre a importância do trabalho / ofício entre outros fatores, para bem estar destes idosos institucionalizados, para que

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as estratégias de intervenção em sua saúde e qualidade de vida possam ser eficazes, trazendo os benefícios esperados tanto pelos profissionais de saúde, quanto por eles. Outro ponto importante já abordado neste estudo é a relação com outras pessoas, mais precisamente com os parentes e amigos. Sabemos que a rede social pessoal apresenta uma tendência a diminuir à medida em que se envelhece, necessidade que pode se tornar mais intensa quando tratamos do idoso institucionalizado. Associa-se a isto a redução das oportunidades de substituição para essas perdas: “Eu sinto falta é dos meus amigos, né? tá tudo longe, a gente num pode ver eles, né?” (Sr. Azul). “É de lá do lugar que eu tava morando, lá no meio das minhas colegas, no meio dos amigos, então eu sinto falta de lá. É tanto que não vim aqui pra morar. Eu vim prá recuperação, por causa do tombo que tomei...” (D. Cristalina). Para Sluzki (1997b, p.118): “se vêem cada vez mais recolhidas nas relações familiares que carregam consigo suas próprias velhas histórias de lealdade, de dúvidas e esperanças de retribuição de compromissos e ciúmes, de paixões escondidas”. As instituições têm o papel fundamental de atuar como mediadoras e promotoras dessa rede social. Os idosos entrevistados perceberam que o LIMR se preocupa em trabalhar para que essas perdas de vínculos sejam atenuadas, colocando-se como importante elo de uma rede de apoio, além de contribuir para que se estabeleçam novas relações entre os internos: “Não! Num sinto (falta) não, porque hoje eu tô mais tranqüila, que algum tempo eu trabalhei na roça, né?... E hoje meu serviço é só em casa, né? o que eu puder ajudar o outro na casa dele também eu ajudo... (D. Margarida). Com relação ao que sentem necessidade para que tenham uma boa vida, seis idosos afirmaram como necessidade o trabalho e o dinheiro. A resposta desses idosos é pertinente uma vez que 98% dos residentes na parte interna e 93,3% dos residentes na Vila Ozanam possuem uma renda familiar de até um salário mínimo (Da Silva & Santa Clara, 2003). Este quadro ainda se torna mais marcante para os idosos devido à perda da autonomia financeira, visto que, como já analisado anteriormente, são tutelados pela instituição. Mais uma vez foi observado um processo de desempoderamento (Teixeira, 2000) e que é percebido pelos idosos. Sem dúvida alguma, a perda da autonomia financeira e do trabalho se enquadram perfeitamente dentro desses fatores: “A gente pensa em muitas vezes, que se tivesse dinheiro a vida tava melhor, né? Falta do dinheiro...” (D. Branca). O significado da felicidade Segundo Paschoal (2000), avaliar a própria vida para saber se é boa ou ruim é um processo intra - psíquico complexo, abrangendo julgamentos, emoções e projeções para o futuro. Os fatores pessoais e ambientais bem como a saúde e a doença se relacionam na interpretação do indivíduo, determinando de que maneira e o quanto ele valoriza e se sente satisfeito com sua vida. Essa satisfação irá depender não apenas da sensação de prazer e ausência de sofrimento, mas também terá como contribuição esperança, visão de futuro, significado, persistência e auto eficiência. Nordenfelt (apud Paschoal, 2000) elege a felicidade como o principal fator a

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ser identificado com qualidade de vida, pois ela é o mais geral dos conceitos de bem estar, ligando-se de forma muito íntima às vontades e objetivos das pessoas. Desta maneira, alguém é feliz porque seus desejos e objetivos são, ou estão sendo realizados. Para este autor, como os objetivos tendem a ser múltiplos são feitas escolhas e este sentimento floresce quando o objetivo julgado prioritário já foi preenchido. A partir dessas constatações é que pode ser compreendido porque oito dos dez idosos entrevistados responderam que se consideravam pessoas felizes. Em suas respostas evidenciou-se a priorização da rede de apoio e a boa convivência alcançada, como significativos para seu bem estar. Desta forma, seria como se este objetivo superasse todos os outros problemas e isso os preenchesse com um sentimento de felicidade. Não há dúvida, portanto, quanto ao fato de as relações interpessoais serem importantes e essenciais na vida deles. Uchôa et al (2002) destacam que em vários relatos das idosas que entrevistaram, foi possível identificar uma busca ativa de redes de solidariedade extra - familiares. Na pergunta sobre o que tirariam ou colocariam em sua vida para que ela melhorasse, o aspecto econômico foi o principal elemento destacado por eles. O desejo de uma moradia melhor, por exemplo, foi algo muito citado: “A gente pensa que arrumar uma casinha maior, controlar direitinho, comprar uns móveis melhor, né?” (D. Branca). A saúde também foi lembrada pelos idosos: “Ah... mais saúde quanto puder, né? Quanto mais a gente pôr saúde é melhor, né?” (Sr. Azul). Para outros, a possibilidade de voltar à mocidade, renovando a vida e o vigor: “Mas é claro né! Se tivesse jeito da gente renová a vida, e vortá assim ao normal, é bem melhor, né?” (D. Cristalina). Debert (1998) chama a atenção para os perigos desse pensamento, no qual a idéia de juventude eterna, incorporada pelos idosos que negam a velhice, pode dificultar a vivência desta etapa da vida, ao transformar os problemas da idade, doença e morte, em responsabilidade individual. Nenhum dos idosos respondeu que tiraria algo de sua vida para que ela melhorasse. Assim, suas respostas foram sempre voltadas para o acréscimo: “Tirar...? Eu num posso tirar nada! Ah... eu num tenho nada pra tirar, ué!” (Sr. Cravo). Medos: uma questão de superação? Leme (1998) descreve muito bem o medo e a velhice, apontando a morte e o sofrimento como os grandes mistérios da história humana. Procurando identificar seus medos e buscar uma relação dos mesmos com a saúde e o processo de envelhecimento, introduziu-se nas entrevistas uma pergunta bem direta: - Qual é o seu maior medo? Mais uma vez nos surpreenderam as falas. Além de três idosos terem respondido não ter medo de nada, observou-se que a grande maioria faz questão de mencionar não temer a morte, apesar de não se ter perguntado de forma direta isso a eles: “Medo? É de ficar sofrendo. Porque... o medo da morte eu num tenho não. Da morte num precisa ninguém ter medo! Que esse dia chega mesmo, né?” (D. Yasmim). Philibert (apud Duarte, 1998) já afirmava que a morte como realidade

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concreta, nem sempre é temida pelos idosos, que podem encará-la como a libertação de uma vida destituída de significado e amor humano. Por um lado, analisando-se o contexto da história de vida desses idosos, essa afirmação caberia para a interpretação de suas falas; por outro, não deve ser esquecido o valor religioso cultuado por eles. Com relação aos outros medos levantados, surgem como principais, a dependência e a perda da autonomia: “É de ficar prostrada na cama aqui, num ter força prá levantar, tomar um banho sozinha, e... aí isso eu tenho muito medo” (D. Cristalina). Esse medo pode ser relacionado ao processo de envelhecimento, e pode-se dizer que essa percepção se apresenta de maneira muito pertinente. Rosa et al. (2003) identificaram entre outros, as relações interpessoais, as atividades sócio-culturais, o morar sozinho e o nível de escolaridade, como indicadores importantes de capacidade funcional entre os idosos. Lembrando que estes idosos se encontram institucionalizados, podese perceber que há um risco importante de perda da autonomia. Merece também ser destacado que duas idosas referiram que seu maior medo foi a possibilidade de se tornarem vítimas da violência: “Medo? Ce sabe qual é o maior medo que eu tenho? É de morrer de desastre... e tenho medo de tiro” (D. Margarida). Isto pode sinalizar que, de alguma maneira, esses idosos não estão alheios aos acontecimentos externos, principalmente os residentes na Vila Ozanam. E também pode demonstrar que o fato de estarem em uma ILP, não necessariamente os torna alienados. Desejos, sonhos e anseios. Abordam-se aqui as categorias extraídas da última pergunta do protocolo, cujo objetivo foi registrar anseios e desejos dos idosos. Sobressaíram temas tais como, casa própria, saúde, trabalho e autonomia financeira, seguidos pela felicidade e a presença de amigos: “Primeiro pedir a Deus saúde... a felicidade e amizade com todos... ser assim uma pessoa livre, tranqüila... se isso pudesse acontecer era muito bão!” (D. Cristalina). “Ah... viver com saúde né? Trabalhando... e se a gente tivesse a casa da gente... um imovelzinho...” (D. Clara). A gente tem vontade de voltar pra casa ué... vontade de ter junto com os amigos da gente, né?... e mais é ter um pouquinho de dinheiro também... “ (Sr. Azul). Esse foi mais um achado importante, uma vez que se pôde interpretar esses desejos e anseios como possíveis ferramentas para que os idosos busquem a autonomia e a independência, refletindo esperança de um porvir. Considerações finais Este trabalho buscou entender os idosos institucionalizados, a partir da valorização e credibilidade de suas representações. Sem dúvida alguma, a necessidade e o interesse de se estudar e conhecer esse idoso vem aumentando a cada dia, uma vez que muitas lacunas ainda devem ser preenchidas e muitas perguntas respondidas. De acordo com os resultados encontrados, considera-se como principais o que segue. Ao pensar em saúde, os idosos conseguem ultrapassar o sentido de

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ausência de doença. Dentro de suas limitações sócio - culturais e do nível de escolaridade, abordaram o bem -estar físico, mental e social, destacando inclusive a importância da espiritualidade e religiosidade no enfrentamento dos vários sofrimentos e dificuldades da vida. O aspecto econômico e social teve influência em suas falas sobre saúde. O trabalho e a boa convivência, entendendo esta última como representada pelas relações interpessoais e pela rede de apoio, se destacaram em suas opiniões, apresentando-se como uma espécie de “indicadores de saúde”. Na verdade, são fatores que incorporam como valores essenciais para manter uma vida feliz e saudável. Apesar de apresentarem, em sua grande maioria, uma história cercada por limitações e sofrimentos, sua satisfação está muito mais ligada à superação das dificuldades e obstáculos impostos, do que propriamente à ausência deles. Os idosos do LIMR não ignoram seus problemas e sofrimentos mas, ao contrário, os encaram com certa naturalidade, buscando muitas vezes a espiritualidade e a religiosidade como suporte e sustentação para enfrentá-los. Conseguem estabelecer uma distinção entre saúde e velhice, afirmando que não há interferência direta do aumento da idade com o estado de saúde. Contudo, reconhecem a maior probabilidade de perdas e limitações com o próprio envelhecimento. De modo geral, os idosos - alvo da pesquisa se consideraram felizes. A rede de apoio e a boa convivência representaram as grandes chaves para alcance desta felicidade, segundo sua visão de mundo. Além disso, é importante ressaltar que a instituição pôde proporcionar esses fatores e desenvolver o papel de promotora da saúde e bem-estar de seus internos. É muito claro, no entanto, a necessidade de se buscar estratégias que coloquem o idoso como coadjuvante no processo de promoção e bem-estar de sua vida, para que possamos tornar realidade a prática dos conceitos de promoção da saúde dentro deste ambiente, meta que hoje é um grande desafio para os profissionais gerontólogos que se preocupam com esta problemática. Referências BERTAUX, D. L approche biographique. Sa validité méthodologique, ses potentialités. In: BERTAUX, D. Cahiers Internationaux de Sociologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1980. v.69, p.197225. BORN, T. Cuidado ao idoso em instituição. In: PAPALÉO NETTO, M. (Org.) Gerontologia: a velhice e o envelhecimento em visão globalizada. São Paulo: Atheneu, 1996. p.403-14. CARVALHO, F.; TELAROLLI JÚNIOR, R. ; MACHADO, J. C. M. S. Uma investigação antropológica na terceira idade: concepções sobre a hipertensão arterial. Cad. Saúde Pública, v.14, n.3, p.617-21, 1998. DA SILVA, A. N. A.; SANTA CLARA, N. S. Perfil dos idosos institucionalizados e prevalência de dependência em uma instituição de longa permanência da cidade de Caratinga - MG. Caratinga, 2003. Trabalho de conclusão de curso (graduação) - Faculdade de Fisioterapia de Caratinga, FUNEC.

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FREIRE JR, R. C.; TAVARES, M. F. L.

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FREIRE JR, R. C.; TAVARES, M. F. L. La salud desde el punto de vista del anciano institucionalizado: conociendo y valorizando su opinión, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.147-58, set.2004/fev.2005. El objetivo de este trabajo fue analizar las percepciones de los ancianos del Asilo Monseñor Rocha (LIMR) sobre su salud en esa etapa de su vida. Para ello, fue realizado un estudio cualitativo con un grupo de ancianos residentes en esa institución, mediante entrevista semiestructurada individual y, para poder llegar a una comprensión más profunda, también tuvimos acceso a los documentos internos de la institución relacionados con los ancianos residentes. El análisis de las entrevistas nos reveló hallazgos muy interesantes como, por ejemplo, su entendimiento y visión amplia acerca del concepto de salud. Los principales resultados sugieren que hay una relación importante entre el trabajo, la red social, la espiritualidad y el estado de salud y la felicidad. Además, envejecer con salud y estar feliz son posibilidades concretas para ellos. La situación en que se encuentran, institucionalizados, puede despertar en esos ancianos sentimientos de nostalgia y deseos que surgen como expresión de exclusión y limitación. PALABRAS CLAVE: Salud del anciano; institucionalización; promoción de la salud.

Recebido para publicação em 08/07/04. Aprovado para publicação em 11/11/04.

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Educação Permanente em Saúde: desafio ambicioso e necessário

debates

Permanent Education in the Healthcare field: an ambitious and necessary challenge

PALAVRAS-CHAVE: Educação em saúde; educação continuada. KEY WORDS: Health education; continuing education.

Ricardo Burg Ceccim *

PALABRAS CLAVE: Educación en salud; educación continua.

2

Faço a escolha pela designação Educação Permanente em Saúde e não apenas Educação Permanente porque, como vertente pedagógica, esta formulação ganhou o estatuto de política pública apenas na área da saúde. Este estatuto se deveu à difusão, pela Organização Pan-Americana da Saúde, da proposta de Educação Permanente do Pessoal de Saúde para alcançar o desenvolvimento dos sistemas de saúde na região com reconhecimento de que os serviços de saúde são organizações complexas em que somente a aprendizagem significativa será capaz da adesão dos trabalhadores aos processos de mudança no cotidiano. Ver, por exemplo, Maria Alice Roschke, Maria Cristina Davini e Jorge Haddad (Roschke et al., 1994), Maria Alice Roschke e Pedro Brito (Roschke & Brito, 2002) ou Mário Rovere (Rovere, 1996).

Introdução Assumo neste texto um caráter autoral, menos me importando com a revisão da literatura que com o destaque ao desafio de reconhecer no setor da saúde a exigência éticopolítica de um processo educativo incorporado ao cotidiano da produção setorial. Pretendo que o texto cumpra a função de estabelecer um debate, cujas sugestões/ induções de pensamento – ou o despertar de pensamento – localizem mais o problema da necessidade da educação na saúde que os delineamentos pedagógicos da vertente que se pode identificar como Educação Permanente. A identificação Educação Permanente em Saúde2 está carregando, então, a definição pedagógica para o processo educativo que coloca o cotidiano do trabalho – ou da formação – em saúde em análise, que se permeabiliza pelas relações concretas que operam realidades e que possibilita construir espaços coletivos para a reflexão e avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano. A Educação Permanente em Saúde, ao mesmo tempo em que disputa pela atualização cotidiana das práticas segundo os mais recentes aportes teóricos, metodológicos, científicos e tecnológicos disponíveis, insere-se em uma necessária construção de relações e processos que vão do interior das equipes em atuação conjunta, – implicando seus agentes –, às práticas organizacionais, – implicando a instituição e/ou o setor da saúde –, e às práticas interinstitucionias e/ou intersetoriais, – implicando as políticas nas quais se inscrevem os atos de saúde.

1 Professor, Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo Temático de Educação em Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Departamento de Gestão da Educação na Saúde, Ministério da Saúde. <ceccim@edu.ufrgs.br>; <ceccim@saude.gov.br>

Rua Dr. Raul Moreira, 550 Bairro Cristal - Porto Alegre, RS 90.820-160

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DEBATES

A Educação Permanente em Saúde pode corresponder à Educação em Serviço, quando esta coloca a pertinência dos conteúdos, instrumentos e recursos para a formação técnica submetidos a um projeto de mudanças institucionais ou de mudança da orientação política das ações prestadas em dado tempo e lugar. Pode corresponder à Educação Continuada, quando esta pertence à construção objetiva de quadros institucionais e à investidura de carreiras por serviço em tempo e lugar específicos. Pode, também, corresponder à Educação Formal de Profissionais, quando esta se apresenta amplamente porosa às multiplicidades da realidade de vivências profissionais e colocase em aliança de projetos integrados entre o setor/mundo do trabalho e o setor/mundo do ensino. Para muitos educadores, a Educação Permanente em Saúde configura um desdobramento da Educação Popular ou da Educação de Jovens e Adultos, perfilando-se pelos princípios e/ou diretrizes desencadeados por Paulo Freire desde Educação e Conscientização/Educação como Prática da Liberdade/Educação e Mudança, passando pela Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Esperança, Pedagogia da Cidade, Pedagogia da Autonomia e Pedagogia da Indignação3 . De Paulo Freire provém a noção de aprendizagem significativa, por exemplo. Para outros educadores, a Educação Permanente em Saúde configura um desdobramento do Movimento Institucionalista em Educação, caracterizada fundamentalmente pela produção de René Lourau e George Lapassade (Lourau, 1975; Lapassade, 1983 ou Lourau & Lapassade, 1972), que propuseram alterar a noção de Recursos Humanos, proveniente da Administração e depois da Psicologia Organizacional, como o elemento humano nas organizações, para a noção de coletivos de produção, propondo a criação de dispositivos para que o coletivo se reúna e discuta, reconhecendo que a educação se compõe necessariamente com a reformulação da estrutura e do processo produtivo em si nas formas singulares de cada tempo e lugar. Dos institucionalistas provém a noção de auto-análise e autogestão, por exemplo. A Educação Permanente em Saúde configura, ainda, para outros educadores, o desdobramento, sem filiação, de vários movimentos de mudança na formação dos profissionais de saúde, resultando da análise das construções pedagógicas na educação em serviços de saúde, na educação continuada para o campo da saúde e na educação formal de profissionais de saúde. No caso brasileiro, em particular, verificamos, nos movimentos de mudança na atenção em saúde, a mais ampla intimidade cultural e analítica com Paulo Freire4 ; nos movimentos de mudança na gestão setorial, uma forte ligação e uma forte autonomia intelectual com origem ou passagem pelo movimento institucionalista5 e nos movimentos de mudança na educação de profissionais de saúde um intenso engajamento6 , também com uma intensa produção original7 . É deste reconhecimento nacional que tenho tangenciado, desde 2001 (Ceccim & Armani, 2001), a noção de Quadrilátero da Formação, organizada mais recentemente no trabalho intelectual, político e institucional com Laura Feuerwerker (Ceccim & Feuerwerker, 2004a). Para fins deste debate, destaco que aquilo que deve ser realmente central à Educação Permanente em Saúde é sua porosidade à realidade mutável e mutante das ações e dos serviços de saúde; é sua ligação política com a formação de perfis profissionais e de serviços, a introdução de mecanismos, espaços e temas que geram auto-análise, autogestão, implicação, mudança institucional, enfim, pensamento (disruptura com instituídos, fórmulas ou modelos) e experimentação (em contexto, em afetividade – sendo afetado pela realidade/afecção).

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3

A obra de Paulo Freire em Educação se estende de 1959 a 2000. Para identificar o período do primeiro bloco referido, pode-se indicar Educação como prática da liberdade, obra original de 1967 (Freire, 1989) e, para o segundo bloco, Pedagoy of the city, de 1993 (Freire, 1995).

4

Pode-se citar Victor Valla, Eduardo Stotz (Valla & Stotz, 1993; 1994), Eymard Vasconcellos (Vasconcellos, 2001) e Sonia Acioli (Acioli, 2000), por exemplo.

5

Pode-se citar Gastão Campos (Campos, 2003), Emerson Merhy (Merhy, 2002), Luiz Cecílio (Cecílio, 1994) e Solange L’Abbate (L’Abbate, 1997), por exemplo.

6

Pode-se referir a rede de integração docenteassistencial, os projetos UNI e a rede Unida, pode-se citar Roseni Sena (Sena-Chompré, 1998), Laura Feuerwerker (Feuerwerker, 2002), Regina Marsiglia (Marsiglia, 1995; 1998) e Márcio Almeida (Almeida, 1999), por exemplo.

7

Pode-se referir a Comissão Nacional Interinstitucional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem), pode-se citar Regina Stella (Stella, 2001), Rogério Carvalho dos Santos, Roberto Piccini e Luiz Augusto Facchini (Santos et al., 2000) ou, ainda, Emerson Merhy (Merhy, 2002), por exemplo.


DEBATES

Exercício da Educação Permanente em Saúde Além da velocidade com que conhecimentos e saberes tecnológicos se renovam na área da saúde, a distribuição de profissionais e de serviços segundo o princípio da acessibilidade para o conjunto da população o mais próximo de sua moradia – ou de onde procuram por atendimento – faz com que se torne muito complexa a atualização permanente dos trabalhadores. Torna-se crucial o desenvolvimento de recursos tecnológicos de operação do trabalho perfilados pela noção de aprender a aprender, de trabalhar em equipe, de construir cotidianos eles mesmos como objeto de aprendizagem individual, coletiva e institucional. Não há saída, como não há romantismo nisso. Problemas como a baixa disponibilidade de profissionais, a distribuição irregular com grande concentração em centros urbanos e regiões mais desenvolvidas, a crescente especialização e suas conseqüências sobre os custos econômicos e dependência de tecnologias mais sofisticadas, o predomínio da formação hospitalar e centrada nos aspectos biológicos e tecnológicos da assistência demandam ambiciosas iniciativas de transformação da formação de trabalhadores. Assim, ou constituímos equipes multiprofissionais, coletivos de trabalho, lógicas apoiadoras e de fortalecimento e consistência de práticas uns dos outros nessa equipe, orientadas pela sempre maior resolutividade dos problemas de saúde das populações locais ou referidas ou colocamos em risco a qualidade de nosso trabalho, porque sempre seremos poucos, sempre estaremos desatualizados, nunca dominaremos tudo o que se requer em situações complexas de necessidades em/direitos à saúde. A complexidade fica ainda maior em situações concretas, nas quais a presença de saberes tradicionais das culturas ou a produção de sentidos ligada ao processo saúdedoença-cuidado-qualidade de vida pertence a lógicas distintas do modelo racional científico vigente entre os profissionais de saúde, pois não será sem a mais justa e adequada composição de saberes que se alcançará uma clínica que fale da vida real, uma clínica com capacidade terapêutica. Um dos entraves à concretização das metas de saúde tem sido a compreensão da gestão da formação como atividade meio, secundária à formulação de políticas de atenção à saúde. Nem é dirigida às políticas de gestão setorial ou das ações e dos serviços de saúde e nem é compreendida como atividade finalística da política setorial. Tradicionalmente, falamos da formação como se os trabalhadores pudessem ser administrados como um dos componentes de um espectro de recursos, como os materiais, financeiros, infraestruturais etc. e como se fosse possível apenas “prescrever” habilidades, comportamentos e perfis aos trabalhadores do setor para que as ações e os serviços sejam implementados com a qualidade desejada. As prescrições de trabalho, entretanto, não se traduzem em trabalho realizado/sob realização. As reformas setoriais em saúde têm-se deparado regularmente com a necessidade de organizar ofertas políticas específicas ao segmento dos trabalhadores, a tal ponto que esse componente (o “Recursos Humanos”) chegou a configurar uma área específica de estudos nas políticas públicas de saúde. Parece-nos impostergável assegurar à área da formação, então, não mais um lugar secundário ou de retaguarda, mas um lugar central, finalístico, às políticas de saúde. A introdução desta abordagem retiraria os trabalhadores da condição de “recursos” para o estatuto de atores sociais das reformas, do trabalho, das lutas pelo direito à saúde e do ordenamento de práticas acolhedoras e resolutivas de gestão e de atenção à saúde. A introdução da Educação Permanente em Saúde seria estratégia fundamental para a

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recomposição das práticas de formação, atenção, gestão, formulação de políticas e controle social no setor da saúde, estabelecendo ações intersetoriais oficiais e regulares com o setor da educação, submetendo os processos de mudança na graduação, nas residências, na pós-graduação e na educação técnica à ampla permeabilidade das necessidades/direitos de saúde da população e da universalização e eqüidade das ações e dos serviços de saúde. Uma ação organizada na direção de uma política da formação pode marcar estas concepções na gestão do sistema de saúde, mas também demarca uma relação com a população, entendida como cidadãos de direitos. Tal iniciativa pode fazer com que os cidadãos reconheçam tanto a preocupação com a macropolítica de proteção à saúde, como com o desenvolvimento de práticas para a organização do cotidiano de cuidados às pessoas, registrando uma política da valorização do trabalho e do acolhimento oferecido aos usuários das ações e dos serviços de saúde, tendo em vista a construção da acessibilidade e resolutividade da atenção e do sistema de saúde como um todo e o desenvolvimento da autonomia dos usuários diante do cuidado e da capacidade de gestão social das políticas públicas de saúde.

Formação para a Educação Permanente em Saúde Tradicionalmente, o setor da saúde trabalha com a política de modo fragmentado: saúde coletiva separada da clínica, qualidade da clínica independente da qualidade da gestão, gestão separada da atenção, atenção separada da vigilância, vigilância separada da proteção aos agravos externos e cada um desses fragmentos divididos em tantas áreas técnicas quantos sejam os campos de saber especializado. Essa fragmentação também tem gerado especialistas, intelectuais e consultores (expertises) com uma noção de concentração de saberes que terminam por se impor sobre os profissionais, os serviços e a sociedade e cujo resultado é a expropriação dos demais saberes e a anulação das realidades locais em nome do conhecimento/da expertise. Cada área técnica sempre parte do máximo de conhecimentos acumulados em seu núcleo de saberes e de práticas e dos princípios políticos considerados mais avançados, segundo a erudição oriunda deste núcleo de informações, para examinar os problemas de saúde do país. A partir dessas referências propõem “políticas específicas” ou, como tradicionalmente acontece, “programas de ação” ou “ações programáticas”, quase sempre assentadas na assistência individual, em particular sobre o atendimento médico, ou em macropolíticas de vigilância à saúde. Para a implementação de cada “programa de ação”, propõe-se uma linha de capacitações, isto é, uma linha de prescrições de trabalho aos profissionais. Essa linha de capacitações/prescrições substitui o papel das áreas técnicas e dos níveis centrais em definir princípios e diretrizes para as políticas em cada um dos núcleos específicos de acumulação em saúde e, a partir daí, em lugar de estabelecer apoio solidário às esferas gestoras ou de serviços nas quais se desdobram em atos políticos, desfiam cursos, treinamentos e protocolos. As áreas técnicas, tradicionalmente, sem nenhum pudor, se oferecem à prescrição do trabalho e negam sua oportunidade de assessoramento. Em geral, as áreas, os intelectuais especialistas e os consultores trabalham com dados gerais que possibilitam identificar a existência dos problemas e sugerir sua explicação, mas não permitem compreender sua singularidade, sua vigência subjetiva, suas conexões de sentido local. O olhar, a escuta e o assessoramento que permitem compreender a especificidade da gênese de cada problema é necessariamente afetiva e

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local, portanto, é imprescindível que haja encontro entre intelectuais e consultorias docentes com a gestão de sistemas e serviços locais para a elaboração de estratégias adequadas ao enfrentamento efetivo dos problemas. Todos e cada um dos que trabalham nos serviços de saúde, na atenção e na gestão dos sistemas e serviços têm idéias, noções e compreensão acerca da saúde e de sua produção, do sistema de saúde e de sua operação e do papel que cada profissional ou cada unidade setorial deve cumprir na prestação das ações de saúde. É a partir dessas idéias, noções e compreensão que cada profissional se integra às equipes ou agrupamentos de profissionais em cada ponto do sistema. É a partir dessas concepções, mediadas pela organização dos serviços e do sistema, que cada profissional opera. Ao analisarmos um problema institucional, regional ou nacional de maneira contextualizada, descobrimos a complexidade de sua explicação e a necessidade de intervenções articuladas. As capacitações não se mostram eficazes para possibilitar a incorporação de novos conceitos e princípios às práticas estabelecidas – tanto de gestão, como de atenção e de controle social – por trabalharem de maneira descontextualizada e se basearem principalmente na transmissão de conhecimentos. A Educação Permanente em Saúde pode ser orientadora das iniciativas de desenvolvimento dos profissionais e das estratégias de transformação das práticas de saúde. Condição indispensável para uma pessoa ou uma organização decidir mudar ou incorporar novos elementos a sua prática e a seus conceitos é a detecção e contato com os desconfortos experimentados no cotidiano do trabalho, a percepção de que a maneira vigente de fazer ou de pensar é insuficiente ou insatisfatória para dar conta dos desafios do trabalho. Esse desconforto ou percepção de abertura (incerteza) tem de ser intensamente admitido, vivido, percebido. Não se contata o desconforto mediante aproximações discursivas externas. A vivência e/ou a reflexão sobre as práticas vividas é que podem produzir o contato com o desconforto e, depois, a disposição para produzir alternativas de práticas e de conceitos, para enfrentar o desafio de produzir transformações. Para produzir mudanças de práticas de gestão e de atenção, é fundamental que sejamos capazes de dialogar com as práticas e concepções vigentes, que sejamos capazes de problematizá-las – não em abstrato, mas no concreto do trabalho de cada equipe – e de construir novos pactos de convivência e práticas, que aproximem os serviços de saúde dos conceitos da atenção integral, humanizada e de qualidade, da eqüidade e dos demais marcos dos processos de reforma do sistema brasileiro de saúde, pelo menos no nosso caso. Cresce a importância de que as práticas educativas configurem dispositivos para a análise da(s) experiência(s) locais; da organização de ações em rede/em cadeia; das possibilidades de integração entre formação, desenvolvimento docente, mudanças na gestão e nas práticas de atenção à saúde, fortalecimento da participação popular e valorização dos saberes locais. As consultorias, os apoios, as assessorias quando implementadas têm de ser capazes de organizar sua prática de modo que esta produção seja possível; elas precisam oferecer-se desde a pedagogia da Educação Permanente em Saúde para que façam sentido na realidade e operem processos significativos nessa realidade. Novas abordagens, mais potentes para desfazer as dicotomias persistentes e sobre as quais foram construídas as iniciativas anteriores de mudança (individual x coletivo, clínica x saúde pública, especialidade x generalidade, sofisticação tecnológica x abordagens simplificadas) tornam-se impostergáveis.

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A Educação Permanente em Saúde opera o Quadrilátero da Formação A interação entre os segmentos da formação, da atenção, da gestão e do controle social em saúde deveria permitir dignificar as características locais, valorizar as capacidades instaladas, desenvolver as potencialidades existentes em cada realidade, estabelecer a aprendizagem significativa e a efetiva e criativa capacidade de crítica, bem como produzir sentidos, auto-análise e autogestão8. Para tanto, teremos de pensar/providenciar subsídios para que se pense/providencie a Educação Permanente em Saúde. Dentre os elementos analisadores para pensar/providenciar a Educação Permanente em Saúde estão os componentes do Quadrilátero da Formação: a) análise da educação dos profissionais de saúde: mudar a concepção hegemônica tradicional (biologicista, mecanicista, centrada no professor e na transmissão) para uma concepção construtivista (interacionista, de problematização das práticas e dos saberes); mudar a concepção lógico-racionalista, elitista e concentradora da produção de conhecimento (por centros de excelência e segundo uma produção tecnicista) para o incentivo à produção de conhecimento dos serviços e à produção de conhecimento por argumentos de sensibilidade; b) análise das práticas de atenção à saúde: construir novas práticas de saúde, tendo em vista os desafios da integralidade e da humanização e da inclusão da participação dos usuários no planejamento terapêutico; c) análise da gestão setorial: configurar de modo criativo e original a rede de serviços, assegurar redes de atenção às necessidades em saúde e considerar na avaliação a satisfação dos usuários; d) análise da organização social: verificar a presença dos movimentos sociais, dar guarida à visão ampliada das lutas por saúde e à construção do atendimento às necessidades sociais por saúde. O papel das práticas educativas deve ser crítica e incisivamente revisto para que almeje a possibilidade de pertencer aos serviços/profissionais/estudantes a que se dirigem, de forma que os conhecimentos que veiculam alcancem significativo cruzamento entre os saberes formais previstos pelos estudiosos ou especialistas e os saberes operadores das realidades – detidos pelos profissionais em atuação – para que viabilizem auto-análise e principalmente autogestão. Os saberes formais devem estar implicados com movimentos de auto-análise e autogestão dos coletivos da realidade, pois são os atores do cotidiano que devem ser protagonistas da mudança de realidade desejada pelas práticas educativas. Uma questão à auto-análise e à autogestão dos coletivos é o trabalho com eixo na integralidade para superar a modelagem de serviços centrados em procedimentos, de usuários interpretados como peças orgânicas ou como o simples território onde evoluem os quadros fisiopatológicos e de doenças enfrentadas como eventos biológicos (como se esse conhecimento fosse de ciências naturais)9 . Dessa maneira, além de processos que permitam incorporar tecnologias e referenciais necessários, é preciso implementar espaços de discussão, análise e reflexão da prática no cotidiano do trabalho e dos referenciais que orientam essas práticas, com apoiadores matriciais de outras áreas, ativadores de processos de mudança institucional e facilitadores de coletivos organizados para a produção. Tomar o cotidiano como lugar aberto à revisão permanente e gerar o desconforto com os lugares “como estão/como são”, deixar o conforto com as cenas “como estavam/como eram” e abrir os serviços como lugares de produção de subjetividade, tomar as relações como produção, como lugar de problematização, como abertura para a produção e não

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8 Pode-se sugerir a leitura da produção em colaboração de Ceccim & Feuerwerker, 2004a e b.

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Para compreender a integralidade, pode-se citar outros brasileiros: Ruben Mattos, Roseni Pinheiro (Pinheiro & Mattos, 2001; 2003; 2004), Kenneth Camargo Jr. (Camargo Jr., 2003) e Madel Luz (Luz, 1988), por exemplo.


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como conformação permite praticar contundentemente a Educação Permanente em Saúde. Para ocupar o lugar ativo da Educação Permanente em Saúde precisamos abandonar (desaprender) o sujeito que somos, por isso mais que sermos sujeitos (assujeitados pelos modelos hegemônicos e/ou pelos papéis instituídos) precisamos ser produção de subjetividade: todo o tempo abrindo fronteiras, desterritorializando grades (gradis) de comportamento ou de gestão do processo de trabalho. Precisamos, portanto, também trabalhar no deslocamento dos padrões de subjetividade hegemônicos: deixar de ser os sujeitos que vimos sendo, por exemplo, que se encaixam em modelos prévios de ser profissional, de ser estudante, de ser paciente (confortáveis nas cenas clássicas e duras da clínica tradicional, mecanicista, biologicista, procedimento-centrada e medicalizadora). Se somos atores ativos das cenas de formação e trabalho (produtos e produtores das cenas, em ato), os eventos em cena nos produzem diferença, nos afetam, nos modificam, produzindo abalos em nosso “ser sujeito”, colocando-nos em permanente produção. O permanente é o aqui-e-agora, diante de problemas reais, pessoas reais e equipes reais. A mudança na formação por si só ajuda, mas essa mudança como política se instaura em mais lugares, todos os do Quadrilátero, pois todos esses lugares estão conformados em acoplamento de captura da Educação Permanente em Saúde. Tanto a incorporação crítica de tecnologias materiais, como a eficácia da clínica produzida, os padrões de escuta, as relações estabelecidas com os usuários e entre os profissionais representam a captura da Educação Permanente em Saúde e, por conseguinte, dos processos de mudança. É por isso que a Educação Permanente em Saúde é um desafio ambicioso e necessário.

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Recebido para publicação em 18/10/04. Aprovado para publicação em 27/10/04.

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Comentarios estimulados por la lectura del artículo “Educação PERMANENTE em Saúde: desafio ambicioso e necessário” Mario Rovere

En principio quiero explicitar que estoy analizando este trabajo (lamentablemente solo puedo hacerlo en español) con una gran simpatía por el tema, por el autor y por el artículo lo que tal vez dificulte mi tarea de “debatedor”. Mi intento de deconstrucción siguió un poco el método salvaje de marcar el texto a medida que lo iba leyendo, así que voy a seguir el orden del propio artículo y compartir lo que más me movió a reflexión, me hizo sobresaltar o me generó entusiasmo. Me anticipo a comentar que algunas dudas que me surgieron al principio del documento son contestadas en párrafos posteriores pero me parecieron útiles para contribuir al debate. El propio autor invita a que el texto “cumpra a função de estabelecer um debate”, y ese debate comienza para mí en la colocación de la Educación Permanente en Salud (EPS) como un marco que absorbe las diferentes formas de educación en el sector. ¿Es, entonces, la Educación Permanente un nuevo modelo educacional que puede permear cualquiera de las prácticas educativas? ¿Desde la formación de grado hasta la educación continua promovida por las corporaciones? o es por su esencia aprendizaje en servicio al ser necesariamente situada en los escenarios de los servicios de salud cualesquiera sean ellos. O más bien necesitaríamos dos conceptos enlazados uno que exprese las dimensiones emancipadoras del modelo educacional y otro el carácter situacional del aprendizaje en los propios escenarios laborales de los servicios de salud en todas sus dimensiones (quizás conectado con los Institucionalistas aunque estimo que esta perspectiva está mucho menos trabajada por la conceptualización que la OPAS realizó sobre la EPS). Allí el conector para “a noção de auto-análise e autogestão” podría ser la propia dimensión problematizadora aportada por Freire que lleva a la formulación “educación en el trabajo, a través del trabajo y para el trabajo” (Rovere, 1995, p.70) . En relación con el propio “Exercício da Educação Permanente em Saúde” parece extraño comenzar las motivaciones por la velocidad del conocimiento porque es una motivación habitual para las formas clásicas de educación en el sector. Tal vez la Educación permanente de trabajadores, equipos y redes de equipos desencadene sus motivaciones, mas bien en cierta insatisfacción profunda con ese caudal de conocimientos e innovación que fortalece la atención de la salud como mercadería a ser transada en el mercado de servicios de salud y reacciona frente a la despreocupación por pensar la integralidad de los problemas de salud y de las respuestas que trabajadores de salud y población requieren construir juntos para enfrentar la complejidad creciente de los problemas sociales y sanitarios.

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Coordinador de la Maestría de Salud Pública, Universidad de Buenos Aires. <mrovere@fibertel.com.ar>

Av. Elcano, 3207 Buenos Aires, Argentina ZIP 1426

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Tal vez las ambiciosas iniciativas de transformación en realidad marcan y demarcan un campo de fuerzas que debe ser constantemente cartografiado para que la educación permanente no sea reabsorbida como una metodología moderna y eficiente para aprender lo mismo. Estamos insinuando una transformación en la cultura de salud en la que la EPS es al mismo tiempo método y contenido portador de nuevas formas de resolver los problemas de salud. Así se entiende el dilema de hierro planteado por el autor “ou constituímos coletivos de trabalho ... orientadas pela sempre maior (y diferente) resolutividade dos problemas de saúde ou colocamos em risco.... a qualidade de nosso trabalho” (y la salud de la población). Un nuevo desafío llega en el siguiente párrafo ya que a pesar de la referencia a los saberes tradicionales me parece que siempre en cualquier cultura y en cualquier sector social la “produção de sentidos ligada ao processo saúde-doença-cuidado-qualidade de vida pertence a lógicas distintas do modelo racional científico vigente entre os profissionais de saúde.” El problema es cuando la clínica queda atrapada en un molde cientificista reforzada por un modelo de gestión fabril que la transforma en mercadería. En referencia a si la EPS es una actividad medio, creo que el debate continúa a través de los años Educar para Transformar - Transformar para Educar es el título de un libro de Nuñez que creo que sirve para dejar abierta esta polaridad. Comparto que la lógica de Recursos Humanos es un gran límite y que puede perfectamente ser asociado a un factor productivo. Sin embargo vale la pena recordar que al menos en español el concepto de formación es elegido casi en un sentido inverso para contestar las tendencias mas conductistas o “behavioristas” del entrenamiento, de la capacitación y del adiestramiento. Formación así remite a formación integral de una persona para liberarla de los aprendizajes utilitarios para que se contacte con el saber universal y desarrolle su potencial de aprender a aprender. A mí también me parece “impostergável assegurar à área da formação, então, não mais um lugar secundário ou de retaguarda, mas um lugar central, finalístico” creo yo un espacio de formación de militantes por el direito a saude. Al respecto Tenti Fanfani observa que en su origen la palabra “pro fe sional”, como la palabra “pro fe sor” deriva de la raíz latina profesare, es decir que el profesional no se define tanto como aquel que detenta el monopolio de un saber, de un campo de conocimiento o de un conjunto de técnicas sino como quien tiene un compromiso con un objeto y con su transformación. En la salida de los trabajadores de su posición de “recursos humanos” a actores sociales no hay que olvidar, como se señala mas adelante, que “los sujetos están sujetados”; sujetados a modelos de formación, a modelos de práctica, a modelos de gestión, en definitiva a un “habitus” como diría Bourdieu no es sencillo ni depende solo de un acto de voluntad. Esta transformación es compleja y profundamente social ya que incluirse en las luchas por el derecho a la salud requiere condiciones y tiempos de maduración. También coincido en que la Educação Permanente em Saúde seria (o más bien es) “uma estratégia fundamental para a recomposição das práticas...” de una larga lista de procesos educativos en la que solo agregaría a la propia educación popular en salud, tal como algunos países (por ejemplo Bolivia) han incluido, sobre la base del mismo paradigma educacional que la EPS. En relación con la “Formação para a Educação Permanente em Saúde” yo agregaría, para caracterizar el campo de fuerzas, la influencia que ha tenido en el pensamiento y la práctica de la administración hospitalaria el management americano muy teñido de

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2 Agentes de propaganda de los laboratorios farmacéuticos.

improntas fabriles. En tiempos bastante recientes aun se podía escuchar en América Latina “en última instancia un hospital es una fábrica de consultas y egresos”. Esta imagen aun no ha sido totalmente desalojada ya que los sistemas de estadísticas de hospitales refuerzan una verdadera obsesión por el productivismo en los servicios de salud. Por eso resistir a la línea prescriptiva de los especialistas es difícil, porque el modelo de gestión fabril los refuerza y además porque muchos de ellos se encuentran directa o indirectamente estimulados por el propio “complejo médico industrial” que financia una buena parte de las actividades científicas, congresos, investigaciones y publicaciones. En tal caso no pude dejar de recordar una historia real que me sucedió durante una supervisión en el Norte de la Argentina cuando el único médico a cargo de una estación sanitaria me decía “y como quiere que me capacite si aquí no llegan los visitadores 2 médicos” . La noción de proceso y de difusión reticular de la educación permanente constituye una descripción muy ajustada pero talvez valdría la pena discutir sobre los aspectos de sustentabilidad de la propia educación permanente y de la necesidad de agentes internos o externos que dinamicen y hagan circular. La concepción de una fuerza laboral activa y movilizada por la calidad de los servicios y la equidad en la atención es una imagen que ayuda a dar visibilidad positiva al personal de salud. En referencia al “Quadrilátero da Formação” me parece un dispositivo muy interesante e ingenioso para conectar procesos que suelen pensarse por separado. Coincido en que “tomar o cotidiano como lugar aberto à revisão permanente e gerar o desconforto com os lugares como estão/como são”, constituye la principal motivación de los procesos de aprendizaje de la EPS. La idea de abandonar (desaprender) o sujeito que somos para ser “produção de subjetividade: todo o tempo abrindo fronteiras, desterritorializando” dista de ser un párrafo más y menos aun una conclusión, instala un aumento del voltaje que en cierta forma fuerza a revisitar el documento desde su comienzo. Al hacerlo siento que el propio autor - en consistencia con la propia EPS - se ha ido desplazando durante la escritura para proponernos sobre el final una acción contrahegemónica, que incluye mecanismos que pueden liberar a la propia educación permanente - al mismo tiempo permanente y situacional (aqui-e-agora) - hoy capturada desde todos los vértices del cuadrilátero. De ese tamaño es nada menos la dimensión del desafío.

Referências ROVERE, M. Gestión estratégica de la Educación Permanente. In: HADDAD, J.; ROSCHKE, M.; DAVINI, C. (Orgs.) Educación permanente en salud. Washington: OPAS, 1995. p.63-109.

Recebido para publicação em 11/11/04. Aprovado para publicação em 17/11/04.

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O desafio que a educação permanente tem em si: a pedagogia da implicação

Emerson Elias Merhy 1

Neste texto Ricardo faz um desafio: a produção do cuidado em saúde e sua micropolítica são constituídas de práticas pedagógicas, e não só de ações tecnológicas típicas da construção de atos de saúde, no senso estrito; portanto, toda aposta que visa interferir no campo de produção da saúde tem de reconhecer isso como uma necessidade para a ação. Este autor, dando conseqüência a esta noção, propõe uma problematização sobre a educação em saúde, advogando com muitos outros a idéia da educação permanente e passando a reconhecer que: “torna-se crucial o desenvolvimento de recursos tecnológicos de operação do trabalho perfilados pela noção de aprender a aprender, de trabalhar em equipe, de construir cotidianos eles mesmos como objeto de aprendizagem individual, coletiva e institucional.” Creio que este desafio nos permite a construção de uma grande pauta de discussões e reflexões e, até mesmo, de novas produções teóricas. Entretanto, aqui e agora, estou estimulado por duas idéias em particular, para olhar o que considero nuclear no desafio proposto. Uma delas, refere-se a um fenômeno bem comum entre nós. Não é possível sustentarmos mais as quase exclusivas visões gerenciais que se posicionam sistematicamente pela noção de que a baixa eficácia das ações de saúde é devida à falta de competência dos trabalhadores e que pode ser corrigida a medida que suprimos, por cursos compensatórios, aquilo que lhes falta. Diante desta visão do problema, estes gestores passam a propor cursinhos à exaustão, que consomem recursos imensos e que não vêm gerando efeitos positivos e mudancistas nas práticas destes profissionais. Óbvio que, aqui, não estou jogando a criança com a água do banho; há treinamentos que são necessários para a aquisição de certas técnicas de trabalho, mas isso é pontual e pode ser suprido sem muita dificuldade. O que aponto é a necessidade de olharmos de outros modos explicativos para esta relação em dobra: educação em saúde e trabalho em saúde, na qual é impossível haver separação de termos. Um produz o outro. Com efeitos fundamentais tanto para a construção da competência do trabalhador, quanto para a expressão de seu lugar enquanto sujeito ético-político produtor de cuidado, que impacta o modo de viver de um outro, material e subjetivamente constituído (o usuário, individual e/ou coletivo). Aliás, estas questões já vêm sendo objeto de preocupações da própria equipe de trabalho da qual o Ricardo faz parte.

1

Professor, Universidade de Campinas, Unicamp. <emerson.merhy@gmail.com>

Rua Ana Fratta de Paula, 176, casa 30 Sousas - Campinas, SP 13.014-028

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O projeto do Ministério da Saúde, do Governo Lula, sobre os Pólos de Educação Permanente vem constituindo uma forma de construir um terreno para a problematização necessária da mudança do conjunto das práticas dos gestores da saúde quanto a suas intervenções no campo da educação em saúde, enquanto pauta nacional. Como instância do SUS, esses Pólos não necessariamente respondem de modo uniforme a esta pauta, pois a instalação de múltiplos atores loco-regionais lhe dão singularidades que não podem ser desprezadas. Mas o terreno e o sentido da política estão aí instalados, cabendo aos atores concretos resolvê-los nos seus modos de produzir o SUS, no Brasil. Não há solução para estes processos à parte daquela que é encontrada para a constituição do SUS como institucionalidade. A multiplicidade desta se expressa também nos Pólos. Esta dimensão está articulada ao desafio que Ricardo provoca e a tocarei na reflexão da minha segunda grande questão, que tem a ver, no meu ponto de vista, com o tipo de prática de educação que deve ser induzida, que deve ser construída, nos marcos deste debate da educação permanente. Ou seja, tem a ver com certo posicionamento necessário em relação ao modo de encarar a construção das ações no campo da saúde e da educação, implicadas com a visão em dobra destes dois territórios de práticas sociais, já citada anteriormente. Ricardo aponta isso em vários momentos de seu texto, reafirmando a importância do lugar do trabalhador como protagonista efetivo deste processo: “à área da formação, então, não mais um lugar secundário ou de retaguarda, mas um lugar central, finalístico às políticas de saúde. A introdução desta abordagem retiraria os trabalhadores da condição de “recursos” para o estatuto de atores sociais das reformas, do trabalho, das lutas pelo direito à saúde e do ordenamento de práticas acolhedoras e resolutivas de gestão e de atenção à saúde.” Quando fala da pedagogia do processo que possa estar articulado a este novo agir, aponta como dispositivos analisadores, que podem instituir novas lógicas no agir do trabalhador, o “quadrilátero da formação”, apostando que ele pode cumprir este núcleo do desafio, procurando mostrar a possibilidade auto-analítica desses componentes. De modo correto, mostra que todo processo que esteja comprometido com estas questões da educação permanente tem de ter a força de gerar no trabalhador, no seu cotidiano de produção do cuidado em saúde, transformações da sua prática, o que implicaria força de produzir capacidade de problematizar a si mesmo no agir, pela geração de problematizações “– não em abstrato, mas no concreto do trabalho de cada equipe – e de construir novos pactos de convivência e práticas, que aproximem os serviços de saúde dos conceitos da atenção integral, humanizada e de qualidade, da eqüidade e dos demais marcos dos processos de reforma do sistema brasileiro de saúde, pelo menos no nosso caso.” E aí está o cerne de um grande novo desafio: produzir auto-interrogação de si mesmo no agir produtor do cuidado; colocar-se ético-politicamente em discussão, no plano individual e coletivo, do trabalho. E isto não é nada óbvio ou transparente. Não me parece que para gerar “auto-análise e autogestão dos coletivos” o “trabalho com eixo na integralidade” tenha força em si, ou mesmo, que “as consultorias, os apoios, as assessorias quando implementadas” tenham capacidade de gerar isso com os analisadores (do quadrilátero) da Educação Permanente em Saúde, se não conseguirem atingir a alma do operar ético-político do trabalhador e dos coletivos na construção do cuidado, que é o modo como estes dispõem do seu trabalho vivo em ato, enquanto força produtiva do agir em saúde.

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DEBATES

Parece que estamos diante do desafio de pensar uma nova pedagogia - que usufrua de todas as que têm implicado com a construção de sujeitos auto-determinados e comprometidos sócio-historicamente com a construção da vida e sua defesa, individual e coletiva – que se veja como amarrada a intervenção que coloca no centro do processo pedagógico a implicação ético-político do trabalhador no seu agir em ato, produzindo o cuidado em saúde, no plano individual e coletivo, em si e em equipe. Colocar isto em análise, cobra dos dispositivos analisadores (os do quadrilátero) uma certa amarração com os componentes nucleares da micropolítica da produção do cuidado em saúde, individual e coletivo. Isto significa que o analisador tem de ter a potência de expor o trabalho vivo em ato para a própria auto-análise e pedagogicamente abrir espaços relacionais para poder se falar e se implicar com isso. Esta pedagogia da implicação, parece-me inseparável do desafio que Ricardo aponta para a Educação Permanente. Construí-la no cotidiano dos serviços de saúde e como eixo ordenador de ações nos Pólos deve ser uma perseguição implacável para quem quer efetivamente mudar o modo de se fabricar saúde, entre nós. Por isso, aponto que para a educação permanente de fato tornar-se um bom desafio, fazse necessário trabalhar este outro desafio em si, ainda muito em aberto, e que pede para ser enfrentado de modo mais ampliado do que já se tem de elaboração.

Recebido para publicação em 18/11/04. Aprovado para publicação em 22/11/04.

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DEBATES

RÉPLICA

Ricardo Burg Ceccim

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Problematizar é colocar questões às perguntas em lugar de respostas, tornar a reflexão uma prática de pensamento (levantar questões, interrogações, desafios, exploração de campos) e exercer a análise das práticas como dispositivo de mutação singular (refletida ou voluntária). Inventar problemas é implicarse ativamente no mundo, acolher a alteridade, o estranhamento e as incertezas, tomar o mundo e a si mesmo como obra de arte invenção permanente; esculpir o tempo [Deleuze (1987, p. 50) diz que a arte é o destino inconsciente do aprendiz].

O tema da Educação Permanente em Saúde coloca um corte na didática geral: não se trata da passagem de um estado de desconhecimento ao de conhecimento, não se trata da melhor e mais eficiente transmissão de saberes, não é uma metodologia pedagógica que se esgota à demonstração pelo aluno da aquisição de informação ou habilidade. Creio que aprofundam este corte os dois instigantes pontos que colho das argüições de Rovere e Merhy: os processos de territorialização e os processos de subjetivação, a que podemos chamar implicação política e implicação ética ou produção do mundo e produção de si. A Educação Permanente em Saúde é uma estética pedagógica para a experiência da problematização e da invenção de problemas1 . Para o setor da saúde, esta estética é condição para o desenvolvimento de uma inteligência da escuta, do cuidado, do tratamento, isto é, uma produção em ato das aprendizagens relativas à intervenção/ interferência no andar da vida individual e coletiva. Rovere questiona se a educação permanente seria um novo modelo educacional com capacidade de permear qualquer prática educativa e se ela tem inscrição situada nos cenários de trabalho da saúde. Tomo essa questão como interrogação sobre o território dessa prática. Rovere sugere a resposta: o território não é físico ou geográfico: o trabalho. O território é de inscrição de sentidos: no trabalho, por meio do trabalho, para o trabalho. O processo de territorialização é o processo de “habitar um território” (Kastrup, 2001, p.215). Deseja-se como efeito de aprendizagem a prevalência da sensibilidade, a destreza em habilidades (saber-fazer) e a fluência em ato das práticas. Para Kastrup, o habitante de um território não precisa passar pela representação, o habitar resulta de uma corporificação do conhecimento. Para habitar um território será necessário explorálo, torná-lo seu, ser sensível às suas questões, ser capaz de movimentar-se por ele com ginga, alegria e descoberta, detectando as alterações de paisagem e colocando em relação fluxos diversos: técnicos, cognitivos, políticos, comunicacionais, afetivos etc.. O território é o da saúde, mas para a educação permanente projetada aqui está em jogo um processo de territorialização: construção da integralidade, da humanização e da qualidade na atenção e na gestão em saúde, com um sistema e serviços capazes de acolhimento do outro, responsabilidade para com os efeitos das práticas adotadas, resolutividade dos projetos terapêuticos e afirmação da vida pelo desenvolvimento da autodeterminação dos usuários e da população em matéria de saúde.

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DEBATES

Esse processo de territorialização não se restringe à dimensão técnico-científica do diagnóstico e da terapêutica ou do trabalho em saúde, mas se estende à orientação das práticas, à construção de um estar no campo de saberes e de práticas da saúde que envolve desterritorializar saberes hegemônicos e práticas vigentes. Rovere chama-nos a atenção para o fato de que territórios geram habitus e que não é simples e nem dependente de um simples ato de vontade a transformação que inclui a luta pelo amplo direito à saúde. À força de captura das racionalidades médico-hegemônica e gerencial hegemônica será preciso impor a necessidade da singularização, convocar permanentemente à fronterira dos territórios. A desterritorialização nada mais será que o permanente descosimento ou dobramento e redobramento das linhas de fronteira dos territórios, por isso a imposição dos Pólos de Educação Permanente em Saúde2 , com sua composição múltipla e complexa, é tão importante. Merhy questiona a capacidade de uma pedagogia se comprometer com a construção da vida e sua defesa individual e coletiva sem a implicação de cada trabalhador com seu agir em ato, produzindo o cuidado em saúde, no plano individual e coletivo, em si e em equipe. Merhy tece o seu desafio: uma pedagogia da implicação cobra amarração com os componentes nucleares da micropolítica da produção do cuidado em saúde, individual e coletivo. Tomo a micropolítica da produção do cuidado como uma questão sobre os processos de subjetivação3 . A micropolítica se ocupa da desindividualização, isto é, de encontrar os processos de subjetivação que devem ser desfeitos, a fim de seguirmos a formação do novo, o que está emergindo de forma inédita ou a atualidade, conforme esclarece Deleuze (1992, p.9)4. Para a micropolítica interessa a vitória das forças que engendram e afirmam a vida, a dissolução das identidades (processo de subjetivação capturado pelos instituídos) e a reconfiguração das formas e figuras do ser (perpetuar a força de germinação e gênese do vivo). Efeitos de subjetivação emergem das atividades de educação permanente, das problematizações ao pensar-agir-perceber e de sua interpretação emerge como aprendizagem significativa a invenção de si. Aquele que aprende é pressionado pelas problematizações a reinventar-se, aos seus coletivos e às suas instituições. Num Pólo de Educação Permanente em Saúde onde estão movimentos sociais e de estudantes, docentes e gestores, trabalhadores e usuários as relações são complexificadas, afirmam-se possibilidades, desmancha-se a ilusão da homogeneidade, criam-se novas regras de negociação em ato frente às necessidades individuais e coletivas, multiplicando-se os agenciamentos de subjetivação. Há uma virada de muitos valores. Dar possibilidade, então, às subjetivações será, também, componente de uma dessubjetivação, isto é, despregar-se da captura da divisão técnica e intelectual do trabalho, da verticalização gerencial e da hierarquização e especialização das aprendizagens e será conquista de uma cronologia da implicação em que não há quantidade de tempo, tampouco continuidade evolutiva de mutações, mas o crescimento dos compromissos com a educação permanente ou da permeabilidade a sua necessidade. Os processos de subjetivação impõem a invenção incessante de novas formas. Os modos de ver, dizer e julgar que aprendemos como verdadeiros ganham novas composições, novas perspectivas, conforme favoreçam a vida e afirmem sua potência criadora. Nem um subjetivismo de conviver com as diferenças e incluir quaisquer diferenças, nem um assujeitamento de doutrinação ideológica, mas implicação, formação de coletivos e produção de diferença-em-nós. Ambos argüidores dizem por si mesmos coisas que endosso, portanto, não vou

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Os Pólos de Educação Permanente em Saúde integram a política de educação e desenvolvimento para o SUS (Brasil, 2004). 3

Micropolítica é um termo inventado por Guattari (Guattari & Rolnik, 1986) e se refere aos efeitos de subjetivação, conjunto de fenômenos e práticas capazes de ativar estados e alterar conceitos, percepções e afetos (modos de pesarsentir-querer). 4

A atualidade é uma formulação com base em Foucault e se refere ao contato da fronteira do real com as virtualidades. Na permanente tensão de fronteiras entre real (aquilo que é) e o virtual (aquilo que pode) revela-se o atual (plano de composição, as reconfigurações).


DEBATES

contra-argüir, assinaria em parceria e proponho ao leitor o prolongamento do debate. Não posso deixar de enunciar antes de concluir o papel das instituições formadoras. Quando Rovere exemplificou os agentes publicitários dos fabricantes de medicamentos, ele ativou a crítica às práticas de educação do sistema de ensino: ou oferecem pacotes de capacitação do mesmo modo a que ele chamou visitador ou oferecem percursos de habilitação técnica: modo diplomador. Nas instituições de ensino superior não se opera com a noção de aprender a aprender, apenas o aprender o sempre-já-lá da ciência e da técnica. Para a Educação Permanente em Saúde não haverá o norte do sempre-já-lá, mas a ativa circulação do aprender a aprender: experimentação e compartilhamento de problematizações e práticas de pensamento em ato (por desnaturalização de valores, exposição à alteridade, criação, como defendido em Ceccim, 1998).

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política de educação e desenvolvimento para o SUS: caminhos para a Educação Permanente em Saúde – pólos de Educação Permanente em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. CECCIM, R. B. Políticas da inteligência: tempo de aprender e dessegregação da deficiência mental. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998. DELEUZE, G. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1986. KASTRUP, V. A cognição contemporânea e a aprendizagem inventiva. Arq. Bras. Psicol., v.49, n.4, p.108-22, 1997. KASTRUP, V. Aprendizagem, arte e invenção. Psicol. Estud., v.6, n.1, p.17-25, 2001.

Recebido para publicação em 27/12/04. Aprovado para publicação em 29/12/04.

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1º Seminário Nacional de

Aconteceu em Brasília-DF, entre os dias 18 a 20 de Agosto de 2004, o 1º Seminário Nacional de Saúde da População Negra, organizado pelo Ministério da Saúde e Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, com o apoio do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ministério Britânico para o Desenvolvimento Internacional (DFID), Programa das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM). Reuniu 278 participantes, das 27 Unidades da Federação. Estiveram presentes gestores de saúde, representantes dos órgãos públicos federais, da sociedade civil e observadores internacionais. O Seminário cumpriu papel importante na perspectiva da implementação do recorte raça/ cor no Plano Nacional de Saúde. O diálogo estabelecido entre os gestores e técnicos do sistema de saúde, com pesquisadores da saúde da população negra e com representantes do Movimento Social Negro gerou não só propostas para o aprimoramento do Sistema Único de Saúde, mas também compromissos técnicos, políticos e humanos. A seguir o manifesto aprovado pelos participantes do Seminário. Maria José Pereira dos Santos , Relatora do Documento Geral do Seminário

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notas breves

Um grito pela eqüidade O Brasil é um país repleto de desigualdades expressas nas relações étnico-raciais, etárias, de gênero e territoriais. O SUS é um sistema público e universal baseado nos princípios da eqüidade, integralidade da atenção e controle social e que se materializa nos estados, municípios e em cada unidade de saúde mediante uma atenção de qualidade e humanizada. Neste sentido o sistema, deve assumir como desafio permanente, a inclusão social e a luta pela eliminação de todo e qualquer tipo de discriminação seja ela de origem étnico-racial, religiosa, por orientação sexual, porte de necessidades especiais ou deficiência ou outra situação. Nós, mulheres e homens que atuamos nos serviços, na pesquisa, na gestão e no controle social, reunidos no Seminário Nacional de Saúde da População Negra, propomos dar um basta no racismo que determina desigualdades ao nascer, viver e morrer para quase metade da população Brasileira. “Não há democracia racial no Brasil”! O racismo desumaniza e desqualifica o trabalho em saúde e tem como resultado uma expectativa de vida menor para a população negra: as taxas de morte materna e infantil são maiores; a violência produz mais mortes e mortes mais precoces neste grupo. Além disso, ainda temos problemas no que se refere à área de informação, capacitação e formação em saúde. Os gestores representados pelo Ministro da Saúde, pelos presidentes do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde; o representante da Organização Panamericana de Saúde no Brasil, o Conselho

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NOTAS BREVES

Nacional de Saúde e a Ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial assinaram um termo onde a inclusão social e a redução dos diferentes níveis de vulnerabilidade são premissas de um compromisso de parceria permanente pelo avanço do SUS. Este Seminário foi mais um momento histórico da luta contra a discriminação racial e propõe a toda sociedade e, em especial, aos gestores: 1. A realização de um amplo processo de disseminação de informação sobre a doença falciforme enquanto uma patologia de grande prevalência na população negra; 2. A priorização de ações dirigidas às comunidades quilombolas, de modo a incluílas definitivamente nas ações do SUS em cada um dos vinte e três estados onde estão

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presentes; 3. A utilização do quesito cor na produção de informações para o processo decisório da gestão em saúde, na agenda de pesquisa e na educação permanente; 4. A organização de ações na área de atenção em saúde que levem em consideração as desigualdades sócio-raciais, onde seja garantida a resposta às necessidades da população negra e à integralidade, sem discriminação. 5. A luta pela vida é nosso objetivo principal, e isto significa garantir os princípios do SUS. A cor da pele não pode ser um obstáculo nesta luta. Brasília, 20 de agosto de 2004. Seminário Nacional Saúde da População Negra

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livros

Ameaça de identidade e permanência da pessoa LAURINDO DA SILVA, L. Trad. Rodnei A. Nascimento. São Paulo: Cortez, 2004. (Coleção Questões da nossa época, v.113). 120p.

Em boa hora chega ao Brasil, lançado na última Bienal do Livro, em São Paulo, em abril deste ano, esse trabalho de Lindinalva Laurindo da Silva, parte de sua tese de doutorado, defendida na École des Hautes Études em Sciences Sociales-Paris e publicada pela editora Harmattan, em 19991. Com certeza, a leitura desse texto será de grande relevância para os estudiosos da Aids, assim como para os cientistas sociais que se questionam sobre as possibilidades de articular as abordagens das representações sociais e das ações específicas das pessoas, quando se trata de analisar uma doença grave e mortal. A base do estudo é uma investigação empírica sociológica, realizada em 1988, junto a quarenta doentes de Aids em fase avançada, homossexuais e bissexuais masculinos, internados em hospital-dia do Centro de Referência e Treinamento de DST/ Aids (CRT) da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. O texto, desenvolvido de forma extremamente didática, inicia-se com uma breve introdução, na qual a autora reafirma a atualidade da problemática da Aids, pois apesar dos progressos em relação ao

1 LAURINDO DA SILVA, L. Vivre avec le SIDA em phase avancée: une étude de sociologie de la maladie. Paris/Montréal: L’Harmattan, 1999. 315p.

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tratamento dessa doença, ocorridos após a realização da investigação, não se pode esquecer que as pessoas continuam morrendo da doença ainda que em menor número, e são bastante significativos os efeitos colaterais do longo e duro tratamento. Por isso, o estudo não se inscreve na história da epidemia, pois na confrontação com qualquer doença grave e crônica, a pessoa deve ordenar todos os problemas que a afligem: tratamento, manutenção da vida material, questões de conotação moral, a perspectiva de morte contida na doença e o vínculo com os outros e consigo mesmo. (p.11)

Em seguida, no capítulo I, Da representação à ação: as doenças e os doentes como objetos da sociologia, a autora apresenta o quadro teórico que fundamenta sua análise. Trata-se de referencial no qual as representações sociais mais gerais em relação à doença são articuladas às ações singulares do doente, enquanto pessoa, que (re) constrói sua identidade perante a doença, e, dessa forma, pode atuar na sociedade que a cerca. Para a primeira dimensão, a autora apóia-se, sobretudo, nas contribuições de Claudine Herzlich; em relação à segunda, em Paul Ricoeur, por meio de sua reflexão em O si mesmo como um outro, onde o autor define as quatro dimensões da noção de

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LIVROS

pessoa: a linguagem (o homem que fala), a ação (o homem que age/sofre), a capacidade de relatar (o homem narrador de sua experiência de vida) e a vida ética (o homem responsável) (p.27). As dimensões da ação e da ética são articuladas aos dois modelos básicos de ação analisados por Luc Boltanski e Laurent Thévenot: as ações baseadas nas idéias de justificação e competência e a ação baseada no amor. No segundo capítulo, A estabilidade da identidade pelo compartilhamento de uma história comum, após discutir sobre o sentido da condição homossexual, quando se pensa na questão da identidade da pessoa, a autora aborda os relatos dos entrevistados a respeito do seu passado sexual quando se percebem como homossexuais, com toda problemática que isso significa, e de seu presente com a Aids. Em ambas as situações, naquele momento fortemente relacionadas, a autora percebe que, muitas vezes, a permanência da identidade é dada, sobretudo, pelo compartilhamento das experiências de cada um com os outros em condição semelhante. Ao final do capítulo, a autora enfatiza a significação do relato, pois o rearranjo de si encontra coerência inicialmente na narração. Pelo envolvimento no discurso, a pessoa é levada a testemunhar seu passado e seu presente, assegurando, na entrevista, uma continuidade identitária perante as mudanças sobrevindas com a doença. (p.75)

No capítulo III, A construção da incerteza e a manutenção da identidade, o leitor terá contato com outros relatos dos entrevistados referindo suas vidas após a Aids. Nessas narrativas aparecem os sentimentos experimentados pelos doentes: da dúvida com relação ao diagnóstico, passando pela revolta ao confirmá-lo, e à aceitação da doença, às vezes alcançada devido à emergência de um estado espiritual, outras vezes voltando-se para si mesmos na busca de respostas para a

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situação. Tal conformação ao estado de doente expressa-se bem na fala de um entrevistado que chegou a afirmar: Acho que a Aids, é horrível dizer, é positiva. (...) Talvez porque ela te fragilize muito,você se torna mais aberto a esses sentimentos, a essa benevolência. (...) Essas circunstâncias levam a uma meditação muito maior. Levam a refletir sobre a vida e a morte, sobre a existência, seu princípio e seu fim. (p.108)

Ou seja, trata-se da certeza de que a prova última que resta ao doente é sua relação com a morte. Como conclui a autora: nessa prova, é a coerência que permite ao doente ir em direção ao mais profundo do seu ser. Isso porque, a partir daí, a coerência da pessoa pode então ser reportada à seguinte questão: o que resta da pessoa quando os seres mobilizáveis são rarefeitos? Resta ainda a pessoa. O que resta da pessoa quando ela perdeu os pontos de referência da vida cotidiana? Resta o si profundo, essa subsistência que encontra nela mesma o seu apoio e a manutenção do laço com o outro. (p.113) grifos da autora da resenha.

Solange L’Abbate Departamento de Medicina Preventiva e Social Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Unicamp <slabbate@fcm.unicamp.br>

PALAVRAS-CHAVE: Aids; aspectos psicológicos; aspectos sociais; relatos de vida. KEY WORDS: Aids; psychological tests; reports of life. PALABRAS CLAVE: Aids, aspectos psicologicos; informe de vida.

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Recebido para publicação em 07/10/04. Aprovado para publicação em 22/10/04.


teses

Universidade Aberta à Terceira Idade da Universidade do Sagrado Coração (UATI/USC): estudo de caso Open university for senior citizens at the Sagrado Coração university: a case study

Ao mesmo tempo em que o contingente de idosos aumenta no Brasil, ganham força os estudos sobre envelhecimento em novos moldes. Consagra-se com rapidez a expressão terceira idade, justificando esta nova sensibilidade em relação à velhice, considerando-a momento privilegiado da vida. O objetivo do presente estudo foi, a partir de caso com os participantes da UATI/USC, saber como vivem a atual fase da vida e como interagem. Os dados foram obtidos mediante entrevistas semi-estruturadas e de análise de perguntas fechadas realizadas com o Programa Epi-Info versão 6.0. As perguntas abertas foram gravadas e transcritas na seqüência, o que permitiu detectar os núcleos principais de pensamento, sentimentos e opiniões. Os resultados encontrados mostram que o perfil do aluno da UATI/USC é de um idoso do sexo feminino; proveniente de bairros ao entorno da USC; com alto nível de escolaridade; alto poder aquisitivo; classificado como muito ativo fisicamente; satisfeito com a vida; interessado em aprender, evoluir, conhecer e utilizar as novas tecnologias. Quanto ao docente, é de

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um profissional que valoriza a velhice, acha que aprende muito com a maturidade do idoso, respeita e acredita nas reais capacidades desse aluno. De seu lado, a instituição percebe a força de sua proposta de UATI e faz o melhor para seus alunos. Fabiana Ferro Machado Dissertação de Mestrado, 2004 Universidade Estadual Paulista - Unesp, Faculdade de Medicina de Botucatu, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva <fa_ferro@ig.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: Epidemiologia; terceira idade; saúde pública. KEY WORDS: Epidemiology; aged; public health. PALABRAS CLAVE: Epidemiología; anciano; salud publica.

Recebido para publicação em 04/12/04. Aprovado para publicação em 17/12/04.

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TESES

A busca da assistência humanizada: a percepção do idoso hospitalizado The quest for humanized care: the perception of the hospitalized senior citizen

O interesse em estudar a população idosa, parte da constatação de ser ela, hoje, a que mais cresce em todo o mundo. Este crescimento refletiu nos serviços hospitalares, trazendo novas demandas gerenciais e assistenciais para o idoso e para sua família, bem como para a equipe de saúde que presta o atendimento. Apesar das grandes conquistas tecnológicas, estudos realizados pelo Ministério da Saúde demonstram que a qualidade do cuidado prestado aos pacientes hospitalizados constitui alvo de atenção. O objetivo do estudo foi averiguar na percepção do idoso hospitalizado o significado do cuidado, a identificação dos profissionais de saúde responsáveis pelo cuidado, as atitudes assumidas pela equipe de saúde, os sentimentos, e ainda, descrever as condições institucionais que interferem na humanização do atendimento hospitalar, bem como as expectativas e as sugestões para uma assistência de qualidade. Trata-se de estudo qualitativo desenvolvido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Foram entrevistados, na beira do leito, oitenta e seis idosos internados em doze enfermarias clínicas e cirúrgicas durante o período de novembro/2002 a março/2003. As entrevistas foram gravadas e transcritas, preservando na íntegra o conteúdo. Os dados foram tratados por meio da interpretação dos depoimentos, com base no método de análise de conteúdo. Paralelamente, foram também aplicados dois questionários, um para a caracterização das unidades de internação e o

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outro voltado para a equipe de enfermagem. Os resultados revelaram que os idosos incluem como composição do termo cuidado os aspectos instrumentais (que exigem conhecimentos e habilidades) e comportamentais (que exigem formas de lidar) como condição que se percebe e que se deseja. A maioria dos idosos reconheceu os médicos e a equipe de enfermagem como os componentes da equipe de saúde que cuida, entretanto, 55,9% não conseguiram informar a identidade de seu médico. As atitudes positivas foram atribuídas por 80,2% dos idosos, entretanto, quase a metade desses expressaram verbalmente algum tipo de sentimento negativo pela equipe no momento que esta presta atendimento. A análise das atitudes permitiu a construção de quatro categorias: paciência, atenção, ação profissional e interação. Já os sentimentos foram agrupados em cinco categorias: gratidão, bem-estar, tristeza, vergonha e saudade. Dos idosos entrevistados, 51,2% citaram pelo menos uma dificuldade ou problema institucional passível de interferência no atendimento recebido. As situações detectadas foram divididas em três categorias: gestão, equipe e ambiente físico. Em relação às expectativas para a internação atual os resultados revelaram que 52,3% dos idosos entrevistados não expressaram qualquer tipo de expectativa. As expectativas levantadas ficaram eqüitativamente distribuídas entre as cinco categorias estabelecidas: aspectos administrativos e operacionais, aspectos humanos e interacionais, aspectos espirituais

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TESES

e aspectos sócio-culturais. Somente 26,7% dos entrevistados emitiram alguma sugestão para a melhoria da assistência. Quando trata do idoso a equipe de saúde deve estar preparada e consciente de que seu papel interfere na qualidade e na satisfação do atendimento. Saber o que o idoso pensa, o que sente e suas expectativas proporciona oportunidade não só para reflexão da equipe que cuida, mas também, permite que medidas práticas reais sejam tomadas e que possam fortalecer o vínculo de quem cuida e de quem é cuidado. O ambiente físico, os recursos tecnológicos são importantes, porém não mais significativo do que a essência humana. Para atingir as mudanças na saúde pressupõe-se a alteração de conceitos profissionais, da perspectiva de atuação, da reformulação do método assistencial e muitos outros. Sugere-se que a administração dos hospitais tenha como filosofia e meta de trabalho a busca contínua da humanização. Que ao assumir tal postura, a administração hospitalar tome como desafio o contágio e o estímulo de suas várias equipes, de forma que a humanização seja observada em seus múltiplos aspectos. Teresa Cristina Prochet Dissertação de Mestrado, 2004 Universidade Estadual Paulista - Unesp, Faculdade de Medicina de Botucatu, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva <prochet@uol.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: Idosos; promoção da saúde. KEY WORDS: Aged; health promotion. PALABRAS CLAVE: Ancianos; promoción de la salud.

Recebido para publicação em 04/12/04. Aprovado para publicação em 17/12/04.

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Condições de vida e saúde das pessoas portadoras de deficiência física em Botucatu, SP Conditions of life and health of physically handicapped people in Botucatu

A deficiência física é um fenômeno biológico e social, que atinge aproximadamente 2% da população e traz grandes dificuldades para a vida cotidiana da pessoa portadora e de sua família. Dificuldades que estão relacionadas a suas limitações físicas e motoras, assim como àquelas impostas pela sociedade que se manifestam pela segregação, pelo estigma e pelo preconceito. O objetivo principal dessa pesquisa foi analisar as condições de vida e de saúde dos portadores de deficiência física residentes na área de abrangência do Centro Saúde Escola, em Botucatu-SP, para fornecer subsídios ao planejamento de políticas públicas e a fixação de prioridades orientadas à inclusão social. Essa pesquisa foi realizada em duas fases: na primeira fase realizamos inquérito em 25% dos domicílios da área urbana de Botucatu, para localizar os portadores de deficiência física. O encerramento dessa primeira fase deu-se com a distribuição espacial dos portadores de deficiência física, mediante técnica de geoprocessamento. Na segunda fase foi realizada a caracterização biomédica e social das pessoas portadoras de deficiência física e suas famílias, identificados na fase anterior e residentes na área de abrangência do Centro de Saúde Escola, mediante a aplicação de um questionário estruturado com os seguintes tópicos: identificação, dados familiares, dados sobre a deficiência física - tipo, origem, forma de locomoção -, consumo de habitação, consumo de água e consumo de serviços de saúde. Grande parte das pessoas portadoras

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de deficiência física tem mais de sessenta anos, não trabalha, estudou apenas quatro anos, é hemiplégico, adquiriu a deficiência na fase adulta, devido a um acidente vascular cerebral, vivem em condições precárias, não passou pelo processo de reabilitação e seus domicílios estão concentrados em áreas de exclusão social. Relatam grande dificuldade de realizar atividades de vida diária e de se locomover dentro do espaço urbano, uma vez que não há ônibus adaptado e muitas barreiras arquitetônicas. Rosiane Dantas Pacheco Dissertação de Mestrado, 2004 Universidade Estadual Paulista - Unesp, Faculdade de Medicina de Botucatu, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva <rosidantas@hotmail.com>

PALAVRAS-CHAVE: Condições de vida; diagnóstico da situação em saúde; deficiência física. KEY WORDS: Living conditions; diagnosis of health situation; physical disability. PALABRAS CLAVE: Condiciones de vida; diagnostico de la situación en salud; deficiencia fisica.

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Recebido para publicação em 04/12/04. Aprovado para publicação em 17/12/04.


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Saúde bucal: desenvolvimento de um programa educativo em escola da rede pública de Bauru/SP Mouth health: development of an educational program at a Bauru public school

Embora a odontologia se mostre muito desenvolvida em termos de tecnologia, não tem respondido significativamente às demandas dos problemas de saúde bucal da população. A necessidade de práticas preventivas e educativas na área tem sido, por isso, apontadas por vários pesquisadores, considerando o baixo custo e as possibilidades de impacto odontológico no âmbito público e coletivo. Neste contexto realizou-se pesquisa organizada em três etapas. A primeira consistiu em revisão bibliográfica sobre as propostas e metodologias desenvolvidas no âmbito das práticas preventivas em saúde bucal, constatando que os programas analisados tendem a focar as ações educativas em modelos tradicionais, apoiados na transmissão de informações e na atitude modeladora de comportamento, sem espaço para a participação ativa da população na discussão do cuidado com a saúde. A importância de repensar as práticas educativas em termos de propostas educacionais nos levou à segunda etapa desta dissertação: pesquisar sobre as concepções e experiências de higiene em saúde bucal apresentadas por escolares de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental da rede municipal de Bauru, visando realizar um diagnóstico da situação na área. Por meio de entrevista estruturada e questionário com questões fechadas, estudou-se uma amostra aleatória simples de oitenta escolares, dos quais 63,75%

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indicaram ter tido dor de dente. Pelos resultados obtidos, observou-se que, embora os escolares tenham informações sobre os cuidados com a saúde bucal, procurando, freqüentemente, elaborar respostas que correspondam às expectativas do pesquisador, as formulações das crianças apontam para uma prática de cuidados deficiente. Esses dados, que possibilitaram identificar marcos conceituais e temas geradores para um trabalho problematizador, representaram ponto de partida para o desenvolvimento de um programa educativo, apoiado na aprendizagem significativa e em práticas emancipatórias, o que compreendeu a terceira etapa deste estudo. A experiência envolveu oitenta escolares, organizados em quatro grupos de trabalho, utilizando a problematização dos temas de saúde bucal como base da experiência educativa. Pela análise que realizamos, houve grande aceitação do programa entre os alunos e professores, apontando para a importância da problematização nas práticas educativas e preventivas em saúde, sobretudo em relação aos aspectos mobilizadores e à possibilidade de estimular a autonomia dos sujeitos em relação ao próprio cuidado. Sem desconsiderar a importância da continuidade dos programas educativos a partir de parcerias que envolvam a escola, comunidade, universidade e serviços públicos de saúde, avançamos ao ancorar o programa educativo na discussão e não apenas na informação, possibilitando espaços de trocas

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intersubjetivas capazes de produzir soluções criativas, adequadas à realidade dos escolares e suas famílias. A experiência educativa que realizamos, apoiada na problematização e na autonomia, abre caminhos não só para pensar práticas educativas entre escolares, mas também para capacitar profissionais para o trabalho preventivo na área de saúde bucal. Adriana Regina Colombo Pauleto Dissertação de Mestrado Universidade Estadual Paulista - Unesp, Faculdade de Medicina de Botucatu, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. <adri.pauleto@terra.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: Programas educativos; educação em saúde bucal; saúde escolar; aprendizagem baseada em problemas. KEY WORDS: Instructions programs; health education dental; school health; problem.based learning. PALABRAS CLAVE: Programas educativos; educación en salud dental; salud escolar; aprendizaje basado en problemas.

Recebido para publicação em 09/11/04. Aprovado para publicação em 09/11/04.

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A construção de um modelo de saúde complexo e transdisciplinar

espaço aberto

The construction of a complex and transdisciplinary health model

Regina Stella Spagnuolo 1 Ivan Amaral Guerrini 2

Ao longo de sua experiência profissional, os educadores em saúde e das áreas assistenciais têm verificado e vivenciado o desenvolvimento da saúde enquanto um bem universal. Tanta luta por mudanças, por quebra de paradigmas, luta por um ideal integrador e não excludente como se tem vivido nestas últimas décadas, e a saúde continua doente... Ora em estado grave, ora em convalescença! Mas os profissionais de saúde sempre estiveram a postos, perseverantes no juramento pretérito, porém vivo em arquétipos individuais e coletivos. Nessa caminhada, percebeu-se aos poucos que o saber começou a pular os muros das academias, na tentativa ainda incipiente, porém determinada, de aproximar a teoria da práxis, levando até o usuário do sistema de saúde uma proposta mais inclusiva e de acesso universalista, que pudesse, enfim, sair do discurso politicamente correto e ser contextualizado em ações que realmente mudassem os indicadores de saúde (Lobo Neto et al., 2000). Sabia-se que seria um processo longo, que ansiedades e desânimos estariam pululando a cada tempo, mas a reconstrução do Sistema Único de Saúde (SUS) sob um novo olhar, finalmente, estava por vir. O cuidar, na visão complexa, mudando a ótica com que se está acostumado a conceituar a saúde, emerge da concepção do ser humano visto como um sistema aberto e envolvido numa rede (Boff, 1997; 2000). Mas, na prática, o que seria o “cuidar” sob este novo olhar? O que seria a promoção da saúde numa visão transdisciplinar, conforme salientado por Nicolescu (2000), Morin & Le Moigne (2000) e Morin (2001)? Após o advento dessa nova visão, não se pode mais ver o Homem de forma fracionada, em partes estudadas por disciplinas pontuais ou simplesmente justapostas, o que denotaria a inter e a multidisciplinaridade (Nicolescu, 2000). Percebe-se agora

1 Enfermeira responsável pela Unidade de Saúde da Família no Jardim Iolanda, Secretaria Municipal de Saúde de Botucatu; mestranda do curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp. <rstella10@yahoo.com.br> 2 Professor, Departamento de Física e Biofísica, Instituto de Biociências de Botucatu, Universidade Estadual Paulista - Unesp. <guerrini@ibb.unesp.br>

1 Rua Heitor Quintino de Carvalho, 414 Altos do Paraíso - Botucatu, SP 18.610-037

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no arcabouço científico deste novo milênio que, ainda que esta afirmação soe como óbvia, só existe um mundo em que todos estão inseridos, e este mundo é um todo maior que a soma de todas as suas partes. Entender a saúde neste novo olhar requer enfrentar desafios para a academia, para o serviço, para os usuários e para os gestores. Principalmente porque os profissionais que hoje atuam foram formados, em sua grande maioria, num contexto de ciência reducionista e de especialização, tendo por base os fundamentos da ciência clássica (Huertas, 1996). Eis, portanto, por caminhos não esperados, a oportunidade de integração que tanto se sonhou! Esse olhar complexo e dinâmico oferece a oportunidade de uma ação integrada que inclui as diferentes dimensões da experiência humana: a subjetiva, a social, a política, a econômica e a cultural, colocando, portanto, a serviço da saúde, os saberes produzidos nos mais diferentes campos do conhecimento. Assim, entende-se que promover a saúde é saber lidar com as diversas condições sócio-econômicas dos segmentos populacionais da sociedade. É enfrentar a pobreza e toda a desestruturação em seu entorno que são marcadas, simultaneamente, pela falta de emprego, de infra-estrutura adequada às necessidades humanas (água potável, destino adequado do lixo e esgoto), pela poluição dos ambientes, pelas carências alimentares e educacionais (Matus, 1997). É, portanto, lidar com diferentes, e até mesmo opostos estilos de vida, buscando transcendê-los (Nicolescu, 2000). É saber lidar com as formas de viver emergentes e constituídas nas sociedades modernas e agora, em especial, num novo momento quando emerge a “Estratégia de Saúde da Família”, que coloca o cuidar do ser humano no coração das famílias. Estariam os profissionais de saúde preparados para entender e para se tornar empáticos a essas mais diversas micro-culturas se não se inverter a lógica de como ainda se vê o ser humano e suas famílias? Nota-se que até mesmo os segmentos mais favorecidos da população perdem de vista o que é uma vida saudável, integrativa, adaptando-se a uma forma de vida sedentária e estressante, geradora de angústias, ansiedades e depressão. Esses sentimentos são expressões legítimas de insatisfações e têm como conseqüência, muitas vezes, comportamentos não compreendidos pelos próprios profissionais de saúde. Esses comportamentos, ao mesmo tempo que têm origem em padrões passados, principalmente da família de origem, se retro-alimentam com as condutas repetitivas, necessitando serem reconhecidos para, em seguida, serem alterados de forma consciente (Nicolescu, 2000; Briggs & Peat, 2000). Não se pode, por outro lado, se esquecer do trabalho coletivo, já que a sociedade é também complexa, lida com incertezas e é capaz de se auto-organizar (Boff, 2000). Pergunta-se, então: até onde se pode intervir no processo saúde-doença? E, neste momento histórico, de que forma? O hedonismo, que se tornou uma das principais características das sociedades modernas industrializadas, acaba muitas vezes desmobilizando pessoas e grupos sociais para uma luta coletiva por melhores condições de vida, descaracterizando a necessidade de resgate e de revaloração de sentimentos como a solidariedade e a ética. Nesse campo, entretanto, a promoção de uma saúde mais integrativa por meio de esforços emergentes e localizados, já começa a contribuir, capacitando as comunidades, compartilhando o saber técnico que, confrontado com o saber popular, pode criar condições para a tomada de consciência das situações de saúde das comunidades envolvidas. Está no cerne do caos criativo que essas variáveis, atuando em conjunto, possibilitem a construção de estratégias de enfrentamento dos problemas, passando também a ver a sociedade sob um olhar integrativo e interativo, numa dimensão muito mais que inter ou multidisciplinar, ou seja, a vivência transdisciplinar (Briggs & Peat, 2000). Esses novos termos, principalmente em áreas de educação e saúde, têm sido usados com freqüência cada vez maior na literatura atual (Guerrini, 2003; Watanabe, 2003). Colocam-se, assim, essas relações em um sistema total, sem quaisquer limites rígidos entre os saberes para compreensão do mundo atual que é a unidade do conhecimento. Nessa nova ótica, aprende-se também a lidar com a política e a administração pública, cuja gestão estatal é geralmente fragmentada, reducionista, elaborando programas de saúde que muitas vezes não contemplam a realidade e a cultura local (Matus, 1997). O que se vivencia hoje é um imenso, incomensurável desafio de desencadear um processo amplo e complexo de parcerias, atuações intersetoriais e participações populares, que otimizem os recursos disponíveis e garantam sua aplicação em políticas que respondam mais efetiva e integradamente às necessidades das comunidades. Contextualizada na prática, essa nova visão pressupõe uma sociedade civil mais organizada, as instituições públicas e privadas

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somando esforços no sentido de uma atuação conjunta que possibilite ir além das barreiras e antagonismos e alcançar resultados que se traduzam em mais e melhores condições de vida para a população. A integração ensino-serviço-comunidade está, pois, inserida no contexto em que se escreve este artigo. A saúde complexa e transdisciplinar aqui proposta, como o próprio nome diz, deverá sempre estar interagindo e trocando saberes, numa dinâmica construtiva e criativa, de forma essencialmente transdisciplinar, sem mais as rígidas disputas do passado, sem decisões estanques que favoreçam apenas este ou aquele segmento. É isso que os profissionais de saúde conscientes da nova visão da ciência e da vida tanto esperam! A troca dos saberes, o aprendizado constante, a construção contínua de um novo olhar, desta vez dinâmico, complexo e transdisciplinar para permitir que esta se recupere do estado convalescente. Busca-se, com isso, um amadurecimento de todos os segmentos, fazendo cada um o seu papel e conjuntamente construindo e consolidando experiências que requerem um conjunto de estratégias de apoio, transcendendo os antagonismos. Só assim será possível promover a expansão das ações, implementando cada vez mais um modelo de atenção integral às famílias por meio de um legítimo “promover” de ações saudáveis, gerando novas práticas profissionais sustentadas por esse modelo tão sonhado. Este artigo se resume, portanto, num grito de profissionais que, ao mesmo tempo que têm se envolvido nas teias da nova ciência sistêmica aplicada a organismos vivos (Kitano, 2002), vêem nessa nova face da ciência do século XXI, a chance concreta de unir os saberes na busca de soluções mais adequadas às questões atuais de saúde. Nessa rede, não há lugar para conhecimentos preferenciais e nem mesmo para posições grupais predominantes, mas para a cooperação em busca do desenvolvimento sustentável que é tão dinâmico quanto complexo.

Referências

BOFF, L. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. BOFF, L. A voz do arco-íris. Brasília: Letraviva, 2000. BRIGGS, J.; PEAT, F. D. A sabedoria do caos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000. GUERRINI, I. A. Sobre o complexo e o transdisciplinar. Sci. Am. Br., v. 2, n.19, p.11, 2003. HUERTAS, F. Entrevista com Carlos Matus: o método PES. São Paulo: FUNDAP, 1996. KITANO, H. Systems biology: a brief overview. Nature, v. 295, p.1662-4, 2002. MATUS, C. Adeus, senhor presidente: governantes e governados. São Paulo: FUNDAP, 1997. MORIN, E.; LE MOIGNE, J-L. A inteligência da complexidade. São Paulo: Fundação Peirópolis, 2000. MORIN, E. A religação dos saberes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. NICOLESCU, B. Manifesto da transdisciplinaridade. Brasília: UNESCO, 2000. LOBO NETO, F. J. S.; PRADO, A. A.; FONTANIVE, D. A.; SILVA, P. T.; PROVENZANO, M. E.; MOULIN, M. N.; LOPES, A.; R. C.; COELHO, C. A. G.; BOMFIM, M. I. R. M.; TORREZ, M. N. F. B.; ROMANO, R. A. T.; PIMENTEL, M. R. A. R.; GOULART, V. M. P. Formação pedagógica em educação profissional na área de saúde: Enfermagem. Brasília: Ministério da Saúde; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública, 2000. (Educação, Conhecimento, Ação, 3). WATANABE, M. Going multidisciplinary. Nature, v. 425, p.542-3, 2003.

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Health as a dynamic, coherent and constructive state of the living being is the basis of the proposal put forth in this essay. From this standpoint, a systemic and integrative view of the human being that is cared for through daily healthcare practices is proposed, based on the concepts of researchers and educators of the last few decades. The concepts of chaos, complexity, transdisciplinarity and auto-organization are introduced and found to make more sense as themes that provide guidance for the suggested procedures. Ways of promoting health, thus defined, are discussed in connection with practical circumstances, including the current official Family Healthcare Strategy program. KEY WORDS: Chaos; health; complexity; transdisciplinarity; helath promotion. A saúde como um estado dinâmico coerente e construtivo do ser vivo é o fundamento da proposta deste texto. Nessa ótica, uma visão sistêmica e integrativa do ser humano a ser cuidado na prática diária da saúde está sendo proposta com base nos conceitos de pesquisadores e educadores das últimas décadas. Conceitos de caos, complexidade, transdisciplinaridade e autoorganização são introduzidos e fazem mais sentido como temas orientadores dos procedimentos sugeridos. Maneiras de promover a saúde assim compreendida são discutidas em algumas situações práticas, incluindo o atual programa oficial da Estratégia da Saúde da Família. PALAVRAS-CHAVE: Caos; saúde; complexidade; transdisciplinaridade; promoção da saúde. La salud como un estado dinámico coherente y constructivo del ser vivo es el fundamento de la propuesta de este texto. Desde esa óptica, está siendo propuesta, con base en los conceptos de investigadores y educadores de las últimas décadas, una visión sistémica e integrativa del ser humano a ser cuidado en la práctica diaria de la salud. Los conceptos de caos, complejidad, transdisciplinariedad y autoorganización son introducidos y adquieren más sentido como temas orientadores de los procedimientos sugeridos. Las maneras de promover la salud así comprendida son discutidas en algunas situaciones prácticas, incluyendo el actual programa oficial de la estrategia de la salud familiar. PALABRAS CLAVE: Caos; salud; sistema complejo; transdisciplinar; promoción de la salud.

Recebido para publicação em 15/12/03. Aprovado para publicação em 15/03/04.

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Jornal Vivo: relato de uma experiência de ensino-aprendizagem na área da Saúde The living newspaper: description of a teaching/learning experience in the health field Lídia Ruiz-Moreno 1 Maria Alicia Romaña 2 Sylvia Helena Batista 3 Maria Aparecida Martins 4

Iniciando um diálogo Este texto tem como objetivo relatar uma experiência psicodramática – o Jornal Vivo - e discutir suas contribuições como estratégia de ensino-aprendizagem em espaços formativos na área da saúde. A estrutura do relato apresenta quatro partes: as duas primeiras referem-se a perspectivas conceituais de saúde, educação e do binômio saúde-educação e aspectos teóricos relativos ao Jornal Vivo. Num terceiro momento, descreve-se a experiência propriamente dita, buscando configurar um espaço de interlocução a partir do vivido. Na última parte, são sinalizadas contribuições e possibilidades do Jornal Vivo como estratégia de ensino-aprendizagem no contexto da formação em saúde. Os caminhos metodológicos adotados envolveram um diálogo com a literatura e registros elaborados sobre a vivência (comentários dos coordenadores, anotações dos participantes, gravação em vídeo e áudio de todo o processo), tendo como pressuposto, na socialização de idéias, saberes e troca de experiências. Esperamos poder avançar e contribuir com os debates e propostas contemporâneas sobre formação de profissionais da saúde. Saúde e Educação: configurando um binômio Pensar saúde e educação como campos abrangentes, interdisciplinares e complexos possibilita compreender a configuração de um binômio que articula práticas e saberes em diferentes níveis de compreensão e intervenção junto aos sujeitos em seus processos de saúde, implicando distintos compromissos políticos, sociais e educacionais. Saúde e educação constituem práticas socialmente produzidas em tempos e espaços históricos definidos. Adentra-se, assim, num cenário de múltiplas expressões, no qual conhecimentos de diferentes áreas estabelecem uma teia de reflexões, análises, estudos e investigações. Neste binômio, a saúde transcende a simples ausência de doença, avançando para além do bem estar biopsico-social. Compreende-se saúde numa perspectiva mais ampla, abrangendo dimensões sociais e reconhecendo os homens como sujeitos portadores de saberes e experiências (Santos & Westphall, 1999). A educação influencia e é influenciada as/pelas condições de saúde, estabelecendo um estreito contato com todos os movimentos de inserção nas situações cotidianas em seus complexos aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais, dentre outros (Mendes & Vianna, 2001).

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Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Universidade Federal de São Paulo (CEDESS/UNIFESP). <lidia@cedess.epm.br> Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama (ABPS). <abps@abps.com.br> 3 Professora, CEDESS/UNIFESP. <sylviah@cedess.epm.br> 4 ABPS. <abps@abps.com.br> 2

1 Av. Altino Arantes, 620, apto. 81 Vila Clementino - São Paulo, SP 04.042-003

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- Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.195-204, set.2004/fev.2005

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O binômio saúde e educação configura-se como um campo de práticas e saberes que abrange diferentes níveis de compreensão e intervenção junto aos sujeitos em seus processos de saúde, implicando distintos compromissos políticos, sociais e educacionais. Desprendendo-se de uma lógica biologicista ou biomédica (Capra, 1988), amplia-se envolvendo três eixos temáticos: formação de profissionais, educação para a saúde e educação permanente. O eixo da Formação de Profissionais para a futura atuação no campo da saúde tem sua ênfase nos processos formativos desenvolvidos nos níveis de graduação, especialização e pós-graduação. Os diferentes formatos das experiências de aprendizagem materializam diversas propostas de educação e intervenção em saúde. O cenário atual apresenta singular complexidade, seja pela implementação das novas diretrizes curriculares dos cursos de graduação da saúde, seja pela busca intencional de pensar a transformação da educação superior em sintonia com o reordenamento das políticas públicas, que situam o Sistema Único de Saúde (SUS) como centralidade teórica, metodológica, política e social (Feuerwerker, 2003). Educação para a saúde envolve as práticas educativas desenvolvidas no campo da promoção da saúde, buscando atuar no âmbito coletivo sem, contudo, negar ou secundarizar a dimensão subjetiva. A articulação social-pessoal explicita-se como um desafio contemporâneo, pois os modelos notadamente prescritivos e normativos mostram-se esgotados, demandando a construção de referenciais que trabalhem com as trajetórias e itinerários dos sujeitos e de suas lutas sociais, inserindo-as na complexa sociedade contemporânea. Este eixo tem sido problematizado tanto no que se refere a seus aspectos conceituais (Brassolati & Andrade, 2002), como em suas proposições metodológicas (Chiesa & Westphal, 1995). O eixo Educação Permanente concretiza-se nos movimentos já presentes no processo de formação – resignificando as concepções de aprendizagem, conhecimento, ensino, estudo, trabalho – e nos serviços, espaços sociais multideterminados e socialmente construídos. Assumir a questão do trabalho em saúde exige romper com a tradição de pensar etapas e produtos como núcleos fragmentados, compreendendo o trabalho como condição humana, presente na significação da realidade, com as marcas dos trabalhadores em suas relações sociais e de produção (Ramos, 2003). Os eixos do binômio saúde-educação se, por um lado, guardam especificidades, por outro apresentam compatibilidades que se explicitam nas dimensões formativas que permeiam as práticas educativas em diversos espaços e cenários. Não se trata de reconhecer apenas as ações e propostas desenvolvidas no interior das instituições, mas de considerar o processo educacional como construção social presente nos diferentes momentos das experiências formativas (Freire, 1998). Com este entendimento, identifica-se possibilidades de interlocução com experiências psicodramáticas que permitam desvelar nuanças do processo ensino-aprendizagem, apreendendo mediações não valorizadas em espaços de formação em saúde. Estas possibilidades se inscrevem numa postura interdisciplinar, na qual as relações interpessoais e as trocas são processos fundamentais para construir alternativas que respondam aos desafios presentes na sociedade contemporânea (Couturier & Chouinard, 2003). Jornal Vivo: uma estratégia psicodramática Situar o Jornal Vivo como uma estratégia psicodramática requer empreender uma breve incursão nas origens e características do Psicodrama: uma palavra composta por duas outras que nos falam de interioridade e de ação. O termo drama, como é utilizado neste caso, tem mais a ver com a possibilidade de movimento e de realização do que com o conceito que define uma das formas teatrais. Mesmo assim, no drama como expressão teatral, há uma menção à contingência da vida humana como alguma coisa que não é necessariamente definitiva ou imutável como no caso da tragédia. Drama é, sem dúvida, alguma situação que saiu dos eixos, que nos trouxe dor e sofrimento, mas que pode ser modificada, transformada pela nossa vontade. Mais concretamente, o Psicodrama de que estamos falando é uma teoria formulada no início do século XX por Jacob Levy Moreno (1889/1974) que se propõe reparar, recompor algumas experiências negativas vividas por um sujeito ou por um grupo, de forma a reabrir os canais para que flua a espontaneidade, criando novas respostas e evitando a submissão em relação a formas cristalizadas de comportamento. Os padrões de

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comportamento são revigorados por meio de recursos próprios que compõem metodologias de ação extremamente eficientes. Na metodologia psicodramática terapêutica o psicodrama e o teatro espontâneo são formas clássicas de trabalhar conflitos e estados patológicos mais graves. Já recursos como o sociodrama, o role playing, modalidades educativas do teatro espontâneo e do jornal vivo e os jogos dramáticos, são atividades que podem ser usadas em situações de aprendizagem como recursos facilitadores da compreensão de fenômenos que envolvem inter-relações pessoais (Romaña, 1996). Todos os recursos têm em comum o fato de as dramatizações serem compostas a partir de uma linguagem metafórica que utiliza códigos simbólicos para outorgar significados subjetivos a fatos da realidade. Recriando e dando encaminhamentos diversos aos fatos, surge a possibilidade de novas leituras e compreensões. Isto acontece pela utilização de técnicas aparentemente simples, como a inversão de papéis e o solilóquio, que operam como amplificadores do repertório cotidiano. A troca do papel entre os atores que participam do processo de produção de conhecimentos e a efetivação de práticas educacionais, parece uma proposta tão fecunda quanto necessária. A ação conjunta, implicada, engajada e comprometida certamente contribuirá para o melhor entendimento do fenômeno educativo, promovendo sua permanente ação, significação e reconstrução coletiva. (Bareicha, 1999, p.135)

A emergência do Jornal Vivo como estratégia psicodramática leva-nos a situar o interesse de Moreno pela arte e criatividade, expressas no meio teatral, nele transitando com suas idéias revolucionárias. Inspirado em Stanislavski, diretor teatral que desenvolveu uma metodologia própria para o desempenho do ator, em Reinhardt, também teatrólogo, e em Pirandello, criador do Teatro da Loucura, Moreno iniciou uma proposta em 1921 denominada laboratório Stegreif ou Stegreiftheater. Segundo Monteiro (1993, p.12) este “era um teatro sem peças, sem atores fixos, sem cenário e sem auditório. Os participantes eram os autores e atores, que produziam no aqui e agora. O cenário era o espaço aberto”. O Teatro da Espontaneidade foi muito mal compreendido pelo público e críticos da época. Até se duvidava se as interpretações eram de fato improvisadas. Nesse impasse, Moreno cria uma outra alternativa: o Jornal Vivo. É nesse momento que Moreno cria o Jornal Vivo, depois também chamado de Jornal Dramatizado, em que seu entusiasmo pelo teatro permanece como uma nova tentativa. Pretendia fazer uma síntese entre o jornal e o teatro. Do jornal ele tirava as notícias do que acontecia no mundo e propunha que a partir daquele estímulo se fizesse uma dramatização. As manchetes eram dramatizadas. (Monteiro, 1993, p.13) A leitura de jornais diários oferece-nos sugestões estimulantes no plano ideativo, emocional, podendo ser utilizadas na produção do Jornal Dramatizado. (Castello, 1993, p.36) No Jornal Vivo procura-se dar um novo tratamento a alguma notícia veiculada pelos meios de comunicação. Uma forma possível de trabalhar para produzir o tecido dramático próprio do jornal vivo é a de ir compondo as cenas de acordo com a versão oficial da notícia e depois introduzir as mudanças que se fizerem necessárias até que ela adquira uma versão satisfatória, na opinião do grupo. (Romaña, 1999, p.14)

Os pontos de partida aqui apresentados permitem adentrar na descrição da experiência com núcleos conceituais que possibilitam uma análise do vivido e em movimentos de teorização que sinalizem contribuições do Jornal Vivo como estratégia de ensino-aprendizagem em saúde. Jornal Vivo: uma experiência em foco Focalizar a experiência, procurando descrevê-la para que outros possam conhecer e participar dos esforços de produção do conhecimento, revela-se desafiador. Por procurar apresentar os elementos necessários ao leitor para que este construa um quadro de imagens e desloque-se até a experiência; por empreender uma narrativa que, preservando seus traços subjetivos, possa se configurar como espaço intersubjetivo.

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A experiência se situa no contexto do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Cedess/Unifesp), que assume o ensino em ciências da saúde como área privilegiada de conhecimento no âmbito de três grandes núcleos temáticos: ensino superior em saúde, educação permanente e práticas educativas junto com a comunidade. Este Centro desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, atuando em diferentes níveis da formação (da graduação à pós-graduação stricto sensu), constituindo um cenário de produção científica no âmbito das ciências da saúde. Dentre suas parcerias institucionais inscreve-se a que vem sendo construída com a Associação Brasileira de Psicodrama de São Paulo (ABPS), da qual resultou, entre outros projetos comuns, a Oficina de Trabalho Psicodrama - Educação em Saúde. Desenvolveu-se, inicialmente, uma mesa redonda que abordou dimensões teóricas dos campos em foco, procurando desvelar as interfaces possíveis. Em seguida, vivenciou-se o Jornal Vivo como uma estratégia psicodramática para situações de ensino-aprendizagem em saúde. Participaram da vivência 19 pessoas de diferentes áreas profissionais, como a psicologia, enfermagem, biologia, psicopedagogia, nutrição, educação em saúde, administração, letras e educação que, após a mesa redonda, expressaram o desejo de vivenciar a experiência psicodramática. Estavam ligados à própria Unifesp (professores, pós-graduandos, técnicos em assuntos educacionais), à ABPS (especializandos) ou a serviços de saúde (privilegiadamente educadores em saúde que atuam em Unidades Básicas de Saúde). Uma vez constituído o grupo, a equipe de psicodramatistas, integrada por uma diretora (Maria Alicia Romaña) e três egos auxiliares (Maria Aparecida Fernandes Martin, Cristina Elena Bueno da Silva e José Maria Moraes), desenvolveu o processo de vivência do Jornal Vivo. Momento 1: integração dos participantes e introdução à vivência grupal A maioria dos participantes manifestou que o encontro representava seu primeiro contato com uma experiência psicodramática, alguns já conheciam esta metodologia de trabalho, relatando vivências exitosas em diferentes cenários terapêuticos e profissionais. As expectativas manifestadas incluíram: aprofundar as relações entre educação em saúde e psicodrama, conhecer as aplicações pedagógicas do psicodrama na área da saúde, possibilidade de utilizar esta ferramenta de trabalho na universidade nos diferentes cenários de ensino–aprendizagem, aplicações no trabalho com adolescentes e aprimorar os conhecimentos sobre psicodrama. Após a apresentação, constituiu-se uma organização do grupo em circulo, formado pelo público, os egosauxiliares e a diretora. Esta disposição permitiu a seus integrantes olharem-se, ouvirem-se e olhar os acontecimentos que se desenrolavam no centro. Construiu-se, assim, um contexto grupal que, durante toda a vivência, envolveu interações, costumes, negociações, criando uma trama característica para o grupo que atuou como cenário para expressão de sentimentos, emoções, medos. Depois da apresentação da equipe de psicoterapeutas, a diretora situou a prática do Jornal Vivo e solicitou a lembrança de uma notícia, motivando, no grupo, quatro matérias jornalísticas: o “colapso” da Argentina, a situação sócio-política da Venezuela, as lutas de um grupo de pessoas portadoras de necessidades especiais para que continuem as pesquisas sobre clonagem e um Padre acusado de pedofilia. A escolha, realizada pelo grupo, obedecendo a princípios sociométricos, recaiu na notícia sobre pedofilia surgindo, assim, a protaganista (participante que sugeriu a notícia). Momento 2: aquecimento do grupo e dramatização da notícia pela equipe dos psicodramatistas A diretora convidou para a entrada no cenário (centro do círculo) a protagonista, produzindo-se um diálogo entre ambas, concentrando as expectativas do auditório e emergindo elementos necessários para iniciar a cena. Ao ser indagada pela diretora sobre o que tinha imaginado quando leu a matéria, a protagonista respondeu : “- Meu filho, uma sala de aula, adolescentes, ambiente religioso com adolescentes, pais imaginando que o filho vai a um lugar desconhecendo a verdade”. A diretora continuou a conversa, interrogando como poderia se processar uma seqüência dos pensamentos. Após o diálogo, em que diversas possibilidades foram pensadas, foi recriada a cena a partir de uma interlocução

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(como podemos montar a cena?) entre diretora e os egos auxiliares, criando um clima de expectativa no grupo. A diretora retirou-se do cenário, deixando o desenvolvimento das cenas aos egos-auxiliares, com liberdade de modificá-las a partir do papel que lhes foi encomendado. Na interação com os outros participantes e com a emergência de novas questões e alternativas, a equipe foi construindo uma representação cênica, atribuindo os papéis de um padre, um adolescente (Pedro) e uma criança (Luiza), dentro de uma igreja, inciando o seguinte diálogo: Padre: - Que estão fazendo? Pedro: - Estou lendo uma revista! Luiza: - Minha mãe me deixou aqui para poder aprender algumas coisas. Padre: - Quantos anos vocês têm mesmo? Luiza : - Oito. Pedro: - Quinze. Padre: - Vieram aqui para conversar comigo? O Padre pede para Luiza sair do local e começa um dialogo com Pedro, ao tempo em que vai se aproximando fisicamente do adolescente. Padre: - Tua mãe te deixa sempre sozinho? Pedro: - Sim . Padre: - Você tem bastante tempo livre? Pedro: - Não, tenho bastantes matérias. Padre: - Pode passar as tardes aqui comigo?

As situações desenvolvidas no cenário criaram no auditório um clima afetivo - emocional comum, facilitando a identificação do grupo com o dramatizado, ao ponto de ressoar intensamente com os atores. Com este fenômeno de ressonância e identificação, a experiência foi deixando de ser individual, tornando-se coletiva. Todos sentiram-se protagonistas de uma experiência vivida em comum que os unia e os identificava. Para conhecer essa ressonância, a diretora interrompeu momentaneamente a cena e solicitou a manifestação do auditório para conhecer os sentimentos atribuídos aos personagens durante a dramatização. Assim, no solilóquio do adolescente Pedro, o público compartilhou sensações de medo, angústia, confusão em relação à igreja, tida como ambiente de confiança e segurança, a representação da figura do padre e sentimentos de desproteção. O contexto grupal influenciou a vivência dramática, construindo-se uma inter-relação constante entre ambos. Na proposta psicodramática, a importância e a ênfase na expressão de sentimentos e emoções durante a dramatização localiza-se na possibilidade de ampliar a compreensão integrando-a à experiência vivenciada. Momento 3: dramatização pelos participantes do grupo A diretora solicitou a substituição progressiva dos egos auxiliares por participantes do grupo que atuaram como egos auxiliares espontâneos, desempenhando determinados papéis no cenário. Sua participação foi muito importante na vinculação com o protagonista e na dinâmica grupal. Com a inclusão dos egos auxiliares espontâneos, a cena continuou com o seguinte diálogo: Padre: - Vamos a um lugar mais confortável? Quer ir a minha casa e a gente faz uma massagem? Luiza entra na sala onde se encontram o padre e Pedro: - Que vocês estão brincando? Padre:- Vai lá pegar umas revistas! Luiza: - Não, eu quero brincar aqui! Padre: - Estamos tendo uma conversa muito séria, aguarda que depois converso com você! Pedro: - Vou fazer ginástica com o padre, mas não estou gostando da idéia.

Nesse momento, a cena foi interrompida com o ego auxiliar espontâneo no papel de Pedro indagando à diretora: -“Quero saber sobre o desfecho da situação. Eu fujo ou entro na dele? Por mim eu já ia fugir!” Este questionamento induziu diferentes posicionamentos do público que se dividiu entre os que acreditavam que a representação devia ser fiel à matéria jornalística escolhida e aqueles que defendiam a possibilidade de

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reelaborá-la. A diretora esclareceu que a noticia atua como referência, mas que é possível recriá-la, sem um scrip preestabelecido, deixando fluir a espontaneidade e sensibilidade dos participantes. A notícia apontada pela protagonista era proveniente do contexto social, deste modo a referência à realidade social prevaleceu nos primeiros momentos do encontro, mas, durante o desenvolvimento do processo, platéia e cenário foram se unindo e na soma das falas foi sendo costurada uma nova versão da notícia. A partir desse momento o contexto dramático funcionou como um espaço “protegido” em que os protagonistas puderam expressar seus temores, fantasias, sentimentos e comportamentos, livres dos condicionamentos sociais habituais. Nesse espaço de significações e sugestões, estabeleceu-se uma separação entre contexto grupal e dramático, entre realidade e fantasia, entre indivíduo e papel, oferecendo maiores possibilidades para a compreensão das condutas dos personagens. A diretora interrompeu a representação novamente e solicitou a substituição dos personagens. Nesse momento, a protagonista principal assumiu o papel de Luiza; contudo ninguém do grupo se dispôs a representar o papel do padre. Durante a dramatização, os egos auxiliares jogaram os papéis que lhes foram atribuídos pela diretora, procurando a complementação com a protagonista e favorecendo seu comprometimento afetivo e emocional. Houve mais uma troca de papéis e a protagonista principal assumiu o papel do padre. Nesse momento, todos os personagens estavam sendo representados por pessoas do grupo. A diretora solicitou a entrada de um ego auxiliar assumindo o papel de médico que atenderia Luiza num posto de saúde, assistido por uma enfermeira. Produziu-se o seguinte diálogo: Médico:- Vamos terminar a consulta! Deixa ver como está o coração, respira fundo. A enfermeira coloca uma injeção e indaga: - Você veio acompanhada? Luiza: - Não, estou com sono. Enfermeira: - Fique em repouso. Entra a mãe na sala de espera e pergunta a enfermeira: - Minha filha está aqui? Como está? Posso vê-la? É a Luiza. Enfermeira: - Pode entrar, ela está em repouso. Mãe: - Tudo bem, que aconteceu? Luiza: - Estou com medo. Estou com dor de cabeça. Mãe indagando ao médico: - Porque está com sono, ela diz que está com medo, o que aconteceu? Médico: - Nada, já vai passar, só aguarda um pouco e pode levá-la.

Neste momento, observa-se que os profissionais da saúde assumiram uma atitude de não envolvimento, restringindo o atendimento à dimensão orgânica presente, não informando à mãe sobre o que ocorrera. Momento 4: comentários sobre a vivência A dramatização encerrou-se com comentários de todo o grupo, participantes e equipe de psicodramatistas. Voltou-se à forma circular inicial, completando o ciclo que Rojas Bermudez (1999) denomina grupo - indivíduo grupo. A experiência compartilhada pelo grupo manifestou-se com fluidez, estabelecendo-se relações de tipo triangular (relações de simetria) em contraposição à estrutura vincular radiada (relações centradas em um foco) presente no momento inicial do aquecimento. Segundo Rojas Bermudez (1999), esta forma de compartilhar a experiência é um dos principais fatores da coesão grupal expressa pela nova estrutura vincular. Nesse momento, o grupo (re)construiu sua identidade e manifestou sentimentos e reflexões com forte componente emocional, num clima aberto e respeitoso, criado durante a dramatização. A experiência permitiu à protagonista expressar suas idéias, sentimentos e emoções, com o grupo compartilhando efetivamente suas impressões. Os egos auxiliares comentaram suas percepções sobre os papéis dramatizados, o vínculo vivenciado na cena com a protagonista e com os outros integrantes do grupo. Foram realizadas articulações com outras questões como as relações de poder e abuso de interações

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assimétricas que permeiam diferentes espaços sociais e a “manipulação” e “sedução” aliados a estas práticas. Foi ressaltado, também, que a espontaneidade exercitada tem um papel preponderante na aprendizagem, na medida em que, na perspectiva moreniana, por meio da espontaneidade, os sujeitos encontram mais facilidade para mobilizar o já aprendido e empregá-lo em novas situações (Puttini, 1997). Para Bustos (1979), a fase dos comentários compreende depoimentos a respeito das repercussões emocionais da encenação que se acabou de concluir, sob a forma de descrições de sentimentos ou reminiscências pessoais. Existe, ainda, o momento de processamento que, segundo Aguiar & Tassinari (1999), requer um distanciamento e se orienta numa linha mais racional, descritiva, reflexiva e explicativa. Os participantes, envolvidos com atividades de formação em saúde, realizaram, ao final da experiência, um processamento da vivência, explorando-o como estratégia possível em contextos educativos em saúde. Jornal Vivo e o processo ensino-aprendizagem em saúde: contribuições e possibilidades A análise da vivência do Jornal Vivo, procurando compreender as dinâmicas experienciadas a partir do que foi vivido e das perspectivas teórico-conceituais presentes na literatura, permitiu identificar contribuições e possibilidades para práticas formativas em saúde. Inicialmente, destaca-se a ressignificação de conteúdos: a estratégia psicodramática, ao possibilitar alcançar um outro nível de apropriação da notícia, no começo “externa” ou “distante” e, progressivamente, assumindo novos significados e encontrando interrelações com o cotidiano em diferentes espaços sociais, evidencia o quão fundamental é que a aprendizagem em saúde ultrapasse a retenção de informações e configure movimentos de reflexão, crítica e proposição de caminhos. Me faz refletir sobre nossas relações de poder na educação em saúde. Relações que podem fazer calar a outro membro da equipe, submetendo-o e descomprometendo-o da situação, dos sujeitos envolvidos. (depoimento de participante) O trabalho de educação em saúde acaba configurando um espaço que nos mostra onde algumas lideranças são socialmente instituídas: a liderança do médico, e em algumas comunidades a figura do professor, que é porta-voz do saber que pode falar o que é certo e errado. (depoimento de participante)

Ressignificar constitui o aprender, pois implica articular diferentes níveis de análise: individual, grupal e social. Surgem diferentes planos de análise: o plano individual a partir dos diferentes personagens e seus contextos e histórias de vida; o plano grupal relativo à família e sua atitude frente às questões e o plano institucional e social que garante a contextualização dos sujeitos. (comentário da equipe de psicodramatistas)

As práticas formativas em saúde, ao comprometerem-se com a criação de situações de aprendizagem que favoreçam o contato dos sujeitos com suas próprias histórias e com as histórias dos outros, podem ser espaços educativos orientados pela construção da autoria e autonomia. Esboça-se uma possibilidade da formação de profissionais da saúde, compreendida como um projeto histórico e coletivo, conectando diferentes dimensões: a autoformação (entender os sentidos presentes na própria trajetória de tornar-se profissional), a heteroformação (refletir sobre as influências e modelos que foram aprendidos nos itinerários de formar-se) e a ecoformação (discutir os condicionantes políticos, econômicos, sociais e culturais presentes em diferentes momentos formativos) (Pineau, 1998; Cassane, 2003). Imbricada à resignificação dos conteúdos, situa-se a aprendizagem de lidar com diferentes pontos de vista, traduzindo valores, crenças, saberes e amplia-se a compreensão de si próprio, dos outros e do mundo. Investir na diversidade é, também, reconhecer que a formação de profissionais em saúde abrange distintas esferas humanas: cognitiva, atitudinal, procedimental, afetivo-volitiva, social. Formar, utilizando diferentes linguagens, estratégias e recursos, traduz a intenção de desenvolver espaços e cenários formativos que valorizem os sujeitos e seus saberes prévios, assumindo a co-responsabilidade de desencadear

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(re)elaborações teórico-práticas que superem o fazer empírico e mobilizem patamares mais complexos de competência profissional. Emerge, neste quadro, uma contribuição relevante: o lugar da interdisciplinaridade. Todos somos veículos de nossas próprias dúvidas, de nossos próprios interesses, de nossos próprios receios. O trânsito da Interdisciplinaridade é um pouco isso, todos dividirmos as coisas, as satisfações, as queixas, as dúvidas, os anseios. (depoimento de participante) Está chegando um momento nas ciências que a questão onde termina minha tarefa e começa a outra vai deixar de ser colocada. Uma nova questão se coloca: com quais outros saberes tenho que dialogar para dar conta desta tarefa? (depoimento de participante)

Os depoimentos apresentados levam a reconhecer que a interdisciplinaridade não pode significar diluição das disciplinas (como haveria o diálogo?), nem secundarização do conhecimento científico e supervalorização do senso comum, pois “...o senso comum, tomado em si mesmo, é conservador e pode gerar prepotências ainda maiores que o conhecimento científico; interpenetrado pelo conhecimento científico, entretanto, pode partejar uma nova racionalidade...” (Fazenda, 1991, p.15). Conceber um campo de conhecimento como interdisciplinar requer uma rigorosa revisão e ruptura com as formas tradicionais de se entender e produzir conhecimento científico. Uma abordagem interdisciplinar não despreza a contribuição das disciplinas, ela apela aos saberes especializados, mas visa esclarecer a situação concreta, na qual nos encontramos, em sua complexidade compondo ilhas de racionalidade. (Fourez, 2001, p.43)

As ilhas de racionalidade envolvem a identificação das representações construídas intersubjetivamente em função das necessidades da situação, considerando o contexto, os sujeitos envolvidos, as interlocuções privilegiadas, os objetivos delineados, os resultados esperados (Fourez, 2001). Desenha-se, assim, o traço da provisoriedade na perspectiva interdisciplinar: as verdades científicas são produções relativas a um espaço, a um tempo e, portanto, elaboradas, partilhadas, aceitas, contestadas, superadas, revisitadas, reelaboradas. Emergem, ainda, as características de diálogo, parceria, busca e humildade no trabalho e no conhecimento interdisciplinar (Furlanetto, 2003). A experiênca situa, também, uma outra importante contribuição: o docente pode ter múltiplas possibilidades de organizar ambientes de aprendizagem que sejam mediadores dos processos de apropriação, discussão, análise e produção do conhecimento. As práticas pedagógicas são enriquecidas e se tornam mais produtivas quando demandas, desejos, dúvidas e questões que emergem do grupo de alunos encontram acolhimento e intencionalidade de serem tomadas como pontos de partida para o delicado e complexo ato de aprender. O Jornal Vivo, da forma como foi vivenciado, valorizou as aprendizagens e saberes anteriores dos sujeitos, os quais sofreram ampliações no grupo e possibilitaram novas reorganizações do conhecimento, caracterizando uma produção coletiva. A partir da percepção inicial, foi-se ampliando a reflexão crítica e a consciência do compromisso individual e social em relação ao objeto abordado, oriundo da realidade social. No intercruzamento entre os saberes prévios dos alunos e os saberes escolares/acadêmicos a serem trabalhados criam-se zonas de desenvolvimento: espaços interativos que mobilizam as possibilidades, dificuldades, projetos que partilhados desencadeiam redes de diálogo, aprendizagem e superação/ampliação dos referenciais explicativos sobre a realidade estudada. Pensar sobre as contribuições e possibilidades do Jornal Vivo como estratégia no processo ensinoaprendizagem em saúde abre um fecundo caminho para se viver práticas inovadoras. Relatá-las e teorizá-las, desvelando alternativas para e na formação de profissionais da saúde atentos às demandas da população, pode constituir uma contribuição ao processo de configurar espaços de aprendizagem significativa que privilegiem o conhecimento e suas interseções com a troca interdisciplinar, o trabalho em grupo, a parceria e diversidade. Elaborar este relato, refletindo sobre a recriação de ‘notícias’ que compõem os itinerários formativos, encontra nas palavras de Cecília Meireles (2001, p.239) uma tradução singular

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Mas, além de um sonho, esta “Página” foi também uma realidade enérgica, que muitas vezes, para sustentar sua justiça, teve de ser impiedosa e pela força de sua pureza pode ter parecido cruel. O passado não é assim tão passado porque dele nasce o presente com que se faz o futuro. O que esta “Página” sonhou e realizou, pouco ou muito – cada leitor o sabe -, teve sempre, como silenciosa inspiração, ir além. O sonho e a ação que se fixam acabam: como o homem que se contenta com o que é, e eterniza esse seu retrato na morte.

Referências

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ROJAS BERMUDES, J. Teoria e técnica psicodramáticas. Barcelona: Paidos, 1999. ROMAÑA, M.A. Do psicodrama pedagógico à pedagogia do drama. Campinas: Papirus, 1996. ROMAÑA, M.A. Desenvolvendo um pensamento vivo mediante uma didática sócio-psicodramática. Linhas Crít., v.4, n.7/8, p.116, 1998/99. SANTOS, J. L. F.; WESTPHAL, M.F. Práticas emergentes de um novo paradigma de saúde: o papel da universidade. Estud. Av., v.13, n.35, p.71-88, 1999.

This article describes a psychodrama experience – the Living Newspaper – and discusses its contributions as a teaching/ learning strategy in the field of healthcare, relying on the theoretical basis provided by psychodrama, as proposed by J. L. Moreno, and on its reinterpretations for the educational field, put forth by Maria Alicia Romaña. The setting consisted of a workshop, the participants of which were healthcare and education professionals. The dynamics involved the choice of the piece of news, dramatization, insertion of the participants in the scene and intensification of the group’s participation, with the audience and the setting creating new versions of the news. The discussion of the experience emphasized the levels of analysis of the issue at hand: individual, group-based and social; the interdisciplinary dimensions that comprise the educational arenas; the possibilities offered by this strategy, in that it deals with cognitive, emotional and attitudinal components; and fostering a better understanding of the teaching-learning situation. KEYWORDS: Health professional education; living newspaper, learning-teaching; pedagogical psycodrama; health education. Relata-se uma experiência psicodramática- o Jornal Vivo - e discute-se suas contribuições como estratégia de ensinoaprendizagem na saúde, tendo como marco teórico o Psicodrama, proposto por J. L. Moreno e reinterpretações para o campo educacional empreendidas por Maria Alicia Romaña. O cenário compreendeu uma Oficina de Trabalho, cujos participantes eram profissionais da saúde e da educação. A dinâmica envolveu: a escolha da notícia, dramatização, inserção dos participantes na cena e intensificação da participação grupal, com platéia e cenário construindo novas versões da notícia. A discussão sobre a experiência enfatizou os níveis de análise da questão abordada: individual, grupal e social; as dimensões interdisciplinares que compõem os espaços de formação; as possibilidades da estratégia, ao trabalhar componentes cognitivos, emocionais e atitudinais, e favorecer uma melhor compreensão da situação de ensino-aprendizagem. PALAVRAS-CHAVE: Formação em saúde; Jornal Vivo; processo ensino-aprendizagem; psicodrama pedagógico; educação em saúde. La propuesta es relatar una experiencia psicodramática -el Periódico Vivo- y discutir sus contribuciones como estrategia de la enseñanza-aprendizaje en el área de la salud, teniendo como marco teórico el Psicodrama, propuesto por J. L. Moreno y reinterpretaciones para el campo educacional emprendidas por Maria Alicia Romaña. El escenario comprendió un Taller de Trabajo, cuyos participantes eran profesionales del área de la salud y de la educación. La dinámica comprendió: la elección de la noticia, dramatización, inserción de los participantes en la escena dramatizada e intensificación de la participación grupal, con platea y escenario construyendo nuevas versiones de la noticia. La discusión sobre la experiencia enfatizó los niveles de análisis de la cuestión abordada: individual, grupal y social; las dimensiones interdisciplinarias que componen los espacios de formación; las posibilidades de esta estrategia al trabajar componentes cognitivos emocionales y actitudinales, y favorecer una mayor comprensión de la situación de enseñanza-aprendizaje. PALABRAS CLAVE: Formación en salud; Periódico Vivo; proceso de enseñanza-aprendizaje; psicodrama pedagogico; educación en salud.

Recebido para publicação em 13/05/03. Aprovado para publicação em 01/07/04.

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“GIVE BLOOD” project

* Desenho de Maria Julia, 13 anos. 1 Aprimoranda, Psicologia Hospitalar, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista (FMBUnesp). <reginabossolan@hotmail.com> 2, 6 Hemocentro, FMB-Unesp. <hemocentro@fmb.unesp.br> 3 Professor, Hemocentro, FMB-Unesp. <hokama@fmb.unesp.br> 4 Professora, Departamento de Neurologia e Psiquiatria, FMB-Unesp. <gimol@fmb.unesp.br> 5 Professora, Departamento de Educação, Instituto de Biociências de Botucatu, Unesp. <luciatoralles@terra.com.br>

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Distrito de Rubião Junior, s/nº Botucatu - SP 18.618-000

Regina Pagotto Bossolan1 Paulo de Alencar Pompiani2 Newton Key Hokama3 Gimol Benzaquen Perosa4 Maria Lúcia Toralles-Pereira5 José Mauro Zanini6

Começar na infância e adolescência a formar cidadãos conscientes para a qualidade do sangue doado em serviços de hemoterapia. Com este objetivo o Hemocentro do Hospital das Clínicas de Botucatu, Unesp, promoveu, em 2003, o concurso de desenho sobre doação de sangue. Participaram 930 estudantes de escolas públicas e particulares do município, entre sete e 14 anos de idade. Em 2004, foi desenvolvido projeto de pesquisa que analisou esses desenhos buscando compreender a concepção das crianças sobre o processo de doação e construir estratégias e programas de sensibilização para a doação junto à população. A maioria das crianças atribuiu valores positivos ao ato de doar sangue, vinculando-o à solidariedade e à responsabilidade das pessoas como cidadãs, possivelmente por serem esses os valores mais enfatizados nas campanhas veiculadas pela mídia. Uma pequena parte da amostra (geralmente de crianças maiores) centrou-se no enfrentamento aos medos concretos, à dor e às fantasias “negativas” que as pessoas podem ter em relação ao tema. Já crianças menores associaram a doação mais freqüentemente com a barganha (“doe, porque você pode precisar depois”). Os achados do Projeto indicam que é necessário diversificar as estratégias educativas e adotar metodologias que possibilitem a reflexão sobre as concepções de doação para atingir com maior eficácia as diferentes faixas etárias.

Luis, 10 anos

P R O J E T O

criação

Doe sangue. Um dia você também pode precisar

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CRIAÇÃO

Mônica, 13 anos Priscila, 14 anos

Nelson, 14 anos

Entre de cabeça nessa boa guerra!!!

Doe sangue e SALVE UMA VIDA!

Doe sangue e mostre que VOCÊ SE PREOCUPA COM OS OUTROS

Greice, 12 anos

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Rodrigo, 10 anos


CRIAÇÃO

Você NÃO É O SUPER HOMEM, MAS PODE SALVAR MUITAS VIDAS! Doe sangue!

Mônica, 11 anos

NÃO DEIXE QUE OS HOSPITAIS FIQUEM IGUAL A ESTE VAMPIRO. Doe sangue!

Vampiro mendigando sangue, bah!

Carolina, 14 anos

Amanda, 13 anos

Daniel, 13 anos

UMA GOTA DE SANGUE QUE SOBRA A VOCÊ FALTA A MILHARES DE PESSOAS... Doe sangue e salve vidas!

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CRIAÇÃO Amanda, 14 anos

Doe sangue, ENCHA DE ESPERANÇA O CORAÇÃO DE MUITAS PESSOAS!

Vanessa, 10 anos

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Larissa, 13 anos










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