v.8 n.15, mar./ago. 2004

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ISSN 1414-3283

Interface Comunicação, Saúde, Educação v.8, n.15, mar/ago 2004

APRESENTAÇÃO 215 NOTA DOS EDITORES 219

331 Intersetorialidade: uma vivência prática ou um desafio a ser conquistado? O Discurso do Sujeito Coletivo dos enfermeiros nos núcleos de Saúde da Família do Distrito Oeste - Ribeirão Preto Kelly Andressa de Paula et al.

DOSSIÊ sobre o Tempo Considerações sobre a idéia de tempo em 221 Sto. Agostinho, Hume e Kant Marcelo Carbone Carneiro

349 O ensino de saúde e os currículos dos cursos de medicina veterinária: um estudo de caso Márcia Regina Pfuetzenreiter; Arden Zylbersztajn

363 LIVROS

Ser do tempo em Bergson 233 Jonas Gonçalves Coelho

367 TESES Unidade e multiplicidade do tempo: uma 247 abordagem transdisciplinar Alfredo Pereira Junior; Ivan Amaral Guerrini

ARTIGOS

ESPAÇO ABERTO 375 Dilemas e desafios da formação profissional em saúde Antenor Amâncio Filho

A educação popular na atenção básica à 259 saúde no município: em busca da integralidade Paulette Cavalcanti de Albuquerque; Eduardo Navarro Stotz

Participação e exercício de direitos de 275 pessoas com deficiência: análise de um grupo de convivência em uma experiência comunitária Fátima Corrêa Oliver et al.

Participación de organizaciones 289 comunitarias en la gestión de salud: una evaluación de la experiencia del Programa Uni Hugo Mercer; Violeta Adrina Ruiz

381 Relato do aprendizado em estágio de observação da prática médica Moacyr Roberto Cuce Nobre et al.

387 Uma experiência interdisciplinar de psicanalistas com profissionais da saúde Cecília Luiza Montag Hirchzon; Heloísa Helena Sitrângulo Ditolvo

CRIAÇÃO 393 Dogville ou quando a vida é reduzida a um ciclo interminável de produção e consumo Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima

Innovaciones curriculares en la formación 303 universitaria de trabajadores sociales Susana Aurelio Preciado Jiménez et al.

Concepções de qualidade de ensino dos 313 coordenadores de graduação: uma análise dos cursos de odontologia do Estado de São Paulo Luciane Gabeira Secco; Maria Lúcia Toralles Pereira

397 Marcas Elisete Alvarenga



APRESENTAÇÃO

Alvíssaras: o tempo está em foco neste número de Interface. Ao menos desde Hegel, para quem o Homem é idêntico ao tempo uma vez que só é na medida em que suprime o Ser, na medida em que se projeta no devir, o tempo está no cerne do projeto histórico que chamamos de modernidade. Esse projeto vislumbrou a emancipação humana na história, a humanização do tempo pela consciência histórica, o tempo mítico da repetição de ciclos naturais suprassumido pela ação humana consciente de si mesma. O projeto do esclarecimento, no entanto, desenvolveu principalmente sua vertente tecnológica, convertendo o saber em força de produção e de dominação da natureza, o que nos legou um tempo imóvel, cíclico (Debord), tempo mítico baseado na propriedade (Adorno), tempo linear e vazio (Benjamin), que não é o meio no qual o homem se realiza e que lhe é inerente, mas um meio que o domina. A base da vivência do tempo na sociedade continua sendo o relógio de ponto: o tempo urge! Assim, são muito bem-vindas as reflexões presentes neste fascículo e que, cada uma a seu modo, contribuem para trazer para o centro do debate o conceito de tempo e seus desdobramentos para a vida dos indivíduos. Marcelo Carbone Carneiro aborda o conceito de tempo a partir da obra de Santo Agostinho, Hume e Kant, pensadores que o tomam como elaboração subjetiva, ou seja, como coisa que não teria realidade fora do sujeito. A apresentação das concepções dos três filósofos citados é oportuna porque, como um telescópio que nos mostra no tempo a luz das estrelas, permite dialogar com o passado, recuperando na tradição idéias que ainda podem encontrar ecos em questões atuais, ou que, no mínimo, nos permitem o relativo afastamento em relação ao presente imediato que é fundamental a qualquer perspectiva histórica. Alfredo Pereira Júnior e Ivan Amaral Guerrini ressaltam a importância da temporalidade em relação aos processos saúde-doença, em especial o caso das doenças mentais, trazendo-a para o centro do debate. Adotando uma compreensão do tempo não linear, ou tempo fractal, os autores apontam que haveria, na saúde, uma temporalidade baseada num padrão coerente de auto-similaridade emergindo da irregularidade que caracterizaria o tempo, enquanto na doença haveria processos subjetivos caracterizados pela desorganização temporal. Essa concepção tem várias conseqüências: desde a elaboração de novas estratégias para o tratamento de doenças até mudanças nos regimes farmacológicos e na forma de compreender certas patologias.

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APRESENTAÇÃO

Em mais uma contribuição à crítica a uma concepção linear de tempo, Jonas Gonçalves Coelho discute o “Ser do Tempo” segundo Bergson. Também para esse filósofo, o tempo é percebido subjetivamente; além disso, o Homem pode perceber o tempo conscientemente, pode se perceber no tempo, graças à memória. É a partir da temporalidade interior que o homem atribui temporalidade a eventos externos e, por isso, o conceito de duração, central na concepção bergsoniana, é profundamente discutido no texto. A concepção de tempo desse filósofo possibilita a compreensão da vivência subjetiva do tempo em relação à vida prática, possibilitando uma avaliação crítica de nossa época. Este número da revista traz, ainda, várias contribuições relevantes para o debate nas áreas da saúde, educação e comunicação, abordando em especial as questões da formação profissional e da participação social. A leitura desses textos, articulada à questão desenvolvida no dossiê, destaca a historicidade dos temas abordados, ligando-os a uma compreensão histórica do tempo. O debate contribui para que o tempo das coisas, característico das leis da mercadoria, seja compreendido e criticado pelas pessoas que trabalham com educação, saúde e comunicação, áreas nas quais, sem dúvida, as regras do capital não devem prevalecer. Ari Fernando Maia, Psicólogo. Professor Assistente Doutor, Departamento de Psicologia, Faculdade de Ciências, Unesp, Bauru <arifernando@uol.com.br>

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PRESENTATION

Good news: time is in focus in this number of Interface. At least since Hegel, for whom Man is identical to time, since he only is as the Being is suppressed and as he is projected into a series of transformations, time has been at the hub of the historical project we call modernity. This project looked at human emancipation in history, the humanization of time from the historical conscience, the mythical time of repetitive natural cycles that are taken over by human action that is conscious of itself. This project of clarification, however, mainly developed its technological side by converting knowledge into a productive force and the domination of nature, and which left us with an immutable and cyclical time (Debord), a mythical time based on property (Adorno), linear and empty time (Benjamin). This is not an environment in which man is fulfilled or which is inherent to him, but an environment that dominates him. The basis of the existence of time in society is the machine we use for clocking on for work: time roars! So the reflections in this work are very welcome. Each person, in his or her own way, should contribute in order to bring to the center of the debate the concept of time and its impact on the life of individuals. Marcelo Carbone Carneiro looks at the concept of time from the point of view of the works of St Augustine, Hume and Kant, thinkers who dealt with it as a subjective elaboration, in other words, as something that had no reality outside the subject. The presentation of the concepts of these three philosophers is opportune because, just like a telescope that shows us in time the light of the stars, it allows us to talk to the past, by recovering from tradition ideas that still can find echoes in current issues, or which, at the every least, allows us to distance ourselves relatively speaking from the immediate present. This is fundamental for any historical perspective.

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PRESENTATION

Alfredo Pereira Júnior and Ivan Amaral Guerrini underline the importance of temporality in relation to the processes of health and sickness, especially in cases of mental sickness, thus bringing it into the centre of the debate. The authors point out that if we adopt an understanding of time as being non-linear, or fractal time, in health there would be a temporality based on a coherent pattern of self-similarity that emerges from the irregularity that characterizes time, while in sickness there would be subjective processes, characterized by temporal disorganization. This concept leads to various consequences that go from the preparation of new strategies for treating sickness to changes in pharmacological regimes and in the way of understanding certain pathologies. In yet another critical contribution on the linear concept of time, Jonas Gonçalves Coelho discusses “Being and Time” according to Bergson. For this philosopher also time is perceived subjectively; furthermore Man can perceive time consciously and can see himself in time, thanks to his memory. From his interior temporality man attributes temporality to external events and because of this the concept of duration, which is central to the Bersgonian concept, is discussed in depth in the text. This philosopher’s concept of time allows for an understanding of the subjective existence of time in relation to the practical life, thereby contributing to a critical assessment of the period in which we live. This edition the magazine also present various relevant contributions to the debate in the areas of health, education and communication. It deals especially with issues of education and social participation. The reading of these texts, linked to the issue dealt with in the file, highlights the historical importance of the themes discussed and links them to an historic understanding of time. The debate contributes in such a way that the time of things, a characteristic of the laws of goods, can be understood and criticized by people who work in education, health and communication, areas in which undoubtedly the rules of capital ought not to prevail. Ari Fernando Maia, Psycologist. PhD, Psycology Department, College of Ciences, Unesp, Bauru <arifernando@uol.com.br>

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NOTA DOS EDITORES

Interface - Comunicação, Saúde, Educação, com esta edição, número 15, completa um ciclo de sete anos de publicação regular, iniciado em agosto de 1997. Neste momento gostaríamos de dividir com nossos leitores e colaboradores a alegria e satisfação que sentimos em todo esse percurso de trabalho ao criar, experimentar e construir uma publicação interdisciplinar num contínuo esforço por aprimorar nosso projeto editorial. Nesse período, Interface foi indexada em várias bases e amadurecemos nosso projeto enquanto espaço de produção e troca de conhecimentos, veiculado em meio impresso e eletrônico. Os elementos que nos inspiraram na criação de nossa publicação, expressos nas teses de Ítalo Calvino, permanecem vivos e nos desafiam em cada edição como valores essenciais à comunicação de nosso tempo: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Cabe, no entanto, aos nossos leitores e colaboradores, que nos acompanham neste percurso, julgarem o quanto foi possível amadurecer esse projeto editorial. Nesta edição de agosto, queremos também partilhar com nossos leitores a satisfação do corpo editorial com a aprovação de nossa publicação para integrar a Coleção SciELO Brasil e poder, assim, participar de um dos modelos mais inovadores de acervos de periódicos eletrônicos na área de comunicação científica em curso no mundo hoje. A Coleção SciELO, desenvolvida no Brasil, atualmente alcança outras nações ibero-americanas com a proposta de ampliar “radicalmente a visibilidade, a acessibilidade e a credibilidade nacional e internacional da publicação científica da América Latina e Caribe”. Outro fato que inaugura uma nova fase é a co-responsabilidade do Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu-Unesp, com a sustentação e produção da revista. Trata-se de espaço em que parte expressiva da equipe da revista está envolvida, trabalhando com a formação na graduação e pós-graduação e com a produção de conhecimento no campo. Esperamos com essa nova parceria fortalecer a idéia de interdisciplinaridade que inspirou nossa proposta e a interface pretendida na origem do nosso projeto editorial, definida em seu próprio título: Interface Comunicação, Saúde, Educação. Por fim, queremos agradecer às instituições que acreditaram e têm apoiado nosso projeto editorial, garantindo sua consolidação: Fundação Kellogg, Fundação Editora Unesp, Faculdade de Medicina de Botucatu-Unesp, Instituto de Biociências de Botucatu-Unesp, Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Unesp, Reitoria da Unesp, Ministério da Saúde e CNPq.

Interface

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ELISETE ALVARENGA, Marcas, 2002

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dossiê

Considerações sobre a idéia de tempo em Sto. Agostinho, Hume e Kant

Marcelo Carbone Carneiro 1

CARNEIRO, M. C. Considerations on the idea of time in St. Augustine, Hume and Kant, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.221-32, mar/ago 2004.

Time is discussed by trying to understand it from those points of reference that take it as a subjective elaboration, in other words, as not having any reality outside the individual. In the history of Philosophy it is understood that this line of reflection started with the philosophy of St. Augustine and reached its zenith in modern thought, above all in Hume and Kant. Time is a construction or an elaboration of the spirit, without any existence outside it (St. Augustine), or it is a regular empirical understanding of the causal relationships of the before and the after (Hume), or it is the pure intuition of the spirit (Kant). With this analysis it is intended to provide evidence of a classical way of conceiving of time as an elaboration of the individual (subjective). KEY WORDS: Time perception; history; philosophy. Discute-se sobre o tempo buscando entendê-lo a partir dos referenciais que o tomam como elaboração subjetiva, ou seja, como não possuindo qualquer realidade fora do sujeito. Entende-se que, na história da Filosofia, esta reflexão inicia-se com a filosofia de Sto. Agostinho e tem seu ápice no pensamento moderno, sobretudo em Hume e Kant. O tempo seria uma construção ou elaboração do espírito, sem existência fora dele (Sto. Agostinho) ou uma apreensão empírica regular de relações causais de antes e depois (Hume) ou uma intuição pura do espírito (Kant). Pretende-se, com esta análise, evidenciar uma forma clássica de conceber o tempo como elaboração realizada pelo sujeito (subjetiva). PALAVRAS-CHAVE: Percepção do tempo; história; filosofia.

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Professor Assistente Doutor, Departamento de Ciências Humanas, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp, Bauru, SP. <carbone@faac.unesp.br>

Rua Rodrigo Romeiro, 4-45, apto. 12 Centro - Bauru, SP 17.015-420

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CARNEIRO, M. C.

A discussão sobre o tempo que desenvolvemos a seguir buscou entendê-lo a partir dos referenciais que o tomam como elaboração subjetiva, ou seja, como não possuindo qualquer realidade fora do sujeito. Entendemos que, na história da Filosofia, esta reflexão inicia-se com a filosofia de Sto. Agostinho e tem seu ápice no pensamento moderno, sobretudo em Hume e Kant. A concepção subjetiva do tempo refuta as idéias de que o tempo seria uma criação mágica e fenomênica, uma realidade cosmológica, uma medida de movimentos multiformes, uma realidade homogênea e objetiva, na qual as coisas estão inseridas em uma noção derivada das relações espaciais e cinemáticas (velocidades). O tempo seria uma construção ou elaboração do espírito, sem existência fora dele (Sto. Agostinho) ou uma apreensão empírica regular de relações causais de antes e depois (Hume) ou uma intuição pura do espírito (Kant). O que pretendemos com esta análise é evidenciar uma forma clássica de conceber o tempo como elaboração realizada pelo sujeito (subjetiva). A concepção agostiniana 2 do tempo Para falarmos da noção de tempo em Santo Agostinho, utilizaremos o livro XI das Confissões. Neste, destaca-se a conhecida análise filosófica sobre o tempo como próprio das impressões do sujeito (subjetivo)3 . Santo Agostinho (1987) diz ser muito difícil discorrer sobre o tempo e o desenvolve como subjetivo, isto é, como a maneira (humana) de se relacionar com as coisas que passaram, passam e passarão. O homem, criado por Deus a sua imagem e semelhança, foi conduzido à morte e ao tempo por força do pecado, que significou uma ruptura com Deus. Porém, por Cristo - que é o cordeiro de Deus que deu sua vida para livrar o homem do pecado – pode restabelecer a ligação com Deus e fazer de sua vida no tempo uma preparação para a vida eterna. O ponto de partida das Confissões de Santo Agostinho é a questão da necessidade ou não de confessar a Deus o que ele já conhece, pois sabe a ocorrência das coisas antes mesmo que aconteçam. Deus, por ser eterno, está fora do tempo e é o criador do próprio tempo. Para ele não existe antes ou depois. Diz Santo Agostinho (1987, p.211) que “existem, pois, o céu e a terra. Em voz alta dizem-nos que foram criados, porque estão sujeitos a mudanças e vicissitudes”. Somente as coisas criadas por Deus estão sujeitas à relação de sucessão temporal. O criador constituiu todas as coisas pela palavra (verbo) e estas palavras foram pronunciadas eternamente, pois nunca se acaba o que estava sendo pronunciado nem se diz outra coisa para dar lugar a que tudo se possa dizer, mas tudo se diz simultânea e eternamente. Se assim não fosse já haveria tempo e mudança, e não verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade. (Santo Agostinho, 1987, p.213-4)

Por isso, o verbo de Deus é, ao mesmo tempo e eternamente, não havendo diferença entre dizer e criar. Assim, a questão: que faria Deus antes da

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2 Agostinho nasce em Tagaste, Numídia, na África em 354 d.c. e morre em 430 d.c.. Filósofo cristão, com forte influência do pensamento de Platão e de Plotino.

3 Parece legítimo colocálo como filósofo que de forma significativa discorre sobre o tempo como próprio do homem. Neste sentido, como aquele que pela primeira vez na história do pensamento coloca o tempo como construção subjetiva. Embora Lacey (1972) diga que existem duas linhas na filosofia agostiniana do tempo, uma subjetivista outra objetivista, porém nenhuma delas desenvolvida em detalhe e faltam recursos lingüísticos para o desenvolvimento da segunda. A linha subjetivista se relaciona com a medição do tempo, a objetivista com o próprio tempo. Optamos por ler Sto. Agostinho a partir da linha subjetivista (a mesma interpretação adotada por Lacey).


CONSIDERAÇÕES SOBRE A IDÉIA DE TEMPO ...

criação? é indevida, pois tentamos falar do eterno com os instrumentos finitos e limitados que possuímos. Segundo Santo Agostinho (1987), equivocam-se os que colocam Deus sobre as relações temporais próprias do modo como o homem organiza este mundo (relações de sucessão e simultaneidade), dizendo de Deus que: se estava ocioso e nada realizava, ‘por que não ficou sempre assim no decurso dos séculos, abstendo-se, como antes, de toda ação? Se existiu em Deus um novo movimento, uma vontade nova para dar o ser a criaturas que nunca antes criara, como pode haver verdadeira eternidade, se n’Ele aparece uma vontade que antes não existia? (Santo Agostinho, 1987, p.215)

Deus está antes de toda criatura e se surgisse uma vontade que não estivesse antes, isto seria sinal de imperfeição e não de eternidade. O grande problema é que as ferramentas da nossa inteligência e de nossa linguagem são muito limitadas para falarmos de Deus. Por isso, quando nos esforçamos para compreender as coisas eternas nossos pensamentos giram ao redor das idéias da sucessão dos tempos passados e futuros e, por isso, o homem nada pode compreender da eternidade, como afirma Santo Agostinho (1987, p.216): Na eternidade nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração do homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo ela nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que escreve explicar isso? Poderá a atividade da minha língua conseguir pela palavra realizar a empresa tão grandiosa?

Diz o filósofo que é Deus mesmo o criador do tempo e “não houve tempo nenhum em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo” (Santo Agostinho, 1987, p.217). Quando se interroga sobre o que seria tempo (Quid est ergo tempus) discorre sobre a questão da seguinte forma: Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu sei; se o

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quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.. (Santo Agostinho, 1987, p.218)

Esta colocação significa que ele queria saber se o tempo é uma característica do mundo físico objetivo (como movimento cosmológico em Platão) ou um fenômeno subjetivo (como aponta em sua confissão). Santo Agostinho diz que o passado não existe mais, o futuro ainda não chegou e o presente torna-se pretérito a cada instante. O que seria próprio do tempo é o não ser. O passado existe, por força de minha memória, no presente. Da mesma forma, o futuro existe, por força da expectativa de que as coisas ocorrerão, no presente. E o presente seria a percepção imediata do que ocorre. Os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das coisas futuras e presente das coisas presentes. Portanto, o tempo é subjetivo, pois o modo como nos referimos às coisas depende totalmente de elementos internos (memória, expectativa, sentimento etc), a apreensão ontológica do tempo não é possível. O que colocamos em relações temporais são impressões mentais - tempo passado, memória; tempo futuro, expectativa; tempo presente, passado presente e futuro presente. A concepção de Hume 4 sobre o tempo Para Hume (1984), a mente humana está encerrada em estreitos limites, o que impede que esta conheça verdadeiramente as coisas. Desenvolvemos o problema da causalidade em Hume e sua teoria do conhecimento, com o objetivo de entender que a noção temporal não pode ser desvinculada da forma como ele concebe a causalidade e o conhecimento. O que conhecemos então? Não a essência do objeto, mas certa regularidade constatada empiricamente. Quando envolve questões de fatos, a única via de “comprovação” é a experiência e a mente humana só é capaz de pensar os objetos com o auxílio da memória e porque esses são internalizados por meio das imagens mentais. Existem também as relações de idéias, estas auto-evidentes, intuitivamente certas (são as ciências da geometria, álgebra e aritmética, ou, como denominamos hoje: a matemática). O tempo é, em Hume (1984), a constatação de certa sucessão habitual, isto é, ligamos um evento ao outro quando experimentamos certas vezes esta ligação. A mente percebe as coisas de duas formas: impressões e idéias. As impressões são todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. Portanto, as impressões estão ligadas às sensações externas (os sentidos) e às sensações internas (emoções, desejos etc), que nos afetam de maneira “viva” e direta. As idéias que temos em nossa mente são cópias menos “vivas” das impressões. Quando pensamos, nossa mente combina as idéias. As idéias são cópias das coisas, nunca tão claras como as próprias impressões. As idéias constituem conteúdo do pensamento (pensar é associar idéias). Para Hume (1984, p.138), o conhecimento está diretamente limitado pela experiência: “... todo o poder criador da mente se reduz à simples

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4 Hume nasceu em Edimburgo, na Escócia, no dia 7 de maio de 1711 e morreu em 1776. Filósofo empirista e cético, influenciou decisivamente o pensamento moderno e contemporâneo.


CONSIDERAÇÕES SOBRE A IDÉIA DE TEMPO ...

faculdade de combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência”. Quando pensamos, juntamos (associamos) idéias que são compatíveis entre si e todas as nossas idéias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas. A regra geral do entendimento é a de não ser capaz de imaginar algo que não seja dado na experiência, isto é, não há a criação de “novidades” (de algo que esteja fora do domínio da experiência), pois a mente simplesmente combina as idéias, que são cópias das coisas (imagens). Quando pensamos, representamos as coisas por meio desta capacidade da mente de internalizar as coisas pela imagem. Para Hume (1984), todas as nossas idéias são derivadas da experiência, ou seja, não há possibilidade de se admitir uma independência das idéias com relação às coisas, nem que elas possam ser inatas. Existe um princípio de conexão entre os diversos pensamentos ou idéias do intelecto, quer dizer, quando pensamos conectamos uma idéia a outra obedecendo a uma certa regularidade. E mesmo em nossos devaneios mais doidos e extravagantes, em nossos próprios sonhos, a análise nos mostrará que a imaginação não procede inteiramente ao acaso, mas há sempre uma conexão entre as diferentes idéias que sucedem umas às outras. (Hume, 1984, p.140)

Hume (1984) afirma que existem três princípios de conexão entre as idéias: a semelhança (uma pintura conduz nossos pensamentos para o original), a contigüidade ou proximidade de tempo ou lugar (um comentário sobre um aposento desperta uma pergunta ou comentário a respeito dos outros) e a causa ou efeito (se pensarmos num ferimento, logo lembraremos da dor que o acompanha). A relação temporal e a de semelhança pode ser caracterizada pela relação de causa e efeito. As questões de fato não podem ser explicadas com um grau de necessidade e universalidade, pelo intelecto ou pela razão, como a matemática, pois dependem sempre da ocorrência das coisas. Portanto, o conhecimento das questões de fato ou questões físicas é derivado da experiência. Diz Hume (1984, p.142), que “todos os raciocínios sobre questões de fato parecem fundar-se na relação de causa e efeito.” Somente por meio desta relação o homem é capaz de ultrapassar a evidência da memória e dos sentidos. A relação de causa e efeito permite inferirmos algo sobre um objeto; por exemplo: o calor e a luz são efeitos do fogo, e um desses efeitos pode ser inferido com acerto do outro. No entanto, como chegamos ao conhecimento dessa relação de causa e efeito nas coisas? Para Hume (1984), não é por raciocínios a priori (anterior à experiência) que chegamos a esta conexão entre as coisas, mas pela experiência, quando percebemos repetidas vezes que um objeto está ligado a outro, pois

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nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que se manifestam aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele decorrerão; e tampouco a nossa razão, sem o socorro da experiência, é capaz de inferir o que quer que seja em questões de fato e de existência real. (Hume, 19874, p.142)

As causas e os efeitos não podem ser descobertos pela razão (a razão pode conceber tanto uma coisa como o seu contrário, sem contradição), mas pela experiência. Apresentai dois pedaços lisos de mármore a um homem que não tenha a menor noção de filosofia natural; esse homem jamais descobrirá que eles podem aderir um ao outro de tal maneira que seja preciso uma grande força para separá-los no sentido longitudinal, se bem que ofereçam tão pouca resistência à pressão lateral. (Hume, 1984, p.142-3)

Não podemos, sobre as questões de fatos, descobrir o que quer que seja por raciocínios a priori, pois as inferências que efetuamos sobre as coisas derivam absolutamente da experiência, esta a fonte das relações e raciocínios temporais que realizamos. Quando colocamos um evento unido ao outro e raciocinamos sobre a sucessão dos eventos o fazemos a partir da experiência. Portanto, todas as leis da natureza e todas as operações dos corpos, sem exceção alguma, são apenas conhecidas pela experiência. As inferências constituem o conhecimento que temos sobre as questões de fato, mas se apóiam inteiramente na experiência (na forma de imagens reproduzidas internamente). Hume (1984, p.143) diz: Que é possível que a mesma verdade não pareça, à primeira vista, tão evidente no que se refere a acontecimentos com que estamos familiarizados desde que viemos ao mundo, acontecimentos que têm estreita analogia com o curso ordinário da natureza e que passam por depender das qualidades simples dos objetos, sem qualquer estrutura desconhecida. Inclinamo-nos a crer que poderíamos descobrir esses efeitos pela simples operação de nossa razão, sem a experiência. Acreditamos que, se fôssemos trazidos de repente a este mundo, poderíamos ter inferido desde o primeiro instante que uma bola de bilhar comunicaria o seu movimento a outra bola por impulso; e que não seria preciso aguardar o acontecimento para nos pronunciarmos com certeza a seu respeito. Tão grande é a influência do costume, que, nos casos em que é mais forte, não apenas cobre a nossa ignorância natural mas esconde também a si próprio e parece não existir simplesmente porque é encontrado no mais alto grau.

Todo efeito possui uma diferença de sua causa e se há uma conjunção e, posteriormente, uma inferência entre estes é por conta da observação e da

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A IDÉIA DE TEMPO ...

experiência. O exemplo clássico sobre a impossibilidade de se estabelecer leis a priori sobre o mundo físico (questões de fatos) é o da bola de bilhar, diz Hume (1984, p.143): Quando vejo, por exemplo, uma bola de bilhar mover-se para outra em linha reta, mesmo supondo-se que o movimento da segunda bola me viesse casualmente ao pensamento, não poderia eu conceber uma centena de outras ocorrências a originar-se desta causa? Não seria possível que ambas as bolas ficassem em absoluto repouso? Não poderia a primeira voltar em linha reta ou ressaltar da segunda em qualquer linha ou direção? Todas essas suposições são coerentes e concebíveis. Por que, então, dar preferência a uma delas, que não é mais coerente e concebível do que o resto? Todos os nossos raciocínios a priori jamais nos poderão apontar uma razão para essa preferência.

Mesmo depois que aprendemos as propriedades físicas das coisas pela experiência, as conclusões que tiramos não são fundadas no raciocínio ou em qualquer processo do entendimento, sendo o produto da ocorrência (regularidade da experiência). Segundo Hume (1984), quando percebemos certos objetos pelos sentidos, somos levados a presumir que eles possuem poderes secretos semelhantes e esperamos que daí decorram efeitos análogos aos que já observamos ou experimentamos, pois “se nos for apresentado um corpo de cor e consistência parecidas às do pão, que já comemos, não temos receio de repetir a experiência, certos de que ele nos proporcionará o mesmo alimento e sustento” (p.143). A experiência passada funciona como padrão de nossos juízos futuros, fundando-se na semelhança que descobrimos entre os objetos naturais (de causas que parecem semelhantes tiramos conclusões semelhantes). No entanto, só depois de uma repetição continuada dos eventos somos levados a juízos gerais sobre estes. A inferência sobre as coisas deriva da repetição continuada do evento, que dá a sensação de que se repetirá sempre da mesma maneira. Segundo Hume (1984), o princípio que dirige nossos juízos sobre as questões de fatos é o hábito ou o costume. Depois que percebemos pela primeira vez certo evento sucedendo a outro (relação temporal), não realizamos nada mais que uma conjunção e somente depois deste evento se repetir várias vezes (conjunção constante) inferimos um a partir do outro. O princípio que nos leva a tirar conclusões gerais e estabelecer conexões causais sobre as coisas é o costume ou hábito. Com efeito, sempre que a repetição de algum ato ou operação particular produz uma propensão de renovar o mesmo ato ou operação sem que seja impelidos por qualquer raciocínio ou processo do entendimento, dizemos que essa propensão é um efeito do hábito. (Hume, 1984, p.149)

Após a conjunção constante de dois objetos - por exemplo calor e chama,

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peso e solidez - somos levados tão-somente pelo costume a esperar, após um deles, o aparecimento do outro. Esta hipótese, segundo Hume (1984, p.149-50), parece ser, mesmo, a única que resolve a dificuldade: por que tiramos de mil exemplos uma inferência que não podemos tirar de um só exemplo, a todos os respeitos igual a todos? A razão é incapaz de variar desse modo. As conclusões que tira da consideração de um círculo são as mesmas que tiraria da observação de todos os círculos do universo. Mas ninguém, ao ver um único corpo mover-se depois de ser impelido por outro, poderia inferir que todos os corpos se moverão sob um impulso semelhante. Todas as inferências são derivadas da experiência, por conseguinte, são efeitos do costume e não do raciocínio.

Em Hume, encontramos uma distinção entre razão e experiência. A primeira provém do resultado de nossas faculdades intelectuais. A segunda, deriva inteiramente dos sentidos e da observação que nos faz inferir um evento (objeto) a partir do outro. O hábito é, pois, o grande guia da vida humana. É aquele princípio único que faz com que nossa experiência nos seja útil e nos leve a esperar, no futuro, uma seqüência de acontecimento semelhante às que se verificaram no passado. Sem a ação do hábito ignoraríamos completamente toda questão de fato além do que está imediatamente presente à memória ou aos sentidos. Jamais saberíamos como adequar os meios aos fins ou como utilizar os nossos poderes naturais na produção de um efeito qualquer. Seria o fim imediato de toda ação, assim como da maior parte da especulação. (Hume, 1984, p.150)

A crença de que, a partir de ocorrências particulares, estas sempre se repetirão da mesma maneira (generalização) sustenta-se em um instinto natural, isto é, é próprio da limitação na qual está encerrada a mente humana proceder desta maneira e não de outra. Este instinto natural é diferente do raciocínio ou processo do pensamento ou entendimento. As ocorrências continuadas das coisas provocam na mente o sentimento de que as coisas sempre se repetirão daquela maneira, o que Hume (1984) chama de acasos favoráveis, os quais, em proporção favorável com relação aos acasos contrários, provocam na mente a crença de que sempre serão assim. Portanto, quando entramos em contato com os objetos exteriores à nossa volta e buscamos as relações causais entre eles, nunca podemos descobrir, num único exemplo, qualquer poder ou conexão necessária, qualquer qualidade que ligue o efeito à causa e faça com que um deles seja conseqüência infalível do outro. Observamos, apenas, que um deles se segue realmente ao outro. O impulso de uma bola de bilhar é seguido pelo movimento da segunda. Isso é tudo que se apresenta aos nossos sentidos

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exteriores. Essa sucessão de objetos não produz nenhum sentimento ou impressão interior na mente: por conseguinte, num exemplo único e particular de causa e efeito, nada existe que possa sugerir a idéia de poder ou conexão necessária. Isto significa que as conexões realizadas entre idéias são realizadas por uma espécie de analogia, isto é, por certa semelhança constatada empiricamente. Esta é a estrutura do pensamento com relação às questões físicas ou de fatos. Um único exemplo jamais poderia nos dar a idéia de conexão necessária. As relações causais entre as coisas são um produto de elaboração interna, isto é, não derivam das próprias coisas. Esta elaboração consiste em atribuir às coisas conexões que naturalmente não possuem (pelo hábito). A idéia de conexão necessária entre as coisas deriva diretamente das ocorrências continuadas dos eventos. Os homens, pelo fato de estarem acostumados à regularidade das coisas, adquirem o hábito de, ao apresentarem-se as causas, esperarem os efeitos habituais. Apreendemos, portanto, uma conjunção freqüente nos objetos e não a conexão necessária. O tempo, igualmente, é apreendido da mesma forma. Portanto, é próprio da mente humana conhecer e estabelecer certa relação temporal entre as coisas somente devido à ocorrência regular das coisas.

Kant nasceu a 22 de abril de 1724 em Königsberg, Prússia e morreu em 12 de fevereiro de 1804. Filósofo que fora despertado de seu sono dogmático pelo ceticismo de Hume, influenciou decisivamente o pensamento moderno e contemporâneo. 5

6 Os textos de Kant que discutem a questão do conhecimento (e em especial a questão do tempo) são a Dissertação de 1770, que sob muitos pontos antecipa o conteúdo da Crítica, a Crítica da Razão Pura (1.ed. (A) 1781 e 2.ed. (B) 1787) e os Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se apresentar como Ciência (1783), texto elaborado para expor as idéias centrais da 1a. Crítica que não foram devidamente entendidas por seus contemporâneos.

A concepção de tempo em Kant 5 Kant opera na filosofia uma mudança no modo de se entender a questão do conhecimento. O objetivo de sua teoria é o de fazer uma crítica aos modos de conhecer próprios do sujeito, isto é, antes de conhecer algo devo estabelecer como conhecemos ou como nossa ‘mente’ opera para dar forma às coisas, idéia conhecida como revoluação copernicana em filosofia (os objetos devem girar em torno do sujeito, regular-se pela faculdade de conhecer, que os constróem). A exposição que faremos da teoria kantiana do tempo encontra-se na Crítica da Razão Pura 6 (Kant, 1987). Na introdução da Crítica, Kant diz que o conhecimento tem seu começo com a experiência, pois ela desperta as faculdades da mente para o exercício e funciona como matéria bruta sobre a qual se aplicam às formas o a priori da mente (anterioridade com relação à experiência e, sobretudo, anterioridade lógica e não cronológica). Mas, embora, nosso conhecimento comece com a experiência, sua origem não está na experiência, pois as faculdades da ‘mente’ organizam a experiência segundo uma forma a priori. O espaço e o tempo não seriam realidades materiais, nem conteúdos possíveis de nossas representações e de nossa experiência, mas formas subjetivas de nossas representações. O tempo não é derivado de experiência alguma, pois a simultaneidade e a sucessão nunca chegariam a nossa percepção se a representação do tempo não estivesse subjacente a elas a priori. Somente na pressuposição do tempo podemos representar para nós mesmos diversas coisas como existentes num único e mesmo momento

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(simultâneos) ou em tempos diferentes (sucessivos). Portanto, o tempo seria uma das formas fundamentais de apreensão (recepção) dos objetos. O tempo não é propriedade dos objetos, mas parte indispensável da nossa condição humana (subjetiva) de organização destes. Portanto, não é a nossa intuição sensível que se regula pela natureza dos objetos, mas são os objetos que se regulam pela natureza de nossas formas internas de recebê-los e, posteriormente, de pensá-los pelos conceitos puros do entendimento. Em suma, só conhecemos das coisas o que nós mesmos inserimos nelas, isto é, só conhecemos por intermédio daquilo que o sujeito põe nas coisas no ato de conhecê-las. O tempo aparece, então, como uma intuição pura da faculdade responsável pela receptividade dos objetos (sensibilidade), na medida em que somos afetados pelos mesmos. A sensibilidade é a “capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos” (Kant, 1987, p.39). A intuição é uma apreensão individual e imediata de um objeto atualmente presente ao espírito. O modo como somos afetados imediatamente pelos objetos é a intuição. A sensibilidade, portanto, fornece intuições, isto é, representações na medida em que somos afetados pelos objetos. Todos os objetos nos são dados na sensibilidade e esta é uma faculdade passiva. Quando o objeto é recebido pelas formas puras da intuição e não sofreu a ação das categorias, denomina-se “fenômeno”. No fenômeno, Kant distingue uma “matéria” e uma “forma”. A “matéria” é dada pela simples sensação ou modificação produzida em nós pelo objeto e, como tal, só pode ser a posteriori (por exemplo, não podemos sentir frio ou calor a não ser depois da experiência). A “forma”, ao contrário, não vem das sensações e da experiência, mas sim do sujeito, sendo aquilo pelo qual os múltiplos dados sensoriais são organizados e determinados. E como a “forma” é o modo de funcionamento da sensibilidade, esta existe a priori em nós. O objeto de uma intuição empírica é organizado segundo as formas puras (intuições puras) de representação própria da “mente” humana. O trabalho da sensibilidade é registrar a afecção segundo a forma passiva (faculdade responsável pela receptividade dos objetos). As formas puras da sensibilidade, que representam os objetos quando estes afetam nossos sentidos, são o espaço e o tempo. Portanto, para Kant, espaço e tempo deixam de ser determinações ou estruturas dos objetos e tornam-se formas próprias do sujeito. O tempo, assim como o espaço, é representação necessária subjacente a todas as intuições. O tempo é a forma do sentido interno, pois não pertence a figura alguma ou posição alguma etc., “determinando ao contrário a relação das representações em nosso estado interno” (Kant, 1987, p.50). Os objetos são representados por nós em um tempo e ele (o tempo) é a condição necessária para organizarmos internamente os objetos. Segundo Kant (1987, p.51): “o tempo é simplesmente uma condição subjetiva da nossa alma (humana), intuição (que é sempre sensível, isto é, na medida em que somos afetados por objetos), em si, fora do sujeito,

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não é nada”. O tempo é a forma da intuição que determina as relações das representações em nosso estado interno, é a forma de organização interna do objeto. O tempo é homogêneo, as partes do tempo fazem parte de um e mesmo tempo. Segundo Kant (1987, p.44): “Ele posssui uma única dimensão: diversos tempos não são simultâneos, mas sucessivos (assim como diversos espaços não são sucessivos, mas simultâneos)”. O tempo não é uma realidade material, nem conteúdos possíveis de nossas representações e de nossa experiência, mas forma subjetiva (necessária) de nossas representações e de nossa experiência. Portanto, para Kant, o tempo é considerado forma subjetiva de nosso intelecto, isto é, existe somente para o nosso espírito, pois é uma forma de representação própria de nossa mente. Conclusão Desenvolvemos a idéia de que o tempo entendido como elaboração ou construção subjetiva encontra em Sto. Agostinho, Hume e Kant seus mais ilustres teóricos. Sto. Agostinho representa, na história da filosofia, aquele que de forma original desenvolve o tempo como subjetivo. Os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das coisas futuras e presente das coisas presentes. O tempo é subjetivo, pois o modo como nos referimos às coisas depende totalmente dos estados internos, tais como a memória, a expectativa, o sentir etc. O tempo é, portanto, subjetivo, isto é, o que colocamos em relações temporais são impressões mentais - tempo passado, memória; tempo futuro, expectativa; tempo presente, passado presente e futuro presente. Para Hume, o tempo origina-se da constatação empírica de uma relação de antes e depois (relação causal). A mente, por força do hábito ou costume, estabelece certa relação temporal e causal entre as coisas que possuem certa regularidade constatada empiricamente. Em Kant, o tempo é homogêneo, subjetivo e uma forma pura da intuição. O tempo não existe fora do espírito, isto é, constitui-se como uma forma de representação a priori da mente humana, sem a qual os objetos não seriam organizados numa ordem e sucessão.

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Referências SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores). HUME, D. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores). KANT, I. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gunbenkian,1989. KANT, I. Dissertação de 1770. Portugal: Casa da Moeda, 1985. KANT, I. Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se apresentar como Ciência. Lisboa: Guimarães, 1988. LACEY, H. A linguagem do espaço e do tempo. São Paulo: Perspectiva, 1972.

CARNEIRO, M. C. Consideraciones sobre la idea de tiempo en San Agustín, Hume y Kant, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.221-32, mar/ago 2004. Se desenvuelve una discusión sobre el tiempo procurando entenderlo a partir de los referenciales que lo toman como elaboración subjetiva, o sea, como no teniendo ninguna realidad fuera del sujeto. Se entiende que, en la historia da Filosofía, esta reflexión tiene origen con la filosofía de San Agustín y llega a su ápice en el pensamiento moderno, sobretodo en Hume y Kant. El tiempo sería una construcción o elaboración del espíritu, sin existencia fuera de él (San Agustín) o una aprehensión empírica regular de relaciones causales de antes y después (Hume) o una intuición pura del espíritu (Kant). Se pretende, con este análisis, evidenciar una forma clásica de concebir el tiempo como elaboración realizada por el sujeto (subjetiva). PALABRAS-CLAVE: Percepcion del tiempo; historia; filosofia.

Recebido para publicação em 07/05/04. Aprovado para publicação em 15/06/04.

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Ser do tempo em Bergson

Jonas Gonçalves Coelho 1

COELHO, J. G. Being and time in Bergson, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.233-46, mar/ago 2004.

We considered Bergson’s duration concept. We intended to show that, according to Bergson, the time of philosophers and scientists is a fictitious time, a spatial scheme that hides the nature of real time, which cannot be separated from physical and psychological events. For Bergson, real time is succession, continuity, change, memory and creation. KEY WORDS: Bergson; duration; time; space. O artigo apresenta a concepção bergsoniana de duração. Pretende-se mostrar que, segundo Bergson, o tempo dos filósofos e cientistas é um tempo fictício, um esquema espacial que oculta a natureza do tempo real, o qual não pode ser separado dos acontecimentos físicos e psicológicos. Para Bergson, o tempo real é sucessão, continuidade, mudança, memória e criação. PALAVRAS-CHAVE: Bergson; duração; tempo; espaço.

1 Professor Assistente Doutor, Departamento de Ciências Humanas, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp, Bauru, SP. <jonas@faac.unesp.br>

Av. Siqueira Campos, 651, apto.91 A Bairro Embaré - Santos, SP 11.045-201

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COELHO, J. G.

Voltamos, pois, sempre ao mesmo ponto: há só um Tempo real e os outros são fictícios. Que é em efeito um Tempo real senão um Tempo vivido ou que poderia o ser? Que é um Tempo irreal, auxiliar, fictício, senão aquele que não poderia ser vivido efetivamente por nada nem por ninguém? (Bergson, 1972, p.130)

Introdução Por definição, o passado é o que não é mais, o futuro, o que ainda não é, e o presente é o que é. Mas o instante presente, quando percebido, já passou. Como compreender a relação entre passado, presente e futuro? O que é o tempo? Trataremos dessas questões a partir do pensamento do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). O tempo constitui tema fundamental do pensamento desse autor. Sua filosofia é uma filosofia do tempo. Bergson critica o pensamento filosófico e científico por desconsiderar o tempo real, cuja natureza se propõe a explicitar ao longo de suas obras. O tempo dos filósofos e cientistas seria um tempo esquemático e espacial, incompatível com o tempo que é o próprio tecido do real, ou seja, o tempo que Bergson define como sucessão, continuidade, mudança, memória e criação. Para tratar desses aspectos do pensamento de Bergson, dividiremos nossa exposição em duas partes. Na primeira, apresentaremos a crítica bergsoniana à concepção dominante do tempo, daquilo que, para ele, o tempo não é. A seguir, trataremos da concepção bergsoniana do tempo real. Tempo fictício Parte I Consideremos, inicialmente, o tempo fictício, “aquele que não poderia ser vivido efetivamente por nada, nem por ninguém”. Referindo-se no início da introdução de O Pensamento e o movente ao seu percurso filosófico, Bergson diz ter procurado, desde o começo de suas investigações, algo que constatou estar ausente na filosofia: a precisão. Contra os sistemas filosóficos, cujas concepções seriam abstratas e vastas, Bergson procurava uma explicação “que aderisse ao seu objeto”, que não deixasse “nenhum vazio, nenhum interstício onde uma outra explicação se pudesse alojar”, enfim, uma explicação que “conviesse somente àquele objeto”, que se prestasse “apenas àquela explicação”. Relata, ainda, que se ligou em sua juventude à filosofia de Spencer, pois ela lhe pareceu ser uma exceção, já que “visava a modelar-se sobre as coisas, sobre o detalhe dos fatos”. Mas havia no pensamento de Spencer um ponto fraco, o conhecimento insuficiente de mecânica, cujos conceitos fundamentais Bergson pretendia estudar em seu doutorado com o objetivo de completar e consolidar a obra de Spencer. Como afirmava Bergson em uma correspondência de 1903, foi esse interesse pela mecânica que o levou a se “ocupar da idéia de tempo”, surpreendendose ao constatar que tanto a física quanto a matemática não se ocupavam do “tempo real”, da “duração real” (1972, p.604), que o tempo de que elas tratavam era um tempo que “não servia para nada (...) não fazia nada”2 (Bergson, 1993a, p.102).

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2 Conforme um ensaio de 1930, “Le possible et le réel”


SER DO TEMPO EM BERGSON

O que significa a tese bergsoniana segundo a qual a física e a matemática tratavam de um tempo que não fazia nada, que não servia para nada? Se a física e a matemática não se ocupavam do tempo real, de que tempo se ocupavam? Primeiro, a idéia de que o tempo dos físicos não faz nada, não serve para nada, está implicada na crença de que, se houvesse uma inteligência sobrehumana, ela seria capaz de calcular o futuro e o passado a partir dos elementos do presente. Em sua obra A evolução criadora, Bergson cita três grandes representantes dessa hipótese: Laplace, Du Bois e Huxley. Laplace já a formulara com precisão: ‘Uma inteligência que, em dado instante, conhecesse todas as forças de que é animada a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem, se fosse bastante grande para submeter esses dados à análise, abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo bem como os do átomo mais leve: nada seria incerto para essa inteligência, e tanto o futuro como o passado estariam diante de seus olhos.’ E Du Bois-Reymond: ‘Pode-se imaginar o conhecimento da natureza chegado a um ponto em que o processo universal do mundo fosse representado por uma fórmula matemática única, por um único imenso sistema de equações diferenciais simultâneas, donde se deduzisse, para cada momento, a posição, a direção e a velocidade de cada átomo do mundo.’ Huxley, por sua vez, exprimiu sob forma ainda mais concreta a mesma idéia: ‘Se a proposição fundamental da evolução for verdadeira, a saber, que o mundo inteiro, animado e inanimado, é o resultado da interação mútua, segundo leis definidas, das forças possuídas pelas moléculas de que a nebulosidade primitiva do universo era composta, então também é certo que o mundo atual repouse potencialmente no vapor cósmico, e que uma inteligência suficiente poderia, conhecendo as propriedades das moléculas desse vapor, predizer, por exemplo, o estado da fauna da Inglaterra em 1868, com tanta certeza quanto se diz do que acontecerá ao vapor da respiração num dia frio de inverno’. (Bergson, 1991, p.38)

Esses são exemplares de uma concepção abstrata do tempo, de acordo com a qual os fenômenos que se sucedem no mundo físico seguem uma ordem imutável e intemporal, em que a distinção entre passado, presente e futuro parece ilusória, considerando-se que passado e futuro poderiam, pelo menos em princípio, ser apreendidos no presente, estar diante dos olhos de um “superfísico”. Trata-se de um tempo no qual a mesma causa sempre produz o mesmo efeito e é isso que torna possível o estabelecimento de leis que permitem a previsão, o cálculo antecipado dos fenômenos futuros que preexistiriam de certa forma à sua realização. Além do mais, o tempo dos físicos e matemáticos é reversível, ou seja, as equações que descrevem os acontecimentos passados e futuros permaneceriam as mesmas ainda que os invertêssemos.

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As leis da dinâmica newtoniana não impõem nenhuma direção privilegiada ao tempo: as equações que levam em consideração, por exemplo, os movimentos dos planetas em torno do Sol continuariam absolutamente imutáveis se o sentido do movimento dos planetas se invertesse. (Piettre, 1997, p.60)

Esse tempo está dissociado do conteúdo dos sistemas considerados, que são como o abrir e o fechar de um leque: “O leque que se desdobra poderá abrir-se cada vez mais depressa e mesmo instantaneamente: ele mostrará sempre o mesmo desenho já inscrito na seda” (Bergson, 1993a, p.11). Assemelha-se ao desenrolar de um filme cinematográfico, já que a velocidade com que este é passado não modifica as imagens: “se ele se desenvolvesse a uma velocidade infinita, se o desenrolar (desta vez fora do aparelho) se tornasse instantâneo, seriam ainda as mesmas imagens” (Bergson, 1993a, p.9). Para Bergson, o tempo dos físicos e matemáticos é um tempo espacializado, compreendido como uma linha imóvel, com o qual se pretende medir a duração das coisas. Utiliza-se essa linha imóvel para representar a sucessão múltipla de eventos. Tal representação do tempo envolve a idéia de multiplicidade e sua íntima relação com o espaço. Vejamos como se dá essa articulação entre multiplicidade e espaço. A idéia de multiplicidade remete imediatamente à idéia de número. Trata-se de uma multiplicidade numérica. A idéia de número articula-se profundamente aos objetos materiais. Nós nos referimos a esses objetos como passíveis de ver e tocar e, para contá-los, precisamos representá-los ao mesmo tempo, reter a imagem de todos simultaneamente, e isso só se torna possível no espaço. Bergson admite que se possa, por meio de algarismos ou palavras, imaginar ou pensar o número sem remeter à extensão, o que não é possível em uma representação intelectual, em que a imagem de extensão entra necessariamente. O número é o componente de uma multiplicidade que se pode contar isoladamente, uma coleção dessas unidades. Mas essas mesmas unidades que entram na composição da multiplicidade distinta pressupõem uma visão no espaço. Esta unidade corresponde a um ato simples do espírito que consiste em unir, e tal união só é possível se alguma multiplicidade lhe serve de matéria. As unidades são consideradas enquanto tais apenas provisoriamente, para compor-se com outras. Mas, ao considerá-las em si mesmas, elas poderiam ser divididas, possuindo, portanto, extensão: é necessário distinguir entre a unidade em que se pensa e a unidade que coisificamos após nela termos pensado, assim como entre o número em vias de formação e o número uma vez formado. A unidade é irredutível enquanto nela se pensa, e o número é descontínuo enquanto se constrói; mas, quando se considera o número em estado de acabamento, objetiva-se: e é precisamente por isso que aparece, então, como indefinidamente divisível. (Bergson, 1988, p.62)

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SER DO TEMPO EM BERGSON

Em decorrência da associação entre a idéia de número e os objetos materiais que se apresentam no espaço, nós podemos contá-los diretamente, pensando-os separadamente, de início, e simultaneamente, em seguida. Mas, quando se trata da sucessão múltipla dos eventos do mundo, só podemos contá-los por um processo de figuração simbólica, na qual intervém, necessariamente, o espaço. Tal figuração, que aparece inicialmente como uma representação da sucessão temporal, é, em última instância, espacial, ou seja, trata-se de uma temporalidade profundamente impregnada de espaço: ao falarmos do tempo, pensamos quase sempre em um meio homogêneo no qual os fatos se alinham, se justapõem, como no espaço, formando uma multiplicidade distinta.

3 Em uma conferência proferida em 1911, “La perception du changement”.

Parte II Essa espacialização do tempo pode ser constatada na representação da vida interior. Procurando saber o que é efetivamente a duração, como ela “apareceria a uma consciência que desejaria apenas vê-la sem medi-la, que a agarrasse sem imobilizá-la, que se tomaria a si mesma por objeto”, Bergson (1993a, p.4) volta-se para o “domínio da vida interior” - metafísica e psicologia - que antes não lhe interessava. Assim, abandona seu projeto inicial de doutoramento, ou seja, o estudo dos conceitos fundamentais de mecânica, e se volta ao estudo da duração interior à qual ele se propõe a aplicar seu ideal de conhecimento preciso e imediato. Ao voltar-se para a investigação do psicológico, Bergson diz3 ter-se deparado com uma certa concepção da personalidade em sintonia com a temporalidade abstrata dos físicos e matemáticos. É a mesma sucessão temporal impregnada da homogeneidade espacial que envolve o estabelecimento de intervalos e a fixação de contornos dos objetos materiais, representada quando contamos os estados de consciência que se sucedem temporalmente e estabelecemos intervalos entre eles, fixando seus contornos. Ou seja, a partir da consideração do tempo como um meio homogêneo (característica de nossa representação espacial), acabamos por tratar os estados de consciência como coisas materiais que ocupam lugar no espaço, isto é, como se eles fossem exteriores uns aos outros. Assim considerado, o tempo psicológico é também representado como “um espaço ideal, onde supomos alinhados todos os acontecimentos passados, presentes e futuros ...” (Bergson, 1993a, p.9). Desse modo, ao introduzir a idéia de espaço em nossas representações da sucessão psicológica, justapondo nossos estados de consciência de maneira a percebê-los simultaneamente um ao lado do outro, concebemos a sucessão, apreendemos nossas modificações internas, sob a forma de uma linha espacial contínua ou de uma cadeia cujas partes se tocam sem se penetrar. Essa representação espacial da temporalidade psíquica ou, conforme as palavras de Bergson em Introduction à la métaphysique (1993a, p.208) “uma multiplicidade de momentos ligados uns aos outros por uma unidade que os atravessa como um fio”, ou seja, uma representação que exprime simultaneamente a multiplicidade e a unidade, coloca-nos diante de concepções antagônicas cuja diferença está na ênfase em um ou outro desses aspectos. Do ponto de vista da multiplicidade, por menor que seja o

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espaço temporal considerado, ele será composto por um número ilimitado de momentos, o que significa que nenhum momento dura, cada um é “instantâneo”, o tempo pulveriza-se e o psíquico começaria e recomeçaria a cada instante. Em conseqüência dessa multiplicidade que anula a duração, a própria unidade que liga os momentos não pode durar mais que eles. Essa unidade passa a ser entendida, então, enquanto eternidade, ou seja, uma “essência intemporal do tempo”, uma eternidade “abstrata”, pois é “vazia”; daí não se compreender como seria possível “que coexistisse com ela uma multiplicidade indefinida de momentos” (Bergson, 1993a, p.209). São duas concepções que misturam “duas abstrações” as quais fixam o fluir do tempo, o escoamento do rio “numa imensa cascata sólida, ou numa infinidade de pontos cristalizados, sempre numa coisa que participa necessariamente da imobilidade de um ponto de vista” (Bergson, 1993a, p.209). Em decorrência da representação da personalidade como “uma série de estados psicológicos distintos, cada um invariável, que produziriam variações do eu por sua própria sucessão, e por outro lado um eu, não menos invariável, que lhe serviria de suporte” (Bergson, 1993a, p.165), teria surgido o problema de se compreender a união dessa multiplicidade e dessa unidade e a dificuldade de se explicar a constituição de um “eu que dura”, já que nenhum desses dois pretensos componentes da personalidade duram: “a mudança é alguma coisa que se acrescenta” ao primeiro, enquanto que o segundo é feito de “elementos que não mudam” (Bergson, 1993a, p.165). Bergson critica essa caracterização da vida interior, refutando a existência de um “substrato rígido imutável” e de “estados distintos que nele passam como atores em uma cena” (Bergson, 1993a, p.165). Daí resulta que toda tentativa de recomposição da sucessão psicológica pela inteligência é artificial e isso porque, por meio da abstração e da análise, o máximo que se consegue é constituir estados psíquicos mais ou menos independentes, como se eles fossem partes da consciência, como se ela tivesse partes. Seria como tentar reconstituir um poema a partir das letras que entram em sua composição e estão misturadas ao acaso. Tempo real Parte I Consideremos agora o tempo real, “o tempo vivido ou que poderia o ser”. O tempo de Bergson não é o tempo espacial, esse “vazio” no qual os acontecimentos se sucederiam. O filósofo propõe que desviemos nosso olhar e consideremos os próprios acontecimentos, sejam eles psíquicos ou físicos. É aí que descobriremos o tempo real, cujas propriedades fundamentais são a sucessão, a continuidade, a mudança, a memória e a criação. Embora esses aspectos da duração estejam intimamente relacionados, trataremos cada um deles em separado. Primeiro, temos como propriedade fundamental do tempo real a sucessão. Ou seja, as vivências interiores, assim como os acontecimentos no mundo físico, embora possam ser simultâneos ou contemporâneos uns dos outros, são também sucessivos, ou seja, ocorrem uns após os outros, constituem uma história. Pensamos no tempo em termos da sucessão passado, presente e

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futuro. Consideramos como acontecimentos passados aqueles que antecederam os acontecimentos presentes, não estando mais se realizando; como acontecimentos presentes os que substituem os passados, precedem os futuros e estão ainda se realizando; e como acontecimentos futuros aqueles que substituirão os presentes, que ainda se realizarão. Segundo, essa sucessão é uma continuidade, ou seja, o tempo é um processo contínuo. Isso significa que os acontecimentos psíquicos ou físicos acontecem uns após os outros, mas não de uma maneira que se assemelhe a uma série numérica espacial. Diferentemente do espaço no qual as partes das coisas podem ser divididas por existirem simultaneamente – pensemos na representação espacial do tempo, uma linha cujos pontos representativos dos instantes são dados simultaneamente - não se pode separar, efetivamente, no real, o presente do passado, isso porque quando focamos um instante presente ele já é passado. Daí não ser possível a medição, considerando-se que a medida implica sobreposição espacial. Que o deixemos em nós ou que o coloquemos fora de nós, o tempo que dura não é mensurável. A medida que não é puramente convencional implica em efeito divisão e superposição. Ora não se poderia superpor durações sucessivas para verificar se elas são iguais ou desiguais; por hipótese, uma não é mais quando a outra aparece; a idéia de igualdade constatável perde aqui toda significação. Por outro lado, se a duração real torna-se divisível como veremos, pela solidariedade que se estabelece entre ela e a linha que a simboliza, ela consiste ela própria em um progresso indivisível e global. (Bergson, 1972, p.102)

Para compreender essa característica da duração, ou seja, de uma sucessão sem separação, Bergson propõe que pensemos numa melodia ouvida, não na melodia representada espacialmente, retendo a continuação do que precede no que se segue, a transição ininterrupta. Escute a melodia de olhos fechados, pensando apenas nela, não justapondo mais sobre um papel ou sobre um teclado imaginário as notas que concebeis assim uma pela outra, que aceitam então tornar simultâneas e renunciam à sua continuidade de fluidez no tempo para se congelar no espaço: encontrareis individida, indivisível, a melodia ou a porção da melodia que tiveres recolocado na duração pura. Ora, nossa duração interior, encarada do primeiro ao último momento da vida consciente, é alguma coisa como essa melodia. Nossa atenção pode se desviar dela e conseqüentemente de sua indivisibilidade; mas, quando tentamos a separar, é como se passássemos bruscamente uma lâmina através de uma chama: dividimos apenas o espaço ocupado por ela. Quando assistimos a um movimento muito rápido, como o de uma estrela cadente, distinguimos muito nitidamente a linha de fogo, divisível à vontade, da indivisível mobilidade que ela subentende: é esta mobilidade que é pura duração. (Bergson, 1972, p.102)

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Terceiro, essa continuidade, como o próprio exemplo da melodia indica, é uma continuidade de mudança. Bergson, algumas vezes, define o tempo como uma “continuidade indivisa de mudança heterogênea”. A sucessão temporal é uma mudança ou fluxo contínuo incessante, uma transformação ininterrupta. Tanto na vida psíquica quanto no mundo físico, não há estabilidade. Os acontecimentos não são os mesmos, ainda que houvesse repetição, que eu pronunciasse as mesmas palavras de ontem, que resolvesse o mesmo problema da mesma forma, seria a segunda vez e não a primeira, e, a rigor, não posso dizer que sou o mesmo ou que o mundo é o mesmo, que haja dois momentos idênticos. A mudança é constitutiva do real, não havendo, assim, uma essência que permaneceria inalterada, uma identidade permanente por trás das mudanças. Segundo Bergson, trata-se de um escoamento ou de uma passagem, mas de um escoamento e de uma passagem que se bastam por si mesmos, o escoamento não implicando uma coisa que corre e a passagem não pressupondo estados pelos quais se passa: a coisa e o estado são apenas instantâneos artificialmente tomados sobre a transição; e esta transição, a única naturalmente experimentada é a própria duração. (Bergson, 1972, p.102)

O que acontece é que, freqüentemente, em função das necessidades de nossa existência e da ação, do caráter seletivo de nossa percepão, privilegiamos os aspectos superficiais dos fenômenos observados, as repetições. O que significa afirmar diante do espelho que sou a mesma pessoa de dez anos atrás, ou de ontem ou mesmo de há dez minutos? Segundo Bergson, estamos fechando os olhos à incessante variação constitutiva do real. Quarto, ao definir a duração como essencialmente uma continuação do que não é mais no que é, Bergson estabelece que a sucessão contínua de mudança heterogênea é memória. A memória é fundamental para a compreensão da relação entre continuidade e mudança. No âmbito pessoal Bergson destaca dois tipos de memória. Uma é a memória automática ou corporal, ou seja, os hábitos corporais adquiridos pela repetição, como no caso de um verso que aprendemos de cor ou de uma música habilmente tocada em um instrumento, cujos desempenhos independem da atenção consciente. A outra é a memória por imagens, a lembrança consciente de tudo o que vivemos anteriormente e que permanece arquivado em nosso inconsciente. Mas tanto a memória-hábito quanto a memória por imagens, exterior àquilo que ela retém, distinta do passado que ela conserva, são modos de ser da memória bergsoniana que pode ser definida em termos mais gerais como marca do passado no presente, “uma memória interior à própria mudança, memória que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros instantâneos aparecendo e desaparecendo em um presente que renasceria incessantemente” (Bergson, 1972, p.101). Em relação a este aspecto, Bergson afirma da duração psicológica o que pode ser estendido às outras durações, ou seja, à história evolutiva dos seres vivos e do próprio universo.

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A duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra distintamente a imagem incessantemente crescente do passado, seja, mais ainda, porque testemunha a carga sempre mais pesada que arrastamos atrás de nós à medida que envelhecemos. Sem essa sobrevivência do passado no presente, não haveria duração, mas somente instantaneidade. (Bergson, 1993b, p.200)

O presente psicológico e físico de uma pessoa, de um grupo social, dos seres vivos e do próprio universo traz a marca dos acontecimentos que lhes precederam, o que permite fazer inferências sobre esses acontecimentos, ainda que em alguns casos remonte a milhões de anos e a rigor não se repitam justamente em função dessas marcas. Só poderia haver repetição, e mesmo assim em termos relativos, se fosse possível abolir a memória, e com isso a história que precede os acontecimentos presentes. Quinto, o tempo real é criação. A irreversibilidade do tempo, dos acontecimentos, sua riqueza e maior complexidade relacionam-se à memória, mas sua imprevisibilidade deve-se tanto à memória quanto a um dinamismo interno e criador. A memória é importante pois explica, em parte, a relação entre tempo decorrido e aumento de complexidade propiciadora de imprevisibilidade e novidade. Supõe-se, assim, que no âmbito pessoal, por exemplo, quanto mais experiência acumulada maior a possibilidade de criação de novidade. Para Bergson essa relação nem sempre é confirmada pelo fato de a maioria das pessoas terem sua ação regulada pelos hábitos adquiridos e pelas exigências da vida prática. Para explicar o aspecto dinâmico e criador encontrado em toda parte Bergson acrescenta uma outra noção importante: a noção de élan vital. Embora esta nos remeta imediatamente ao processo evolutivo dos seres vivos tomados individual ou coletivamente, ela pode ser estendida ao universo como um todo. Para Bergson, criação não é escolha entre possíveis pré-estabelecidos, mas é invenção do novo, do que não preexistia a sua realização. Essa dinâmica criadora pode ser observada tanto na história do universo que envolve o percurso de uma estrutura aparentemente simples de matéria condensada ao número gigantesco de diferentes mundos com suas estruturas e modo de funcionamento altamente complexos, quanto na história evolutiva dos seres vivos com suas extraordinárias formas e competências cognitivas e comportamentais, e, ainda, na história humana, com as impressionantes realizações no campo das ciências, das técnicas e das artes. Daí porque contra toda forma de determinismo, incluindo aí os finalismos – determinismo dos fins -, Bergson entende que o futuro tanto de um sujeito psicológico, quanto das várias formas de vida e, ainda, do universo como um todo, não poderia ser previsto, não porque nos faltem os meios e conhecimentos intelectuais para tanto, porque não sejamos oniscientes, mas porque em virtude desse dinamismo interno criador ele é em si mesmo indeterminado. Embora a indeterminação possa também estar relacionada à relação entre os seres psíquicos, biológicos e inorgânicos, essa por si só não explicaria a imprevisibilidade, considerando-se que, se fosse o

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caso, as leis dessa relação poderiam, pelo menos em princípio, ser estabelecidas. Parte II Como Bergson estabelece as propriedades do tempo real a partir da vida interior, ou seja, segundo o modelo da duração psicológica, escolhemos um caso que envolve perturbações psicológicas, embora a causalidade seja orgânica, para ilustrar alguns aspectos da duração bergsoniana. Trata-se da extraordinária história de Jimmie G., narrada pelo neurologista e escritor Oliver Sacks em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, uma coletânea de casos de doenças neurológicas que afetam principalmente as funções mentais. Jimmie era portador da síndrome de Korsakov, causada pela destruição alcoólica dos neurônios dos corpos mamilares do cérebro. Tratava-se, portanto, de uma doença cuja causa é física. Sua patologia caracterizava-se por uma devastação grave e permanente da memória, o que incluía a amnésia retrógrada e a perda da memória recente. Korsakov escreveu em 1887: A perturbação ocorre quase exclusivamente na memória dos eventos recentes; as impressões recentes, ao que parece, extinguem-se mais rápido, enquanto as impressões de muito tempo atrás são relembradas adequadamente, de modo que a engenhosidade do paciente, sua perspicácia e habilidade permanecem em grande medida intactas. (Sachs, 2000, p. 45)

Segundo relato de seu irmão, Jimmie passou a beber demais por volta de 1965, quando saiu da marinha, e ainda mais em 1970, quando, por tornarse excitado e confuso, foi internado no Hospital de Bellevue. Em 1975, com 49 anos de idade, Jimmie não se recordava do que aconteceu após 1945, época em que tinha dezenove anos. Ou seja, a doença apagou trinta anos de sua história. Desse modo, Jimmie, aos 49 anos, lembrava-se com uma riqueza de detalhes do que vivenciou até os 19 anos, conservando, além dos conhecimentos, as habilidades até então adquiridas. Por exemplo, nos testes de inteligência, demonstrava grande capacidade, era perspicaz, observador e lógico, resolvendo sem dificuldades problemas complexos e quebra-cabeças. Sabia ler, escrever, jogar damas e xadrez. Era excelente em cálculos aritméticos e algébricos. Conhecia os elementos químicos da tabela periódica. Recordava-se de seu irmão. Tudo a partir dessa idade foi apagado da memória de Jimmie. Ao ver seu irmão, embora o reconhecesse, não entendia porque parecia tão velho. Não reconhecia uma fotografia da Terra tirada da Lua, surpreendendo-se ao ser informado de que o homem havia ido à Lua. Não se lembrava de ter visto um porta-aviões, embora tivesse servido na marinha até 1965 em perfeitas condições de saúde. Jimmie afirmava estar em 1945 e ao ser colocado diante de um espelho empalidecia, dizia não saber o que estava acontecendo, se era pesadelo ou loucura, entrando em pânico. Não entendia por que não tinha

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aparência de 19 anos e sim de uma pessoa idosa. Além dessa forma de amnésia retrógrada, Jimmie sofria uma perda severa da memória recente. Tudo o que lhe era dito ou mostrado tendia a ser esquecido em poucos segundos. Por exemplo, após chocar-se com sua aparência no espelho, bastava levá-lo até a janela para que ele se esquecesse do ocorrido e ficasse tranqüilo. Mas esquecia-se também do médico, demonstrando não conhecê-lo cada vez que o encontrava. Embora convivesse todos os dias com as mesmas pessoas no asilo onde estava internado, parecia não conhecê-las. Resolvia problemas e quebra-cabeças que não exigissem muito tempo, pois esquecia o que estava fazendo. Tinha facilidade nos cálculos, se pudessem ser feitos em velocidade relâmpago, pois se houvesse muitas etapas, tempo demais no processo, ele esquecia onde estava e qual era a questão. Por isso tinha dificuldades para jogar xadrez. O que essa trágica história de Jimmie nos revela sobre a temporalidade psicológica? A amnésia retrógrada de Jimmie mostra a vida como uma sucessão de eventos físicos e psíquicos, uns interferindo com os outros. A sucessão tal como apresentada destaca alguns momentos, ou seja, representa a vida de Jimmie como se fosse uma sucessão numérica na qual os momentos estão separados uns dos outros. Mas, de fato, a sucessão das vivências de Jimmie é contínua, aliás como toda sucessão de acontecimentos físicos e psquícos, e só em pensamento podemos privilegiar e fixar um ou outro dos momentos de sua história. A partir da doença e do conseqüente déficit da memória, as vivências presentes de Jimmie continuam mudando - um fluxo contínuo de mudança heterogênea - umas substituindo as outras, sem que se possa estabelecer o limite entre elas, embora não haja novos aprendizados, enriquecimento de sua vida psicológica. A história de Jimmie mostra ainda que o que somos a cada momento de nossas vidas relaciona-se a essa sucessão de eventos antecedentes. Podemos ir além do que o caso de Jimmie ilustra e relacionar a história presente e pessoal de qualquer ser humano não apenas aos eventos de sua história pessoal, mas também do que a antecede, ou seja, a história da cultura na qual ele se insere, da evolução biológica e do próprio universo da qual é herdeiro. É nesse sentido que Bergson define a duração psicológica como memória. O que vivenciamos desde o nascimento é preservado sob a forma de lembranças e de características adquiridas. Jimmie, fisicamente um homem de 49 anos de idade, após seu déficit de memória que apagou o vivenciado nos trinta anos anteriores, volta a ser psiquicamente o homem que era aos 19 anos. Lembra-se apenas do que aprendeu até essa idade, das pessoas que conheceu, preservando as habilidades que até então havia adquirido. Sendo a memória considerada por Bergson como uma marca do passado no presente, a lembrança é apenas uma dessas marcas, as habilidades aprendidas, as condições corporais, como o envelhecimento, por exemplo, seriam outras dessas marcas. É nesse sentido que se pode afirmar que uma árvore tem memória e que é possível reconstituir sua idade. A perda da memória recente de Jimmie é também muito sugestiva, mostrando que sem memória não há história, não há enriquecimento

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pessoal. Se Jimmie vivesse noventa anos, embora seu corpo denunciasse sua idade, memória corporal, psiquicamente ele continuaria sendo o mesmo homem de 19 anos. Todas as suas novas vivências seriam quase que imediatamente esquecidas. O que seríamos se a cada momento nos esquecêssemos de tudo que vivenciamos desde o nosso nascimento? Se não houvesse alguém ou alguma fonte de onde obtivéssemos informações a respeito do passado que antecede ao nosso nascimento? Podemos ainda refletir a partir do caso de Jimmie sobre um outro aspecto da duração bergsoniana: a criação. Como identificar uma dinâmica criadora, um élan vital, na vida de Jimmie? O déficit da memória revela um empobrecimento de sua vida psicológica. Aqui deve-se esclarecer que para Bergson, embora o processo criador possa revelar-se nos indíviduos, ele faz parte efetivamente do mundo considerado enquanto totalidade. O élan vital pode enfrentar obstáculos e operar mais vagarosamente aqui e ali, mas no final das contas acaba prevalecendo. Nossa vida pessoal pode revelar de modo privilegiado essa dinâmica criadora, como a revela num nível mais explícito as criações de artistas e cientistas. Mas ainda que por uma razão ou por outra a criação do novo não se produza aqui e ali, segundo Bergson, ela acabará por se impor, quando se considera o conjunto, seja dos seres humanos, dos seres vivos ou o próprio universo. Conclusão Como vimos, Bergson considera que o tempo não é um vazio homogêneo no qual os acontecimentos se sucederiam semelhante à idéia do espaço vazio no qual os objetos estariam colocados simultaneamente. Ao dizer que o tempo é o tecido do real, Bergson estabelece que o tempo compreendido como sucessão, continuidade, mudança, memória e criação não pode ser separado dos acontecimentos, sejam eles psicológicos ou físicos. Nesse sentido, o tempo é único, ou seja, essa é a natureza da infinidade de fluxos ou durações temporais contemporâneas. Esse tempo ao qual Bergson atribui uma realidade objetiva é percebido subjetivamente. Dentre os seres existentes, alguns têm o privilégio de perceber conscientemente o tempo, de apreender-se enquanto sujeitos temporais, de perceber imediatamente a duração interior e a partir daí atribuir temporalidade aos acontecimentos externos, contar o tempo das coisas. Consideremos alguns desses aspectos envolvidos em nossa percepção do tempo. Primeiro, a percepção consciente da temporalidade é possível graças à memória. Se a consciência fosse possível sem a memória, o que não é o caso para Bergson, viveríamos num eterno presente sem as idéias de antes e depois, sucessão, continuação e mudança. É a memória que nos permite estabelecer relação entre as vivências presentes e as anteriores, religar dois instantes um ao outro. Segundo, é a partir da temporalidade interior que atribuímos temporalidade aos eventos externos. Isso porque a cada momento de nossa vida interior podemos estabelecer correspondência com um momento de nosso corpo e de toda a matéria circundante simultânea e, graças à memória, estabelecer essa mesma correspondência em relação aos eventos

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anteriores. Por fim, há um componente da experiência psicológica do tempo que também deve ser considerado: freqüentemente, os acontecimentos externos e internos parecem ocorrer de maneira mais ou menos veloz. Para Bergson, a sensação de maior ou menor duração dos eventos físicos ou psíquicos relaciona-se à nossa inserção pragmática no mundo, a qual rege a relação entre os eventos internos e os externos. Os eventos físicos têm um ritmo que lhes é inerente. Por exemplo, a dissolução do açúcar na água leva um determinado tempo, do mesmo modo que os movimentos de rotação da Terra em torno dela mesma e de translação em torno do Sol. Mas a nossa percepção dessa duração como sendo mais ou menos rápida depende da relação que estabecemos com estes fenômenos em função de nossos interesses da vida prática. Se estamos atentos a todos os detalhes de um acontecimento, ele parece ser mais demorado. Se desviamos nossa atenção, pensando em outra coisa, ele nos parece ocorrer mais rapidamente. O ritmo dos processos psicológicos varia também em função de nossa relação com os fenômenos externos e da atenção que prestamos a eles. Um exemplo de desatenção mais ampla em relação ao desenrolar dos eventos do mundo é a situação dos sonhos. Durante um sonho de dois minutos, podemos experenciar vivências que necessitariam de muito mais tempo para serem efetivamente experenciadas. Os casos mais extremos de alteração da relação temporal entre o indivíduo e o mundo externo é o de sufocamento brusco, por exemplo, sufocamento ou afogamento. Nesses casos, muitos dos que voltaram à vida declararam “ter visto desfilar diante de si, num tempo muito curto, todos os acontecimentos esquecidos de sua história, com suas mais íntimas circunstâncias e na própria ordem em que se produziram” (Bergson, 1990, p.172). Referências BERGSON, H. Mélanges. Paris: PUF, 1972. BERGSON, H. Essai sur les données immédiates de la conscience. Paris: PUF, 1988. BERGSON, H. Matière et Mémoire. Paris: PUF, 1990. BERGSON, H. L’évolution créatrice. Paris: PUF, 1991. BERGSON, H. La pensée et le mouvant. Paris: PUF, 1993a. BERGSON, H. L’énergie spirituelle. Paris: PUF, 1993b. PIETTRE, B. Filosofia e ciência do tempo. Bauru: Edusc, 1997. SACHS, O. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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ELISETE ALVARENGA, Marcas, 2002

COELHO, J. G. Ser del tiempo en Bergson, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.233-46, mar/ago 2004. El presente artículo trata de la concepción bergsoniana de duración. Pretendemos mostrar que, según Bergson, el tiempo de los filósofos y científicos es un tiempo ficticio, un esquema espacial que oculta la naturaleza del tiempo real, el cual no puede ser separado de los acontecimientos físicos y psicológicos. Para Bergson, el tiempo real es sucesión, continuidad, cambio, memoria y creación. PALABRAS CLAVE: Bergson; duración; tiempo; espacio.

Recebido para publicação em 10/05/04. Aprovado para publicação em 29/07/04.

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Unidade e multiplicidade do tempo: uma abordagem transdisciplinar

Alfredo Pereira Júnior 1 Ivan Amaral Guerrini 2

PEREIRA JR., A.; GUERRINI, I. A. The unicity and multiplicity of time: a transdisciplinary approach, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.247-56, mar/ago 2004.

This article seeks to discuss time within the context of health sciences, where physical, biological, psychological and sociological factors interact. Whereas in our perception of the world and of ourselves time shows itself from many angles, in classical physics, according to the Newtonian model, physical time was conceived as absolute, unilinear, homogeneous and observer-independent. With the theory of relativity and the study of complex systems, a new concept of time appeared in physics, namely, fractal time, which is more compatible with psychological and sociological approaches. From this point of view, the life experience of a person and the respective processes of health construction involve a multiplicity of coexisting temporalities, organized in a coherent pattern of self-similarity. A rupture in this coherent pattern leads to the appearance of illness. The article suggests that a more suitable approach to sickness ought to take into account, as a reference for healthcare professionals, the concept of fractal time, causing the patient to become better attuned to the complexity of nature and, consequently, to himself. KEY-WORDS: Time; temporality; health-disease process; relativity; fractal; transdisciplinarity. Procurou-se, neste trabalho, pensar o tempo no contexto das ciências da saúde, no qual se entrelaçam aspectos físicos, biológicos, psicológicos e sociológicos. Enquanto em nossa percepção do mundo e de nós mesmos o tempo se apresenta sob muitas facetas, na física clássica, conforme o modelo newtoniano, assumia-se a existência de um tempo absoluto, unilinear, homogêneo e independente do observador. Com a teoria da relatividade e o estudo dos sistemas complexos, um novo conceito de tempo apresenta-se na física: o tempo fractal, o qual possibilita maior compatibilidade com as abordagens psicológicas e sociológicas. Nesta perspectiva, a experiência de vida de uma pessoa, e seus respectivos processos de construção da saúde, envolveria uma multiplicidade de tempos, que coexistem e se organizam segundo um padrão coerente de auto-similaridade. Uma quebra desse padrão estaria correlacionada com a ocorrência da doença. Sugere-se que uma abordagem mais adequada do adoecimento deveria levar em conta, como referência para o profissional de saúde, o conceito de tempo fractal, possibilitando maior sintonia do paciente com a complexidade da natureza e, por conseguinte, consigo mesmo. PALAVRAS-CHAVE: Tempo; processo saúde-doença; relatividade; fractal; transdisciplinaridade.

1

Professor Adjunto, Departamento de Educação, Instituto de Biociências, Unesp, Botucatu, SP. <apj@ibb.unesp.br>

2

Professor Titular, Departamento de Física e Biofísica, Instituto de Biociências, Unesp, Botucatu, SP. <guerrini@ibb.unesp.br>

1 Departamento de Educação Instituto de Biociências, Unesp Distrito de Rubião Jr., s/nº Botucatu, SP 18.618-000

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PEREIRA JR., A.; GUERRINI, I. A.

Introdução Estudos na área de saúde lidam com sistemas complexos, envolvendo desde a escala do organismo individual até grandes populações. Por razões decorrentes do próprio método científico moderno, muitas vezes a abordagem dos fenômenos se faz em termos de uma metodologia reducionista, quando se buscam causas simples, lineares e estanques para processos suscetíveis de múltiplas determinações - de ordem física, biológica, psicológica e social. Uma forma de se evitar a perda do entendimento da dinâmica dos sistemas complexos é o enfoque de temas integradores, como é o caso do tempo. Não que se considere que o tempo por si só tenha influência sobre os processos que determinam a saúde ou a doença, mas sim que constitua uma dimensão fundamental destes processos, cujo enfoque pode contribuir para iluminar aspectos deixados em segundo plano pela abordagem reducionista. Por exemplo, a dimensão temporal leva-nos a considerar a existência de ciclos epidêmicos, ao invés de simples processos de emergência e extinção de agentes nocivos. Da mesma forma, pode-se compreender a “terceira idade” não só em termos dos aspectos biológicos degenerativos, mas também como uma época na existência temporal do indivíduo na qual se abre a possibilidade de novas experiências saudáveis. Por outro lado, sendo o tempo uma dimensão fundamental dos processos humanos, não é de se surpreender que nas mais diversas patologias se observem distúrbios de ordem temporal. Por exemplo, o stress acentuado e persistente pode levar a perturbações no ritmo circadiano, e diversas psicopatologias são acompanhadas de sinais de desorientação temporal. Tendo em vista o envolvimento do tempo nos processos que se desenrolam na área de Saúde, a questão que se levanta é: será que se pode referir todos eles a um único tempo absoluto e linear, ou seria necessário trabalhar com uma multiplicidade de tempos que se relacionam de forma complexa? Neste trabalho, pretende-se mostrar que a segunda alternativa permite um melhor entendimento do processo saúde-doença. Apresenta-se, pois, a hipótese de que uma vida saudável possibilita a organização dos diversos aspectos temporais em termos de um padrão coerente de autosimilaridade, ou seja, em um tempo fractal, ao passo que processos de doença se caracterizariam por uma desorganização temporal. Ressalvamos que a aplicação de modelos complexos de tempos ou temporalidades múltiplos no campo da saúde mental já tem sido objeto de discussão no âmbito da psicoanálise (por exemplo, ver Katz, 1996). O modelo “normal” e seus limites A dimensão do tempo tem sido considerada um dos principais aspectos da subjetividade, sendo chamada por Kant (1983) de “o sentido interno”. Este sentido ordenaria todas as experiências do sujeito em termos de uma sucessão de eventos. As propriedades dessa sucessão de eventos têm sido estudadas tanto em nível fenomenológico introspectivo (Husserl, 1964; comentado por Pereira Jr., 1990) quanto em nível da filosofia das ciências da natureza.

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A HISTÓRIA DA IDÉIA DO TEMPO: REFLEXÓES...

Newton

Assume-se, em pesquisas sobre o “tempo objetivo” na filosofia da física (vide Newton-Smith, 1980; Pereira Jr., 1997), a existência de um modelo “normal”, com as seguintes características: a) o tempo tem uma “direção”, ou seja, uma ordem temporal caracteriza-se por estabelecer uma ordem de sucessão entre os eventos, sejam estes eventos subjetivos ou objetivos; b) o tempo possui “transitividade”, ou seja, se um evento A tem uma relação temporal com um evento B e esse evento B tem uma relação com um evento C, então A também tem uma relação temporal com C; c) o tempo é “assimétrico”, ou seja, existe uma relação de anterioridade entre os eventos tal que, se A é anterior a B, então B não é anterior a A; d) a métrica do tempo é “homogênea” ou “linear”, ou seja, o tempo se reparte em unidades idênticas, que se repetem de modo uniforme. Seria o modelo “normal” acima plenamente adequado para o estudo da experiência temporal humana? Da perspectiva da psicologia, o modelo “normal” apresenta, de início, duas grandes limitações: a suposição de que o tempo seria unidimensional e a clássica separação newtoniana entre tempo relativo e absoluto. Na temporalidade da experiência humana, encontram-se três dimensões dignas de consideração: a) a experiência individual subjetiva, incluindo a dinâmica do inconsciente e o fluxo consciente, que compõe uma totalidade que se expressa parcialmente nos relatos lingüísticos e produção significativa do sujeito; b) a construção social do tempo, que se expressa em obras culturais e instrumentos de registro, consideradas como construções coletivas que constrangem as experiências individuais (Elias, 1998); e c) a temporalidade que perpassa o ambiente físico do sujeito na forma de transformações irreversíveis (representadas na física pelo aumento da entropia) e da sucessão causal entre os eventos percebidos. Seriam estas três dimensões redutíveis a uma única? Com certeza não, razão pela qual o próprio Isaac Newton propôs a distinção entre o tempo absoluto, que serviria como padrão de referência para a física, e os tempos relativos, que poderiam abranger as formas subjetivas e sociais do tempo. Entretanto, a distinção entre um tempo físico único e uma multiplicidade de tempos subjetivos caiu por terra no contexto da própria física, quando Einstein mostrou que a métrica temporal está vinculada ao estado de movimento dos corpos relativamente à velocidade da luz no vácuo. Deste modo, o próprio tempo físico seria relativo, e, portanto, múltiplo. Para um melhor entendimento do tempo, torna-se necessário repensar a relação entre a temporalidade subjetiva humana, sua reelaboração social e o tempo físico, este último concebido como relativo e múltiplo. Como estas três dimensões se harmonizam, e/ou como conflitam entre si? Quais seriam as conseqüências, para a saúde mental, da harmonia e/ou do conflito entre tais dimensões da experiência temporal? A multiplicidade temporal na existência humana Quando se considera a experiência temporal humana em sua complexidade, algumas importantes questões emergem:

Einstein

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PEREIRA JR., A.; GUERRINI, I. A.

a) como se relacionam as três dimensões acima citadas? Existe uma estrutura universal do tempo perpassando todas elas? b) como seria a percepção do tempo nas psicopatologias, uma vez que elas afetam o tempo da experiência subjetiva, mas não necessariamente o tempo físico e social? c) seriam as alterações do tempo subjetivo, observáveis na psicopatologia, identificáveis relativamente ao modelo “normal” acima delineado? Começando a discussão pela última questão, entende-se que violações flagrantes do modelo “normal” seriam, por exemplo, se eventos ocorridos no passado “acontecessem de novo”, ou ainda se eventos imaginados do futuro fossem vividos como ocorrendo no presente. Neste caso, estaria havendo uma alteração relativamente à característica de assimetria temporal. Se uma pessoa não tem noção de datas, poderia haver uma perda da noção de direção temporal. Se os eventos do presente aparecem como isolados do passado e do futuro, sem uma dimensão de continuidade, haveria uma alteração da característica de transitividade. Se alguns instantes ou intervalos temporais psicologicamente parecem ter maior duração que outros de mesmo tamanho, haveria a perda da característica de homogeneidade ou linearidade temporal. Tais raciocínios seriam o resultado da aplicação direta do modelo “normal” a situações aparentemente “anormais”. Por outro lado, se o modelo dito “normal” não constitui um modelo universal da experiência humana, outras possibilidades de interpretação emergem. Considere-se a possibilidade de um outro tipo de modelagem do tempo, no qual coexistam várias dimensões temporais na experiência de vida de uma pessoa, cada uma delas possuindo uma métrica (ou “ritmo”) própria, por exemplo: - tempos biológicos, como o ritmo circadiano (períodos intercalados de vigília e sono), escalonamento diário da alimentação, atividade física etc; - tempos ligados ao trabalho, como uma jornada diária de oito horas, repouso nos fins de semana, férias anuais etc; - tempos ligados à mudança do clima, como as estações do ano; - tempos de maturação psicológica, como períodos de adolescência, casamento, cuidados com filhos, moradia etc. Considerando-se todas essas dimensões, que coexistem e se interrelacionam na vida de uma pessoa, pode-se avaliar que as alterações em uma delas não necessariamente implicam alterações equivalentes nas demais. Ao contrário, podem ocorrer processos de compensação, tal que, por exemplo, uma alteração climática seja compensada por mudanças nas atividades sociais, como acontece no “horário de verão” instituído em alguns países. Neste caso, o tempo social é “adiantado” e depois “atrasado”, violando o modelo “normal”, sem que com isso haja qualquer aberração. Na área de saúde mental, acredita-se tradicionalmente (Minkowski, 1933), como uma resposta à segunda questão colocada acima, que a esquizofrenia envolva uma alteração na percepção do tempo, porém observamos que isso pode ser um efeito do contexto. Por exemplo, uma pessoa internada em um hospital onde não há relógios para serem consultados ou atividades a serem cumpridas dentro de um horário, está em

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um contexto que favorece uma alteração na sua percepção do tempo. De certo modo, a desorientação temporal que aí se instala encontra-se adaptada ao contexto em que se desenvolve a experiência temporal. Em um contexto diferente, esses pacientes poderiam re-sintonizar sua percepção do tempo com os padrões vigentes na sociedade em que vivem. Portanto, ao se considerar a complexidade da existência humana, o foco passa a ser a forma como as diversas dimensões temporais se relacionam, ou seja, se a diversidade de tempos é integrada de modo harmonioso ou conflituoso. No exemplo citado, como a alteração no tempo social se faz de modo harmonioso com as mudanças do clima (isto é, do “tempo” no sentido meteorológico), pode-se conseguir uma integração mais saudável dos diversos aspectos temporais envolvidos na vida das pessoas. Por outro lado, se sistematicamente ocorrem conflitos, por exemplo, entre uma jornada de trabalho noturna e o ritmo circadiano, instaura-se uma configuração de fatores que pode aumentar a propensão a certas doenças. Uma relação harmoniosa entre os diversos tempos que ocorrem na vida de uma pessoa pode ser comparada a uma orquestra bem ensaiada, na qual as diversas vozes musicais se integram coerentemente no tempo. Por exemplo, em uma execução em compasso quaternário, alguns instrumentos (A) podem executar dezesseis notas por compasso, enquanto outros (B) executam quatro notas, e outros (C) executam apenas uma nota. Essa estrutura musical pode apresentar a propriedade de auto-similaridade, se o padrão formado pelos instrumentos A e B for similar ao padrão formado pelos instrumentos B e C, ou seja, para cada nota executada por B há a execução de quatro notas por A, e para cada nota executada por C também há a execução de quatro notas por B. Mesmo que os instrumentos C, por exemplo, alterem seu padrão temporal, a estrutura auto-similar pode se manter, caso os demais instrumentos também alterem seus padrões de modo coerente. A auto-similaridade funcional, que aqui nos interessa, e constitui uma possível resposta à primeira questão colocada acima, diz respeito à similaridade entre os padrões de atividade que se formam nas diversas escalas espaciais e/ou temporais que compõem a dinâmica total de um sistema. Deste modo, a universalidade da experiência temporal se manifestaria como presença de auto-similaridade, e não como um tempo absoluto. No exemplo acima, se a orquestra passar para um compasso ternário, quando para cada nota executada pelos instrumentos B há três notas executadas por A, e para cada nota executada por C há três notas executadas por B, a auto-similaridade funcional se mantém. A característica de auto-similaridade pode ser visualizada em uma figura de M. Escher (Fig. 1), que foi elaborada independentemente de tais desenvolvimentos da ciência, mas antecipa genialmente o conceito, possivelmente devido à apurada intuição do artista. A Figura 1 pode ser interpretada em termos da estrutura da experiência temporal aqui referida, associando-se aos símbolos os diversos aspectos dessa experiência, como por exemplo:

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A1 + B1: período de 24 horas A1: período de vigília B1: período de sono C1: período de trabalho E1: período de lazer D1: período de sono sem sonhos F1: período de sono com sonhos, e daí por diante, subdividindo-se os períodos maiores em períodos menores, os quais se inserem de modo coerente dentro dos primeiros.

Figura 1 – Ilustração de Estrutura Auto-Similar por meio de desenho de M. Escher: diversas escalas espaço-temporais são representadas, apresentando um padrão de auto-similaridade.O triângulo com um círculo inserido, ao topo, pode simbolizar a integração coerente de toda a estrutura subjacente.

Como ilustração desta proposta, citamos um estudo interessante sobre a sincronização dos ciclos biológicos humanos (Cherry, 2002), particularmente o equilíbrio dinâmico da produção dos neuromoduladores serotonina e melatonina, com a radiação global da Terra e de sua camada mais baixa da ionosfera, conhecida como Ressonância de Schumann. A falta de ressonância desses sinais (Terra e seres humanos) provocaria distúrbios nas pessoas. Como a freqüência do sinal de Schumann tem aumentado significativamente nas últimas décadas, haveria uma tendência de alteração na percepção do tempo para o ser humano, com conseqüentes desequilíbrios quando a sincronização não é alcançada.

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A unidade na multiplicidade: tempo fractal A partir da Teoria da Relatividade de Einstein, pode-se conceber uma multiplicidade de tempos físicos, considerados como relativos às características (também físicas) dos observadores. Para aquela teoria física, o fator central é a velocidade em que o observador se move. Assim, para observadores em velocidade próxima à da luz no vácuo (300.000 km/s), há uma dilatação do tempo, fazendo com que os processos percebidos pelos referenciais estacionários ocorram de forma mais lenta; para velocidades menores, o fator de dilatação do tempo se torna desprezível e a métrica do tempo se aproxima do modelo “normal”. Generalizando a concepção de um tempo relativo e múltiplo para a área de saúde, propõe-se introduzir a idéia de que não só o estado de movimento do observador (sujeito) é importante, como na Teoria da Relatividade na física, mas também outros fatores psicobiológicos e ambientais poderiam condicionar a percepção do tempo. A Teoria dos Fractais também vem introduzir novas possibilidades de compreensão do tempo. Assim, o conceito de “tempo fractal” emerge a partir do conhecimento dos fractais artificiais e naturais, explicados em abrangente literatura desde as primeiras idéias publicadas por Mandelbrot (1983). A idéia central sobre o tempo fractal é semelhante ao espaço fractal, cujo exemplo típico é o movimento browniano (random walk). Alguns autores, em estudos recentes sobre tempo e espaço na ciência e na vida (Briggs & Peat, 2000), aventam a possibilidade de se ter um tempo natural também com essa tortuosidade e complexidade, já que isso é possível de se encontrar no espaço. Segundo esses autores, as intuições, por exemplo, ocorreriam nesses intervalos de tempo fractal, ou seja, na interface de diferentes níveis dimensionais, como sugere a abordagem transdisciplinar detalhada por Nicolescu (1999). Assim, argumentam Briggs & Peat (2000), se na Teoria dos Fractais o modelo linear de espaço foi trocado pelo irregular, este mais abrangente e trazendo padrões escondidos como no caso do Movimento Browniano (random walk), por que o tempo não poderia ser visto assim também? Neste ponto, o conceito de espaço-tempo de Einstein poderia auxiliar, já que a entidade única fundamental que permanece seria o espaço-tempo e não mais espaço e tempo como “entidades” separadas. Daí resultam as chamadas “dobras do tempo”, próprias de um tempo fractal, em que as linearidades temporais deixam de existir, numa visão mais abrangente e transdisciplinar da natureza, ficando as regiões de linearidade como uma aproximação válida somente em casos limites. Um outro aspecto a ser abordado em relação à multiplicidade de tempos é a questão da definição e representação da “ordem” na ciência e na sociedade, principalmente no que se refere aos conceitos de espaço e tempo (Bohm & Peat, 2000). Assim como uma linha reta pode ser vista como a integração de infinitos segmentos de reta colocados em sequência linear, o mesmo ocorreria com relação ao tempo. O tempo linear, na verdade, refletiria uma idéia classicamente arquetípica de soma de infinitos e pequenos intervalos de tempo, todos iguais, lineares e possíveis de serem medidos em relógios comuns. Porém, como no caso dos segmentos de reta, a união dos intervalos poderia se dar, por exemplo, com cada segmento fazendo um ângulo diferente de zero e de valor MAURITS ESCHER, Metamorfose VI

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constante com o segmento anterior (segundo grau de ordem ou ordenação), o que permitiria a construção de um conjunto de segmentos formando diferentes figuras, conforme o ângulo utilizado. Além disso, se sempre que se adicionar a um segmento houver uma variação igual desse ângulo no mesmo plano, para cada segmento incorporado (terceiro grau de ordem ou ordenação), a figura se altera completamente. Se sair do plano inicial, formando ângulos com o outro eixo ortogonal, outras figuras mais complexas se formam, com outros graus de ordem. Se a razão do tamanho de um segmento para seu anterior for constante, mas diferente da unidade, ainda outros graus de ordem aparecem em cada caso citado. Em qualquer formação natural, o desafio do cientista, conforme essa visão, seria encontrar a “ordem” do sistema, ou seja, aquele grau de ordem ou aquela ordenação embutida no sistema que traria maior e melhor informação sobre o mesmo. Mandelbrot (1983) descobriu isso, por exemplo, nas irregularidades da linha costeira da Noruega, identificando nelas a auto-similaridade típica dos fractais, com um elevado grau de ordem. Posteriormente, os cientistas descobriram essa “ordem escondida” com diferentes graus em árvores, folhas, nuvens, solos, formações rochosas e em inúmeras outras formações naturais, em que, por conseqüência, o macro se refletia no micro. É essa busca da ordem escondida nos padrões fractais que levou Prigogine (2000) a questionar o tempo linear e reversível da física clássica. Os problemas de Física Clássica, ministrados para alunos de ensino médio e universidades, ainda hoje adotam uma visão exclusivamente newtoniana. É a reversibilidade do tempo implícita nas leis de Newton que a definiram sempre como tendo um caráter eterno, motivo pelo qual se inseriu muito bem na religiosidade do século XVII e seguintes. A questão do grau de ordem do tempo, definindo o tempo fractal com suas dobras, é um passo além da proposta de Prigogine, muito embora tenha aí suas raízes profundas. À semelhança do que ocorre no espaço medido num movimento randômico, as dobras do tempo permitiriam uma concepção de tempo bem distinta da clássica, em que o “comprimento” final do tempo pode tender ao infinito, dependendo do grau de ordem envolvido. Portanto, entende-se que uma abordagem mais adequada da experiência do tempo deveria se reportar ao conceito de tempo fractal, que se caracteriza por duas características principais, aqui enfocadas: a) a existência da auto-similaridade; b) irregularidades que coexistem com a auto-similaridade. Ao invés de se oporem, a auto-similaridade emerge da própria irregularidade, ou melhor, de uma irregularidade complexa, na qual diversos padrões coexistentes interagem e se compensam, gerando um certo grau de ordem. Assim, os conceitos de ordem e desordem deixam de ser considerados como contraditórios e passam a ser considerados como complementares na descrição da complexidade dos fenômenos naturais. É a “ordem dentro da desordem” a que se referia Mandelbrot (1983). Para uma melhor compreensão da complexidade, é importante o conceito de transdisciplinaridade em ciência (Nicolescu, 1999), o que exige uma abertura para novas dimensões do conhecimento humano. Nesse sentido, uma das grandes dificuldades é uma forte tendência do cientista clássico em se segurar naquilo que lhe é familiar (Bohm & Peat, 2000), defendendo-se, por todas as

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formas, dos conceitos novos que o desafiam e parecem querer desestabilizá-lo. Para esses cientistas, a ciência é um conjunto muito grande de normas e leis finitas que, um dia totalmente esclarecido, chegará à noção absoluta da verdade. De forma diferente, a transdisciplinaridade parte de um conceito de ciência como sistema aberto à transcendência para diferentes dimensões. Desse ponto de vista, Einstein foi clássico ao atribuir aos fenômenos estranhos da Física Quântica as famosas “variáveis ocultas” que, uma vez vindas à luz, os explicariam sem precisar recorrer às mudanças inquietantes que se processavam nas leis físicas do mundo quântico. Bohm & Peat (2000) salientam que é exatamente aceitando o tempo não-linear que se abrem possibilidades para se compreender a criatividade do ser humano em sintonia com a natureza. Essa talvez também seja uma chave para a compreensão do conceito e da vivência temporal na área de saúde, podendo facilitar o tratamento de várias doenças, principalmente em questões de saúde mental. Se a não-linearidade temporal favorece a criatividade, os graus de liberdade implícitos nos comportamentos criativos não poderiam ser sufocados em pessoas que procuram a saúde mental. Portanto, os modelos terapêuticos e de reabilitação poderiam compatibilizar a indução de novos padrões cíclicos na experiência temporal dos pacientes (compondo uma estrutura auto-similar coerente e auto-sustentável), com a presença de graus de liberdade comportamental que possibilitem a realização da pessoa enquanto sujeito criativo. Estes graus de liberdade podem ser induzidos, por exemplo, por atividades de arte-terapia. Na mesma linha de raciocínio, Kyriasis (2003) salienta que o fenômeno do envelhecimento humano, com as doenças a ele relacionadas, se correlaciona com uma perda da complexidade do organismo humano. Esse autor salienta que a Teoria do Caos tem desafiado a visão clássica dos regimes farmacológicos, assegurando que para se atingir benefícios máximos com idosos, deve-se fornecer medicação com intervalos de tempo irregulares e em doses constantemente alteradas. Para ele, a natureza prefere a irregularidade à monotonia, o que nos leva a questionar a concepção linear do tempo implícita nos atuais paradigmas terapêuticos. De uma perspectiva mais ampla, tal irregularidade deve ser planejada de acordo com o padrão de auto-similaridade peculiar à experiência temporal de cada pessoa, combinando-se dessa maneira esforços para a recuperação da coerência temporal das funções fisiológicas, com um certo grau de “irregularidade coerente” que incite a manifestação de todos os possíveis recursos de defesa do organismo. Conclusão As idéias aqui discutidas permitem rever os conceitos clássicos do tempo, introduzindo novas concepções a partir das teorias da Relatividade e de Sistemas Dinâmicos Complexos. A sintonia entre as várias dimensões do tempo na vida humana é proposta em termos da formação de um padrão de auto-similaridade coerente, contendo irregularidades intrínsecas, o tempo fractal. Sugerimos que a concepção do tempo como fractal poderia auxiliar no enfrentamento das mais variadas enfermidades, particularmente no caso de doenças mentais. Assim, uma abertura dos profissionais de saúde para uma compreensão mais abrangente do tempo, na etiologia e tratamento das doenças, poderia conduzir a um melhor

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entendimento do processo saúde-doença e inspirar novas pesquisas em áreas que lidam com a complexidade da experiência humana. Referências BOHM, D; PEAT, F.D. Science, order, and creativity. 2.ed. London: Routledge, 2000. BRIGGS, J.; PEAT, F.D. Sabedoria do caos. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2000. CHERRY, N. Schumann resonances and their possible biophysical effects. Nat. Hasards, n.26, p.219, 2002. ELIAS, N. Sobre o tempo. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. HUSSERL, E. Leçons pour une Phénoménologie de la conscience intime du temps. Trad. Henri Dussort. Paris: Presses Universitaires de France, 1964. KANT, E. Crítica da razão pura. Trad. V. Rohden, U. Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores, v.25). KATZ, C.S. (Org.) Temporalidade e psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1996. KYRIASIS, M. Practical applications of chaos theory to the modulation of human ageing: nature prefer chaos to regularity. Biogerontology, v.4, n.2, p.75-90, 2003. MANDELBROT, B. B. The fractal geometry of nature. New York: W. H. Freeman and Company, 1983. MINKOWSKI, E. Le temps vécu. Paris: Artrey, 1933. NEWTON-SMITH, W. The structure of time. Boston: Routledge and Kegan Paul, 1980. NICOLESCU, B. Manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999. PEREIRA JR., A. A percepção do tempo em Husserl. Trans/Form/Ação, n.13, p.73-83, 1990. PEREIRA JR., A. Irreversibilidade física e ordem temporal na tradição boltzmanniana. São Paulo: Ed. Unesp/Fapesp, 1997. PRIGOGINE, I. As leis do caos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.

PEREIRA JR., A.; GUERRINI, I. A. Unidad y multiplicidad del tiempo: un abordaje transdisciplinar, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.247-56, mar/ago 2004. En este trabajo, se intentó pensar el tiempo en el contexto de las ciencias de la salud, en el cual se entrelazan aspectos físicos, biológicos, psicológicos y sociológicos. Mientras en nuestra percepción del mundo y de nosotros mismos el tiempo se presenta bajo muchas facetas, en la física clásica, conforme el modelo newtoniano, se asumía la existencia de un tiempo absoluto, unilineal, homogéneo e independiente del observador. Con la teoría de la relatividad y el estudio de los sistemas complejos, un nuevo concepto de tiempo se presenta en la física: el tiempo fractal, el cual posibilita una mayor compatibilidad con los abordajes psicológicos y sociológicos. Desde esta perspectiva, la experiencia de vida de una persona, y sus respectivos procesos de construcción de la salud, involucraría una multiplicidad de tiempos, que coexisten y se organizan según un patrón coherente de autosimilaridad. Una quiebra de ese patrón estaría correlacionada con la ocurrencia de la enfermedad. Se sugiere que un abordaje más adecuado de la enfermedad debería considerar, como referencia para el profesional de salud, el concepto de tiempo fractal, posibilitando mayor sintonía del paciente con la complejidad de la naturaleza y, por consiguiente, consigo mismo. PALABRAS CLAVE: Tiempo; proceso salud-enfermedad; relatividad; fractal; transdisciplinaridad.

Recebido para publicação em 10/04/04. Aprovado para publicação em 09/08/04.

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artigos

A educação popular na atenção básica à saúde no município: em busca da integralidade

Paulette Cavalcanti de Albuquerque 1 Eduardo Navarro Stotz 2

ALBUQUERQUE, P. C.; STOTZ, E. N. Popular education in primary care: in search of comprehensive health care, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.259-74, mar/ago 2004.

This paper presents a review of the literature on health education experiences in services as well as a documental analysis of this theme. Discussion is based on popular health education and its potential contribution to comprehensive primary health care. The way in which health education is promoted in health services and the difficulties encountered in fulfilling its role of contributing towards the construction of comprehensive primary health care is of central concern. Health actions are understood as educational actions. Thus, the health team and the patients learn and teach, in a dialogical construction of knowledge. Individual care is also discussed in this paper, insofar as the health professional’s posture in relation to popular knowledge concerning health care and his respect for the patient’s attempt to find the best therapeutic is at issue. As a result of the review of the literature, a systematic compilation of health educational programs and activities, which may be integrated into a program of popular health education for the municipalities, is proposed. KEY WORDS: Health education; primary health care; health system; health services; health education. Trata-se de um artigo de revisão bibliográfica e análise documental sobre as experiências de educação em saúde nos serviços, baseadas na educação popular em saúde e do seu potencial em desenvolver a integralidade das ações no âmbito da atenção básica. É discutida a forma como a educação em saúde vem sendo trabalhada pelos serviços e as dificuldades para que possa contribuir para a construção de uma atenção realmente integral à saúde. As ações de saúde são entendidas como ações educativas em que, tanto profissionais como usuários aprendem e ensinam, numa construção dialógica do conhecimento. Desta forma, a atenção ao individuo também faz parte das reflexões discutidas no texto, tanto no que se refere à postura dos profissionais quanto ao respeito ao saber popular e à busca da terapêutica mais eficaz pelos usuários. A partir da revisão, é proposta uma sistematização de programas de ação e atividades que podem compor uma proposta de educação popular em saúde para os municípios. PALAVRAS-CHAVE: Educação popular; atenção básica à saúde; integralidade; educação em saúde.

1

Médica sanitarista da Prefeitura do Recife, Gerente do Distrito Sanitário III, PE. <paulette@br.inter.net>

2

Pesquisador, Departamento de Endemias, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, RJ.<stotz@alternex.com.br>

1 Rua João Ramos, 285, apto.1601 Graças - Recife, PE 52.011-080

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Apresentação: objetivos e metodologia A busca de condições adequadas de vida e saúde tem sido um anseio e uma luta de povos por todo o mundo. Alternativas têm sido pensadas, reformas organizadas e implantadas, paradigmas e princípios revistos sem que o marco referencial da prática médica clínica de base flexneriana ou da própria saúde coletiva tenham conseguido dar conta do atendimento às necessidades de saúde de grande parte da população. A universalidade, a eqüidade e a integralidade das ações têm disputado espaço com as propostas racionalizadoras e de contenção de custos. Dos três princípios para a organização do modelo, a integralidade tem sido de difícil execução e garantia efetiva para a população, tendo em vista que demanda mudanças na concepção de trabalho dos profissionais, na chamada “caixa-preta” do consultório, onde as ações curativas permanecem completamente dissociadas da promoção da saúde e da prevenção. Considera-se que a chave para a real garantia deste princípio está relacionada à ampliação do conceito de saúde. A Carta de Ottawa, neste sentido, é o melhor referencial. Ao conceituar a saúde como um recurso para o progresso pessoal, econômico e social e como um conceito positivo que transcende o setor sanitário e que tem como requisitos para sua garantia a paz, a educação, a moradia, a alimentação, a renda, um ecossistema estável, justiça social e eqüidade (OMS, 1986), a Carta de Ottawa desloca para o âmbito da política a garantia da saúde, destacando como fundamental a participação comunitária. A promoção da saúde passa a ser vista como uma tarefa dos governos, das instituições e grupos comunitários, dos serviços e profissionais de saúde. A reorganização dos serviços é colocada como uma das estratégias para viabilizar ações de promoção da saúde, assim como as mudanças na formação e nas atitudes dos profissionais são requisitos para que as necessidades do indivíduo sejam vistas de uma forma integral. Em todas essas estratégias, a educação em saúde torna-se uma ação fundamental para garantir a promoção, a qualidade de vida e a saúde. Tradicionalmente, a educação em saúde tem sido um instrumento de dominação, de afirmação de um saber dominante, de responsabilização dos indivíduos pela redução dos riscos à saúde. A educação em saúde hegemônica não tem construído sua integralidade e pouco tem atuado na promoção da saúde de forma mais ampla. As críticas a essa política dominante têm levado muitos profissionais a trabalharem com formas alternativas de educação em saúde, das quais se destacam aquelas referenciadas na educação popular. A educação popular pode ser um instrumento auxiliar na incorporação de novas práticas por profissionais e serviços de saúde. Sua concepção teórica, valorizando o saber do outro, entendendo que o conhecimento é um processo de construção coletiva, tem sido utilizada pelos serviços, visando a um novo entendimento das ações de saúde como ações educativas. Sendo a atenção básica o locus onde prioritariamente devem ser desenvolvidas ações de educação em saúde, e sendo o Programa de Saúde da Família (PSF) hoje a principal estratégia para a “reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica” (Brasil, 1997, p.10), pode-se

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A EDUCAÇÃO POPULAR NA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE...

considerar este como um ambiente favorável ao desenvolvimento da educação popular em saúde. Os órgãos gestores nacionais enfatizam a importância das atividades educativas no âmbito do PSF, embora não tenham sido desenvolvidas propostas para seu financiamento nem políticas específicas para o desenvolvimento de ações ou mesmo que visassem à capacitação dos profissionais. No âmbito dos municípios, tem sido mais comum o relato de experiências utilizando o referencial da educação popular nas práticas de saúde, porém levadas a cabo por iniciativa dos próprios profissionais, muitas vezes até em contraposição aos gerentes municipais. A definição de uma política municipal de educação em saúde, especialmente se pautada pelos princípios da educação popular, teria o papel importante de induzir novas práticas nos serviços de saúde, propiciando uma valorização do saber popular e do usuário, fazendo ver aos profissionais o caráter educativo das ações de saúde, facilitando a participação de importantes atores sociais da comunidade no processo de construção da saúde. Neste trabalho, toma-se como pressuposto que a educação popular em saúde, como processo contínuo e participativo, visa ao entendimento do processo saúde-doença-saúde, sendo a promoção da saúde essencial para garantir a integralidade das ações. Desta forma, busca-se analisar e discutir como uma gestão municipal interessada em investir na promoção e na integralidade da saúde pode contribuir para a institucionalização das ações de educação em saúde, mediante uma política municipal referenciada na educação popular, no âmbito da atenção básica à saúde especialmente no que se refere ao modelo baseado no PSF. O trabalho foi elaborado a partir de tese de doutoramento em saúde pública defendida em outubro de 2003, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) (Albuquerque, 2003). Baseou-se em revisão bibliográfica e análise documental realizada entre março e junho de 2001 e atualizada entre março e maio de 2003. Foram pesquisadas as bases de dados Lilacs e Medline, nos períodos de 1991 e 2001, usando como unitermos educação popular, integralidade, saúde comunitária e medicina comunitária, tendo sido selecionados artigos que pudessem apresentar uma visão panorâmica das experiências de educação em saúde no Brasil, referenciadas na educação popular. Como análise documental, foram pesquisados os acervos da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco e da Secretaria Municipal de Saúde do Recife, além de textos e artigos da Rede de Educação Popular e Saúde (RedeEdpop), incluindo o Boletim “Nós na Rede”, editado pela mesma. Documentos e publicações do Ministério da Saúde também foram consultados, de forma a complementar a análise. A integralidade no SUS A integralidade do atendimento em saúde aparece no texto constitucional, no artigo 198, como uma das diretrizes do sistema único, expessa no atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (Brasil, 1988). Carvalho & Santos (1995,

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p.72), comentando este artigo, lembram que “a prioridade constitucionalmente dada às atividades preventivas (...) indica o novo enfoque pelo qual as ações e serviços de saúde devem ser vistos e tratados”, de acordo com a ampliação do conceito de saúde expressa nos textos legais, que é a base do conceito de integralidade. A Lei Orgânica da Saúde estabelece como um dos princípios do SUS a integralidade da assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema (Brasil, 1990, inciso II do artigo 7o). A vinculação do termo integralidade à assistência aparece em outros artigos da Lei Orgânica (art. 5o., inciso III e art.6o., inciso I, alínea d), embora exista referência à “integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico”. É clara também a necessidade de formulação de políticas para promoção da saúde envolvendo os setores econômicos e sociais, como conseqüência do entendimento da amplitude de fatores determinantes e condicionantes da saúde, o que também vai refletir uma posterior ampliação da abrangência do conceito de integralidade para além do indivíduo e da assistência. Carvalho & Santos (I995, p.71) lembram que a integração da assistência e da prevenção indica a orientação imanente no SUS de não separar as duas modalidades de proteção da saúde, principalmente depois de se presenciar os resultados negativos da priorização da assistência médicohospitalar em detrimento das medidas de prevenção da doença e dos riscos de agravo à saúde individual e coletiva.

Embora uma visão holística do homem e conseqüentemente da medicina e da saúde sejam bastante antigas, o conceito de integralidade é relativamente novo na saúde. Emana do Movimento de Reforma Sanitária e se concretiza com a Constituição Federal de 1988, embora já apareça nos textos dos antigos Programas do Ministério da Saúde, como por exemplo, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher - PAISM (Brasil, 1986a). As ações Integradas de Saúde (AIS) podem ser consideradas como um dos primeiros movimentos concretos em busca da junção assistência – promoção e prevenção. Enfocando prioritariamente a integração dos serviços municipais e estaduais (locus das ações preventivas) à rede de assistência médica do Inamps, as AIS também investiram no financiamento de novas unidades básicas e na criação de instâncias de participação popular, as comissões interinstitucionais de saúde, em nível local, regional, municipal. Oliva, já em 1987, alertava que a discussão sobre as AIS tem ficado restrita ao Sistema de Financiamento da prestação de assistência médica, mantendo marginal a saúde pública vista como proteção coletiva e promoção da saúde. “Se esta tendência se perpetuar, chegaremos ao momento em que ao que hoje se chama AIS passaremos a chamar Ações Integradas de Assistência Médica”, afirma o autor sobre a realidade daquele período (Oliva, 1987, p.18).

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3 O termo Medicina é aqui empregado no seu sentido amplo, não se referindo apenas à Medicina científica ocidental moderna e cosmopolita (nota do autor) (Carvalho, 1993, p.134)

Carvalho (1993a) trabalha o conceito de integralidade em três níveis: no marco teórico, na prática de saúde em nível local e em nível distrital. No marco teórico, relaciona a integralidade com a concepção de homem, de mundo e de sociedade; com a concepção de medicina3 e de processo saúdedoença; bem como com a concepção de assistência e de atenção à saúde. No que se refere à prática em nível local, o autor relaciona a integralidade à natureza e à relação das atividades e ações de atenção integral à pessoa e à coletividade na promoção, prevenção, saúde coletiva, terapêutica e reabilitação. As atividades integradas de ensino e pesquisa, o grau de interação entre as diversas categorias profissionais e a vinculação profissional de saúde – usuário são outros aspectos necessários, donde se considera a interdisciplinaridade como “condição sine qua non para a viabilização do conceito de integralidade” (Carvalho, 1993a, p.23, p.136). No entanto, entendemos que outros elementos se incorporam à discussão do conceito de integralidade, especialmente com vistas à promoção da saúde, como os de intersetorialidade e participação social. Além de pensar o indivíduo como um todo, é preciso pensá-lo inserido na comunidade, no próprio município/cidade e no país. E, pensando assim, observar que as ações de saúde não podem ser voltadas apenas para a assistência ou mesmo para o setor saúde, sendo necessário articular políticas sociais e econômicas para a promoção da saúde. No que se refere à participação social, uma ação integral de saúde também deve incorporar a idéia de cidadania, de forma que nenhum cidadão possa ser considerado saudável sem que tenha seus direitos garantidos. Diante dessa discussão, poderíamos conceituar integralidade como um princípio pelo qual as ações relativas à saúde devem ser efetivadas, no nível do indivíduo e da coletividade, buscando atuar nos fatores determinantes e condicionantes da saúde, garantindo que as atividades de promoção, prevenção e recuperação da saúde sejam integradas, numa visão interdisciplinar que incorpore na prática o conceito ampliado de saúde. A estratégia de saúde da família, ao atuar numa população adscrita, tendo responsabilidade sanitária sobre o espaço de atuação, sobre os indivíduos e a coletividade, tendo como atribuição fomentar a participação popular, o controle social e o reconhecimento da saúde como direito de cidadania, tem plenas condições de efetivar a integralidade. Porém, do discurso para a prática, da norma para a real efetivação das ações há um longo caminho, tendo como resultado a reprodução de práticas assistencialistas, compartimentalizadas e medicalizantes pelas equipes de saúde da família. Educação em saúde no SUS No relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde, a única referência à educação para a saúde está vinculada à incorporação dos agentes populares de saúde como pessoal remunerado, sob a coordenação do nível local do Sistema Único de Saúde, para trabalhar em educação para a saúde e cuidados primários (Brasil, 1986b). A Lei Orgânica da Saúde também não se refere explicitamente ao termo, destacando, porém, as ações de promoção, proteção e atividades preventivas, nas quais poderíamos

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considerar que, implicitamente, está contida a educação em saúde (Brasil, 1990). Embora os dois textos sejam enfáticos em conceituar a saúde de forma ampla, a falta de referência explícita à educação em saúde reflete a dificuldade desta em ser considerada como um instrumento para a garantia de melhores condições de saúde. Reflete, ainda, o caráter marginal, não hegemônico, das ações educativas e o fato de a educação e saúde ainda não constituir um campo de atuação do SUS. Por outro lado, a educação em saúde e demais ações de promoção da saúde são descritas como parte integrante de todos os programas ministeriais, sendo também relatadas junto às condutas médicas para cada doença nos livros-texto de referência (OPS, 1983; Harrison et al., 1984; Brasil, 1986a). No dia-a-dia dos serviços de saúde, porém, pouca ou nenhuma importância é dada às ações educativas. Trabalhos em grupo são muitas vezes marginalizados, os profissionais envolvidos são desacreditados e desestimulados, a infraestrutura necessária é escassa e de difícil acesso aos profissionais. Na análise do tema educação em saúde nos serviços, um outro aspecto da prática em saúde é ainda mais secundarizado: o de que toda ação de saúde é uma ação educativa. O processo de promoção-prevenção-cura-reabilitação é também um processo pedagógico, no sentido de que tanto o profissional de saúde quanto o cliente-usuário aprendem e ensinam. Esses conceitos podem mudar efetivamente a forma e os resultados do trabalho em saúde, transformando pacientes em cidadãos, co-partícipes do processo de construção da saúde. Quer seja num aspecto ou noutro, são grandes as dificuldades das equipes de saúde para efetivar uma prática cotidiana de promoção, incorporando ações educativas no dia a dia dos serviços. Quando isso acontece, dá-se, muitas vezes, de acordo com o interesse individual dos profissionais, realizando trabalhos em grupos com gestantes, idosos ou portadores de patologias, como no caso dos grupos de diabéticos ou hipertensos. As atividades de educação em saúde são conduzidas, muitas vezes, de acordo como o programa da ocasião ou a epidemia em pauta (hoje é dengue, amanhã é diabetes, depois a vacinação dos idosos e assim por diante), sem preocupação com a integralidade no próprio processo educativo ou com uma continuidade de ações junto à comunidade que trabalhe sua autonomia e conscientização. O mais difícil é que essas demandas por “campanhas” educativas tomam conta dos serviços de saúde, devido ao grande volume de atividades necessárias a sua viabilização, provocando a paralisação dos profissionais que se vêem sem tempo para o desenvolvimento de um trabalho mais estruturador. Nesse processo, a relação com a comunidade tende a se tornar utilitarista quando conduzida no sentido de garantir mobilização dos indivíduos para as campanhas. A isso, acrescenta-se a escassez de atividades de capacitação em educação em saúde. Até o final da década de 90, o chamado Programa de Educação, Informação e Comunicação em Saúde (IEC) representava a política oficial do Ministério da Saúde nesta área. Estava presente em todos os

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financiamentos, inclusive (ou principalmente) os do Banco Mundial, enfatizando atividades de massa, como uma forma de garantir “maior impacto” das ações, delegando a educação popular em saúde ao rol das ações “alternativas”. O chamado Projeto Nordeste foi um instrumento de implantação dessa política nos estados da região, investindo em capacitação e produção de materiais educativos. Em Pernambuco, foi com os recursos do Projeto Nordeste que se iniciou a estruturação das ações de educação popular em saúde e a criação dos núcleos de educação popular em saúde. Foi um começo, mas, mesmo assim, ainda foi muito pequeno o número de profissionais capacitados quando comparado com o conjunto de trabalhadores do sistema. Hoje, o Ministério da Saúde reorganizou as ações de educação, criando o Departamento de Gestão da Educação em Saúde (DEGETES), no qual foi estruturada uma coordenação de educação popular que vem incentivando os movimentos e práticas de educação popular em saúde de todo o país. Foi criada a ANEPS, Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde; foram realizados encontros nacionais, lançados livros específicos sobre o tema e criado um grupo de trabalho junto à Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Apesar dos sinais claros de consolidação de um campo da educação popular e saúde, ainda não são muitos os relatos de experiências de educação popular em saúde nos serviços. Estes, freqüentemente, referem-se à “falta de apoio” das coordenações ou das secretarias municipais e estaduais, refletindo o sentimento dos profissionais de estarem solitários no desenvolvimento desse trabalho. Em alguns casos, a “falta de apoio” é concreta, expressa em políticas ou em atitudes políticas como quando é cobrada uma produtividade em consultas que dificulta a disponibilidade de tempo para atividades educativas, ou quando não são viabilizadas as condições mínimas para essas atividades como espaço físico, equipamentos (desde cadeiras a aparelhos de televisão e vídeo), bem como acesso a materiais educativos, audio-visual ou de apoio. Também é comum entre os profissionais de saúde a cultura de que não é preciso “aprender” a fazer educação em saúde, como se o saber clínico e a formação acadêmica fossem suficientes para a implementação dessa prática. Com esse raciocínio, é freqüente encontrarmos atividades educativas que fazem uma transposição para o grupo da prática clínica individual e prescritiva, tratando a população usuária de forma passiva, transmitindo conhecimentos técnicos sobre as doenças e como cuidar da saúde, sem levar em conta o saber popular e as condições de vida dessas populações. Muitas vezes, a culpabilização do próprio paciente por sua doença predomina na fala do profissional de saúde, mesmo que este conscientemente até saiba dos determinantes sociais da doença e da saúde (Vasconcelos, 1999; Valla, 1999). Presenciando a postura dos profissionais de saúde durante uma das reuniões do grupo de desnutridos, Vasconcelos (1999, p.81) descreve seu espanto diante “do autoritarismo daquelas relações educativas, onde as dúvidas das mães eram respondidas de forma normativa e

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simplificadora”. Diante dessas constatações e dos questionamentos sobre a prática da educação em saúde no SUS, referendamos a posição do Seminário sobre Promoção da Saúde e Educação Popular, realizado na Universidade de Brasília (UnB), em agosto de 2000, quando se refere à educação em saúde necessária para a sociedade brasileira como aquela que aponta para o agir educativo em saúde como um processo que se funde ao projeto políticopedagógico, inerente às práticas de saúde enquanto práticas sociais (SPSEP, 2000). Cabe, então, aprofundar um pouco a análise sobre a ação educativa em saúde e, em seguida, sobre a educação popular. Educação popular em saúde A educação em saúde e, na forma como apresentado acima, a própria ação de saúde como ação educativa, estão referidas a uma conceituação teórica tanto da relação educação – sociedade como do próprio processo ensinoaprendizagem, bem como nas concepções de saúde e do processo de saúde – adoecimento humano. Esse conjunto teórico e, porque não dizer, ideológico, como bem cita L’Abbate (1994), influencia os resultados das ações desenvolvidas. Nas duas últimas décadas, tem sido grande o apelo à participação e, derivada desta, ao popular. A educação popular tem, no entanto, uma raiz mais profunda. A Pedagogia do Oprimido teve sua primeira edição publicada em 1970 (embora seu prefácio date de dezembro de 1967), fruto de observações de Paulo Freira no exílio e de suas experiências nas atividades educativas no Brasil, no início dos anos 1960. Nesse momento, o autor falava principalmente da necessidade de posicionar a educação como instrumento de conscientização, libertação, transformação. Na saúde, segundo Vasconcelos (2001), a origem da utilização da educação popular remonta ao início da década de 1970, quando as experiências alternativas de saúde começam a se reestruturar, em paralelo às Comunidades Eclesiais de Base, com o ressurgimento dos movimentos sociais de luta contra a ditadura. O autor relata que a participação de profissionais de saúde nas experiências de educação popular, a partir dos anos 70, trouxe para o setor saúde uma cultura de relação com as classes populares que representou uma ruptura com a tradição autoritária e normatizadora da educação em saúde. (Vasconcelos, 2001, p.14)

A metodologia da educação popular, da forma como pensada por Paulo Freire, era o referencial dessas experiências, o que o autor considera como um elemento estruturante fundamental. Vasconcelos define educação popular como um modo de participação para a organização de um trabalho político que abra caminho para a conquista da liberdade e de direitos. Ela objetiva: trabalhar pedagogicamente o homem e os grupos envolvidos no processo de participação popular, fomentando formas coletivas de

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aprendizado e investigação de modo a promover o crescimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento. (Vasconcelos, 2001, p.4)

Várias experiências de educação popular em saúde têm sido descritas (Vasconcelos, 1999; Amorim, 2001; Chiesa & Westphal, 1995; Freire Jr, 1993; Mello et al., 1998; Dias, 1998; Pernambuco, 1998a; 1998b, Gouveia & Pires, 2001; dentre outros), com resultados importantes para a construção de uma nova forma de pensar a saúde, principalmente no sentido da consolidação de um trabalho efetivamente capaz de incluir comunidades e usuários no processo de cuidar e promover a saúde. Para ilustrar, descreveremos sucintamente algumas dessas experiências que foram importantes para a construção da proposta municipal que é apresentada ao final deste trabalho, destacando que não são as únicas e sim exemplos de um grande número de trabalhos que vêm sendo publicados nesta área. Amorim (2001) relata a experiência do Centro Comunitário do Centro Psiquiátrico Pedro II, que passou a congregar uma série de projetos com base na educação popular. A brinquedoteca, o clube da terceira idade, as oficinas de artes e o projeto VIDAS (Valorização do Indivíduo no Desenvolvimento de Ações de Saúde), que v isavam à construção de alternativas de autonomia pessoal e social para a clientela relegada a estratégias de medicalização, são alguns dos projetos citados que respeitavam o saber do outro, dando voz a pessoas que nunca tinham tido voz ou vez no serviço de saúde. Posteriormente, o centro se abriu para o trabalho de diversos grupos comunitários, associações, ONGs que se articulavam numa rede que o autor passa a chamar de Universidade Aberta ao Saber Popular. O mesmo autor descreve, de forma lúdica, a experiência da rádio Revolução FM do Centro Comunitário, na qual os usuários da saúde mental discutem suas dificuldades na relação com aqueles que insistem em transformá-los em objetos (Amorim & Medeiros, 2000). Uma outra experiência com rádio comunitária é descrita por uma equipe de saúde da família de Sobral (CE) que, pela aproximação com as organizações populares presentes no Conselho Local de Saúde, passou a participar de atividades regulares na rádio comunitária, discutindo temas relativos à saúde. A equipe avalia essa experiência como “um poderoso instrumento de comunicação e um espaço de interação entre a lógica de pensar das camadas populares e a lógica do conhecimento técnico-científico representado principalmente pelos profissionais de saúde” (Nascimento et al., 1999, p.36). Silvan (1998) descreve o uso do teatro de mamulengo na educação em saúde, como uma das distintas linguagens que podem compor o processo educativo em saúde. Sendo o mamulengo (espécie de boneco movimentado com as mãos) caracterizado pela improvisação, permite a participação da população, propiciando a interação com a realidade vivida, os valores culturais e valorizando o coletivo. A prática de espetáculos de teatro de

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mamulengo na Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco era sustentada pelo processo de formação nas oficinas e cursos, nos quais os animadores eram capacitados, orientava-se a confecção de bonecos e a montagem de espetáculos, fazendo parte de um projeto estadual de educação em saúde que incluía a criação de núcleos de educação em saúde, oficinas de alimentação alternativa e uso de remédios caseiros, além de outras ações. Oliveira (1998) também descreve o uso do teatro de rua e de bonecos na educação em saúde. O eixo do projeto era a capacitação por meio de “oficinas de educação em saúde no controle da dengue”, que discutia os referenciais da educação popular em saúde, a linguagem crítica do teatro e da arteeducação, e planejava atividades a serem desenvolvidas, incluindo mostras de arte, eventos denominados “Arte e saúde na praça”, e mobilização com grupos populares de teatro e música. As oficinas realizadas nos serviços de saúde vinculadas aos programas de saúde da mulher, desnutrição, gestantes, idosos, hipertensos etc. representam uma prática de educação em saúde bem mais comum no dia-adia dos serviços. Chiesa & Westphal (1995) descrevem a experiência com oficinas educativas problematizadoras voltadas para o controle do câncer cérvico-uterino. As oficinas eram compostas de cinco encontros, cada um com um tema gerador e uma estratégia facilitadora a ser utilizada. Vasconcelos (1999) descreve detalhadamente a experiência com o grupo de desnutridos e com o trabalho de acompanhamento das famílias em situação de risco tomando por base o referencial da educação popular para a realização de pesquisa-ação, discutindo o papel e postura dos profissionais, a repercussão na comunidade e no serviço do trabalho desenvolvido. O uso do vídeo artesanal, feito com depoimentos de usuários dos serviços de saúde e pessoas da comunidade, é discutido como instrumento para a introdução de novos temas no debate dos grupos. Houve resistências de profissionais de saúde, que questionavam a capacidade dos técnicos envolvidos em lidar com emoções e afetos em grupos, a introdução de temas que não tinham diretamente a ver com a desnutrição e aspectos éticos da “exposição” de questões pessoais dos usuários que participaram do vídeo para o grupo. Os aspectos positivos da experiência referem-se à percepção do caráter coletivo do grupo, contribuindo para a superação do sentimento de fracasso e culpa, à construção de um sentimento de solidariedade e amizade para o enfrentamento dos problemas, à descoberta dos usuários como atores sociais, capazes de intervir, ter identidade própria, caminhar na direção da cidadania (Vasconcelos, 1999). Práticas alternativas de saúde também são objeto da ação da educação popular. Experiências com alimentação alternativa e remédios caseiros são descritas em Pernambuco, onde a Secretaria Estadual de Saúde, entre 1995 e 1998, capacitou equipes para trabalhar essas questões nos municípios. A capacitação era feita por meio de oficinas com quarenta horas de duração, utilizando a metodologia da Didática de Apropriação do Conhecimento (DACO), que buscava “resgatar e apoiar o conhecimento contido na tradição, refletindo-o à luz do conhecimento científico, construindo novos conhecimentos e recomendando o que já pode ser comprovado cientificamente” (Pernambuco, 1998b, p.69). Freire Jr. (1993) descreve a

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utilização da prática grupal de automassagem num serviço público de saúde, de forma regular durante cerca de dois anos, como um meio de educação popular para a saúde. A música e a dança, como capoeira, danças afro-brasileiras, praticadas por grupos de adolescentes têm sido utilizadas na perspectiva da educação popular em saúde em diversos municípios, embora ainda não se tenham registrado essas experiências em publicações. O uso da televisão, ou mais especificamente da produção, exibição e discussão coletiva de vídeos com a comunidade também constitui um instrumento para a educação popular em saúde. Essas são exemplos das várias práticas de saúde que podem ser encontrados em todas as regiões do Brasil, demonstrando uma sensibilidade dos serviços para o desenvolvimento de ações educativas que sejam pautadas, originárias e recriadoras da cultura popular. As propostas da educação popular em saúde superam o próprio setor saúde ao buscar a formação crítica dos representantes da sociedade civil de caráter popular, colaborando para aumentar a consciência e compreensão das condições de vida e relações existentes com a saúde, subsidiando movimentos e lutas em defesa da qualidade de vida, cidadania e controle social (Valla & Stotz, 1993). Por outro lado, no momento em que atores sociais tomam consciência das causas mais profundas dos problemas de saúde e das relações sociais que os permeiam, podem apontar para a luta social de forma mais conseqüente, ficando também mais comprometidos com a saúde da comunidade. É nessa dicotomia que surgem as discussões sobre o apoio social. Lideranças, profissionais e agentes comunitários de saúde estão diretamente envolvidos nesse processo, estimulados a lutar pela saúde da comunidade e compelidos a buscar na própria comunidade formas de resolver e minorar algumas questões de saúde que não podem e nem devem esperar só pelo Estado. Valla (1999) destaca que o apoio social pode realizar a prevenção (e completaríamos também o cuidado) por meio da solidariedade e do apoio mútuo, mas também representa um tema de “discussão para os grupos sociais sobre o controle do seu próprio destino e autonomia das pessoas perante a hegemonia médica” (p.12). Nas suas mais diversas formas de expressão, a educação popular em saúde é também um compromisso político com as classes populares, com a luta por condições de vida e de saúde, pela cidadania e pelo controle social. Está diretamente ligada à valorização e à construção da participação popular. Tem uma perspectiva histórica, reconhecendo os pequenos passos e os movimentos das forças sociais em busca do controle de seu próprio destino (Stotz, 1994). O diagnóstico e planejamento participativo como instrumentos da educação popular em saúde O uso do diagnóstico e planejamento participativo como instrumentos de mobilização da comunidade, aumento da consciência crítica sobre os problemas e discussão de propostas para sua solução é descrito por Carvalho (1993b) e Raupp (2001).

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Discutindo a importância do diagnóstico participativo para a apropriação dos serviços de saúde pela população e para que esses conheçam realmente as suas reais necessidades, Carvalho (1993b) destaca que várias informações sobre uma das áreas programáticas do município do Rio de Janeiro, tidas como conclusões obvias pelos técnicos e gestores da saúde, quando vistas sobre a ótica da população, podem significar situações opostas. Assim, uma aparente “ampla” oferta de serviços na região não garante o acesso da população, acarretando protestos, denúncias e “outras formas de organizações no sentido de tentar resolver autonomamente as carências encontradas” (p.116). Quando melhor analisado, o acesso segundo o tipo de serviço oferecido e a demanda atendida mostra uma realidade completamente diferente da análise normalmente feita levando em conta apenas a capacidade instalada dos serviços (Carvalho, 1993b). Quando se trata de notificação de doenças, pode haver uma colaboração mútua com a incorporação da população no diagnóstico e na discussão dos dados epidemiológicos. A análise dos dados desagregados por áreas de um bairro, por favelas, por exemplo, pode localizar melhor o problema e possibilitar um planejamento mais coerente das ações de controle de uma epidemia. A autora destaca que o diagnóstico participativo poderia subsidiar o planejamento, possibilitando aos técnicos levar “em conta o ‘olhar’ do usuário, sua percepção e necessidade” (Carvalho, 1993b, p.126-7). Pelo lado dos usuários, por sua vez, o diagnóstico poderia contribuir para a formação de uma consciência crítica e para a capacitação sobre a forma de utilizá-lo como instrumento da luta política, podendo construir, a partir de um processo educativo, uma ação transformadora. Raupp (2001), analisando duas experiências de planejamento participativo na atenção básica à saúde, concebe essa forma de planejamento como um sistema de fala, de diálogo entre os saberes técnico e popular, em que sujeitos/atores – profissionais de saúde e comunidades – construiriam interpretações comuns da realidade e “compromissos e intenções, na busca de melhores níveis de qualidade de saúde e de vida para a população” (p.19). A autora discute a compreensão do processo participativo por profissionais e comunidades, destacando a concepção instrumental de participação dos primeiros, voltada para “resolver os conflitos” e conseguir o apoio da população aos projetos. A postura de superioridade dos técnicos está ligada à concepção da participação como colaboração, como algo separado das atividades do serviço, à qual o técnico adere “voluntariamente”. A coexistência de diferentes concepções de participação e planejamento entre os atores da comunidade e dos serviços relaciona-se provavelmente a um processo de amadurecimento e consolidação da proposta. Raupp discute os pontos positivos das experiências do planejamento participativo nos serviços e conclui destacando o seu potencial para a “compreensão crítica da realidade e intervenção criativa na mesma” (2001, p.19). As equipes de saúde da família, em muitos municípios, têm sido orientadas para o uso dessas técnicas tanto como forma de uma melhor apropriação da situação de vida e de saúde da população, quanto como um instrumento de construção de parcerias e de conscientização da população

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para reivindicar intervenções intersetoriais. Nesta linha, no Recife, a construção do diagnóstico tem sido um processo muito rico e elemento importante na relação educativa da comunidade e das equipes de saúde da família, bem como na formação dos núcleos de educação popular em saúde.

2 Situação em junho de 2002.

A proposta municipal de educação popular em saúde no Recife As experiências com educação popular constituíram uma diretriz política da gestão da Secretaria Municipal de Saúde do Recife, propiciando condições favoráveis ao desenvolvimento, utilização e reformulação, na prática, da forma tradicional de atuar dos serviços de saúde. Nessa perspectiva, a gestão municipal da saúde construiu coletivamente a proposta municipal de educação popular em saúde, inicialmente com a participação dos técnicos dos distritos sanitários para, em seguida, passar pela discussão junto ao núcleo gestor, às comunidades e equipes envolvidas. A proposta desenvolvida teve como objetivo criar condições que favoreçam a participação crítica e criativa dos vários setores da sociedade na busca de melhoria da qualidade de vida e de saúde. A tarefa era desencadear um processo de discussão amplo, enfocando a educação popular em saúde que culminasse por envolver as 126 equipes de saúde da família, 1360 agentes comunitários de saúde e 780 agentes de saúde ambiental4. Na sua versão final, a proposta é composta de cinco projetos de ações: fortalecimento dos serviços de educação em saúde dos distritos sanitários, implantação dos núcleos de educação e cultura popular em saúde (Nuceps), capacitação continuada em educação popular em saúde, articulação intrasetorial e articulação intersetorial. A difusão e o desenvolvimento de metodologias e linguagens em educação popular em saúde, a produção de materiais educativos, construção de parcerias com a comunidade e garantia de infraestrutura e equipamentos para as ações educativas foram estratégias traçadas para a implantação da proposta. Na sua fase inicial, pretendia capacitar 12 equipes de saúde da família, número rapidamente ampliado, tendo sido realizadas 15 oficinas, envolvendo 34 equipes e 365 profissionais. A experiência de implantação teve resultados positivos com a consolidação dos trabalhos em 19 equipes de saúde da família, nas quais os grupos de usuários têm uma identidade própria, com nome e autonomia, sendo constituídos pelo ciclo da vida. Nestes, são discutidas questões sociais de forma ampla e não apenas relacionadas à doença. As equipes trabalham com técnicas corporais, como alongamento, relaxamento, exercícios leves e técnicas de estímulo à participação, trabalhando a saúde de uma forma mais ampla. Atividades diversas como oficinas de alimentação enriquecida, organização de movimentos junto à comunidade para resolução de problemas de lixo e esgotamento sanitário, atividades esportivas de promoção da saúde, organização de grupos comunitários no combate a dengue, dentre outras, refletem os primeiros resultados do projeto. Os núcleos de educação popular em saúde são compostos junto às equipes, sendo multifacetados, assumindo diferentes faces de acordo com as necessidades da comunidade. Foi esse conjunto de resultados que revelou uma maior integralidade das

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ações desencadeadas pela educação popular em saúde. O reconhecimento do usuário como cidadão nos grupos que não os estigmatizam como doentes, pois são ouvidos e estimulados a viver atividades de promoção da saúde (exercícios, alimentação, hábitos) e a lutar em defesa de melhores condições de vida, representa fato concreto dificilmente encontrado em equipes que não se referenciam na educação popular. As equipes também revelam uma visão mais integral no atendimento individual, com algumas delas trabalhando com terapias complementares e relacionando o atendimento diretamente com os grupos. Conclusão Analisando os artigos descritos e o caso de Recife, pode-se afirmar que a educação popular contribui para a inclusão de novos atores e abertura de canais de participação no nível local. Além de reforçar a participação social em si mesma, potencializa uma maior conscientização do povo sobre suas condições de vida, reforçando a organização popular e as lutas sociais pela saúde, que constituem eixo para a promoção e, conseqüentemente, a integralidade das ações em saúde. Outro aspecto a destacar é o potencial da educação popular em contribuir para que as equipes de saúde possam incorporar novas práticas. Sua concepção teórica, valorizando o saber do outro, entendendo que o conhecimento é um processo de construção coletiva, leva a um maior entendimento das ações de saúde como ações educativas. Vistas desta forma, as ações tendem a se aproximar da integralidade, assumindo como prática cotidiana a junção promoção-prevenção-assistência, o trabalho 4 multiprofissional e intersetorial. Como foi dito por Vasconcelos (2003) em um debate da Rede de Educação Popular e Saúde na internet, a educação popular não é uma atividade a mais a ser desenvolvida nos serviços de saúde, pois é uma atividade que redireciona toda a dinâmica do serviço, na medida em que fortalece a participação popular na discussão das suas várias iniciativas técnicas. A educação popular é um instrumento de reorganização institucional do setor saúde. Referências ALBUQUERQUE, P. C. A educação popular em saúde no município de Recife-PE: em busca da integralidade. 2003. Tese (Doutorado) - Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, Rio de Janeiro. AMORIM, A. C. Educação e saúde cidadã – a voz e a vez do saber popular. In: VASCONCELOS, E. M. (Org.) Saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da Rede Educação Popular e Saúde. São Paulo: Hucitec, 2001. p.137-68. AMORIM, A. C.; MEDEIROS, T. L. No ar... 105,5 MHz Revolução FM, a rádio que é “louca por você”!!!. Nós da Rede. Bol. Rede Educ. Popular em Saúde. v.1, n.3, p.8-9, 2000. BRASIL. Assistência pré-natal: pré-natal de baixo risco. Brasília: Ministério da Saúde, 1986a. (Série A, Normas e Manuais Técnicos, 36). BRASIL. Anais da 8ª. Conferência Nacional de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 1986b. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 1988.

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Mensagem de correio eletrônico à lista da Rede de Educação Popular e Saúde <edpopsaude@ yahoogrupos.com.br>


A EDUCAÇÃO POPULAR NA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE...

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ALBUQUERQUE, P. C.; STOTZ, E. N. La educación popular en la atención básica a la salud en el municipio: en busca de la integralidad, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.259-74, mar/ago 2004. En este estudio se hace una revisión bibliográfica y un análisis documental de las experiencias de educación en salud en los servicios, basadas en la Educación Popular en Salud y su capacidad de desarrollar la integralidad de las acciones en la Atención Primaria. Es discutida la forma como la educación en salud viene siendo trabajada en los servicios de salud, y las dificultades para la construcción de una atención realmente integral de la salud. Las acciones de salud son acciones educativas donde, tanto profesionales como usuarios aprenden y enseñan, construyendo el saber. Así, la atención a los individuos también es discutida en el ensayo, tanto en lo que se refiere a la postura de los profesionales como al respeto al saber popular y a la búsqueda, de los usuarios, de la terapéutica más adequada. Es propuesta una sistematización de programas de acción y actividades que pueden componer una propuesta de Educación Popular en salud para los municipios. PALABRAS CLAVE: Educación popular; atención primaria de la salud; integralidad; educación en salud. Recebido para publicação em 21/10/03. Aprovado para publicação em 24/06/04.

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Participação e exercício de direitos de pessoas com deficiência: análise de um grupo de convivência em uma experiência comunitária Fátima Corrêa Oliver 1 Maria Cristina Tissi 2 Marta Aoki 3 Ester de Fátima Vargem 4 Taísa Gomes Ferreira 5

OLIVER, F. C. et al. Participation and disabled people’s growing awareness of how to exercise their rights: an analysis of a community experience, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.275-88, mar/ago 2004. This article discusses a 12-month project of community-based rehabilitation in a Sao Paulo City neighborhood. Focus is directed towards the program’s joint proposition and management by health providers and relatives of disabled children and youth, which was called The Co-existence Group. This qualitative study reconstructs the experience by drawing on the meanings assigned to it by the different agents involved. Analysis is based on focus groups with female participants, interviews with community members, and with officers representing local social equipments. The importance of mothers and local inhabitants is highlighted both in diagnosing disabled people’s condition and in constructing collective strategies in order to deal with the family’s experience of isolation. The Group allowed participants to deal better with the intense psychic pain they expressed, particularly the mothers, and to establish social and emotional exchanges, leading to social support, construction of emancipation and autonomy [empowerment]. The process also led to increased awareness of social rights and of the legitimacy of this social segment’s claims. It helped to enhance the visibility of disablement issues amongst community members and to reaffirm the importance of actions based on social-family integration, in order to minimize both disabled persons’ and their relatives/caregivers’ vulnerability, thus lessening processes of social exclusion. KEY WORDS: Handicapped advocacy; disability; rehabilitation; social support; community participation; human rights; caregivers. A partir do desenvolvimento de projeto de Reabilitação Baseada na Comunidade em bairro do município de São Paulo, investiga-se a proposição e gestão entre profissionais e familiares de iniciativa de atenção a crianças e jovens com deficiência – Grupo de Convivência – realizado durante 12 meses. É estudo qualitativo que reconstruiu a experiência a partir do sentido a ela atribuído por diferentes atores, realizado por meio de entrevistas em grupo focal com mulheres participantes dessa iniciativa e de depoimentos de moradores e representantes de equipamentos sociais locais. Destaca-se a importância da participação de mães e moradores no diagnóstico da situação das pessoas com deficiência e na construção compartilhada de estratégia para abordar o isolamento domiciliar vivido. O Grupo de Convivência possibilitou enfrentar intenso sofrimento psíquico, especialmente revelado pelas mães, e estabelecer trocas sociais e afetivas implicando apoio social, construção de emancipação e autonomia. O processo levou à conscientização de direitos sociais e à legitimação das demandas desse segmento social. Contribuiu para dar maior visibilidade à problemática da deficiência no território e para reafirmar a importância de propostas de atenção fundadas sobre o eixo da integração sócio-familiar a fim de minimizar a vulnerabilidade de cuidadores/familiares e pessoas com deficiência, diminuindo processos de exclusão social. PALAVRAS-CHAVE: Direitos das pessoas portadoras de deficiência; reabilitação; apoio social; participação comunitária; direitos humanos; cuidadores.

1 Professora Assistente Doutora, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo/FMUSP. <fcoliver@usp.br> 2 Colaboradora do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, FMUSP; Professora Assistente, Universidade de Sorocaba, SP. <maria.tissi@uniso.br> 3 Técnico de nível superior, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, FMUSP. <aoki@usp.br> 4 Colaboradora do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, FMUSP. <estervargem@yahoo.com.br> 5 Colaboradora do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, FMUSP; Lar Escola São Francisco, SP. <taisaferreira@yahoo.com.br>

1 Rua Cipotânea, 51 FMUSP, Curso de Terapia Ocupacional, sala 3, 1º andar Cidade Universitária - São Paulo, SP 05.360-160

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Introdução Toma-se como objeto de estudo uma experiência de encontro entre profissionais (terapeutas ocupacionais e assistente social) e moradores de determinado território em torno da proposição e da gestão de iniciativa para atenção a crianças e jovens portadores de deficiência – grupo de convivência – desenvolvida no âmbito de projeto de Reabilitação Baseada na 6 Comunidade , no bairro Jardim D’Abril, na Zona Oeste do município de São Paulo. Nesta investigação, busca-se refletir sobre os significados atribuídos pelos participantes àquele espaço de encontro e de fazeres. Temas como direito de brincar e sua extensão às crianças com deficiências, a importância das redes de apoio social e oportunidades para ampliação da sociabilidade, processos de construção compartilhada de conhecimento e participação comunitária são eixos para a discussão da experiência, interpretada à luz do contexto sociocultural dado pelas condições de pertencer àquele território. Reabilitação Baseada na Comunidade, RBC, é uma proposição de acompanhamento de pessoas com deficiência, compreendida como resultante de um campo de ações multi-setoriais que se desenvolvem com participação comunitária, apresentada por organismos internacionais como alternativa para lidar com as desigualdades vividas por esse segmento social e para ampliar a cobertura assistencial em reabilitação (ILO, UNESCO/ UNICEF/WHO, 1994; 2002). Parte da literatura sobre as primeiras experiências de RBC aponta a necessidade da participação e mobilização de recursos locais para que a comunidade assuma tarefas educativas ou assistenciais, por meio, principalmente, de atores voluntários e da simplificação de procedimentos de reabilitação. Essa perspectiva, não adotada aqui, foi discutida criticamente por Almeida (2000) em extensa revisão da literatura de RBC. Na experiência realizada no Jardim D’Abril, considera-se a deficiência como um problema de saúde coletiva, o que não é usual. No âmbito da reabilitação, a deficiência costuma ser compreendida apenas como problema da esfera individual e/ou familiar, dissociada do contexto sociocultural. Procura-se questionar o modelo tradicional de assistência que privilegia a atuação sobre a recuperação da função, limitando-se a uma intervenção que valoriza o olhar sobre a patologia e suas repercussões. Busca-se, então, construir um olhar diferenciado sobre a deficiência, as incapacidades e as desvantagens sociais vividas pelas pessoas em seu contexto social e cultural. Em fins de 1997, profissionais do serviço de saúde e da Universidade de São Paulo e representantes da Pastoral Social iniciaram um processo coletivo de discussão sobre a questão da deficiência no território, motivando a participação de pessoas com deficiência e seus familiares. Desde o início, a metodologia de trabalho adotada buscou construir processos participativos, tanto para conhecer a natureza dos problemas vividos por esse segmento como para elaborar possibilidades de intervenção. Assim, tornou-se fundamental compreender, por meio da ação dialogada, a deficiência como produção histórica e cultural, resultado de processos individuais e sociais, vividos de forma singular no Jardim D’Abril. Implementar ações e processos participativos é parte da concepção que

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6 Parte da pesquisa Reabilitação Baseada na Comunidade no Jardim D’Abril e Jardim do Lago – estudo preliminar do território, financiada pela Fapesp, processo n. 00/04743-8.


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considera a construção de autonomia e emancipação como objetivos na atenção a segmentos sociais que vivem intensos processos de exclusão social, como é o caso de pessoas com deficiência. Dessa maneira, a autonomia e a emancipação devem ter dimensões concretas e estar ancoradas na construção compartilhada do conhecimento sobre a situação vivida por pessoas com deficiência e seus familiares no contexto social e cultural. Ou seja, tanto profissionais como moradores necessitavam construir uma visão conjunta sobre o problema, a partir de diferentes olhares possibilitados pela posição que ocupam no mundo, redimensionando saberes previamente acumulados. Assim, a partir de encontros semanais que congregavam em torno de vinte participantes, incluindo profissionais, pessoas com deficiência, familiares, voluntários (moradores do bairro sem relação direta com a deficiência) e alunos de graduação em Terapia Ocupacional, elaborou-se um diagnóstico inicial da situação vivida e organizou-se um cadastro de pessoas com deficiência. Primeiro momento de apropriação de um novo conhecimento: quantas pessoas existem e não estão visíveis? Como vivem? Com esta participação comunitária ampliada, discutiram-se alternativas para lidar com os problemas priorizados: necessidade de atenção à saúde, de convivência e de alternativas para a geração de renda. Esses foram os principais eixos de ação adotados coletivamente. O grupo de convivência No início das ações de Reabilitação Baseada na Comunidade, no Jardim D’Abril, as crianças e os jovens com deficiência estavam ausentes dos espaços públicos e coletivos. Impossibilitados de acessar escolas e creches, assim como de circular pelas ruas, podiam ser identificados apenas em seus próprios domicílios, onde muitas vezes estavam restritos ao leito, sem assistência em saúde e reabilitação. Essa condição, não só de isolamento, mas de ausência de existência social, era extensiva também a suas mães. Para enfrentar o isolamento desse grupo, foi proposta a criação de um espaço que favorecesse o encontro e o desenvolvimento global dos participantes – o grupo de convivência. Para os profissionais, destacava-se a importância da criação de ambientes saudáveis e facilitadores do convívio e do usufruto de atividades prazerosas. Procurou-se romper com a suposição de que crianças com deficiência não brincam, acreditando que mesmo aquelas mais comprometidas poderiam usufruir, de alguma forma, da atividade de brincar. Nesse sentido, o brincar não tinha como principal objetivo o aumento de habilidades motoras ou cognitivas (como a normalização do tônus muscular, a aquisição de hábitos e comportamentos, o desempenho nas atividades da vida diária), tendo sido proposto como atividade social e cultural. Para implementar o grupo, os atores envolvidos buscaram espaços e recursos disponíveis na comunidade, discutiram rotinas de funcionamento, organizaram-se para solucionar problemas, ampliaram a participação para crianças e jovens sem deficiência e contribuíram nas atividades desenvolvidas. Nos encontros do grupo de convivência participaram crianças e jovens com deficiência, suas mães, voluntárias, seus filhos e outras

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crianças não acompanhadas de suas mães, além de profissionais e alunos de graduação. O grupo teve funcionamento regular em uma igreja do bairro (Igreja Santa Rita) por oito meses, semanalmente, durante três horas. Nesse período, contou com apoio de comerciantes, prestadores de serviços e outros moradores para sua manutenção, por meio da doação de alimentos, gasolina e transporte, este realizado por voluntário. Por problemas na continuidade do transporte e queda na adesão dos participantes, a atividade foi transferida para um espaço mais acessível geograficamente, cedido pela creche municipal, onde funcionou por mais quatro meses. A participação das mães e voluntárias, assim como de seus filhos, permaneceu irregular, mas crianças provenientes da escola municipal de ensino fundamental local e moradoras das proximidades passaram a freqüentar os encontros, alterando as características do grupo7. Após várias tentativas de rearticular mães e voluntárias em torno do grupo de convivência, as atividades na creche foram suspensas e passou-se a gestar, junto com profissionais da Unidade Básica de Saúde local, projeto de criação de uma brinquedoteca comunitária, hoje implantada na Associação Cultural União de Bairros, fundada também naquele período8. Contudo, a participação das protagonistas iniciais do grupo de convivência não se recompôs em torno da implantação da brinquedoteca, ainda que viessem a participar de outras atividades coletivas. A atividade de pesquisa, realizada dois anos após o encerramento do grupo de convivência, foi a primeira oportunidade de revisar e interpretar coletivamente os significados daquela experiência. Material e métodos A experiência do grupo de convivência foi reconstruída por meio de entrevistas em grupo (grupo focal) realizadas com alguns de seus participantes. Os encontros, que incluíram a participação de monitores da brinquedoteca comunitária, resgataram a história de sua criação e de seu desenvolvimento, possibilitando refletir sobre a motivação das participantes, os benefícios singulares para cada mãe, criança ou jovem, e os desdobramentos coletivos da experiência. As entrevistas, realizadas em quatro encontros com duração média de uma hora e meia a duas horas, foram gravadas, transcritas e associadas às observações do coordenador e auxiliar de pesquisa. Houve participação de cinco pessoas em média em cada encontro, de um total de oito participantes, cujas características são: S.: 41 anos, casada, foi voluntária do grupo de convivência e participou com suas duas filhas desde o início do projeto RBC, tendo sido membro da primeira diretoria eleita da Associação Cultural. Atualmente apresenta incapacidades físicas importantes em decorrência de patologia degenerativa não diagnosticada na época. Q.: Separada, mãe de criança de 12 anos portadora de encefalopatia crônica não progressiva com importantes incapacidades motoras e cognitivas, participou desde o início do projeto RBC. N.: 48 anos, casada, mãe de jovem portadora de Síndrome de Down e quadro

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Essas crianças, com idade aproximada de nove anos, foram convidadas a participar dos encontros. Muitas eram consideradas pela escola como portadoras de deficiência, em função de comportamentos inadequados e baixo rendimento escolar. Conduziam-se e participavam do Grupo sem a presença das mães ou de outros adultos e imprimiam uma dinâmica diferente, relacionando-se de forma mais conturbada com os materiais, as técnicas, as demais crianças e entre si.

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8 A participação de crianças cujas famílias não estavam vinculadas ao projeto RBC mobilizou discussões acerca da necessidade de ampliar oportunidades de brincar para todas as crianças do bairro.


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psiquiátrico associado que se apresenta muito dependente para a realização das atividades cotidianas. Também participou do projeto RBC desde seu início. B.: Casada, cuidadora de seu enteado, jovem portador de quadro de autismo, participou do grupo de convivência e foi, durante curto período, voluntária da brinquedoteca. V.: 42 anos, separada, mãe de criança de 12 anos que apresenta atraso global no desenvolvimento com dificuldades de interação, participou desde o início do projeto RBC. A.: 32 anos, casada, mãe de duas crianças e voluntária no grupo de convivência e na brinquedoteca comunitária. I.: Casada, tem três filhos e é voluntária da brinquedoteca comunitária desde sua implantação. Participou do curso de formação de brinquedistas realizado no final do ano 2000, não conheceu o grupo de convivência. G.: Casada, tem dois filhos e é voluntária da brinquedoteca desde sua criação; também participou do curso de formação de brinquedistas e não participou do grupo de convivência.

O estudo incluiu depoimentos dos profissionais e alunos do Projeto RBC realizados durante o grupo de convivência, de gestores da Associação Cultural União de Bairros, de moradores do território e de representantes de equipamentos sociais, coletados em entrevistas individuais e apresentados em grupo focal, experiência registrada na atividade “O grupo de convivência contado em livro”.

Era uma vez uma comunidade que se reunia uma vez por semana, as crianças e suas mães para brincar, contar histórias, prazerosamente. - Cadeira de roda lá era o que não faltava. Eram crianças deficientes e normais, filhos das voluntárias. Eram unidaos, faziam os lanchinhos das crianças com as doações que recebiam das comerciantes do bairro e voluntários. Tinha a dona N. do café... uma outra senhora que tocava violão, a C., o A., a I., a P. e a M. (técnicos e estagiários) , todos para ensinar atividades para nós e as crianças. A E., assistente social, que segurava as pontas. Veio a idéia da Associação, veio a idéia de montar um grupo de deficientes... Fazer um grupo, veio várias idéias... - Aí, depois disso, nasceu uma idéia... Do grupo de convivência da Santa Rita veio várias idéias, como, por exemplo, da Associação, de fazer um grupo de deficientes, depois cursos profissionalizantes, para todos terem uma renda... A Q., que é mãe do D., foi visitar a R. (jovem deficiente) e a I., sua mãe. Aí chegou lá e conheceu uma aluna da Usp... Estava fazendo exercícios na R., que também é deficiente, e a Q. logo disse “eu também quero esse atendimento para o D.”. Porque ela disse: “Se tem para um, tem que ser para todos”. Aí ela procurou a E. (assistente social do posto de saúde) para saber como conseguir o atendimento no bairro, então começou a vir essa turma toda e foi marcada uma primeira reunião [...] Hoje nós lembramos com saudades daquela época, mas sabemos que conquistamos muitas coisas. - Aí nós vamos contar o que nós conquistamos.

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Resultados e discussão Apoio social a mães e voluntárias Ao elaborarem a experiência, as mães, que inicialmente manifestavam interesse em buscar recursos para seus filhos, deixaram claras outras motivações. Cabe lembrar que, nas discussões iniciais para a implantação do grupo, um dos objetivos propostos pelas mães seria liberá-las para que dispusessem de tempo para a realização de outras atividades do seu interesse, impedidas pelos cuidados intensivos com os filhos. No entanto, todas quiseram participar dos encontros no grupo, sugerindo que ali estaria uma oportunidade para si próprias, não disponível de imediato no seu cotidiano. O interesse em exercer uma atividade voluntária como forma de participação na vida comunitária é um exemplo. O grupo também respondeu a necessidades de ampliação de sua rede social, como romper com o isolamento, conhecer pessoas e adquirir novos conhecimentos. Para muitas, a experiência do isolamento está associada à condição de cuidadoras e mães de crianças com deficiência, tendo sido relatadas situações de intenso sofrimento relacionado à falta de apoio familiar e institucional, ao cotidiano voltado aos cuidados do filho e ao constante adiamento de projetos de vida. ... depressão e síndrome do pânico. (...) eu tinha medo de tudo, se uma pessoa falasse alto perto de mim... tá doido, não podia nem falar alto, eu fechava o olho, para mim não acordar nunca. Não andava só. Era assim, aí depois desse grupo, graças a Deus... (...) se tivesse esse grupo antes eu acho que não tinha ficado assim (...) eu tomei tanto remédio para a cabeça... (...) Eu achava que só era eu, não era tantos que era assim, porque eu não via ninguém ali, dia a dia, de segunda a sábado, de domingo a domingo, de manhã até a noite, só via o D. (seu filho com deficiência), só o D. (...) porque tinha hora que eu via mesmo que ia para se matar com ele, “eu vou me matar...” . (...) Um dia eu saí mesmo para... “hoje a vida vai ter um fim”, com ele no braço... se não fosse meu filho... tanto que não deixava nada dentro de casa, é faca... (...) “esse negócio vai ter que se acabar”. (...) o grupo foi bom... Aí, eu fui para internação... (...) tinha noite que eu chegava em casa, passava mal, ia pro hospital (...) quando eu via o D., nossa! Para mim era o fim da vida. Aí, do grupo pra cá, não. Foi bom, foi ótimo, por isso que eu falo pra vocês, o grupo não pode se acabar, ele tem que continuar, igual nós era antes... (... ) o grupo foi ótimo, tem que voltar e graças a Deus eu estou aqui, não tomo remédio, mais nada.. (relato de entrevista)

Para essas mães, conviver e aprender com outras famílias que também enfrentavam dificuldades no cuidado de pessoas com deficiência representou a possibilidade de redimensionar aquela experiência. Cabe apontar que, com poucas exceções, as famílias com portadores de deficiência não se conheciam antes do início do projeto RBC.

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...porque não tinha só atividade para as crianças. Nós tudo... Uma mãe vê a situação da outra, outra mãe vê, e quem tem um filho assim causa muitos problemas para as mães. (...) fui vendo as pessoas, eu tomava remédio, mas já não tomava tanto, porque eu tive contato com outras crianças, e aí a gente vai se abrindo, vai aprendendo e é até bom para a gente, fiquei até melhor... (relato de entrevista)

O lugar da exclusão e da ausência de existência social parece não se limitar à pessoa com deficiência, mas estender-se, de certa maneira, àqueles que estão mais próximos, em especial às mães. O grupo possibilitou que a condição de mãe de uma criança com deficiência pudesse ser reconhecida socialmente de outra forma e compartilhada com mulheres vivendo situações semelhantes. O apoio ao cuidador, que o grupo proporcionou pelo encontro entre as mulheres (já que não se estruturou como um grupo de auto-ajuda), pareceu tratar de algo prioritário nas suas vidas: serem acolhidas e obterem escuta e apoio de pares. Nesse sentido, as mulheres se identificavam não somente por terem filhos com deficiência mas por vivenciarem de forma semelhante, assim como as voluntárias, seus papéis de mães e mulheres no âmbito da família e da casa, os quais puderam ser revistos com a participação comunitária. ...eu aprendi mais, porque antes não tinha paciência, eu me irritava, ela (sua filha) também se irritava, era aquele desespero, acabava eu dando uns tapas nela e ia para o canto chorar. (...) Aí, meu marido chegava, já passava aquele estorvo para cima das costas do marido, aí, sabe como é que virava a vida, né. (...) Meu marido só fala “minha mulher não parou mais em casa”. Para mim, é uma boa, eu me sinto tão bem, eu me sinto útil. Você fica só em casa, lava, passa, cuida de criança, criança com problema, você com problema, marido chega com problema, olha é um saco. (...) quando está ajudando alguém a gente se sente tão bem, tão melhor. (relato de entrevista)

O grupo de convivência tornou-se espaço facilitador de trocas sociais (de mensagens e de afetos), lugar de escuta e de apoio para sofrimentos particulares, rede de apoio emocional e de produção de vida. As redes sociais têm sido objeto de estudos que apontam sua importância como mecanismos de sobrevivência em grupos sociais desfavorecidos economicamente, mas também como espaços potencializadores do desenvolvimento humano e social, cuja dinâmica se dá por meio de transferências materiais (de objetos e financeiras) e simbólicas, comunicativas e afetivas, entre familiares, parentes, amigos e, em especial, entre vizinhos (Abello et al., 1997). O apoio social obtido por meio da participação em redes (que geralmente são informais) pode romper situações de isolamento, tendo repercussões positivas na melhoria das condições de saúde e incrementando a capacidade de as pessoas lidarem com situações difíceis (Andrade & Vaitsman, 2002).

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...eu garanto que cada uma aqui tem uma historinha pra contar de como ajudou a gente... A gente via que não era só a gente que tinha problema, tinha gente com mais problema que a gente, que precisava de mais ajuda e de ter mais paciência... (...) a gente via aquelas mães lutando, se aquela aí estava deprimida..., via que aquela outra estava triste, já ia tentar ajudar aquela, esquecia da depressão. (...) então, ajudou muito nisso. (relato de entrevista)

As experiências vividas no processo grupal impulsionaram atitudes mais ativas nas interações pessoais e a inserção em outras experiências grupais, para além do Grupo de Convivência, ampliando os espaços de circulação e participação na vida comunitária. No começo, eu era assim, eu conhecia todo mundo, “oi, oi, oi todo mundo”. Mas era assim, eu não conseguia conversar muito, entendeu? Agora não, eu sou pior que piolho de cobra, em todo canto eu estou falando, eu estou procurando alguma coisa para fazer.... (...) serviu bastante a experiência, que eu entrei como voluntária (...) e, agora, eu como deficiente estou fazendo parte (...) do pessoal do jornal e da terapia das meninas, também da USP, que vão lá em casa. (relato de entrevista)

Potência para ações coletivas Fazer parte de um grupo que se reunia em torno de um projeto autogerido, ainda que com participação importante de técnicos, foi uma experiência que permitiu às mulheres redimensionar papéis nos planos individual e coletivo. Durante o processo, houve envolvimento intenso, discutindo qual modalidade de assistência seria implantada, buscando os recursos necessários, planejando atividades para sua sustentação (como bazares, bingos e festas). A construção coletiva da proposta com ações e trabalho cotidiano envolvendo os participantes ajudou a acreditar na capacidade grupal e a fazer projeções para o futuro (como a de uma “escola” mais consolidada), o que facilitou a percepção da potência da ação grupal. ...a gente conseguiu um espaço na Santa Rita. Aí, peguei umas mãos aqui, uni aqui, aí nós começa unir todo mundo para pedir as coisas para as crianças, para levar as crianças até lá na Santa Rita, para limpar, para lavar a igreja e tudo mais, para deixar o local para a gente poder usar com as crianças. (relato de entrevista)

A visibilidade e legitimidade das demandas do segmento passaram a ser reconhecidas ainda durante o desenvolvimento do Grupo, quando atores sociais diversos o apoiavam. O impacto de uma liderança comunitária ao conhecer o grupo de convivência é expressivo do reconhecimento de um novo lugar social ocupado pelas mães de crianças com deficiência.

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...O dia que eu fui lá, tinha mais de quinze, estava cheio, tudo cheio. Eu fiquei assim, parada. Eu até chorei. “Mas eu não quero mais me envolver em coisa nenhuma”. Porque eu estava desiludida. E aí vi... tinha uns colchõezinhos, tinha conseguido uma doação para lá de colchão... Eu falei “ai, meu Deus, até que enfim aconteceu alguma coisa boa”. As pessoas se interessaram, despertou outras pessoas. Porque a Q. e a I. (mães de crianças com deficiência) não se interessavam por coisa nenhuma e, através delas, estava chegando aquelas coisas tudo ali... (relato de entrevista – grupo focal com gestores da Associação Cultural)

A experiência também mobilizou mães e voluntárias para o encaminhamento de outras demandas coletivas e favoreceu a conscientização de direitos sociais. Foram articuladoras de discussões e propostas sobre as principais problemáticas locais das pessoas com deficiência no campo da saúde, da inclusão escolar e dos transportes. Muitas das ações políticas realizadas pela comunidade local, no período posterior ao grupo de convivência, foram protagonizadas por participantes do trabalho, que incluíram direitos das pessoas com deficiência, resultando na definição de itinerários de transportes coletivos mais acessíveis e inclusão de uma linha com ônibus adaptado. Participaram da criação da Associação Cultural União de Bairros e algumas vieram a integrar-se no Conselho Municipal da Pessoa Deficiente, atuando em suas comissões de trabalho. Significados do brincar O brincar e a convivência entre crianças e jovens foram os principais eixos estruturadores das atividades de grupo de convivência. Para mães e voluntárias, contudo, os significados da experiência estão mais centrados na importância do espaço de sociabilidade em que o grupo se constituiu para elas próprias do que nos aspectos relacionados ao desenvolvimento dos filhos. Nos seus depoimentos, conferiram pouca importância ao brincar. Certamente, contribuem para compreender o lugar ocupado pelo brincar na análise do grupo as concepções acerca do desenvolvimento infantil presentes na comunidade, as experiências lúdicas das participantes e as expectativas das mães sobre as possibilidades da reabilitação. A idéia de criação de “uma escolinha” ou “terapia”, como referiram as mães, foi um motivador para sua inserção inicial no grupo. Essa interpretação, que supõe estimulação terapêutica ou pedagógica, parece estar relacionada com as práticas convencionais no campo da reabilitação para crianças com deficiência, orientadas para a redução de graus de incapacidade e para o aprendizado de comportamentos normativos. Essas idéias certamente povoam o imaginário das mães e modelam suas expectativas quanto ao atendimento das necessidades de seus filhos, em detrimento das ações voltadas ao brincar e à convivência. Segundo Brunello (2001, p.27), “... é como se ao brincar (as crianças com deficiência) estivessem perdendo tempo, ou porque a elas não faz sentido algum brincar para crescer ou porque este tempo deveria ser dedicado a sua ‘reabilitação’”.

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No cotidiano do grupo, as mulheres desempenhavam com maior prontidão as tarefas de organização do espaço e de preparo dos alimentos e eram bastante tímidas ao brincarem com seus filhos, indicando que talvez essa não fosse uma prática usual. Possivelmente, a experiência de infância daquelas mulheres (que não foi objeto de análise) revelaria poucas oportunidades de brincar, com assunção de responsabilidades do mundo adulto e iniciação no trabalho precoces, tal qual pode ser observado em muitas crianças no bairro hoje (Mrech, 1996, p.122). A interpretação do brincar como algo secundário no desenvolvimento das crianças e jovens pode contribuir para explicar por que as mulheres pouco aderiram à brinquedoteca, apesar de valorizarem a convivência entre crianças com e sem deficiência, como observado por uma voluntária: ... a minha filha ficou mais calma, começou a conviver melhor, ela tinha convivência com as outras crianças deficientes que estavam no grupo e também com as crianças normais... e eles se uniam assim que você não diferenciava, ficava um grupo só, aquela brincadeira, aquela alegria, sabe, muito bom (...) ela se sentia tão bem lá... (relato de entrevista)

Na sua análise, discordaram da forma como estavam estruturados os atendimentos, em que as crianças com deficiência eram distribuídas em diferentes grupos e horários, e sem a presença das mães. Mais do que isso, reafirmaram a necessidade de manter a coesão que havia no Grupo de Convivência, o processo grupal, o encontro entre mães e voluntárias e, também, sua participação na gestão do projeto, como ilustra o depoimento: ...grupinho era bem melhor... antes era chamado de grupo, né? Então, era bem melhor, muito melhor, porque era tudo junto. Mãe, todo mundo se divertia, as crianças... (...) Aí, agora está um negócio esquisito. É dois num dia e dois no outro, e mãe não se vê. (...) logo no início do nosso grupo era bem melhor, brincava todo mundo, né? Não, mas nós dávamos para melhorar, tinha bazar, nós estávamos tentando fazer um muro... Virou tudo, não está bem. (relato de entrevista)

O direito de crianças e jovens ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades e do fazer criativo, assim como a importância do brincar para o desenvolvimento, também foram questionados nos depoimentos de moradores e de gestores da Associação Cultural, ainda que a infância e a juventude ocupassem o centro das inquietações reconhecidas pela comunidade. No lugar do brincar e da convivência, predominou uma visão da infância relacionada ao adestramento para o trabalho (profissionalização e aprendizado de trabalhos manuais) e à disciplinarização. Por outro lado, contraditoriamente, ao tratarem de crianças e jovens com deficiência, os moradores compartilharam a idéia de que seriam portadores de direitos e oportunidades de brincar, de socialização e de desenvolvimento. É possível que essa visão seja resultado de uma pequena expectativa quanto

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a possibilidades de inserção social das pessoas com deficiência, embora se tenha observado que seus depoimentos estariam também apoiados no contato com as iniciativas do projeto RBC, que favoreceram a visibilidade desse segmento e de suas necessidades, conforme mostra o relato de uma liderança comunitária: Agora (...) a gente está vendo eles aí. Mas antes, não existia, não tinha nada mesmo para eles. (...) ela (sua filha que vinha atuando como monitora da Brinquedoteca) falou: – mãe, ele (criança com deficiência mental) chega lá com aquela cara de bravo, tudo e, de repente, eles vão mudando, vão ficando alegres, oferece alguma coisa, eles não querem, oferece outra, eles aceitam. (...) a gente sente a melhora deles. (relato de entrevista individual – moradora e representante da Pastoral Social)

A necessidade de formulação de alternativas comunitárias para lidar com as demandas de crianças sem deficiência no bairro possibilitou a criação da brinquedoteca comunitária. Apesar de essa iniciativa ter a preocupação de estimular a participação de crianças com deficiência, estava centralizada no acesso ao direito de brincar, não possibilitando a riqueza da experiência do grupo de convivência como espaço de trocas entre mulheres, mães e voluntárias. No entanto, essa riqueza só pôde ser identificada e elaborada a partir da realização da pesquisa. O porquê da desarticulação As entrevistadas no grupo focal tiveram dificuldades para explicar as razões da desarticulação do grupo de convivência. Por fim, avaliaram que o principal impedimento foi a falta de transporte (que também foi objeto de reivindicação junto ao poder público, sem sucesso) quando o apoio voluntário cessou. ... se fosse uma perua que alguém tivesse, alguém no Jardim D’Abril “– fala que eu faço isso de graça para vocês”. É muito difícil, quem tem não faz. Você sabe que para arrecadar dinheiro nessa situação aqui é muito difícil. Se você falou em dinheiro aqui no Jardim D’Abril, pronto! Já está roubando, já está querendo demais... (relato de entrevista)

Relataram certo constrangimento em continuar solicitando apoios voluntários para manutenção das atividades e a existência de manifestações de desagrado por parte de atores sociais locais (como lideranças religiosas e comunitárias) com a realização do grupo. Isso sugere que ocupar um espaço de maior evidência na comunidade também pode significar maior exposição pessoal a conflitos de diferentes ordens. É comum, na análise de programas de Reabilitação com Base na Comunidade, que se apresente uma visão unilateral a respeito dos riscos implicados na participação comunitária:

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... o processo de reabilitação de base comunitária enfatiza a integração e fornece uma oportunidade para que pessoas com deficiência tenham total participação e igualdade de oportunidades dentro de sua sociedade. Durante este processo as pessoas com deficiência estão expostas a riscos do dia-a-dia. Isto as enche de confiança e lhes ensina habilidades para negociar e superar problemas e alcançar sua própria reabilitação através da auto ajuda. (Myezwa & M’kumbuzi, 2003, p.19)

Pode-se afirmar que os desafios implicados na participação potencializam as pessoas e impulsionam a autonomia e a emancipação. Por outro lado, a adoção de novas formas de se apresentarem e atuarem nos espaços privados (na família, na casa) e coletivos parece provocar riscos que podem levar a que se esquivem em muitos momentos. O redimensionamento dos papéis desempenhados no interior das famílias requer, quase sempre, enfrentamento de conflitos em função de diferentes expectativas dos familiares. Ocupar novas posições no território, com ações mais ativas, também expõe a julgamentos morais que podem ameaçar a credibilidade das pessoas e o equilíbrio das relações estabelecidas na comunidade. O grau de organização popular dos moradores do bairro, que no passado garantiu a conquista de bens coletivos, desfez-se nas últimas décadas. Aliado a isso, o crescimento populacional acelerado, a ocupação desordenada dos espaços, especialmente pelo adensamento das favelas, e o aumento continuado da violência e da pobreza, provocaram mudanças nas formas de sociabilidade dos moradores entre si e nas relações que estabelecem com o território, como o esvaziamento das atividades coletivas e realizadas em espaços públicos. A inexistência de políticas públicas na área, exceto as clássicas, e a descrença dos moradores no poder público e na ação política, geram sentimentos de impotência. Em territórios com baixo grau de organização popular, omissão do Estado e marcados pela violência, como é o caso do Jardim D’Abril, os moradores estabelecem um equilíbrio relacional adaptativo e vital para a sobrevivência, que passa pela existência informal, e às vezes sutil, de mecanismos de controle moral. Esses mecanismos podem ser reforçados, direta ou indiretamente, por membros da família, por lideranças comunitárias já estabelecidas que mantêm interesses ou concepções divergentes sobre a ação coletiva e comunitária, além de outros atores. Diferentes problemas que se colocam como objetos da ação coletiva podem implicar diferentes graus de exposição e de confrontos para os envolvidos. A participação comunitária em projetos dessa natureza aparentemente não ofereceria riscos ao equilíbrio relacional na comunidade, ao contrário do que se pode esperar em programas que tratam de repropor dinâmicas de enfrentamento de temáticas que confrontam diretamente interesses estabelecidos e desafiam as formas de adaptação existentes. Contudo, o despontar de novos atores sociais trará sempre novos elementos ao dinamismo comunitário, despertando diferentes posicionamentos, seja de apoio e de legitimação, seja de sanção e controle. A frágil e instável participação pode estar relacionada, ainda, com a

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dependência e passividade que algumas famílias demonstravam em razão do assistencialismo que marcou a história daquele território. Sempre se fez presente, também, certo grau de dependência dos profissionais, que cumpriam a função de articuladores do grupo, mobilizando, apoiando e incentivando sua organização, decodificando as demandas e necessidades apresentadas. É provável que as participantes tenham delegado a esses a missão de reconstruir a coesão do grupo de convivência, pouco conscientes da importância de cada uma no processo. É preciso registrar, ainda, que foram freqüentes as situações de adoecimento, tanto de crianças com deficiência como de cuidadores, dificultando a participação de alguns, inclusive de uma das principais lideranças. Conclusões A estratégia de coleta de dados por meio de grupos focais, utilizada no desenvolvimento da pesquisa, favoreceu o processo de reflexão coletiva sobre a experiência do grupo de convivência e suas repercussões na vida cotidiana das diversas participantes (familiares, cuidadoras e voluntárias). Os laços sociais serviram também de suporte para projetos de vida particulares, revelando que trocas sociais e afetivas reconstroem possibilidades de vida. Os processos de emancipação e autonomia construídos levaram à conscientização de direitos sociais e à legitimação das demandas desse segmento social. A desarticulação do Grupo de Convivência pode ser pensada como elemento característico do dinamismo das ações coletivas, que repropõem constantemente novas formas de participação para todos os envolvidos, inclusive os profissionais, exigindo redimensionamento dos mecanismos de avaliação do trabalho e dos papéis de cada um. Para os profissionais, a interpretação da experiência junto com suas participantes contribuiu para o reconhecimento da importância de continuar propondo programas que atuam sobre o eixo da integração sociofamiliar, que têm ação positiva na minimização da vulnerabilidade de cuidadores/familiares e de pessoas com deficiência, na ampliação da sociabilidade e na diminuição de processos de exclusão social (Castel, 1997). Apontou, também, a importância do desenvolvimento de alternativas para implementar processos participativos com relação ao segmento das pessoas com deficiência. Por outro lado, o grupo de convivência certamente foi insuficiente para responder ao conjunto das necessidades das crianças e jovens com deficiência, que não prescindem de outras modalidades de ajuda em reabilitação, educação e saúde, fazendo-se necessário que projetos desta natureza sejam apoiados por políticas públicas, e seja ampliada a oferta de suportes de outras ordens. Referências ABELLO, R.L.; MADARIAGA, C.O; HOYOS, O.L.L.R. Redes sociales como mecanismo de supervivencia:un estudio de casos em sectores de extrema pobreza. Rev. Latinoam. Psicol., v.29, n.1, p.115-37, 1997. ALMEIDA, M.C. Saúde e reabilitação de pessoas com deficiência: políticas e modelos assistenciais. 2000. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas.

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ANDRADE, R.B.G.; VAITSMAN, J. Apoio social e redes: conectando solidariedade e saúde. Cienc. Saúde Coletiva., v.7, n.4, p.925-34, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 abr. 2003. BRUNELLO, M.I.B. Ser lúdico: promovendo a qualidade de vida na infância com deficiência. 2001. Tese (Doutorado) - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo. CASTEL, R. A dinâmica dos processos de marginalização: da vulnerabilidade à desfiliação. Cad. CRH, n.26/27, p.19-40, 1997. ILO. UNESCO. UNICEF. WHO. Community-based rehabilitation (CBR): for and with people with disabilities. Draft Joint Position Paper, 1994. ILO, UNESCO, UNICEF, WHO. Community-based rehabilitation (CBR): for and with people with disabilities. Draft Joint Position Paper, 2002. MRECH, L.M. O uso de brinquedos e jogos na intervenção psicopedagógica de crianças com necessidades especiais. In: KISHIMOTO, T. (Org.) Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 1996. p.109-31. MYEZWA, H.; M´ KUMBUZI, V.R.P. Participation in community based rehabilitation programmes in Zimbabwe: where are we? Asia Pacific Disabil. Rehabil. J., v.14, n.1, p.18-29, 2003. Disponível em: <http://www.aifo.it/languages/english/apdrj/Journal1-02/Gen03-journal_apdrj.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2003.

OLIVER, F. C. et al. Participación y ejercicio de derechos de personas con discapacidad: análisis de un grupo de convivencia en una experiencia comunitaria, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.275-88, mar/ago 2004. A partir del desarrollo de proyecto de Rehabilitación Basada en la Comunidad en barrios del municipio de São Paulo, se discute la proposición y gestión entre profesionales y familiares de iniciativa de atención a niños y jóvenes con discapacidad – Grupo de Convivencia – realizado durante doce meses. Es un estudio cualitativo que reconstruyó la experiencia a partir del sentido a ella atribuido por diferentes actores, realizado a través de entrevistas en grupo con mujeres participantes de esa iniciativa y de testimonios de vecinos y representantes de equipamientos sociales locales. Se destaca la importancia y la participación de madres y vecinos en el diagnostico de la situación de las personas con discapacidad y en la construcción compartida de estrategia para abordar el aislamiento domiciliar vivido. El Grupo de Convivencia posibilitó enfrentar el intenso sufrimiento psíquico, especialmente revelado por las madres, y establecer intercambios sociales y afectivos que implicaron en apoyo social, en construcción de emancipación y autonomía. El proceso llevó a la concienciación de derechos sociales y a la legitimación de las demandas de ese segmento social. Contribuyó para dar mayor visibilidad a la problemática de la discapacidad en el territorio, y para reafirmar la importancia de propuestas de atención fundadas sobre el eje de la integración sociofamiliar con la finalidad de minimizar la vulnerabilidad de cuidadores/familiares y personas con discapacidad, disminuyendo procesos de exclusión social. PALABRAS CLAVE: Defensa de los minusválidos; personas con discapacidad; discapacidad; rehabilitación; apoyo social; participación comunitaria; derechos humanos; cuidadores.

Recebido para publicação em 16/10/03. Aprovado para publicação em 0707/04.

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Participación de organizaciones comunitarias en la gestión de salud: una evaluación de la experiencia del Programa UNI* Hugo Mercer 1 Violeta Adrina Ruiz 2

MERCER, H.; RUIZ, V. A. Community participation in health management: an evaluation of the UNI Program experience, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.289-302, mar/ago 2004. This article reviews the results of the UNI Program, promoted by the W. K. Kellogg Foundation in 1993–2003 to improve education in the various health professions in Latin America. Universities, local health services and community organizations were invited to apply in partnership for Institutional grants from the Foundation to develop innovative educational practices and to provide continuous information with which the UNI Program – Una Nueva Iniciativa en la Educación de los Profesionales de la Salud: Unión con la Comunidad – could be evaluated. A central and decisive dimension of the UNI Program was the cooperation between: universities, health services and the community; their engagement in the process of change and innovation contributed to internal modifications in each of them and to improvements at city and local level. The evaluation of the 21 UNI Program projects on which this article is based focused on the local populations and its organizations, concentrating on the three dimensions that the communities themselves considered most relevant for evaluation: identifying conditions which contribute towards the construction of citizenship, increasing intergenerational expectations, and improving living conditions. KEY WORDS: Social participation; evaluation; social capital; partnership; medical education. Con el propósito de mejorar la formación de los profesionales de salud en América Latina, la Fundación W. K. Kellogg convocó a universidades de varios países a presentar proyectos que integraran las respectivas facultades del área de la salud, los servicios públicos de salud de la zona de influencia y las organizaciones comunitarias que allí actuaran. Así, a lo largo de la década del 90 se desarrolló el Programa UNI (Una Nueva Iniciativa en la Educación de los Profesionales de la Salud: Unión con la Comunidad) Este artículo concentra su mirada en el componente comunitario de esos proyectos y se basa en los resultados obtenidos en el Estudio Especial de Comunidad1 realizado en el marco del Programa de Apoyo a los proyectos UNI. Un aspecto central y decisivo del Programa UNI ha sido el esfuerzo de cooperación entre tres actores: Universidades, Servicios de Salud y Comunidad que se asociaron, para apoyar procesos de cambios paralelos en las instituciones que cada actor social representaba y en las ciudades en las que cada proyecto se ejecutó. La evaluación que se realizó puso el eje de la observación en la “orilla de la población” y sus organizaciones, tratando de identificar las condiciones que facilitan la construcción de la ciudadanía, la imagen de superación intergeneracional que pueden alcanzar los integrantes de la comunidad, y en los cambios en las condiciones de vida, que fueron las tres dimensiones consideradas por la propia comunidad, como las relevantes para ser evaluadas. PALABRAS CLAVE: Participación comunitaria; evaluación; capital social; gestión asociada; educación médica.

El estudio evaluativo se realizó sobre quinze proyectos ubicados en ocho países que completaron el ciclo de financiación previsto. Ellos fueron: Colima y Mérida en México, León en Nicaragua, Barquisimeto en Venezuela, Barranquilla, Cali y Rionegro en Colombia, Trujillo en Perú, Botucatu, Londrina, Marilia, Natal y Salvador en Brasil, Temuco en Chile y Tucumán en Argentina.

*

1

Pesquisador, Organización Mundial de La Salud, Departamento de Recursos Humanos para la Salud, Ginebra. <mercerh@who.int>

2

Profesora, Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales/FLACSO, Argentina; Pesquisadora especialista em avaliação de programas sociais. <violetaruiz@fibertel.com.ar>

1 Evidence and Information for Policy/HRH Rua Appia, 20 1211 - Genève 21

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MERCER, H.; RUIZ, V. A.

Introducción Los Proyectos UNI, llevados a cabo en diferentes países latinoamericanos durante una década, tuvieron como objetivo el desarrollo integrado de modelos innovadores de educación de profesionales de la salud, atención de la salud de la población, ejercicio de liderazgos y la participación social. Cada uno de los Proyectos y todos en conjunto, se propusieron construir una teoría y una nueva práctica de enseñanza y desarrollo de sistemas locales de salud, así como nuevos modos de acción comunitaria. Además, intentaron mejorar la calidad de vida de las comunidades, promoviendo el desarrollo de las organizaciones comunitarias involucradas y el de sus integrantes. Todos los proyectos incluyeron diversas estrategias: a) la asociación con otros actores e instituciones; b) la formación de redes de cooperación nacionales e internacionales o participación en redes ya existentes; c) la construcción de una progresiva auto-sustentabilidad e institucionalización de los procesos y de los resultados; d) la evaluación continua y; e) la diseminación de los procesos y de los resultados a otras instituciones. Un aspecto central y decisivo del Programa ha sido el trabajo en parcería entre tres actores: Universidades, Servicios de Salud y Comunidad que se asociaron - en teoría - en “pie de igualdad”, para llevar adelante procesos de cambios paralelos en las instituciones y organizaciones que cada actor social representaba. Luego de diez años de ejecución de los proyectos y, además del seguimiento y evaluación continua que se realizaban en cada uno, se decidió efectuar un Estudio Especial que explorara los avances, logros y dificultades que habían transitado las organizaciones comunitarias durante la experiencia. El estudio3 analizó las particularidades de la participación comunitaria así como las estrategias que desplegaron las organizaciones para enfrentar y resolver problemas. Además, se caracterizaron las innovaciones y procesos de participación social que alcanzaron mayor desarrollo. El desarrollo comunitario en salud se manifiesta a través de diversas cuestiones: adquisición de nuevas capacidades y habilidades para el cuidado de la salud y del medio ambiente, fortalecimiento de las propias organizaciones comunitarias, incremento y renovación de participantes en la defensa de los intereses comunitarios y en la gestión del sistema de salud y, por último, mejora de la calidad de vida comunitaria y personal. En el campo de la salud existen conceptos que en su uso han ganado autonomía, uno de ellos es el de participación comunitaria. Aquí interesó indagar acerca de cómo la comunidad comenzaba a adquirir mayor presencia en la definición de los problemas de salud, las formas de atenderlos e inclusive, respecto a los criterios para asignar y utilizar recursos humanos, materiales y financieros. Tratar de entender eso desde la perspectiva de las comunidades implicó revisar formas de participación que iban desde la colaboración, la cooperación hasta la cogestión en algunos de los aspectos del funcionamiento de los servicios. Llegar a construir esa nueva forma de relación social, una participación basada en la parcería significó para todos los actores involucrados un

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3 Para mayor información sobre los resultados del Estudio Especial de Comunidad ver: <www.prouni.org>


PARTICIPACIÓN DE ORGANIZACIONES COMUNITARIAS...

decisivo aprendizaje de negociación y resolución compartida de los eventuales conflictos (por poder, calidad del trabajo, o directamente, por el manejo del dinero). Esta mirada, concentrada en el componente comunitario de los proyectos UNI, supuso además, reconocer al menos dos aspectos salientes: los vínculos comunitarios como defensa ante los procesos de exclusión social y el papel movilizador de la salud colectiva como enfoque compartido por la comunidad. Nos interesa aquí reflexionar sobre la estrategia metodológica desplegada, que fue orientada hacia la identificación y caracterización de procesos comunitarios laxos (aprendizaje de la negociación, cogestión, continuidad del compromiso) (Wat et al., 2000; Patel & Mitlin, 2002). Esa orientación permitió observar cómo se iban perfilando diferentes formas de participación que reflejaban la capacidad de las organizaciones comunitarias para asumir una presencia proactiva, dejando atrás el clásico rol de pacientes o vecinos colaboradores. ¿Por qué se moviliza una comunidad? La participación de la comunidad tarda en establecerse como dinámica de gestión y transformarse en asociaciones relevantes; las sociedades que lo lograron lo han hecho luego de experimentar lentos y laboriosos procesos de construcción histórica. Por eso, muchas iniciativas verticales, impuestas como política oficial de participación han fracasado. Se necesita que la comunidad convierta la participación en una práctica cargada de sentido, generando y gestionando iniciativas que en su propia formulación favorezcan el incremento de la capacidad de negociación de las organizaciones comunitarias. En esa laboriosa construcción se atraviesa un ciclo de iniciativa - diseño institucional - formulación de políticas públicas, que para ser exitoso requiere que la comunidad se sienta expresada. Por eso, en un período histórico donde los compromisos societales tendieron a ser efímeros y acotados, donde predominó el discurso individualista de competencia individual y de lógica de mercado, lograr la afiliación a causas colectivas y de bien común implica un logro meritorio. La indagación acerca del proceso de constitución de vínculos sociales entre actores diferentes y las condiciones que hacen propicios estos vínculos y su persistencia fue particularmente relevante como materia de observación del estudio evaluativo. La cuestión comunitaria es una preocupación especial en el campo de la salud. Por eso se ha investigado la importancia que los vínculos de solidaridad, las redes sociales y la participación social tienen sobre las condiciones de salud de la población. Tanto Cassel (1974) como Cobb (1976) habían demostrado la capacidad de contención que frente a las enfermedades mentales desplegaban los vínculos sociales, familiares y vecinales. Desde sus pioneros trabajos al presente, se ha generado una abundante literatura que demuestra que cuando en una sociedad prima la participación social, la pertenencia y afiliación a diversidad de causas convocantes, se generan mejores condiciones de salud en la población. Desde esa perspectiva el compromiso de la comunidad, entendido como la

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MERCER, H.; RUIZ, V. A.

voluntad y el ejercicio de la participación en la gestión y prestación de servicios o producción de bienes, es mucho más que la utilización de un recurso humano de bajo costo (como en algunas prácticas se impulsa) o una modernización de mecanismos clientelares (como también es posible encontrar). Ni el proyecto UNI ni las organizaciones comunitarias incluidas impulsaron la generación de agentes comunitarios como mano de obra adicional a los recursos humanos del sistema de salud, sino que buscaron activar la interacción entre conjuntos poblacionales con instituciones públicas y privadas, gubernamentales y no gubernamentales existentes. En muchos casos, las organizaciones comunitarias demostraron poseer la capacidad para establecer nuevas parcerías entre organizaciones de muy diversa procedencia y en otros tendieron a reproducir modelos de asistencialismo e inclusión de la mujer como trabajadora voluntaria. En los casos analizados, la tendencia fue más allá del rol subsidiario que se le reserva a la comunidad. Conceptos tales como capital social, redes sociales y embeddedness (lazos intracomunitarios densos o grado de pertenencia del individuo a redes societales) expresan un recorrido intelectual que se está llevando a cabo en diferentes países y que traduce una común preocupación: cómo reactivar la pertenencia a marcos comunitarios más amplios (Campbell & McLean, 2003). También el concepto de comunidad recobra vigencia, aludiendo a una pertenencia territorial, residencial y a los lazos de solidaridad que esa convivencia espacial genera. Durante las décadas del ‘70 y ‘80, se abusó del concepto comunidad convirtiéndolo en una especie de spray on solution aplicable para resolver cualquier tipo de problema social para el que se carecía de estrategias sólidas de acción. Sin embargo, el concepto de comunidad tiene un potencial más polémico que otras manifestaciones de la integración social. Emplear ahora este concepto no puede limitarse a reproducir la expectativa de activismo, de grassroot movements propia de hace dos décadas donde la problemática de la inserción tenía otras características y se insertaba en un escenario de crecimiento e intensa actividad política. La riqueza y diversidad de procesos de participación, confrontación, acomodamiento y reivindicación en muy diversos ámbitos, se adoptaron como estrategias de inserción en un contexto social más proclive a la marginación que a la incorporación de quienes no tienen asegurada una posición ventajosa en el mercado. En la literatura especializada se encuentran numerosas definiciones de comunidad, cada una de las cuales centra su atención en determinados aspectos más que en otros. En este sentido, diferentes disciplinas han aportado su visión de comunidad partiendo de indicadores que forman parte de su objeto de estudio. El concepto comunidad, entonces, se puede referir a un sistema de relaciones psicosociales, a un agrupamiento humano o a un espacio geográfico. Las diversas definiciones también se pueden diferenciar por el énfasis que hacen sobre elementos estructurales o elementos funcionales y, finalmente, en aquellas que reflejan ambos tipos de elementos.

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Una base fundamental para la integración, la cohesión y la acción conjunta, es la existencia de objetivos, aspiraciones, problemas y necesidades comunes. Todos son elementos necesarios pero no suficientes para definir una comunidad. Para Violich (1994) la comunidad es un grupo de personas que viven en un área geográfica específica y cuyos miembros comparten actividades e intereses comunes, donde pueden o no cooperar formal e informalmente para la solución de los problemas colectivos. Aquí se incluye la relación comunidad-sociedad-país. De esta manera, Violich la ubica como parte de la organización social más general, lo cual resulta importante ya que el tipo de sociedad donde está insertada la comunidad es determinante. Esta le imprime una serie de características e influye en los problemas de la comunidad, esclarece que la vinculación de los individuos se da en torno a los problemas de la vida cotidiana y señala la conciencia de pertenencia. Este último elemento es fundamental para movilizar a los pobladores, para plantearse metas comunes y trabajar en conjunto por el alcance de las mismas, la solución de problemas y el desarrollo de la comunidad: es la base de la cohesión y cooperación entre los habitantes. El papel del líder, o líderes, popular - formal o informal - que dirige o agrupa determinada estructura cumpliendo la función de coordinación entre los miembros individuales o colectivos y estructurando la división y organización del trabajo es un elemento fundamental y constitutivo del concepto de comunidad, básicamente asociado al logro de sus objetivos más importantes. Por otra parte, dar cuenta de los procesos y estrategias que desde la comunidad se generan para incrementar la integración social, necesariamente remite a asociar el concepto de capital social. Este tema ha dado lugar, en los últimos años, al desarrollo de varias líneas conceptuales. Tales como las desarrolladas por Putnam (1993) y North (1990) y las aplicaciones propiciadas por organismos de financiamiento como el Banco Mundial, el Banco Interamericano de Desarrollo e incluso el Programa de Naciones Unidas para el Desarrollo. Tanto Putnam como North reconocen que el modelo de desarrollo dominante no es capaz de lograr un crecimiento económico equitativo y genera grandes desequilibrios sociales y ambientales que ponen en peligro el futuro. Sin embargo, señalan que las sociedades que hoy tienen mayor y mejor desarrollo han basado buena parte del mismo en la calidad de sus recursos humanos (capital humano) y en las redes y normas institucionales que garantizan la confianza necesaria para el intercambio y la concertación de actores en pos del logro del desarrollo económico. Según estos autores, para que el desarrollo de las sociedades sea más equitativo y sustentable son necesarias la promoción y aplicación de políticas que valoricen estas redes sociales, fortalezcan las instituciones de la sociedad civil y generen confianza entre los diferentes actores. Todos estos aspectos serían la esencia del capital social. La enorme diferencia con el capital “convencional” es que el capital social beneficia a un conjunto de personas. Esos autores ponen el acento en la necesidad de vincular el desarrollo económico con el desarrollo institucional y éste con condicionantes

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culturales de cada sociedad (su historia y conformación de los espacios de vinculación social). Para ambos, el capital social está relacionado a las redes y mecanismos interorganizaciones e interinstitucionales, y sirve para mejorar el funcionamiento económico. Estas posturas consideran que el capital social es una pieza clave para lograr un desarrollo humano más sustentable que implica apoyo a la formación de redes, espacios y mecanismos que permitan mejorar las decisiones entre instituciones y actores con un interés común. Esta conceptualización, ligada a la formación de redes y a beneficios de índole colectiva debe ser complementada con la visión de Bourdieu que incorpora la idea de apropiación individual de este tipo de capital. Desde la concepción de Bourdieu (1980), el capital simbólico y el capital cultural están asociados a la capacidad para negociar, decidir, imponer criterios y estilos de convivencia. Los agentes son distribuidos en el espacio social global según el volumen global del capital que poseen y luego, según la estructura de su capital. Es decir, según el peso relativo de las diferentes especies de capital, en especial el económico y el cultural, en el volumen total de su capital. Estos capitales generan poder y Bourdieu considera que el poder simbólico, cuya forma por excelencia es el “poder de hacer”, está fundado en la posesión de un capital simbólico, el poder de imponer a los otros espíritus una visión que depende de la autoridad social adquirida en las luchas anteriores. El capital simbólico es un crédito, es el poder impartido a aquellos que obtuvieron suficiente reconocimiento para estar en condiciones de imponerlo ese reconocimiento (Bourdieu, 1988). En este paradigma, la necesidad de reforzar valores compartidos y redes sociales puede verse como una manera de equilibrar los poderes dentro de la sociedad y generar un potencial de cambio transformador. Asumiendo la existencia de asimetrías en las relaciones de poder al interior de la sociedad moderna, el incremento de la capacidad de acción/negociación de los individuos, los movimientos o grupos de personas o instituciones excluidas, marginadas u oprimidas, se torna de vital importancia para lograr un mayor equilibrio. Podría colaborarse en la concreción de mayor equilibrio generando, a través de la participación, asociaciones con actores diferentes, buscando consenso de intereses y al mismo tiempo igualdad de decisiones. La participación, entonces, es una acción que se cumple en solidaridad con otros, en un ámbito donde lo que se busca es conservar o modificar valores y por lo tanto la estructura - del sistema de intereses dominantes. Este tipo de acción se propone tener consecuencias sobre los criterios de valoración de los intereses y contiene siempre solidaridad. Así, el desarrollo para las organizaciones comunitarias vinculadas a los proyectos UNI colaboraría a mejorar las opciones, la relación armónica con otras personas, la capacidad de ejercer derechos, desempeñar roles, participar plenamente en la vida económica, política y social y entender los códigos culturales para integrase en su sociedad como miembros plenos mas allá de sus ingresos económicos.

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¿Qué era importante para la comunidad? La descripción y los hallazgos acerca de lo ocurrido con las comunidades que participaron en los Proyectos UNI bien podría realizarse a través del grado de cumplimiento y alcance de los objetivos iniciales, y suponiendo los intereses de una audiencia formada por la institución financiadora (Fundación Kellogg), Facultades de Medicina o autoridades municipales. Sin embargo, una perspectiva más interesante residió en orientar el estudio desde la mirada de las propias organizaciones comunitarias. El interés y la voz que se intentan expresar aquí son los de esos actores representativos de las poblaciones comprendidas en el marco de UNI, destacando cómo piensan y ven los problemas, desafíos y resultados obtenidos a lo largo de estos diez años de trabajo. La voluntad de formar parte de un proyecto como UNI, decidir qué parte del esfuerzo cotidiano de hombres y mujeres, pero también de sus familiares y vecinos se destine a una promesa, implica un importante grado de compromiso que articula expectativas de progreso personal y colectivo con una disponibilidad de recursos factible de ser aprovechada. “Quienes no sueñan no invierten en el cambio”, señalaba la dirigente comunitaria Rosalina Batista (en entrevista, 10/05/01, Londrina), resumiendo la actitud y la capacidad de integrar una meta de progreso con el esfuerzo práctico cotidiano. Esa dimensión del progreso, vista desde los propios actores comunitarios es la que importa destacar. Por esa razón el tratamiento de lo que se conoce como desarrollo comunitario apunta a recuperar cómo la propia comunidad valora el logro de su inversión social o bien, a través de qué dimensiones e indicadores se expresa el mejoramiento en sus condiciones y calidad de vida. En lugar de colocar estándares externos a los que la comunidad tendría que llegar, la búsqueda se dirige hacia los indicadores internos del proceso de mejoramiento que cada comunidad siente que ha emprendido. Cabe aclarar, en este punto, que los sistemas de salud en América Latina se organizan y operan en contextos donde no hay carencia absoluta y, a veces, ni siquiera relativa de recursos humanos en salud. Los países que padecen esta problemática, por ejemplo, casi todos los países africanos, tienen menos de 350 trabajadores de salud cada 100.000 habitantes. En los países donde se llevó adelante la iniciativa UNI, esta particularidad no se presenta en ningún lugar. Los problemas son múltiples y de otro tipo. Sin embargo, en cuanto a lo que nos interesa plantear en este artículo es útil remarcar que a pesar de la existencia del recurso humano, persiste la necesidad de construir un puente entre los sistemas de salud y la población. La evaluación que se realizó puso el eje en la construcción de este puente, centrando la observación en “la orilla de la población” y sus organizaciones, tratando de identificar las condiciones que facilitan esa construcción. Así, la primera tarea fue reconocer aquellas dimensiones del desarrollo comunitario cuya significación permitiera captar la idea de progreso y de mejora, desde la perspectiva de la comunidad. Una primera dimensión fue la ampliación de la ciudadanía, visible en el pleno ejercicio de los derechos que cada individuo posee en tanto integrante de una sociedad nacional. Una segunda dimensión es la imagen de superación intergeneracional que

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pueden alcanzar los integrantes de la comunidad, determinando sus logros en cuanto al disfrute de mejores condiciones de vida que sus padres o abuelos, o a las bases que ofrecen para el futuro de sus hijos. Finalmente, la tercera dimensión del desarrollo está dada por los cambios en las condiciones de vida, indagando cuáles son los indicadores de mejoría valorados por la comunidad con independencia de aquellos que la oferta de servicios de salud, educación o vivienda establece para los sectores sociales más desprotegidos. La comunidad expresa opiniones respecto a estas dimensiones del progreso que suelen referirse a los otros dos componentes de la parcería que el Proyecto UNI promovió. La academia y los Servicios de Salud, son los dos universos que concentran la atención y la valoración de los dirigentes comunitarios ya que de ellos esperan los mayores esfuerzos en la mejora de las condiciones de vida de sus respectivas poblaciones. Cómo trabajamos Metodológicamente, el estudio realizado combinó el análisis documental con un trabajo de campo que utilizó básicamente métodos cualitativos aunque se obtuvieron algunos datos cuantitativos. La aplicación de este tipo de abordaje permitió dar cuenta de los procesos desencadenados como consecuencia de la ejecución de los proyectos UNI y de los resultados que ellos generaron. Por otra parte, esta estrategia ayudo a profundizar en los motivos de las acciones desencadenadas y las asociaciones encontradas y, permitió abordar la cuestión de las creencias, motivaciones o actitudes de la población. Además del análisis de documentación, se utilizaron técnicas de recolección participativas: observación en terreno, entrevistas con detalle, historias de vida y talleres que generaron información susceptible de análisis de contenido, rescatando incluso datos históricos y permitiendo realizar un trabajo de reflexión sobre cada caso en particular. Técnicas utilizadas Análisis de información secundaria: se recopiló, en cada proyecto visitado, la documentación relativa a los procesos que se habían operado en la comunidad y sus organizaciones, por ejemplo, las sistematizaciones de experiencias. Los Talleres de Sistematización constituyeron una práctica generalizada en todos los proyectos. Consistió en la identificación, sobre un eje cronológico común, de los principales hitos en cada uno de los tres componentes (Comunidad, Academia, Servicios) permitiendo observar el logro o la falencia en la concreción de los objetivos del Proyecto, lo cual derivó en una sedimentación de lo relevante que en cada Proyecto se había alcanzado. Además, aportó información con respecto a la historia de luchas de la comunidad y las ciudades y áreas donde operó cada proyecto. Observación en terreno: se realizaron visitas a centros de salud y organizaciones comunitarias. Se recorrieron los barrios y áreas en las que se ejecutaron las acciones de cada proyecto tratando de obtener una observación directa de aspectos que permitieran acceder al conocimiento de comportamientos, procedimientos institucionales e interacciones de distintos actores. Entrevistas: se entrevistó individualmente a informantes clave y se efectuaron entrevistas grupales, en las que se indagó acerca de la interacción de la comunidad

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con los otros parceros UNI, identificando consensos sobre las cuestiones y problemas más importantes de la operación del proyecto. Historia de vida: se trató de reconstruir la vida, aspectos culturales y sociales, de algunos de los líderes comunitarios entrevistados y relacionar esos datos con las motivaciones y factores que coadyuvaron al surgimiento de liderazgos a través del proyecto o con independencia de él. Taller de historia de vida de los proyectos: se utilizó para reconstruir la historia del proyecto, poniendo el eje en la comunidad y sus organizaciones. Se trató de identificar, en la visión de los distintos actores, los “hitos” o momentos importantes para la comunidad, los “saltos” superadores operados, las dificultades y expectativas con respecto a las organizaciones comunitarias y sus líderes.

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La triangulación se deriva del uso, con fines militares o de navegación, de múltiples puntos de referencia para identificar con precisión la posición de un objeto alejado. En ciencias sociales se refiere a la recolección de datos sobre el mismo fenómeno, desde diferentes perspectivas o usando distintas técnicas para lograr mayor confiabilidad de los datos recogidos.

El diseño incorporó, además, la perspectiva de todos los actores involucrados en la programación y ejecución de las acciones del componente comunitario de cada uno de los proyectos, incluyendo desde los técnicos y líderes comunitarios hasta los beneficiarios, usuarios o destinatarios de las acciones. En síntesis, se triangularon4 diferentes técnicas y fuentes para evaluar los mismos fenómenos o aspectos de la realidad. También “se cruzaron” los criterios y puntos de vista de ambos evaluadores y los de los técnicos que monitorearon la ejecución de los proyectos. Con ello se procuró dar mayor confiabilidad a la información obtenida, mayor entendimiento de los fenómenos bajo estudio, se intentó la reducción de sesgos propios de cada técnica, fuente y profesional y la validación de las apreciaciones evaluativas. Finalmente, es oportuno mencionar que el estudio se efectúo en aproximaciones sucesivas ya que cada intervención permitió abrir nuevos interrogantes, incorporados sucesivamente al diseño original, dando mayor riqueza a los hallazgos. Las dimensiones de análisis fueron: Contextual: se trató de apreciar en qué medida las distintas experiencias de movilización social en las ciudades y la historia de los movimientos sociales del área en que se realizaba cada uno de los proyectos había influido en la experiencia comunitaria estudiada y en la vida de sus miembros. Organizacional: se indagó la historia previa de las organizaciones de base involucradas y se evaluó el crecimiento que cada una había logrado a partir de la experiencia que significó, en cada caso, el pasaje por el proyecto. Liderazgo: destinada a conocer el papel de los líderes en el desarrollo de las experiencias de participación comunitaria. De su particular estilo de liderazgo dependen en gran medida tanto los logros que cada comunidad puede obtener como el desarrollo de la propia organización y el crecimiento de sus miembros. Por eso se intentó rescatar elementos de las historias personales que pudieran asociarse a los estilos de liderazgo de quienes, desde la comunidad, habían motorizado y llevado adelante las propuestas UNI. Cada una de estas dimensiones fue operacionalizada en variables e indicadores que permitieran el análisis de resultados.

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Los pasos del estudio Elección de experiencias a visitar: la selección se realizó de acuerdo con una clasificación preliminar, acordada con los consultores del Programa de Apoyo a los Proyectos UNI y decidida a partir de la información con que se contaba de cada uno de los proyectos. Se asumió que en la totalidad de las experiencias se concentraban cuestiones “exitosas” para las comunidades y procesos ampliatorios de ciudadanía. La selección procuró una muestra que diera cuenta de la diversidad de experiencias. Esto no implicó, de manera alguna, una valoración de los proyectos ni el establecimiento de un ordenamiento o ranking entre ellos, sino una intención de privilegiar aquellos en los que el componente comunidad había alcanzado un nivel de expresión más amplio y diversificado. Los proyectos visitados fueron: Barquisimeto, Barranquilla, Colima, León, Londrina, Mérida, Ríonegro, Salvador, Trujillo. Confección de instrumentos de evaluación: simultáneamente a la elección de los proyectos, se confeccionaron todos los instrumentos de evaluación. Los mismos incluyeron cuestionarios, guías de entrevistas, de observación y pautas para la sistematización y volcado de la información secundaria que se recolectó. Todo el material fue girado anticipadamente para organizar las visitas y, además, para que los involucrados conocieran de antemano las pautas que guiarían las visitas y la información que les sería solicitada. Trabajo de campo: la recolección de los datos se realizó a través de visitas a los proyectos seleccionados. Se realizó una visita de alrededor de tres días a cada uno, en la que se conoció a los principales actores y se recogió toda la información necesaria para la evaluación. Además, se observó la dinámica institucional existente en cada proyecto y en especial en el componente comunitario: el nivel, amplitud y estilo de la participación, los liderazgos surgidos, la organización y parcería lograda etc. Procesamiento y análisis de resultados: toda la información recopilada se procesó y analizó tratando de dar cuenta e identificar aquellos elementos que “hicieron la diferencia”. Elaboración de informes: Además de un documento general se elaboraron devoluciones a cada uno de los proyectos visitados, incluyendo recomendaciones para el desarrollo futuro.

¿Qué captamos con esta metodología? A partir de esta aproximación fue posible reconocer que el pasaje por la experiencia UNI fue, para todas las comunidades estudiadas, una acumulación de capital social y cultural que se orienta a generar mayor capacidad de movilización y crecimiento. No se observaron comunidades en las que predomine el retroceso o el agotamiento de la movilización. En todo estudio que pretende registrar un cambio, la pregunta básica es: ¿Cuál era la situación al inicio del proceso y cuál al final? En este caso, es importante aclarar que el concepto de inicio no es unívoco para todos los Proyectos y que final implica el punto de corte que registra este estudio y de ninguna manera la finalización del proceso. Las diferencias en cuanto a inicio radicaron en que el grado de consolidación de las organizaciones comunitarias, al comienzo de cada Proyecto, era marcadamente disímil. En algunos casos, la parcería entre Universidad, Servicios y Comunidad, se estableció entre líderes reconocidos y legitimados entre cada uno de esos actores, mientras que en otros la representatividad estaba muy definida en los dos primeros, mientras que en la

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Comunidad recién daba sus primeros pasos. Así, la estrategia metodológica planteada permitió observar que cada comunidad pudo encontrar una forma de avanzar respecto a la situación de inicio, luego de comprobar la permeabilidad de las otras instituciones y su propia capacidad de movilización; para eso necesitó reconocer cuál era su potencial inicial y qué podía llegar a ambicionar. En aquellos contextos en los que existieron históricas restricciones (gobiernos autoritarios y dictaduras) a la movilización comunitaria y popular, los primeros pasos fueron tímidos, cautelosos y las comunidades se dedicaron a instalar mejoras complementarias a la oferta proveniente de la Universidad y de los Servicios. Aportaron a su mejor desempeño, pero sin activar en la transformación de la oferta existente de sus prioridades y de las oportunidades que UNI ofrecía. En esos casos, los primeros años estuvieron marcados por una actitud pasiva y expectante de la ayuda y los recursos que pudieran llegar desde “afuera”. Sin embargo, poco a poco, se abrieron condiciones para un mayor empoderamiento comunitario. En todos los casos, pesó de manera decisiva la historia y la maduración de las organizaciones populares. Se comprobó que cuando en la Comunidad existía memoria y práctica de activismo en esos ámbitos, el proceso de construcción y autonomía se acrecentaba. Al mismo tiempo permitió transformar a los contextos “duros” en ámbitos más “permeables” a una progresiva autonomía de las organizaciones comunitarias. La energía comunitaria se canalizó en un esfuerzo de desarrollo que comprende, al menos, tres aspectos: la capacidad adquirida por las organizaciones para asociarse (parcerías) con otros actores en la búsqueda de mejoras permanentes en su calidad de vida, la ampliación de ciudadanía y, finalmente, la orientación del esfuerzo comunitario hacia la inclusión económica, social, cultural y política de los miembros de esas comunidades (empoderamiento). Los logros en cada uno de estos aspectos, seguramente redundaron en mejoras en la calidad de vida de esas comunidades, siendo este el indicador más elocuente del desarrollo adquirido. Efectivamente el apartado que sigue grafica estos logros Movilizarse y participar para poder vivir cada día mejor Destinar cotidianamente una cuota de esfuerzo a la mejora de las condiciones de vida colectiva no es una acción generalizada en nuestros países. Los procesos de privatización y desmantelamiento de servicios públicos, operaron en detrimento de reconocer que hay “bienes públicos” que son de interés y beneficios del conjunto de la sociedad para conservar y ampliar. El estado de salud, el nivel cultural, la calidad del hábitat y la seguridad pública son, entre otros, valores que importan a los sectores pudientes y también a los más desposeídos. En el sentido que todos desean acceder a un mayor disfrute de beneficios materiales y valorativos para sí mismos y para las generaciones venideras. Resulta claro que en las comunidades estudiadas hay fuerte conciencia de que el bienestar colectivo incrementa la salud individual, por eso no extraña la persistente muestra de una base de acciones solidarias para que los beneficios de una mejor calidad de vida lleguen a todos por igual. No sólo a los residentes en los límites del barrio o de la población inicialmente convocante, sino también a los que van llegando en búsqueda de un espacio estable. En Rionegro, Barranquilla, León o en Londrina, estas manifestaciones de inclusión a los recién

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llegados, que en el primer caso está constituido por fuertes contingentes de desplazados de zonas con enfrentamiento bélico, ilustra acerca de la generación dentro de la propia comunidad de esfuerzos por reducir la exclusión, la distinción e incluso el estigma. Por el contrario, en ambos casos la oferta de servicios y actividades se incrementa para captar a estos nuevos grupos familiares, sin establecer distinciones por indigencia o residencia en otra jurisdicción, cosa que tampoco realizan los servicios de salud. En varios de los Proyectos, el discurso comunitario identifica con certeza cuáles son los ejes sobre los cuáles opera la inclusión social, o bien la forma de salvar los obstáculos que se colocan a la misma (Daniels et al., 2000). En Salvador, Ríonegro, Londrina, Mérida y otros, se destaca el papel del acceso a la educación básica. Por eso, la preocupación para operar guarderías, estrategias de complementación y estimulación para los preescolares, de manera que lleguen a la educación básica sin un handicap que ratifique el preconcepto muchas veces existente respecto a quienes proceden de los barrios más pobres (vergüenza de decir de donde se viene). En algunos casos la preocupación se traduce en una estrategia que capilariza la sociedad al establecer más de 40.000 guarderías en todo el país como es el caso de Colombia y en otros, en una gigantesca responsabilidad del Estado al poner en funcionamiento instituciones como el Centro de Atención Integral de Niños (CAIC), que atiende casi la totalidad de la demanda educativa de la zona sur de Londrina. Otra dimensión de la calidad de vida que los componentes comunitarios reconocieron fue la de la reducción de los niveles de privación material. La extrema pobreza, la carencia de recursos básicos que permitan afrontar las necesidades familiares son conocidas de cerca por las organizaciones comunitarias que participan en el Proyecto y destinan un esfuerzo considerable para paliar esas situaciones, actuando como primera instancia de protección social. Una tercera dimensión de la calidad de vida está dada por el esfuerzo orientado al mejoramiento de las condiciones y el ambiente de trabajo, desde los derechos de protección al trabajador, la propia inserción en el mercado laboral, hasta las formas de traslado al lugar de trabajo. Todo lo relacionado con la obtención de fuentes genuinas de sustentación de las familias que integran los respectivos vecindarios es materia de interés en los componentes comunitarios. Generación de ingresos, capacitación para el desempeño laboral, reducción de los costos de los bienes necesarios para la subsistencia están dentro de las acciones promovidas por los componentes comunitarios. Reciclaje de residuos, producción y comercialización de artesanías, logro de rebajas en el costo del transporte y mejora de su calidad están dentro del abanico de acciones que impulsan para poder trabajar y que lo que se gana trabajando sirva al mejoramiento familiar. Finalmente, calidad de vida supone también igualdad y participación política. Esto implica sujetos activos y con decisión propia, distantes de la recepción pasiva del asistencialismo vigente en varios de los países en los que los proyectos UNI se desenvuelven. En este sentido, la parcería para las organizaciones comunitarias fue mucho más que una asociación útil. Se transformó, para aquellas que pudieron visualizar su potencial e incorporarla como mecanismo permanente de funcionamiento (Londrina, Leon, Salvador, en especial), en una poderosa herramienta para la disputa de espacios de poder y recursos. No sólo dentro del proyecto, sino

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también en todos los ámbitos de negociación y lucha que cada organización se planteó. Esta práctica les permitió contar con mayores elementos y mejores argumentos para discutir, desde la reformulación del funcionamiento de varios de los servicios y la intervención en la gestión de los mismos, hasta el reparto de fondos que en cada caso se hacía. Además, los grupos comunitarios de varios de los proyectos han desarrollado una destacable capacidad, consistente en convertir en asunto público la prestación de diversos servicios. La estrategia con la que reclamó y obtuvo mejoras de empresas y del Estado no consistió solo en demandar servicios como parte de una mayor justicia social o de mejorar la redistribución de bienes para satisfacer necesidades básicas sino que lo hizo propiciando la creación de condiciones de sociabilidad. Posibilitando así que quienes acceden a un servicio o a un bien puedan expresarse, discutir, adecuar la prestación e incluso elegir. Esos pasos no suelen estar presentes en las políticas sociales destinadas a los grupos más carenciados, ya que se los suele convertir en meros receptores de la asistencia. En los Proyectos estudiados (Rionegro, Londrina, Salvador, León, Barranquilla, por ejemplo), por el contrario, es visible el juego de los atributos de una ciudadanía más plena, a la cual se accede mediante lazos sociales con los otros actores. Haber llegado a esa construcción de sociabilidad le da otra razón de ser a la política social, ya que no sólo equipara las injusticias del mercado, sino que abre la oportunidad para una plena integración como miembros de la sociedad. Accediendo y participando en las decisiones sobre los asuntos sociales y permitiendo la cohesión social, aún en contextos en los que predominan expresiones de violencia y fuerte polarización. Cualquier mirada externa se sorprende ante la existencia de estas comunidades con capacidad de aprender, organizarse y negociar, sin perder asidero y sentido de realidad en contextos habitualmente adversos. Dentro de esa capacidad debe influir seguramente, una fuerte presencia de valores altruistas inspirados en formas de religiosidad no sectaria. En todos los proyectos, prácticamente, llamó la atención encontrar un importante grado de adhesión a convicciones religiosas orientadas al futuro más que al respeto a la tradición y al pasado. Sobre esas bases, tanto en las visitas como en los eventuales encuentros entre dirigencias comunitarias de los diferentes proyectos, resulta llamativa esta convergencia de valores religiosos con fuerte compromiso social. En el plano práctico de la operación de los servicios, las estrategias desplegadas y los aprendizajes recíprocos disminuyeron la disputa por cuotas de poder, espacios territoriales y fondos públicos, que son los obstáculos más frecuentes para establecer asociaciones entre actores con diferente capital social y simbólico. En cambio, en la mayoría de los casos, lograron establecerse prácticas de cooperación y negociación en todos esos ámbitos. Finalmente, esta década de trabajo en parcería permitió que los diferentes actores involucrados, procedentes de ámbitos tradicionalmente distantes, lograran compartir espacios de trabajo y de poder en un marco en el que todos obtuvieron ganancias, en términos de mejorar la eficiencia de las intervenciones y la calidad social de gestión.

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MERCER, H.; RUIZ, V. A. Participação de organizações comunitárias na gestão de saúde: uma avaliação da experiência do Programa UNI, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.289-302, mar/ago 2004. Com o propósito de melhorar a formação dos profissionais da saúde na América Latina, a Fundação W. K. Kellogg convocou as universidades de vários países para apresentar projetos que integram as respectivas faculdades da área da saúde, os serviços públicos de saúde da área de influencia e as organizações comunitárias que aí atuarão. Assim, ao longo da década de 1990 desenvolveu-se o Programa UNI (Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais da Saúde: União com a Comunidade). Este artigo concentra seu olhar no componente comunitário desses projetos, baseado nos resultados obtidos no Estudo Especial de Comunidade realizado no marco do Programa de Apoio aos projetos UNI. Um aspecto central e decisivo do programa UNI tem sido o esforço de cooperação entre três atores: Universidades, Serviços de Saúde e Comunidade, que se associaram em parcerias para apoiar processos de mudanças paralelas nas instituições de cada ator social e nas cidades em que cada projeto foi executado. A avaliação realizada colocou o eixo da observação na “borda da população” e suas organizações, tentando identificar as condições que facilitem a construção da cidadania, a imagem de superação intergeneracional que podem alcançar os membros da comunidade, e as mudanças nas condições de vida, as três dimensões consideradas pela comunidade como relevantes para serem avaliadas. PALAVRAS-CHAVE: Participação comunitária,; avaliação; capital social; parceria; educação médica.

Recebido para publicação em 02/12/03. Aprovado para publicação em 06/05/04.

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Innovaciones curriculares en la formación universitaria de trabajadores sociales Susana Aurelia Preciado Jiménez 1 Elba Covarrubias Ortiz 2 Claudia Angélica Alcaraz Munguía 3 Mireya Patricia Arias Soto 4

JIMÉNEZ, S. A. P. et al. Innovations in the education of social workers: an investigation concerning the impact of changes in the curriculum that attempt to incorporate new models of teaching and learning, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.303-12, mar/ago 2004.

This article investigates pedagogical innovations introduced when the curriculum of the School of Social Work at the University of Colima was restructured. The relevance of considering social workers, throughout their education, as social actors who partake in the resolution of societal problems is emphasized. The faculty of the School of Social Work analyzed the process of implementation of the new model of education centered on the student from 2001 to 2005 and its results. The results corroborate the importance of the new models of education introduced and indicate some demands that must be met in order to consolidate curricular innovations. KEY WORDS: Higher education; curriculum; teaching methodology; innovation; social workers; credentialing. En este artículo se presentan y analisan los dados de los avances de las innovaciones curriculares incluidas en la reestructuración del currículo de la Facultad de Trabajo Social de la Universidad de Colima. Un aspecto importante que se busca en la formación de trabajadores sociales es que éstos sean vistos como actores sociales que participan en la resolución de las necesidades de la sociedad. Para ello, el cuerpo académico de la facultad se ha dado a la tarea de analizar el proceso y los resultados de la implementación del modelo de enseñanza centrado en el aprendizaje en la Facultad de Trabajo Social que se puso en marcha en la generación 2001-2005, para sustentar la reestructuración del plan de estudios. Los resultados apuntan la pertinencia de las nuevas modalidades pedagogicas e algunas consideraciones para sustentación de las innovaciones curriculares implementadas. PALABRAS CLAVE: Enseñanza superior; curriculum; modalidades pedagógicas; inovación; trabajadores sociales; habilitación profesional.

Profesora investigadora, Facultad de Trabajo Social, Universidad de Colima, México. <preciado@ucol.mx> Profesora investigadora, Facultad de Trabajo Social, Universidad de Colima, México. <coelba@ucol.mx> Profesora investigadora, Facultad de Trabajo Social, Universidad de Colima, México. <claudian@ucol.mx> 4 Profesora investigadora, Facultad de Trabajo Social, Universidad de Colima, México. <tsocial@ucol.mx> 1 2 3

1 Universidad de Colima Facultad de Trabajo Social Av. Universidad, n.333 Col. Las Viboras CP 28044 Colima, Colima México

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Introducción La educación superior cada día se encuentra frente a una búsqueda constante de modelos de enseñanza-aprendizaje que responda a las necesidades del mundo en el que vivimos; acordes a la modalidad de formar profesionistas con la calidad científica y humanística que exigen las necesidades emergentes, la Facultad de Trabajo Social de la Universidad de Colima, se ha dado a la tarea de realizar investigación sobre modelos pedagógicos en donde los estudiantes alcancen conocimientos, desarrollen habilidades y competencias de trabajo colaborativo, responsabilidad de su propio aprendizaje, ser críticos, reflexivos, así como propiciar actitudes que se orienten al desarrollo armónico, a la convivencia solidaria, la promoción de los derechos humanos; en otras palabras, lograr un desarrollo integral. En este sentido es que la Facultad de Trabajo Social, mediante su cuerpo académico, se ha dado a la tarea de iniciar un proyecto de investigación en donde se busca analizar, desde la perspectiva del Trabajo Social, las nuevas modalidades de enseñanza-aprendizaje, las cuales se sustentan en el constructivismo y en el aprendizaje significativo. Congruentes con esta premisa, los profesores que participan en este proyecto de investigación se dedican a analizar los cambios y los impactos tanto de tipo cuantitativo como cualitativo que se han observado en los estudiantes vinculados al modelo de enseñanza centrado en el aprendizaje a partir de febrero de 2003. Planteamiento del problema La sociedad de fines del siglo XX e inicios del XXI se ha caracterizado por una serie de transformaciones que han tocado todos los aspectos del ser humano. Los cambios han sido profundos en los ámbitos políticos, culturales, sociales, económicos, y por supuesto en el educativo. Las consecuencias de esta vorágine y situaciones han repercutido en las dinámicas sociales, en donde podemos observar el auge de la aldea global por un lado, mientras que por otro existe un repunte de los regionalismos, así como del racismo y actitudes de intolerancia que han producido guerras devastadoras y conflictos en distintas regiones del planeta. La Asociación Nacional de Universidades e Instituciones de Educación Superior en México (ANUIES) han declarado que la educación del siglo XXI necesita propiciar profundas transformaciones en la organización y operación de la educación en general, ya que a la par van surgiendo nuevas necesidades y exigencias relativas a las competencias y conocimientos de los hombres y mujeres para insertarse activamente en el mundo laboral, como lo refiere Bruer (1995), cuando señala que los empresarios se lamentan que demasiados aspirantes a los empleos que ofrecen carecen de habilidades de comprensión, comunicación y razonamiento, habilidades que son necesarias en los actuales puestos de trabajo. Incluso requieren de trabajadores que sean críticos y analíticos, capaces de innovar y de resolver problemas, con un buen dominio de habilidades de expresión oral y escrita, y capaces de aprender en el lugar de trabajo. Desean personas que sepan cómo aprender. En otras palabras, que los egresados de las instituciones de educación superior respondan a las nuevas exigencias de la sociedad en la cual se insertan.

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Varias investigaciones indican la existencia de la misma carencia de habilidades en el ingreso de los estudiantes a la enseñanza superior. Los profesores denuncian que muchos jóvenes llegan al campus sin estar preparados para el nivel de exigencia universitaria. Los estudiantes tienen una escritura pobre, carecen de una comprensión razonable de la historia y de la cultura. Muchos de ellos son incapaces de seguir el pensamiento abstracto y carecen de las adecuadas habilidades de razonamiento formal (Nickerson et al. 1985, p.5, apud Bruer, 1995). Nos queda claro que los problemas y los desafíos de la educación no se dan en un vacío, forman parte de la compleja maraña de la dinámica económica, social, cultural y política de nuestra época, como refiere Núñez Hurtado (2001), no se puede desvincular la problemática educativa de las tendencias de la sociedad circundante. En este sentido, las exigencias para la educación superior, nos llevan a estar en una constante búsqueda de modelos de enseñanza-aprendizaje que respondan a las necesidades del mundo en el que vivimos. Acorde con estos fundamentos, en la Facultad de Trabajo Social, se han incorporado elementos que propician la generación de modelos de enseñanza centrados en el aprendizaje, el cual se caracteriza por la incorporación de un conjunto de objetivos, modalidades, recursos y técnicas que se orientan a lograr aprendizajes significativos de los contenidos curriculares y a aprender a aprender, promoviendo la actividad autónoma del alumno. El concepto de aprender a aprender está relacionado con el concepto de potencial de aprendizaje, y consiste en desarrollar las capacidades del individuo, específicamente del estudiante, a través del mejoramiento de técnicas, destrezas, estrategias y habilidades con las cuales busca acceder al conocimiento. Bajo esta perspectiva, es que los académicos reconocemos la necesidad de replantear el camino, reflexionar sobre ¿cómo estamos formando a los futuros profesionistas de la disciplina?, ¿Serán personas con las habilidades y capacidades suficientes para buscar oportunidades y espacios en el campo laboral y atender las necesidades que la sociedad les demande? Y este es precisamente el reto que la Facultad debe asumir, en la implementación de las innovaciones curriculares para la formación de sus estudiantes, así como el estar pendiente para formular estrategias pedagógicas que permitan integrar un currículo académico que dote a los estudiantes de conocimientos, habilidades y capacidades que les permitan convertirse en actores activos de su proceso educativo, ser concientes de su propio estilo de aprendizaje, así como estar eficazmente aptos para lograr un espacio en el mercado laboral. Avances Los modelos centrados en el aprendizaje y la interacción profesor y estudiante están influidos por los factores cognitivos, sociales y afectivos; tomando en consideración esto, fue que el proceso de innovación curricular condujo a reformular las estrategias pedagógicas que orientaría a contar con un currículo académico integrado, el cual dote a los estudiantes de conocimientos, habilidades y capacidades que les permitan convertirse en actores activos de su proceso educativo, realizar trabajo cooperativo, ser concientes de su propio

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estilo de aprendizaje y responsables de su proceso de aprendizaje entre otros; así el cuerpo académico de la Facultad, se orientó a elegir un modelo 5 de enseñanza centrado en el aprendizaje (MECAFTS ) partiendo de los elementos y principios generales de la disciplina de Trabajo Social y teniendo como estructura principal, cuatro grandes estrategias o modalidades didácticas que propicien en el estudiante la adquisición de competencias y habilidades necesarias para el ejercicio profesional. Las modalidades didácticas elegidas fueron: Tutorial, Disciplinaria, Integrativa, y de Crecimiento Personal, las cuales buscan que el estudiante pueda integrar procesos educativos innovados, acordes con los principios propuestos por la UNESCO, en el informe Delors, los cuales se han aplicado en el modelo de enseñanza utilizado en la Facultad de Trabajo Social: 1 Aprender a conocer: en el cual, la institución debe propiciar que los estudiantes conozcan y dominen los instrumentos y métodos del conocimiento, que se vincula con la modalidad tutorial. 2 Aprender a hacer: en este sentido, se busca que los estudiantes se preparen para hacer aportaciones a la sociedad, así como el propiciar las competencias para el trabajo en equipo, colaborativo, lograr desarrollar habilidades, destrezas, ejecutar procedimientos, técnicas, métodos, entre otros; la cual se relaciona con la modalidad disciplinaria e integrativa. 3 Aprender a convivir: aspecto trascendental en la formación de recursos humanos, pues destaca el elemento de la diversidad, bajo este criterio la educación en valores es uno de los principales componentes para propiciar las actitudes que se orientan al desarrollo armónico y pleno de las personas, a la convivencia solidaria; la promoción de los derechos humanos; así como en la erradicación de los llamados antivalores; principio que corresponde con las modalidades integrativa y disciplinaria. 4 Aprender a ser: la que conjunta el “desarrollo total y máximo posible de cada persona. La educación integral de la que se viene hablando desde finales del siglo XIX y comienzos del XX; aquella del pensamiento autónomo” (Delors, 1996), que se asocia con la modalidad de crecimiento personal. Al tener en cuenta tanto los elementos y principios de la disciplina como los de la UNESCO, se considera que se parte por tanto de un contexto educativo y social que ubica tanto a profesores y alumnos a saber quienes son, hacia donde se dirigen, en la implementación del modelo de aprendizaje.

Integrativa

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Aprender: a conocer a hacer a convivir a ser

Disciplinaria

Tutorial

Crecimiento personal

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MECAFTS: modelo de enseñanza centrado en el aprendizaje en la Facultad de Trabajo Social, en España.

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Por tanto, se pretende que con las cuatro modalidades, se propone un diseño holístico dentro del plan curricular, para lo cual se desarrollarán en el estudiante competencias genéricas que le permitirán poseer conocimientos, habilidades y valores, para planear, prevenir, diagnosticar, intervenir, evaluar e investigar en el ámbito de lo social a fin de contribuir al bienestar de individuos y grupos y comunidades, con juicio crítico y compromiso social. Por tanto, la modalidad tutorial, se podría definir como el elemento que busca integrar conocimientos teóricos-conceptuales, la comprensión de los elementos básicos de las diferentes aproximaciones teóricas que permiten a la disciplina del Trabajo Social tener un marco de referencia, así como el dominio de los conceptos metodológicos del Trabajo Social. La modalidad disciplinaria, por otro lado, permite el manejo de fundamentos, procedimientos e instrumentos que permiten al trabajador social resolver demandas planteadas en los campos de aplicación profesional. Las habilidades que se busca desarrollar son que el estudiante pueda aplicar adecuadamente principios y procedimientos requeridos para seleccionar, elaborar y aplicar tácticas que le permitan dar orientación, resolver problemas e interpretar los resultados derivados de su quehacer profesional. Así como la aplicación y comprensión de principios y procedimientos para seleccionar, aplicar e interpretar efectos de estrategias de planeación que promuevan eficazmente la calidad de vida en todos los ámbitos del quehacer profesional del trabajador social y aplicar principios y procedimientos requeridos para comunicar y difundir los resultados y experiencias relevantes de su actividad profesional. En la modalidad integrativa, se desarrollan habilidades con las cuales el estudiante combine la teoría, con las habilidades técnicas en la práctica profesional. Para ello, se busca que el alumno pueda lograr la integración de casos, dominio y pericia mostrados en la organización de los datos derivados del diagnóstico, evaluación, intervención e investigación para analizar y sintetizar los resultados obtenidos. Y por último, en la modalidad de crecimiento personal, se busca que el estudiante desarrolle actitudes cooperativas, aprenda a conocerse a sí mismo, a resolver sus problemas personales en los diferentes escenarios; sea consciente de sus capacidades y destrezas, y se proponga metas de acuerdo a sus intereses personales, académicos y profesionales. El proceso de cambio El modelo se ha aplicado actualmente a dos generaciones 2001-2005 y 2002-2006; la generación sujeta de estudio es la 2001-2005, que inició con este modelo a partir del semestre febrero-julio 2003; se seleccionó a ésta por ser la generación de transición en las innovaciones curriculares en la Facultad. El proyecto de innovaciones curriculares, además de buscar la integración del currículo en el cual se conjuga el aprendizaje basado en problemas (ABP), como una de sus estrategias didácticas, las prácticas disciplinarias e integrativas y el crecimiento personal, promueve el desarrollo de destrezas cognitivas de los estudiantes, habilidades profesionales, así como que se desarrollen como personas al ser estudiantes activos y creativos. Los estudiantes inmersos en este proyecto son alumnos que participan

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dentro de un modelo de aprendizaje en donde el profesor no es el actor principal. Es decir, la relación no se muestra en una sola dirección (Professor Alumno) sino que es compartida y con coparticipación; esta relación se observa directamente en la modalidad tutorial o también denominada estrategia de aprendizaje basado en problemas (ABP).

Proceso de enseñanzaap re nd iz aje

En esta modalidad, el profesor tiene el rol de facilitador, tutor, guía, coaprendiz, mentor o asesor, mientras que los estudiantes asumen un rol de participantes directos, quienes tendrán la responsabilidad de aprender y crear alianzas entre alumno y profesor. Los profesores buscan mejorar la iniciativa de los alumnos y motivarlos. Los alumnos son vistos como sujetos que pueden aprender por cuenta propia. Los alumnos trabajan en equipos para resolver problemas, adquieren y aplican el conocimiento en una variedad de contextos. Los alumnos conformados en pequeños grupos interactúan con los profesores quienes les ofrecen retroalimentación. Los estudiantes evalúan su propio proceso y el de sus pares. Además el profesor implementa una evaluación integral, en la que es importante tanto el proceso como el resultado. Metodología De acuerdo a las características del estudio, se hizo uso de la metodología cuantitativa y cualitativa. En la primera se utilizaron las técnicas de análisis de documentos de las trayectorias escolares y los resultados educativos, es decir, se revisaron expedientes, calificaciones de los alumnos desde el inicio de sus estudios hasta la fecha. En la segunda se hizo uso de la observación participante, la entrevista exploratoria y el método comparativo. Ser observador participante es facilitado por el hecho de que los investigadores jugamos un papel dentro de los grupos que no altera las pautas usuales de comportamiento de los sujetos observados, en este caso al ser profesorestutores dentro del proceso de enseñanza-aprendizaje nos permite registrar y ser testigos de las situaciones. A través de las entrevistas adquirimos información acerca de las opiniones de todos los actores inmersos en las innovaciones y el método comparativo es de gran utilidad porque nos permite vislumbrar datos significativos de los resultados de generaciones formadas con la metodología tradicional y las formadas con la metodología innovada, así pues la conjugación de estás técnicas nos permitirá realizar una investigación más completa que nos proporcione información eficaz y eficiente para evaluar y mejorar el proceso de cambio.

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El universo de estudio son 171 alumnos que son partícipes en el MECAFTS, la muestra son 45, los cuales fueron elegidos por haber vivido la formación tradicional e innovada dentro de la Facultad, quienes son sujetos a la comparación de sus roles antes y después del MECAFTS. Entendiendo que como parte del proceso de enseñanza-aprendizaje los profesores actores principales, también participarán como sujetos de investigación. La primera fase del trabajo, que es la que se presenta, es efectuada a partir de la observación que se ha realizado a los sujetos de investigación: alumnos de la generación 2001-2005 y cinco profesores que participaron en los dos momentos de formación (antes y después del MECAFTS); así como entrevistas exploratorias a ambos. Para determinar los cambios objetivos que se han observado en los estudiantes, se revisaron las trayectorias escolares desde el primero al cuarto semestre, particularmente en las fluctuaciones de los índices de reprobación, retención y deserción escolar. El análisis se hace a partir de una contrastación entre las actitudes y patrones escolares antes y después del MECAFTS tanto en los alumnos como en los profesores. Resultados Los resultados hasta el momento han sido los siguientes: En lo que se refiere al aspecto cuantitativo, se han encontrado elementos evidentes en las trayectorias escolares de los estudiantes, en los rubros: aprobación-reprobación, asistencia, promedios y tasa de retención en la generación 2001-2005. Como se explicó anteriormente, la generación que es objeto de investigación (2001-2005) modificó el modelo de enseñanza tradicional al Modelo de enseñanza centrado en el aprendizaje en el período febrero – julio 2003, la cual cursaba en ese momento el cuarto semestre, las evidencias cuantitativas se observan en los cuadros 1 y 2. Cuadro 1 - Promedio de los estudiantes en lo que se refiere a los modelos de enseñanza (2001-2005) PROMEDIO Generación

Modelo centrado en el aprendizaje

Modelo tradicional 1º semestre

2001-2005

8.05

2º semestre

3º semestre

4º semestre

8.4

7.72

8.68

Cuadro 2 - Trayectorias escolares de los estudiantes en lo que se refiere a los modelos de enseñanza (2001-2005) Aprobados

Reprobados

S/ calificacion

Semestre

Alumnos inscritos

Primero

69

27

39.13

26

37.68

16

23.18

Segundo

46

28

60.86

16

34.78

02

4.34

Tercero

45

36

80.00

06

13.33

03

6.66

Cuarto

45

37

82.22

08

17.77

-

-

%

%

%

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En los resultados cualitativos, se observa de igual manera logros en cada una de las modalidades: Modalidad tutorial: los alumnos afrontan la resolución de problemas planteando objetivos e investigando en diversas fuentes; se presenta el trabajo en equipo y la realización de metas conjuntamente, se da la autoconfianza y autodirección advirtiéndose en su desempeño y seguridad al exponer temas y expresar sus ideas, han desarrollado habilidades para valorar su aprendizaje, aceptación de cambios, relacionan conocimientos previos con nuevos, aprendizaje holístico, en fin se observa una actitud congruente con los principios de la UNESCO. Modalidad disciplinaria: la modalidad disciplinaria ha permitido la adquisición del manejo de fundamentos, procedimientos e instrumentos propios de la disciplina del trabajo social para que los estudiantes estén preparados a resolver demandas planteadas en los problemas que se revisan en la modalidad tutorial y que en un futuro serán en su ejercicio profesional. Las habilidades que se han podido desarrollar son que el estudiante aplique adecuadamente principios y procedimientos requeridos para seleccionar, elaborar y aplicar conocimientos para resolver situaciones e interpretar los resultados derivados de su quehacer profesional. Modalidad integrativa: en la modalidad integrativa, se ha logrado que el estudiante pueda combinar la teoría, con las habilidades técnicas en la práctica profesional, que comprenda que los conocimientos, habilidades y capacidades que se desarrollan en las demás modalidades son parte de un todo que finalmente va a redundar en su desempeño. Modalidad de crecimiento personal: con la modalidad de crecimiento personal se han creado las condiciones para que los estudiantes desarrollen actitudes cooperativas, aprendan a conocerse a sí mismos, a resolver sus problemas personales en los diferentes escenarios; sean conscientes de sus capacidades y destrezas, y se propongan metas de acuerdo a sus intereses personales, académicos y profesionales, se debe admitir que en esta área el trabajo es más complejo, sin embargo, si ha permitido que los alumnos sean concientes de ellos mismos como individuos, que tienen que aprender a vivir y a crecer como personas para llegar a ser unos profesionistas de calidad. Conclusiones Se considera que el modelo de enseñanza centrado en el aprendizaje con sus cuatro modalidades es pertinente para la formación de trabajadores sociales, pues además de propiciar de manera consciente el trabajo colaborativo, permite que los estudiantes compartan la experiencia de aprendizaje, desarrollen habilidades de observación y reflexión, además de favorecer el acercamiento entre profesor-alumnos, alumnos-alumnos. Coincidimos que la formación de trabajadores sociales en el siglo XXI debe formar actores sociales que participen directamente con la resolución de necesidades de la sociedad, que busque nuevos campos de acción en donde su hacer y que hacer este enfocado al mejoramiento de las condiciones de vida de los pobladores. Por ello es que la Facultad de Trabajo Social busca, a través de la incorporación de innovaciones curriculares, responder a estas

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necesidades y formar profesionales activos, que puedan realizar un trabajo cooperativo, que sean concientes de su realidad social, y propositivos. El nuevo modelo de enseñanza es un modelo que en la práctica del trabajador social ha sido utilizado, por ello su implementación se considera pertinente. Los beneficios observados en los estudiantes son que éstos han logrado ponerse en contacto con problemas de actualidad, además de desarrollar habilidades que los prepararán para saber enfrentarse a una sociedad cambiante, ser un actor que pueda adaptarse a los escenarios emergentes, y siempre atento a los nuevos temas que surjan. Además de los logros tangibles como son la disminución de la tasa de deserción y reprobación que había sido alta en la Facultad y como resultado de ello un índice de retención de estudiantes más alto, creemos que esto lo podemos tener con el modelo implementado, ya que es una aproximación educacional al proceso del aprendizaje en donde el conocimiento de algo se construye sobre la base del entendimiento previo. También sigue un modelo de red en cuya conformación cada individuo participa activamente, en estrecho contacto con la realidad o el mundo exterior. Aprender a partir de problemas significa hacerlo a partir de la realidad y estimular al estudiante a que construya su propio conocimiento en continuo contacto con el contexto, y esto lo podemos ver actualmente en la Facultad ya que los alumnos investigan la información acerca del problema que se está revisando en tutoría y buscan documentarse con bibliografía pertinente, expertos e Internet lo que permite tener un mejor conocimiento del tema. Todo ello nos lleva a una reflexión que aprender conlleva la creación de una profesional capaz de establecer relaciones y estar siempre relacionando el objeto de estudio del trabajo social, que es el hombre en su situación social. Otro elemento importante de resaltar es que las instituciones educativas que se decidan por implementar un modelo centrado en el aprendizaje con modalidad tutorial, deberán estar preparadas con instalaciones e infraestructura adecuadas, personal capacitado y apoyo incondicional de sus autoridades para que ese modelo cuente con un contexto que le permita ser desarrollado en excelentes condiciones y alcance el éxito deseado.

Referências BRUER, J. T. Escuelas para pensar: una ciencia del aprendizaje en el aula. Barcelona: Paidós, 1995. DELORS, J. (Coord.) La educación encierra un tesoro. Informe a la Unesco de la Comisión Internacional sobre la Educación para el siglo XXI presidida por J. Delors. Madrid: Santiliana-Ediciones Unesco, 1997. NUÑEZ HURTADO, C. Para construir el futuro. In: SIMPOSIUM DE EDUCACIÓN Y VALORES, 7., 2001, México. Anais... México, 2001, p.23-6.

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JIMÉNEZ, S. A. P. et al.

JIMÉNEZ, S. A. P. et al. Inovações curriculares na formação universitária de trabalhadores sociais: uma investigação das mudanças e dos impactos de novos modelos de ensinoaprendizagem, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.303-12, mar/ago 2004. Investigam-se os avanços de inovações incluídas na reestruturação curricular da Faculdade de Serviço Social da Universidade de Colima, a partir da introdução de novas modalidades pedagógicas no currículo. Considera-se a importância de que, na formação de trabalhadores sociais, estes sejam vistos como atores sociais que participam da resolução de problemas da sociedade. Neste sentido, o corpo acadêmico da Faculdade analisou o processo e os resultados da implementação de um modelo de ensino centrado no aluno no período de 2001 a 2005, para sustentar a reestruturação curricular. Resultados obtidos confirmam a pertinência dos modelos adotados e indicam algumas exigências para consolidação das inovações curriculares implementadas. PALAVRAS-CHAVE: Educação superior; currículo; inovação; metodologia; trabalhadores sociais; formação profissional.

Recebido para publicação em 04/12/03. Aprovado para publicação em 14/07/04.

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Concepções de qualidade de ensino dos coordenadores de graduação: uma análise dos cursos de odontologia do Estado de São Paulo* Luciane Gabeira Secco 1 Maria Lúcia Toralles Pereira 2

SECCO, L. G.; PEREIRA, M. L. T. An analysis of the concept of the quality of teaching among course coordinators in the Sao Paulo schools of dentistry, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.313-30, mar/ago 2004.

New social demands and guidelines for of the brazilian dentistry school programs defy current teaching practices in these educational institutions. Within this context, we investigated the concept of the quality of higher education and the challenges faced in training professors, from the perspective of coordinators of undergraduate studies who work in the field of dentistry. The universe of this study consists of those Schools of dentistry within the State of Sao Paulo that also offer full graduate school programs leading to M.A. and PhD. degrees. Data was collected by means of a questionnaire with both closed and open-ended questions. Both quantitative and qualitative analyses were utilized to describe and discuss the data. Discussion of the material was based on Cunha’s analysis of the three dimensions of teaching practice: the political-structural dimension, the curricular dimension and the pedagogical dimension. This paper focuses exclusively on the pedagogical dimension. Results indicate that the postures which emerge on the pedagogical plane (methods of teaching and learning, students’ participation, tutoring) are extremely contradictory, with concepts that oscillate between traditional teaching and learning methods and innovative ones. This indicates the lack of a theoretical framework guiding essential aspects of practice at the pedagogical level. KEYWORDS: Higher education; dentistry; education dental; health education; faculty dental. As novas demandas sociais e as diretrizes curriculares brasileiras para os cursos de odontologia colocam desafios à prática docente nas instituições de educação superior. Nesse contexto, investigam-se as concepções de qualidade de ensino universitário de professores que atuam como coordenadores de graduação nas faculdades de odontologia do Estado de São Paulo que possuem pós-graduação stricto-sensu, para refletir sobre os desafios da formação docente na área. Como instrumentos de levantamento de dados utilizou-se questionário, contendo perguntas abertas e fechadas e entrevista semi-estruturada, organizada para possibilitar o aprofundamento da discussão. Os dados foram descritos e discutidos mediante análise quantitativa e qualitativa, a partir das três dimensões da prática docente analisadas por Cunha (1995): político-estrutural, curricular e pedagógica. Para este artigo, focalizaram-se apenas os aspectos da dimensão pedagógica, na qual os pontos que expressam posturas mais contraditórias referem-se a métodos de ensino-aprendizagem, participação do aluno e tutoria. Os resultados apontam para concepções de ensino-aprendizagem que oscilam entre modelos tradicionais e inovadores, sinalizando pontos de conflito em relação a paradigmas que se articulam diretamente a questões curriculares e político-estruturais. PALAVRAS-CHAVE: Educação superior; odontologia; prática docente; qualidade de ensino; docentes de odontologia.

*

Elaborado a partir de Secco (2003). Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Faculdade de Medicina, Unesp, Botucatu, SP. <lucianesecco@uol.com.br> 2 Professora Assistente Doutora, Departamento de Educação, Instituto de Biociências, Unesp, Botucatu, SP. <luciatoralles@terra.com.br> 1

1 Rua Araújo Leite, 37-77 Aeroporto - Bauru, SP 17.012-432

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SECCO, L. G.; PEREIRA, M. L. T.

Introdução A formação didático-pedagógica do professor de odontologia, até recentemente pouco questionada, começou a ganhar espaço no debate acadêmico, com as novas demandas sociais do mundo globalizado e informatizado. As inúmeras transformações na realidade social, somadas à presença das novas diretrizes curriculares brasileiras (Brasil, 2002), têm gerado demandas em termos de pesquisas e estudos voltados para a qualidade da educação superior, exigindo que se participe desse debate com uma postura crítica em relação à concepção de qualidade em educação, considerando que um dos desafios nos países latino-americanos ainda é garantir a cidadania. A implementação dos processos avaliativos e o impacto das medidas implantadas para avaliar o desempenho dos alunos (Provão) trouxeram questionamentos sobre o desempenho didático-pedagógico do professor. A busca de caminhos para desenvolver a profissionalização da docência universitária começou a ser um desafio nas diferentes áreas do conhecimento a partir do começo deste século. Nesse contexto, em que a profissionalização docente visa “dar conta de uma nova perspectiva epistemológica, onde as habilidades de intervenção no conhecimento sejam mais valorizadas do que a capacidade de armazená-lo” (Cunha, 1999, p.8), alguns estudos (Leite et al., 1998; Cunha, 1995) têm mostrado que as mudanças e inovações que desafiam a qualificação do corpo docente nos cursos de graduação não são percebidas da mesma forma nas diferentes áreas do conhecimento. Especificidades da área, relativas a uma epistemologia (lógica do conhecimento em odontologia), e características da profissão, em termos de valores construídos e de espaços de poder definidos na estrutura social e política, não podem ser desconsideradas quando se pensa em um projeto de formação docente para a educação superior. A docência universitária, como observa Morosini (2000, p.19), “é exercida por professores que não têm uma identidade única. Suas características são extremamente complexas, como complexo e variado é o sistema de educação superior brasileiro”. Algumas experiências voltadas para a formação dos professores de odontologia, sobretudo em relação ao desempenho em sala de aula, têm sido realizadas e implementadas, entre elas cursos de atualização, sem, contudo, associar uma discussão mais profunda sobre as diferentes dimensões da prática, restringindo-se, basicamente, a treinamentos voltados para mudanças técnicas. Ainda que não se possa negar a importância do aperfeiçoamento dos métodos de ensino-aprendizagem e da capacitação técnica para introduzir as novas tecnologias nesse processo, a formação docente, no contexto da discussão sobre qualidade pautada por valores éticos e bases humanísticas, exige, como observa Cunha (1995), ultrapassar as camadas mais técnicas para perceber as diferentes dimensões implicadas na prática educativa: 1. os aspectos político-estruturais, provenientes da estrutura de poder que as profissões ocupam no cenário profissional, revelando valores anteriormente definidos; 2. os aspectos epistemológicos, relativos à especificidade da

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CONCEPÇÕES DE QUALIDADE DE ENSINO ...

produção e apropriação do conhecimento na área, definindo campos de saberes na organização curricular; e 3. os aspectos pedagógicos, relativos ao trabalho com o conhecimento na relação professor/aluno/procedimentos, tendo em vista o projeto pedagógico do curso. Arcieri (2001), em estudo sobre o perfil profissional do professor cirurgião-dentista, desenvolvido na faculdade de odontologia da Unesp, campus de Araçatuba, observou que a definição do perfil do profissional a ser formado é a forma mais racional para a organização de todo o processo de formação, incluindo a formação docente, embora esta visão, freqüentemente, seja pautada por um alto nível de requisitos técnicocientíficos, sem qualquer ênfase na formação humanística. Cunha (1992) questiona a visão de formação apoiada apenas no perfil, pois este não inclui, necessariamente, a discussão de paradigmas que envolvem as diferentes concepções de ensino-aprendizagem. Há diferentes paradigmas de ensinar e aprender e por trás de qualquer paradigma há uma perspectiva conceitual de ensino e de aprendizagem que precisa ser definida e pactuada pela comunidade acadêmica. Perri de Carvalho (2001), ao analisar o perfil dos docentes dos cursos de odontologia, relata que os professores, até recentemente, “eram os profissionais bem sucedidos e disponíveis para ensinarem nas faculdades” (p.72). Considera que cursos de educação continuada voltados para desenvolver processos pedagógicos podem trazer efetiva colaboração para o docente das diferentes áreas. Moraes et al. (2001), em estudo sobre as principais barreiras do processo ensino-aprendizagem na ótica de professores e alunos do curso de odontologia da Universidade Federal Fluminense, mostraram que os alunos identificaram barreiras no relacionamento com os professores, citando: linguagem inadequada, didática deficiente, falta de interesse na aprendizagem e ausência de diálogo. Os professores relataram dificuldades no processo de ensino-aprendizagem, entre as quais: falta de integração entre disciplinas, conteúdos programáticos distantes das necessidades reais dos alunos e desmotivação. Graça (2001), ao estudar a percepção do aluno sobre sua participação no processo ensino-aprendizagem, mediante questionário aberto dirigido a 103 alunos das três escolas de odontologia do Rio de Janeiro (uma particular e duas públicas), concluiu que “há necessidade, na formação do docente, de cursos de pós- graduação que contribuam para sua desenvoltura didática” (p.66). Algumas experiências têm sido desenvolvidas com a preocupação de discutir e analisar a qualidade das práticas de ensino-aprendizagem na odontologia, apontando que os desafios são muitos, tendo em vista as diretrizes curriculares e a abrangência dos serviços de atendimento para a população na área. É, portanto, dentro deste contexto, que aponta desafios e contradições, que se propõe analisar as concepções de qualidade de ensino universitário de coordenadores de curso em odontologia do Estado de São Paulo em relação aos aspectos pedagógicos, procurando identificar tendências e conflitos que possam contribuir para pensar um projeto de formação didático-pedagógico

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SECCO, L. G.; PEREIRA, M. L. T.

do docente em odontologia pautado pela autonomia e problematização da prática docente. Qualidade no ensino superior No ensino superior, a idéia de qualidade começa a ser amplamente discutida desde o começo da década de 1990, associada aos processos avaliativos. Teorias organizacionais de administração universitária concebem qualidade como um conjunto de fases do tradicional ciclo de qualidade: planejamento, ação, avaliação e promoção. Entretanto, no final da década de oitenta e durante a década de noventa, foi registrado o desvirtuamento da concepção de qualidade como conjunto de fases, para a predominância da fase da avaliação. (Morosini, 2001, p.90)

Numa revisão das diferentes concepções de qualidade que têm influenciado o cenário educacional, Morosini (2001) destaca três concepções originadas em experiências internacionais, que têm servido de modelo à realidade brasileira: isomorfismo, diversidade e eqüidade. A concepção de qualidade articulada ao conceito de isomorfismo e padronização reflete-se em práticas de avaliação que se expressam no ranqueamento e em programas de ensino voltados à “empregabilidade” e articulados à lógica de mercado. Dentro desta visão, Harvey (1999), pesquisador do Center for Research in Quality for Higher Education3, defende a qualidade do ensino superior como a possibilidade de preparar o futuro profissional para o mundo do trabalho, ligado à idéia de empregabilidade (employability), numa relação direta com o mercado. Propõe organizar cada curso de modo a possibilitar ao graduando apresentar os atributos que os empregadores antecipam como necessários para o efetivo funcionamento das suas organizações. Com essa concepção, Harvey defende uma formação profissional orientada pelo mercado — tendência forte em algumas áreas do conhecimento, entre elas a odontologia. A segunda concepção de qualidade está ligada ao conceito de diversidade (instituição, curso, região, cultura etc), buscando não mais a imposição de um padrão único, “mas o fortalecimento de princípios e ações ‘que deram certo’ e a disseminação de tais modelos para vencer os desafios de padrões insuficientes” (p.96). Dentro desta visão, sinônimo de respeito às especificidades, fortemente defendida pela UNESCO, tem sido enfatizada a liberdade para definir procedimentos de avaliação adequados ao contexto, região, área, instituição, apoiados nos princípios da autonomia da instituição responsável. A terceira concepção de qualidade está relacionada à eqüidade. É uma concepção pouco reconhecida, que vem ganhando espaço em território europeu, vinculada a um projeto social e educativo comprometido com a cidadania, inclusão e idéia de avaliação não punitiva, buscando a qualidade dentro de uma visão crítico-transformadora de educação. Carrega implícita a idéia defendida por Balzan & Dias Sobrinho (1995) de que o conhecimento precisa ser pensado como forma produtiva no contexto da realidade social e,

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Centro da Universidade da Inglaterra Central, Birmingham: centro elaborador de pesquisas sobre o ensino superior.


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4 No Ocidente, este conceito enraizou-se numa abordagem de planejamento estratégico (Morosini, 2001).

também, como instrumento de cidadania e transformação social, tendo em vista a expansão para toda a população. Em seu estudo de revisão sobre qualidade, Morosini (2001) aponta para o desafio de a comunidade acadêmica brasileira buscar modelos de análise da qualidade na educação superior a partir de perspectivas intrínsecas, extrínsecas e politicamente corretas, em referência à comunidade acadêmica, ao mercado e ao Estado. Ressalta, ainda, uma tendência à incorporação pouco crítica, pelo campo da educação brasileira, da idéia do benchmarking4, muito utilizado nas empresas para buscar o constante aprimoramento de um determinado produto, visão que nem sempre é adequada às questões da educação, porque estas, fundamentalmente, são apoiadas em processos. A pseudo-familiaridade que todos parecem ter com a palavra qualidade e sua aplicabilidade no cotidiano acaba oferecendo uma diversidade de conceitos e princípios. A palavra qualidade possui uma conotação positiva, mas qualidade é um conceito ideológico; por isso é, muitas vezes, “uma forma de pressionar na direção do consenso sem permitir a discussão” (Contreras-Domingos, 1997, p.12). No contexto das instituições de educação superior, a discussão sobre qualidade aparece menos relacionada à busca de parâmetros definidores de competências no âmbito técnico, social, político, ético e filosófico dos cursos, e mais ligada à avaliação, sobretudo por pressões diretas e/ou indiretas dos órgãos governamentais, por meio dos processos avaliativos. Por isso, a discussão sobre qualidade ainda é um desafio. Para Rios (2001), o conceito de qualidade inclui as diferentes dimensões do processo educativo mais amplo, que toma a realidade social e o compromisso que o projeto pedagógico de cada curso assume com a produção do conhecimento, a cidadania, inclusão e transformação social dentro de uma visão crítico-transformadora. Assim, definir qualidade significa pensar de forma abrangente e multidimensional, mas, também social e historicamente situado, a partir de uma realidade específica e de um contexto concreto. No contexto brasileiro, vários pesquisadores têm-se dedicado a discutir qualidade na educação superior. Balzan (1995), referindo-se à discussão de qualidade nas faculdades de odontologia, lembra que o profissional formado precisará de sólidos conhecimentos técnicos na área, além de ser portador de uma cultura geral que lhe permita transitar entre áreas afins com certa facilidade. Para o autor, existe a necessidade de se compreender a qualidade mediante processos intersubjetivos que incluem critérios sociais, políticos, éticos e filosóficos, concernentes às dimensões humanas. A dimensão técnica é um conjunto de processos que inclui uma maneira ou habilidades de executar ou fazer algo; não pode ser desvinculada de outras dimensões, sem o risco de reduzi-la a uma visão tecnicista, que acentua a fragmentação da prática profissional. Em odontologia, a discussão de qualidade traz o desafio de ultrapassar a dimensão essencialmente técnica da prática odontológica para perceber as diferentes dimensões da prática odontológica: não apenas os aspectos técnicos da prática que, como observa Garrafa (1993), alcançaram nível de excelência. O desafio na área não é técnico; implica construir caminhos para

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incluir dimensões humanas, como observa Iyda (1998), deixadas de lado ao definir seu objeto de prática na boca, para perceber o homem enquanto ser histórico no centro da prática odontológica. Desde o início da década de 1990, inúmeras tentativas de medir a qualidade são detectadas no meio educacional brasileiro, em particular na educação superior, predominando a estratégia da auto-avaliação (Brasil, 1996). Esses processos avaliativos, para parte da comunidade acadêmica da área de odontologia5, têm representado um impulso à discussão sobre qualidade e à busca de mudanças e inovações no ensino. Embora qualidade e avaliação estejam intimamente articuladas, houve, nos últimos anos, uma predominância da discussão sobre avaliação, com extenso levantamento de dados, sem que estes fossem utilizados para reverter em melhoria da qualidade dos cursos ou das instituições de educação superior. Se hoje, como bem ressaltam Dias Sobrinho & Balzan (1995), no setor público já se considera a avaliação necessária para que a universidade cumpra o princípio da transparência, da ética na prestação de contas à sociedade, fortalecendo a instituição pública diante das contínuas ameaças de privatização, no setor privado pode abrir caminhos para problematizar a qualidade dos cursos e o alcance do serviço educacional no contexto da realidade social, lembrando que não se trata de fundar o conceito de qualidade sobre a equação produto/consumidor. A qualidade educacional ultrapassa as camadas técnicas e científicas atingindo os mais profundos e diferenciados sentidos filosóficos, sociais e políticos. (Dias Sobrinho, 1995, p.34)

A pesquisa: abordagem teórico-metodológica Trata-se de pesquisa de caráter exploratório, descritiva e analítica, apoiada em abordagem quanti-qualitativa. A partir de questionário (contendo questões abertas e fechadas) e entrevista, investigam-se concepções sobre qualidade de ensino de coordenadores de graduação de cursos de odontologia do Estado de São Paulo. O grupo de coordenadores que integra a pesquisa foi organizado com base em dois critérios: atuar em cursos de graduação em odontologia situados no Estado de São Paulo, em escolas que apresentam cursos de pósgraduação stricto-sensu; e aceitar participar da pesquisa. O cenário do trabalho é o Estado de São Paulo onde, até o momento de encerramento da fase de levantamento de dados da pesquisa, por meio de questionário (janeiro de 2002), havia 14 cursos com programas de pós-graduação strictosensu. As 14 escolas identificadas foram convidadas a participar da pesquisa, e 13 coordenadores aceitaram responder ao questionário. O critério utilizado justifica-se pelo fato de essas instituições serem formadoras da maior parte dos mestres e doutores do país e, por isso, consideradas parâmetros nacionais do ensino de odontologia, apresentandose como modelos de referência para possíveis inovações de ensino. Busca-se também articulações entre a pós-graduação e a graduação, apontando-se a pós-graduação stricto-sensu como um espaço privilegiado para

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5 Dados levantados em entrevista realizada com os coordenadores de Graduação.


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problematizar os desafios da formação docente na área. A opção por trabalhar com os coordenadores deve-se à dimensão de poder político que eles têm sobre os padrões de qualidade universitária e por estarem diretamente envolvidos com a elaboração de currículos, uma vez que as Coordenações dos Cursos de Graduação, desde a Reforma Universitária de 1968, representam um colegiado, com responsabilidades definidas legalmente, sobre os assuntos ligados ao ensino. Pode-se dizer que “a qualidade do profissional formado pela universidade é da competência direta das coordenações de cursos” (Sabadia, 2000, p.62). Os coordenadores são legalmente representantes da proposta de formação profissional em seus cursos, embora, na prática, este poder nem sempre se encontre em suas mãos. Cabe ressaltar que este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla (Secco, 2003), que envolveu uma grande quantidade de dados para análise, levantados por meio de questionário e entrevistas (gravadas e transcritas. Os dados aqui analisados são relativos aos aspectos pedagógicos: o trabalho com o conhecimento na relação professor-aluno, os procedimentos de ensinoaprendizagem, recursos etc., tendo em vista a articulação com o projeto pedagógico do curso. Os dados agrupados, a seguir, foram interpretados com base em estudos de Minayo (1994), buscando identificar categorias de análise significativas ao contexto da formação profissional em odontologia e associando, nesse processo de análise, o olhar das pesquisadoras e a fala dos coordenadores, mediados pelas reflexões teóricas sobre educação, formação e qualidade na educação superior que fundamentaram o estudo. Resultados e discussão Das 13 escolas que participaram da pesquisa, cinco são da rede privada e oito são públicas (uma municipal e sete estaduais), predominaram escolas públicas, sendo que mais da metade delas tem tempo de funcionamento superior a quarenta anos, o que já aponta para o peso do modelo tradicional de ensino na odontologia. Os dados permitem observar, ainda, que se trata de um grupo de professores com algum tempo de experiência na docência e na instituição, 76,92% deles com idades que variam entre 36 e 65 anos. Não se trata, portanto, de professores em fase inicial de carreira docente, mas de um grupo do qual 1/3 possui idade superior a 46 anos. Se utilizarmos o estudo de Huberman (1992) sobre as etapas da carreira docente, observamos que se trata de um grupo de docentes em período próximo à aposentadoria. Estes dados podem ser significativos para a compreensão das concepções desses coordenadores em relação à qualidade do ensino, uma vez que o estudo referido, ao analisar as experiências de professores em diferentes momentos da carreira docente, mostra que esses momentos tendem a caracterizar-se por experiências e motivações também diferentes no que se refere ao enfrentamento das demandas relativas às mudanças curriculares e aos processos de ensino-aprendizagem. Dos 13 coordenadores participantes da pesquisa, 84,62% atuavam em regime de trabalho de tempo integral, sendo 61,54% em instituições públicas, confirmando a tendência do tempo integral para os professores dessas

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instituições. Nas escolas particulares apenas uma pequena parcela de professores trabalhava em tempo integral. Entre os coordenadores que participaram do estudo, 61,54% exerciam a função de coordenador há menos de cinco anos, ressaltando-se, contudo, que 92,31% deles atuavam como docentes há mais de 12 anos, o que permite inferir que há uma familiaridade desses docentes/coordenadores com as questões do ensino nas suas escolas, condição relevante para que as respostas obtidas possam ser consideradas representativas dentro do universo selecionado. No contexto das escolas estudadas foi possível constatar que os processos de avaliação implantados e as diretrizes curriculares têm gerado um movimento de mudanças e muitos desafios à comunidade acadêmica da área de odontologia tanto em termos curriculares (epistemológicos) como pedagógicos, embora algumas mudanças sejam questionadas por alguns coordenadores. Os relatos apontam algumas preocupações: Para conseguir melhorar o desempenho no Provão, várias escolas fizeram recuperação utilizando a disciplina de odontologia preventiva como nome fantasia. Eu não concordo... O Provão não pode ser parâmetro para medir qualidade; é somente uma proposta para ajudar a recuperar as faculdades em dificuldades. (relato de entrevista)

Pelos relatos dos entrevistados, a mobilização por mudanças não é, para grande parte das escolas, um movimento impulsionado pela discussão de qualidade do ensino. Representa mais uma necessidade de responder, imediatamente, à pressão da avaliação e aos problemas ligados à empregabilidade, do que uma resposta gerada por reflexão mais consistente em relação à concepção de ensino e à qualidade dos processos formativos na área. Mas as mudanças aparecem, no plano curricular e no pedagógico, sobretudo no curricular, em que houve um esforço para adequar-se às novas diretrizes curriculares, especialmente em relação aos aspectos materiais e à titulação dos professores. Tudo isto ainda não pode ser analisado como um movimento de impacto na melhoria da qualidade do ensino, se analisarmos, longitudinalmente, as notas obtidas pelas escolas no Exame Nacional de Cursos (Brasil, 2002) — aspecto reforçado por um coordenador: Algumas faculdades de odontologia tentaram mudar, contratando profissionais de renome, a mudança foi tão traumática que, mesmo tentando voltar às suas características originais não conseguiram estabelecer um rumo, apresentando péssimo conceito até hoje. (relato de entrevista)

Os desafios são muitos e, embora as escolas particulares sejam aquelas que respondem mais rapidamente às demandas por mudanças, parece ser nas escolas públicas que a discussão sobre essas mudanças ganha maior consistência e coerência em termos de propostas. Para que se possa visualizar os resultados obtidos, no campo pedagógico,

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agrupamos a seguir, dados que se mostraram significativos, relacionados ao trabalho do professor em sala de aula, especialmente nas concepções sobre planejamento e metodologia, tutoria, avaliação do ensino, avaliação da aprendizagem, atribuições do professor, desafios metodológicos, relação professor-aluno e participação dos alunos. Planejamento e metodologia de ensino No bloco sobre planejamento e metodologia de ensino, há uma tendência à concordância dos coordenadores em relação à importância desses aspectos para a qualidade do ensino. A discordância mais evidente aparece apenas em questões que exigem, do professor, assumir ou não um posicionamento de maior proximidade em relação ao aluno. Todos os coordenadores (100%) consideraram importante ou muito importante “elaborar programas”, “discutir os programas com os colegas” e “disponibilizar os critérios de avaliação para os alunos” — aspectos que, embora já estabeleçam um consenso em termos de discurso, nem sempre expressam uma mudança da prática do professor no cotidiano de seu trabalho. Os relatos de coordenadores apontam as dificuldades que podem representar este assunto no contexto da prática de um curso: O docente reconhece o problema. Muitas vezes, perguntando-se aos coordenadores e aos docentes como é a proposta dele para a disciplina, eles dizem conhecer o Projeto Pedagógico da escola, mas não sabem como interagir com ele em sua disciplina. Estamos engatinhando quanto a este aspecto, e dentro desse processo de conscientização, a avaliação é uma alavanca ... “e não é só uma fachada” porque é plenamente verificável.... Foi a partir da avaliação que começaram a ocorrer a maior parte das mudanças. (relato de entrevista)

Quase a totalidade dos coordenadores (92,31%) considerou importante e muito importante o “cumprimento de todos os conteúdos” e a “incorporação de novas tecnologias no ensino”. Ainda assim, o relato a seguir ajuda a compreender como as discussões mais elaboradas sobre as questões pedagógicas não atingiram o coletivo dos cursos: Boa parte dos docentes não recebeu nenhuma formação na área didático-pedagógica e deixam a desejar... Eles vão na seqüência lógica dos conhecimentos, não incorporam as novas tendências pedagógicas que, a partir do Provão, se tornaram um desafio... Foi estabelecida uma avaliação mais consistente, que leva em consideração a organização didático-pedagógica e que vocês incorporam aqui (neste questionário utilizado) .... apontando para aquilo que poderia ser adequado no ensino de odontologia... (relato de entrevista)

Neste bloco de perguntas, as respostas apresentam um alto índice de concordância, com quase unanimidade nas escolas privadas. Essa

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concordância aponta alguma dispersão quando se introduz a variável aluno no contexto: 15,38% não valorizaram a “adaptação do programa de ensino às características dos alunos”, considerando pouco ou nada importante para a qualidade — dado que aparece entre escolas públicas e privadas e entre coordenadores com diferentes tempos na carreira. Parece tratar-se de assunto ainda pouco discutido nas faculdades de odontologia e, quando presente, o processo de incorporação das discussões conceituais é lento e diretamente relacionado à pressão que a avaliação exerce nos cursos, afirma um coordenador. ... A mudança é lenta... o professor é autônomo dentro da sala de aula, mas a ele são ofertadas várias opções para assimilar, aprender e conhecer as novas práticas de ensino e implementálas. O docente da Universidade tem que estar acompanhando o que está acontecendo no contexto acadêmico e será cobrado por isso. A cobrança não acontecerá na hora em que ele estiver praticando, e sim na hora da avaliação da disciplina ou na hora da avaliação do curso. (relato de entrevista)

Tutoria Para falar de tutoria utilizamos o conceito de Batista (1998, p.122): uma metodologia na qual o professor no papel de tutor “deve estimular o processo através de perguntas, sugestões e informações; demonstrar apreço, fazendo o grupo refletir sobre o caminho que está seguindo”, não devendo mais ser encarado como responsável pela transmissão do conhecimento. Assim, sobre a tutoria, 30,77% dos coordenadores não a consideraram importante para a qualidade do curso. A idéia de trabalhar em sala de aula com pequenos grupos de alunos ainda é pouco desenvolvida nos cursos de odontologia, ao contrário de outras áreas da saúde (medicina, enfermagem) que vêm discutindo amplamente e experimentando práticas apoiadas na tutoria6. A análise dessas respostas mostra que, apesar de a dispersão das respostas aparecer entre escolas públicas (três) e privadas (uma), há maior preocupação com o tema nas escolas privadas, talvez porque nelas a satisfação do aluno seja muito valorizada. A idéia de tutoria foi definida por alguns como “somente ouvir os problemas dos alunos e ajudá-los nos assuntos acadêmicos”. Aparece para outros como um conceito vago, pouco discutido no contexto universitário da área: O conceito de tutoria ainda é para alguns docentes um conceito muito vago, porque nós temos tutoria de apoio psicológico e tutoria de incentivo à participação na vida acadêmica e em nosso grupo especial de treinamento (PET- Programa Especial de Treinamento de incentivo à pesquisa). A tutoria como pequenos grupos existe na nossa escola: para discutir a pesquisa, a importância da pesquisa para uma dada disciplina, levando o aluno a assumir o papel principal e ser o ator do seu estudo. Na nossa proposta de reforma curricular, os alunos, em sua maioria,

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Sobre essas experiência ver: Cyrino, 2002.


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reclamaram da forma clássica do ensino e passaram a participar do Projeto Pedagógico por meio da representação discente em todos os departamentos, estabelecida regimentalmente. Isto também ocorre naquelas escolas em que os professores são mais participativos, utilizando seminários e simpósios. (relato de entrevista)

Pode-se observar que vivemos um momento de transição, em que os professores têm sido desafiados a assumir um novo papel na relação entre aluno e saber, ainda que não tenham clareza desse papel, nem estejam preparados para assumi-lo. Talvez, como observa Nóvoa (2000), precisamos caminhar no sentido de privilegiar como papel fundamental do professor não tanto a transmissão do saber (que está hoje acessível ao aluno), mas a capacidade de estimular o aluno no processo de reflexão, construção e reelaboração desse saber. Avaliação do ensino O bloco sobre avaliação da prática do professor traz um alto índice de concordância entre os coordenadores, com pequena discordância quando, novamente, aparece o aluno como elemento a ser considerado. Foi unânime que a avaliação do ensino seja centrada em quase todos os elementos implicados na prática pedagógica (conteúdos, objetivos, métodos, professor, alunos), com 100% de concordância em torno da avaliação do ensino centrada no professor, dado que pode apontar, ainda, para a força da visão tradicional no processo de avaliação do ensino. Contudo, pelas respostas, ficou nítida a percepção dos coordenadores sobre a complexidade da avaliação, exigindo que se considere diferentes aspectos do processo de ensino-aprendizagem. Avaliação da aprendizagem No bloco de questões que compõe a categoria avaliação da aprendizagem, a “capacidade de memorização de conteúdos” parece ser o maior conflito para os coordenadores. Postura compreensível no contexto do ensino de odontologia, marcado por práticas de ensino-aprendizagem tradicionais, sem uma discussão mais elaborada do processo de construção do conhecimento. Por esse motivo, a pergunta sobre a “capacidade memorística do aluno” acabou dividindo os coordenadores, mostrando mais um ponto de conflito no ensino de odontologia: 30,77% consideraram importante ou muito importante esta habilidade para a qualidade do ensino, 46,15% indicaram ser pouco ou nada importante, e 23,07% não responderam ou não manifestaram opinião. De qualquer forma, cabe observar que os maiores índices ficaram entre pouco importante e importante, o que já aponta uma tendência a relativizar o papel da memorização no ensino e buscar práticas inovadoras. Na análise destas respostas, no contexto das escolas públicas e privadas, observamos que a maior parte dos coordenadores que considerou importante ou muito importante a capacidade memorística, está nas escolas públicas, mostrando uma tendência, no espaço público, a preservar o modelo de ensino tradicional, apoiado na memorização, como observaram

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alguns coordenadores. Nas escolas privadas houve uma divisão equivalente entre importante e pouco importante, com um coordenador que não emitiu opinião. Estes dados parecem expressar a polêmica que já começa a fazer parte do debate sobre qualidade do ensino na área de odontologia. O Provão.... quebrou algo que estava muito bem estabelecido (a simples capacidade memorística do aluno). Nele são feitas perguntas que exigem raciocínio lógico e que exigem, do aluno, reflexão. (relato de entrevista)

Atribuições do professor O bloco sobre as atribuições do professor universitário apresenta algumas divergências nas respostas dos coordenadores, principalmente na pergunta que se refere ao papel docente em relação à transmissão dos conteúdos, assinalada por 69,23% dos coordenadores como um aspecto nada ou pouco importante para a qualidade do ensino. Considerando que este dado complementa dados sobre avaliação da aprendizagem, quando os coordenadores posicionaram-se em relação à importância ou não da capacidade memorística do aluno, aqui se confirmam dados anteriores, em que quase 1/3 dos coordenadores ainda considera importante ou muito importante um ensino apoiado na “transmissão dos conteúdos”. Contudo, os dados apontam que a questão da transmissão já aparece relativizada, com 2/3 dos coordenadores considerando pouco ou nada importante. Pode-se perceber, assim, um espaço favorável a essa discussão, apontando para uma tendência de ruptura com o paradigma da transmissão. Pela análise realizada constata-se que os coordenadores das escolas particulares estão divididos e vivem conflitos sobre a questão, o que pode ser observado no relato de um deles: O professor está percebendo que da forma clássica, na qual ele está só transmitindo informações, fazendo provas tradicionais, o aluno aprende mas, de modo geral, não está satisfeito ... o aluno quer depois discutir o assunto com o professor.... (relato de entrevista)

Desafios metodológicos As principais necessidades apontadas pelos coordenadores foram: articular teoria-prática e garantir uma formação generalista (idéias apontadas pela maior parte dos sujeitos). O relato de um coordenador confere uma dessas preocupações e, ao mesmo tempo, as dificuldades que a articulação teoria e prática traz aos professores, no contexto da odontologia: Nós até tivemos as reformas curriculares solicitadas pelos alunos que reclamaram da falta de entrosamento entre as disciplinas básicas e profissionalizantes, o que está já sendo buscado (a articulação com disciplinas profissionalizantes). Os docentes devem participar nas disciplinas básicas para promover a interação, a começar por materiais dentários, no primeiro ano,

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com as propriedades gerais e depois no terceiro ano, integrando com aquele material que se vai utilizar, o que está sendo feito, também, na Histologia e na Fisiologia, mas é tudo muito difícil... (relato de entrevista)

Além dessas idéias assinaladas pela maioria, apareceram respostas como: incluir a aprendizagem baseada em problemas (ABP), buscar a integração de conhecimentos, implementar a extensão, buscar a promoção da saúde, valorizar práticas de prevenção. Outro conjunto de respostas apontou para uma distribuição da relação professor-aluno mais adequada, avaliações justas e reflexivas, utilização de recursos didáticos adequados, valorização de aulas práticas com atualização dos programas e clareza de metas. O que se observa, no entanto, é que não há consenso nem uma postura conceitual sobre as necessidades. Tudo aparece solto, fragmentado, na fala dos participantes da pesquisa. Relação professor/aluno Mais da metade dos coordenadores (54%) considerou adequado para as aulas práticas entre dez e vinte alunos; 46% deles considerou adequado menos de dez alunos. Para aulas teóricas, 50% dos coordenadores responderam “menos de vinte e cinco alunos”; 36% responderam “entre vinte e cinco a cinqüenta alunos”; 7% responderam “entre cinqüenta e setenta e cinco alunos”; outros 7% responderam “cem ou mais alunos”. Houve uma tendência a considerar importante o trabalho em pequenos grupos nas aulas práticas, com uma nítida divisão em relação às concepções sobre aulas teóricas, o que ainda aponta a força do modelo tradicional de ensino no contexto estudado: poucos alunos nas aulas práticas e muitos alunos nas aulas teóricas, uma vez que o que está em jogo é a transmissão. Participação dos alunos em atividades pedagógicas Como já observado, quando se focalizou o aluno, as dispersões apareceram mais nitidamente. O trabalho partilhado entre professor e aluno mostrou divergências bem mais evidentes nas respostas dos coordenadores. A possibilidade de os alunos participarem no processo de “formulação dos objetivos” do curso divide completamente os coordenadores: 46,15% consideraram importante e muito importante e 46,15%, pouco ou nada importante a participação do aluno nesta dimensão da prática pedagógica. Estes dados encontram-se tanto nas respostas de coordenadores de escolas privadas como públicas. Também sobre a “participação na maneira de avaliar”, fica visível a divergência de concepções: 53,84% consideraram importante e muito importante, 38,46% pouco ou nada importante. Semelhante divergência ocorre com a “participação dos alunos na seleção dos recursos”. Há participação do aluno nos cursos de odontologia, como se pode observar no relato de um coordenador, porém esta parece existir apenas no contexto da avaliação, expressando-se em relação ao que não concorda:

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A estrutura que nós temos favorece uma participação do aluno em todos os departamentos; qualquer situação desfavorável, quanto à parte pedagógica nos é comunicada. A Comissão de Graduação cuida dos aspectos didáticos, que eles sejam trazidos e discutidos, com avaliação continuada, através das demandas online. Estes aspectos retornam para o presidente da Comissão de Graduação, para o chefe do departamento e para o docente. Além disto, temos recebido demandas dos alunos que buscam alterações e redirecionamento da atividade docente, sugerindo cursos na área didática. (relato de entrevista)

Pelo relato, observa-se que há, da parte do aluno, a demanda por uma formação didático-pedagógica dos professores — fato que pode impulsionar um movimento de mudança no contexto das escolas particulares, tendo em vista a tendência a satisfazer as demandas dos alunos. Por outro lado, a idéia de participação do aluno ainda é pouco discutida enquanto postura conceitual sobre o ensino. O curso e os desafios atuais Na síntese que cada coordenador fez sobre o curso em que atua, mediante pergunta aberta, a maior parte considerou que seu curso está preparado para enfrentar os desafios atuais. Apenas um coordenador declarou estar parcialmente preparado (escola com nota C no Exame Nacional de Curso em 2002); e um coordenador não respondeu a nenhuma das perguntas abertas. As justificativas, na maioria das respostas, mostram tendência a depositar grande parte da responsabilidade da qualidade do curso na infra-estrutura (mobiliários, biblioteca, laboratórios etc), negligenciando fatores de ordem pedagógica, epistemológica e políticoestrutural. Ainda assim, apareceram visões que apontam para a percepção da complexidade do processo de ensino: “o nosso curso está preparado porque apresenta uma infra-estrutura adequada, docentes capacitados e um projeto pedagógico para responder a estes desafios” (registro de resposta aberta). Outros coordenadores buscam argumentos à qualidade do ensino em seus cursos, na lógica do mercado, na valorização da pesquisa ou na qualificação docente, dizendo que seus cursos estão preparados porque: Estamos preparando os nossos alunos para o mercado de trabalho e ampliando seus conhecimentos para a área de prestação de serviços. Temos um corpo docente envolvido com pesquisa e publicações internacionais e alunos envolvidos com pesquisa desde a graduação. Parte do nosso corpo docente está adequando-se aos desafios ... Há, ainda, a necessidade de conscientização de todos os professores. (registros de respostas abertas)

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Foi assinalado por alguns coordenadores que a política universitária, muitas vezes, dificulta a resposta do corpo docente a esses desafios, evidenciando a complexidade do trabalho acadêmico. De qualquer forma, aqui não se observaram tendências ou consensos, as respostas foram soltas, pontuais e pouco articuladas. A questão dos métodos com foco no desenvolvimento dos processos reflexivos do aluno, embora apareça, sugere ser uma discussão que ainda tem pouco espaço no cotidiano acadêmico na área. O modelo tradicional ainda marca o contexto de ensino nos cursos de odontologia. Nas palavras de um coordenador ainda há muito o que fazer neste campo: “o caminho é longo, tem que estar formando o formador, depois o aluno”. Considerações finais A qualidade, em termos profissionais, depende de ações competentes, não somente para indicar e realizar habilidades e saberes que respondam a problemas específicos, mas para repensar o próprio papel do profissional face aos problemas da realidade social, em um movimento de ação e reflexão. Nesse movimento, dialético, em que novos valores são identificados na sociedade, colocam-se permanentes desafios à comunidade acadêmica em termos de caminhos que respondam às demandas da formação profissional em suas diferentes dimensões da prática. A necessidade de pensar uma concepção de educação transformadora coloca novas exigências em termos da formação docente. De um lado, é preciso perceber que a formação odontológica tem se revelado insuficiente e inadequada para expandir a saúde bucal à maioria da população, com pequeno impacto social em programas públicos e coletivos. Ainda que a clínica possa suprir as necessidades individuais e privadas com qualidade técnica reconhecida, há um desafio em termos de abrangência: existe uma distância entre o ensino de odontologia e a perspectiva de universalização da saúde bucal perante as demandas da realidade brasileira. De outro lado, a crise de prestígio da profissão — o status do cirurgiãodentista na organização social —, embora velada, aparece nas falas dos coordenadores. A falta de uma formação mais politizada na área (Secco & Pereira, 2004), que considere os desafios da realidade brasileira e problematize o imaginário profissional que se perpetua nos cursos de odontologia, dificulta a participação política dos profissionais no espaço público e o desenvolvimento de políticas de atendimento que respondam às demandas presentes na realidade brasileira em termos de saúde bucal. Se podemos constatar que foi na dimensão pedagógica dessa formação (na relação professor, aluno, conhecimento) que os conflitos afloraram com maior visibilidade no universo estudado, foi também nesse espaço que concepções tradicionais de ensino e aprendizagem apareceram lado a lado com posturas aparentemente inovadoras ainda que, muitas vezes, frágeis por falta de fundamentos (uma epistemologia sobre processos de ensinoaprendizagem). Por outro lado, o fato de quase a unanimidade dos coordenadores considerarem que seus cursos se encontram preparados para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo já aponta a fragilidade com que tratam os aspectos pedagógicos e curriculares. Parece que a crise,

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apreendida nas entrelinhas dos relatos de entrevista, não foi percebida por grande parte dos participantes. E se são os pontos de conflito que possibilitam a mudança e a busca de respostas aos novos problemas, como lembra Buarque (1994), parece que parte da comunidade investigada ainda precisa ser problematizada para os novos desafios. Movimentos de mudança ocorrem, em muitos cursos, sobretudo, por pressão dos processos avaliativos e, principalmente, nos aspectos cobrados pela avaliação governamental. As discussões no plano pedagógico podem representar um caminho para uma formação crítica e responsável. Cabe lembrar, no entanto, que não se tratam de questões simplesmente técnicas; envolvem paradigmas de ensino e aprendizagem que se articulam diretamente às questões curriculares e políticoestruturais. Exigem posturas conceituais sobre o ato de formar cirurgiõesdentistas no contexto da realidade brasileira no mundo contemporâneo. Referências ARCIERI, R.M. Perfil profissional do professor cirurgião-dentista da faculdade de odontologia do campus de Araçatuba da Unesp em 1998. Rev. Abeno, v.1, n.1, p.67, 2001. BALZAN, N. A voz do estudante: sua contribuição para a deflagração de um processo de avaliação institucional. In: SOBRINHO, J.D.; BALZAN, N.C. (Orgs.) Avaliação institucional: teoria e experiências. São Paulo: Cortez, 1995. p.115-47. BALZAN, NC.; DIAS SOBRINHO, JD. Introdução. In: SOBRINHO, J.D.; BALZAN, NC. (Orgs.) Avaliação institucional: teoria e experiências. São Paulo: Cortez, 1995. p.7-13. BATISTA, N.A . O professor de medicina: comunicação, experiência e formação. São Paulo: Edições Loyola,1998. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES 3/2002. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia. Diário Oficial da União, Brasília, 4 mar 2002. Seção 1, p.10. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Superior. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n° 9.394, 20 de dezembro de 1996. Brasília, 1996. BUARQUE, C. A aventura da universidade. São Paulo: Ed. Unesp; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. CONTRERAS-DOMINGOS, J. La autonomia del professorado. In: RIOS, T.A. (Org.) Compreender e ensinar: por uma docência de melhor qualidade. São Paulo: Cortez, 2001. p.63-92. CUNHA, M.I. A avaliação da aprendizagem no ensino superior. Avaliação/Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior - RAIS, Campinas, v.4, n.14, p.7-13, 1999. CUNHA, M. I. O currículo do ensino superior e a construção do conhecimento. Rev. Iglu, n.3, p.9-18, 1992. CUNHA, M.I. Implicações da estrutura político estrutural das carreiras profissionais nos currículos da universidade. Rev. Puccamp, n.2, p.3-21, 1995. CYRINO, E.G. Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu: descrição e análise dos casos dos cursos de Pediatria e Saúde coletiva como iniciativas de mudança pedagógica no terceiro ano médico. 2002. Tese (Doutorado) - Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista, Botucatu. DIAS SOBRINHO, J. Universidade: processos de socialização e processos pedagógicos. In: DIAS SOBRINHO, J.D.; BALZAN, N.C. (Orgs.) Avaliação institucional: teoria e experiências. São Paulo: Cortez, 1995. p.15-36.

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Ensino de clínica odontológica

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SECCO, L. G.; PEREIRA, M. L. T.

ELISETE ALVARENGA, Marcas, 2002

SECCO, L. G.; PEREIRA, M. L. T. Concepciones de la calidad de enseñanza de los coordinadores de graduación: un análisis de los cursos de Odontología del Estado de São Paulo, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.313-30, mar/ago 2004. Las nuevas demandas sociales y las directrices curriculares brasileñas para los cursos de Odontología presentan desafíos a la práctica docente en las Instituciones de Educación Superior. En ese contexto, se investigan las concepciones de calidad de la enseñanza universitaria de profesores que actúan en Odontología como coordinadores de graduación, que se reflejan sobre los desafíos de la formación docente en el área. El universo de estudio son los Cursos de Graduación de las Facultades de Odontología del Estado de São Paulo que poseen Posgraduación stricto-sensu. Como instrumento de relevamiento de datos se utilizó el cuestionario, que contenía preguntas abiertas y cerradas y la entrevista semiestructurada, organizados para posibilitar la profundización de la discusión. Los datos fueron descriptos y discutidos mediante análisis cuantitativo y cualitativo, a partir de las tres dimensiones de la práctica docente analizadas por Cunha (1995): dimensión políticoestructural, dimensión curricular y dimensión pedagógica. Para este artículo, se enfocaron solamente los aspectos de la dimensión pedagógica, en la cual los puntos que expresan posturas más contradictorias se refieren a métodos de enseñanza-aprendizaje, participación del alumno y tutoría. Los resultados apuntan hacia concepciones de enseñanza-aprendizaje que oscilan entre modelos tradicionales e innovadores, señalando puntos de conflicto con relación a paradigmas que se articulan directamente con cuestiones curriculares y político-estructurales. PALABRAS CLAVE: Educación superior; odontología; práctica docente; calidad de enseñanza; docentes de odontología.

Recebido para publicação em 15/10/03. Aprovado para publicação em 12/06/04.

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Intersetorialidade: uma vivência prática ou um desafio a ser conquistado? O Discurso do Sujeito Coletivo dos enfermeiros nos núcleos de Saúde da Família do Distrito Oeste – Ribeirão Preto

Kelly Andressa de Paula 1 Pedro Fredemir Palha 2 Simone Teresinha Protti 3

PAULA, K. A.; PALHA, P. F.; PROTTI, S. T. Intersectoral approach: a practical experience or a challenge to be met? The Collective Subject Discourse of nurses in the Family Health Centers of the Western District – Ribeirao Preto, Brazil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.331-48, mar/ago 2004. This study sought to understand how nurses working at the Family Health Centers of the Western District Ribeirao Preto, perceive the intersectoral approach and how they seek to put it in practice by creating articulations with social equipments which collaborate in the process of delivering health services to the population in their target areas. The data ordering technique was employed in this study in order to analyze Collective Subject Discourse. The results show that the intersectoral approach still represents a challenge , since professionals and sectors continue to work in a fragmented manner. The discourses reveal a conceptual confusion with respect to the intersectoral approach, considering it as an individual responsibility based on the individual users’ demands. Thus, it is identified as a difficult and solitary work process. They also understand the need to create a support network for putting this principle into practice and believe that it is necessary to start understanding and listening to the opinion of other professionals and sectors. KEY WORDS: Intersectoral approach; family health; health promotion; Collective Subject Discourse. O objetivo do trabalho foi apreender como os enfermeiros dos Núcleos de Saúde da Família do Distrito Oeste Ribeirão Preto compreendem a intersetorialidade e buscam articulação com os equipamentos sociais na assistência à saúde da população de suas áreas adstritas. No percurso metodológico utilizou-se o Discurso do Sujeito Coletivo como técnica de ordenação dos dados. Os resultados mostram que a intersetorialidade é um desafio a ser conquistado, pois os profissionais e setores ainda trabalham de forma fragmentada. Percebe-se, nos depoimentos, uma confusão conceitual sobre intersetorialidade pois tomam-na como responsabilidade individual a partir das demandas individualizadas dos usuários. Desta forma, identificam a intersetorialidade como um processo de trabalho penoso e solitário. Entendem, ainda, a necessidade da criação de uma rede de apoio para a efetivação desse princípio e acreditam que é preciso começar a entender e escutar a opinião de outros profissionais e setores. PALAVRAS-CHAVE: Intersetorialidade; saúde da família; promoção da saúde; Discurso do Sujeito Coletivo.

1

Supervisora de estágio, Colégio Bandeirantes, Ribeirão Preto, SP. <enfkelly@ig.com.br> Professor Assistente Doutor, Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP. <palha@eerp.usp.br> 3 Enfermeira, Lar Padre Euclides, Ribeirão Preto, SP. <simoneprotti@hotmail.com>. 2

1 Rua Francisco Spaño, 41 Ribeirão Preto, SP 14.055-270

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PAULA, K. A. et al.

Introdução A estrutura dos serviços de saúde vem sofrendo constantes mudanças no processo de gerir a atenção aos usuários. Um dos recursos disponíveis no eixo da Atenção Primária à Saúde (APS) é a intersetorialidade, cuja potência confere aos profissionais da saúde novas possibilidades de prestar uma assistência mais integral e de forma resolutiva, incrementando novas visões paradigmáticas a esses profissionais. A promoção da saúde, centrada na qualidade de vida, passa, assim, a ser desenvolvida com a centralidade no usuário e no seu envolvimento ativo num processo de educação em saúde para o auto–cuidado. A intersetorialidade incorre, portanto, em mudanças na organização, tanto dos sistemas e serviços de saúde, como em todos os outros setores da sociedade, além da necessidade de revisão do processo de formação dos profissionais que atuam nessas áreas (Junqueira, 2000). Dessa forma, a equipe não deve ser mais entendida apenas como um conjunto de saberes que operam compartimentalizados, mas sim a partir de inter-relações que atuam em processos de trabalhos articulados entre si, passando-se a compreender que as inter–relações adquirem um caráter mais amplo, pois extrapolam o setor saúde e buscam novas parcerias com outras instituições em redes de atenção que auxiliem e garantam a eficácia na atenção à saúde dos usuários (Junqueira, 2000). Intersetorialidade como eixo estruturante na atenção à saúde Muito se tem debatido acerca de novas propostas estruturantes para se obter melhor desempenho em relação à resolutividade das ações de saúde que são ofertadas à população. Vários autores têm contribuído significativamente para aprimorar o sistema de atenção no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. As contribuições vão desde a própria organização do setor saúde (Mendes, 2002) e sua interlocução com os outros setores da sociedade, até as discussões sobre o modo de assistir as pessoas, seja na prática individual, seja na prática coletiva (Campos, 2000), ou mesmo nas inter-relações que são estabelecidas entre os profissionais responsáveis pela atenção à saúde (Peduzzi, 2001). A possibilidade de mudanças é permeada por transformações no eixo filosófico que tem direcionado os sistemas de serviços de saúde, da concepção mecanicista de atenção, conhecido como modelo biomédico, para um referencial amplamente conhecido, a APS. Para Mendes (2002) a definição de APS tem sua melhor conceituação a partir da formulação da OMS que diz: (...) atuação essencial à saúde, baseada em métodos práticos, cientificamente evidentes e socialmente aceitos e em tecnologias tornadas acessíveis à indivíduos e famílias na sociedade por meios aceitáveis e a um custo que as comunidades e os países possam suportar, independente do seu estágio de desenvolvimento, num espírito de auto-confiança e auto-determinação. Constitui o primeiro contato de indivíduos, famílias e comunidades com o sistema nacional de saúde, trazendo os serviços de saúde o mais

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INTERSETORIALIDADE: UMA VIVÊNCIA PRÁTICA OU ...

próximo possível dos lugares de vida e trabalho das pessoas e constitui o primeiro elemento de um processo contínuo de atenção (OMS apud Mendes, 2002, p.13)

Mendes (2002) traz suas contribuições sobre as concepções ou interpretações principais que acompanharam a APS desde sua gênese. Para o autor, uma das primeiras idéias veiculadas refere-se à interpretação como atenção primária seletiva. Como o próprio nome sugere, entendia-se como uma assistência destinada às populações em situações de risco, as quais eram amparadas por profissionais de pouca qualificação e com o emprego de ações possuidoras de tecnologias simples e de baixo custo. Outra interpretação discutida pelo autor refere-se ao nível primário dos sistemas de serviço de saúde, entendido como porta de entrada e com resolutividade apenas para os agravos mais comuns de saúde, no sentido estrito de diminuir as tensões sociais e racionalizar o custo- beneficio, sem ter preocupações com os demais níveis de atenção naquele momento. Discute Mendes que a forma mais correta de organização dos sistemas de serviços de saúde, que se vincula à singularidade de articular e reordenar todos os recursos possíveis do setor para a satisfação das necessidades, demandas e representações da população, confere uma nova articulação combinada da APS dentro de um sistema integrado de serviços de saúde. Entende-se hoje a importância da articulação com os outros setores, no sentido de se conversar sobre os problemas que são observados na saúde, mas que nem sempre decorrem da falta de assistência desta área e sim por falta de resolutividade de outras áreas. Por exemplo, a falta de saneamento básico leva a doenças parasitárias, mas o fato de se tratar a patologia não vai resolver o agravo; há necessidade de se intervir na fonte do problema. Se houver articulação intersetorial e discussão desses casos, a solução pode se dar mais rápida e de forma mais ágil, com uma intervenção na área de saneamento básico (Junqueira, 2000). De acordo com a conceituação da OMS, a APS não constitui somente uma atenção à saúde caracterizada pelo acesso primário, mas um processo contínuo de atenção que incorpora métodos e tecnologias tanto pelas comunidades, quanto pelos serviços de saúde, num patamar de sustentabilidade econômica e social, e o mais próximo possível do local onde o complexo saúde–doença ocorre. Mendes (2002), quando discute a organização dos serviços de saúde num sistema integrado, preconiza que a APS deve cumprir três funções essenciais - assumir o papel resolutivo, intrínseco a sua instrumentalidade como ponto de atenção, resolver a maioria dos problemas de saúde da população organizando todo o sistema de referência e contra-referência nos diversos pontos de atenção e responsabilizar-se pela saúde das pessoas em quaisquer pontos de atenção que se encontrem. Portanto, é possível perceber naquilo que o autor discute, que também a APS é o centro responsável pela articulação dos diversos pontos da atenção dos prestadores de cuidados, dentro e fora do setor saúde. Neste sentido, a intersetorialidade apresenta-se como um dos eixos estruturantes das políticas públicas de saúde e se aproxima como parte

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PAULA, K. A. et al.

integrante do que contemporaneamente vem se discutindo sobre o conceito de cidade saudável: A cidade saudável é aquela em que todos os atores sociais em situação – governo, organizações não governamentais, sociedade civil organizada, famílias e indivíduos – fazem uma aliança para transformar a cidade em um espaço de produção social da saúde, desenvolvendo os capitais humanos, social e produtivo, de forma sustentada, exercitando políticas públicas integradas e intersetoriais, incentivando a participação pública e reduzindo as iniqüidades, de forma a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. (Mendes, 1996, p.259)

Para Feix (s/d) a APS é tomada sob a mesma conceituação referida por Mendes (2002) a partir da Organização Mundial da Saúde. Segundo o autor, algumas características são importantes para garantir a implantação efetiva da APS no âmbito dos serviços de saúde: a coordenação intra–setorial, regionalização, hierarquização, descentralização, adstrição da população, integralidade da assistência, acessibilidade, participação comunitária e coordenação intersetorial. No que se refere à intersetorialidade, o autor a define como um mecanismo que (...) visa aproximar as instituições que lidam com fatores relacionados à saúde e que podem colaborar dentro das suas atribuições para elevar o nível de saúde da população. Tal coordenação deverá dar-se a níveis central, regional e local. (Feix, s/d, p.10-2)

Assim, o autor toma a intersetorialidade como um dos elementos centrais para a operacionalização da APS nos serviços de saúde, compreendendo-a como a capacidade de articular os vários setores presentes tanto no nível mais operacional, local onde as ações de saúde são ofertadas à população, como nos níveis regional e central, com uma dimensão mais voltada ao planejamento e com potencialidade de articular setores fundamentais que podem desencadear mudanças mais efetivas e duradouras para o setor saúde. Cita ele que setores como a educação, agropecuária, ambiente e habitação são parceiros importantes na concretização de ações pensadas do ponto de vista político. Sob este prisma a intersetorialidade, além de estar em intrínseca consonância com a amplitude do objeto saúde, tem como preceito a reestruturação e reunião de vários saberes e setores no sentido de um olhar mais adequado e menos falho a respeito de um determinado objeto, proporcionando uma melhor resposta aos possíveis problemas encontrados no dia-a-dia. Para Starfield (2002), os serviços de saúde possuem duas metas essenciais: uma é a maximização de todo o conhecimento disponível sobre as enfermidades, bem como o manejo das doenças e a maximização da saúde em prol da população, a outro é diminuir as disparidades entre os subgrupos

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populacionais, mantendo a eqüidade em relação ao acesso aos serviços de saúde e ao alcance de um ótimo nível de saúde. Para tanto, compreende a APS como (...) aquele nível de um sistema de serviço de saúde que oferece a entrada no sistema para todas as novas necessidades e problemas, fornece atenção sobre a pessoa (não direcionada para a enfermidade) no decorrer do tempo, fornece atenção para todas as condições, exceto as muito incomuns ou raras, e coordena ou integra a atenção fornecida em algum outro lugar ou por terceiros. (Starfield, 2002, p.29)

Assim, Starfield (2002) toma a APS como um conjunto de relações que abarcam tanto o nível de atenção local, do qual o sujeito ou a população faz uso, assim como procura relacioná-la a um conjunto maior de relações que extrapola ao que denomina de porta de entrada do sistema de saúde. Starfield comenta que ela deve preocupar-se em integrar a atenção quando existe mais de um problema de saúde e em especial entender o contexto no qual a doença existe e influencia a resposta das pessoas a seus problemas de saúde. A autora deixa claro que uma das preocupações da APS é organizar e racionalizar o uso de todos os recursos disponíveis, tanto básicos como especializados que possam prevenir, promover, manter e melhorar o nível de saúde das pessoas. Assim sendo, reforça as idéias sobre a intersetorialidade defendidas por Mendes (2002) e Feix (s/d). Estamos vivendo um momento de transição em que se procura estruturar os serviços de saúde de acordo com princípios que auxiliem na direção de um modelo de atenção que seja mais equânime, buscando dividir, com os outros setores que mantêm relações com o setor saúde, a atenção e as responsabilidades pelas mudanças necessárias (Junqueira, 2000). A reorganização implica não somente mudança de atenção, mas também reorientação da formação dos profissionais de saúde e dos demais setores que contemple uma abordagem sistêmica em que as partes são estudadas profundamente em suas interações.(...). Isso é complexo. Em vez de resolver cada probleminha isolado e ir somando soluções para resolver o problema maior ... o que eu faço é estudar as interações entre as partes. (Arguello, 1995, p.31) O modo com que organizamos e oferecemos serviços de saúde à população pode transformar as práticas dominantes, fragmentadas e excludentes, e conferir maior integralidade, equidade e dignidade ao cuidado de saúde. Essa dialética entre as necessidades e o modo de organização dos serviços confirma o potencial de mudança da estratégia de saúde da família. (Peduzzi, 2001, p.3)

Deste modo, a idéia de equipe também começa a ser introduzida, não mais

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PAULA, K. A. et al.

como vários profissionais trabalhando em um mesmo lugar sem articulação, ainda que trabalhando num mesmo caso, mas sim um grupo de pessoas que, juntas, resolvem articuladamente os problemas que surgem no local em que trabalham. Resolver um problema por partes não é errado, errado é reunir as conclusões e os fatos dando seqüência sem analisá-los (Arguello, 1995). Nem sempre as relações da equipe são harmônicas, mas deve ocorrer o enfrentamento dos possíveis desentendimentos, para que se possa resolver, da melhor forma, as situações de trabalho que estão ligadas à responsabilidade social e à saúde da população; afinal, “a equipe responde pela obtenção dos resultados esperados frente às necessidades de saúde de cada usuário, família e comunidade” (Peduzzi, 2001, p.5). Quando o trabalho não é em equipe, as pessoas trabalham apenas o suficiente para receber o salário, pois não se sentem parte importante do trabalho, muitas vezes sendo impedidas de dar opiniões e de agir espontaneamente (com criatividade), sentindo-se insatisfeitas (Peduzzi, 2001). O trabalho em equipe ainda facilita a construção das redes, que podem ser definidas como o trabalho coletivo, articulação de diversos sujeitos e serviços para produzir transformações. “São, portanto, heterogeneidades, que se articulam e se organizam” (Rovere apud Feuerwerker & Sousa, 2000, p.51). E, para isso, é essencial o desenvolvimento de vínculos que, segundo Feuerwerker & Sousa (2000), desenvolvem-se em diferentes níveis de complexidade, sendo o primeiro nível dessa relação é o do reconhecimento: reconhecimento do outro como par, como interlocutor, com direito a existir e emitir opiniões. O segundo é o do conhecimento quem é o outro e como vê o mundo. O terceiro é o da colaboração: depois de conhecido o outro criam-se vínculos de reciprocidade e colaboração. A este, segue-se a cooperação, que já é um processo mais complexo porque implica a existência (ou a identificação de um problema comum) e uma forma sistemática e estável de atividades. Por fim, há o nível de associação com contratos ou acordos e utilização conjunta de recursos. Para trabalhar em rede é indispensável que se abandonem as posturas competitivas e as convicções dos que acham que eles mesmos, ou sua equipe, são os únicos capazes de produzir idéias e soluções inteligentes. É importante, então, estar-se permeável, estar-se aberto à reflexão crítica e ao reconhecimento das qualidades de outras experiências. (Feuerwerker & Sousa, 2000, p.51)

Grandes mudanças devem ser efetuadas em todos os setores da sociedade, bem como na formação e no entendimento dos profissionais, para que possa ocorrer a transformação desejada no setor saúde, a fim de chegarmos a um atendimento adequado às necessidades de toda a população, diminuindo a demanda nos serviços de pronto-atendimento, prevenindo problemas e promovendo saúde, condições adequadas de sobrevivência, com o mínimo de dignidade para todos.

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Percurso metodológico: o Discurso do Sujeito Coletivo Utilizando uma abordagem qualitativa, o objetivo deste trabalho foi analisar como os enfermeiros dos núcleos de Saúde da Família compreendem e implementam a questão da intersetorialidade na resolução dos problemas diários da população para a qual prestam serviços. Como instrumento de levantamento de dados usou-se a entrevista semi–estruturada, em quatro unidades de Saúde de Família do Centro de Saúde Escola de Ribeirão Preto. O procedimento de ordenação de dados foi o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) (Lefevre & Lefevre, 2000), que tem como forma de análise a extração das Idéias Centrais (IC) e respectivas Expressões Chaves (ECH) de cada depoimento para, com essas duas, compor um ou vários discursos-síntese, denominado Discurso do Sujeito (DSC). Para Lefevre & Lefevre (2000, p.3) a IC é entendida como “a(s) afirmação(ões) que permite(m) traduzir o essencial do conteúdo discursivo explicitado pelos sujeitos em seus depoimentos”. É, portanto, a expressão lingüística que vai revelar ou descrever, de maneira sintética e precisa, o sentido e tema das ECH de cada um dos depoimentos orais. As ECH, para Lefevre & Lefevre (2000), são fundamentais para a confecção do DSC, portanto, é necessário que sejam coletadas com rigor e observação. Elas são constituídas pelas transcrições literais de parte dos depoimentos orais, que permitem o resgate daquilo que é essencial do conteúdo discursivo e correspondem, em geral, às questões centrais da pesquisa. Elas representam a veracidade do depoimento oral, que permite ao leitor realizar uma comparação entre um trecho selecionado com as afirmativas reconstruídas e julgar pertinente ou não a forma de traduzir discursivamente a IC. O DSC é, segundo Lefevre & Lefevre (2000, p.18), a principal das figuras metodológicas e, portanto, deve-se ter um cuidado mais profícuo ao compôlo; busca “resgatar o discurso como signo de conhecimento dos próprios discursos”. No entanto, não podemos pensar que com o DSC exista uma simples categoria unificadora dos discursos dos sujeitos, mas sim, o que se preza é justamente o inverso, pois toma como preâmbulo “reconstruir, com pedaços de discursos individuais, como em um quebra-cabeça, tantos discursos-síntese quanto se julgue necessário para expressar uma dada ‘figura’, ou seja, um dado pensar” (Lefevre & Lefevre, 2000, p.19). O DSC tem como finalidade, enquanto estratégia metodológica, visualizar com maior clareza uma dada representação que surge a partir de uma forma concreta do pensamento nos discursos dos sujeitos. Sua elaboração segue uma lapidação analítica de decomposição e é caracterizado, inicialmente, pela seleção das principais Idéias Centrais presentes nos discursos individuais e constituídos, posteriormente, em um único discurso, dando a idéia de que todos estão representados por uma única pessoa. Quando o sujeito coletivo é expresso por meio de vários discursos, isto pode significar duas coisas: “a presença na cultura de um mesmo discurso complexo que, didaticamente, é preciso separar em mais de um discurso, ou a presença, na cultura, de discursos conflitantes que, também didaticamente, é preciso separar” (Lefevre & Lefevre, 2000, p.3). Torna-se claro que no DSC estão reunidas todas as possibilidades imaginárias do discurso dialético, oferecidas por uma cultura presente na

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sociedade e difundida entre seus membros numa determinada temporalidade e sobre um determinado tema. Se em algum momento faz-se necessário o desmembramento deste DSC global em outros DSCs, a finalidade é de tornar mais compreensível a leitura dos mesmos. As entrevistas foram, primeiramente, agendadas por telefone com os enfermeiros em seu local de trabalho e, depois, realizadas, com duração média de trinta minutos, sendo o termo de consentimento assinado no mesmo local. As mesmas foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra, passando-se a uma leitura exaustiva destas buscando as IC e suas ECH, a fim de compor o DSC. A segunda parte consistiu em leituras bibliográficas norteadas pelas possibilidades de análise e interpretação de textos (Severino, 1996), que ofereceram embasamento para a construção do referencial teórico, discussão dos discursos e conclusão do trabalho. Resultados e discussão Passamos a discutir os Discursos dos Sujeitos Coletivos, objeto deste trabalho. DSC 1 Tema: Intersetorialidade é um desafio à assistência à saúde. Trabalhar com intersetorialidade é uma coisa difícil, pois os setores ainda trabalham isoladamente; não há uma cultura de cooperação e de complementaridade. Também os sujeitos trabalham de forma fragmentada e o trabalho em equipe ainda é compartimentalizado, assim como a organização dos serviços de saúde. As pessoas não enxergam a saúde com uma visão mais ampla e as que pertencem a outros setores ainda acham que não fazem parte da saúde. A intersetorialidade é complexa porque não jogamos a bola para frente. Em outros modelos de atendimento a gente ligaria para o disque denúncia e passaria o caso para frente, hoje, os chamamos para discutir. Tem sido uma experiência legal. A gente busca o novo. IC 1. Os serviços de saúde e os sujeitos atuam de forma fragmentada. 2. O trabalho em equipe ainda é compartimentalizado. 3. Em outros modelos a gente passaria o caso para frente.

Discutir a intersetorialidade é complexo e o discurso retrata essa afirmação. Ele revela um modelo de atenção predominante no setor saúde, o biomédico. A dificuldade de se incorporar a prática da intersetorialidade nas ações cotidianas é visível, porém não compreensivo para os sujeitos da pesquisa. È possível identificar indícios de potencialidades em relação à prática da intersetorialidade mas, no entanto, o discurso revela alguns equívocos conceituais sobre a mesma. Muito do que se apresenta nos discursos são conceitos e práticas da interdisciplinaridade e não da intersetorialidade, pois falam das relações entre sujeitos sociais, entre equipe e entre níveis de atenção nos serviços de saúde. Esta confusão conceitual é possível de ser percebida em todos os discursos neste trabalho. Identifica-se que a complexidade do trabalho na saúde requer responsabilização perante a determinadas situações e isso tem provocado a

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busca de determinadas parcerias com outros setores para a resolutividade ou amenização das necessidades que chegam até as equipes. Tem-se com isso uma explicitação da liderança que o setor saúde apresenta em relação aos demais setores sociais. No entanto, é possível perceber que a busca das articulações permanece no âmbito individual e não no institucional como é previsto numa política intersetorial. Nesse sentido, Westphal & Mendes (2000, p.60) reiteram a recomendação da organização Panamericana da Saúde que a “ação intersetorial demanda da área da saúde não somente iniciativas, mas sobretudo receptividade”. Comentam as autoras que a prática das articulações entre setores deve ser permeada por um pensamento e uma coordenação intersetorial para operar projetos interesetorias. Portanto, discutir intersetorialidade é muito mais amplo que as relações interdisciplinares ou dentro dos níveis de atenção, equívoco plausível quando a relação do trabalho em saúde é comparado segundo o modelo fragmentado ainda presente na organização dos serviços de saúde. Segundo Mendes (2002), os sistemas fragmentados caracterizam-se por uma atenção descontínua, havendo, com freqüência, uma forte polarização entre um ou outro ponto de atenção, em especial, pela ausência de integração e ineficiência de comunicação intra-setorial e entre os demais setores sociais. Assim, fica contundente o problema da fragmentação dos serviços de saúde e dos setores da sociedade, demonstrando claramente a falta de organização dos mesmos, atuando sem uma política mais abrangente que preconize uma integração entre vários setores. Além disso, como aparece nos discursos, não havendo integração entre os setores, o alcance da intersetorialidade permanece como uma tarefa penosa e um trabalho desenvolvido de forma solitária. De modo geral, existe uma insatisfação presente no cotidiano dos profissionais de saúde em relação à atenção prestada aos usuários, pois há percepção de que não se dá conta de tudo, e que, muitas vezes, não se conclui a atenção satisfatoriamente, ou seja, a resposta que se dá aos problemas nem sempre é a melhor, nem sempre é integral. Nesse sentido, a construção de um projeto mais amplo, mais efetivo e que possa agregar setores distintos e saberes específicos, é sem dúvida mais coerente do que o trabalho parcelar ou isolado. Nenhum setor da sociedade consegue resolver sozinho todos os problemas e é por isso que propostas que tomam o eixo da transdisciplinaridade, intersetorialidade e interdisciplinaridade têm surgido como alternativas para a resolução dos problemas das populações. Neste sentido, a interdisciplinaridade é vista como uma negociação entre diferentes pontos de vista, para decidir sobre a representação considerada adequada tendo em vista a ação. Nesse caso é preciso aceitar confrontos de diferentes pontos de vista e tomar uma decisão que, em ultima estância, não decorrerá de conhecimentos, mas de um risco assumido, de uma escolha finalmente ética e política. (Fourez, 1995, p.137)

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De modo geral, percebe-se que a consciência da ação setorial está mais clara no setor saúde. A compreensão da determinação social do processo saúde - doença, a percepção muito clara do impacto de ações não especificamente setoriais sobre a saúde – tais como saneamento básico e urbanização – e da impotência setorial diante de problemas como a morbidade e mortalidade por causas externas, fazem com que o setor saúde esteja mais mobilizado para propor a ação e a articulação intersetorial. (Feuerwerker & Costa, 2000, p.28)

Se, por um lado, existe fragmentação em relação à ação e à atenção nos serviços de saúde com os demais serviços e setores, de outro lado é possível também percebê-la refletida nos espaços de trabalho dos próprios profissionais desta área, em especial naquelas unidades em que atuam equipes de especialistas, com um mesmo objetivo final, que é prestar atenção às necessidades dos usuários e da comunidade, mas que no geral funcionam com interações pontuais, sem inter-relações entre esses saberes. Se, por um lado, a pontualidade tem sido a forma de atenção, por outro, esquece-se que os problemas de saúde não são necessidades prontas, mas em geral construídas pelos indivíduos, na sociedade, a depender do modo de organização social e das concepções predominantes do processo saúde – doença. As necessidades de saúde são sempre expressão social e coletiva, embora se manifestem concretamente de forma individual, em cada um dos sujeitos portadores de necessidades. (Mendes–Gonçalves, apud Peduzzi, 2001, p.3)

Da mesma forma podemos conceber que as intervenções realizadas para a resolutividade dessas necessidades não estão prontas, mas devem ser construídas a partir delas, garantindo o caráter coletivo, não excluindo as peculiaridades dos sujeitos que também são individuais. Por isso a importância de se analisar a forma como organizamos e prestamos cuidados à saúde da população, no sentido de que se pode, assim, transformar o modelo fragmentado e excludente de atenção aos problemas sociais, questionando e reformulando o modo isolado de ação dos profissionais por meio da estratégia da intersetorialidade que, segundo Junqueira & Inojosa (apud Junqueira, 2000, p.42), é a “articulação de saberes e experiências no planejamento, realização e avaliação de ações para alcançar efeito sinérgicos em situações complexas visando o desenvolvimento social, superando a exclusão social”. Interação esta que deve ser realizada, também, com outros serviços a fim de que se potencialize as ações. Além disso, é de extrema importância não se esquecer de considerar o usuário, que deve participar ativamente, das decisões que lhe dizem respeito, ou seja “a população deve ser considerada sujeito e não objeto de intervenção” (Junqueira, 2000, p.43). A desigualdade hierárquica dos membros da equipe também contribui para a compartimentalização e para o aumento dos conflitos.

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A retórica da colaboração defende que os atores são iguais, isto é, tem igual poder de colaborar entre si; no entanto estamos falando aqui da lógica da parceria, que envolve a idéia de conflito, considerando que os atores têm graus bastante variados de condições de poder, devido as iniqüidade estruturais subjacentes, tais como acesso ao dinheiro, informação e poder. (Goumans apud Westphal & Mendes, 2000, p.55)

Nesse sentido, as equipes multiprofissionais devem rever o modo como vêm atuando, com a finalidade de modificar sua visão de intervenção fragmentada, compartimentalizada e especializada, mudando para uma política governamental com base intersetorial, utilizando a articulação de planos e o compartilhamento de informações entre população e atores sociais envolvidos (Inojosa apud Westphal & Mendes, 2000). DSC 2 Tema: A informalidade tem sido o princípio do trabalho intersetorial. A intersetorialidade é uma inovação para a assistência à saúde. Não é possível que a Saúde da Família de conta de tudo, mas é possível potencializar o trabalho com outros setores. Conforme vão surgindo as necessidades a gente vai fazendo os contatos e as portas vão se abrindo. Se a gente conhece as pessoas e o trabalho, na hora de discutir um caso, o canal já esta aberto; pois é no micro espaço, que você sente a necessidade de costurar as ações com os outros saberes. A forma de construir (a articulação intersetorial) começa na informalidade e na demanda de cada profissional. Ainda é uma coisa meio doméstica, e a cada momento a gente está tentando construir isso. IC 1. A intersetorialidade é uma inovação para a assistência à saúde. 2. A demanda impulsiona a busca pelas ações e contatos intersetoriais.

O discurso remete a pensar que há caminhos para romper velhos problemas presentes no cotidiano do trabalho no setor saúde, como a onipotência do saber dos trabalhadores do setor, oferecendo respostas às ações de saúde que tenham consonância com as expectativas dos usuários, fazendo uma interlocução, mesmo que incipiente, com os demais setores sociais. Segundo as falas, é no micro espaço que as soluções precisam ser dadas e é neste movimento que surgem potencialidades e criatividades para a resolução de problemas mais individualizados. Pelas falas dos sujeitos, a intersetorialidade parece ser um grande potencial na articulação de saberes, e revela novamente aqui uma certa confusão operacional da intersetorialidade. É atribuída como uma tarefa individual dos profissionais, perante os problemas que vão surgindo e dependendo do empenho de cada um. Esta dificuldade de perceber a intersetorialidade como um recurso institucional e não particularizado da equipe de saúde remete a um movimento pendular, em que o pêndulo sempre voltará ao mesmo ponto de partida quando novos problemas surgirem. Assim, a intersetorialidade incorpora, além da resolução de necessidades

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individualizadas, idéias de integração, de território, de eqüidade ou seja, a noção de direitos sociais. Portanto, ela constitui uma concepção ampliada de planejamento, execução e controle da prestação de serviços, com objetivo de garantir acesso igual aos desiguais, pressupondo alterar todas as formas de articulação nos diversos pontos de organização governamental e de interesses (Junqueira, 2000). Para o autor, ao se instituir esses processos, as necessidades dos grupos passam a ser articuladas na busca de soluções intersetoriais, fato que remonta a entender a população como sujeito e não como objeto de intervenção; portanto, inverte-se a lógica da política social, que extrapola a visão da carência, do suprimento das necessidades mais individualizadas, para a ampliação dos direitos dos cidadãos a uma vida com melhor qualidade. A idéia da construção do novo, presente no discurso, pode estar circunstanciada pela inserção dos sujeitos em um projeto de trabalho voltado à construção de um novo modelo assistencial e superação do atual modelo de organização das práticas de saúde, ponto que deve ser valorizado visto que pode criar novos espaços de interlocução e escuta que viabilizem canais de compartilhamento de soluções, a partir de novas culturas de apreensão de conhecimentos e resolução de problemas sociais. “Os caminhos da construção da intersetorialidade são tortuosos, pois o novo é novo, mas também é incompleto, cheio de imperfeições e desafios, vem sempre carregado do velho e precisa sempre ser reinventado outra vez” (Feuerwerker & Costa, 2000, p.29). Aparece então a necessidade de criar espaços de discussões democráticas, nos quais possam ser expostos os problemas e as idéias, discutindo-se e analisando-se cada um, a fim de se chegar a possíveis caminhos para a resolução de determinados problemas. O espaço da intersetorialidade, é “de compartilhamento de saber e de poder, de construção de novas linguagens, de novos conceitos que não se encontram estabelecidos ou suficientemente experimentados” (Feuerwerker & Costa, 2000, p.29). A possibilidade de articulações intersetoriais favorece a possibilidade de olhar diferente um mesmo objeto e, neste sentido, esses espaços e essas trocas de experiências têm se dado mediante a construção de parcerias entre diferentes segmentos de instituições de ensino e de serviços e organizações comunitárias; entretanto, a profundidade e os avanços das articulações intersetoriais são diferentes em cada projeto: “alguns processos são pontuais e incipientes, outros, mais abrangentes e globais” (Feuerwerker & Costa, 2000, p.26). Isso nos remete a pensar sobre as contribuições de Starfield (2002) em relação às características preconizadas para a APS, essenciais, para a produção de uma assistência integral, de forma resolutiva e com possibilidades de implementar mudanças significativas na vida dos usuários. São elas: primeiro contato, longitudinalidade, abrangência e coordenação (ou integração), tendo esta como atributos a acessibilidade, a integralidade, a coordenação, a continuidade e a responsabilidade, que, juntas, permitem a prestação de um serviço de maior qualidade e com amplitude de contemplação das necessidades da população alvo, previamente adstrita ao

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serviço (Starfield, 2002). Segundo a Carta para Clínica Geral/ Medicina da Família de um grupo europeu da OMS , o papel da APS é reconhecido como um sistema de atenção que oferece atendimento acessível e aceitável para os usuários; assegura a distribuição eqüitativa de recursos de saúde; integra e coordena serviços curativos, paliativos, preventivos e promotores de saúde, controla de forma racional, a tecnologia da atenção secundária e os medicamentos; e aumenta a relação custo-efetividade dos serviços. (OMS apud Starfield, 2002, p.52)

Com esse eixo de trabalho, o profissional e sua equipe têm condições de oferecer um cuidado de melhor qualidade, para sua população adstrita, se forem considerados os seguintes critérios: número de profissionais por equipe, perfil adequado para trabalho comunitário, capacidade para reconhecimento dos problemas de saúde e criatividade para resolução dos mesmos. Portanto, embora bastante inovadora para o setor saúde, a intersetorialidade deverá fazer parte da agenda e da cultura das organizações e políticas sociais, superando a perspectiva intra-setorial, pautada na dimensão assistencial com pouca articulação intersetorial. DSC 3 Tema: intersetorialidade requer formar uma grande rede. É um dos pressupostos do trabalho em Saúde da Família, e é algo que a gente a todo o momento está construindo; porque existem dificuldades na formação, capacitação e articulação dos sujeitos, além da pouca articulação nas políticas sociais em prol de um objetivo único; a gente não tem também um pleno conhecimento do trabalho que os outros setores desenvolvem, e muitas vezes fazemos atividades paralelas. Precisamos aprender o que o outro está querendo dizer e muitas vezes é por falta de disponibilidade mesmo, pois sentar, ouvir e discutir os diversos olhares em cima de um objeto e a partir daí tomar uma decisão conjunta, é algo que nunca fizemos antes, é difícil aprender assim. É só fazendo para ver o que vai dar. IC 1. É um trabalho novo que está sendo construído e requer a formação de uma rede de apoio. 2. Precisamos aprender o que o outro está querendo dizer.

Esse discurso enfatiza que um dos objetivos da intersetorialidade é a formação de uma rede, conceito que extrapola a articulação apenas do trabalho em equipe ou setorial, procurando ampliar a idéia particularizada em prol de uma articulação maior. Revela, também, as dificuldades em relação à própria formação dos sujeitos envolvidos no processo, o que caracteriza uma imprecisão conceitual sobre intersetorialidade pois atribui responsabilização maior aos trabalhadores da saúde no empenho para a efetivação da mesma na perspectiva de rede. As idéias consagradas pela óptica do pensamento positivo, notoriamente

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marcado pelas certezas, começa a ceder lugar para as interações dinâmicas e transformações. Assim, a complexidade da realidade social e as incertezas advindas do imenso universo e das particularidades que compõem a singularidade do adoecer humano requerem criatividade e compreensão para buscar soluções de maneira compartilhada entre organizações (Junqueira, 2000). As redes articulam pessoas e instituições que buscam soluções de maneira compartilhada, na superação de problemas sociais. Nesse sentido, as redes devem ser orientadas na sua ação, buscando respeitar a autonomia e as diferenças de cada membro partícipe (Junqueira, 2000). É uma preocupação expressa pela fala dos sujeitos da pesquisa, quando trazem para a discussão a necessidade de incorporação de novas tecnologias para operar o trabalho, por meio da escuta e da sustentabilidade na compreensão do que está sendo dito pelo outro. Quanto mais heterogêneo e mais bem organizado o grupo, maior a riqueza da sua produção, ou seja, as partes que constituem a rede são interdependentes para conseguir os objetivos em torno dos quais se articulam (Feuerwerker & Sousa, 2000) e, por isso, é necessário ocorrer um entendimento entre os membros das equipes quanto à organização do serviço, na distribuição de tarefas, respeitando as competências técnicas, promovendo momentos para a discussão das atividades a serem implementadas, além de respeito mutuo dos profissionais, pelo exercício constante de reconhecimento de suas diferenças, possibilitando a identificação de elementos de interesse comum, firmando uma aliança, extremamente lucrativa, que potencializa o trabalho. Segundo Salazar (1999, p.14) a saúde foi definida como o resultado da capacidade dos povos para criar e manter ambientes saudáveis. Isso significa que a responsabilidade pela saúde transcende o setor saúde e a atenção à doença, e implica em ações e alianças que comprometam a outros setores instituições e atores sociais.

Nesse sentido, e tomando a saúde como um bem social, a formação de redes oferece potencialidades na operacionalização concreta de práticas eficazes. Também compreendemos que as práticas são reflexos da própria organização dos serviços de saúde, pois espelham o cotidiano do trabalho. Sob este prisma é bom relembrar que o processo de organização dos serviços de saúde, a partir da integração dos mesmos, é uma temática que vem sendo discutida por Mendes (2001) ao relacionar suas potencialidades: ofertar serviços de saúde às necessidades de uma população adstrita; ampliar pontos de atenção á saúde; ofertar serviços de saúde de forma continua; melhorar a coordenação e a comunicação horizontais dos diferentes pontos de atenção; garantir que a atenção à saúde seja promovida no lugar certo, no tempo certo, na qualidade certa e com o custo certo; maximizar a eficiência no uso dos recursos; racionalizar a utilização dos

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procedimentos clínicos e administrativos; estruturar o auto cuidado; aumentar a satisfação da população; promover o controle público sobre os sistemas de serviços de saúde e de assistência social e integrar, intersetorialmente, o sistema de saúde com outras políticas públicas. (Mendes, 2001, p.103-4)

Em consonância com o próprio discurso dos sujeitos, a discussão de Mendes nos remete a compreender que o desempenho satisfatório das ações de saúde tem relações intrínsecas com vários fatores que se articulam entre si e com os demais. Há, portanto, necessidade para construir o novo, tendo como eixo estrutural a intersetorialidade, de buscar, antes de tudo, a viabilização da “(...) articulação de instituições que se comprometem a superar de maneira integrada os problemas sociais” (Junqueira, 2000, p.39), formando as redes que são construídas por sujeitos sociais autônomos, com objetivos compartilhados norteando suas ações, respeitando a individualidade e a autonomia de cada membro, demonstrando a importância de as instituições públicas desenvolverem seus saberes e o compartilharem com o grupo de forma integrada, a serviço do interesse coletivo. Segundo Feuerwerker & Sousa (2000, p.51) É bem verdade que o processo de trabalho em rede exige, por parte dos atores sociais envolvidos nessa tarefa, o exercício permanente de revisão de valores, atitudes e compromisso, base para a disposição de construir e partilhar conhecimentos e saberes.

Para Feuerwerker & Costa (2000, p.29) “há necessidade de um exercício permanente de paciência e de negociação, pois ninguém está acostumado a ficar pensando no assunto que é do outro”. A rede de organizações estabelece acordos de cooperação, reciprocidade e alianças que permitem a reflexão e as práticas cotidianas presentes em vários setores sociais articulados com a saúde humana. Para tanto, conforma uma construção coletiva que se define enquanto é realizada, mediante acordos e parcerias entre sujeitos individuais ou coletivos em prol de objetivos comuns (Junqueira, 2000). A noção de rede como um emaranhado de relações das quais os indivíduos constituem os nós, significa uma transformação de idéias sobre organização social. Rede social é entendida como “o campo presente em determinado momento, estruturado por vínculos entre indivíduos, grupos e organizações construídos ao longo do tempo” (Marques, 1999, p.46), podendo esses vínculos serem de natureza intencional ou não, mantendo-se em constante interação e modificação, demonstrando a característica dinâmica das redes e relações, tanto como das políticas sociais (Junqueira, 2000). Isso confirma as palavras de Junqueira (2000, p.40) ao relatar que “a rede pode resultar um saber intersetorial, ou mesmo transetorial, que transcende as relações intersetoriais na construção de novos saberes, de

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novos paradigmas”. Portanto, percebe-se as dificuldades de compreensão e efetivação do novo paradigma para a assistência à saúde na fala dos profissionais. Há necessidade de mudança e de uma articulação com outros setores e políticas sociais para melhoria das condições de trabalho e pela luta de seus ideais e direitos dos cidadãos, com análise crítica do que se busca. É também necessário amadurecimento social. Considerações finais Percebe-se, nos discursos dos enfermeiros, que a intersetorialidade é um desafio a ser conquistado, porém pouco compreendido em termos conceituais. Existem dificuldades em relação a este conceito que, muitas vezes, é confundido com o da interdisciplinaridade e compreendido e situado para o desenvolvimento das ações de saúde no trabalho em equipe ou apenas setorial, a partir dos níveis de atenção. Também é possível apreender nos discursos que as concepções sobre intersetorialidade são, em grande parte, atributos de processos individualizados e de função precípua dos sujeitos ou trabalhadores do setor saúde, traduzido pelo sentimento e pela crença de que é um trabalho que se opera na informalidade, portanto, doméstico. Essa informalidade é percebida quando os sujeitos convergem na idéia de que a busca por soluções dos problemas está, na grande maioria das vezes, pautada por necessidades individualizadas, o que se contrapõe à noção de intersetorialidade discutida por Junqueira (2000), quando refere que a prática intersetorial requer uma ampla negociação, alcançando uma dimensão transetorial a partir das possibilidades de criar novos olhares e instaurar novos valores, considerando o respeito às diferenças e a incorporação das contribuições de cada política social na compreensão e na superação dos problemas sociais. Necessitamos incorporar, com maior clareza, as discussões sobre a intersetorialidade na prática cotidiana dos profissionais da saúde, tendo em vista situar o setor saúde como uma área estratégica para o desenvolvimento de novas alianças ou parcerias sem, contudo, atribuir a responsabilização somente aos trabalhadores. Assim, poderemos incorporar, definitivamente, que o Sistema Único de Saúde possui a missão da promoção da saúde, cuja dimensão precisa ser resgatada como parte maior de uma sociedade solidária (Junqueira, 2000). Desta forma, também entendemos que a intersetorialidade é um conceito que necessita ser problematizado e investigado junto ao setor da saúde.

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PAULA, K. A.; PALHA, P. F.; PROTTI, S. T. Intersectorialidad: una vivencia práctica o un desafío que se debe buscar? El Discurso del Sujeto Colectivo de los enfermeros en los núcleos de Salud de la Familia del Distrito Oeste – Ribeirão Preto, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.331-48, mar/ago 2004. ?

El objeto de ese trabajo fue el de entender cómo los enfermeros de los núcleos de Salud de la Familia del Distrito Oeste comprenden la intersectorialidad y buscan la articulación con los equipos sociales en la atención a la salud de la población en sus áreas de actuación. En el recorrido metodológico utilizamos la técnica de ordenación de los datos por medio del Discurso del Sujeto Colectivo. Los resultados muestran que la intersectorialidad es un desafío que se debe conquistar, pues los profesionales y sectores todavía trabajan de forma fragmentada. Se percibe en los testimonios una confusión conceptual sobre intersectorialidad a medida que la asumen como una responsabilidad individual a partir de las demandas individualizadas de los usuarios. De esta forma, identifican la intersectorialidad como un proceso de trabajo difícil y solitario. Además, comprenden la necesidad de crear una red de apoyo para la efectivación de ese principio y creen que es necesario empezar a entender y escuchar la opinión de los otros profesionales y sectores. PALABRAS CLAVE: Intersectorialidad; salud de la familia; promoción de salud; Discurso del Sujeto Colectivo.

Recebido para publicação em 30/07/03. Aprovado para publicação em 15/07/04.

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O ensino de saúde e os currículos dos cursos de medicina veterinária: um estudo de caso

Márcia Regina Pfuetzenreiter 1 Arden Zylbersztajn 2

PFUETZENREITER, M.R.; ZYLBERSZTAJN, A. Theaching of health and the curricula of schools of veterinary medicine: a case study, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.349-60, mar/ago 2004.

An investigation was conducted on the curricula of the pioneer schools of veterinary medicine in the country, as well as on the course offered by the University of the State of Santa Catarina, the analysis of documents having been the data collection procedure employed. Three main fields of action were identified in veterinary medicine, related with the practical activities carried out in the exercise of the profession and corresponding to the content of the courses: clinical veterinary practice, preventive veterinary medicine and public health, and animal husbandry and animal production. The connection between these three areas and the epistemological “style of thought” category proposed by L. Fleck was articulated. The analysis of the data obtained indicated that social and preventive aspects were given scanty attention in veterinary medicine courses, causing the “style of thought” that focuses on preventive veterinary medicine and public health to be given little emphasis in comparison with the other “styles of thought” found in the profession. KEY WORDS: Veterinary Medicine; curriculum; veterinary education; health education; “style of thought. Realizou-se uma investigação sobre os currículos dos cursos de medicina veterinária pioneiros no país e do curso da Universidade do Estado de Santa Catarina, utilizando a análise de documentos como procedimento de coleta de dados. Identificaram-se três principais campos de atuação dentro da medicina veterinária, relacionados com as atividades práticas realizadas na profissão e que correspondem aos conteúdos curriculares dos cursos: clínica veterinária, medicina veterinária preventiva e saúde pública, e zootecnia e produção animal. Foi articulada a relação entre essas áreas e a categoria epistemológica “estilo de pensamento” proposta por L. Fleck. A análise dos dados obtidos indicou que as concepções de natureza social e preventiva recebem pouco destaque dentro dos cursos de Medicina Veterinária, o que faz com que o estilo de pensamento da Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Pública seja pouco enfatizado em relação aos outros estilos de pensamento presentes na profissão. PALAVRAS-CHAVE: Medicina Veterinária; currículo, educação veterinária; ensino em saúde; “estilo de pensamento”.

1 Professora Assistente Doutor, Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Tecnologia, Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências Agroveterinárias/UDESC. <marcia@cav.udesc.br> 2

Professor Assistente Doutor, Departamento de Física, Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. <arden@fsc.ufsc.br>

1 Av. Luiz de Camões, 2090 Lages, SC 88.530-000

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Introdução A saúde pública veterinária é resultado da aplicação do conhecimento profissional do médico veterinário para a proteção e promoção da saúde humana e também para a economia. Esta atividade reflete os interesses comuns e indica oportunidades de interações proveitosas entre as medicinas veterinária e humana. Pela utilização dos conhecimentos biomédicos básicos e pela natureza de profissão cruzada, o sanitarista veterinário realiza uma função única na equipe de saúde pública, sendo difícil separar as atividades de saúde pública veterinária da saúde humana (Bögel, 1992; Boletim de la Oficina Sanitaria Panamericana, 1992). Ainda que a medicina veterinária tenha um papel fundamental a desempenhar no campo da saúde pública havendo, portanto, necessidade de profissionais veterinários especializados nesta área, alguns estudos (Arámbulo & Ruíz, 1992; Boletim de la Oficina Sanitaria Panamericana, 1992; Palermo Neto, 1995) ressaltam que as escolas de veterinária não têm enfatizado a capacitação nesse setor. Atualmente, mesmo constando dos currículos dos cursos, não há uma orientação significativa para a medicina veterinária preventiva e saúde pública. A fundamentação teórica deste trabalho está baseada na epistemologia de L. Fleck (1986), que condiciona os conhecimentos a fatores históricos, psicológicos e sociais e segundo o qual os conceitos estão ligados ao desenvolvimento histórico de algumas linhas coletivas de pensamento. O autor baseou a categoria denominada de “estilo de pensamento” essencialmente na atividade prática. Este tema foi discutido em vários de seus textos relacionados a aspectos sociais como a utilização de instrumentos por determinado coletivo, com o emprego de uma linguagem própria, com o ensino e com a percepção direcionada para a aquisição de habilidades, prática e experiência pelos indivíduos para tomarem parte de um grupo. Para as finalidades da investigação, foi estabelecido um paralelo entre as práticas desenvolvidas em medicina veterinária e as categorias epistemológicas estabelecidas por Fleck. Assim, as atividades práticas exercidas pelos diversos segmentos da profissão foram adaptadas ao sistema de pensamento do epistemólogo. Com base em Rista & Bastos Santos (2001), Rosenberg & Olascoaga (1991) e Brasil (2003), que classificam as grandes áreas de atuação do médico veterinário, este trabalho propõe a seguinte disposição dos grupos de atuação para a profissão: a) Clínica Veterinária (CV): inclui conhecimentos ligados às atividades de clínica, cirurgia, patologia e fisiopatologia da reprodução. b) Zootecnia e Produção Animal (ZPA): incorpora conteúdos relacionados aos sistemas de criação, manejo, nutrição, biotécnicas da reprodução, exploração econômica e ecologicamente sustentável. c) Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Pública (MVPSP): envolve os conteúdos relacionados a planejamento, administração e educação em saúde, epidemiologia, zoonoses, ecologia e proteção ao meio ambiente e inspeção higiênica e sanitária dos produtos de origem animal. As grandes áreas de atuação representam os pilares fundamentais do currículo dos cursos de medicina veterinária que estão assentados sobre os princípios das ciências básicas. Cada um desses três agrupamentos se constitui

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em grandes áreas que se refletem na atuação profissional veterinária, reúnem grupos de pessoas que compartilham a mesma linguagem, os mesmos conceitos, instrumentos de trabalho e procedimentos, formando modos de pensar distintos. O presente trabalho apresenta a análise dos resultados da investigação sobre a forma como os conteúdos ligados ao estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública estão inseridos nos cursos de medicina veterinária pioneiros no país e de uma comparação com o curso de medicina veterinária da Universidade do Estado de Santa Catarina. 3 A Comissão Nacional de Ensino de Medicina Veterinária (Conselho Federal de Medicina Veterinária, 1992) considera como pioneiros os primeiros cursos de medicina veterinária fundados no país e que mantiveram seu funcionamento: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Universidade Federal do Paraná (UFPR); Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Universidade de São Paulo (USP); Universidade Federal Fluminense (UFF); Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE); Universidade Federal da Bahia (UFBA).

4

As matérias básicas constituem uma forma de pensamento própria compartilhada com os cursos da área das ciências da saúde.

Material e métodos Foram analisadas as grades curriculares dos cursos de medicina veterinária das escolas pioneiras de medicina veterinária3 e do curso da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Os currículos estudados foram aqueles fornecidos pelas instituições ou disponibilizados pelos cursos na internet durante o ano de 2003. As categorias de análise utilizadas foram os estilos de pensamento presentes dentro da medicina veterinária, correspondentes aos campos de atuação da profissão: clínica veterinária, medicina veterinária preventiva e saúde pública e zootecnia e produção animal. Os conteúdos das disciplinas obrigatórias de cada curso foram verificados e classificados dentro dos estilos de pensamento, observando a carga horária destinada a cada estilo dentro do curso4. Os programas curriculares das disciplinas ligadas à medicina veterinária preventiva e saúde pública foram examinados. Com base nas informações obtidas, foi estabelecida uma comparação entre os currículos com o propósito de analisar o ensino da medicina veterinária preventiva e saúde pública. Resultados Curso de medicina veterinária da Universidade Federal da Bahia (UFBA) O curso de medicina veterinária da UFBA tem carga horária total de 3.630 horas, com duração média de cinco anos e máxima de oito anos. Há obrigatoriedade da realização de um estágio supervisionado de 360 horas. A distribuição das disciplinas dentro dos estilos de pensamento está descrita na tabela 1, que mostra que o estilo de pensamento de Clínica Veterinária é o que concentra a maior carga horária, com 34,55%. A observação dos programas das disciplinas pertencentes ao estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública revelou haver pouca ênfase para a área de administração e planejamento em saúde animal e saúde pública. Os conteúdos relacionados à educação e saúde não são citados. O estilo da medicina veterinária preventiva e saúde pública apresenta 60% de sua carga horária voltada para as disciplinas de inspeção e tecnologia e nenhuma disciplina aborda conteúdos relacionados ao meio ambiente. A tabela 2 mostra a distribuição de carga horária relativa aos conteúdos de medicina veterinária preventiva e saúde pública para todos os cursos analisados.

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Curso de medicina veterinária da Universidade Federal Fluminense (UFF) O curso da Faculdade de Medicina Veterinária da UFF tem uma duração mínima de oito e máxima de 16 semestres. A carga horária total é de 4650 horas, sendo distribuída em 4110 horas de disciplinas obrigatórias, 450 horas de estágio obrigatório, sessenta horas de disciplinas optativas e trinta de disciplinas eletivas. A clínica veterinária ocupa a maior parte da carga horária do curso, seguida de perto pelas disciplinas básicas (tabela 1). A disciplina de zoonoses está localizada no oitavo período do curso e versa sobre transmissão e prevenção de doenças, sem que os alunos tenham elementos prévios de epidemiologia básica. O programa, muito extenso, comprimido em uma carga horária pequena, faz com que a disciplina de medicina veterinária preventiva e saúde pública só forneça noções muito genéricas e superficiais aos estudantes, sem contribuir para a formação de um pensamento preventivo e populacional. Dentro desta disciplina, conteúdos como administração e planejamento em saúde e de educação em saúde são muito pouco enfatizados. Chama a atenção o excessivo número de disciplinas e a carga horária dedicada à inspeção e tecnologia de produtos, com um detalhamento que vai além do nível de graduação (tabela 2). Curso de medicina veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) O tempo previsto para integralização curricular do curso da escola de medicina veterinária da UFMG é de dez semestres, com um mínimo de oito e máximo de 17 semestres. A grade curricular conta com uma disciplina de sociologia e antropologia, importante para fornecer ao aluno uma visão mais voltada para a sociedade, fortalecendo a compreensão da importância do coletivo, que auxilia o estabelecimento do estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública. É o currículo que apresenta a maior percentagem da carga horária destinada a esta área de atuação, com 13,89% (tabela 1). A disciplinas do estilo de pensamento de medicina veterinária preventiva e saúde pública ligadas à inspeção e tecnologia de produtos de origem animal ocupam mais da metade da carga horária desse estilo (tabela 2). O programa da disciplina de planificação em saúde animal, como a própria denominação anuncia, trata apenas o tema sob o ponto de vista da medicina veterinária, sem uma abordagem mais ampla que envolva a saúde pública. Esta lacuna dificulta a preparação do profissional para atuar em equipes multidisciplinares de saúde, no desenvolvimento de tarefas que extrapolem o âmbito da saúde animal e envolvam também a saúde pública. Curso de medicina veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR) O curso de medicina veterinária da UFPR tem duração média de cinco anos, podendo variar entre quatro e oito anos. A carga horária total é de 4500 horas, sendo 3795 horas de disciplinas de formação básica e profissionalizante, 315 de estágio curricular obrigatório, 240 de disciplinas

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optativas e 150 de atividades complementares. Destas, vinte deverão ser cumpridas na área de ciências humanas e sociais. Na tabela 1 observa-se que o estilo de pensamento de clínica veterinária se sobrepõe aos demais em termos de carga horária, com 35,18%. Este currículo está em fase de implantação, tendo sido adotado no ano letivo de 2002. Um ponto curioso é a obrigatoriedade para o aluno em cursar pelo menos vinte horas em atividades complementares na área de ciências humanas e sociais. Entretanto, seria mais interessante se estes conteúdos estivessem integrados aos demais conteúdos do curso, para que o aluno pudesse perceber a área dentro da profissão. As disciplinas ligadas à inspeção e tecnologia de alimentos ocupam quase metade da carga horária total do estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública (tabela 2). Ganham destaque as disciplinas relacionadas ao meio ambiente que, apesar de terem pequena representatividade dentro do estilo de pensamento em termos de carga horária, abordam importantes temas ligados à saúde. Curso de medicina veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) O currículo do curso de medicina veterinária da UFRGS está estruturado em 11 semestres e tem uma carga horária total de 5.070 horas (4470 horas em disciplinas obrigatórias e seiscentas horas em estágio curricular). Está constituído por quatro linhas curriculares que configuram os seguintes campos de conhecimentos: patologia animal, zootecnia, saúde pública, e ciências sociais. Pela representação dos estilos de pensamento nas disciplinas obrigatórias do curso (tabela 1), pode-se observar que o estilo de clínica veterinária retém a maior carga horária, com 42,62%. No que diz respeito especificamente ao estilo da medicina veterinária preventiva e saúde pública, existe uma interação entre as disciplinas e o cuidado em preparar o estudante para os conteúdos que serão vistos posteriormente. Chama a atenção a disciplina de ecologia aplicada à medicina veterinária que trata de temas como a ecologia médica e oportuniza aos alunos a aquisição de uma visão voltada para a saúde dos animais e, conseqüentemente, para a melhoria da saúde humana e da qualidade de vida. Como ela é ministrada nas primeiras fases do curso, fornece subsídios para as outras disciplinas desenvolverem e fortalecerem um pensamento preventivo e social. Outras disciplinas como a medicina veterinária preventiva e a veterinária em saúde pública enfatizam a promoção da saúde dando um enfoque populacional e preventivo, além de trazerem elementos das ciências sociais aplicadas à saúde. Mais da metade da carga horária destinada ao estilo de pensamento se concentra nas disciplinas de inspeção e tecnologia de alimentos. Curso de medicina veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) O curso da UFRPE tem a duração de 11 semestres, com uma carga horária de 4140 horas, incluindo o estágio supervisionado obrigatório, com 360 horas, e mais trinta horas referentes à prática de educação física.

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Este currículo apresenta uma das maiores cargas horárias para o estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública, com 13,2% do total do curso (tabela 1). Chama a atenção a oferta de uma disciplina – a filosofia da ciência e ética - na área de filosofia e epistemologia. É um dos poucos currículos que se preocupa explicitamente em fornecer ao aluno conhecimentos voltados para este campo e que são importantes para que ele tenha uma noção mais ampla sobre a natureza da ciência. Mais de 60% da carga horária das disciplinas ligadas ao estilo de pensamento de medicina veterinária preventiva e saúde pública é dedicada à inspeção e tecnologia de alimentos (tabela 2). Somente no nono semestre do curso, na disciplina de higiene veterinária e saúde pública, são trabalhadas as concepções de saúde e doença – quando o aluno já teve contato com outros conteúdos de patologia. O que pode ocorrer é que o estudante não teve oportunidade de apreender de maneira correta essas concepções e pode formar noções equivocadas. Neste curso ocorre o mesmo que na Universidade Federal de Minas Gerais, em que apenas é dado enfoque para o planejamento em saúde animal, sem preparar os alunos para efetuarem ações dentro da saúde pública. Curso de medicina veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) O curso de medicina veterinária da UFRRJ tem a duração mínima de cinco anos e máxima de oito. A carga horária total do curso é de 4245 horas, sendo 4185 em disciplinas obrigatórias e sessenta horas em optativas, não sendo exigido estágio curricular. Este curso é o que apresenta a maior carga horária destinada ao estilo de pensamento da clínica veterinária, com 42,65% (tabela 1). Há uma grande vantagem de carga horária para as disciplinas do segmento de inspeção e tecnologia de alimentos dentro da medicina veterinária preventiva e saúde pública. Mais de 70% da carga horária desse estilo de pensamento é dedicada às disciplinas relacionadas à Inspeção, em detrimento de outras sub-áreas dentro do estilo (tabela 2). Há somente uma disciplina que aborda conteúdos relacionados à epidemiologia e zoonoses (higiene e saúde pública) que, pelo pouco tempo disponível, aborda esses temas de forma superficial. A parte de administração e planejamento em saúde e também de educação em saúde não são mencionadas no programa dessa disciplina. Como conseqüência, pode-se especular que o aluno sentirá dificuldades para adotar um pensamento preventivo e social em sua prática profissional. Curso de medicina veterinária da Universidade de São Paulo (USP) Além da carga horária de 4485 horas em disciplinas obrigatórias, são adicionadas trinta horas em disciplinas optativas e 480 horas de estágio ao currículo da faculdade de medicina veterinária e zootecnia da USP, que tem uma duração ideal de dez semestres, com máximo de 18. O curso apresenta uma percentagem grande de sua carga horária destinada ao estilo de pensamento da clínica veterinária (42,47%), ao mesmo tempo em que o estilo da medicina veterinária preventiva e saúde pública recebe uma

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percentagem bastante baixa (9,7%) – tabela 1. Dentro do estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública, não há disciplinas específicas ligadas ao meio ambiente (tabela 2). Apesar da pequena carga horária destinada a esse estilo de pensamento, um ponto positivo observado neste currículo é que a epidemiologia começa a ser vista na metade do curso, auxiliando a formação do pensamento preventivo e populacional. A disciplina de gerenciamento em saúde animal e saúde pública enfatiza assuntos pouco tratados nas disciplinas do segmento de saúde, mas importantes para consolidar a visão social, tratando não somente da planificação em programas de saúde animal, mas também de saúde pública. Curso de medicina veterinária da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) O curso de medicina veterinária da UDESC está localizado na cidade de Lages e tem duração de dez semestres, apresentando uma carga horária total de 4890 horas (4170 de disciplinas obrigatórias, 120 de disciplinas optativas e seiscentas para o estágio profissional obrigatório). O estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública ainda se apresenta de maneira incipiente dentro do currículo, e a quantidade de tempo dedicada aos conteúdos pertinentes à saúde pública é muito mais baixa do que para os estilos de clínica veterinária e de zootecnia e produção animal, sendo inclusive inferior às matérias básicas e aos outros estilos de pensamento (tabela 1). Os estudantes começam a tomar contato com o estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública somente a partir do quarto semestre do curso, e de maneira muito superficial. Nesta fase, a maior carga horária está concentrada sobre o estilo da clínica veterinária e também sobre as matérias básicas. Somente no final do curso – a partir do 8º semestre – é que o estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública começa realmente a ser apresentado para os alunos, quando todos os outros estilos já tiveram oportunidade de se desenvolver e de despertar o interesse dos estudantes. Isto faz com que o pensamento preventivo e populacional tenha sérias dificuldades para se instalar, confome Pfuetzenreiter (2003) constatou a partir de entrevistas com estudantes do curso.

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Tabela 1 – Percentagem de carga horária referente aos estilos de pensamento nas disciplinas obrigatórias dos currículos dos cursos de medicina veterinária das universidades pioneiras do Brasil ESTILO DE PENSAMENTO CV

MVPSP

ZPA3

MB4

Outros5

CH Total6

%

%

%

%

%

%

UFBA

34,55

10,47

23,04

26,18

5,76

3630

UFF

35,04

12,77

14,23

31,75

6,20

4650

UFMG

38,49

13,89

16,27

25,79

5,56

3870

UFPR

35,18

13,04

19,76

31,23

0,79

4500

UFRGS

42,62

10,06

21,48

21,14

4,70

5070

UFRPE

37,20

13,20

19,60

24,40

5,60

4140

UFRRJ

42,65

10,05

14,69

28,31

4,30

4245

USP

42,47

9,70

15,38

30,77

1,67

4995

UDESC

41,73

5,75

17,27

29,86

5,39

4890

Média dos cursos pioneiros

38,62

11,64

17,96

27,42

4,36

4388

Média de todos os cursos

38,96

10,98

17,88

27,69

4,48

4443

1

CURSO

2

Notas: 1 Estilo de pensamento de clínica veterinária. 2 Estilo de pensamento de medicina veterinária preventiva e saúde pública. 3 Estilo de pensamento de zootecnia e produção animal. 4 MB: matérias básicas. 5 Outros/Mesclas: outros estilos de pensamento e mesclas de estilos. 6 CH Total: carga horária total do curso, que inclui as disciplinas e o estágio obrigatório.

Tabela 2 – Carga horária relativa às atividades da medicina veterinária preventiva e saúde pública nos cursos de medicina veterinária das universidades pioneiras do Brasil CURSO

INSPEÇÃO E TECNOLOGIA1 (%)

MEIO AMBIENTE2 (%)

SAÚDE3 (%)

MEIO AMBIENTE E SAÚDE (%)

UFBA

60,00

-

40,00

-

UFF

74,29

8,57

17,14

-

UFMG

62,86

8,57

28,57

-

UFPR

48,48

9,09

36,36

6,06

UFRGS

53,33

6,67

40,00

-

UFRPE

63,64

12,12

24,24

-

UFRRJ

71,43

14,28

14,28

-

USP

44,83

-

55,17

-

UDESC

42,50

12,5

25,00

-

Média dos cursos pioneiros

59,86

7,41

31,97

-

Média de todos os cursos

60,15

7,98

31,20

-

Notas: 1 Disciplinas com conteúdos relacionados à inspeção e tecnologia de produtos de origem animal. 2 Disciplinas com conteúdos relacionados à ecologia e meio ambiente. 3 Disciplinas com conteúdos relacionados à epidemiologia, zoonoses, educação em saúde; administração e planejamento em saúde.

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5 A concepção biologicista se fundamenta em uma visão reducionista, enfatizando a doença e o atendimento individual. A visão higienista preventivista se sustenta na multicausalidade e concentra sua prática na prevenção e higiene. Finalmente, a atitude médico-social entende a saúde enquanto processo determinado socialmente e concentra sua atenção na coletividade.

Discussão O curso de medicina veterinária da UDESC está entre os cursos com maior carga horária (4890 horas), sendo inferior apenas à UFRGS (5.070 horas) e à USP (4995 horas). As escolas de educação superior com menor carga horária pertencem à UFMG, com 3870 horas, e a UFBA, com 3630 horas. Entretanto, não há exigência de estágio curricular obrigatório para o curso da UFMG. Em todos os cursos é observada maior representatividade para o estilo de pensamento de clínica veterinária, seguida pelo estilo da zootecnia e produção animal, com a menor participação para a medicina veterinária preventiva e saúde pública (tabela 1). A pequena carga horária para o campo da medicina veterinária preventiva e saúde pública nos cursos já foi observada no passado por Cruz & Acha (1972).A baixa representatividade deste último estilo indica que ele ainda não se firmou dentro da estrutura dos cursos, apesar da grande importância dos conhecimentos que traz para a atividade profissional nas diferentes áreas de atuação profissional. A situação apresentada no curso da UDESC é ainda mais crítica, dado que a percentagem de carga horária destinada ao estilo da medicina veterinária preventiva e saúde pública representa menos da metade da média apresentada pelos demais cursos analisados. Cutolo (2001) mostra que há três concepções de saúde – a preventivista, a médico-social e a biologicista – nos cursos de graduação em medicina, que seriam elementos caracterizadores dos estilos de pensamento5. No curso estudado pelo autor, a carga horária destinada às disciplinas que oferecem uma visão reducionista é muito superior em comparação com as atividades voltadas à área de ciências humanas. No modelo de ensino criticado pelo autor, essa visão é dominante e, apesar de hegemônica, não é a única e convive com as demais. Sobre o aprendizado dentro de determinado estilo, Fleck (1986) explica que o ver formativo direto e desenvolvido exige o desenvolvimento da capacidade para adquirir uma visão direcionada para determinada perspectiva, reduzindo drasticamente a habilidade para outras formas de percepção. Nas descrições das características e objetivos dos cursos e dos campos de atuação na profissão, os estabelecimentos de ensino estudados, inclusive o curso da UDESC, colocam em destaque a medicina veterinária preventiva e saúde pública. Entretanto, pela análise efetuada, na prática as outras áreas se sobressaem muito mais, mesmo naqueles cursos que estão localizados nos centros de ciências médicas e da saúde de suas instituições. Em todas as escolas superiores estudadas os conteúdos do estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública estão desarticulados dos outros estilos, sem inter-relação com os demais conhecimentos da profissão médico-veterinária. Mesmo dentro do próprio estilo de pensamento há necessidade de haver maior conexão entre os conteúdos das disciplinas. Alguns autores (Arámbulo & Ruíz, 1992; Palermo Neto, 1995) sugerem a mudança de perspectiva dos currículos dos cursos de medicina veterinária para uma formação mais voltada para os aspectos de saúde pública. As cargas horárias dos conteúdos relativos às diversas atividades dentro

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do estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública estão distribuídas sem uniformidade nas disciplinas da área (tabela 2). As disciplinas que tratam de conteúdos de inspeção e tecnologia de alimentos – que apresentam uma visão higienista-preventivista – se destacam sobre as demais, enquanto as disciplinas que trabalham conteúdos relacionados ao meio ambiente – caracterizados pela visão social – são as que apresentam menor carga horária. Os conteúdos ligados à epidemiologia, zoonoses, educação em saúde, administração e planejamento em saúde – que possuem tendências de natureza higienista-preventivista e também social – são os que possuem maior irregularidade em sua distribuição nos cursos, sinal de que não estão ainda bem firmados dentro do estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública. Uma observação da bibliografia utilizada nas disciplinas do estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública revela que há um pequeno número de referências relacionadas às ciências sociais aplicadas à saúde e quase ausência na área de educação em saúde. Este fato indica que há necessidade de uma atenção maior para a saúde coletiva, para que os alunos passem a ter uma compreensão completa da saúde das populações levando em consideração os aspectos sociais, culturais e econômicos e passem a ter um grau maior de comprometimento com a saúde da população. A pequena aproximação da medicina veterinária preventiva e saúde pública com as ciências humanas e sociais e com a educação em saúde é um reflexo da falta de interação dos cursos com outras áreas do conhecimento. Um outro ponto que chama a atenção é que os alunos tomam contato com certos conteúdos de medicina veterinária preventiva e saúde pública em períodos muito adiantados do curso. Um exemplo é a compreensão dos modelos de saúde e doença. Este assunto está inserido da metade para o final do curso, quando os alunos já tiveram outros conhecimentos que trataram especificamente do patológico, sem versar sobre a saúde, fazendo com que eles apresentem concepções próprias sobre o fenômeno, distantes dos conceitos estabelecidos pela saúde coletiva. Como um exemplo desta constatação, os formandos do curso de medicina veterinária da UDESC possuem uma representação de saúde e doença como aspectos antagônicos, quando deveriam compreender o fenômeno de forma mais ampla (Pfuetzenreiter et al., 2001). Percebe-se que certas atitudes dos coletivos de pensamento tendem a se perpetuar, caracterizando uma forte resistência a mudanças. Fleck (1986) alerta que existe uma tendência à persistência das idéias e quem não concorda com a estrutura organizada é tratado como exceção. Pelo comportamento adotado pelos coletivos de pensamento nos cursos observa-se que cada estilo de pensamento vai se tornando uma estrutura cada vez mais rígida e que deixa pouco espaço para o desenvolvimento de outras formas de pensamento (Pfuetzenreiter, 2003). Conclusões Todos os currículos analisados seguem um modelo de estrutura curricular fixa, seguindo os parâmetros propostos pelo currículo mínimo de 1984, que favorece a compartimentalização das disciplinas, sem haver inter-relação de umas com as outras. Como conseqüência, percebe-se uma tendência de

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isolamento das mesmas, dos conteúdos e, conseqüentemente, das formas de pensamento dentro do curso, refletindo-se em uma forma de ensino fragmentado e desprovido de um sentido mais amplo para o aluno. Pelo exposto, concluímos que o foco principal das escolas estudadas é para uma formação tecnicista baseada no desenvolvimento de conhecimentos teóricos e práticos específicos das áreas de atuação da medicina veterinária, sem uma preocupação explícita com uma formação mais ampla, que contemple outros domínios do conhecimento humano, como as ciências humanas e sociais – aspectos fundamentais que auxiliam no estabelecimento de um pensamento voltado para a medicina veterinária preventiva e saúde pública. Considerando o quadro descrito sugerimos que, na implantação e implementação das recentes Diretrizes Curriculares para os cursos de medicina veterinária (Brasil, 2003), se busque estabelecer a identidade da medicina veterinária preventiva e saúde pública e que sejam traçados os objetivos do ensino desse estilo de pensamento. Frente ao ritmo de crescimento dos conhecimentos na área, torna-se importante ainda que sejam oferecidas aos estudantes oportunidades que contemplem o desenvolvimento da capacidade de pensar, elaborar juízos e de articulação com os conteúdos dos demais estilos. Propomos que um plano de ensino para a medicina veterinária preventiva e saúde pública deve proporcionar aos estudantes a aquisição de conhecimentos e prepará-los por meio de experiências de aprendizado para solucionarem os problemas de comunidades. A elaboração do saber aliada à pesquisa e à extensão universitária permeariam a construção curricular da área de medicina veterinária preventiva e saúde pública (e também das demais áreas do curso de medicina veterinária). Sugerimos, também, que a conscientização dos profissionais de saúde e da população em geral sobre o papel do médico veterinário para a saúde pública, principalmente em relação ao controle de zoonoses seja estimulada, com os cursos se preocupando em fornecer uma compreensão maior sobre a área, para facilitar as discussões de caráter interdisciplinar e promover a colaboração entre os profissionais envolvidos no tema. Finalmente, destacamos a importância de que a implementação do estilo de pensamento da medicina veterinária preventiva e saúde pública nos currículos atinja todas as esferas de ação deste estilo como os conteúdos relacionados à ecologia e meio ambiente, epidemiologia, zoonoses, educação em saúde, administração e planejamento em saúde e à inspeção e tecnologia de produtos de origem animal. Referências ARÁMBULO, P. III; RUÍZ, A. Situación actual y futura de la medicina veterinaria. Educ. Méd. Salud, v.26, n.2, p.263-76, 1992. BÖGEL, K. Veterinary public health perspectives: trend assessment and recommendations. Rev. Sci. Tech., v.11, n.1, p.219-39, 1992. BOLETIM DE LA OFICINA SANITARIA PANAMERICANA. La salud pública veterinaria, v.113, n.5-6, p.494501, 1992. BRASIL. Resolução nº1/03 – Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Medicina Veterinária. Diário Oficial da

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PFUETZENREITER, M.R.; ZYLBERSZTAJN, A.

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PFUETZENREITER, M.R.; ZYLBERSZTAJN, A. La enseñanza de salud y los curriculos de las carreras de medicina veterinaria: un estudio de caso, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p.349-60, mar/ago 2004. El trabajo hace un análisis documental de los currículos de las carreras de Medicina Veterinaria pioneras en el país y de la carrera de la Universidad del Estado de Santa Catarina. Se identificaron tres campos de acción principales dentro de la Medicina Veterinaria relacionados con las actividades prácticas realizadas en la profesión, y que corresponden a los contenidos curriculares de las carreras: clínica veterinaria, medicina veterinaria preventiva y salud pública, y zootecnia y producción animal. Fue articulada la relación entre esas áreas y la categoría epistemológica “estilo de pensamiento” propuesta por L. Fleck. El análisis de los datos obtenidos indicó que los conceptos de naturaleza social y preventiva son poco significativos dentro de las carreras de medicina veterinaria, lo cual hace que el estilo de pensamiento de la medicina veterinaria preventiva y salud pública sea poco enfatizado con relación a los otros estilos de pensamiento presentes en la profesión. PALABRAS CLAVE: Medicina Veterinaria; currículo; educación veterinaria; enseñanza en salud; “estílo del pensamiento”.

Recebido para publicação em 20/03/04. Aprovado para publicação em 18/07/04.

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Máquinas de sentido: processos comunicacionais em saúde

livros

SILVA, J. O.; BORDIN, R. (Orgs.). Porto Alegre: Dacasa Editora/Escola de Gestão Social em Saúde, 2003. Série Comunicação e Saúde. vol. 2, 164 páginas.

Os muitos sentidos da comunicação e saúde Apesar de as relações entre a comunicação e a saúde serem bastante antigas, só nos últimos quinze anos é que começaram a configurar um campo não apenas de práticas, mas de produção sistemática de conhecimentos. Na formação desse campo, os cursos de pósgraduação e os livros têm desempenhado papel relevante. “Máquinas de sentido: processos comunicacionais em saúde” encontra-se na confluência desses dois espaços: é o segundo livro de uma série que se propõe a divulgar os trabalhos de conclusão do curso de especialização em Comunicação e Saúde, da Escola de Gestão Social em Saúde da UFRGS. Neste sentido, é uma iniciativa muito bem-vinda, pois amplia o escasso número de publicações que se dedicam ao tema; assim, fortalece e legitima a própria existência do campo como produtor de conhecimentos e não só como conjunto de instrumentos a serviço da circulação de conhecimentos produzidos por terceiros. Por outro lado, o curso é uma atividade do PROMED/OPAS/MS, o Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares para as Escolas Médicas, o que aponta para um crescimento da importância do tema da comunicação para a formação dos profissionais da saúde. O livro foi organizado em duas partes. Na primeira, “Discutindo conceitos”, seis professores ou especialistas escrevem sobre formação histórica do campo, interesses mercadológicos, construção midiática da aids, confiança, interface educação popular / comunicação e ética. Na segunda, “Mapeando o campo”, são apresentados ao leitor igual número de trabalhos de alunos, cinco dos quais são estudos sobre o tratamento conferido pela grande mídia a temas como uso de drogas, corpo feminino, maternidade adolescente, PSF e saúde. Um último texto

apresenta uma experiência de produção participativa de uma cartilha sobre a Aids. Da mesma forma que em outros processos de constituição e afirmação de um conjunto de saberes, a comunicação e saúde têm sido espaço de expressão de modos diferentes de observar, recortar, denominar, enfim, de pensar a relação entre estes campos. Assim, podemos observar hoje a formação de duas grandes tendências, marcadas predominantemente pelo lugar de onde falam seus agentes: uma que pensa e produz conhecimentos a partir do locus da saúde e outra cujo ponto de partida é a comunicação. A primeira tende a reconhecer e localizar os processos de comunicação no contexto dos movimentos da saúde e das lutas pela consolidação do SUS; percebe a comunicação como condição para a eqüidade, a integralidade e a universalidade da saúde; considera o direito à comunicação como indissociável do direito à saúde; agenda a comunicação no rol dos requisitos indispensáveis para um efetivo controle da sociedade sobre as políticas de saúde; questiona os modelos hegemônicos centralizadores da palavra e buscam outras possibilidades. O interesse pela mídia, aqui, aparece subordinado a estes outros, sendo percebida como uma das vozes relevantes nos cenários estudados. A segunda demarca a mídia como seu objeto preferencial: as estratégias de construção dos significados, os dispositivos de construção dos sentidos, os embates discursivos na mídia impressa, audiovisual ou eletrônica. A mídia aqui é o ator principal no cenário da saúde. Embora as combinações entre os dois enfoques venham se tornando cada vez mais comuns, principalmente por meio da produção acadêmica de agentes da saúde que optam pelos estudos pós-graduados em

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LIVROS

comunicação, em geral as publicações e os eventos (congressos, cursos) tendem a fortalecer esta ou aquela abordagem. O livro “Máquinas de sentido” situa-se, porém, no entremeio das duas, ficando para o leitor a incumbência de estabelecer a articulação e um debate produtivo entre as vozes heterogêneas. No seu artigo sobre “Aids e novas ‘políticas de reconhecimento’”, ao analisar os processos de nomeação e construção da Aids pelos meios de comunicação, Antônio Fausto Neto lembra que a ação comunicativa se estrutura em processos complexos de reconhecimentos, que são atravessados por diferenças, negociações e estratégias multidiscursivas. A ação comunicativa é mais larga seja por que se funda em construções teóricas mais amplas do que a performance instrumental, seja porque envolve uma questão central, hoje, na problemática relacionada com a produção de sentido, que são as diversidades estruturais, de interesse, e de ordem simbólica, dos campos sociais. (p.50)

Sua observação veio no bojo de uma crítica ao reducionismo da maioria das metodologias e práticas atuais da comunicação na saúde, que ignoram a multidiscursividade social. E aí podem ser incluídas tanto as crenças e práticas difusionistas, como as abordagens que atribuem à mídia o poder absoluto de construção da realidade, sem levar em conta os múltiplos interesses em jogo e as mediações de toda ordem que se estabelecem no complexo processo de produção dos sentidos sociais. Tal enfoque encontra ressonância, no livro, no primeiro artigo da parte I, no qual Janine Cardoso traça a trajetória histórica da articulação entre comunicação e saúde, suas estreitas ligações com o campo da educação, suas relações intrínsecas com o contexto político do país e mapeia crescentes questionamentos e experiências que subvertem as idéias e as práticas de uma participação comunitária restrita e regulada, própria dos discursos desenvolvimentista e populista. Percebe-se que as práticas e demandas de comunicação também passam a integrar processos mais amplos que buscam democratizar relações e estruturas sociais. Geram e fortalecem demandas de políticas

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públicas, que requalificam esse atributo: as políticas devem ser públicas não só pelos objetivos que perseguem, mas por considerar e negociar com a pluralidade de interesses existentes na sociedade. (p.23-4)

Cardoso também fala de um redimensionamento atual da área de comunicação no âmbito do Ministério da Saúde, apontando que a educação em saúde se vê cada vez mais a braços com o “componente comunicação”. Neste sentido, é interessante notar que a área de materiais educativos tem recebido crescente atenção das instâncias públicas e privadas (movimentos e ONGs, sobretudo). Tendo sido objeto de atenção em outras décadas, sobretudo a partir dos campos da agricultura e desenvolvimento, os modos de constituição da realidade por meio de impressos ditos educativos readquirem hoje importância no âmbito da saúde, processo alimentado pela compreensão que ali estão não só expressos um modo de entender e propor identidades e, portanto, de constituir relações de poder, mas também que os impressos constituem espaços de consolidação de uma abordagem da saúde que hoje não se considera mais desejável. O último trabalho dos alunos representa bem este movimento, ao operar na interseção da educação e da comunicação em saúde e ao fazer uma crítica ao modo dominante de concepção, elaboração e uso dos materiais educativos. As autoras Margarita Diecks, Renata Pekelman e Daniela Wilhelms relatam uma experiência de produção participativa de materiais impressos sobre a prevenção das DST/Aids, com mulheres de bairros periféricos de Porto Alegre. A partir da crítica à abordagem biomédica e à concepção linear, técnica e normativa de comunicação dos materiais, elas desenvolveram uma proposta que leva em conta a complexidade da realidade local e do cotidiano popular. Complexidade que inclui, certamente, a presença da mídia impressa e audiovisual na vida da população, mas a ela não se reduz. Cardoso afirma, em seu artigo já comentado, que na atualidade outros interesses passaram a interpelar e pressionar as práticas e estruturas de comunicação e cita a “crescente midiatização das formas de relação social”. Em outro momento, menciona que o Ministério da Saúde, tendo

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LIVROS

deslocado para a educação e para a sociedade as atividades mais relacionadas com a educação popular, tende a concentrar esforços, na comunicação, em meios de largo alcance, como a TV. Desta forma, ganham relevância os “cânones, lógicas, práticas, regras, perfil profissional, cadeia produtiva etc” da publicidade e do meio televisivo. Adquirem importância estudos que busquem compreender os dispositivos de produção de sentidos das mídias, bem como o contexto mais macro que é objeto da economia política da comunicação, campo que vem crescendo rapidamente no país. Se tivermos estes parâmetros, fica mais fácil estabelecer uma conexão e uma conversação com outros textos da parte II do livro, que apresentam análises do modo como a mídia – TV e jornais impressos – tratam temas relevantes para a saúde. Esta vertente recebe sua fundamentação teórica na parte I, pelo trabalho de José Ricardo Soethe, denominado “Media, construção de sentido e saúde”, no qual discute a construção midiática de sentidos na área da saúde, a partir das categorias analíticas da agenda setting e marketing e conclui que a saúde está sim, na mída, mas atrelada a interesses mercadológicos (p.27-37). Os outros trabalhos sobre mídia são análises de conteúdo, que remetem para medições quantitativas (freqüência, localização, fontes) ou para a inferência de valores presentes nos textos analisados. De um modo geral, a observação de Sara Feitosa, em “Quando a saúde é notícia em Veja”, resume uma das principais conclusões dos trabalhos: “A saúde é notícia, essencialmente, porque há um público consumidor dessa informação” (p.138). Assim são “Corpo e saúde na revista Cláudia” (Andiara Cavagnoli e outros), que também conclui pela prática de merchandising e pela reafirmação dos padrões hegemônicos de corpo feminino; “A maternidade negada: o caso da revista capricho” (Milena Klippel e outros), que investiga como os textos na revista participam da constituição das identidades das mães adolescentes e conclui pela “inexistência de matérias e referências à maternidade na adolescência, desta forma negando a sua existência”. O texto “O Programa de Saúde da Família como notícia”

(Andréa Araújo e outros) verifica a presença do PSF na imprensa gaúcha e conclui que este não é agenda de interesse, uma vez que o discurso dos jornais reflete o modelo tradicional de assistência, “o curativo”, onde têm destaque notícias sobre novas tecnologias no tratamento dos males, os medicamentos, as doenças já instaladas e as mazelas no atendimento de saúde. (p.131)

Este diagnóstico se complementa com o de Sara Feitosa, quando diz que “saúde é notícia a partir da existência de um fato ‘novo’, ‘espetacular’, ‘fantástico’ que justifique sua publicação” (p.138). Por fim, o texto “Hermes e Renato - as drogas na MTV” (Helena Fernandes e Carlos Amaral) utiliza o método de grupo focal com jovens para analisar a visibilidade dada ao assunto por um programa de televisão. Se considerarmos que o objetivo do curso e do livro, segundo a apresentação dos organizadores, é dar relevo justamente à mídia e seus dispositivos de construção dos sentidos, certamente o intento foi atingido. Mas, seria interessante dialogar um pouco com a escolha do título do livro, assim como com alguns dos pressupostos teóricos mobilizados na apresentação. “Máquinas de sentido” é uma expressão pinçada do artigo de Fausto Neto e ali encontra sua pertinência. Mas, dali extraída e se estamos justamente falando de “processos comunicacionais”, de pluralidade de vozes, de sentidos que não se fecham na esfera da produção, de contextos que exercem coerções sobre as práticas midiáticas, institucionais e do cotidiano, então fica difícil entender como a metáfora “máquina” pode expressar aquilo que é jogo de relações. Máquina remete para uma relação mecânica e não para dispositivos de construção da realidade. Nesta perspectiva, o título acaba por diminuir a importância da proposta que o conjunto da obra nos apresenta. Por outro lado, curiosamente, na apresentação os organizadores assumem uma posição teórica que no mínimo contrasta com as escolhas da primeira parte do livro: ali vamos encontrar temas como ética (Marco

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Antônio Azevedo), políticas públicas e modelos institucionais (Janine Cardoso, Jaqueline Silva e outros), confiança e responsabilidade social (Egon Roque Frölich), que não se coadunam com o enfoque da “modernidade líquida” defendida brilhantemente por Silva e Bordin. Eles nos falam, apoiados principalmente em Baumann e Touraine, da fluidez e constante metamorfose que caracteriza nossos tempos, dizem que os processos comunicacionais são fluidos, “não se fixam no espaço e no tempo”. Mas, se essas constatações são irrecusáveis sob o aspecto teórico, não podemos ignorar que, na prática, os conteúdos se fixam em dispositivos que encontram materialidade nos suportes discursivos, como por exemplo o jornal (não fosse por isto, a História não estaria hoje sendo construída marcadamente pelos registros midiáticos, considerados fontes históricas fidedignas). Ou nas cartilhas e diversos materiais de comunicação que o campo da saúde produz e faz circular. Desta forma, os processos comunicacionais, por meio dos suportes materiais, sedimentam sentidos, constróem hegemonias. É pela Comunicação que as relações de poder se estabelecem, é pela comunicação que o poder simbólico é exercido, é na comunicação que as forças sociais e políticas centrípetas e centrífugas se defrontam e disputam hegemonia. É, enfim, a comunicação o espaço que nos apresenta a possibilidade e o desafio de mudar a correlação de forças, de fazer ver e fazer crer na polifonia da saúde como fator de transformação da realidade atual. Neste sentido, nossos tempos podem ser vistos otimistamente como lugar de crítica, de resistência e de transformação. O trabalho de produção coletiva das cartilhas sobre DST/Aids é um exemplo dessa crença, esforço e possibilidade. E é também neste sentido que trabalhos que explorem temas como ética, confiança e políticas públicas encontram seu lugar. Tomando um outro ângulo, os organizadores falam que os princípios universais não se encontram mais nas instituições sociais e sim nos indivíduos. Esta característica tende a destacar o eixo discursivo da ética e da política para o direito

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de escolha dos modos de vida por parte dos indivíduos em detrimento de agendas vinculadas à questão da justiça social. (p.7)

Poderíamos dizer, embora também concordando com a análise mais macro do cenário contemporâneo, que apesar disso os princípios são ainda determinados pelas instituições e pelo lugar de interlocução dos sujeitos, que determina quem e o que pode falar, as regras de interlocução e, sobretudo, quem tem o direito de fazer circular seus discursos e ser ouvido. E aí outra pergunta se impõe: quem são os sujeitos da saúde, os atores sociais e políticos da saúde, hoje? Só a partir dessa resposta é que poderíamos, de fato, analisar em profundidade o quanto a fluidez que marca nossos tempos imprime sua marca na produção dos sentidos da saúde. Sentidos que são, sem dúvida, construídos pelo campo midiático, mas não apenas, como nos mostra Fausto Neto, ao desvelar a complexidade deste cenário e fazer ver que as mídias são poderosas, criam realidades, mas não operam no vazio, não criam sentidos apenas a partir de suas próprias lógicas. Enfim, estamos sem dúvida falando sobre e a partir de um campo que é profundamente marcado pelas tensões entre modelos, enfoques, práticas, interesses, discursividades, vozes. O livro aqui resenhado mostra-se um bom exemplo dessas tensões e, sobretudo, consiste numa relevante e meritória iniciativa no sentido da compreensão desse campo, da qual precisamos para construir nosso presente e nosso projeto de futuro. Que venham mais cursos, que venham mais livros. Inesita Soares de Araújo Pesquisadora, Centro de Informação científica e Tecnológica, Departamento de Comunicação e Saúde, Núcleo de Ensino e Pesquisa, Fiocruz <inesita@cict.fiocruz.br>

PALAVRAS-CHAVE: Comunicação; saúde; mídia. KEY WORDS: Communication; health; media. PALABRAS CLAVE: Comunicación; salud; midia.

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Recebido para publicação em 20/07/04. Aprovado para publicação em 28/07/04.


teses

A construção da competência clínica:

da concepção dos planejamentos de ensino às representações da aprendizagem entre graduandos de enfermagem The building of clinical competence: from the concept of planning teaching to the expression of learning among nursing graduate students

Pensar a formação de enfermeiros pressupõe articular essa questão às expressões de referenciais teóricos, na perspectiva de uma vertente pedagógica que passe pelo construtivismo e por competências. Assim, os objetivos foram: caracterizar, numa visão longitudinal, a proposição de competências assistenciais na graduação; identificar o potencial de competência clínica de graduandos de enfermagem; analisar representações discentes relativas à aprendizagem das experiências clínicas e propor referenciais para a construção da competência clínica no âmbito da graduação em enfermagem. O estudo foi de natureza qualitativa, tendo como sujeitos alunos do último semestre da graduação, num total de 29 participantes; foi realizada análise documental dos planos de ensino das disciplinas assistenciais da graduação e utilizou-se também a Técnica do Incidente Crítico (TIC), proposta por Flanagan, como estratégia metodológica apta a identificar experiências significativas para a aprendizagem clínica. A instituição de ensino e os sujeitos aceitaram participar do estudo, conforme as recomendações ético-legais. Os dados foram trabalhados segundo a análise de conteúdo de Bardin, e evidenciaram: uma organização curricular centrada em disciplinas, com modalidades organizativas que partem do genérico para o específico, mantendo lógicas internas aparentemente refratárias às organizações somativas; uma direção da aprendizagem voltada à execução metódica de práticas em evolução, escolhidas pelos docentes, estimulando a inserção discente em

programações pré-estabelecidas e reiterativas. A ligação das atividades de ensino à vida real se faz por meio de práticas em campo que respondem timidamente à problematização da realidade. As intervenções parecem ser privilegiadas segundo uma ordem externa, as vezes distante da realidade dos alunos. Emergem, também, sinalizações de uma aprendizagem com vínculos pouco substantivos entre os conhecimentos prévios e a potencialização do julgamento crítico e do raciocínio clínico. Como proposição, o estudo trouxe reconsiderações para o processo ensinoaprendizagem e a influência da concepção construtivista na proposição das competências clínicas. Magda Cristina Queiroz Dell’Acqua Tese de Doutorado, 2004 Programa de Pós-Graduação em Saúde do Adulto, Faculdade de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo. <mqueiroz@fmb.unesp.br>

PALAVRAS-CHAVE: Educação em enfermagem; educação baseada em competências; competências profissionais; prática profissional; construtivismo. KEY WORDS: Nursing education; competence-based education; professional competence; professional practice; constructivism. PALAVRAS CLAVE: Educación en enfermería; educación basada en competencias; competencia profesional; práctica profesional; construtivismo. Recebido para publicação em 19/07/04. Aprovado para publicação em 27/07/04.

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LÚCIO FONTANA, Conceito espacial, 1962

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Estudo sobre a técnica e a saúde Study on technics and health

O trabalho é composto de duas partes. Na primeira, principalmente filosófica, discutimos o que é pensar, traçando uma imagem do pensamento, uma imagem do que significa nos servirmos do pensamento e nos orientarmos no pensamento. Essa imagem é, simultaneamente, o plano de imanência dos dois principais conceitos elaborados, correspondentes aos dois pólos deste estudo: Grande Saúde e agenciamentos tecnosemióticos. Na segunda parte, apresentamos um conjunto de ensaios que delineiam, desta vez, uma imagem da técnica. Argumentamos que esta imagem é mais completa do que aquelas que dominam as discussões sobre saúde e técnica, oferecendo um quadro mais dinâmico e eficiente para lidar com as grandes questões desta relação. Além das técnicas das coisas (aplicadas aos corpos e a outras dimensões do mundo físico e orgânico), reconhecemos as técnicas dos signos (aplicadas às mentes, mais especificamente à linguagem e à inteligência) e as técnicas das relações (instituições políticas e sociais). Quando levamos em conta estes últimos dois tipos de técnicas, iluminamos especialmente a vida

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dos serviços de saúde e as dimensões microfísicas das práticas de saúde, nível em que as técnicas das coisas (na maior parte, biotecnologias) são efetivamente distribuídas e tornadas disponíveis para os diferentes usuários. Ricardo Rodrigues Teixeira Tese de Doutorado, 2003 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo. <ricarte@usp.br>

PALAVRAS-CHAVE: Serviços de saúde; pensamento; técnica. KEY WORDS: Health service; thinking; technics. PALABRAS CLAVE: Servicios de salud; pensamiento; tecnicas.

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Recebido para publicação em 29/07/04. Aprovado para publicação em 05/08/04.


TESES

Uma clínica no coletivo: experimentações no programa de saúde da família An integrated clinic: experimentations on family health program

A tese trata da clínica no coletivo, por meio da incidência do plano clínico no campo da saúde pública, nomeadamente na atenção básica integral. O coletivo é pensado aqui como composição multifacetada de elementos e fluxos heterogênicos: pessoais, institucionais etc. Neste sentido, a incidência do plano clínico - não de uma ou outra disciplina clínica - diz respeito ao acionamento da potência de tratar os problemas de saúde em função das variáveis e dos processos que os constituem. O problema de pesquisa constituiu em investigar a viabilidade e a pertinência desta posição clínica no âmbito de uma política pública de atenção básica integral à saúde. Trata-se de um estudo de caso sobre as experiências clínicas (entre 1998 e 2003) das equipes de saúde da família no Qualis II – Programa da Saúde da Família realizado na cidade de São Paulo por meio de parceria inicialmente entre a Secretaria Estadual de Saúde e a Fundação Zerbini e, atualmente, desta última com a Secretaria Municipal de Saúde. Foi possível concluir pelo caráter produtivo da assunção de perspectivas clínicas no campo da atenção básica e, por meio delas, em outros níveis de assistência e gestão. No entanto, fica bastante claro, também, que não se trata de substituição de estratégias de intervenção e/ou de modelos de assistência. Ao contrário, a clínica se revela potente para produzir aberturas prospectivas e de (re)singularização individual e/ou coletiva no âmbito das práticas de saúde, porque dispõe ao imprevisível e ao intempestivo dos processos de adoecimento e de cura. Daí não se prestar

à condição de modelo ou a formulações macropolíticas. Vera Lúcia Ferreira Mendes Tese de Doutorado, 2004 Psicologia Clínica, Núcleo de Subjetividades Contemporâneas, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo <veralfm@uol.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: Saúde pública; serviços básicos de saúde; saúde da família. KEY WORDS: Public health; basic health services; family health. PALABRAS CLAVE: Salud public; servicios basicos de salud; salud de la familia.

Recebido para publicação em 27/07/04. Aprovado para publicação em 05/08/04.

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Fracasso escolar e condições de vida em crianças de sete a dez anos de idade, Sobral, Ceará Failure at school and the conditions of the lives of children from seven to ten years, in Sobral, Ceará O objetivo desta pesquisa foi estudar as condições de vida e saúde das crianças de sete a dez anos de idade da zona urbana do município de Sobral e suas relações com o desempenho escolar. Tratou-se de um estudo epidemiológico, de corte transversal, com entrevistas domiciliares, avaliação antropométrica e avaliação laboratorial. O banco de dados foi obtido a partir de uma pesquisa maior com 3444 crianças de cinco a nove anos, sorteadas aleatoriamente a partir do cadastro do Programa de Saúde da Família do município. A amostra desse estudo foi constituída de crianças que tinham sete a dez anos no dia da entrevista domiciliar. De acordo com o desempenho escolar anterior, as crianças foram divididas em três grupos. No grupo A, as crianças que estavam na escola e nunca repetiram, no B as que estavam na escola, mas já haviam repetido e, no C, as que estavam foram da escola. Foram analisadas as associações entre as variáveis demográficas, sócio-econômicas, ambientais, trabalho infantil, morbidade e consumo de serviços de saúde. Inicialmente, foram descritas as características para os três grupos. Como os valores para o grupo C foram muito piores do que os outros dois, foi feita análise univariada somente com os grupos de crianças repetentes e as não repetentes. Na análise multivariada permaneceram como fatores associados à repetência as variáveis consideradas marcadores sócio-econômicos, renda per capita e escolaridade materna; duas variáveis relacionadas à escolaridade, ajuda para fazer lição e irmão repetente, além das variáveis ser cadastrado no PSF e ter outra religião diferente da católica. Ter um irmão repetente aumentaria o risco de repetência uma vez que estão dadas todas as condições para que outras crianças da família sejam também repetentes. Ter

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ajuda para fazer lição seria um fator de risco, ao estar selecionando um grupo de crianças que necessitam de ajuda, por apresentarem maior risco de serem reprovadas. A variável cadastro no PSF comportou-se como marcador econômico e a variável ter outra religião pode estar identificando grupos com características próprias favoráveis ao desempenho escolar. Em relação às variáveis de saúde, apenas a referência à desnutrição anterior e a internação foram significativas na análise univariada. Entretanto, essa associação não se manteve na análise multivariada. Nenhuma das variáveis relacionadas à saúde permaneceu significativa na análise multivariada, o que permite afirmar que, para esse grupo, as condições de saúde não têm relação com o desempenho escolar. Vale destacar que a desnutrição pregressa não diferenciou o grupo de repetentes do de não repetentes. O estudo permitiu o aprofundamento da compreensão do fracasso escolar, com a inclusão de dimensões importantes para a sua rede complexa de causalidade, destacando a importância das condições sócio-econômicas, que se traduzem, nas conjunturas específicas, por variáveis distais especificadas, recomendando a necessidade de estudos sempre apoiados nos contextos específicos. Ana Cecília Sucupira Tese de Doutorado, 2003 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo. <asucupira@yahoo.com> PALAVRAS-CHAVE: Condições de vida; condições de saúde; baixo rendimento escolar; zonas urbanas. KEY WORDS: Living condition; health conditions; underachievement; urban zones. PALABRAS CLAVE: Condiciones de vida; condiciones de salud; rendimiento escolar bajo; zonas urbanas.

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Recebido para publicação em 15/07/04. Aprovado para publicação em 23/07/04.


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Saúde e envelhecimento: o autocuidado como questão Healthcare and aging: the issue of caring for one’s self Neste estudo examinamos as relações entre autocuidado e envelhecimento, nas narrativas de idosos favelados da cidade de São Paulo. Partimos da premissa de que assistimos, nas sociedades ocidentais contemporâneas, a modos heterogêneos de conceber, de experimentar e de gerir o envelhecimento. Com base nesse pressuposto geral, procuramos revisitar os conceitos de velhice, cuidado, autocuidado e promoção da saúde no envelhecimento. A gestão da velhice, durante muito tempo considerada como própria da vida privada e familiar, nos meados do século XX ganhou expressão e legitimidade no campo das preocupações sociais e transformou-se em uma questão da esfera pública. Porém, recentemente, o avanço das idades sofreu um processo de reprivatização, que recoloca o envelhecer e seus destinos sobre a responsabilidade individual, abrindo espaço, então, para que a velhice seja relativizada no leque das preocupações sociais do momento. No que se refere ao provimento de cuidados, esses processos tensionam o poder público, mas também a outras instituições e organizações da sociedade civil, tais como as comunidades e as famílias. Trata-se de estudo qualitativo no qual investigamos as formas de autocuidado adotadas pelos entrevistados, com ênfase na

relação com os serviços de saúde. Defendemos que o autocuidado não pode ser compreendido como simples adoção de saberes técnicos para a promoção da saúde, mas como uma atitude prática, relacionada à experiência de envelhecer, às condições de vida e às interações familiar e comunitária. Propomos a necessidade de resistir à tendência de responsabilização individual do idoso pela sua saúde, freqüentemente associada às propostas de autocuidado. Ângela Maria Machado de Lima Tese de Doutorado, 2003 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo <sertao@usp.br>

PALAVRAS-CHAVE: Saúde; cuidado; promoção de saúde. KEY WORDS: Health; care; health promotion; PALABRAS CLAVE: Salud; cuidado; promoción de la salud.

Recebido para publicação em 03/08/04. Aprovado para publicação em 11/08/04.

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espaço aberto

Dilemas e desafios da formação profissional em saúde BARAVELLI, Eixo

The dilemmas and challenges of professional training in health

Antenor Amâncio Filho 1

O contexto Vive-se hoje, no país, um raro momento histórico. Passada a euforia das eleições para Presidente da República, governadores e ocupantes de cargos nas esferas legislativas federal (Senado e Câmara) e estadual (Assembléias), a sociedade brasileira vivencia uma dupla ansiedade: uma certa apreensão quanto à possibilidade de reconfigurar o modelo de país construído até agora e a expectativa em relação à implementação de medidas que objetivem mudanças nas políticas públicas (com destaque para as econômicas e sociais), adotadas e defendidas pela administração que se encerrou no último dia de dezembro de 2002. Para isto, vem sendo estabelecida pelo governo e exposta para a sociedade, conclamada para debatêla, uma agenda de ações tidas como prioritárias (como as reformas no sistema previdenciário, nas áreas tributária e fiscal, na educação, na segurança pública, na saúde), para que transformações requeridas pela sociedade venham a ocorrer de maneira segura e irreversível, viabilizando uma vigorosa mudança no enfoque e na determinação das políticas públicas. Nesse contexto em que se insinua a busca por um novo sentido para a vida, em que sobressaiam o respeito à dignidade humana e a defesa intransigente dos direitos de cidadania, o trato e o destino da coisa pública vêm constituindo, cada vez mais, assunto inquietante, em particular para as forças políticas que defendem um Estado estruturado para distribuir riquezas e promover a justiça social. O discurso e as ações de caráter neoliberal, predominante na maior parte dos países, procuram expor que, em virtude de uma demasiada interferência do Estado, especialmente na aplicação de recursos para as denominadas áreas sociais (educação, saúde, transporte, habitação), a situação de crise hoje instalada seria fortuita e de aspecto meramente conjuntural e não, como explicita Frigotto (1995, p.62), “um elemento constituinte, estrutural, do movimento cíclico da acumulação capitalista, assumindo formas específicas que variam de intensidade no tempo e no espaço”.

1 Pesquisador, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde. <amancio@ensp.fiocruz.br>

Rua Esteves Junior, 22, apto. 101 Laranjeiras - Rio de Janeiro, RJ 22.231-160

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De fato, a expansão do movimento de globalização2 vem implicando mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais. Para enfrentar a nova divisão internacional do trabalho, políticas de corte neoliberal propõem mudanças em relação ao tamanho e às atribuições do Estado, advogam a desregulamentação das economias nacionais, enfatizam o papel do mercado e adotam um amplo programa de privatizações na esfera pública, incluindo áreas tradicionais de atuação, como educação e saúde, para reduzir os gastos estatais. Nesse percurso, o Estado social, “concebido como solução política para as contradições sociais” (Offe, 1991, p.114) passa a ser objeto de crítica em relação a sua concepção e identidade, com questionamentos crescentes quanto a sua credibilidade e eficiência. Ademais, com os avanços científicos e tecnológicos ocorrendo em todas as esferas do conhecimento, constituindo vigoroso fator de mudanças nas relações sociais e de produção de bens e de serviços, configura-se uma época em que a tendência é que as aspirações/realizações pessoais se referenciem não mais no plano do trabalho, mas no de consumo - sob o pressuposto de que o ser humano deve encontrar e afirmar sua própria identidade pessoal, elevando-a acima de um pretendido bem-estar coletivo - no qual “os indivíduos se hierarquizam segundo o valor de seus ordenados e tudo aquilo que estes possam comprar como símbolo de diferenciação” (Giannotti, 1995, p.3). Tendo presente as complexas interrelações que caracterizam o mundo atual, o que se aspira é que o debate para (re)discutir o formato e as possibilidades de uma sociedade diferente da atual, tenha como um dos seus focos principais as contradições observadas na tênue fronteira hoje existente entre as esferas pública e privada que, em algumas situações, nitidamente se confundem. Portanto, esse debate deve ter como horizonte uma sociedade remoldada sobre uma base ética que represente a lógica e a primazia do comum, o coletivo posicionado acima de concessões e de privilégios individuais ou de interesses apenas de determinados estratos sociais. Interrelações entre a educação e a saúde Os setores da educação e da saúde, como parte do setor terciário da economia, integram o conjunto daquelas atividades denominadas serviços de consumo coletivo e sofrem, portanto, os mesmos impactos do processo de ajuste macroestrutural a que o setor industrial vem sendo submetido nas duas últimas décadas: redução de custos, privatizações e terceirizações. No Brasil, de uma maneira geral, as instituições públicas de ambos os setores apresentam um quadro de dificuldades e de carências, com conseqüente retraimento e esvaziamento de suas ações, ocasionado por seguidos impactos de leis, de programas, de projetos referenciados em discursos de universalização do acesso, de melhoria da qualidade dos serviços, de modernização de suas práticas, mas descolados da realidade para a qual vêm sendo formulados. O trabalho em saúde se caracteriza pelas incertezas decorrentes da indeterminação das demandas, pela descontinuidade e pela disponibilidade para atender a todos os casos, inclusive aqueles excepcionais. Ele guarda algumas especificidades que o impedem de seguir uma lógica rígida, como a racionalidade dos critérios da produção material, sendo difícil sua normalização técnica e a avaliação de sua produtividade. Na saúde, o denominado Movimento da Reforma Sanitária, que adquiriu impulso e dimensão nacional a partir da metade da década de 1980, procurava interpor-se a decisões/razões de ordem governamental, atuando para explicitar e disseminar a percepção da saúde não como contraposição à doença, mas como resultante de uma totalidade da qual é integrante e na qual interferem múltiplas dimensões do real, incluindo as esferas biológica, histórica, sociológica e tecnológica e, simultaneamente, apontando caminhos para superar uma tradicional característica dos organismos públicos, a do cumprimento a-crítico a determinações das instâncias que os subordinam - muitas delas fundadas na expectativa de obtenção de

2 Sobre “a nova ordem política da globalização” e seus desdobramentos para o futuro do mundo, importante a leitura de Império, Hardt & Negri., 2001.

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resultados imediatos ou de curtíssimo prazo - e, ainda, procurando romper com a renitente inadequação entre formulações teóricas e a rebeldia do cotidiano. Mudança estratégica firmada por esse movimento dizia respeito à urgente melhoria dos processos de formação dos profissionais da saúde, com ênfase para os de nível médio, tendo em vista a importância da formação, qualificação, treinamento e atualização de pessoas para atuar não apenas em nível de gerência mas, principalmente, para ocupar posições nos segundo, terceiro, quarto escalões da hierarquia funcional, porque é sobre esse contingente que recai enorme parcela de responsabilidade em sustentar e garantir, técnica e politicamente, a permanência do sistema de saúde. Todavia, decorridos tantos anos e acumuladas seguidas intenções de aproximar as áreas da educação e da saúde, a formação dos trabalhadores da saúde não se orienta pela leitura das necessidades sociais em saúde. É conduzida sem debate com os organismos de gestão e de participação social do SUS, resultando em autonomização do Ministério da Educação, das Universidades e das Sociedades de Especialistas nas decisões relativas às quantidades e características políticas e técnicas dos profissionais de saúde a serem formados. (Brasil, 2001, p.42-3)

Nas formas legais vigentes, é atribuição do setor educacional aprovar, ministrar e reconhecer habilitações. No entanto, a educação vem formando profissionais para atuar na saúde sem que exista um diagnóstico preciso em relação às necessidades desse setor, o que ocasiona um descompasso entre as ações educacionais e as necessidades dos serviços de saúde, descompasso que obriga o setor saúde a assumir a responsabilidade e a intensificar iniciativas para preparar seus quadros nos próprios locais de trabalho, em particular os de nível médio, seja pela via do ensino supletivo, seja por meio de reciclagens e de treinamentos informais, na medida da incorporação desses profissionais à rede prestadora de serviços3. Mesmo reconhecendo os esforços que vêm sendo efetivados nos últimos anos no tocante à formação de recursos humanos para a saúde, sob o argumento de consolidar o modelo do Sistema Único de Saúde, de uma maneira geral a formação dos trabalhadores desse setor permanece centrada na doença, “fundamentada no paradigma biologicista, tendo como unidade de ação e de reflexão o indivíduo, considerado em sua dimensão anátomo-clínica” (UFRJ/NESC, 2003, p.6), podendo ser observada a ausência ou a insuficiência de conteúdos que possibilitem (re)configurar a saúde como “a resultante das condições de alimentação, habitação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, acesso e posse da terra e acesso e acesso a serviços de saúde” (Brasil, 1986, p.382), e que inclui, também, a assistência social, a educação, o saneamento. É visível a dificuldade de aplicação prática, por exemplo, de conceitos como o da promoção da saúde, intimamente relacionado à compreensão de que a saúde é dependente dos resultados de outros setores da ação governamental, dificuldade que, para ser vencida, requer o entendimento, a aceitação e a defesa do conceito ampliado de saúde, como expresso acima. Desse modo, para intervir na realidade, é necessário que os setores da educação e da saúde estabeleçam uma estreita e permanente parceria interinstitucional, objetivando desenvolver ações conjuntas e articuladas para a elaboração e a construção de uma proposta educacional que conjugue os conhecimentos produzidos e acumulados pelas duas áreas. Sendo esse o sentido, é preciso que a proposta compartilhada se insira “em um projeto mais amplo de sociedade, de história humana e de ação política” (Frigotto, 1988, p.8), estabelecendo uma dinâmica que contemple a direcionalidade e as conseqüências, para o conjunto da sociedade, da incorporação e da aplicação de novas tecnologias. É preciso, portanto, construir um processo educacional que articule a formação profissional com as necessidades e as demandas da sociedade, como estratégia eficaz para o desenvolvimento econômico, social e cultural dessa mesma sociedade, na perspectiva de possibilitar ao indivíduo o exercício eficiente de

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A respeito do assunto, consultar Torrez, 1994.

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seu trabalho, a participação consciente e crítica no mundo do trabalho e na esfera social, além de sua efetiva auto-realização. Isto requer clareza, vontade política e compreensão das dificuldades por parte dos dirigentes para que, sem confrontar abertamente com o arcabouço legal instituído mas, também, não se condicionando a ele de maneira absoluta e inquestionável, se desenvolva uma possibilidade política e pedagógica para o campo da formação profissional, com o sentido de repensar e de contribuir para redefinila mediante o abandono de uma prática educativa de cunho tecnicista, a-histórica e a-crítica, representando uma busca para situar o homem em sua realidade histórica. A parceria deverá consistir em um processo facilitador da simbiose entre trabalho, educação e saúde, procurando vencer a histórica dicotomia entre pensar e fazer, entre geral e específico, integrando habilidades teóricas e práticas. A problemática da formação profissional perante uma realidade de mutações constantes remete, compulsoriamente, à reflexão sobre o modo como a sociedade se organiza e se conforma na relação entre dominantes e dominados, reflexão que deve sinalizar uma direção que não se contente apenas com o processo de aprendizagem em dado espaço e contexto, mas que tenha por horizonte uma sociedade transformada. Ou seja: uma reflexão comprometida com um projeto de sociedade, tendo o homem como prioridade essencial e centro das preocupações. Desafios da formação profissional em saúde Para viver e, sobretudo, sobreviver nesse cambiante mundo novo, faz-se necessário, ao homem, repensar sua forma de inserção e modos de participação na realidade que vem sendo moldada, construindo o futuro a partir da assimilação, da reflexão, do questionamento e formulação de propostas calcadas na realidade objetiva em que se insere, a partir da qual deverão ser elaboradas e implementadas estratégias políticas visando transformar essa mesma realidade. Entre os requerimentos da dinâmica profissional, o trabalhador deve possuir capacidade de diagnóstico, de solucionar problemas, de tomar decisões, de intervir no processo de trabalho, de atuar em equipe, de auto-organizar-se. Como mencionado, é preciso pensar uma formação profissional orientada para o trabalho – entendido como processo de humanização do homem - que objetive integrar conhecimentos gerais e específicos, habilidades teóricas e práticas, hábitos, atitudes e valores éticos. A educação torna-se fundamental, portanto, para que os indivíduos dominem as ciências (físicas, químicas e biológicas), as linguagens (a matemática, as línguas, a informática, as artes e a expressão corporal) e os estudos do homem (a história, a geografia, a sociologia, a economia e a filosofia) para que possam compreender e atuar no mundo social e cultural no qual estão inseridos. (Deluiz, 1997, p.17)

Além disso, torna-se necessário desenvolver as habilidades comunicativas (capacidade de expressão e de comunicação com seu grupo, superiores hierárquicos ou subordinados, cooperação, trabalho em equipe, diálogo, exercício da negociação), as capacidades sociais (capacidade de transferir conhecimentos da vida cotidiana para o ambiente de trabalho e vice-versa) e as habilidades comportamentais como iniciativa, criatividade, vontade de aprender, abertura às mudanças e consciência da qualidade e das implicações éticas do seu trabalho4. A aquisição, o domínio e a prática desse conjunto de saberes e de fazeres pelos trabalhadores da saúde é primordial para sustentar as ações e as atividades a serem implementadas para estruturar e dar seguimento a uma política cuja abrangência alcance as esferas federal, estadual e municipal da administração, que inclua os setores público e privado que compõem o Sistema Único de Saúde e que tenha entre suas prioridades a formação e a gestão de pessoas, bem como a regulação e a regulamentação do trabalho em saúde. A humanização e a qualidade no atendimento aos usuários dos

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Com relação ao tema, conferir Deluiz, 1998.

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serviços de saúde, a (re)negociação dos vínculos empregatícios dos trabalhadores do SUS, a reavaliação das modalidades de inserção de profissionais no sistema, a avaliação permanente das relações entre a saúde e as diferentes áreas e organismos com os quais existe interação, são questões cuja resolução estão afeitas, essencialmente, ao modo de pensar e a maneira de agir de cada profissional que atua ou que venha a atuar no setor saúde. No processo de construção dessas capacidades e habilidades, é preciso propiciar uma formação que permita aos trabalhadores agir como cidadãos produtores de bens e de serviços e como atores na sociedade civil. Mais do que nunca, “a educação deve possibilitar aos trabalhadores (...) sua participação na sociedade científica e tecnológica não como objetos, mas como sujeitos, resgatando assim a dimensão política: a construção da identidade social e a integração plena na cidadania. (Deluiz, 1997, p.16) Nessa ótica, o conceito de educação deve ser entendido como um compromisso com os ideais da sociedade e refere-se a um conjunto de práticas sociais, com os valores, crenças, atitudes, conhecimentos formais e informais que uma dada sociedade tende a desenvolver para preservar ou melhorar as condições e a qualidade de vida da população. Deve ser redimensionada como processo e produto social e como fator substantivo do desenvolvimento humano, firmado na interrelação de, pelo menos, cinco componentes básicos: educação, saúde, crescimento econômico, meio ambiente, o direito e o exercício pleno da cidadania. Educar pessoas conscientes de seu papel social, com percepção macro dos problemas que afetam a humanidade, representa proporcionar a cada indivíduo a oportunidade de assumir e exercitar uma postura que alie, de modo simultâneo, despojamento e rebeldia. Despojamento no sentido de humildade suficiente para realizar a autocrítica em relação ao próprio desempenho, reconhecendo os limites para sua forma de agir; rebeldia no sentido de se dispor a questionar e enfrentar dogmas e barreiras socialmente impostas, revelar-se, enfim, na coragem de ousar. A cada um de nós compete o esforço de superar as próprias limitações de indivíduos historicamente construídos, numa sociedade que preza e impõe um existir fragmentado, parcializado e egoísta. Nesse percurso, é necessário aprofundar a reflexão sobre os meios e os modos como a formação profissional vem ocorrendo, isto é, se os conteúdos curriculares e as metodologias de ensino utilizadas permitem ao aluno apreender tanto os procedimentos técnicos indispensáveis ao exercício profissional como, também, desenvolver visão crítica em relação ao processo de trabalho e ao mundo que o circunda. É preciso instituir estratégias que escapem a padrões convencionais de educação, como a implantação e o desenvolvimento, na esfera da educação profissional, de projetos dinamizadores do uso de novas tecnologias, promovendo e articulando o conhecimento produzido com as necessidades que (re)configuram a sociedade atual. Da mesma maneira, é imprescindível repensar o papel e a importância do professor, que necessita ser valorizado em sua profissão, o que inclui condições salariais e de trabalho condizentes com suas responsabilidades, com possibilidade de se manter atualizado e atento em relação às mudanças contemporâneas que vêm dando nova feição ao mundo.

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Referências BRASIL. Ministério da Saúde. 8ª Conferência Nacional de Saúde. Relatório final. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 1986. BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório final. In: CONFERÈNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 11., 2001, Brasília, DF. Anais... Brasília, DF, 2001. 198p. DELUIZ, N. Formação do trabalhador: produtividade e cidadania. Rio de Janeiro: Shape, 1998. DELUIZ, N. Neoliberalismo e educação: é possível uma educação que atenda os interesses dos trabalhadores? Tempo e Presença, n.293, mai./jun, p.14-6, 1997. FRIGOTTO, G. Formação profissional no segundo grau: em busca do horizonte da educação politécnica. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/Fundação Oswaldo Cruz, 1988. FRIGOTTO, G. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1995. GIANNOTTI, J. A. O público e o privado. Folha de São Paulo. São Paulo, 2 abr. 1995. HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. OFFE, C. Trabalho e sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da sociedade do trabalho. Tempo Universitário, v. 2, n.89, 1991. (Série Estudos Alemães) TORREZ, M. N. F. B. Qualificação e trabalho em saúde - o desafio de “ir além” na formação dos trabalhadores de nível médio. 1994. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva. Centro de Ciências da Saúde. Curso de Graduação em Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 2003. (mimeogr.)

This article is a contribution to the debate on professional training for the health sector, considering the current context of internationalization of the economy and the integration of markets, where scientific progress produces significant changes in social relationships and in the production of goods and services. It emphasizes the need to establish a permanent partnership between the health and education sectors with the aim of putting together a political and pedagogical proposal that allows health workers to acquire and master diversified competences, which enable them to understand, to act and to face, in critical way, the changes that have been occurring in the world of work. KEYWORDS: Education in health; work; professional education. O artigo insere-se na discussão sobre a formação profissional em saúde, em um contexto marcado pela internacionalização da economia e pela integração de mercados, em que os avanços científicos promovem significativas mudanças nas relações sociais e de produção de bens e de serviços. Enfatiza-se a necessidade de se estabelecer uma parceria permanente entre os setores educacional e da saúde, visando elaborar uma proposta política e pedagógica que permita aos trabalhadores da saúde a aquisição e o domínio de diversificadas competências, habilitando-os a compreender, atuar e enfrentar, de modo crítico, as mudanças que vêm se processando no mundo do trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Educação em saúde; trabalho; formação profissional. Este artículo es una contribución a la discusión acerca de la formación profesional en el sector de salud, en un contexto marcado por la internacionalización de la economía y por la integración de mercados, donde los progresos científicos promueven cambios significativos en las relaciones sociales y en la producción de mercancías y de servicios. Se enfatiza la necesidad de establecer una alianza permanente entre los sectores de educación y salud para construir una propuesta política y pedagógica que permita que los profesionales del sector de salud adquieran y dominen diversas competencias, las cuales les permitirán entender, actuar y hacer frente, de manera crítica, a los cambios que están procesándose en el mundo del trabajo. PALABRAS-CLAVE: Educación en salud; trabajo; formación profesional.

Recebido para publicação em 14/02/03. Aprovado para publicação em 28/06/04.

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Relato do aprendizado em estágio de observação da prática médica A report on what was learned in the medical practice observation stage

Moacyr Roberto Cuce Nobre 1 Rachel Zanetta de Lima Domingues 2 Mariana Lie Yamaguishi 3 Marcos Eiji Shiroma 4

Introdução A mudança curricular que institui em 1998 as disciplinas optativas na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo propiciou, no conjunto dos estágios oferecidos pela Disciplina de Prática Médica, a oportunidade de aprendizado de técnicas de observação e entrevista. Nas atividades docentes perante o paciente, segundo Marcondes & Lima Gonçalves (1998), os alunos devem ser estimulados à humanização do atendimento. Na docência da Medicina como profissão, a construção de atributos e competências deve reconhecer os valores, os princípios e as representações de mundo e do adoecer dos pacientes, que passa a ser elemento essencial para a compreensão de formas possíveis de comunicação e de propiciar escolhas viáveis e adequadas para eles. Isso requer, inquestionavelmente, incursões em outros campos disciplinares e novas práticas para as quais a escola deverá se abrir, ampliando o espectro da formação médica. O aprendizado de técnicas de observação e entrevista é restrito nos cursos médicos, quer na formação básica, quer nos estágios de internato. Em vez disso, o ensino clássico da propedêutica se vale da anamnese como forma estruturada de se obter informação do paciente. O exame físico inclui procedimentos e manobras para obtenção de sinais que facilitem o reconhecimento de doenças prédefinidas, e não o entendimento do paciente em sua dimensão integral. O estudante é estimulado a agir como um inquiridor a serviço do conhecimento científico, a encaixar seus pacientes nos rótulos nosológicos ensinados prioritariamente. Ao desenvolverem um ponto de vista eminentemente técnico acabam por estreitar suas possibilidades de observação, induzir as respostas dos pacientes, diminuir a tolerância para com a fala deles, limitar seus relacionamentos interpessoais, comprometendo, enfim, o conteúdo humano de sua prática profissional. Com exceção dos profissionais que atuam na área do psiquismo, são poucos os médicos orientados a observar sem intervir, observar além da comunicação verbal, perceber através dos sentidos.

1 Professor responsável pela Unidade de Epidemiologia Clinica, Instituto do Coração, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (InCor/HCFMUSP). <mrcnobre@usp.br> 2 Professora, especialista em Educação em Saúde, Colaboradora da Unidade de Epidemiologia Clínica, InCor/HCFMUSP. <rzanetta@ajato.com.br> 3 Aluna do curso de graduação médica, Faculdade de Medicina, USP. <mari_lie_y@yahoo.com> 4 Aluno do curso de graduação médica, Faculdade de Medicina, USP. <mshiroma@ppp1.colband.com.br>

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Rua Cardeal Cagiori, 115 Vila Ida - São Paulo, SP 05.454-030

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No presente trabalho relatamos nossa experiência de aprendizado durante o estágio no Serviço de Prevenção e Reabilitação, do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, oferecido pela Disciplina de Prática Médica III - MSP-285 - ao segundo ano do curso de graduação médica, no ano de 1999, que teve como objetivo propiciar a aplicação de instrumentos de observação participativa na prática institucional de atendimento ao paciente. Metodologia O estágio desenvolveu-se com carga horária de quatro horas semanais durante um semestre letivo com as seguintes atividades dos alunos: leitura de bibliografia recomendada (Benjamin, 1986; Marconi & Lakatos, 1986; Thiollent, 1986; Queiroz, 1987; Marcondes & Lima-Gonçalves, 1998; Ribeiro, 1998; Greenhalgh & Hurwitz, 1999), observação da prática de atendimento, entrevistas com os profissionais de saúde, sessões de orientação e supervisão de estágio com os docentes, elaboração de relatórios de observação, entrevista e monografia. A observação das diferentes práticas teve como referências comuns a ação interdisciplinar, a aplicação do método epidemiológico, a orientação de medidas preventivas, o papel de educar o paciente sobre sua saúde, o entendimento e a adesão do paciente às orientações recebidas, as dificuldades de comunicação decorrentes das diferenças nos valores culturais, da religião e das crenças de saúde da comunidade a que pertencem. Os pacientes foram observados na sala de espera e durante as consultas médicas, num total de quatro períodos ambulatoriais. Nas entrevistas com os profissionais usou-se a observação direta intensiva, além de um roteiro básico de entrevista. No ambulatório, utilizou-se da observação não estruturada ou assistemática, prevalecendo a espontaneidade e informalidade na conversa com os pacientes. A observação das consultas foi do tipo participativa, na medida em que houve contato com o paciente, conversa sobre seu estado geral, qualidade do atendimento na instituição, sua adesão ao tratamento e mesmo a tomada de sua pressão arterial. As entrevistas moldaram-se no que Marconi & Lakatos (1986, p.70) definem como “uma conversação de natureza profissional (...) a fim de que se obtenha informações a respeito de determinado assunto”, no caso o processo de comunicação entre profissional e paciente, bem como aspectos do atendimento ao coronariopata. Foram cumpridas etapas que Marconi & Lakatos (1986) chamam de “preparação da entrevista”, no que se refere ao conhecimento prévio do assunto a ser abordado, à organização do roteiro de perguntas, à marcação com antecedência da hora e local, ainda que na prática nem sempre honradas, e ao conhecimento prévio do entrevistado, ou seja, foram escolhidas as pessoas consideradas mais adequadas a versarem sobre o assunto. Outro aspecto aplicado nessa atividade é o que Benjamim (1986) recomenda ao entrevistador, quando este inicia a conversa, que permaneça quieto após ter lançado a questão ou assunto que se procura abordar. Isso evita que o entrevistador se estenda a um longo monólogo a respeito da pergunta, e permite que “o entrevistado tenha oportunidade de expressar-se plenamente”. E assim “descobrir se e como ele nos entendeu, o que pensa e como se sente”. Além disso, aconselha que as anotações dos relatos não interfiram no ritmo da entrevista, devendo o registro “sempre subordinar-se ao processo da entrevista, e nunca o contrário”. O mesmo autor enfatiza a importância da identificação adequada do entrevistador para que o entrevistado se sinta à vontade em se expressar. Isso foi feito inicialmente mediante uma carta de apresentação, na qual já se explicitava o motivo da conversa e identificação do entrevistador como aluno do segundo ano da faculdade de medicina. Na observação de pacientes e das consultas, utilizou-se a observação direta intensiva, “uma técnica de coleta de dados para conseguir informações que utiliza os sentidos na obtenção de determinados aspectos da realidade” (Markoni & Lakatos, 1996, p.65). A utilização dos sentidos nesse caso é fundamental, pois vivencia-se uma dinâmica da interação entre duas pessoas, o médico e o paciente. No entanto, teoricamente é uma atividade sistemática, em que, segundo os mesmos autores, “o observador sabe o que

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procura e o que carece de importância em determinada situação” (p.67). Ainda segundo as caracterizações feitas por Marconi & Lakatos (1986), esta atividade é participativa, já que “coloca o observador e o observado do mesmo lado, tornando-se o observador um membro do grupo de molde a vivenciar o que eles vivenciam e trabalhar dentro do sistema de referência deles” (p.68). Caracteriza-se, ainda, como uma observação em vida real, uma vez que é realizada em um consultório durante seu período habitual de funcionamento, “registrando-se os dados à medida que forem ocorrendo, espontaneamente” (p.83). Este aspecto, por sua vez, pode vir a ser desfavorável, já que “o observado tende a criar impressões favoráveis ou desfavoráveis no observador” e “fatores imprevistos podem interferir na tarefa do pesquisador” (p.85). No seio do movimento conhecido como Medicina-baseada-em-evidências Greenhalgh & Hurwitz (1999) lembram que a narrativa fornece informações que não pertencem simples ou diretamente aos eventos revelados. A mesma seqüência de eventos dita por outra pessoa em outra circunstância pode ser apresentada de outra maneira, não menos verdadeira. Diferentemente das coisas mensuráveis como o resultado de um experimento laboratorial, não há uma definição evidente do que é, e do que não é relevante em uma narrativa. A escolha do que falar e omitir depende completamente do entrevistado e, pelo seu arbítrio, pode ser modificado em resposta às questões do entrevistador. Descrição da experiência a) Relato sumarizado das entrevistas com diversos profissionais envolvidos no atendimento Os profissionais foram unânimes em dizer que não é habitual dar entrevista a estudantes de medicina. O cirurgião reconhece que pacientes de escolaridade mais baixa demonstram maior dificuldade em compreender as orientações dadas, mas que para superar isso, basta dialogar num mesmo padrão de linguagem e não criar pânico em cima da doença. Quanto à religião do paciente, refere que os impecilhos devem ser contornados e as crenças respeitadas. Para a enfermeira, a orientação deve ser dada não só ao doente mas também para sua família, pois assim as medidas preventivas seriam mais bem incorporadas. A nutricionista relata ser o papel de educador especialmente importante, sendo a orientação alimentar uma das medidas preventivas fundamentais; os pacientes são resistentes em seguir dieta, por terem hábitos alimentares sedimentados. Para a assistente social, o atendimento multiprofissional para este tipo de paciente é muito importante e ela lamenta a inexistência de políticas públicas adequadas para esta população. Com o pesquisador do laboratório, a entrevista só foi possível quando a solicitação foi protocolada e, como observado em outras situações, o pesquisador não está acostumado a dar entrevistas para alunos. O cardiologista disse ser possível sistematizar os passos, terminando a consulta em pouco tempo, sem necessariamente omitir algum passo ou comprometer a eficiência do atendimento. b) Relato sumarizado das consultas e dos pacientes observados Na observação dos pacientes na área reservada para a espera da consulta chegam casos novos e de seguimento. Foram observados três pacientes por aluno-observador por período ambulatorial. Na hora de ouvi-los, podem estar angustiados, inseguros e abatidos pelos motivos que os levaram a procurar um serviço de saúde. Enquanto esperam, os pacientes não recebem informação alguma. A maioria dos pacientes já vêm encaminhados ou então já estão em tratamento, desse modo, as consultas têm abordagem específica para o coração e não se estendem na averiguação de outros órgãos ou funções orgânicas. Constitui-se basicamente de exame de pulso radial, ausculta cardiopulmonar e medida de pressão arterial. Nota-se claramente uma falta de tempo disponível para as consultas. Um dos pacientes destaca-se pela gravidade do quadro. Apresenta obstrução em quatro ramos coronários, já tendo sofrido infarto há 12 anos. Segundo o médico, esse quadro já estava definido e ele só

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estava à espera da cirurgia. Este paciente veio acompanhado pelo filho, que temia que o pai falecesse na espera da cirurgia. Indagou ao médico se havia algum jeito de ser antecipada, mesmo por apadrinhamento. Outro paciente foi encaminhado para cirurgia, chamando atenção o fato de o residente reprovar a indicação pela falta de adesão do paciente ao tratamento. Uma senhora de 81 anos com três pontes de safena, que se fecharam após 12 anos, mostrava disposição para conversar, com o médico, a respeito de sua vida, este foi receptivo, ao contrário do que se observou com um residente que mal conversou com os pacientes. Outra situação que chamou muito a atenção foi a de uma paciente de sete anos, acompanhada da mãe, com diagnóstico de taquicardia, aguardando uma consulta de retorno. A residente e a médica assistente saíram do consultório para discussão sobre dose e mudança do remédio e a mãe fez alguns comentários sobre a situação vivida: estava nervosa porque ficou esperando pela consulta por cerca de duas horas e meia, em um dia chuvoso e frio, não passava nada na televisão da sala de espera para distraí-la, o que a deixou mais ansiosa. Questionou-me, também, sobre horário e dose do remédio, se poderia diminuir o intervalo entre uma dose e outra ou se aumentava a dose, caso o “ataque” fosse muito forte, como vinha acontecendo ultimamente. Pedi a ela que perguntasse à médica, pessoa mais indicada para responder. Contudo, a pressa da médica em prescrever e orientar sobre nova consulta, talvez tenha inibido a mãe de apresentar suas dúvidas. Outro ponto interessante é o fato de o residente se dirigir ao estudante de medicina de forma peculiar, com tom de voz diferente daquele com que se dirigia ao paciente (mais elevado e rígido, com maior ênfase e imposição). Como que justificava, numa relação de maior proximidade, o diálogo que não aconteceu com o paciente. Conhecimentos, habilidades e atitudes desenvolvidos Técnicas de entrevista e observação são pouco utilizadas no currículo médico, a julgar pela constância das observações dos profissionais de saúde de que apesar de serem procurados por estudantes de outras áreas, não estão acostumados a dar entrevistas para estudantes de Medicina. A observação é uma coleta de dados, que se utiliza dos sentidos para sua obtenção, aliada ao exame dos fatos. Daí a importância de se anotar apenas dados relevantes, para não se perder gestos e manifestações não verbais do entrevistado. É importante ver, ouvir e sentir. Uma entrevista pode ser direcionada ou aberta, ou seja, a comunicação pode ser livre ou dirigida de acordo com os objetivos ou vontade do entrevistador. Isso pode ser explorado para obter as informações para se chegar ao melhor diagnóstico, e pode ser usado também para procurar entender mais o paciente e seus problemas. O uso de perguntas abertas, fechadas, diretas, indiretas e duplas pode levar à indução da resposta de acordo com o encaminhamento do entrevistador ou à obtenção de uma fala sincera do entrevistado. Ao conversar com os pacientes é necessário lembrar da diferença de perguntas diretas e indiretas. Ao invés de perguntar: “você passou mal hoje?”, perguntar: “como você passou hoje ?” dá maior liberdade e espaço para o paciente se expressar. Passou-se a considerar mais o raciocínio antes de se fazer a pergunta, não só com relação aos pacientes, mas também para as pessoas de uma maneira geral. Aprendeu-se a direcionar a entrevista quando necessário e procurar, o máximo possível, não induzir as respostas. Conhecimento que já tem sido utilizado em outras experiências com pacientes. Cada um desenvolve um estilo próprio de entrevistar, que vai adquirindo com a experiência. Em cada entrevista aperfeiçoa métodos e maneiras de conduzi-la. Muda-se a forma de perguntar, não seguindo rigidamente o roteiro, mas sim, adaptando-o a cada entrevistado, que reage diferentemente, respondendo de forma mais clara, ou não, antecipando-se, ou não, à próxima pergunta. Alguns falam mesmo sem serem questionados; se o assunto não é relevante para o trabalho a que se destina, é necessário que o entrevistador intervenha, direcionando a conversa, sem desrespeitar o entrevistado. Parafraseando conhecido entrevistador da televisão: “Sem querer interromper e já interrompendo”. Segundo Ribeiro (1998),

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reconhecer os valores, princípios, representações de mundo e de adoecer dos pacientes passa a ser elemento essencial para a compreensão de formas possíveis de podermos nos comunicar e de propiciar escolhas viáveis e adequadas para eles. Foi observada nas entrevistas a importância de o profissional de saúde saber se comunicar e tomar condutas adequadamente com cada tipo de paciente, levando-se em conta o grau de escolaridade e as crenças culturais e religiosas, bem como exercer um papel de educador, além da necessidade do estabelecimento do trabalho em equipe muiltiprofissional. Percebeu-se, no entanto, que o profissional de enfermagem acaba por vezes substituindo o médico no que se refere a explicar ao paciente as orientações passadas na consulta, o que é um fato de certo indesejável, pois mostra que o médico não tem tido sucesso em explanar de forma adequada e que a conduta clínica é um tanto apressada em algumas consultas. Conclusão A experiência descrita propiciou o aprendizado de um estilo de entrevistar e abordar o paciente que enfatiza a integridade do ser e as representações do seu mundo, em contraposição a condição reduzida de portador de sinais, sintomas e doenças. Possibilitou a criação de novas formas de comunicação adequadas aos valores dos pacientes. Permitiu observar, criticamente, a prática de profissionais de saúde nos seus aspectos humanos e éticos, ampliando o enfoque das formas tradicionais de ensino centrado no conteúdo técnico dos procedimentos médicos. A natureza optativa do objeto de estudo dessa disciplina favorece o desenvolvimento de vocações individuais e possibilita ampliar o espectro da formação médica.

Referências BENJAMIN, A. A entrevista de ajuda. São Paulo: Martins Fontes, 1986. GREENHALGH, T.; HURWITZ, B. Narrative based medicine: Why study narrative? Education and debate. BMJ, v.318, p.48-50, 1999. MARCONDES, E.; LIMA GONÇALVES, E. Educação médica. São Paulo: Sarvier, 1998. MARCONI, M.A.; LAKATOS, E.M. Técnicas de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1986. QUEIROZ, M. I. P. Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. Ciênc. Cult., v.39, n.3, p.272- 86, 1987. RIBEIRO, E.C.O. Ensino e aprendizagem na escola médica. In: MARCONDES, E.; LIMA GONÇALVES, E. (Orgs.) Educação médica. São Paulo: Sarvier, 1998. p.40-9. THIOLLENT, M. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1986.

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We present a pedagogical proposal, which is not common in traditional medical schools. This proposal introduces the graduate student early on to a medical practice observation stage. Second semester students of the medical course were trained to observe patient consultations and interviews with health professionals in a participative way. They developed their learning ability and learned how to reflect on the health professional-client communication process from what they observed. Results indicate hat this experience provided students with their own personal style of approaching and interviewing the patients that emphasizes the integrity of the individual and the way in which he or she looks at their world, as opposed to the doctor-patient communication that happens during a structured anamnesis and in a medical consultation provided in an extremely busy outpatients department. KEY WORDS: medical education; medical practice observation; interviews with health professionals; medical practice; professional practice. Apresenta-se uma proposta pedagógica, não habitual nas escolas médicas tradicionais, que introduz precocemente o aluno de graduação em um estágio de observação da prática médica. Alunos do segundo semestre do curso médico preparados para fazer uma observação participativa do atendimento aos pacientes e entrevistas com profissionais de saúde, desenvolveram a aprendizagem e a reflexão sobre comunicação do profissional de saúde com sua clientela a partir dos fatos observados. Resultados indicam que a experiência com a disciplina propiciou aos alunos um estilo próprio de entrevistar e abordar o paciente, que enfatiza a integridade do ser e as representações do seu mundo, em contraposição à comunicação médico-paciente que acontece durante a anamnese estruturada e na consulta médica feita na rotina ambulatorial com grande demanda. PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; observação do atendimento ao paciente; entrevista do profissional de saúde; prática médica; prática profissional. Se presenta una propuesta pedagógica que no es habitual en las Escuelas de Medicina tradicionales, ella introduce precozmente al alumno de graduación en la observación de la practica medica. Los alumnos del segundo semestre de la Facultad de Medicina se prepararon para hacer una observación participativa de la atención al enfermo y de entrevistas con profesionales de la salud, desarrollaron un conocimiento y una reflexión sobre la comunicación del profesional de la salud con sus pacientes, a través de la acción observada. Los datos apuntan que la experiencia con la disciplina, dio a los alumnos un estilo propio de entrevistas y abordajes a los pacientes que enfatiza la integridad del ser y las representaciones de su mundo, en contraposición a la comunicación médico/enfermo que ocurre durante la entrevista estructurada en la consulta medica que se hace en la rutina corrida del ambulatorio donde hay mucha demanda. PALABRAS CLAVE: Educación medica; observación de la atención al enfermo; entrevistas con profesionales de la salud; práctica médica; práctica profesional.

Recebido para publicação em 05/04/02. Aprovado para publicação em 18/06/04.

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Uma experiência interdisciplinar de psicanalistas com profissionais da saúde An inter-disciplinary experiment with health professionals carried out by psychoanalysts

Cecilia Luiza Montag Hirchzon 1 Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo 2

Introdução Alguns setores profissionais, como os dos paramédicos (fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, enfermeiros, assistentes sociais) e certas especialidades médicas que envolvem a intersubjetividade, freqüentemente carecem de formação e experiências que propiciem a percepção de aspectos psíquicos e emocionais nas relações com seus pacientes. Recentemente psicanalistas de diferentes escolas têm convergido na concepção de que a mente humana é mais interativa do que monádica. Nesse sentido, a necessidade de reconhecimento envolve este paradoxo fundamental: no exato momento de realizar a nossa própria vontade independente, somos dependentes de um outro que a reconheça. No exato momento em que chegamos a compreender o significado do eu, do meu, somos forçados a ver as limitações deste ‘self’. No momento em que entendemos que mentes separadas podem partilhar sentimentos semelhantes, começamos a achar que essas mentes podem discordar. (Benjamin, 1990, p.190) (tradução nossa)

Enquanto pacientes, as pessoas não esperam dos profissionais da saúde somente soluções para seus problemas, mas também buscam receptividade e acolhimento. Assim como seus pacientes, os diversos profissionais também têm de ser cuidados. Além de constituir um modelo de comportamento a ser seguido, aprendemos com Leonardo Boff (1999, p.92) que “o cuidado é mais do que um ato singular ou uma virtude ao lado das outras. É um modo de ser, isto é, é a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os outros”. Um grupo pode ter a função de dar suporte ao profissional que cuida. O trabalho em equipe dá respaldo aos profissionais que podem compartilhar suas dúvidas, impotências e fracassos, assim como participar de suas vitórias. O aprender se dá a partir da vivência dos profissionais no próprio grupo, no qual experienciam situações de receptividade às suas necessidades.

1

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae; Colaboradora da Comissão de Divulgação e Cursos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo/SBPSP. <cecilu@bol.com.br>

2

Colaboradora da Comissão de Divulgação e Cursos da SBPSP. <heloisaditolvo@sbpsp.org.br>

1 Rua Carlos Sampaio, 158 Paraíso - São Paulo, SP 01.333-020

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Uma regra de ouro, como recomenda Pichon Rivière (1983) no manejo das reuniões, é trabalhar e operar sobre a informação emergente, aquela que o grupo “atualiza em cada momento e que corresponde ao que momentaneamente pode admitir e elaborar. Sem ansiedade não se aprende, e com muita, tão pouco” (Bleger, 1972, p.74) (tradução nossa). A ciência do século XX progrediu principalmente na direção da especialização, avaliando-se seu rigor pelo aprofundamento cada vez maior do seu objeto. Paradoxalmente, essas características passaram a constituir sua principal limitação. Segundo Santos (1988, p.64) “é hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e (que) isso acarreta efeitos negativos”. Por essas razões sugerimos a realização do trabalho em grupos com uma composição interdisciplinar de profissionais da saúde, considerando que a apresentação e o intercâmbio entre os diferentes vértices poderia revelar de forma mais ampla e multifacetada a complexa realidade de seus pacientes e de suas relações com eles. Assim como a distinção epistemológica entre sujeito e objeto teve de se colocar em outros termos na psicanálise atual, também a teoria do conhecimento emergente passou a se articular de forma diferente. A fragmentação deixou de ser disciplinar para se tornar temática Ao contrário do que sucede no paradigma atual, o conhecimento avança à medida que o seu objeto se amplia, ampliação que, como a da árvore, procede pela diferenciação e pelo alastramento das raízes em busca de novas e mais variadas interfaces. (Santos, 1988, p.65)

Trabalhar a interdisciplinaridade não significa negar as especialidades e a objetividade de cada ciência. A necessidade de romper com a tendência fragmentadora e desarticulada do processo de conhecimento justifica-se pela compreensão da importância da interação e transformação recíprocas entre as diferentes áreas do saber. Seu sentido reside na oposição à concepção de que o conhecimento se processe em campos fechados em si mesmos, isolados de processos e contextos histórico-culturais, como se as teorias possam ser construídas em mundos particulares sem uma posição unificadora que sirva de fundamento para todas as ciências. Acreditamos que a introdução de alguns conhecimentos psicanalíticos básicos, articulados com a prática clínica específica de cada área, crie um clima favorável à transmissão e ampliação dos recursos de apreensão psíquica desses profissionais, o que, por sua vez, repercute na percepção dos aspectos subjetivos de seus pacientes. Nesse sentido, os coordenadores exercem a função que Pichon-Rivière (1983, p.92) chama de “copensor”, “aquele que pensa junto com o grupo e ao mesmo tempo reúne e integra os elementos do pensamento grupal”. O ensinar e o aprender formam, então, uma unidade. Condições e desenvolvimento da experiência Tendo em vista os tópicos acima descritos, propusemos à Comissão de Divulgação e Cursos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) a realização de seminários semanais de duas horas em grupos de composição interdisciplinar, formados por profissionais da área da saúde, sob a coordenação de duas psicanalistas. Os temas focalizaram basicamente a entrevista, o atendimento, o paciente, o profissional, a relação paciente- profissional, a subjetividade e seu desenvolvimento. O local de realização foi a própria sede da SBPSP e a duração, quatro meses, sendo que os grupos tinham no máximo quinze integrantes. A experiência consta da formação e realização de cinco grupos. Nosso objetivo não foi apenas o de informação teórica, mas enfatizar que nas discussões fossem incluídos materiais clínicos de experiências de atendimento de cada um, o que permitiria, além do entrelaçamento com a prática, a troca interprofissional.

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Cada integrante expunha uma situação clínica, criando um espaço no qual ia se chegando, por meio de um desenvolvimento progressivo das diversas abordagens, a um saber compartilhado. A comunicação se dava em paralelo à aprendizagem e aos assinalamentos dos mecanismos e afetos envolvidos nesse processo. Em relação à composição dos grupos, podemos destacar algumas características: quanto à profissão, concentravam-se nas áreas de administração (em setor hospitalar), assistência social, educação física, enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia, magistério, nutrição, pedagogia, psicologia e odontologia; da área médica tivemos representantes da foniatria, pediatria e medicina de urgência; a maioria pertencia ao sexo feminino; a média da faixa etária era de quarenta anos; o tempo médio de experiência profissional situou-se em torno de quinze anos; a maioria tinha experiência em trabalho institucional, seja passada ou presente. A proposta principal foi o de discutir e trocar experiências sobre questões da relação profissionalpaciente, enfatizando o papel da subjetividade em diferentes situações. A aprendizagem básica deu-se a partir da vivência dos profissionais no próprio grupo, numa atmosfera livre, na qual cada um pôde apresentar suas questões, com a expectativa de iluminá-las graças às experiências dos demais, sentindo-se compreendidos e acolhidos em suas ansiedades. Exceto na seleção dos textos a serem discutidos, a participação das duas psicanalistas no grupo deu-se em igualdade de condições com os demais, apenas salientando nos debates, aspectos do universo “psi” que julgamos relevantes. Com o propósito de identificar e lidar com manifestações inconscientes presentes nos relacionamentos com os pacientes, procurou-se distinguir a demanda explícita, da fantasia que o paciente trazia sobre a doença. Levávamos em consideração aspectos da dinâmica familiar, sabendo que em grupos familiares, às vezes, a pessoa trazida para tratamento não é a mais necessitada. Enfatizávamos a importância do comportamento não verbal e o das contradições, lacunas, simulações, inibições, silêncios e bloqueios no discurso como dados reveladores dos aspectos inconscientes. A partir daí discutia-se o significado do sintoma, procurando-se pensar no paciente como um todo. Era observada a necessidade de se procurar entender concomitantemente o que representava aquela angústia para aquele paciente em particular, qual sua função, tanto na própria subjetividade, quanto nas relações intersubjetivas. Em relação a este tema, puderam ser salientados os aspectos de envolvimento emocional dos profissionais (de sua contra-transferência) que, se de um lado, suscitavam uma posição empática para com o paciente, por outro, poderiam levar a uma total identificação e conseqüente paralisia em seu trabalho. A partir de casos relatados, muitas vezes evidenciaram-se as expectativas que os pacientes trazem para com o profissional e que, muito freqüentemente, se assemelhavam aos primeiros cuidados que uma criança espera da figura materna e, como conseqüência, uma demanda exacerbada que dificilmente se poderia satisfazer. A diferença essencial existente entre o profissional que atende na instituição e o que atende em seu consultório também foi abordada, mostrando que, enquanto este último se sentia muitas vezes mais inseguro quanto à aceitação de sua pessoa pelo paciente, o profissional que atende em instituição tem esta por respaldo. Comentou-se, por outro lado, a impessoalidade que é muito freqüente no atendimento institucional. Paralelamente, evidenciou-se, por exemplos práticos freqüentemente vividos por elementos do grupo, a necessidade de estabelecer limites para determinados pacientes. Nessa ocasião pôde-se discutir o papel do “enquadre” como moldura ou esquema referencial, tanto para o terapeuta quanto para o paciente. Metodologia Destacamos alguns aspectos que puseram em prática as opções de nosso projeto: Forma grupal - o grupo funcionando como sustentação, não apenas no sentido de acolher as angústias, como também por poder expor o não saber de seus integrantes, cria uma identidade em que se compartilham as experiências e os diferentes papéis. Na medida em que um profissional tem a

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possibilidade de ser acolhido pelo grupo, pode também, por sua vez, tornar-se continente dos aspectos emocionais de seus pacientes. Embora tivéssemos a intenção de centralizar as discussões na relação profissional-paciente por meio de relatos que enfatizassem as reações emocionais de ambos nesse contato, tivemos presente a preocupação de impedir desvios que pudessem derivar para um caráter terapêutico do grupo. Forma das reuniões - De acordo com o tema proposto usamos recursos que possibilitaram discussões e maior aprofundamento. Algumas vezes foram realizados debate de filmes ou leitura de textos não programados anteriormente ou ainda a prática de desenho livre. Um aspecto importante observado nas reuniões referia-se a momentos em que as coordenadoras não sabiam responder de imediato a alguma questão levantada. Desta forma pudemos instrumentalizar o grupo para, diante do não saber, poder tolerar a angústia e a ansiedade disparadas pela perda do já conhecido. A partir da leitura de textos, os diálogos surgiam como um campo no qual se aprendia a observar, ouvir o outro, relacionar as próprias opiniões com as alheias, admitir modos diferentes de pensamento, formular hipóteses resultantes do trabalho de equipe e construir um saber conjunto. Intersubjetividade - A apreciação da oportunidade de sensibilização dos integrantes do grupo para a intersubjetividade no atendimento de seus clientes foi positiva e a riqueza de experiências obtida mediante a interação e comparação entre as diferentes áreas profissionais foi unânime. Em todos os grupos as avaliações foram semelhantes em valorizar positivamente a multiplicidade de informações obtida por meio da comparação entre as diferentes áreas profissionais. Nesse sentido, outro aspecto significativo foi a interdisciplinaridade. Uma situação clínica que ilustra essa forma de discutir os casos apresentados deu-se quando uma enfermeira do setor de pediatria de um hospital relatou um caso que chocou a todos os profissionais na época. Era uma menina que fora internada com um quadro agudo de verminose. Chamava a atenção o comportamento dos pais da menina, que nunca tinham feito nenhuma pergunta nem aos médicos, nem ao pessoal da enfermagem. Certa manhã o pai se aproxima da enfermeira e pede autorização para levar a filha à lanchonete do hospital. A profissional autoriza....e a família abandona o hospital. São despertadas diferentes reações nos profissionais em relação à situação como um todo: a enfermeira que relata o caso sente-se impotente e traída diante dessa conduta; a psicanalista levanta questões no sentido de buscar um entendimento do universo simbólico dessa família. Que angústias a nova situação despertava? Que fantasias cercavam os pais levando-os a desconfiar do tratamento? A assistente social simplesmente identifica: é um comportamento típico de “morador de rua”, o que é confirmado pela enfermeira. São três abordagens diferentes que se complementam e dão um entendimento mais abrangente do episódio apresentado: realizada a discussão, os integrantes do grupo puderam se sensibilizar para interpretações diversas de sua área de trabalho e todos, a partir de sua perspectiva, conseguiram compartilhá-las e construir uma compreensão integrada. A partir de experiências como essa concordamos com Santos (1988), para quem o conhecimento, que se constitui por uma pluralidade de vértices, evidencia que “cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta” (p.66). Considerações a partir da experiência Podemos destacar alguns dados extraídos da observação da nossa prática: - A atitude do paciente na relação com o profissional no consultório difere significativamente da mesma atitude na instituição. Há especificidades que envolvem questões relacionadas a pagamento, impessoalidade, responsabilidade, confiabilidade etc. que apareceram em algumas reuniões e mereceram discussões e bibliografia específicas. - A diferença de idade no grupo não interfere na dinâmica de relacionamento dos participantes.

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- O fato de o profissional estar fora do espaço da instituição em que trabalha parece facilitar a liberdade de expressão e aumentar a confiança no grupo. - A liberdade dos coordenadores influencia diretamente a forma de participação igualmente mais livre dos outros integrantes. - O comportamento competitivo só aparece entre profissionais da mesma área. - Apesar de ter uma percepção adequada, o profissional não se vê com instrumental suficiente para o manejo de algumas situações. - À medida que os encontros vão acontecendo, vai se estabelecendo uma linguagem comum que se desenvolve na própria comunicação do grupo e, nesse sentido, passa a constituir um patrimônio do grupo. - Os conceitos de transferência e contra-transferência são os que causam maior interesse nos grupos. Conclusão Entendemos que a psicanálise é uma área do conhecimento que traz uma nova compreensão do ser humano, quando a determinação dos aspectos inconscientes passa a ser levada em consideração. É fundamental escutar o paciente. Trata-se de trazer o interesse para a personalidade total do paciente, isto é, poder se colocar no lugar do outro e, nesse sentido, compartilhar seus sentimentos, pensamentos e esperanças. Se um profissional trata como cuidador/curador seu paciente, este leva juntamente com a cura, o registro de uma experiência de ter sido cuidado. O corpo físico pode registrar a cura, mas é a pessoa enquanto ser total que experimenta o vínculo, situação inteiramente diferente de uma condição circunscrita à “erradicação do mal”. Aceitar que as relações entre pacientes e profissionais possam também ser afetadas (de ambos os lados) por sentimentos de amor e ódio e considerá-los como sentimentos fundamentais em todas as relações humanas, implica admitir um conceito que ocupa um lugar importante na psicanálise, que é o conceito de transferência, isto é, a vivência de fortes sentimentos deslocados para o outro no relacionamento. São elementos reprimidos infantis, que ganham nova expressão no espaço emocional, criado pelo encontro “profissional - paciente”, sem que este tenha consciência do fenômeno em questão. Numa direção paralela, temos os sentimentos despertados no profissional pelo paciente, que Freud denominou contra-transferência. Enfatizamos a importância do vínculo afetivo na percepção do outro. Quando admito que o outro está doente, isto me leva naturalmente para a posição daquele que responde à necessidade, ou seja, à adaptação, à preocupação e à confiabilidade, à cura no sentido de cuidado. Quando falamos de cuidado, estamos falando de amor, mas de um amor que tem que ser fornecido por profissionais. (Winnicott, 1966, p.90)

Referências BENJAMIN, J. Recognition and destruction: an outline of intersubjectivity. In: MITCHELL S., ARON (Orgs.). Relational psychoanalysis. U.S.A.: The Analytic Press, 1990. p.181-210. BLEGER, J. Grupos operativos en la enseñanza: temas de psicologia (entrevista y grupos). Buenos Aires: Nueva Visión, 1972. BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. In: PICHON-RIVIÈRE, E. (Org.) Técnica dos grupos operativos. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p.87-98.

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SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, v.2, n.2, p.48-71, 1988. WINNICOTT, D.W. A cura (1970): tudo começa em casa. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

This paper describes an accomplishing experiment by five groups of interdisciplinary reflection, formed by health professionals, under the coordination of two psychoanalysts. The themes discussed are basically centered on the patient-professional relationship, placing emphasis on subjective aspects. The discussions, most of the time, were a reflection on clinical situations governed by theoretical conceptions. The link of the health professional with their patients, considered to be an important therapeutic element, to the extent that it involves elements of affection, was the subject of a psychoanalytical study that brings its specific contribution to the understanding of intersubjectivity. The variety of different professional categories guided the choice of participants and revealed itself to be an important change factor and mutual recognition, thereby providing evidence of the need for dialogue with different forms of human knowledge. The group meetings, besides favoring the exchange of different approaches, allowed for the identification of many aspects in common, as well as providing an atmosphere of welcome, where the professionals could expose their difficulties while at the same time feel themselves supported. KEY WORDS: Professional-patient relations; care; interdisciplinarity; intersubjectivity; psychoanalytic therapy. Descreve-se a experiência de cinco grupos de reflexão interdisciplinar de profissionais da saúde sob a coordenação de duas psicanalistas. Os temas discutidos centralizaram-se basicamente sobre a relação paciente - profissional, com ênfase nos seus aspectos subjetivos. As discussões se deram, sobretudo, sobre a reflexão de situações clínicas intermediadas por concepções teóricas. O vínculo do profissional da saúde com seus pacientes, considerado um importante elemento terapêutico, na medida em que envolve conteúdos afetivos, foi objeto de um olhar psicanalítico, trazendo sua contribuição específica na compreensão da intersubjetividade. A variedade das diferentes categorias profissionais norteou a escolha dos participantes e revelou-se um importante fator de troca e mútuo reconhecimento, evidenciando a necessidade de interlocução com formas diversas de conhecimento do humano. A constituição grupal das reuniões, além de favorecer o intercâmbio das diferentes abordagens, possibilitou a identificação de muitos aspectos em comum, assim como propiciou um clima de acolhimento, no qual os profissionais puderam expor suas dificuldades e sentir-se cuidados. PALAVRAS-CHAVE: Relações profissional-paciente; cuidado; interdisciplinaridade; intersubjetividade; terapia psicanalítica. Este trabajo describe una experiencia con cinco grupos de reflexión interdisciplinaria, integrados por profesionales del área de salud, coordinados por dos psicoanalistas. Los temas tratados versaron sobre la relación paciente-profesional, subrayando sus aspectos subjetivos. Las discusiones, en su mayoría, son reflexiones sobre situaciones de la clínica intermediadas por concepciones teóricas. El vínculo del profesional de salud con sus pacientes es considerado un importante elemento terapéutico, ya que involucra contenidos afectivos, luego fue objeto de una observación psicoanalítica, la cual pudo aportar una contribución especifica a la comprensión de la intersubjectividad. La variedad de las diferentes categorías profesionales determinó la elección de los integrantes y se reveló un importante factor de intercambio y reconocimiento mutuo, subrayando la necesidad de interlocución con las diversas formas del conocimiento humano. La constitución grupal de las reuniones, además de favorecer el intercambio de los diferentes aportes, posibilitó la identificación de muchos aspectos en común, así como propició un clima acogedor, en el cual los profesionales pudieron exponer sus dificultades y sentirse cuidados. PALABRAS CLAVE: Relaciones paciente-profesional; cuidado; interdisciplinariedad; intersubjetividad; terapia psicoanalítica.

Recebido para publicação em 13/01/03. Aprovado para publicação em 18/06/04.

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criação

DOGVILLE ou quando a vida é reduzida a um ciclo interminável de produção e consumo DOGVILLE or when life is reduced to an endless cycle of production and consumption Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima 1

No inquietante filme de Lars von Trier, Dogville, após um final absolutamente constrangedor, até pela sensação de alívio que a vingança provoca, somos confrontados com imagens reais de miséria e abandono que, por mais esforço que se faça para que esqueçamos, também encontramos nos EUA. Assim, o filme parece tratar, sobretudo se dermos crédito a grande parte da crítica especializada (ver, por exemplo Christian Petermann, 2003), de uma parábola antiamericana sobre as relações de uma sociedade fechada e comunitária e, aparentemente solidária, com um forasteiro. Em relação a isso, Inácio Araújo (2004) tem razão quando diz que, nesses tempos de violência americana espalhada pelo globo, apresentar um filme como antiamericano é quase um lance de marketing. Mas dizer que Dogville é apenas antiamericano parece pouco. Lars von Trier conta que ao ser criticado em Cannes por um jornalista americano por fazer um filme que se passava nos EUA sem nunca ter estado lá (o jornalista se referia a Dançando no escuro), resolveu que faria mais filmes cujas histórias se passassem na América, mas continuaria não pisando lá. Queria manter um olhar estrangeiro e um ponto de vista próprio construído pela força com que a cultura americana e seus produtos invadem todas as outras culturas (Trier, 2004). No entanto, é o próprio diretor quem nos alerta, a parábola que Dogville encena é sobre os Estados Unidos, mas é também sobre qualquer pequena cidade em qualquer lugar do mundo. “I think that people are more or less the same everywhere” (Trier, 2004). E se o diretor oscila em suas declarações públicas a respeito de Dogville ser ou não um filme sobre a América, se a crítica se exaspera com o fato de um diretor filmar sobre algo que “não conhece”(ver Caligaris, 2004), esta questão

1 Professora Assistente Doutora, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, USP; Membro do Laboratório de Estudos e Pesquisa “Arte e Corpo em Terapia Ocupacional”. <elizabeth.lima@uol.com.br>

Rua Ministro Américo Marco Antonio, 351 Vila Beatriz - São Paulo, SP 05.442-040

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parece menor diante daquilo que o filme sugere: as mentes estreitas, ou os tartufos (Araújo, 2004), estão por toda parte neste mundo no qual o império dominou até os mais recônditos espaços de nossas mentes e de nossos corações. Não é de se estranhar que uma reportagem recente publicada na Revista Veja (Costa, 2004) sobre um novo programa da televisão chinesa que “ensina os chineses a consumirem como os ocidentais” - e que tem sido acolhido com altos índices de audiência pela população -, termine com a afirmação de que “os chineses estão cada dia mais parecidos com o resto da humanidade”. Assim, as relações de atração, repulsa, sedução e opressão entre uma comunidade e a figura do estrangeiro, encenadas no filme, podem estar em íntima conexão com o que se passa na sociedade americana, mas não só. Neste sentido, o sentimento que predomina, também nos personagens do filme, mas principalmente no expectador, é o de um profundo desconforto com as forças que vão se delineando pouco a pouco na trama das relações. Não seriam essas forças bastante familiares para nós? Talvez, mais que antiamericana, esta parábola do cineasta seja um grito contra o modo de vida hegemônico no capitalismo e que nos atravessa a todos. Como se o diretor quisesse dizer que este funcionamento global tira de todos o que cada um tem de pior. Hannah Arendt, em seu livro A condição humana (2003), desenvolve a idéia de que a forma de existência predominante no contemporâneo praticamente reduziu todas as atividades que realizamos, em especial a capacidade de produzir obras e realizar ações, ao denominador comum de um labor voltado a assegurar as coisas necessárias à vida do nosso corpo biológico, produzi-las e consumi-las. Esta vida que o labor visa manter se refere ao processo biológico do corpo humano. A autora toma a distinção grega entre zoe (a vida comum a todos os seres vivos) e bios (a vida especificamente humana, plena de eventos e que constitui uma maneira de viver peculiar). Giorgio Agambem, partindo da mesma distinção, denomina o primeiro tipo de vida de vida nua, afirmando que o regime contemporâneo exerce um poder sobre a vida que, travestido de defesa da vida, a reduz à sua modalidade biológica (Pelbart, 2003). O homem reduzido ao labor e à manutenção de uma vida nua está aprisionado, segundo Arendt, a uma atividade que se desenvolve de forma cíclica e repetitiva, cujo único objetivo é a produção cada vez maior de coisas pouco duráveis a serem consumidas, e que não termina senão com a exaustão da força de trabalho. Quando tudo que fazemos se resume a este mecanismo de produção incessante de bens perecíveis e consumo incessante desses mesmos bens, deixamos de construir um mundo e de estar entre os homens como seres políticos e ficamos reduzidos às nossas necessidades privadas. Segundo a autora, toda a nossa economia tornou-se economia do desperdício, na qual tudo deve ser devorado. Hoje consumimos incessantemente, não apenas coisas tangíveis, mas, sobretudo, imagens e signos. Vivemos a futilidade de uma vida que não se realiza em coisa alguma que seja permanente; perdemos o mundo comum. Tornamo-nos seres inteiramente privados: privados da presença dos outros, da realidade que advém de compartilhar um mundo, de realizar algo permanente. Tornamo-nos prisioneiros de uma subjetividade encapsulada. Para esses pobres seres privados que somos nós, a única experiência de espaço público que resta é a exposição daquilo que outrora pertencia ao âmbito da vida privada, o que talvez possa ajudar a compreender a onda de reality shows espalhados pelo mundo e a crescente exposição da esfera privada das celebridades (ou não) nas diversas mídias. Como o efeito causado pelo cenário de paredes invisíveis e pela transparência de alguns objetos e materiais criados por Lars von Trier em DogVille, que

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igualam o movimento da rua e o movimento de dentro de casa, tornando, para o espectador, todos os espaços indistintamente públicos e privados. Neste contexto, qualquer tempo livre, não dedicado ao trabalho em sua qualidade de labor, volta-se para o consumo. Como em Dogville, as horas vagas, adquiridas por cada um dos habitantes da pequena vila a partir da oferta de Grace, e que poderiam libertá-los, ao menos um pouco, do ciclo interminável do labor, só podem ser gastas com a atividade incessante de consumir a própria forasteira. O chamado “tempo livre” neste modo de vida jamais é gasto em outra coisa senão em consumir; e quanto maior é o tempo de que se dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os apetites. O fato de que estes apetites se tornam mais refinados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida, mas ao contrário visa principalmente as superfluidades da vida, não altera o caráter desta sociedade; acarreta o grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objeto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo. (Arendt, 2003, p.146)

A esse pensamento o filme de Lars von Trier parece acrescentar que nem mesmo os homens estarão a salvo de se tornarem objetos desta dinâmica. A figura de Nicole Kidman/Grace, sempre bela e limpa, destoando dos habitantes locais mesmo depois de longo período de convivência com eles, se oferecendo e se colocando à disposição do outro, nos faz pensar de algum modo numa imagem publicitária: é a própria encarnação da felicidade ao alcance de todos e ao mesmo tempo inatingível – tão perto, tão longe. A oferta sem limites cria e recria uma demanda sem fim e que jamais poderá ser respondida ou aplacada. A demanda criada provoca um incansável movimento de consumo e de insatisfação. Consumir tudo, inclusive o outro que se oferece. É disso que trata o filme; é disso que se trata no capitalismo. E se o capitalismo conseguisse capturar a totalidade da existência e não houvesse margens, bordas ou qualquer saída, não restaria senão a aniquilação de todos os habitantes da pequena cidade perpetrada no final do filme, equivalente da aniquilação dos habitantes do planeta. Seríamos, mesmo, todos tartufos, sem esperança nem futuro. Mas, apesar da poderosa máquina de produção subjetiva que constrói e captura nossos desejos, há sempre algo que escapa e pulsa nas bordas desse modo de vida, desenhando, impertinentemente, pequenas saídas, outros possíveis. São esses processos microscópicos que o filme de Lars von Trier não alcança captar. Seu mapa, detendo-se nos estados de coisa já dados, não acompanha os movimentos intensivos que escapam a esses estados de coisa e não revela as milhares de linhas de diferenciação que se insinuam cotidianamente por entre as malhas rígidas do capitalismo mundial integrado. Talvez, neste ponto, devêssemos recordar Foucault (2002), para quem ali onde incide o poder, ali também se exerce a resistência. Se o poder contemporâneo investe sobre a vida, reduzindo-a a sua modalidade orgânica e biológica (como quer Agambem), e limita todas as atividades humanas ao labor (como sugere Arendt), as forças que resistem a este poder se apóiam sobre aquilo mesmo que ele investe, a vida, e buscam expressão na realização de atividades que escapem à lógica do labor.

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Ao poder sobre a vida se opõe a potência da vida, aquilo que nela não se deixa aprisionar, sua qualidade de indeterminação, sua capacidade de reinventar-se, tomar novas forma e fazer-se vida qualificada. Esta vida como bios, a qual Aristóteles se referia dizendo que é de certa forma uma espécie de práxis, só pode ser afirmada se restituirmos às atividades humanas suas qualidades de construir um mundo comum e tecer a rede das relações humanas. E se todas as atividades humanas foram reduzidas à condição de labor, no sentido da manutenção desta vida nua, a arte permanece sendo uma forma de resistência das mais poderosas. Uma das poucas atividades que ainda nos permitem criar um mundo, conferindo durabilidade e permanência ao caráter efêmero do tempo humano, e obras que escapam à aniquilação pelo ciclo incessante da produção e do consumo. Como nos propõe Deleuze (1999), a obra de arte é um ato de resistência. Ato que resiste à morte e, ao construir um mundo comum, apela por um povo que ainda não existe, contribuindo para a invenção de outras formas de vida.

Referências ARAÚJO, I. Von Trier enxerga apenas martírio dos perfeitos. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 mar. 2004. Ilustrada, p.E8. ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. CALIGARIS, C. Filme do cão. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jan. 2004. Ilustrada, p.E9. COSTA, R. A rainha da classe média: o sucesso do programa de TV que ensina os chineses a consumir como os ocidentais. Rev. Veja, p.65, 21 abr. 2004. DELEUZE, G. O ato de criação. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jun. 1999. Caderno Mais!, p.4-5. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PELBART, P. P. Vida capital. São Paulo: Iluminuras, 2003. PETERMANN, C. Dogville. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 a 30 out. 2003. Guia da Folha, p.5. TRIER, L. V. About Dogville. Disponível em: <http://www.dogville.dk>. Acesso em: 10 mai. 2004.

Recebido para publicação em 20/07/04. Aprovado para publicação em 30/07/04.

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Marcas, 2002, Botucatu, SP O tempo vai criando o espaço e o que vemos são formas, texturas, cores e linhas... a ação do homem, a força do tempo, da água e do ar na terra, pedra, areia, árvores, na placa de metal ou de madeira... As marcas estão sempre presentes na obra de Elisete Alvarenga, artista que trabalha o desenho em diferentes meios, buscando na natureza ou retirando dela os pigmentos e inspiração para registrar momentos e debruçar-se sobre a dinâmica sempre mutante do mundo... Rua Dr. Luiz Ayres, 530 Botucatu, SP 18.607-020 <e.alvarenga@uol.com.br>

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ELISETE ALVARENGA, Marcas, 2002

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INTERFACES

Ride – daí dali daqui do Olimpo – Ó deuses que regei as interfaces Hipertextos de horrores e êxtases. Armas pipocam Barões pipocam Praias – ocidentais / orientais – pipocam Toques de recolher pipocam. Infernos e céus zodiacais. Eu – o demiurgo o domador o designer o diagramador – Não me aborreço Acontecimentos que obedecerem a outro comando Serão decretados corpos não-sólidos. Portais: Mundo, site e cidade luzem na minha testa. Portais: Mundo, site e cidade turvam-se na minha testa Rude.

Waly Salomão (1943-2003)



DOAÇÃO DE ÓRGÃOS A experiência de enfermeiras, médicos e familiares de doadores Maria Lúcia Araújo Sadala 14x21cm – 175p./2004 – ISBN: 85-7139-517-9 – R$28,00 Ao privilegiar as relações humanas dos envolvidos no processo de doação de órgãos, a autora enfoca as enfermeiras que atuam em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), os doadores de órgãos, pacientes com morte encefálica mantidos em vida artificial por meio de aparelhos, e suas famílias. Composto de três estudos, o livro enfoca a doação de órgãos e, principalmente, o relacionamento de profissionais da área de saúde com a família do doador, que se considera relegada a segundo plano após cumprir os aspectos formais, e reclama de um maior acompanhamento emocional.

A IMPOSTURA CIENTÍFICA EM DEZ LIÇÕES Michel de Pracontal 14x21 cm – 453p./2004 – ISBN: 85-7139-521-7 – R$ 49,00 Definida pelo autor como uma mentira que consiste em fazer passar por científico um discurso, teoria, tese, experiência, dado ou observação que não é, a impostura científica é desmistificada neste livro. Os segredos da impostura estariam em fazer perguntas verdadeiras, escolher um nicho de atuação, criticar a ciência oficial, usar a mídia, manipular os fatos, reescrever a história e abusar das armadilhas de linguagem. Seguir esses mandamentos seria o melhor caminho para um êxito rápido, mas geralmente efêmero.

O MÉTODO ANTICARTESIANO DE C. S. PEIRCE Lucia Santaella 14x21 cm – 277p./2004 – ISBN: 85-7139-527-6 – R$ 35,00 Livro que relaciona o pensamento de Peirce ao de Descartes, é a demonstração, por C. S. Peirce, de que a investigação científica é sempre gratificante, pois é a maneira que o intelectual tem de conversar com a natureza em suas diversas escalas, a microscópica, a inorgânica, a biológica, a humana e a macroscópica. Uma das maiores especialistas no país sobre as teorias de Peirce, a autora traz a oportunidade de reflexão de como Peirce tomou Descartes por seu primeiro interlocutor, apontando deficiências do pensamento cartesiano com a convicção de que os novos tempos demandavam um raciocínio que transcendesse o legado do intelectual francês. (co-edição: FAPESP)

OS USOS SOCIAIS DA CIÊNCIA Por uma sociologia clínica do campo científico Pierre Bourdieu 12x21 cm – 86p./2004 – ISBN: 85-7139-530-6 – R$ 16,00 Livro que leva o título da conferência, seguida de debate, realizada no Instituto Nacional da Pesquisa Agronômica (INRA), pode ser classificado como uma sociologia da produção científica que se vale da teoria dos campos sociais, para discutir questões relevantes. O autor acredita que a luta pela “verdade” científica no interior do campo é um jogo de lucros e perdas e que os “campos científicos” são o espaço de confronto necessário entre duas formas de poder que correspondem a duas espécies de capital científico: o social (ligado à ocupação de posições importantes nas instituições científicas) e o específico (que repousa sobre o reconhecimento pelos pares, também o mais exposto à contestação). Sob sua ótica, essas contradições podem ser ultrapassadas com a sociologia da ciência. (co-edição: INRA)

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