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Interface Comunicação, Saúde, Educação v.8, n.14, set.2003-fev.2004

APRESENTAÇÃO 5

DOSSIÊ sobre a Saúde Biopolíticas da saúde: reflexões a partir de 9 Michel Foucault, Agnes Heller e Hannah Arendt Francisco Ortega

Biopolítica: o poder médico e a autonomia do 21 paciente em uma nova concepção de saúde André Martins

A grande Saúde e uma breve introdução à 35 medicina do Corpo sem Órgãos Ricardo Rodrigues Teixeira

Cuidado e reconstrução das práticas de 73 Saúde

149 LER/DORT: multifatorialidade etiológica e modelos explicativos Luiz Gonzaga Chiavegato Filho; Alfredo Pereira Jr.

165 Mercado simbólico: um modelo de comunicação para políticas públicas Inesita Soares de Araújo

179 NOTAS BREVES 183 LIVROS

José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres

185 TESES ARTIGOS O lugar, a teoria e a prática profissional 95 do médico: elementos para uma abordagem crítica da relação médico-paciente no consultório Giovanni Gurgel Aciole

ESPAÇO ABERTO 191 Nós e a Doze: algumas inéditas considerações sobre a mais inédita Conferência de Saúde do país Caco Xavier

O processo de reformulação curricular de 113 duas faculdades de medicina no Brasil e na Argentina: uma abordagem comparativa

197 Inovação na Educação Superior Marcos Masetto

Lilian Koifman

Explicações de crianças internadas sobre a causa das doenças: implicações para a 135 comunicação profissional de saúde-paciente Gimol Benzaquen Perosa; Letícia Macedo Gabarra

CRIAÇÃO 203 O corpo e a Saúde João Monteiro (Lin) 207 Cuerpos Pintados Taller Experimental



APRESENTAÇÃO

O movimento da Saúde Coletiva brasileira apresenta, ao longo dos últimos 25 anos, inúmeros e frutíferos desdobramentos, dentre os quais sobressai o florescimento de alguns periódicos de qualidade como Interface. Interface, desde seu surgimento, tem se destacado por ser o espaço das reflexões sobre educação, comunicação e saúde, primando pela qualidade editorial e pela beleza de cada uma de suas edições. Este número 14 do volume oito não é diferente. Nesse percurso da nossa Saúde Coletiva, uma diversidade espantosa de temáticas se desenvolveu, como bem pode ser aquilatado pelos anais de nossos congressos nacionais. Entretanto, paradoxalmente, a temática da Saúde como tal é uma daquelas que, talvez por serem tomadas como subentendidas e ponto de partida, foram menos trabalhadas. Vários de nossos melhores pensadores têm chamado atenção para essa falta. Até quando a saúde será tematizada pelo seu duplo: a doença? O Dossiê “Sobre a Saúde” aqui apresentado, mostra-nos que novas vozes e reflexões vêm se juntar ao esforço de tematizar a Saúde no âmbito de nosso movimento. Começando, fora da ordem de apresentação, pela contribuição interessantíssima de Ricardo Teixeira: “A grande Saúde e uma breve introdução à medicina do Corpo sem Órgãos”. Ricardo vai buscar em Espinosa a inspiração para pensar a Grande Saúde. Construção paulatina e espiralada, na qual cada volta acrescenta elementos de emancipação: potência do agir e do pensar, perseverança no desejo, fortalecimento do conatus, alegria. Capacidade de afetar e ser afetado, imaginação e vontade. Liberdade que será essencial à construção da Razão, conveniência entre os corpos, escolhas comprometidas com a realização da felicidade. Verdade, liberdade, felicidade como síntese na Grande Saúde. Capacidade de autodeterminar-se, instituindo normas que convenham a si. Aí a resultante da vida vivida e do caminho percorrido. Vida em sua plenitude, contados e incluidos aí os riscos do caminhar. Tal como na tela de Lúcio Fontana, que Ricardo usou para introduzir sua tese de doutoramento, da qual este artigo é apenas uma pequena amostra, aquilo que nos é dado entrever por entre os talhos, é suficiente para nos fazer ensimesmar-nos e aquilatar a dimensão desse espaço que se abre para a formulação de uma teoria da Saúde. José Ricardo Ayres comparece ao debate com sua reflexão elegante, consistente e didática sobre os muitos sentidos do cuidar. Nesse trabalho delicado de “ourivesaria” teórica e conceitual ele vai nos mostrando as diversas faces de um conceito nuclear para as práticas de saúde compreendidas na dimensão humana em que a Grande Saúde nos introduziu. Valendo-se mais uma vez da mitologia, que como queria Vico, é parte da proto-história humana, e da filosofia de Heidegger, José Ricardo explora o cuidado como categoria ontológica, detalhando cada uma das suas características constitutivas. O próximo passo, alicerçado na genealogia de Michel Foucault, é analisar o cuidado de si como atributo e necessidade universal dos seres humanos. Finalmente, emerge da elaborada construção o cuidado como categoria crítica e reconstrutiva, potencialmente capaz de reinventar a práxis na Saúde.

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André Martins acrescenta mais uma volta a esse parafuso, tratando de um dos poderes de biopolítica: o poder médico. O autor caracteriza o estado atual da relação entre o poder da Medicina e a autonomia dos pacientes, destacando os aspectos relativos ao caráter pretensamente científico, verdadeiro e objetivo do saber e do fazer médicos. Mais uma vez, nesse dossiê, somos remetidos à reflexão sobre a saúde, tal qual ela aparece em vários pensadores, dentre os quais o autor destaca as contribuições de Canguilhem, Espinosa, Winnicott e Nietzche, fechando temporariamente o ciclo que articula essa contribuição com as temáticas da Grande Saúde e do Cuidado, anteriormente comentadas. Completando o dossiê, temos ainda a contribuição de Francisco Ortega a cerca da biopolítica da saúde, aqui em sua dimensão propriamente política. O texto de Ortega é bastante estimulante e provocador. O autor analisa, auxiliado pelas contribuições teóricas de Agnes Heller, Hanna Arendt e Michel Foucault , o paradoxal esvaziamento político que, as políticas particularistas defendidas por grupos de interesses organizados nas sociedades modernas representam. Até que ponto a massificação da participação e o predomínio do “politicamente correto” constitui a negação da política? Este conjunto de aportes originais certamente acrescenta novas perspectivas e planos de discussão e aprofundamento da temática da Saúde, ampliando o leque de diálogos possíveis, convocando novas contribuições teóricas, formulando indagações e apontando caminhos. Além do dossiê Sobre a Saúde, este número traz ainda artigos avulsos, notas breves e resenhas. Dentre os artigos apresentados gostaria de destacar três, neste comentário. O artigo de Lilian Koifman trata da análise comparativa entre os processos de reforma curricular das faculdades de Medicina da Universidade Federal Fluminense e da Universidade de Buenos Aires, destacando o papel da articulação mais ou menos orgânica entre o aparelho formador e a política de saúde. Gimol Benzaquem Perosa e Letícia Macedo Gabarra apresentam pesquisa empírica muito bem conduzida sobre as explicações de crianças para a causa das doenças. Inesita Soares de Araujo propõe nova abordagem para diagramar o espaço da Comunicação Social em torno das políticas públicas. Certamente, como já ocorreu em relação a números anteriores, diferentes públicos poderão se beneficiar desse convite permanente ao diálogo instaurado pela Interface. Diálogo ainda mais frutífero se a transgressão aos limites, insinuado no próprio título do periódico, for tomado a sério! Rita Barradas Barata, professora adjunta do Departamento de Medicina Social, Faculdade de Ciências Médicas, Santa Casa de São Paulo <chmedsoc@santacasasp.org.br>

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PRESENTATION

The Brazilian Collective Health movement has, over the last 25 years, yielded countless and fruitful upshots, such as the flourishing of high quality periodicals such as Interface. Since it first appeared, Interface has stood out as an arena for reflections on education, communication and health. It stands out for its editorial quality and for the beauty of each one of its editions. The current issue (number 14, volume eight) is no different. In the course of our Collective Health evolution, an extraordinary diversity of themes developed, as the annals of our national congresses clearly reveal. However, paradoxically, the theme of Health as such is one of those that, perhaps due to its being assumed to be understood and a starting point, was developed the least. Several of our best thinkers have pointed out this gap. Until when will the theme of health be seen from the standpoint of its counterpart, disease? The “On Health” dossier presented here shows us that new voices and reflections are joining the effort to develop the theme of Health within the scope of our movement. Beginning, although not in the order in which the papers are presented, with Ricardo Teixeira’s extremely interesting contribution: “Grand Health: an introduction to the medicine of the Body With No Organs”. Ricardo finds in Spinoza the inspiration to think about Grand Health. A gradual and spiral construction, in which each turn adds elements of emancipation: the power of action and thought, the perseverance of desire, the strengthening of conatus and good cheer. The capacity to affect and to be affected, imagination and willpower. Freedom that will be essential for constructing Reason, the coexistence of bodies, choices committed to the realization of happiness. Truth, freedom, and happiness as Grand Health synthesis. The capacity for self-determination, with the institution of rules that are convenient to one. Thus, the results of the life that was lived and the path that was trodden. Life in its fullest sense, therein included and comprised the risks of the path undertaken. As in Lúcio Fontana’s painting, which Ricardo used to introduce his doctoral thesis, of which this article is but a small sample, that which we are privileged to glimpse through the foliage is sufficient to impel one to turn inward and assess the dimension of the space revealed for the formulation of a theory of Health. José Ricardo Ayres take part in the debate with his elegant, consistent and didactic thoughts on the many senses of this care process. In this delicate work of theoretical and conceptual “goldsmithery”, he shows us the many facets of a core concept for healthcare practices comprised within the human dimension into which Grand Health has introduced us. Relying once again on mythology, which, as defended by Vico, is part of human protohistory, and on Heidegger’s philosophy, José Ricardo explores care as an ontological category, detailing each one of its constituent characteristics. The following step, underpinned by Michel Foucault’s genealogy, is the analysis of care for oneself as a universal need and attribute of human beings. Finally, care as a critical and reconstructive category emerges from the elaborate construction, potentially capable of reinventing Health praxis.

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André Martins adds yet one more turn to this screw, discussing one of the biopolitical powers: medical power. The author characterizes the current state of the relation between the power of Medicine and the autonomy of patients, highlighting the relative aspects of the supposedly scientific, true and objective character of medical knowledge and know-how. Once again, in this dossier, we are led to reflect on health, as seen by several thinkers, amongst which the author stresses the contributions of Canguilhem, Spinoza, Winnicott and Nietzche, temporarily closing the cycle that articulates this contribution with the Grand Health and Care themes, which we discussed previously. Completing the dossier, we have a contribution from Francisco Ortega on the biopolitics of health, now in its properly political dimension. Ortega’s text is stimulating and provocative. With the help of the theoretical contributions of Agnes Heller, Hanna Arendt and Michel Foucault, the author analyzes the paradoxical political emptying that the particularizing policies defended by organized interest groups in modern society represent. To what extent does the widespread participation and the predominance of “political correctness” constitute a negation of politics? This set of original contributions certainly adds new prospects and planes of discussion and in-depth discussion to the theme of Health, expanding the range of possible dialogues, calling for new theoretical contributions, formulating queries and pointing out paths. Besides the “On Health” dossier, this issue offers has free-standing articles, brief notes and reports. Among the several articles presented I would like to highlight three. Lilian Koifman’s article deals with the comparative analysis between the process of curricular reform at the Federal Fluminense University and the Buenos Aires University medical schools, stressing the role of more or less organic articulation between the educational apparatus and healthcare policy. Gimol Benzaquem Perosa and Letícia Macedo Gabarra present very well conducted empirical research on the explanations given by children about the cause of disease. Inesita Soares de Araujo submits a new approach for charting the area of Social Communication around public policies. Undoubtedly, as was the case of previous issues, different audiences may benefit from Interface’s permanent invitation to dialogue. A dialogue that will become even more productive if the transgression of boundaries, as insinuated by the periodical’s very name, is taken seriously! Rita Barradas Barata, Assistant professor of the Social Medicine Department, Scholl of Medical Sciences, Santa Casa de São Paulo <chmedsoc@santacasasp.org.br>

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dossiê

Biopolíticas da saúde: reflexões a partir de Michel Foucault, Agnes Heller e Hannah Arendt

Francisco Ortega 1

ORTEGA, F. The biopolitics of health: reflections on Michel Foucault, Agnes Heller e Hannah Arendt, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.9-20, set.2003-fev.2004.

The purpose of this article is to offer conceptual tools that may help one to reflect on the biopolitics of health, based on the works of Michel Foucault, Agnes Heller and Hannah Arendt. For Foucault, since the 18th century, biological life and the health of the nation became fundamental targets of a power over life that emphasized the notions of sexuality, race and degeneration in particular, with the objective of optimizing the biological quality of the population. For Arendt, this trend toward the politicization of life is deeply antipolitical. Life fills the void left by the decomposition of the public sphere. In the case of Agnes Heller, the antipolitical character of the biopolitical discourse manifests itself in the ongoing quest for near-scientific legitimization. The thoughts on race, gender and health mimic scientific thinking and replace opinion by truth. If politics is the arena for the confrontation of opinions, dialogue, initiative, novelty, spontaneity and free action, scientifically legitimated biopolitical thinking is the space of truth, certainty, necessity, determinism and causality, where dialogue is substituted by the politics of self-seclusion, of friends and enemies, and the plurality of opinions is reduced to a single politically correct opinion. KEY WORDS: Biopolitics; health; Michel Foucault; Agnes Heller; Hannah Arendt. O objetivo deste artigo é oferecer ferramentas conceituais que possam ajudar na reflexão acerca da questão das biopolíticas da saúde a partir da obra de Michel Foucault, Agnes Heller e Hannah Arendt. Para Foucault, desde o século XVIII, a vida biológica e a saúde da nação tornaram-se alvos fundamentais de um poder sobre a vida que enfatizava especialmente as noções de sexualidade, raça e degenerescência, cujo objetivo era a otimização da qualidade biológica das populações. Para Arendt, esse movimento de politização da vida é profundamente antipolítico. A vida passa a ocupar o vazio deixado pela decomposição do âmbito público. No caso de Agnes Heller, o antipolitismo do discurso biopolítico se manifesta na procura constante de legitimação quase científica. O pensamento de raça, gênero, saúde é um pensamento científico imitado que substitui a opinião pela verdade. Se a política é o campo do confronto das opiniões, do diálogo, da iniciativa, do novo, da espontaneidade e da ação em liberdade, o pensamento biopolítico legitimado cientificamente é o espaço da verdade, da certeza, da necessidade, do determinismo e da causalidade, no qual o diálogo é substituído por uma política da autoclausura, de amigos e inimigos, e a pluralidade de opiniões é reduzida a uma única opinião politicamente correta. PALAVRAS CHAVE: Biopolítica; saúde; Michel Foucault; Agnes Heller; Hannah Arendt.

1 Professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Pesquisador do Programa de Estudos e Pesquisas do Sujeito e da Ação (PEPAS/ UERJ). <fjortega@superig.com.br>

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ORTEGA, F.

No fim do século XX, entretanto, toda teoria crítica deve se ocupar seriamente da penetração da bioidentidade no âmbito do político, seja só para analisar as razões desse desenvolvimento e seus efeitos (Heller, 1995)

Segundo Michel Foucault, nossa sociedade atravessou o “umbral da modernidade biológica” na passagem do século XVIII para o XIX, quando o indivíduo e a espécie entraram nas estratégias e nos cálculos do poder político. A vida biológica e a saúde da nação tornaram-se alvos fundamentais de um poder sobre a vida, num processo denominado de “estatização do biológico”. O biopoder clássico articulava-se numa dupla forma, como uma anátomo-política do corpo, em cuja base estavam os processos de disciplinamento corporal, e como uma biopolítica das populações. A biopolítica analisada por Foucault enfatizava especialmente as noções de sexualidade, raça e degenerescência, cujo objetivo era a otimização da qualidade biológica das populações. Ela estava historicamente vinculada à constituição e ao fortalecimento do Estado nacional, à afirmação da burguesia, assim como à formação de um dispositivo médico-jurídico visando à medicalização e à normalização da sociedade (Foucault, 1976, 1999a, 1999b). Em análises clássicas, Hannah Arendt (1995, 1997) também diagnosticou o “umbral da modernidade biológica”, quando, nas suas investigações sobre o fenômeno totalitário, sublinhava como nos campos de concentração nazistas e stalinistas operava-se a transformação da natureza humana, visando a redução biopolítica dos indivíduos ao mero fato biológico, à “vida nua”, ou ao que ela chamava a “abstrata nudez de ser unicamente humano”. Essas análises têm sua continuidade na crítica arendtiana da modernidade, segundo a qual a condição vital destrói as condições mundanas e plurais da existência. Se no totalitarismo o poder artificialista da técnica era utilizado para reduzir a humanidade ao fato biológico, nas sociedades liberais modernas recorre-se à mesma artificialidade com o objetivo de aumentar o poder do processo vital natural, tornado norma implícita da vida em comum. A vida tornou-se uma “verdade axiomática” de validade incontestável; o caráter sagrado da vida e a vitória do “animal laborans” na modernidade está vinculado ao processo de crescente despolitização, em que a vontade de agir transformou-se “na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu”. O regime biopolítico das sociedades liberais pós-totalitárias se encontra sob o primado da “imortalidade do processo vital”, que invadiu o espaço público e tornouse regra de organização social, ligado à negação da instituição do mundo como regra de organização política da pluralidade humana. Com isso, a vida passa a ocupar o vazio deixado pela decomposição do âmbito público. Esse movimento de politização da vida - o que Foucault qualifica de biopoder -, que teve seu início nas sociedades ocidentais no século XVIII, é para Arendt profundamente antipolítico.

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BIOPOLÍTICAS DA SAÚDE: REFLEXÕES A PARTIR DE...

2 Encontramos em Deleuze (1986, p.98) uma formulação semelhante: “A vida torna-se resistência ao poder quando o poder assume como objeto a vida. Neste caso também as duas operações pertencem a um mesmo horizonte”.

Arendt e Foucault alertaram para as conseqüências desse processo de tornar a vida o bem supremo, de politização do biológico, sendo o totalitarismo, ou a intimização e a normalização da sociedade, as suas manifestações fundamentais. Dessa maneira, vemos como a biopolítica estatal clássica estava diretamente vinculada à formação e à consolidação da sociedade íntima. Especialmente a ênfase dada à sexualidade na biopolítca era ligada a um processo de implantação de identidades via o desejo sexual. A moral do desejo teria levado desde o cristianismo até a psicanálise à constituição de uma noção de subjetividade passiva e a-histórica, como interioridade e consciência de si, que se encontra na base da filosofia do sujeito. O desejo está ligado à produção de corpos dóceis, submissos e disciplinados, à consistência ontológica da subjetividade e ao universalismo ético que possibilitava a implantação de uma identidade nas práticas subjetivantes modernas. Para Foucault (1976) a resistência ao dispositivo biopolítico se encontra na vida mesma, numa “outra economia do corpo e dos prazeres”, num ‘poder da vida’, suscetível de resistir os agenciamentos do ‘poder sobre a vida’ que define a biopolítica. Ele acreditava que a resistência a essa nova forma de poder devia se apoiar precisamente naquilo que ele investiu, isto é, na vida mesma: “A vida como objeto político foi de certa maneira tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que pretendia controlá-la” (p.191)2. A vida constitui, portanto, o alvo de lutas biopolíticas, mesmo sob a forma de lutas por um direito à vida, à saúde, ao corpo, à higiene, à felicidade e à satisfação das necessidades. A resistência se organiza como formação de diversos grupos biopolíticos, os quais representam o alvo da crítica de Agnes Heller, como veremos. A posição de Foucault é, no entanto, ambígua: tratar-se-ia de resistir “na biopolítica” ou “à biopolítica”?, pois existem na sua obra momentos em que aparentemente não existiria um “fora” da biopolítica, - a mencionada localização no corpo e nos prazeres como alternativa ao dispositivo biopolítico parecem nos conduzir nessa direção. Por outra parte, nos seus últimos textos, particularmente nos referentes a uma politização da amizade, Foucault se afastou dessa concepção de um poder sobre a vida que biopoliticamente enfrentasse os dispositivos biopolíticos estatais (Ortega, 1999, 2000, 2002). O autor teria se recusado a procurar a resistência no âmbito das identidades e constantes biológicas. Uma leitura de Foucault com um olhar arendtiano pode ser, nesse sentido, frutífera. A reflexão de Agnes Heller sobre a biopolítica tem como pano de fundo às análises arendtianas e foucaultianas, com as quais estabelece uma fecunda discussão. Sua posição, no entanto, contrasta com a desses autores em vários aspectos. Foucault estava interessado em traçar a genealogia da biopolítica clássica, como a forma adotada por um poder que substitui a lei e o direito pela norma, e a morte pela vida, apontando formas de resistência aos processos normalizadores da sociedade. O alvo de Heller o constituem precisamente esses grupos biopolíticos, mostrando como representam - na melhor tradição arendtiana - antes depauperações do político, formas antipolíticas de agrupamento, do que exercícios de uma política genuína, pois os critérios de agrupamento biológicos e corporais (raça, sexo, saúde,

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performances físicas, doenças específicas, longevidade) substituem os critérios políticos de agrupamento. Heller extrai do arsenal conceitual arendtiano a sua crítica da biopolítica: “Segundo Arendt, os confrontos sobre a raça e, em geral, sobre todo o biológico na natureza (o sexual incluído) são apolíticos por definição. Para ela, um conceito como ‘biopolítica’ seria uma contradição em si. Ou ‘bio’ ou ‘política’, juntos não é possível” (Heller, 1995, s/p). O âmbito do político constituía-se tradicionalmente precisamente mediante a separação do espaço do oikos, ou seja, da vida doméstica e das necessidades biológicas, do espaço público, o que corresponde à distinção aristotélica entre zoe e bios, entre vida biológica e vida politicamente qualificada. Mesmo se o processo da progressiva inclusão da zoe no âmbito do bios, da estatização do biológico, parece irreversível, para Heller, e fiel ao esquema arendtiano, a biopolítica não pode ser considerada política, constituindo antes o resíduo totalitário remanescente nas sociedades democráticas. Com outras palavras, “a política de uma sociedade totalitária que existe junto às instituições políticas livres” (Heller, 1995, s/p). Numa série de lúcidas análises, Giorgio Agamben (1998, p.20) nos adverte que enquanto não se resolvam as contradições inerentes ao fato de ter erigido a vida como valor único e supremo de nossa política, nazismo e fascismo – exemplos extremos de politização da vida – “continuaram sendo infelizmente atuais”. Um diagnóstico que converge com o de Heller & Fehér (1995, p.57-8) no seu livro intitulado Biopolítica: Há algum perigo grave nos movimentos [biopolíticos] que não podem ser acusados de pretender uma tomada totalitária do poder do Estado, mas que utilizam antes os canais ‘normais’ da democracia liberal de hoje? (...) Aborda-se com demasiada freqüência a democracia e o totalitarismo como opostos excludentes, e identifica-se com inconsistência total o totalitarismo com o Estado totalitário. Em contrapartida, nós acreditamos que os micropoderes da sociedade - se operar neles uma quantia suficiente de frustração social sem canalizar - podem converter a vida num pesadelo totalitário, sem precisar eliminar todo o mecanismo de eleições livres, parlamentos e separação de poderes. E é indubitável que haja frustração coletiva atrás da biopolítica.

Heller não poupa adjetivos desdenhosos na sua caracterização da biopolítica: “triunfo póstumo de Hitler”, “política da autoclausura”, “infecção totalitária”, “veneno totalitário”. Frente ao discurso político baseado na pluralidade de opiniões – no qual precisamente esses dois elementos, pluralidade e opinião, constituem suas características fundamentais -, o discurso biopolítico substitui a pluralidade pela identidade, e a opinião pela verdade e a existência de uma única opinião “politicamente correta”. A redução biológica da pluralidade à identidade homogeneíza as diferenças, visando à coesão e à unidade do grupo. Essa homogeneização do grupo qua diferença está para Heller (1995, s/p) “sobrecarregada ideologicamente”,

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pois suprime as diferenças dentro do próprio grupo: Portanto, quem fala em nome da raça caucasiana estabelece uma concordância entre pessoas que não têm nada em comum entre elas, pelo menos nada que considerem importante. Os que falam em nome das mulheres se colocam no lugar de todas as mulheres, da metade da humanidade, enquanto que as mulheres podem ter e de fato têm aspirações totalmente diferentes e imagens de si completamente divergentes; possivelmente recusam a imagem prescrita por feministas radicais. Em vez de uma consciência de classe prescrita temos que lidar aqui com uma consciência de gênero prescrita sem que se reconheça, como Lukács fez.

3 Se a categoria chave de uma política concreta é a diferença visível do corpo, a presença do Outro é uma irritação e uma tensão em si mesma. E o que melhor alivia a tensão é a violência, a eliminação física do irritante. Entre entidades genéticas, o diálogo é excluído em realidade, porque não se pode aprender nada de uma conversação tão fútil, salvo o fato nu da recíproca estranheza. (Heller & Fehér, 1995, p.115).

Outro elemento do antipolitismo do discurso biopolítico constitui sua procura constante de legitimação quase científica. Para Heller, o pensamento de raça, gênero, saúde é um “pensamento científico imitado”. O pensamento científico substitui a opinião pela verdade. Se a política é o campo do confronto das opiniões, do diálogo, da iniciativa, do novo, da espontaneidade e da ação em liberdade, o pensamento biopolítico legitimado cientificamente é o espaço da verdade, da certeza, da necessidade, do determinismo e da causalidade, no qual o diálogo é substituído por uma política da autoclausura, de amigos e inimigos.3 A redução da pluralidade de opiniões a uma única opinião politicamente correta é outro traço antipolítico fundamental dos grupos organizados biopoliticamente: No discurso biopolítico os grupos autodefinidos determinam também as condições às contribuições dos outros. Um discurso que ‘desmascara’ outros discursos, que trata com desconfiança o diferente, não é em realidade público. Todas as raças e ambos os sexos encontram aqui sua própria verdade; e quanto mais poderosos são seus lobbys mais enfaticamente tentam proclamar sua verdade como incontestável e absoluta. As opiniões divergentes não são aceitas, e as opiniões contrárias não são ouvidas. (Heller, 1995, s/p)

A biopolítica da saúde é um caso que merece uma atenção especial dentro do espectro biopolítico. As biopolíticas oitocentistas clássicas estudadas por Foucault estavam, como vimos, ao serviço da formação dos Estados nacionais e das classes burguesas - as quais, substituindo uma simbólica do sangue por uma analítica da sexualidade, opunham uma série de novos valores: saúde, higiene, vitalidade, prole, ao sangue e à linhagem aristocrática. Durante o século XX essas questões deixaram de ser objeto de gerenciamento estatal, tornando-se ora problemas privados, ora assuntos sociais. No entanto, pela formação de grupos biopolíticos a saúde está sendo repolitizada biopoliticamente enquanto metáfora de pureza moral. É um projeto de cunho conservador, reação ao culto da promiscuidade das drogas e dos excessos próprios da permissividade dos anos 1960, como podemos observar

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por exemplo na onda de histeria coletiva desencadeada nos EUA pelas campanhas antitabaco. “Como a pureza é um valor moral tão positivo, e ao mesmo tempo tão intolerante”, afirmam Heller & Fehér (1995, p.75-6), nada que seja oposto a ela pode pretender ocupar uma posição central, a menos que aceite o risco de que lhe seja aplicada a etiqueta de ‘perverso’ (numa versão suave) ou de diretamente ‘diabólico’. Não é nada disparatado ver nessa valorização moral histérica uma tentativa (bio)política de repor a ‘saúde’ na sua posição central normativa.

A saúde deixou de ser a “vida no silêncio dos órgãos”, usando a expressão feliz de Leriche. Ela exige autoconsciência de ser saudável, deve ser exibida, afirmada continuamente e de forma ostentosa, constituindo um princípio fundamental de identidade subjetiva. A Saúde perfeita tornou-se a nova utopia apolítica de nossas sociedades. Ela é tanto meio quanto finalidade de nossas ações. Saúde para a vida. Mas também viver para estar em boa saúde. Viver para fazer viver as biotecnologias. Assim, a nova moral que estrutura a biopolítica da saúde é a moral do bem-comer (sem colesterol), beber um pouco (vinho tinto para as artérias), ter práticas sexuais de parceiro único (perigo de AIDS), respeitar permanentemente sua própria segurança e a do vizinho (nada de fumo). Trata-se de restaurar a moralidade plugando-a de novo no corpo. O controle sobre o corpo não é um assunto técnico, mas político e moral (Sfez, 1996, p.68)

A repolitização da saúde possibilitou a criação de uma forma de sociabilidade apolítica, que chamaremos de biossociabilidade, para distinguir da biopolítica estatal clássica, constituída por grupos de interesses privados, não mais reunidos segundo padrões tradicionais de agrupamento como classe, estamento, orientação política, mas conforme a critérios de saúde, desempenho físico, doenças específicas, longevidade etc. Nessa cultura da biossociabilidade, criam-se modelos ideais de sujeito baseados na performance física e estabelecem-se novos parâmetros de mérito e reconhecimento, novos valores com base em regras higiênicas e regimes de ocupação de tempo. As ações individuais passam a serem dirigidas com o objetivo de obter melhor forma física, mais longevidade, prolongamento da juventude etc. Na biossociabilidade, todo um vocabulário médico-fisicalista baseado em constantes biológicas, taxas de colesterol, tônus muscular, desempenho corporal, capacidade aeróbica populariza-se e adquire uma conotação ‘quase moral’ ao fornecer os princípios de avaliação que definem a excelência do indivíduo, antes medida de acordo com o desempenho na esfera pública ou na esfera privada e familiar. Ao mesmo tempo todas as atividades sociais, lúdicas, religiosas, esportivas, sexuais são resignificadas como práticas de saúde (Luz, 2000, 2001). O que alguns autores denominaram de healthism ou bodyism,4 e que pode ser traduzido como a

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4 A literatura sobre o tópico é imensa. Ver, entre outros: Crawford (1980, 1994); Conrad (1995); Edgley & Brissett (1990); Petersen (1997); Bunton (1997); Aïach (1998); Faure (1998); Druhle & Clément (1998); Morris (2000); Greco (1993).


BIOPOLÍTICAS DA SAÚDE: REFLEXÕES A PARTIR DE...

5 Ver Estes & Binney (1991); David (1995, p.44-6); Druhle & Clément (1998, p.85); Clarke et al. (2000, p.24); Lupton (1994, p.38-9).

ideologia ou a moralidade da saúde e do corpo perfeito, exprime essa tendência. Healthism é a ideologia, a forma que a medicalização adquire na biossociabilidade. As práticas ascéticas implicam em processos de subjetivação. As modernas asceses corporais, as bioasceses, reproduzem no foco subjetivo as regras da biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de cuidados corporais, médicos, higiênicos e estéticos na construção das identidades pessoais, das bioidentidades. Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna. Na base desse processo está a compreensão do self como um projeto reflexivo. O autogoverno e a formação de bioidentidades se dão através de toda uma série de recursos reflexivos e de práticas de bioascese (manuais de auto-ajuda, terapias psíquicas e corporais, atividades de fitness e wellness etc). A reflexividade é o processo de taxação contínua de informação e peritagem sobre nós mesmos. Não só o self, mas principalmente o corpo, aparece marcado pela reflexividade (Giddens, 1992; Nettleton, 1997). Na atualidade, o discurso do risco é o elemento estruturante básico da biossociabilidade e representa o parâmetro existencial fundamental da vida na modernidade tardia, estruturando o modo pelo qual experts e leigos organizam seus mundos sociais (Castiel, 1999). O corpo e o self são modelados pelo olhar censurador do outro que leva à introjeção da retórica do risco. O resultado é a constituição de um indivíduo responsável que orienta suas escolhas comportamentais e estilos de vida para a procura da saúde e do corpo perfeito e o desvio aos riscos. Ao mesmo tempo podemos observar o crescimento dos comportamentos de risco especialmente na juventude, tais como esportes radicais, sexo sem proteção etc., como resposta à obsessão por comportamentos e estilos de vida sem risco. O automelhoramento individual autodisciplinado na procura de saúde perfeição corporal tornou-se a forma dos indivíduo exprimirem a sua capacidade de agência e autonomia em conformidade às demandas do mundo competitivo. A ênfase na autonomia individual está ligada à desmontagem do Estado assistencialista que trata os indivíduos dependentes com desconfiança, como “parasitas sociais”: “O tom ácido das atuais discussões das necessidades assistências, direitos e redes de segurança está impregnado de insinuações de parasitismo de um lado, enfrentado pela raiva dos humilhados do outro” (Sennett, 1999, p.170). A valorização da autonomia devolve ao indivíduo a responsabilidade por sua saúde, reduzindo a pressão exercida sobre o sistema público. A condição de autonomia se traduz num melhor estado de saúde e no desenvolvimento de hábitos de vida e escolhas comportamentais saudáveis. No caso da velhice, o modelo biomédico dominante define o envelhecimento exclusivamente em termos de declínio à idade adulta, como um estado patológico, uma doença a ser tratada. Os sinais da idade tornaram-se marcas de aversão e patologia.5 Como resultado, os problemas sociais são neutralizados e os idosos são marginalizados em instituições de saúde. Ao mesmo tempo, a velhice é “reconstruída como um estilo de vida mercadológico que conecta os valores mercadológicos da juventude com as

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ORTEGA, F.

técnicas de cuidado corporal para mascarar a aparência da idade” (Katz, apud Morris, 2000, p.236). Os idosos da atualidade são apresentados como saudáveis, joviais, engajados, produtivos, autoconfiantes e sexualmente ativos. Como conseqüência, os idosos estão cada vez menos legitimados para recorrer aos sistemas de saúde (David, 1995). O idoso se constitui como um indivíduo responsável e autônomo capaz de cuidar de si. Aparece assim a figura do idoso “bom” e do idoso “mau”, este último sem competência para cuidar de si. Nesse contexto, devemos compreender o surgimento nos últimos anos de grupos de idosos, portadores de deficiências, grupos de ‘self care’ e movimentos de auto-ajuda, vistos como desafios e resistência à medicalização, e, portanto, encorajados desde a perspectiva da governabilidade neoliberal. Esses grupos retomam o direito dos pacientes participarem no trabalho médico (Pinell, 1998). Eles estimulam, no entanto, a formação de bioidentidades sociais, construídas a partir de uma doença determinada. Como conseqüência, os novos critérios de agrupamento biossociais e biomédicos substituem progressivamente, como vimos, os padrões tradicionais, tais como classe, religião, orientação política. Nesse contexto, o conceito de deficiência releva o de doença, referindo-se a déficit a serem compensados socialmente e não a doenças a serem tratadas (Rabinow, 1999). Esse conceito, usado oficialmente pela primeira vez na Inglaterra, durante a II Guerra Mundial como uma forma de avaliação da força de trabalho disponível, com o objetivo de incorporar o maior número de pessoas, está na base da biopolítica, cujos grupos se distinguem precisamente pelas deficiências a serem compensadas (deficiência da mulher frente ao homem, do negro frente ao branco, do gay frente ao heterossexual, do portador de deficiências frente ao indivíduo fisicamente normal, dos idosos frente aos jovens etc.). A política se dissolve em políticas particulares que aspiram compensar as deficiências de um grupo biopolítico determinado, cuja uma das conseqüências é o esquecimento de ideais sociais mais abrangentes. Autores como Robert Castel enfatizam a idéia da dissolução do social como um dos efeitos do olhar biológico, próprio da virada biopolítica nas sociedades ocidentais, nas quais a experiência identitária é calcada na materialidade do biológico e referentes fisicalistas substituem referentes culturais. As aparentes reivindicações (bio)políticas dos grupos constituídos na biossociabilidade são, em muitos casos, uma armadilha, pois, como Graham Burchell (1991, p.145; 1993) reconhece, é em nome de formas de existência formuladas pelas tecnologias políticas de governo, que nós, como indivíduos e grupos, fazemos reivindicações ao Estado e contra ele. É em nome de nossa existência governada como seres vivos individuais, em nome de nossa saúde, do desenvolvimento de nossas capacidades, de pertencermos a comunidades particulares, de nossa etnicidade, de nosso gênero, de nossas formas de inserção na vida social e econômica, de nossa época, de nosso meio ambiente, dos riscos particulares que podemos enfrentar e assim por diante, que nós igualmente injuriamos e invocamos o poder do Estado.

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Ou seja, o contexto das reivindicações é sempre o dos grupos biopoliticamente organizados, constituídos precisamente por essas tecnologias de governo. É em nome da autonomia dos idosos que fazemos as reivindicações, a mesma autonomia que se encontra na base das próprias tecnologias governamentais. De fato, ganhamos autonomia, mas a autonomia para nos vigiarmos, a autonomia e a liberdade de nos tornarmos peritos, experts de nós mesmos, da nossa saúde, do nosso corpo. Já dizia Foucault (1976) que a resistência ao biopoder se ampara precisamente naquilo que ele investiu, isto é, na vida mesma, uma vida que se volta contra o sistema que pretende capturá-la. Portanto, a vida constitui o alvo das lutas biopolíticas, mesmo sob a forma de lutas pelo direito à vida, à saúde, ao corpo, à higiene, ao bemestar e à satisfação das necessidades. A biopolítica precisa da resistência ao dispositivo biopolítico para poder se desenvolver. Por outro lado, o surgimento de grupos de idosos e de portadores de deficiências é correlato à imposição de uma ideologia que menospreza e estigmatiza a velhice, a doença e a deformação física. A organização desses grupos constitui uma reação, uma tentativa de resistir a essa imposição ideológica. Às vezes, esses grupos de idosos se constituem para realizar trabalhos sociais, recuperar e propor práticas de solidariedade e formas de sociabilidade alternativas e não só para viver os ideais de longevidade, (aparente) juventude, proezas sexuais, o que seria se adaptar a essa ideologia da saúde, da vitalidade, da longevidade (Luz, 2000, 2001). Depois do dito até agora, poderíamos pensar que as questões ‘defendidas’ pelos grupos biopolíticos, tais como a situação de mulheres, negros, gays, emigrantes, a proteção do meio ambiente etc., são irrelevantes na agenda filosófico-política helleriana. Ora, a crítica de Agnes Heller se dirige não contra os assuntos em si; eles são, evidentemente, importantes, mas contra a maneira de serem abordadas na biopolítica de raça, gênero, saúde. Pois, ao serem abordados biopoliticamente, são imediatamente despolitizados, devido à mencionada “tendência a uniformizar o indivíduo, sua intolerância respeito ao insólito e ao excêntrico, sua inclinação a uma ditadura da maioria, sua predileção por modelar uma ‘opinião correta’ coletiva e coisas semelhantes” (Heller & Feher, 1995, 119-20). É a partir da crítica ao pensamento arendtiano e seu desprezo pela questão social que encontramos um fundamento para um tratamento adequado dos conflitos de raça, gênero, saúde etc. Arendt acreditava que a politização de assuntos sociais levou ao declínio da política, como testemunharia o fracasso da Revolução Francesa e o sucesso da Revolução Americana, já que na segunda a questão social não foi colocada (Arendt, 1988). Para Heller, pelo contrário, é a politização da questão social o que salvaria de tratar as mesmas questões biopoliticamente. O exemplo dos Estados Unidos é paradigmático nesse sentido, pois precisamente a ausência histórica de politização dos assuntos sociais possibilitou que “entretanto os movimentos biopolíticos de América tenham assumido o comando ideológico” (Heller, 1995, s/p). Haveria assim duas maneiras antagônicas de tratar temas que dizem respeito à raça,

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ORTEGA, F.

gênero, saúde e meio ambiente: biopoliticamente ou como politização de assuntos sociais. Só a segunda seria stricto sensu política. A diferença estaria no conceito do político que está operando em cada caso; na biopolítica estaríamos tratando com o conceito do político de Carl Schmitt (1992), entendido como a discriminação entre amigo e inimigo6 . No caso da politização de questões sociais, o conceito do político correspondente é a concretização da liberdade no espaço público, segundo o qual qualquer assunto torna-se político se é decido, discutido, debatido no espaço público, deixando de sê-lo ao abandonar a esfera pública (Heller, 1990): Se um grupo determinado só aceita sua auto-apresentação e exclui as apresentações dos outros, para si mesmo, no entanto, exige o direito de apresentar a seus inimigos, então isso é biopolítica. Se a opinião pública exige uma variedade de apresentações e representações recíprocas, estamos lidando com um assunto social. Se o indivíduo só conta como representante de seu grupo, então isso é biopolítica. Se se trata da opinião do indivíduo, é e fica sendo uma questão social. Se os movimentos defendem principalmente sanções e restrições legais, é biopolítica. Se a Societas da Paideia tem a primazia e favorece a educação, o respeito mútuo, a polidez, a franqueza, então se trata de uma questão social politizada. (Heller, 1995, s/p)

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6 Segundo Schmitt (1992, p.51, 55-6), “a distinção especificamente política a que podem reportar-se as ações e os motivos políticos é a discriminação entre amigo e inimigo”; “O antagonismo político é a mais intensa e extrema contraposição e qualquer antagonismo concreto é tanto mais político, quanto mais se aproximar do ponto extremo, do agrupamento amigoinimigo”.


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ALBERTO MONTAÑO

ORTEGA, F. Biopolíticas de la salud: reflexiones a partir de Michel Foucault, Agnes Heller y Hannah Arendt, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.9-20, set.2003-fev.2004. El objetivo de este artículo es ofrecer herramientas conceptuales que puedan ayudar en la reflexión acerca de la cuestión de las biopolíticas de la salud a partir de la obra de Michel Foucault, Agnes Heller y Hannah Arendt. Para Foucault, desde el siglo XVIII, la vida biológica y la salud de la nación se tornaron puntos fundamentales de un poder sobre la vida que enfatizaba especialmente las nociones de sexualidad, raza y degenerescencia, cuyo objetivo era la optimización de la calidad biológica de las poblaciones. Para Arendt, ese movimiento de politización de la vida es profundamente antipolítico. La vida pasa a ocupar el vacío dejado por la descomposición del ámbito público. En el caso de Agnes Heller, el antipolitismo del discurso biopolítico se manifiesta en la búsqueda constante de legitimación casi científica. El pensamiento de raza, género, salud es un pensamiento científico imitado que substituye la opinión por la verdad. Si la política es el campo do confrontación de las opiniones, del diálogo, de la iniciativa, de lo nuevo, de la espontaneidad y de la acción en libertad, el pensamiento biopolítico legitimado científicamente es el espacio de la verdad, de la certeza, de la necesidad, del determinismo y de la causalidad, en el cual el diálogo es substituido por una política da autoclausura, de amigos y enemigos, y la pluralidad de opiniones es reducida a una única opinión políticamente correcta. PALABRAS CLAVE: Biopolítica; salud; Michel Foucault; Agnes Heller; Hannah Arendt.

Recebido para publicação em 17/10/03. Aprovado para publicação em 12/12/03.

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Biopolítica: o poder médico e a autonomia do paciente em uma nova concepção de saúde André Martins 1

MARTINS, A. Biopolitics: medical power and patient autonomy in a new conception of health, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.21-32, set.2003-fev.2004.

This paper proposes an articulation between Foucault’s critique of what he called the “authoritarian medicalization of bodies and diseases” and Spinoza’s concept of the enhancement of the power to act, within the framework of a reflection on the issue of individual autonomy. To this end, a critical and genealogical discussion of the concept of health and of cure as found in current medical practice is presented, as well as a discussion of medical power and the mechanistic and scientistic ideas concerning the body and the diseases attached to it. This idea is in contrast to Canguilhem’s notion of health as being linked to normativeness and of cure as being connected with rehabilitation. Based on this change of indicators, current medical practices are reconsidered, as well as the idea of encouraging health and prevention. KEY WORDS: Power; medicalization; patient autonomy; biopolitics; ethics.

Propõe-se articular a crítica de Foucault ao que este chamou de “medicalização autoritária de corpos e doenças” ao conceito de Espinosa de aumento da potência de agir, tendo como horizonte uma reflexão sobre a questão da autonomia dos indivíduos. Para isso, desenvolve-se uma reflexão crítica e genealógica sobre a concepção de saúde e de cura presentes na prática médica atual, assim como sobre o poder médico e a concepção mecanicista e cientificista do corpo e da enfermidade a ele atrelada. A esta concepção contrapõe-se uma noção canguilhemiana de saúde ligada à normatividade e de cura ligada à reabilitação. A partir destes deslocamentos, repensam-se as práticas médicas atuais, assim como as concepções de promoção da saúde e de prevenção. PALAVRAS-CHAVE: Poder; medicalização; autonomia do paciente; biopolítica; ética.

Professor do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva (NESC) e do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do IFCS/UFRJ; coordenador da área de Ciências Humanas & Saúde do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do NESC/UFRJ. <andremar@nesc.ufrj.br>

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MARTINS, A.

Introdução Na prática médica atual – tal como descrito por Foucault em sua conferência de 19742, proferida no IMS/UERJ, intitulada “O nascimento da Medicina social” – os doentes tendem a perder “o direito sobre o seu próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quiserem”, e por conseguinte sua autonomia (Foucault, 1979, p.96). Autonomia no que diz respeito não somente à forma como serão tratados, como também à determinação de seu modo de vida e de conduta. Autonomia, portanto, aqui entendida não no sentido kantiano de uma responsabilização moral, de uma elite sobre aqueles acusados de não seguir a norma ou a razão, mas no sentido espinosano de uma assunção de si de corpo e alma, no respeito à realidade presente de cada um. Neste sentido, pergunta-se Foucault: que significado têm alguns ritos religiosos populares, senão uma espécie de resistência difusa à medicalização autoritária de seus corpos e doenças? Em lugar de ver nessas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças arcaicas ainda não desaparecidas, não serão elas uma forma atual de luta política contra a medicalização autoritária, o controle médico? (Foucault, 1979, p.97)

A Medicina se tornaria assim uma moral, tendo como critério e supremo Bem a saúde. Ou melhor, um ideal de saúde. Mas que fronteira pode haver entre tal ideal de saúde, alienante e submisso ao poder médico, e algo da ordem da saúde, não ideal, mas efetiva, vinculado à potência singular da pessoa? Em outras palavras, a autonomia dos indivíduos na coletividade estaria recuperada simplesmente por uma “resistência” — ou reação — às imposições de uma Medicina oficial científica? Medicina científica? A Medicina contemporânea orgulha-se de considerar-se ‘científica’. Mas, o que quer dizer ‘científico’? O que a Medicina entende por isso? A Ciência caracteriza-se, desde seus primórdios com Aristóteles, como um conhecimento que se propõe a ter a capacidade de universalização, isto é, de ser universalizado. Como mostrara Aristóteles, não há Ciência do particular, no sentido de que o conhecimento do particular enquanto particular não pode ser estendido a outros particulares, de modo que se torna um conhecimento não aplicável senão ao próprio particular do qual fora extraído. Não há lei que valha somente para um caso – esta é a idéia. Um conhecimento, para que seja científico, deve poder abranger um espectro de casos que ultrapasse aqueles diretamente estudados. Assim o é, para ficarmos com um exemplo evidente, com as leis da física. Certo, no auge da crença na Ciência pensava-se – e talvez ainda haja hoje quem pense assim – que a Ciência é válida universalmente, entenda-se, para todo o universo. Crença que tivera como conseqüência diversos modos de preconceito e autorizara diversos tipos de ações invasivas. Entendamos hoje que a Ciência

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2 Traduzida e publicada em 1979 (Foucault, 1979).


BIOPOLÍTICA: O PODER MÉDICO E A AUTONOMIA...

não é universal; todavia, seu caráter universalizante continua válido; dizemos apenas que um conhecimento é científico quando é válido para um determinado universo em questão. Para ser científico, tal conhecimento precisa ser extensível para além do caso estudado, mas já sabemos que não será extensível para todo o universo no sentido absoluto. Ao contrário, é necessário determinar as condições de extensibilidade do conhecimento obtido cientificamente para que ele continue a ter validade científica. O caráter de universalização relativa, contudo, define as Ciências em geral, não somente as ditas ‘Ciências duras’ – afinal, a exemplaridade de um estudo de caso pode servir para a compreensão de outros casos análogos ou semelhantes. O núcleo duro da Ciência se dá por seu instrumento que permite uma universalização maior: a matemática, isto é, o formalismo matemático. A Ciência, neste sentido ‘duro’, trabalha necessariamente com reduções: reduz o objeto complexo real a sistemas formais. Esta formalização permite uma maior universalização, mas perde, ipso factu, as características singulares do objeto estudado. A vantagem disso, poder ser estendido a um universo maior, por não carregar características singulares dos objetos iniciais; a desvantagem, a mesma perda destas singularidades (Morin, 1994; 1991; Deleuze & Guattari, 1992; Martins, 1999). Ainda assim, esta operação de redução e posterior universalização deve ser observada com atenção, pois toda universalização, como vimos, é relativa, isto é, não é extensível ou válida indiferentemente para todo e qualquer caso. Aqui reside o primeiro problema: uma pesquisa feita com pessoas de uma certa cultura – a norte-americana, por exemplo –, será universalizável para além do universo daquela cultura? Sempre? Sob quais condições ou critérios sim, ou não? Observamos isso aqui em nosso país periférico? Não necessariamente, nem sempre, a princípio não. Este problema, evidentemente, não é apenas um problema de validade propriamente científico, mas também fundamentalmente político. Do mesmo modo: uma pesquisa feita com financiamento de indústrias, sobre o que elas próprias produzem, são isentas? Pesquisas sobre uma suposta não nocividade do asbesto para os trabalhadores, financiadas por uma indústria de amianto, serão científicas? (Bittar, 2000) Uma indústria farmacológica que faz pesquisas que mostrem os supostos benefícios de suas drogas sem contextualizar as demais questões envolvidas em seu uso, estas serão científicas? O problema é que a resposta aqui é: sim, pode ser científica. E isso depende de quê? Simplesmente do fato de tal pesquisa ter seguido critérios formais rigorosos de redução. O que quero enfatizar é que seguir o método científico de redução não garante que o resultado encontrado corresponda à realidade. O que é científico segue normas que numa determinada época e contexto são consideradas científicas, formais, protocolares; não quer dizer que seja verdadeiro. A cientificidade não é índice de veracidade. Ou seja, a grande confusão que é feita se dá entre pensar que seguir métodos pré-estabelecidos de redução formal é o mesmo que ‘dizer a verdade’. A Ciência passa assim a ser tomada não mais

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MARTINS, A.

cientificamente, mas como um oráculo que revelaria a verdade do objeto estudado. Não é assim. Ao contrário, se a Ciência dissesse a verdade não seria Ciência, mas dogma, isto é, o contrário do que ela se propõe a ser. Se seguir o método levasse à verdade, esta estaria contida no resultado obtido e a própria Ciência não seria mais necessária. Seria um dogma, uma crença na verdade, não a criação de suportes de compreensão de realidades. Em suma, o que caracteriza a Ciência é seu caráter redutor. Na redução, perde-se muitos aspectos do objeto real, tanto aspectos não quantificáveis por natureza (e não menos reais e efetivos por isso), quanto outros aspectos quantificáveis mas que não entraram no estudo em questão. Sendo assim, os resultados da redução necessariamente serão incompletos, refletirão uma única perspectiva, ou algumas poucas. Mas assim é a Ciência, e disso ela tira suas vantagens e ao mesmo tempo encontra seus limites. O que já não é mais Ciência, mas cientificismo ou positivismo – o sufixo ‘ismo’ indicando aqui o caráter ideológico e não científico do termo –, é pensarmos que à redução, aos aspectos redutíveis e quantificáveis, corresponde a verdade, ou a verdade total, ou o que interessa do objeto estudado (o que lhe é supostamente essencial). Acredita-se nisso por ingenuidade, por interesses políticos, e/ou por mecanismos defensivos – isto é, por uma necessidade psíquica da crença no mito da ‘certeza’, a conjurar as inseguranças advindas do mundo mutante que é o da vida. Quando a Medicina se arvora em se considerar ‘científica’, em primeiro lugar incorre num erro: ela não é em si científica, mas sim utiliza a Ciência. Em segundo lugar, em geral considera que está do lado da ‘verdade’, que é uma Medicina verdadeira, que seus dados são verdadeiros ou dizem a verdade, que suas reduções são a verdade (a essência verdadeira) do objeto em questão. Em terceiro lugar, justamente por estes dois pontos anteriores, por julgar-se científica e entender que é verdadeira por isso, em geral a Medicina tende a esquecer que seu ‘objeto’ é um paciente real, concreto, que ultrapassa em complexidade os esquemas orgânicos, fisiopatológicos, físicoquímicos, que sua ‘Ciência’ pode abarcar. A Ciência pode ser tida como ‘exata’, mas o ser humano não o é nem nunca o será. Isso quer dizer que, se abstraímos o mau uso do termo e as más compreensões daí decorrentes, e considerarmos que a Ciência é científica sim, mas apenas no sentido inócuo de que utiliza-se de resultados de pesquisa científica, seguindo métodos considerados atualmente válidos de redução formal, ainda assim somos obrigados a admitir que a Medicina pode ser, nestes termos, científica, mas jamais será somente científica, pois que é também terapêutica. Ou seja, sempre que a Medicina desejar ser terapêutica, tratar um ser humano, considerando-se apenas ‘científica’, isso não será vantagem nenhuma, mas uma enorme desvantagem, pois o médico que assim sentir e praticar a Medicina certamente estará limitando sua compreensão do processo de saúde e doença, e provavelmente encontrará e mesmo poderá provocar inadvertidamente problemas de ordem psicológica na relação com o paciente, o que tenderá a agravar as condições de saúde deste. Como também o risco de o seu sentimento de onipotência prejudicar sua própria atuação e eficácia estritamente técnicas.

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O poder médico A crença na Ciência – como toda crença, nada científica – tende a levar o médico que a ela adere consciente ou inconscientemente a assumir uma posição de onipotência diante da dita doença do paciente e, por conseguinte, diante do próprio paciente. Aquele passa a ser visto como devendo necessariamente submeter-se a sua tutela, de modo por vezes incondicional. Algo da ordem de uma abdicação temporária – enquanto for ‘seu paciente’ – de sua autonomia, de seu poder de reflexão sobre si mesmo, de decisão sobre si, de conhecimento intuitivo e, sobretudo, vivencial de si mesmo. Passa a ser visto como um amontoado de órgãos, como uma máquina que ‘deu defeito’ e que precisa ser reparada segundo o que a Ciência do médico diz. É esta crença na ‘verdade científica’ que faz com que o médico acredite que pode, ou mesmo deve, se dar ao direito de invadir a autonomia do indivíduo para lhe impor a ‘verdade’. Ou, ao menos, o discurso da ‘verdade científica’ é o que lhe serve de álibi para o exercício de poder sobre o paciente. De um modo ou de outro, este poder é exercido como se fosse de direito, necessário e inevitável – mas não é nem de direito nem necessário para o tratamento; muito pelo contrário, é um fator que contribui para o insucesso de um tratamento, ao menos psiquicamente, e o psiquismo não ajudando somatizações podem se seguir. Segundo a doutrina da ‘verdade científica’, o médico passa a ser um guardião da verdade que deve ser imposta ao paciente que, por ter ‘pecado’, perde todos os seus direitos, e deve ter seu defeito corrigido por aquele que supostamente ‘sabe’ a verdade sobre o corpo do paciente. Esta relação de poder fica ainda mais clara quando a prática médico‘científica’ se dá em hospitais públicos junto a uma população de baixa renda. Esta, já excluída politicamente e socialmente no dia-a-dia da cidade, além de não ter o poder financeiro, em geral não tem estudo superior, não partilhando assim da mesma cultura do médico, nem parecendo àqueles que valorizam a dita ‘racionalidade’ como alguém digno de ter sua autonomia respeitada. Estes pacientes, além de serem pacientes, tenderão a ver seus direitos de autonomia desrespeitados também por não serem vistos como autônomos mesmo quando não estão na condição de pacientes, parecendo assim duplamente inferiorizados perante a onipotência médica, como sentimento tanto sócio-cultural quanto corporativo. Em termos mais gerais, o médico positivista, organicista e cientificista é um reflexo de interesses financeiros mundiais, que em nome da Ciência impõem uma medicalização da vida, para fins financeiros. Lucra-se com a venda de remédios, fármacos, drogas, aparelhos de biotecnologia. A saúde torna-se um comércio como outro qualquer. Em nome da Ciência, o médico se sente o arauto da verdade, por vezes mesmo em detrimento da saúde do paciente. Mas em nome da verdade, na realidade torna-se um instrumento de um poder que lucra com sua devoção à causa, e que lhe acena com a devida recompensa financeira – seja com salários ou ganhos importantes, seja com presentes, brindes e viagens, seja simplesmente com um status e uma imagem social elevada. Na ponta de uma cadeia, operador de um farmacologia de cuja pesquisa em geral não participa, acreditando em pesquisas publicadas em outros

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países, em geral sem ter como aferir a validade de extensão destas para seus pacientes, alienado no domínio de sua própria profissão, virtuose de cirurgias, o médico defronta-se quotidianamente com a morte, a enfermidade, a dor e o sofrimento, as dificuldades sociais de seus pacientes. Distante de compreender os processos sociais, somáticos, psíquicos e existenciais de saúde e doença, divide-se entre lamentar que o curso médico lhe tenha dado apenas um conhecimento técnico do exercício da profissão e não uma visão mais integral e humana da saúde e da enfermidade, ou agarrar-se a esta visão redutora como o que a Psicanálise diagnostica com o nome de defesa maníaca (Winnicott, 2000). Neste caso, o não reconhecimento da autonomia do paciente configura-se como parte integrante da defesa, pois torna-se necessário para confirmar psiquicamente seu sentimento onipotente. Onipotência no entanto não é potência nem opõe-se à impotência. Ao contrário, onipotência é defesa contra a ameaça de impotência, mas, reativa, mantém esta da qual se quer livrar. Ambas, portanto, impotência e sua máscara a onipotência, se opõem à potência. É somente nesta que nos é possível reconhecer o outro em sua diferença sem considerá-lo inferior ou superior, sendo somente então possível reconhecer-lhe o direito inalienável de sua autonomia. Medicalização da vida e resistência Foucault (1979; 1999) é um dos autores a denunciar o poder médico e a medicalização da vida e da cultura em geral. Esta medicalização se difunde pela mídia e se vale do label de cientificidade para persuadir o público consumidor. A partir deste ‘ideal de saúde’, propagado pela mídia e pela indústria médica, qualquer sinal de dor é visto como ultrajante e, portanto, como devendo ser aniquilado; qualquer diferença em relação ao ideal é vista como um desvio, um distanciamento maior, e insuportável, da perfeição colimada, devendo ser ‘corrigida’. Os afetos são mobilizados e manipulados narcisicamente no sentido de suscitar nas pessoas o sentimento e a fantasia de que, caso não siga o ideal coletivo da saúde ideal, estará não só aquém da própria saúde ideal apresentada, mas sobretudo fora do grupamento humano atual, será um excluído simbólico, não comungará da moda que une as individualidades atuais e, assim sendo, estará aquém dos outros, dos incluídos que, fantasiosamente, não só gozam de uma saúde próxima do ideal, como, quando não for o caso, terão helicópteros para um último e glamouroso passeio ostentatório. No mundo do faz-de-conta da saúde ideal, contudo, apesar dos anunciados milagres dos anti-depressivos, da biotecnologia e da Ciência em geral, o paciente sentirá dor, se sentirá enfermo, buscará compreensão por parte do médico e equipe, investidos estes em semi-deuses; e estes em algum momento poderão se auto-medicar em excesso, sentirão dor, ficarão enfermos. A medicalização da cultura tem como mortos e feridos os pacientes e os próprios médicos. É neste sentido que Foucault (1979, p.97), como vimos, aponta para os ritos religiosos populares como uma espécie de

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resistência difusa à medicalização autoritária de seus corpos e doenças. E nos alerta: “em lugar de ver nessas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças arcaicas ainda não desaparecidas, não serão elas uma forma atual de luta política contra a medicalização autoritária, o controle médico?” No Brasil tais ritos religiosos abundam, como sabemos todos. Seriam crenças arcaicas, anacrônicas, de um passado anterior à Ciência iluminista? Indicariam a sobrevivência de uma crença anterior à crença atual na Ciência? Uma forma ‘ultrapassada’ de crença, de legitimização, de poder, distantes das formas atuais e dos critérios atuais de instituição do poder? Ou seriam uma forma de luta política, contra o autoritarismo de um controle médico invasivo e presunçoso? Em tais ritos, os indivíduos, ao serem respeitados em sua autonomia, não teriam ali um ambiente facilitador para melhorarem, reabilitarem-se, recuperar a força, a potência e a firmeza abaladas? Certo, podemos pensar: ora, troca-se uma crença – na cura trazida pela Ciência – por outra – na cura trazida pela magia, espiritualidade etc.. Entre uma e outra, qual a diferença? Realmente, a reatividade de uma cura total, como a proposta pela Medicina, não se resolve pela reatividade de uma cura mágica. Porém, é preciso entender que o fato de estes tratamentos outros serem tão procurados é um indício de que algo vai mal na proposta oficial. A hipótese de Foucault é que um dos pontos principais é o da falta de autonomia impingida aos pacientes na Medicina oficial, dita científica, seu discurso e sua postura de detentora da Verdade do outro. O que está sendo dito e deve ser ouvido é que, mesmo submetido a práticas mágicas, possivelmente o paciente sente-se ali mais respeitado como pessoa, em sua dignidade ontológica e existencial, inalienável e irredutível. Qual a diferença entre um e outro modo de tratamento? Talvez uma maior autonomia e respeito – e o reconhecimento de que, se é verdade que nós não temos o controle de nosso próprio corpo, e que um tal saber sobre si nos ultrapassa, tampouco outra pessoa, por mais diplomada que seja, o terá. Compreendendo e conceitualizando a saúde O ideal de saúde da Medicina ‘científica’ – que em geral a define como ‘ausência de doença’ – segue o famoso modelo cartesiano que concebe o corpo como uma máquina, devendo ser consertada caso dê algum defeito. Este modelo ignora ou menospreza o fato de que não há a tal máquina perfeita em relação à qual se saberia que outra estaria defeituosa. Em outras palavras, ignora ou quer ignorar que não existe perfeição, e que nosso corpo não é uma máquina, um mecanismo, mas um complexo vivo e singular. A Ciência, tal como vimos, é bem vinda para obter um conhecimento universalizável deste corpo somatopsíquico complexo e intensivo; mas é igualmente importante entendermos que não somos o resultado da abstração científica, que abstrai singularidades para reter apenas traços muito gerais de nosso corpo. Isso: ao contrário do que se diz, a Ciência trabalha com abstrações. Nosso corpo não se encaixa na abstração da máquina, senão ao preço de grandes perdas. A Filosofia, que não trabalha com reduções como a Ciência e, portanto, pode abrir mão das abstrações e simplificações da Ciência para permanecer

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na imanência dos corpos, pensando-a em sua singularidade, nos permite compreender o corpo sem ser como uma máquina. Um dos autores que refletiu sobre a saúde foi um médico; um filósofo que, já formado filósofo, cursou a graduação de Medicina e passou a exercê-la, e obteve um Doutorado em Medicina com uma tese filosófica. Refiro-me a Canguilhem (2000) e a sua célebre tese O normal e o patológico, de 1943. Reteremos, para nosso fio de raciocínio, apenas sua idéia central, de que a saúde não se define pela média nem por um ideal, mas por sua plasticidade normativa. A média e o ideal são normalizadores, isto é, morais, impõem uma norma de conduta, de fora para dentro, do universal sobre o singular. Ao contrário, saudável quer dizer, segundo o conceito canguilhemiano, que se tem capacidade para incorporar normas diferentes das até então vigentes, e até mesmo normas patológicas sem se perder a capacidade de ação. Assim, podemos estar enfermos – etimologicamente ‘não firmes’ – e ainda assim estarmos capazes e saudáveis em diversos outros aspectos de nossa vida ou atividade. Podemos estar fora da média, dos ideais culturais de saúde, mas capazes, ativos. Espinosa (1992), um filósofo da época de Descartes, mas que se opõe a este pois apresenta uma visão do ser humano como uma unidade somatopsíquica composta de multiplicidades, nos oferece conceitos que podem nos ajudar a construir nosso conceito de saúde. Esta seria vista a partir da idéia de nossa ‘potência de agir e de pensar’. Como corpo e mente são vistos como aspectos de nossa unicidade, Espinosa em geral diz apenas ‘potência de agir’, incluindo nesta a de pensar. Podemos entendê-la, se quisermos, como ‘potência de vida’, ou como vitalização. A autonomia significa assim criação, auto-criação, autopoiesis: adoecemos porque uma afecção contrária à nossa vitalização baixou nossa potência de vida. Passivos, submergimos a esse pathos, à patologia. É preciso então que reencontremos nossa forma ativa – e não passiva, patológica – de ser, de termos nossa capacidade normativa recuperada. Um médico pediatra e psicanalista do século XX, Winnicott (1975), também indicava a criação como fonte da saúde pessoal. É preciso que nos sintamos criando o mundo a partir de nossas criações pessoais partilhadas, para que estejamos ativos e vejamos o mundo como nos concernindo. Assim, sentimo-nos expandindo, realizando-nos, vivendo. Ao contrário, em toda situação em que algo nos é imposto como uma verdade pronta, nos sentimos invadidos, impotentes, e aí sim o devir e a vida nos pesam, pois que passam a nos oprimir. Recuperar a saúde, pois, necessita ser algo vivenciado pelo paciente como uma criação sua, para que faça sentido, para que a vitória sobre uma doença seja acompanhada efetivamente de uma recuperação da saúde da pessoa, isto é, que ela possa reapropriar-se de si, reencontrar efetivamente sua capacidade vital, capacidade somatopsiquicamente ativa e criativa em relação à sua vida. A saúde é assim entendida como algo vivenciado, não passível de redução formal a medições, médias ou normalizações. E será sempre relativa e singular. Daí a importância, da parte de quem se propõe a promover a saúde, do respeito à individualidade daquele que é o receptor de sua ação ou terapia. A relação desigual de poder está desfeita no sentido moral ou

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valorativo. A hierarquia que permanece será a de funções, mas aquele que tem o poder de tratar do outro naquele momento, naquela situação terapêutica (e não ‘em si’), precisa relacionar-se humanamente de igual para igual com seu paciente, pois não sabe mais dele que ele próprio. Simplesmente estudou para poder prestar-lhe serviço, e por isso é preciso que haja um entendimento entre as partes em que o médico ou profissional de saúde espera do paciente que este confie nele, para que o profissional possa ajudá-lo, mas não espera que esta confiança seja cega. Afinal, ele não é onipotente, e estará ali apenas esforçando-se para obter sucesso, dando o melhor de si e utilizando a favor de ambos seu aparato técnico, incluindo sempre que for o caso, o aparato científico e tecnológico, que será usado caso o paciente entenda que assim será melhor. Meu paciente me traz um problema; é preciso que ambos desejem se respeitar mutuamente e colaborar com o outro para o sucesso do tratamento, cujo andamento deverá ser negociado conjuntamente a cada momento crucial, e as decisões que somente o terapeuta poderá tomar deverão ser comunicadas e neste sentido partilhadas com aquele que se submeterá à ação. Afinal, o que está em jogo não é uma saúde ideal, objeto de uma fantasia científica, mas a saúde singular do indivíduo singular que está ali sendo tratado. Do mesmo modo, portanto, quem o trata não é um mandatário da Ciência, mas um profissional singular que está ali. É neste sentido que Paz Jr. (2002) entende como sendo o objetivo da Medicina não a cura, mas a reabilitação. Assim como entende que a Medicina não deve propriamente tratar doenças, mas doentes. A cura de uma doença tende a corresponder à extinção dos sintomas que indicam um mau funcionamento no organismo pensado não como um todo, mas como uma máquina. Mas a doença pertence ao doente e é o índice de alguma enfermidade que tem o acometimento de algum órgão ou sistema em particular apenas como efeito, não como causa da enfermidade. O objetivo do tratamento do doente passa a ser não a extinção do sintoma somente, mas a reabilitação do indivíduo como um todo, como uma unidade somatopsíquica, como um ser humano enfraquecido que necessita de apoio e tratamento inclusive após a extinção de sintomas, para reencontrar uma potência comprometida. Não ‘a mesma’ potência de antes, pois a seta do tempo só tem uma direção: trata-se de tornar-se novamente potente, a partir da realidade atual. “Não há retorno a uma inocência biológica”, afirma Canguilhem (1943), no sentido de que, justamente por não sermos máquinas, estamos sempre nos transformando, amadurecendo, avançando, sendo o resultado complexo de nossas experiências. Por fim, esta concepção de saúde também se aproxima do que Nietzsche (2000a, 2000b, 2001) chamara de “a grande saúde”. Não se trata de um ideal de perfeição, irreal portanto, que põe a saúde real em débito face a um modelo propagado pela mídia e pela cultura – tal como a idéia perfeita platônica depreciando o mundo real, tomado como sua cópia degradada. Mas, sim, refere-se a uma concepção de saúde que engloba mesmo os momentos de enfermidade, consistindo na força plástica que nos permite ter potência de vida mesmo quando enfraquecidos em algum aspecto. A pequena saúde seria aquela, atrelada a um ideal, em nome da qual deixamos

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de viver. Aquela, tendo medo de perdê-la, não usamos para muita coisa. Neste mesmo sentido, Canguilhem nos lembra que a saúde implica podermos colocá-la em risco. A grande saúde é um resultado final de nossas forças e fraquezas, presente e singular, que vivenciamos quando e sempre que conseguimos potencializar nossa vida mesmo em momentos difíceis. Se é a saúde vivenciada que importa, e não a saúde de algum ‘ideal científico’, fica-nos mais claro entender a importância de se reconhecer a autonomia do paciente. Para a grande saúde, é preciso aceitar que a vida é constituída inevitavelmente de dor e prazer, que o corpo se desgasta inevitavelmente para viver, que a morte é também inevitável, e que é preciso aceitar e elaborar perdas, para poder-se aceitar e aprovar tragicamente a vida; e não fingir que perdas não existem, ou depreciar esta vida em nome de um ideal de imortalidade ou de nirvana, de euforia ou de analgesia. O médico abre mão, assim, da fantasia onipotente de ser um semi-deus armado de uma Ciência supostamente infalível, para conquistar a potência possível, efetiva e humana, de apoiar, com sua técnica e sua arte, outro ser humano num momento de debilidade. Considerações finais Nosso passeio reflexivo e conceitual, de cunho genealógico, nos leva a repensar certos aspectos da Medicina dita científica, tais como a prevenção, por exemplo. Esta não deveria, segundo nosso raciocínio, limitar-se à prevenção alopática de sintomas, mas abranger uma compreensão mais ampla dos fatores que ultrapassam as fronteiras artificiais da abstração orgânica, abrindo-se para os fatores ambientais que influem na capacidade de imunidade metaestável de um indivíduo, este inserido numa coletividade. As próprias fronteiras da Medicina atual estariam assim sendo questionadas pela pergunta quanto ao seu objetivo: se continuará a ser o de curar doenças, ou se passará a ser o de tratar e reabilitar doentes. Neste último caso, deverá deixar de se conceber como representante da verdade para aceitar seu lugar junto a equipes de saúde, discutindo o encaminhamento dos tratamentos em questão junto a outros profissionais de saúde – psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, dentistas etc.. A saúde deverá ser pensada e praticada em sua integralidade (Pinheiro & Mattos, 2003). Mas não apenas isso, também ao ensino médico caberia oferecer aos futuros médicos uma formação em que as disciplinas que enfoquem os aspectos psíquicos e sociais dos processos de saúde e doença sejam mais numerosas e não sejam estigmatizadas como dispensáveis e não-verdadeiras (porque não ‘científicas’) pelos professores das disciplinas tradicionais. Enfim, será preciso que a Medicina se reassuma como uma arte terapêutica e clínica, mas também que seja mais científica em seu uso da Ciência e, portanto, menos ideológica e moral. O cientificismo e o positivismo não são científicos, mas ideológicos e morais. Assim, a prevenção se preocuparia em reforçar a imunidade dos pacientes não somente com o auxílio de drogas, mas também ou mesmo sobretudo com o reforço das defesas naturais do próprio corpo do indivíduo, a partir de sua alimentação e do suficiente funcionamento de seus sistemas orgânicos. Do mesmo modo, a promoção à saúde seria enfatizada, sendo no entanto menos

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moral e prescritiva, passando a acreditar mais na capacidade das pessoas em entender o que está em jogo e como podem fazer não para obter mais saúde ideal, mas sim mais saúde efetiva, isto é, como podem aumentar sua potência de agir e de viver. Da parte dos próprios médicos, são muitos os indícios, sejam negativos ou positivos, de que há algo de errado na prática e no ensino médico oficial. Muitos médicos aderem a medicinas alternativas, aprendidas fora das faculdades de Medicina, mas praticadas dentro de seus consultórios sob a égide da Medicina oficial. Uns tantos médicos se tornam psicanalistas ou seguem uma formação psi para humanizar ou complementar sua formação médica. Uns tantos médicos se drogam na tentativa de sustentar a onipotência imaginariamente exigida deles. Alguns alunos abandonam as faculdades de Medicina por questões existenciais. E muitos médicos se unem a ritos de cura religiosos os mais variados. Se a medicalização da cultura, se o controle médico sobre o corpo das pessoas, sobre o direito de viver e como viver, sobre o direito de estar doente, de se curar e morrer como quiserem, se impõe a pacientes e a médicos, como em uma dialética do senhor e do escravo, por outro lado são muitas as formas de resistência – formas de sobrevivência, de preservação da autonomia ameaçada pelos outros e por si mesmo, pela subjetividade reinante. Resistências que não são calculadas ou previstas estrategicamente, mas reações simplesmente defensivas, reatividades, mecanismos defensivos, podendo constituir outras formas de crença, outras cristalizações. Podemos também, no entanto, como profissionais da saúde ou como pessoas, buscar formas criativas de expressão, abrindo brechas em meio aos padrões e práticas reinantes, recriando formas de vida micropoliticamente. As resistências, reativas e não ativas, defensivas e não expansivas, são índices de uma luta, de um conflito de forças, indicam que algo não vai bem na saúde ideal que o mercado apregoa. Que estas sirvam sobretudo de alerta, como um sintoma que indica o adoecimento de um corpo. É imprescindível contudo que possamos dar um passo além, contribuindo para novas práticas e novos valores, novos modos de fazer, de agir, de afetarmo-nos, de conceber e vivenciar o que seja a saúde, a potência de vida e o próprio viver. As resistências lutam pela autonomia a partir do lugar de quem não a tem. É importante passarmos para criações singulares, tanto individuais quanto coletivas, que valorizem a autonomia e abram novos caminhos. A partir da mensagem trazida pelas formas desconstrutivas de resistência e pelas formas construtivas de recriação, é importante entendermos que, na perspectiva de uma micropolítica, a própria Medicina ‘oficial’ pode vir a se abrir, a se desencastelar, tendo como guia não as pressões do mercado, mas o objeto mesmo da Medicina: a saúde das pessoas singulares inseridas no mundo – e não a correção de falhas em organismos mecânicos dissociados do mundo. Poderia assim, entender a importância da participação de cada pessoa enferma no processo de reabilitação e reconquista de sua própria saúde.

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MARTINS, A.

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MARTINS, A. Biopolítica: el poder médico y la autonomía del paciente en una nueva concepción de salud, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.21-32, set.2003fev.2004. El presente trabajo busca articular la crítica de Foucault, lo que él llamó ”medicalización autoritaria de cuerpos y enfermedades”, al concepto de Espinosa de aumento de la potencia de actuar, teniendo como horizonte una reflexión sobre el cuestión de la autonomía de los individuos. Se propone, para esto, reflexionar crítica y genealógicamente sobre el concepto de salud y de cura presentes en la práctica médica actual, así como sobre el poder médico y el concepto mecanicista y cientifista del cuerpo y de la enfermedad relacionada a él. A este concepto, contrapondremos una noción canguilhemiana de salud vinculada a la normativa y de cura vinculada a la rehabilitación. A partir de estos desplazamientos, repensaremos las prácticas médicas actuales, así como los conceptos de promoción de salud y de prevención. PALABRAS CLAVE: Poder; medicalización; autonomía del paciente; biopolítica; ética. Recebido para publicação em 21/08/03. Aprovado para publicação em 16/10/03.

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A Grande Saúde: uma introdução à medicina do Corpo sem Órgãos

Ricardo Rodrigues Teixeira 1

TEIXEIRA, R. R. The Great Health: an introduction to the Body without Organs medicine, Interface – Comunic., Saude, Educ., v.8, n.14, p.35-72, set.2003-fev.2004.

Availing oneself of Spinoza’s Ethics as a starting point and especially of the interpretation of his philosophy according to Deleuze & Guattari, we propose the frame of reference of Grand Health and outline what medicine based on this idea might consist of. Another concept proposed is that of the Body With No Organs, conceived to deal with the plane on which Grand Health is experienced: the plane of intensities experienced as an ongoing fluctuation of powers, appetites and desires. This Deleuzian interpretation of Spinoza allows us to glimpse the basis for a hypothetical Spinozistic medicine, with its Physiology of the Body With No Organs, its “pathology”, understood herein as Affectology, its “science of signals and symptoms” or Semiotics and what might be its “therapeutics”, governed by the ideal of Grand Health. KEY WORDS: Health; Philosophy; Ethics. Partindo da Ética de Espinosa e, especialmente, das leituras de sua filosofia praticadas por Deleuze & Guattari, propomos o conceito referencial de Grande Saúde e esboçamos o que poderia ser a medicina referenciada nessa concepção. Outro conceito proposto é o de Corpo sem Órgãos, para dar conta do plano em que se experimenta a Grande Saúde: plano de intensidades vivido como variação contínua das potências, do apetite, do desejo. Essa leitura deleuzeana de Espinosa, permite-nos entrever as bases de uma hipotética medicina espinosana, com sua Fisiologia do Corpo sem Órgãos, sua “patologia”, aqui entendida como Afectologia, sua “ciência dos sinais e sintomas” ou Semiótica e o que seria sua “terapêutica” orientada pelo ideal da Grande Saúde. PALAVRAS-CHAVE: Saúde; Filosofia; Ética.

Médico sanitarista, docente e pesquisador do Centro Saúde Escola Samuel B. Pessoa, São Paulo; Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP).<ricarte@usp.br>

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Os primeiros dois ou três dias que se seguiram ao naufrágio foram marcados pelo profundo abatimento de Robinson que, apesar de ter sobrevivido à catástrofe, tomava plena consciência da miserável condição em que se encontrava. Seu ânimo, em cacos, flutuava entre a esperança de avistar, a qualquer momento, no horizonte, uma nau, e o mais descabelado desespero. Fundamentalmente, seu ânimo sucumbia à força dos acontecimentos que, ora, tomavam o comando de seu destino. Sucumbia à força das avassaladoras causas externas que lhe sobrevinham. Sua tristeza quase só lhe deixava o facho suficiente para vigiar o vazio oceânico se estendendo por todos os lados. Mas – como escreve, com lucidez poética, Mia Couto (1992) -, “a festa é a tristeza no pino”. E é no zênite da tristeza e do abandono mais absoluto que se ergue em Robinson, também em seu ponto mais alto, todo o esforço de perseverar em ser, que – como se verá a seguir – é a mesma coisa que sua potência própria de agir e de pensar. Espinosa, no século XVII, chamava de conatus a esse esforço feito por cada coisa para perseverar em seu ser (proposição 6, livro 3: “Da origem e natureza dos afetos”, Ética) e que é a própria “essência atual” da coisa (prop.7). O conatus é a essência atual do corpo e da alma, sua potência natural de autoconservação; é o interesse vital, e o interesse do corpo e da alma é perseverar em ser. A alma, quer tenha idéias inadequadas e confusas, quer tenha idéias adequadas e distintas, é consciente deste esforço (prop.9). Quando referido ao corpo e a alma, esse esforço se chama apetite, quando referido apenas a alma, se chama vontade, conforme comenta Espinosa no escólio desta última proposição, acrescentando ainda que esse esforço... ... não é outra coisa senão a essência mesma do homem, de cuja natureza se seguem necessariamente aquelas coisas que servem para sua conservação, coisas que, portanto, o homem está determinado a realizar. Ademais, entre ‘apetite’ e ‘desejo’ não há diferença alguma, senão a de que geralmente o ‘desejo’ se refere aos homens, na medida em que são conscientes de seu apetite e, por isso, pode se definir assim: o desejo é o apetite acompanhado da consciência do mesmo. Assim, pois, fica claro, em virtude de tudo isso, que não intentamos, queremos, apetecemos, nem desejamos algo porque o julgamos bom, mas, pelo contrário, julgamos que algo é bom porque o intentamos, queremos, apetecemos e desejamos. (Spinoza, 1998, p.205-6)

E Robinson, reagindo àquela terrível situação, apega-se com fervor a uma idéia (um projeto) que aumente sua potência de agir e de pensar, o que é o mesmo que aumentar seu esforço de perseverar em ser. E põe-se, afinal, a agir e a pensar. Neste instante, em que pensa Robinson? Qual é a primeira coisa que pensa em fazer? – Evadir-se. Robinson pensa em escapar, em fugir, em riscar uma linha de fuga sobre o mar. E começa imediatamente a construir uma embarcação, apressadamente batizada de Evasão. Misturando restos da galeota naufragada com elementos da natureza local, Robinson faz sua primeira e, talvez, mais prodigiosa demonstração de talento técnico polivalente, ao empenhar vários meses e todos os seus esforços e habilidades na construção do Evasão. Mas, pouco a pouco, alguma coisa mal definida começa a se passar com Robinson... O trabalho foi longo, lento, ao mesmo tempo bruto e minucioso, exigiu intensos esforços físicos e mentais, e só ficou pronto após passar por uma estranha relutância em finalizá-lo. Aproximando-se da conclusão, Robinson

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sente, sobretudo, um grande temor de pôr à prova sua obra e saber se realmente lhe serviria aos seus planos de evasão. Na verdade, ele não apenas teme, mas pressente o fracasso. Aos poucos, vai se dando conta da inevitável perempção de seu projeto: a obra genial aparentemente tropeçara num pequeno detalhe e nascia com a marca de um pecado original que se evidenciava traumaticamente no momento não mais adiável de seu lançamento. “Para dizer a verdade, ele negligenciara completamente o problema do transporte do navio até a beira d’água.” Alguma coisa indefinível está acontecendo com Robinson... Decidiu-se por fim a proceder ao lançamento que obscuros pressentimentos o faziam há tanto tempo adiar. Não o surpreendeu muito a impossibilidade de arrastar pela areia até ao mar aquele casco de peso talvez superior a mil libras. Este primeiro fracasso revelou-lhe, todavia, a gravidade de um problema em que nunca tinha seriamente pensado. Serviu-lhe a ocasião para descobrir um aspecto importante da metamorfose que seu espírito sofria sob a influência da vida solitária. O campo da sua atenção parecia aprofundar-se e, ao mesmo tempo, estreitar-se. Tornava-se-lhe cada vez mais difícil pensar em várias coisas ao mesmo tempo, ou até passar para outro tema de preocupação. Descobriu assim que outrem é para nós um poderoso fator de distração, não apenas porque nos perturba constantemente e nos arranca ao pensamento atual, mas ainda porque a simples possibilidade do seu aparecimento lança um vago luar sobre um universo de objetos situados à margem da nossa atenção mas capaz a todo o momento de se lhe tornar o centro. Esta presença marginal e como que fantasmal das coisas com que, de imediato, não se preocupava apagara-se aos poucos no espírito de Robinson. Encontrava-se doravante rodeado de objetos submetidos à lei sumária do tudo ou nada, e fora assim que, absorvido na construção do Evasão, perdera de vista o problema de como o lançar à água. (Tournier, 1985, p.31-2)

Ilustração de La vie et les aventures surprenantes de Robinson Crusoé, 1768, chez Laurent Prault, Paris.

Personagem conceitual É Robinson, então, o personagem a arrojar-se na cena do pensamento: Robinson Crusoé, aquele cujo destino foi esposar a solidão, aquele que foi, por anos, curtido no seu sol e no seu sal. Em especial, aquele Robinson que nos é apresentado por Michel Tournier em Sexta-Feira ou Os Limbos do Pacífico. Tanto quanto a obra inaugural do escritor inglês Daniel Defoe (As aventuras de Robinson Crusoé, 1719), corresponde ao que Gilles Deleuze (1998) chamou de um “romance experimental indutivo”. Contudo, as diferenças entre ambos são determinantes: o Robinson que aqui se convoca não é o crente voluntarioso e empreendedor ou o sobrevivente heróico que reconstrói a “civilização” com os restos de um naufrágio, como em Defoe. Nosso Robinson é, principalmente, o que se viu condenado à solidão e ao “mundo sem outrem” (Deleuze, 1998). Aquele a quem aconteceu participar de um “experimento divino” e não sucumbiu; transformou-se. Sua aventura foi a de perceber-se inteiro transformar até alcançar uma percepção de “si” como um campo de intensidades coincidindo com a própria ilha: Speranza. Não há apenas um encontro com um Sexta-Feira que desembarca mais tarde na ilha, mas uma progressiva metamorfose de Robinson em Sexta-Feira, correspondendo à sua metamorfose em ser solar. Transposto o cabo da solidão, o desejo “decola” dos corpos e o corpo pode, enfim, fazer face ao

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seu duplo ereto, ao seu ser vertical. O desejo faz os corpos deitarem. E pela primeira vez, o corpo está de pé. Nu, desperto, saudável e mestiço. Por isso o Robinson de Tournier: porque ele não nos fala, em primeiro lugar, da técnica, nem da conquista da América, nem da ética protestante, nem do espírito do capitalismo, mas da Grande Saúde. No romance de Tournier: O fim, o alvo final de Robinson é a ‘desumanização’, o encontro da libido com os elementos livres, a descoberta de uma energia cósmica ou de uma grande Saúde elementar, que não pode surgir a não ser na ilha e ainda na medida em que a ilha se tornou aérea e solar. (Deleuze, 1998, p.313)

Os efeitos de Outrem O personagem conceitual é Robinson. Sua aventura filosófica: o mundo sem outrem. Suas primeiras meditações: os efeitos de outrem no processo de conhecimento. Talvez, o mais profundo efeito de outrem no processo de conhecimento seja aquele que Robinson primeiro entreviu no momento do fracasso do lançamento do Evasão: lançar “um vago luar sobre um universo de objetos situados à margem de nossa atenção mas capaz a todo o momento de se lhe tornar o centro.” O primeiro efeito de outrem, então, seria a constituição de um “mundo marginal, de um arco, de um fundo que outros objetos, outras idéias podem sair segundo leis de transição que regulam a passagem de uns aos outros” (Deleuze, 1998, p.314). É esse efeito que nos assegura de que não vamos colidir com o mundo a cada desvio do olhar. É desse modo que outrem “povoa o mundo de um rumor benevolente”. E o que ocorre na ausência de outrem? Mundo cru e negro, sem potencialidades nem virtualidades: é a categoria do possível que se desmoronou. (...) Tendo cessado de se estender e se curvar uns em direção aos outros, os objetos se erguem ameaçadores; descobrimos então maldades que não são mais as do homem. Dir-se-ia que cada coisa, tendo abdicado de seu modelo, reduzida a suas linhas mais duras esbofeteia-nos e golpeia-nos pelas costas. A ausência de outrem, nós a sentimos quando damos uma topada, instantes em que nos é revelada a velocidade estupidificante de nossos gestos. (Deleuze 1998, p.314-6)

Outrem, portanto, nos “ensina” a sentir a preexistência de um objeto seguinte, de um acontecimento por vir. Há todo um campo de coisas, nesse instante, invisíveis para mim, mas visíveis para outrem, que constitui um campo de virtualidades e de potencialidades capazes, a qualquer momento, de se atualizarem. Do diário de Robinson: Em Speranza, há só um ponto de vista, o meu, despojado de qualquer virtualidade. Este despojamento não se fez em um dia. A princípio, por um automatismo inconsciente, eu projetava possíveis observadores – parâmetros – no alto das colinas, atrás de um tal rochedo ou nos ramos de uma tal árvore. A ilha encontrava-se, dessa forma, quadriculada por uma rede de interpolações e de extrapolações que a diferenciava e a dotava de inteligibilidade. Assim faz todo o homem normal numa situação normal. Só tomei consciência desta função, como de muitas outras, à medida que ela se degradava em mim. Hoje, é coisa feita. A minha visão da ilha reduz-se a ela

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própria. O que eu não vejo dela é um desconhecido absoluto. Onde quer que eu não esteja neste momento reina uma noite insondável. (Tournier, 1985, p.47-8)

Apenas pelo acima exposto, fica claro que, para Robinson, a ausência ou a presença de outrem equivale, de fato, a ausência ou a presença de uma dada estrutura do campo perceptivo. Outrem pode ser dito uma estrutura do campo perceptivo. E qual estrutura? A do possível. Outrem é a expressão de um possível e, desse modo, estrutura nossas disposições cognitivas de tal forma que o possível – o que pode ser, mas (ainda) não é – faça parte do mundo, seja como simples expressão num rosto, seja ganhando realidade numa fala. Tomemos um mundo calmo e repousante: Surge, de repente, um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo. Outrem não aparece aqui como um sujeito, nem como um objeto mas, o que é muito diferente, como um mundo possível, como a possibilidade de um mundo assustador. Esse mundo possível não é real, ou não o é ainda, e todavia não deixa de existir: é um exprimido que só existe em sua expressão, o rosto ou o equivalente do rosto. Outrem é, antes de mais nada, esta existência de um mundo possível. E este mundo possível tem uma realidade própria em si mesmo, enquanto possível: basta que aquele que exprime fale e diga ‘tenho medo’, para dar uma realidade ao possível enquanto tal (mesmo se suas palavras são mentirosas). (...) Outrem é um mundo possível, tal como existe num rosto que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá uma CHARLES LE BRUN, “La crainte” (“O medo”), 1994. realidade. Neste sentido, é um conceito com três componentes inseparáveis: mundo possível, rosto existente, linguagem real ou fala. (Deleuze & Guattari, 1992, p.28-9)

Outrem como estrutura não é, portanto, uma “forma” num campo perceptivo, mas um Outrem a priori, isto é, “a existência do possível em geral”, na medida em que existe apenas como expressão num rosto, como expresso em um exprimente que não se parece com ele. Ora, é por definição que o possível só existe enquanto expresso. O possível é o que pode vir a ser, mas não é, ainda não é. Sua única realidade possível é a de ser um expresso. E o que é mais importante: só existe como um expresso num exprimente (rosto, voz), que não se parece com ele. O rosto não imita o que vê, mas expressa. “O semblante terrificado não se parece com a coisa terrificante, ele a implica, a envolve como algo de diferente, numa espécie de torção que põe o expresso no exprimente” (Deleuze, 1998, p.317). Mas ainda é preciso explicitar um pouco mais de que modo Outrem, enquanto “a existência do possível em geral”, estrutura nossas percepções. Para isso, recorremos, mais uma vez, a uma excelente síntese que nos é oferecida por Deleuze, em parceria com Félix Guattari: No caso do conceito de Outrem, como expressão de um mundo possível num campo perceptivo, somos levados a considerar de uma nova maneira os componentes deste campo por si mesmo: outrem, não mais sendo um sujeito de campo, nem um objeto no campo, vai ser a

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condição sob a qual se redistribuem, não somente o objeto e o sujeito, mas a figura e o fundo, as margens e o centro, o móvel e o ponto de referência, o transitivo e o substancial, o comprimento e a profundidade... Outrem é sempre percebido como um outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de toda percepção, para os outros como para nós. É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro. [Outrem e percepção temporal] Outrem faz o mundo passar, e o ‘eu’ nada designa senão um mundo passado (‘eu estava tranqüilo...’). [Outrem e percepção espacial] Por exemplo, Outrem basta para fazer, de todo comprimento, uma profundidade possível no espaço e inversamente, a tal ponto que, se este conceito não funcionasse no campo perceptivo, as transições e as inversões se tornariam incompreensíveis, e não cessaríamos de nos chocar contra as coisas, o possível tendo desaparecido. (Deleuze & Guattari, 1992, p.30-1)

Ora, os efeitos de Outrem no campo perceptivo, ao condicionarem a percepção espacial e temporal, condicionam simultaneamente a percepção de si (enquanto a consciência de um sujeito separado do objeto), como fica bastante claro neste breve “diálogo” entre Robinson e Deleuze: O efeito fundamental é a distinção de minha consciência e de seu objeto. (...) [Outrem e percepção temporal] ... outrem faz com que minha consciência caia necessariamente em um ‘eu era’, em um passado que não coincide mais com o objeto. Antes que outrem apareça, havia por exemplo um mundo tranqüilizante, do qual não distinguíamos minha consciência; outrem surge, exprimindo a possibilidade de um mundo assustador, que não é desenvolvido sem fazer passar o precedente. [Outrem e percepção de si] Eu nada sou além dos meus objetos passados, meu eu não é feito senão de um mundo passado, precisamente aquele que outrem faz passar. Se outrem é um mundo possível, eu sou um mundo passado. E todo o erro das teorias do conhecimento é o de postular a contemporaneidade do sujeito e do objeto, enquanto que um não se constitui a não ser pelo aniquilamento do outro. (Deleuze, 1998, p.319-20)

Prossigamos com o filósofo selvagem de Speranza: E de repente a mola salta. O sujeito arranca-se ao objeto, despojando-o de uma parte da sua cor e do seu peso. Algo estalou no mundo e um pedaço das coisas abate-se, tornando-se eu. Cada objeto é desqualificado em proveito de um sujeito correspondente. A luz torna-se olho, e já não existe como tal: é só excitação da retina. O odor torna-se narina, e o próprio mundo revela-se inodoro. A música do vento nos paletúvios é refutada: mais não é do que perturbação do tímpano. O mundo inteiro acaba por se fundir na minha alma, que é a própria alma de Speranza, arrancada à ilha, a qual morrerá sob meu olhar cético. Deu-se uma convulsão. Um objeto degradou-se bruscamente em sujeito. Porque sem dúvida o merecia, já que todo mecanismo tem um sentido. Nó de contradições, foco de discórdia, foi eliminado do corpo da ilha, ejetado, repelido. A mola corresponde a um processo de racionalização do mundo. O mundo busca a sua própria racionalidade e, ao fazê-lo, evacua esse resíduo, o sujeito. (...) O sujeito é um objeto desqualificado. O meu olho é o cadáver da luz, da cor. O meu nariz é tudo o que resta dos odores quando a sua irrealidade

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fica demonstrada. Mas a minha mão refuta a coisa tida. Logo, o problema do conhecimento nasce de um anacronismo. Implica a simultaneidade do sujeito e do objeto, cujas misteriosas harmonias desejaria iluminar. Ora, o sujeito e o objeto não podem coexistir porque são a mesma coisa, a princípio integrada no mundo real, depois lançada à escória. Robinson é o excremento pessoal de Speranza. Esta fórmula espinhosa enche-me de sombria satisfação. Pois mostra-me a senda estreita e escarpada da salvação, de uma certa salvação pelo menos... (Tournier, 1985, p.87-9)

Como em muitos modelos experimentais, foi pela ausência de um elemento que Robinson descobriu seus efeitos. Antes, era Outrem que governava e organizava as relações transitivas entre os objetos: cada um deles se fechava sobre si ou se abria sobre outros em função dos mundos possíveis expressos por outrem. Depois, quando Outrem desaba, erguem-se as forças elementares (re)instaurando a ordem imanente das coisas. Em suma: outrem é quem aprisionava os elementos no limite dos corpos e, mais ao longe, nos limites da terra. Pois a própria terra nada mais é do que o grande corpo que retém os elementos. A terra não é terra a não ser povoada de outrem. Outrem é quem fabrica os corpos com os elementos, os objetos com os corpos, assim como fabrica o próprio semblante com os mundos que exprime. O duplo liberado, quando outrem se desmorona, não é, pois, uma réplica das coisas. O duplo, ao contrário, é a imagem endireitada em que os elementos se liberam e se retomam, todos os elementos tornados celestes e formando mil figuras caprichosas elementares... (Deleuze, 1998, p.321-2)

Outrem e o desejo Todas essas questões só se tornam plenamente inteligíveis quando levamos em conta uma outra dimensão indissociável do problema do conhecimento. Não apenas as leis da percepção (para a constituição espacial de objetos, para a determinação temporal do sujeito e para o desenvolvimento sucessivo dos mundos) dependem da estrutura Outrem: Mesmo o desejo, quer seja desejo de objeto ou desejo de outrem, depende da estrutura. Não desejo objeto a não ser como expresso por outrem no modo do possível; não desejo em outrem senão os mundos possíveis que exprime. Outrem aparece como o que organiza os Elementos em Terra, a terra em corpos, os corpos em objetos e que regula e mede ao mesmo tempo o objeto, a percepção e o desejo. (Deleuze 1998, p.327)

Como já vimos, o primeiro momento de Robinson na ilha foi marcado pelo desespero, o mais profundo enfraquecimento do desejo. Deleuze, buscando caracterizar este momento por referência ao funcionamento de uma estrutura Outrem, descreve-o como aquele em que a estrutura ainda funciona, mas já não há mais ninguém para preenchê-la (momento neurótico). Já num momento posterior de sua longa estadia na ilha, Robinson será tomado por um desmesurado ímpeto construtor, que Deleuze interpreta como aquele em que a própria estrutura Outrem começa a se esboroar. O esforço de Robinson, agora, é o de encontrar um substituto para outrem e, desse modo, tentar manter os efeitos da presença de outrem, quando a estrutura já abriu falência (momento psicótico). Robinson constrói a clepsidra (para domesticar o tempo), dedica-se a

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uma produção superabundante (que excede suas necessidades), promulga um código de leis para Speranza e multiplica os títulos e as funções oficiais de uma burocracia absurda. Essas flutuações e alternâncias de momentos farão com que, durante uma boa parte de sua aventura na ilha, Robinson atravesse uma experiência divergente: por um lado, temos a “civilização” da ilha pelo trabalho; por outro, a “desumanização” do homem pela solidão: à superfície da ilha, Robinson procura continuar a obra “civilizatória”, substituindo o dado pelo construído, enquanto a metamorfose provocada pela solidão prossegue levando-o a soluções “cada vez menos semelhantes ao modelo humano”. Não tardará para que o filósofo da solidão se pergunte: aonde leva e o que sustenta o ímpeto construtor, quando outrem não é mais uma presença intrínseca do espírito? O que se passa com o desejo quando “ele nem mesmo sabe com quem se defrontar”, quando “desapareceu a montagem de instituições e de mitos que ao desejo permite tomar corpo”? O que experimenta Robinson? A ausência de outrem (em especial, feminino) levou seu desejo a morrer de inanição? Muito longe disso! Sinto ainda e sempre murmurar dentro de mim essa fonte de vida, mas tornou-se totalmente disponível. Em vez de se conformar docilmente ao leito de antemão preparado pela sociedade, transborda por todos os lados e irradia em forma de estrela, procurando (dir-se-ia às apalpadelas) um caminho, o bom caminho, para onde convergirá e donde deslizará unânime para um objetivo. (Tournier, 1985, p.103-6)

O que Robinson está descobrindo é que o desejo sobrevive à morte de seu objeto, assim como ainda descobrirá que, sob certas condições, até se intensifica (Robinson aprenderá a fazer um Corpo sem Órgãos!). Embora seja Outrem que faça o desejo “baixar” sobre os corpos, o desejo não depende, absolutamente, de Outrem para pulsar continuamente no ser. O desejo tem total autonomia em relação a qualquer finalidade exterior. É uma força própria do ser, seu esforço de perseverar em ser, o já mencionado conatus espinosano. Descobrimos, assim, junto com Robinson, que é falsa a “lei negativa” que relaciona o desejo a uma falta, ou seja: o desejo não é carente daquilo que, transitivamente, deseja. Outro mito igualmente arruinado pela experiência de Robinson é aquele que relaciona o desejo ao prazer por intermédio da “lei da descarga”: “o desejo aliviar-se-á no prazer...” Ao experimentar a positividade do “desejo totalmente disponível”, ele constata que a equação desejo-prazer só pode muito equivocadamente ser reduzida à “lei da descarga”. O que Robinson descobre, outras experiências humanas (filosóficas, religiosas, eróticas, comportamentais...) também permitem descobrir: que o prazer não é de forma alguma o que só poderia ser atingido pela descarga... ... mas o que deve ser postergado ao máximo, porque seu advento interrompe o processo contínuo do desejo positivo. Acontece que existe uma alegria imanente do desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de suas contemplações, fato que não implica falta alguma, impossibilidade alguma, que não se equipara e que também não se mede pelo prazer, posto que é esta alegria que distribuirá as intensidades de prazer e impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de culpa. (Deleuze & Guattari, 1996, p.16)

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Trata-se, então, de saber estabilizar as “intensidades de prazer” num platô, e não apenas do prazer de descarregar as intensidades. E é por isso que, uma vez concluída a “desumanização” de Robinson, a descrição de sua sexualidade mais pareceria saída de um tratado chinês de taoísmo, como indicação do caminho para se alcançar a circulação das intensidades (yin e yang) e o aumento das potências: 2 “A Grande Virtude, por natureza, segue o Caminho, nada além do Caminho” – do capítulo 21 do Tao-tê-king (Laotzeu, 1979, p.61). 3 No dia 28 de novembro de 1947, vai ao ar pela Radio France a peça radiofônica de Antonin Artaud Para acabar com o juízo de Deus, na qual o dramaturgo “declara guerra aos órgãos”. Deleuze & Guattari transpõem essa figura estética do Corpo sem Órgãos para o plano de imanência do pensamento, criando-o agora como um conceito filosófico. Não se trata, contudo, do mero empréstimo de uma imagem para “traduzir” uma idéia, mas da importação de todo o esquema de forças que põe em correlação as imagens na composição de Artaud. Tanto que, na mesma transposição, o juízo de Deus também se constitui num conceito: o do próprio organismo ou da “operação Daquele que faz um organismo” sobre o CsO: “O CsO grita: fizeram-me um organismo! dobraramme indevidamente! roubaram meu corpo! O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação, um sujeito. É ele o estratificado. Assim, ele oscila entre dois pólos: de um lado, as superfícies de estratificação sobre as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano de consistência no qual ele se desenrola e se abre à experimentação.” (Deleuze & Guattari, 1996, p.21)

A condição desta circulação e desta multiplicação é que o homem não ejacule. Não se trata de sentir o desejo como falta interior, nem de retardar o prazer para produzir um tipo de mais-valia exteriorizável, mas, ao contrário, de construir um corpo sem órgãos intensivo, Tao, um campo de imanência onde nada falta ao desejo e que, assim, não mais se relaciona com critério algum exterior ou transcendente. É verdade que todo circuito pode ser rebaixado para fins de procriação (ejacular no bom momento das energias); e é assim que o confucionismo o entende. Mas isto é verdade apenas para uma face deste agenciamento de desejo, a face voltada em direção aos estratos, organismos, Estado, família... Não é verdade para a outra face, a face Tao de desestratificação que traça um plano de consistência próprio ao desejo ele mesmo. (Deleuze & Guattari, 1996, p.19)

O plano de imanência do desejo é o Corpo sem Órgãos O aumento das potências, como aprendemos com Espinosa, é o mesmo que o fortalecimento do conatus e, também, um dos principais componentes do conceito de Grande Saúde aqui proposto. Outro forte componente deste conceito - tanto mais por ser aquele que lhe confere seus conteúdos de felicidade prazenteira (indissociável de qualquer idéia de Saúde que se preze) -, está relacionado ao que acima foi chamado de uma “alegria imanente do desejo”, que está, por sua vez, relacionada à possibilidade de uma “estranha estabilização intensiva”: a constituição de um platô de intensidades. “Estranha”, pelo menos, ao “espírito ocidental”... Gregory Bateson serve-se da palavra ‘platô’ para designar algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior. Bateson cita como exemplo a cultura balinense, onde jogos sexuais mãe-filho, ou bem querelas entre homens, passam por uma estranha estabilização intensiva. ‘Um tipo de platô contínuo de intensidade substitui o orgasmo’, a guerra ou um ponto culminante. É um traço deplorável do espírito ocidental referir as expressões e as ações a fins exteriores ou transcendentes em lugar de considerá-los num plano de imanência segundo seu valor em si. (Deleuze & Guattari, 1995a, p.33)

A Grande Saúde é o Tao: “campo de imanência onde nada falta ao desejo”. O Tao é o Caminho, o bom caminho para o desejo - e o bom caminho é a Virtude2 (nas palavras de Robinson: o desejo tornado “totalmente disponível” procurará “um caminho, o bom caminho, para onde convergirá e donde deslizará unânime para um objetivo”). E o caminho para a Grande Saúde passa por “construir um corpo sem órgãos intensivo”. É preciso, como Robinson, saber fazer o que Deleuze & Guattari (1996) chamam de um Corpo sem Órgãos (CsO)3 , o que é sempre muito arriscado...

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Não foi, entretanto, por meio de práticas taoístas que Robinson conseguiu criar para si um CsO, mas conseguindo atravessar a experiência radical de um mundo sem outrem, que lhe foi imposta pelo destino. Experiências como a de Robinson, assim como qualquer outro meio de se fazer um CsO, são sempre aventuras de grande risco. É mesmo o Grande Risco: cotejar o caos. O verdadeiro caminho para a Grande Saúde passa sempre pelo Grande Risco 4 . E é somente por esse motivo – por envolver o Grande Risco – que o mundo sem Outrem pode eventualmente conduzir à Grande Saúde. Como já vimos, Outrem é quem organiza a profundidade, pacifica-a, tornando-a possível de ser vivida. O mundo sem Outrem é o retorno agressivo do sem-fundo, é a perda de todo sentido e, em vários sentidos, a morte... A não ser que Robinson aprenda a viver numa nova dimensão ou invente um outro sentido para a perda de Outrem, o que poderia ser o mesmo que encontrar a Grande Saúde. A experiência de Robinson nos ensina que o caminho até o desabamento completo da estrutura Outrem passa por uma sucessão de momentos que, numa alternativa de desfecho trágico, poderia ser descrita como a sucessão neurose-psicose-morte. Mas Robinson é aquele que encontrou uma outra alternativa para a perda de Outrem: criar para si um CsO. E o que é um CsO? De todo modo você tem um (ou vários), não porque ele pré-exista ou seja dado inteiramente feito – se bem que sob certos aspectos ele préexista – mas de todo modo você faz um, não pode desejar sem fazê-lo... É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos... Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide... O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações... Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso. (Deleuze & Guattari, 1996, p.9-13)

Mas tudo isso é muito arriscado e é realmente preciso muita prudência para se fazer um CsO. A rigor, jamais se chega completamente a um CsO, pois ele é um limite. É preciso saber disso para se ter alguma chance de saber fazê-lo: o CsO deve ser uma desterritorialização relativa; para fazê-lo é preciso “ter sempre um pedaço de nova terra”: Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco

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Essa idéia é bastante próxima da idéia nietzscheana de saúde, como aquilo que nos faz “viver através das doenças do vivido”. Isso explica porque a Grande Saúde pode nos dar, às vezes, a impressão de uma saúde frágil, abalada. Aqueles que experimentaram fazer o Corpo sem Órgãos podem ter a aparência de um Robinson-solar, de um santo ou de um artista: “Desse ponto de vista, os artistas são como os filósofos, têm freqüentemente uma saudezinha frágil, mas não por causa de suas doenças nem de suas neuroses, é porque eles viram na vida algo de grande demais para qualquer um, de grande demais para eles, e que pôs neles a marca discreta da morte. Mas esse algo é também a fonte e o fôlego que os fazem viver através das doenças do vivido (o que Nietzsche chama de saúde). ‘Um dia saberemos talvez que não havia arte, mas somente medicina...’” (Deleuze & Guattari, 1992, p.224).

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negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano. O pior não é permanecer estratificado – organizado, significado, sujeitado – mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pedaço de nova terra... É somente aí que o CsO se revela pelo que é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades. (...) Porque o CsO é tudo isto: necessariamente um Lugar, necessariamente um Plano, necessariamente um Coletivo (agenciando elementos, coisas, vegetais, animais, utensílios, homens, potências, fragmentos de tudo isto, porque não existe ‘meu’ corpo sem órgãos, mas ‘eu’ sobre ele, o que resta de mim, inalterável e cambiante de forma transpondo limiares). (Deleuze & Guattari, 1996, p.24-5)

Espinosa e a dupla-articulação Para Espinosa, há uma única e mesma substância constituindo o universo inteiro e ela é eterna porque, nela, ser, existir e agir (essência, existência e potência) são uma só e mesma coisa. A substância é causa sui (causa de si mesma), “aquilo cuja essência implica a existência, aquilo cuja natureza só pode conceber-se como existente” (primeira definição do livro 1, “De Deus”). Contudo, se por um lado, no “monismo” espinosano a substância é tudo que é, por outro, vemos se expressar em seu pensamento, logo no primeiro axioma do livro 1, uma dupla-articulação: “Tudo que é, ou é em si, ou é em outra coisa.” Isto é, ou existe em si e por si (é substância), ou existe em outro e por outro. A esse segundo tipo de existência (e conhecimento), Espinosa denominará modos da substância. Ou ainda, segundo sua própria definição (a quinta do livro 1): “Por modo entendo as afecções de uma substância. Ou seja, aquilo que é em outra coisa, por meio da qual também é conhecido.” A substância é aquela que é em si e não precisa, para formar-se enquanto conceito, do conceito de outra coisa e atributo é “aquilo que o entendimento percebe de uma substância como constitutivo da mesma” (quarta definição). Dos infinitos atributos de Deus (da substância), nós conhecemos, “verdadeira e adequadamente”, apenas dois: a extensão e o pensamento. A atividade do atributo extensão dá origem aos corpos, como modos finitos da extensão, assim como a atividade do atributo pensamento dá origem às idéias e às almas (mens), como modos finitos do pensamento. Deleuze & Guattari se perguntam: “o grande livro sobre o CsO não seria a Ética?” Os atributos são os tipos ou os gêneros de CsO, substâncias, potências, intensidades Zero como matrizes produtivas. Os modos são tudo o que se passa: as ondas e as vibrações, as migrações, limiares e gradientes, as intensidades produzidas sob tal ou qual tipo substancial a partir de tal matriz.... O problema de uma mesma substância para todas as substâncias, de uma substância única para todos os atributos, vem a ser este: existe um conjunto de todos os CsO? Mas se o CsO já é um limite, o que seria necessário dizer do conjunto de todos os CsO? O problema não é mais aquele do Uno e do Múltiplo, mas o da multiplicidade de fusão, que

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transborda efetivamente toda oposição do uno e do múltiplo. Multiplicidade formal dos atributos substanciais que constitui como tal a unidade ontológica da substância. Continuum de todos os atributos ou gêneros de intensidade sob uma mesma substância, e continuum das intensidades de um certo gênero sob um mesmo tipo ou atributo. Continuum de todas as substâncias em intensidades, mas também de todas as intensidades em substância. Continuum ininterrupto do CsO. O CsO, imanência, limite imanente... O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo). (Deleuze & Guattari, 1996, p.14-5)

O desejo é uma superfície de emissão de singularidades e essa superfície funciona – no caso da Ética de Espinosa – como uma espécie de interestrato do corpo e da alma, a desestratificação de permeio que faz a articulação, a superfície com uma face para cada estrato e, a partir da qual, ambos os estratos se formam: dupla-articulação. Cabe dizer que os elementos de um estrato não pré-existem à duplaarticulação, pois é ela que os distribui segundo seu traçado em cada estrato. E é por isso que os elementos de cada estrato – do corpo e da alma, no caso da Ética – estão reciprocamente pressupostos. Segundo a proposição 7 do livro 2 (“Da natureza e origem da alma”): “A ordem e a conexão das idéias são as mesmas que a ordem e a conexão das coisas.” Entre os elementos da alma e os elementos do corpo, as relações são biunívocas: há isomorfismo com pressuposição recíproca (identidade de “ordem”). A alma e o corpo são isonômicos: expressam as mesmas leis e os mesmos princípios (identidade de “conexão”, cf. Deleuze, 2002, p.74 ss.). Para Espinosa, isso se dá porque alma e corpo constituem um único e mesmo indivíduo, assim como a substância pensante e a substância extensa são uma única e mesma substância, cada qual apreendida desde seu atributo. A alma sabe imediatamente do corpo, sem que esse saber se modifique ao saber-se “separada” do corpo. “Separá-la” do corpo é, para Espinosa, só um modo de tratá-la em abstrato, enquanto ela segue, de fato, inextricavelmente acoplada ao funcionamento do corpo. Essa dupla-articulação inscreve-se no coração do pensamento de Espinosa (expressando-se nos estratos humanos, em sua Ética). Corresponde ao que vários intérpretes chamam de sua “ontologia bimembre” – uma ontologia geral (da substância) e uma ontologia específica (dos modos) –, mas também a sua particular doutrina do “paralelismo”: por um lado, a irredutibilidade da alma ao corpo; por outro, o reconhecimento que a alma só segue pelos caminhos do corpo. Por um lado, distinção real entre os estratos; por outro, o reconhecimento que um estrato só se desenvolve a partir de um outro estrato, que lhe serve de subestrato. Para Deleuze, é “na esteira dos estóicos” que Espinosa leva essa duplaarticulação até o fim, fendendo “a causalidade em duas cadeias bem distintas: os efeitos entre si, sob a condição de que as causas, por seu turno, sejam apreendidas entre si. Os efeitos remetem aos efeitos, assim como os signos remetem aos signos: conseqüências separadas de suas premissas” (Deleuze, 1997, p.159). Ou seja, os efeitos são irredutíveis a suas causas, mas são assim mesmo efeitos. Para que fique mais clara toda a singularidade desta dupla-articulação, ainda precisamos adentrar um pouco mais a vertiginosa filosofia de Espinosa e

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conhecer minimamente o que poderíamos chamar de...

Espinosa discute destacadamente esta solução de Descartes no prefácio do livro 5 (“Do poder do entendimento ou da liberdade humana”), onde demarca com nitidez suas diferenças de concepção. Deixa claro, por exemplo, como sua noção de alma (mens) se distingue da anima cartesiana, que seria ainda um princípio “espiritual” e cujo funcionamento, por isso, seria inexplicável, exceto se imaginarmos, como Descartes, que a alma viria a saber dos movimentos do corpo por meio desta pequena “glândula suspensa no meio do cérebro, de tal modo que possa ser movida pelo menor movimento dos espíritos animais...” (Spinoza, 1998, p.384)

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Livro 2: Proposição 19: “A alma humana não conhece o corpo humano propriamente, nem sabe que este existe, a não ser pelas idéias das afecções de que o corpo é afetado.” A alma só percebe o corpo como existente em ato. Proposição 22: “A alma humana percebe não só as afecções do corpo, mas também as idéias dessas afecções.” Proposição 23: “A alma não conhece a si mesma, senão enquanto percebe as idéias das afecções do corpo.”

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Afectologia espinosana Para Espinosa, a alma é a idéia do corpo e, num sentido muito geral, o corpo é o objeto da alma. Conforme a proposição 13 do livro 2: “O objeto da idéia que constitui a alma humana é um corpo, ou seja, certo modo da Extensão existente em ato, e não outra coisa”. Esta é uma das mais célebres proposições de sua Ética, sobretudo pelo escólio em que Espinosa não apenas afirma a união alma-corpo (na contramão de Descartes), mas expõe o que entende por esta união. Não existe propriamente um problema da ligação alma-corpo para Espinosa (como existe para Descartes, que situou esta ligação na glândula pineal5 ), porque alma e corpo não estão realmente separados (apenas mentalmente, isto é, só enquanto uma idéia na alma e que é uma idéia da alma), porque é da essência da alma, por ser atividade pensante, estar ligada ao seu objeto de pensamento, de estar ligada à vida de seu objeto, o corpo. A alma é consciência da vida de seu corpo e, igualmente, consciência de ser consciente disto. Mais exatamente, a alma é consciência das afecções do corpo, bem como das idéias que a alma se faz dessas afecções (os afectos)6 . Idéia do corpo e idéia da idéia do corpo. Idéia do corpo, idéia da alma. Consciência do corpo, consciência de si. A alma só tem consciência de si por meio da consciência das modificações que se dão na vida do corpo. Uma afecção é um estado do corpo, num determinado momento, sob o efeito de um mundo. Mas... surge outrem com um rosto assustado, fazendo o mundo passar (“eu estava tranqüilo...”), e já estamos num outro “estado de afecção”. Graças a outrem, passamos sem cessar de um estado a outro e, nessas passagens, experimentamos “potências aumentativas” e/ou “servidões diminutivas”... Não é que comparamos os dois estados numa operação reflexiva, mas cada estado de afecção determina uma passagem para um ‘mais’ ou para um ‘menos’... A afecção, pois, não só é o efeito instantâneo de um corpo sobre o meu mas tem também um efeito sobre minha própria duração, prazer ou dor, alegria ou tristeza. São passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de potência que vão de um estado a outro: serão chamados afectos, para falar com propriedade, e não mais afecções. (Deleuze, 1997, p.157)

A alma é consciência do corpo na medida em que é consciente de suas afecções, consciente dos “estados do corpo”: dos efeitos de um corpo sobre outro no espaço. A alma é consciência da alma na medida em que é consciente de seus afectos, de suas “variações de potência”: dos efeitos de uma afecção sobre uma duração. Em síntese, a alma é consciência dos diferentes “estados do corpo” (affectio) e de suas “variações de potência” (affectus). Esse é seu nível mais elementar de conhecimento: a pura consciência desses estados (efeitos sobre o corpo) e dessas variações (efeitos sobre sua duração), que o corpo exprime como imagens ou signos. Deleuze (1997), num indispensável ensaio sobre as três “Éticas” de Espinosa, oferece-nos o que se poderia chamar das linhas gerais de uma “semiótica” espinosana: uma “teoria espinosana do signo” (sua ética dos signos) que complementaria eficazmente o conhecimento aqui iniciado de

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sua “afectologia”. Antes, porém, é preciso, uma vez mais, para todas essas questões, insistir na inseparabilidade do desejo, bem como compreender um pouco melhor de que modo Espinosa vê o corpo e sua força imaginante. Fisiologia do Corpo sem Órgãos A alma é força pensante e Espinosa chama de entendimento a potência interna da alma para pensar. Em seu imanentismo, ele identifica essência (ser) e potência (agir segundo uma causalidade interna) e, por isso, para Espinosa, a essência da alma é sua potência interna para pensar. Isso, contudo, não significa uma concepção puramente “intelectualista” da alma, pois, como já vimos, o filósofo também afirma que a essência atual da alma (e do corpo) é o conatus, ou seja, o apetite/desejo. A essência da alma (e do corpo) é o desejo, o que é o mesmo que sua potência interna de pensar (e agir). O desejo (entendido como a expressão propriamente humana do apetite, sendo este, a expressão propriamente animal do “interesse vital”, do “esforço de autoconservação” que anima cada ser) é a essência do homem, sua potência interna de autodeterminar-se. Em sua estratificação “anímica” ou “mental”, o desejo é força pensante e Espinosa chama de vontade esse desejo que é puro pensamento. É por ser desejo (esforço vitalmente interessado) que, a alma, as coisas apetecem ou aborrecem. Querer é a afirmação ou a negação de uma idéia segundo as determinações do desejo. Pensar é conhecer alguma coisa afirmando ou negando sua idéia (cf. Chauí, 1995, p.57 ss.). É desse modo que podemos entender a importante proposição 49 do livro 2: “Na alma não se dá nenhuma volição, no sentido de afirmação e negação, aparte aquela que está implícita na idéia enquanto idéia”. E, no corolário, não deixa dúvidas: “A vontade e o entendimento são um e o mesmo.” Já em sua estratificação “somática” ou “corporal”, o desejo é força imaginante e Espinosa chama de signo esse desejo que é pura imagem7 . Mas, como o desejo chega a ser imagem? Ou, mais exatamente, de que modo o desejo faz imagens? Para podermos compreender com clareza de que modo o desejo, de fato, participa da formação das imagens, seria ideal conhecer a completa visão espinosana do corpo, seria preciso retomar todos seus postulados sobre o corpo, que encontramos no livro 2, e mais as proposições que se seguem (14-30), que compõem a sua singular “fisiologia” – uma fisiologia do Corpo sem Órgãos! Contudo, para não nos desviarmos de nosso percurso principal, retomemos apenas alguns postulados: I. O corpo humano se compõe de muitíssimos indivíduos (de diversa natureza), cada um dos quais é mui composto. II. Alguns dos indivíduos que compõe o corpo humano são fluidos; outros são moles e outros, enfim, são duros. III. Os indivíduos que compõem o corpo humano (e, por conseguinte, o próprio corpo humano) são afetados de muitíssimas maneiras pelos corpos exteriores. IV. O corpo humano necessita para conservar-se, de muitíssimos outros corpos, e é como se esses o regenerassem continuamente. V. Quando uma parte fluida do corpo humano é determinada por um corpo externo a se chocar freqüentemente com outra parte mole, altera a superfície desta e lhe imprime uma espécie de vestígio do corpo externo que a afeta. (Spinoza, 1998, p.137)

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Se pensarmos o corpo como “organismo”, tenderemos a situar a formação destas imagens no cérebro. Contudo, é mais propriamente no CsO que estas imagens se formam; e é assim, antes de mais nada, que estão relacionadas ao desejo: são “figuras” intensivas que se recortam sobre o plano de imanência do desejo.

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8 Como se sabe, toda patologia produz uma semiótica própria, que não deixa de ser uma “atividade” própria ao padecimento, a doença “em ato”. Basta lembrar, por exemplo, de toda a semiótica da fácies: a doença como expressão num rosto. A propósito, observemos também como o termo fácies apresenta um curioso desdobramento semântico: “Med. Modificação de aspecto imprimida à face por certos estados mórbidos... Anat. Superfície específica de uma estrutura ou de um órgão do corpo humano... Geol. Conjunto dos caracteres de uma rocha, considerados sob o aspecto de sua formação”. Superfície de expressão, superfície de estratificação... Facies totius Naturae...

9 “... mas a força não é o que age, é, como sabiam Leibniz e Nietzsche, o que percebe e experimenta.” (Deleuze & Guattari, 1992, p.169).

Livro 2: Proposição 25: “A idéia de uma afecção qualquer do corpo humano não implica o conhecimento adequado do corpo exterior.” Proposição 26: “A alma humana não percebe nenhum corpo exterior como existente em ato, senão através das idéias das afecções de seu próprio corpo.”

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Esse “vestígio” de um corpo sobre outro, ou ainda, esse “estado de um corpo que tenha sofrido a ação de um outro corpo: é uma affectio” (Deleuze, 1997; p.156). Uma afecção: um efeito; o efeito de um corpo sobre outro. É esse efeito, causado pelos corpos externos sobre o corpo humano, que Espinosa chama de imagem ou signo. É assim que o corpo “imagina”: como uma passividade “ativa”, como pathos8 , paixão. A imagem é uma paixão. Notemos, que, por ser desejo, a alma se faz idéias inteiramente “interessadas” das afecções corporais, do mesmo modo que estas já são, por sua vez, “estados do corpo”, paixões, passividades, mas passividades “ativas”, porque inteiramente vetorializadas, imantadas pelo “interesse vital”9. Nossas imagens das coisas que nos afetam – tomadas num sentido mais estritamente cognitivo de uma percepção ou sensação –, dependem, antes de mais nada, do modo como estas coisas afetam nosso conatus: nosso desejo, nosso esforço de perseverar em ser e nossa potência de agir e pensar. Como já foi dito, cada nova imagem, na medida em que corresponde à instalação de um outro “estado do corpo”, é também necessariamente a percepção/ sensação de uma variação de potência em relação ao estado anterior: um aumento ou uma diminuição da força do conatus. As imagens ou signos são sempre efeitos: seja em termos de afecção das “partes fluidas e moles” do corpo por outros corpos, seja em termos de afecção da duração do corpo por vetores de crescimento e/ou diminuição do desejo. Notemos também que as idéias, por serem idéias das afecções ou estados do corpo, não têm como referente direto um objeto ou uma causa externa (por exemplo, um mundo assustador), mas seu efeito no corpo humano, que é a própria imagem ou signo (talvez, um rosto assustado)10. Por isso, um signo, mesmo meramente indicativo, nunca se parece com a coisa, mas corresponde a seu efeito no corpo, do mesmo modo que um rosto assustado, como já dissemos, não tem qualquer semelhança com o mundo assustador que exprime. Ainda uma vez, o que temos, é a dupla-articulação: um signo só remete a outro signo, e não à coisa, ainda que seja um efeito dessa coisa. Mas, para que possamos entender de que modo um signo remete a outro, é preciso conhecer um outro aspecto fundamental da fisiologia espinosana do corpo: para produzir uma imagem, o corpo deve ser imaginante, mas para que uma imagem envie a outra, é preciso que o corpo também seja, como diz Chauí (1995), memorioso. Vejamos a interessante proposição 17: “Se o corpo humano experimenta alguma afecção que implica a natureza de algum corpo exterior, a alma humana considerará dito corpo exterior como existente em ato, ou como algo que lhe está presente, até que o corpo experimente uma afecção que exclua a existência ou presença desse corpo. Escólio: ... servindo-nos de termos usuais, chamaremos ‘imagens’ das coisas, as afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos exteriores como se nos estivessem presentes, ainda que não reproduzam a figura das coisas. E quando a alma considerar as coisas desta maneira, diremos que os ‘imagina’. E, nesse ponto, para começar a indicar o que é o erro, quisera notásseis que as imaginações da alma, em si mesmas consideradas, não contêm erro algum; ou seja, a alma não erra pelo fato de imaginar, mas apenas na medida em que se encontra carente de uma idéia que exclua a existência daquelas coisas que imagina estar-lhe presente. Pois se a alma, ao mesmo tempo em que imagina como presentes coisas que não existem, soubesse que realmente não existem,

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atribuiria sem dúvida essa potência imaginativa a uma virtude, e não a um vício de sua natureza; sobretudo, se essa faculdade de imaginar dependesse de sua única natureza, isto é, se essa faculdade de imaginar que a alma possui fosse livre. (Spinoza, 1998, p.139-42)

O corpo imagina; a alma imagina. Enquanto é o corpo que imagina, a imagem, enquanto efeito, não se encontra totalmente separada de sua causa, ou seja, num certo sentido, o corpo só imagina enquanto a causa da imagem se encontra presente. Quando é a alma que imagina, a imagem pode se fazer presente mesmo quando sua causa está ausente, porque a alma tem a potência de reconsiderá-la segundo a espécie das idéias: as idéias das afecções. Espinosa chama de signo essa “idéia de um efeito captado em condições que o separam de suas causas” (Deleuze, 2002, p.111). É interessante notar como, no escólio acima, Espinosa ressalta o risco implícito nessa faculdade imaginativa da alma: está tanto na origem de vícios, quanto de virtudes. Ao realizar-se como imaginação (imaginando os objetos ausentes) e, nesse sentido, podendo tomar as imagens de forma inteiramente desligada de suas causas (um efeito só remetendo a outro efeito, um signo, a outro signo), a alma se presta à fabricação de causas imaginárias: as “idéias imaginativas”. Para Espinosa, um conhecimento é falso, sempre que a alma excluir a idéia de que estejam, de fato, ausentes, as coisas que imagina como se estivessem presentes e, com isso, pretender que as relações causais estabelecidas entre as imagens correspondam a relações causais entre as coisas. Contudo, se o corpo só é capaz de imaginar (pois não é de sua natureza pensar), a alma pode, além de imaginar, também ter acesso ao verdadeiro, graças a sua potência própria, o poder de pensar, quando toma a iniciativa do conhecimento e faz de sua potência imaginativa uma virtude, porque a faz depender de sua única natureza, a faz uma potência livre. Nesse sentido, o pensamento poderia ser definido como uma potência imaginativa livre. A grande questão, a partir daí, é como passamos da imagem ou signo, como efeito “necessário” de uma causalidade externa, para o pensamento como causa “livre” e interna. Não será do mesmo modo que passamos do corpo ao signo, que passaremos do signo ao pensamento: através do desejo? Uma vez que é o signo que se encontra no centro deste movimento, passemos à acima mencionada “semiótica” espinosana sistematizada por Deleuze, que deve complementar o conhecimento de sua “afectologia”. Semiótica espinosana As relações de movimento e repouso, de rapidez e lentidão, entre as partes fluidas e moles, em seus contatos com outros corpos, gravam em nosso corpo todos os “vestígios” destas relações (sombras das coisas em nós) e a vida de um corpo é a variação contínua de sua potência como decorrência dessa sucessão de afecções (muitas, simultâneas) que experimenta. Pois o corpo, além de imaginante, é memorioso, e faz com que nossa alma seja capaz de “presentificar” imagens de coisas que não estão mais presentes – quando outrem já fez o mundo passar! – e com elas re-presentar o tempo, isto é, seqüências associativas e generalizadoras de imagens instantâneas gravadas em nossa carne: “idéias imaginativas”, conhecimento inadequado (cf. Chauí, 1995; p.61 ss.). As afecções do corpo (as imagens) são sempre variações de potência (os afectos), não são efeitos desinteressados, mas modificações da vida do corpo e do sentido “psíquico” dessa vida corporal, fundadas no interesse vital que, do

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Certamente, por analogia com a noção de escala na Física: “seqüência ordenada de marcas (traços, pontos etc.) mediante a qual se estabelece, num instrumento de medida, a correspondência entre a sua resposta e a grandeza que ele mede.”

12 Livro 2: Proposição 16: “A idéia da afecção, qualquer que seja, em virtude da qual o corpo humano é afetado pelos corpos exteriores, deve implicar a natureza do corpo humano e, ao mesmo tempo, a do corpo exterior.” Corolário I: “A alma humana percebe junto com a natureza de seu próprio corpo, a de muitíssimos outros.” Corolário II: “As idéias que temos dos corpos exteriores revelam muito mais da constituição de nosso próprio corpo, do que a natureza dos corpos exteriores.” 13 É a própria noção de “eminência”, tão reprovada por Espinosa. Conforme coloca no vertiginoso apêndice do livro 1: “Todos os preconceitos que procuro indicar aqui dependem de um só: o fato de que os homens suponham comumente que todas as coisas da natureza atuam, de modo igual a eles mesmos, em razão de um fim e inclusive têm certo que mesmo Deus dirige todas as coisas na direção de uma certa finalidade, pois dizem que Deus fez todas as coisas com vistas ao homem e criou o homem para que lhe renda culto.” (Spinoza, 1998, p.96)

lado do corpo, o faz mover-se (afetar e ser afetado por outros corpos) e, do lado da alma, a faz pensar (cf. Chauí, 1995, p.63). É por isso que Espinosa diz que a alma é atividade pensante que se realiza como vontade, isto é, segundo as determinações do desejo. O pensamento está fundado no interesse vital e, por isso, há uma volição implícita em cada idéia. Porém, para Espinosa, pensar, propriamente, pressupõe que a alma seja a “causa livre” de suas idéias. Na medida em que é vontade, o pensamento não pode ser dito “causa livre”, mas apenas “causa necessária” (cf. prop. 32 do livro 1). Não há, entretanto, uma oposição real entre estas duas exigências causais, pois, como se verá mais adiante, o pensamento, para Espinosa, poderia ser definido como uma operação “interessada” sobre formas, capaz de estabelecer um “feliz” compromisso entre o “livre” e o “necessário”. O pensamento enquanto imaginação procede, mais geralmente, segundo uma relação formal: identidade de “ordem e conexão”, correspondência modal. O pensamento enquanto vontade procede, mais geralmente, segundo uma relação binária: mais-menos, afirmação-negação etc.. O pensamento enquanto imaginação lida com aquilo que Deleuze (1997) chama de “signos escalares11” (as afecções ou estados de corpo), cujo livro principal é o segundo da Ética, “Da natureza e origem da alma”. O pensamento enquanto vontade lida com aquilo que Deleuze chama de “signos vetoriais” (os afectos ou variações de potência), cujo livro principal é o terceiro, “Da origem e natureza dos afectos”. Segundo a leitura extremamente fina que faz da obra de Espinosa, haveria, para Deleuze, quatro tipos principais de signos escalares: Os primeiros – os elementos mais simples – seriam os “efeitos físicos sensoriais ou perceptivos”: os signos indicativos que, na singular visão de Espinosa, indicariam, em primeiro lugar, a natureza de nosso próprio corpo (seus estados) e, apenas secundariamente, os corpos exteriores12 . Deleuze os chama de índices sensíveis. Mas, como nossa natureza é finita, a alma “retém daquilo que a afeta somente tal ou qual característica selecionada (o homem animal vertical, ou racional, ou que ri)”, fazendo-se, assim, idéias de nossas afecções que são, a rigor, signos abstrativos. Deleuze os chama de ícones lógicos. A imaginação continua, entretanto, seu trabalho pela via da antropomorfização13: “sendo o signo sempre um efeito, tomamos o efeito por um fim... (visto que o sol esquenta, acreditamos que ele é feito ‘para’ nos esquentar...).” Os efeitos tomados por fins são, afinal de contas, efeitos morais. E o que temos, agora, são signos imperativos: “Põe-te ao sol!” Rende culto a Deus! Deleuze chama esses signos de símbolos morais. Por fim, a imaginação produz signos que são propriamente “efeitos imaginários: nossas sensações e percepções nos fazem pensar em seres suprasensíveis que seriam sua causa última... seres à imagem desmesuradamente aumentada daquilo que nos afeta...” São os signos hermenêuticos ou interpretativos. Ou, como quer Deleuze, os ídolos metafísicos. Esses quatro tipos de signos escalares, correspondentes a quatro tipos de afecções (efeitos físico-sensíveis, efeitos abstrativos, efeitos morais, efeitos imaginários), combinam-se necessariamente com os chamados signos vetoriais, com os três tipos de signos vetoriais de afecto. Os dois tipos principais e polares: as potências aumentativas (conforme o vetor seja de aumento, crescimento, alegria) e as servidões diminutivas (conforme o vetor seja de diminuição, decréscimo, tristeza). E ainda um terceiro tipo: os signos ambíguos ou flutuantes, quando uma afecção a um só tempo aumenta e diminui nossa potência, nos afeta ao mesmo tempo de alegria e de tristeza. Na

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verdade, todos esses seis ou sete tipos diferentes de signos não cessam de se (re)combinar. As características comuns a todos os signos são a associabilidade (entram em diferentes cadeias de associação), a variabilidade (variam para cada povo, para cada artista e, mesmo, para cada um) e a equivocidade (as interpretações são fundamentalmente equívocas para cada associação variável). É a mistura, o que prevalece nessa fonte inesgotável de ilusões que é a potência imaginativa da alma: não apenas as associações variáveis de signos escalares entre si, mas, necessariamente, as combinações de signos escalares com signos vetoriais (“os afectos supõem sempre afecções de onde derivam, embora não se reduzam a elas”); e não se deve excluir nem mesmo que os signos vetoriais de afecto entrem, entre si, em associações variáveis... Os signos vetoriais em geral, isto é, os afectos, entram em associações variáveis tanto quanto as afecções: o que é crescimento para uma parte do corpo pode ser diminuição para outra parte, o que é servidão de um é potência de outro, e uma ascensão pode ser seguida de uma queda e inversamente. (Deleuze, 1997, p.158)

Estas seriam as linhas gerais da plástica e dinâmica “semiótica” espinosana, essa fascinante visão do signo e da vida imaginativa e afetiva, mas que também poderia ser dita um pequeno tratado do conhecimento inadequado. De fato, com o que foi exposto até aqui, continuamos sem uma resposta para a questão, agora formulada por Deleuze: “como chegamos nós a ter, a formar idéias adequadas, uma vez que nossa condição natural nos determina a não ter senão idéias inadequadas?” (Deleuze, 2002, p.85) Esse conhecimento pelos signos ou imaginação, que Espinosa também nomeia de “conhecimento por experiência vaga”, “conhecimento por ouvir dizer” ou, simplesmente, “opinião”, corresponde ao conhecimento de primeiro gênero (cf. escólio II da proposição 40 do livro 2). A bem dizer, esse primeiro gênero mal chega a ser um conhecimento, posto que é apenas “experiência vaga”: são “idéias confusas de misturas entre corpos, imperativos brutos para evitar tal mistura e buscar tal outra e interpretações mais ou menos delirantes dessas situações. É uma linguagem material afetiva...” Se o conhecimento pelos signos e pela imaginação só pode ser um conhecimento confuso e inadequado, é de se esperar que qualquer caminho para o conhecimento adequado só possa se fazer contra os signos e a imaginação. Na Ética, que é filosofia do conhecimento adequado, espera-se que eles sejam os mais duramente criticados. Contudo, não é exatamente assim que Espinosa, o racionalista, coloca a questão... Não há dúvida de que na vida imaginativa, que é a vida das paixões, não apenas produzimos idéias inadequadas (causalidades imaginárias), como também somos causa inadequada do que sentimos, fazemos e desejamos, porque somos causa apenas parcial de tudo isso. E isso, para Espinosa, por uma razão muito simples e bastante evidente: porque a força dos corpos exteriores sobre nós é imensamente maior do que a força de nossos corpos individuais, a exterioridade sobrepuja a interioridade causal corporal e psíquica (cf. Chauí, 1995, p.65). É exatamente o que diz a proposição 3 do livro 4 (“Da servidão humana ou da força dos afetos”). Ademais, este também é o princípio da idéia espinosana de servidão humana: ser servo de causas externas, estar “sob o poder” de outro. Mas a vida imaginativa, como já vimos, pode também ser uma virtude,

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quando a potência imaginativa se liberta. E como essa potência imaginativa pode se libertar? Ou, em que condições passamos a ser causa livre dessa potência? O que é preciso para entrar “na posse dessa potência” e nos tornarmos “capazes de formar um conceito”? Quando deixamos de ser passivopassionais e assumimos a iniciativa do conhecimento? ... é preciso efetivamente que ao menos certos signos nos sirvam de trampolim e que certos afectos nos proporcionem o impulso necessário (Livro V). No encontro ao acaso entre corpos podemos selecionar a idéia de certos corpos que convêm com o nosso e que nos dão alegria, isto é, aumentam nossa potência. E só quando nossa potência aumentou suficientemente, a um ponto sem dúvida variável para cada um, entramos na posse dessa potência e nos tornamos capazes de formar um conceito, começando pelo menos universal (conveniência de nosso corpo com algum outro), mesmo se na seqüência devemos atingir conceitos cada vez mais amplos segundo a ordem de composição das relações. Há portanto uma seleção dos afectos passionais, e das idéias de que eles dependem, que deve liberar alegrias, signos vetoriais de aumento de potência, e repelir as tristezas, signos de diminuição: tal seleção dos afectos é a própria condição para sair do primeiro gênero de conhecimento e atingir o conceito adquirindo uma potência suficiente. Os signos de aumento continuam sendo paixões, e as idéias que eles supõem permanecem inadequadas: nem por isso deixam de ser os precursores das noções, os sombrios precursores... Nos signos, portanto, há alguma coisa que ao mesmo tempo prepara e duplica os conceitos... E a Ética não pode privar-se de uma forma de expressão passional e por signos, única capaz de operar a indispensável seleção sem a qual permaneceríamos condenados ao primeiro gênero. (Deleuze, 1997, p.162-3)

Esse é, efetivamente, um dos traços mais fortes e peculiares da filosofia de Espinosa: pensamos e agimos adequadamente não contra os afectos, mas graças a eles. A vida ética, a virtude e o conhecimento adequado (que coincidem, na medida que todos implicam, similarmente, numa interiorização da causalidade e na instauração de uma nova relação com a exterioridade), não começam por uma idéia adequada, mas por uma paixão. Para Espinosa, uma paixão não pode ser vencida por uma idéia adequada, mas só por uma paixão mais forte (prop. 1 do livro 4). Há, assim, um processo libertador que se gesta no interior das paixões: à medida que as paixões tristes vão sendo afastadas e as alegres vão sendo aproximadas, a força do conatus aumenta; e a alegria e o desejo que decorrem desse aumento preparam-nos para a atividade e diminuem a passividade. Trata-se, outra vez, do problema de se fazer um CsO, isto é, de se saber estabilizar as intensidades num platô e se reconhecer a partir do plano de imanência do desejo (o plano de consistência da alegria), o que significa imediatamente um aumento das potências, um aumento da força do conatus. O essencial de se compreender, nesse ponto, é como esse aumento das potências, enquanto uma forte disposição para assumir a iniciativa da ação e do conhecimento, implica fundamentalmente numa interiorização da causalidade: tanto na ação, quanto no conhecimento, uma diminuição das causas externas imaginárias e um reconhecimento da força da “causação” interna. É a própria idéia espinosana da liberdade humana: “reconhecer-se como causa eficiente interna dos apetites e das imagens, dos desejos e das idéias, afastando a

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miragem ilusória das causas finais externas” (Chauí, 1995, p.72). Na vida imaginativa, somos causa inadequada de nossos atos e a potência é pura força de perceber e experimentar, só se realizando como paixão. A vida ética começa quando – por selecionarmos as coisas e as idéias que nos dão alegria e aumentam a nossa potência –, “entramos na posse dessa potência” e passamos a produzir noções comuns ou conceitos, assim como nos tornamos causa adequada de nossos atos, que só podem se realizar como virtude. Passemos, então, a examinar o que são as noções comuns ou o que Espinosa chama de conhecimento de segundo gênero. Antes, porém, um comentário precioso de Deleuze sobre esse problema da “seleção dos afectos”, ao qual deveremos voltar, mas que, desde já, pretendemos evitar que dele se tenha uma visão enganosamente simplista, como se se tratasse de um problema menor ou de um não-problema, uma passagem já resolvida na fabricação de conceitos. Pode parecer demasiado simples: “para entrarmos em posse dessa potência, basta selecionarmos as coisas que nos dão alegria...” Como se já não residisse aí, toda uma ampla gama de dificuldades decisivas neste processo. Como se não se tratasse, também neste caso, de atravessar o Grande Risco: Essa seleção é muito dura, muito difícil. É que as alegrias e as tristezas, os aumentos e as diminuições, os esclarecimentos e os assombreamentos costumam ser ambíguos, parciais, cambiantes, misturados uns aos outros. E sobretudo muitos são os que só podem assentar seu Poder na tristeza e na aflição, na diminuição de potência dos outros, no assombreamento do mundo: fingem que a tristeza é uma promessa de alegria e já uma alegria por si mesma. Instauram o culto da tristeza, da servidão ou da impotência, da morte. Não param de emitir e impor signos de tristeza, que apresentam como ideais e alegrias às almas que eles mesmos tornaram enfermas. É o caso do par infernal, o Déspota e o Sacerdote, terríveis ‘juízes’ da vida. A seleção dos signos ou dos afectos como primeira condição para o nascimento do conceito não implica, pois, só o esforço pessoal que cada um deve fazer sobre si mesmo (Razão), mas uma luta passional, um combate afetivo inexpiável em que se corre risco de vida, onde os signos afrontam os signos e os afectos se entrechocam com os afectos, para que um pouco de alegria seja salva, fazendo-nos sair da sombra e mudar de gênero. Os gritos da linguagem dos signos marcam essa luta das paixões, das alegrias e das tristezas, dos aumentos e diminuições de potência. (Deleuze, 1997, p.163)

O conceito e a fabrica intima Quando encontramos um corpo que convém com o nosso, experimentamos um afecto de alegria-paixão; esta alegria-paixão, como aumento da potência de agir e compreender, nos induz a conhecer, em primeiro lugar, o que temos em comum com aquele corpo que nos convém e qual a essência dessa relação de conveniência; em outras palavras, nos induz a formar uma noção comum, a qual só pode ser um conhecimento adequado14. A tristeza, que nasceria de um encontro com um corpo que não convém com o nosso, logicamente, jamais nos induziria a fazer uma noção comum. Quando chegamos a fazer uma noção comum, atingimos o que Espinosa chama de conhecimento de segundo gênero ou “razão” (ratio). Como se deduz, para Espinosa o homem não nasce “razoável”, mas pode vir a sê-lo por meio da alegria. Daí, justamente, sua dupla definição da razão:

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Livro 2: Proposição 38: “Aquilo que é comum a todas as coisas e que está igualmente na parte e no todo, só pode ser concebido adequadamente.” Corolário: “Daqui se segue que há certas idéias ou noções comuns a todos os homens. Pois todos os corpos concordam em certas coisas, as quais devem ser percebidas por todos adequadamente, ou seja, clara e distintamente.” Proposição 39: “Daquilo que é comum e próprio do corpo humano e de certos corpos exteriores pelos quais o corpo pode ser afetado, e que se dá igualmente na parte e no todo de qualquer um deles, haverá também na alma uma idéia adequada.” Corolário: “Daqui se segue que a alma é tanto mais apta a perceber adequadamente muitas coisas, quanto mais coisas em comum tem seu corpo com outros corpos.”


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1. um esforço para selecionar e organizar os bons encontros, a saber, os encontros dos modos que se compõem conosco e inspira-nos paixões alegres (sentimentos que convêm com a razão); 2º) a percepção e compreensão das noções comuns, isto é, das relações que entram nessa composição, de onde se deduzem outras relações (raciocínio) e a partir das quais se experimentam novos sentimentos, desta vez ativos (sentimentos que nascem da razão). (Deleuze, 2002, p.100)

A noção comum não é uma noção comum a todos os espíritos. Pode até vir a sê-lo, secundariamente. Mas, primeiramente, é uma noção comum aos corpos: é “a representação de uma composição entre dois ou vários corpos, e de uma unidade dessa composição... ela exprime as relações de conveniência ou de composição dos corpos existentes...” Nada, entretanto, nessa idéia de noção comum, remete às ficções e abstrações do método geométrico (que ainda marcavam a visão de Espinosa no Tratado da correção do intelecto, 1658); seu sentido é mais biológico do que matemático; são generalidades, mas só referidas aos modos existentes... ... não são de modo algum fictícias ou abstratas: elas representam a composição das relações reais entre modos ou indivíduos existentes. Enquanto a geometria não capta senão relações in abstracto, as noções comuns permitem que captemos tais como são, isto é, tais como estão necessariamente encarnadas nos seres vivos, com os termos variáveis e concretos entre os quais se estabelecem. (Deleuze, 2002, p.101)

Interessa-nos, especialmente, compreender como se formam as noções comuns, o que Espinosa nos explica no início do famigerado livro 5. Vejamos a proposição 10: “Durante o tempo em que não somos atormentados pelos afetos que são contrários à nossa natureza, temos o poder de ordenar e encadear as afecções do corpo segundo uma ordem relativa ao entendimento.” Comentando esta proposição, Deleuze afirma que há duas idéias implícitas, que se ocultam no imenso hiato aberto entre a oração subordinada e a principal: a idéia de conveniência entre dois corpos e a idéia de noção comum: Entre a subordinada e a principal se evidencia uma falha imensa, um intervalo, pois os afectos contrários à nossa natureza nos impedem antes de tudo de formar noções comuns, já que eles dependem de corpos que desconvêm com o nosso; ao contrário, cada vez que um corpo convém com o nosso, e aumenta nossa potência (alegria), uma noção comum aos dois corpos pode ser formada, de onde decorrerão uma ordem e um encadeamento ativos das afecções. (Deleuze, 1997, p.169)

Essa seria, então, a condição básica, decisiva, determinante, para que uma noção comum possa se formar: a relação de conveniência entre os corpos. É a partir daí que uma noção comum pode se formar e sempre, em primeiro lugar, como uma compreensão interna e adequada das próprias razões de conveniência. Mas a formação das noções comuns também sempre se continua no sentido de noções cada vez mais gerais (não no sentido de mais abstratas, nem necessariamente mais universais, mas no sentido de mais compostas). É Deleuze, uma vez mais, que nos oferece uma sistematização inteligente dessa ordem de formação: As primeiras noções comuns são pois as menos gerais, as que representam

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algo de comum entre meu corpo e outro que me afeta de alegria e paixão; 2º) dessas noções comuns decorrem por sua vez afetos de alegria, que já não são paixões, porém alegrias ativas que vêm, por um lado, superar as primeiras paixões, e por outro substituí-las; 3º) essas primeiras noções comuns e os afetos ativos que delas dependem dão-nos força para formar noções comuns mais gerais, exprimindo o que há de comum, mesmo entre nosso corpo e corpos que não lhe convêm, que lhe são contrários ou o afetam de tristeza; 4º) e dessas novas noções comuns decorrem novos afetos de alegria ativa que vêm ultrapassar as tristezas e substituir as paixões nascidas da tristeza. (Deleuze, 2002, p.100)

Espinosa, partindo da potência imanente do ser de se conhecer15 , postula que nos modos de existência que são os corpos, o que há para se conhecer, em primeiro lugar, são as composições (relações de conveniência) que aumentam sua potência (de se conhecer). É através de afectos (paixões) de alegria e crescimento, que passamos dos signos às noções comuns e é ainda através de afectos aumentativos (embora não mais paixões, mas afectos ativos de alegria, afectos “que nascem da razão”16 ), que passamos para noções cada vez mais gerais, cada vez mais compostas. E assim procede a alma, de composição em composição, sempre seguindo os arranjos que aumentem sua potência, até alcançar um limiar em que até mesmo as composições “diminutivas” poderão ser consideradas. Essa ordem de formação das noções comuns nos revela que o pensamento, para Espinosa, se define por um particular construtivismo: construção de noções comuns, enquanto composição de “uma ordem e um encadeamento ativos das afecções”, uma ordem e um encadeamento livremente definidos pelo entendimento, que compreende “de dentro” as relações de conveniência entre os corpos, suas relações internas constitutivas, e não mais, como a imaginação, apenas as relações externas de um corpo sobre outro, enquanto seqüências associativas e generalizadoras de imagens instantâneas gravadas em nossa carne... E é por ser uma construção ou uma composição livremente definida pelo entendimento (nossa potência interna para pensar), que o pensamento também pode ser definido como criação. É importante, neste ponto, deixar um pouco mais clara a idéia de liberdade em Espinosa, idéia que não se encontra mais em oposição à idéia de necessidade, tal como se apresenta em toda a tradição filosófica clássica desde Aristóteles, que colocou a natureza do lado da necessidade eterna e a ação humana do lado da contingência. O pensamento judaico-cristão desloca para a própria ação de Deus essa concepção aristotélica de uma ação contingente, atribuindo-Lhe livre vontade. Espinosa se esforçou em demonstrar que essa imagem de Deus (à imagem e semelhança do homem) é tão ilusória quanto a própria imagem de um homem cuja liberdade se definiria pela vontade livre. A liberdade humana, para Espinosa, não é o livre-arbítrio, ela não se prova pela contingência de nossas ações. Na Ética, o filósofo demonstra que Deus age necessariamente, isto é, segundo as leis necessárias de sua potência, e é esta sua liberdade e sua perfeição – o poder de autodeterminar-se à ação –, e não a idéia imaginária de que Ele aja segundo uma vontade onipotente e um intelecto onisciente, o que faz da Criação um resultado caprichoso do “juízo de Deus”, que tanto poderia ser como não ser. Igualmente para o homem: a liberdade humana também é o

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Livro 5: Proposição 36: “O amor intelectual da alma por Deus é o mesmo amor com que Deus se ama a si mesmo, não enquanto Deus é infinito, mas na medida em que pode ser explicado através da essência da alma humana, considerada da perspectiva da eternidade, o que quer dizer que o amor intelectual da alma por Deus é uma parte do amor infinito com que Deus se ama a si mesmo.” Complexa, como quase todas as proposições do livro 5, esta proposição subverte completamente o discurso religioso. Espinosa fala em “amor intelectual” e afirma que “Deus se ama a si mesmo”, ou seja, Deus se conhece. Contudo, isso não significa uma autoconsciência da substância, o que Espinosa demonstrou ser impossível, visto que uma “autoconsciência” já seria um modo. Portanto, se Deus se conhece, essa “autoconsciência” não se dá no intellectus absolute infinitus, que é absolutamente impessoal e está para além de toda consciência, mas no único lugar do sistema modal do pensamento em que se dá a “reflexão” da realidade: o pensamento humano. É nos homens que Deus se ama e se conhece.

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16 Cabe destacar que, “em igualdade de condições”, é máximo o afecto que experimentamos em relação a alguma coisa que imaginamos livremente; muito maior do que em relação a coisas que a alma entende como necessárias (cf. proposições 5 e 6 do livro 5). Ou ainda, cf. proposição 7: “Os afectos que brotam da razão ou que são suscitados por ela são mais potentes que os que se referem a coisas singulares tomadas como ausentes.”


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Livro 2: Proposição 15: “A idéia que constitui o ser formal da alma humana não é simples, mas composta de muitíssimas idéias.” Demonstração: “A idéia que constitui o ser formal da alma é a idéia do corpo, o qual se compõe de muitíssimos indivíduos mui compostos. Pois bem: há necessariamente uma idéia em Deus de cada indivíduo composto de um corpo. Logo, a idéia do corpo humano está composta destas numerosíssimas idéias de suas partes componentes. Q.E.D.”

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poder de autodeterminar-se à ação ou, como diz Espinosa, o poder de ser a “causa adequada” de seus atos. Somos livres quando agimos segundo a necessidade de nossa natureza. A liberdade, para Espinosa, não se opõe à necessidade; ela é o conhecimento da necessidade. A liberdade é a força interior do corpo e da alma para produzir e acolher a multiplicidade simultânea de movimentos corporais, afectos e idéias. Ela não é simplesmente escolha, mas a autodeterminação necessária e a alegria de vida. É por isso que a Ética pode ser dita, ao mesmo tempo, uma ontologia do necessário e um tratado da liberdade humana. Uma ontologia do necessário contra uma “ontologia ou metafísica do possível”; uma liberdade que não é simplesmente “contingência ou livre-arbítrio”. A “metafísica do possível” é uma ontologia imaginária. Arriscaríamos dizer que, talvez, resulte, em última instância, dos efeitos imaginários de outrem: o nosso corpo finito percebe outrem como infinitamente diverso e imprevisível; outrem não é apenas um mundo possível, mas uma infinidade de mundos possíveis, entre os quais não podemos, num primeiro momento, estabelecer quaisquer relações, o que pode nos fazer crer que são contingentes e atribuir a outrem (e, conseqüentemente, nós) um livre-arbítrio. E não se trata apenas de um efeito imaginário, mas de um efeito moral, um signo imperativo: Escolha! Para Espinosa, entretanto, não se trata de dizer que não há escolhas (aliás, há várias a se fazer, guiadas pela razão), mas de que não é a escolha que dá substância à liberdade humana que, tanto quanto tudo que é, nada tem de contingente. A liberdade não é simplesmente poder escolher, mas só começa com as escolhas certas: ela só é atingida quando, graças à razão (ao conhecimento), fazemos as escolhas necessárias, aquelas que aumentam consistentemente nossa potência e alegria de vida. Fica mais claro, assim, o que pode significar essa idéia de uma composição criada, de uma construção livremente definida pelo entendimento. Mas, notemos, além disso, como esse caráter construído das noções comuns ressalta determinadas características dos modos de existência do atributo pensamento que prolongam características já examinadas dos modos de existência do atributo extensão – como que confirmando a consubstancialidade dos atributos. Vimos, assim, como o corpo, para Espinosa, é um indivíduo composto de “muitíssimos indivíduos (de diversa natureza), cada um dos quais é mui composto” e entra em composição com “muitíssimos outros corpos”. O mesmo se dá no caso da alma17 : as noções comuns (conhecimento adequado do corpo) também são fundamentalmente relações de composição cada vez mais compostas e o conhecimento adequado dessas relações. Como são constitutivamente relações de conveniência, esse conhecimento adequado corresponde, de fato, a um conhecimento das relações de afecto positivo e, conseqüentemente, ao conhecimento de nossos próprios afectos (o que é o primeiro conhecimento adequado que podemos ter dos corpos que nos causam alegria), portanto, um conhecimento afetivo e interior, um conhecimento vivo e encarnado. Essa liga afetiva conecta ao infinito os componentes de uma noção comum ou de um corpo, e estes entre si, formando indivíduos cada vez mais compostos, de tal modo que, tanto para a extensão como para o pensamento, tanto num plano ontológico quanto gnosiológico, as soluções efetivamente se encaminham no sentido da chamada “multiplicidade de fusão”: seja de indivíduos extensos (corpos e energias físicas) constituídos por relações de movimento e repouso, rapidez e lentidão; seja de indivíduos

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intensos (idéias e signos de todo tipo) constituídos por encadeamentos e nexos18. A Imaginação só capta a sombra de um corpo sobre outro; a luz é apenas refletida ou absorvida pelos corpos que fazem sombra. Já no caso da Razão, conhecimento de segundo gênero, a luz “torna os corpos transparentes ao revelar-lhe a ‘estrutura’ íntima (fabrica).” Não é mais só a projeção da sombra do objeto no nosso corpo, mas a luz revelando a fabrica intima como verdadeiro objeto, quando fabricamos uma noção comum, um conceito desse objeto. E o que constitui essa fabrica intima? Trata-se de... ... uma relação composta, de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que se estabelece entre as partes infinitamente pequenas de um corpo transparente. Como as partes vão sempre por infinidades maiores ou menores, em cada corpo há uma infinidade de relações que se compõem e se decompõem, de maneira que o corpo por sua vez penetra num corpo mais vasto, sob uma nova relação composta, ou, ao contrário, põe em evidência os corpos menores sob suas relações componentes... A estrutura é ritmo, isto é, encadeamento de figuras que compõem e decompõem suas relações... A estrutura tem vários corpos em comum e remete a um conceito de objeto, isto é, a uma noção comum. A estrutura ou o objeto é formado por dois corpos pelo menos, sendo cada um destes formado por dois ou mais corpos ao infinito, que se unem no outro sentido em corpos cada vez mais vastos e compostos, até o único objeto da Natureza inteira, estrutura infinitamente transformável e deformável, ritmo universal, Facies totius Naturae, modo infinito. (Deleuze, 1997, p.160)

Ora, por esse caminho rumo ao mais e mais composto, chega-se a mais geral das noções comuns, a que exprimiria o que há de mais comum entre todos os modos existentes: que eles estão em Deus e são produzidos por Deus. Contudo, essa noção ainda não chega a ser uma idéia adequada de Deus porque, mesmo o modo mais infinitamente infinito, todavia é modo e não substância. É nesse sentido que Espinosa diz que a própria idéia de Deus não pode ser em si mesma uma noção comum, porque uma noção comum só diz respeito aos modos existentes e, portanto, a algo que possa ser imaginado, o que, certamente, não se aplica à idéia de Deus. Para se chegar ao que Espinosa chama de idéia adequada ou intelecto de Deus – que, para além dos modos existentes, deve alcançar a essência de Deus –, devemos ascender ao conhecimento de terceiro gênero, que o filósofo também chama de “ciência intuitiva” ou “certeza intelectual”. Há, assim, um segundo limiar do conhecimento adequado, que nos transpõe para além da Razão. A Razão já é conhecimento adequado, mas... ... quando as noções comuns nos conduzem necessariamente à idéia de Deus, fazem-nos atingir um ponto em que tudo oscila e o terceiro gênero nos vai descobrir a correlação entre a essência de Deus e as essências singulares dos seres reais, com um novo sentido da idéia de Deus e de novos sentimentos constitutivos desse terceiro gênero. Não há pois ruptura do segundo ao terceiro gênero, mas passagem de uma vertente a outra da idéia de Deus: passamos para além da Razão como faculdade das noções comuns ou sistema das verdades eternas referido à existência, entramos no entendimento intuitivo como

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Livro 2: Proposição 15: “A idéia que constitui o ser formal da alma humana não é simples, mas composta de muitíssimas idéias.” Demonstração: “A idéia que constitui o ser formal da alma é a idéia do corpo, o qual se compõe de muitíssimos indivíduos mui compostos. Pois bem: há necessariamente uma idéia em Deus de cada indivíduo composto de um corpo. Logo, a idéia do corpo humano está composta destas numerosíssimas idéias de suas partes componentes. Q.E.D.”

18 Um primeiro componente desta idéia, por referência ao atributo extensão, se encontra na definição de corpo como um “indivíduo composto” que está no livro 2: “Quando certos corpos, de igual ou distinta magnitude, são compelidos pelos demais corpos de tal modo que se aplicam uns contra outros, ou então – se é que se movem com igual ou distinto grau de velocidade – de modo tal que comuniquem uns aos outros seus movimentos, segundo uma certa relação, diremos que estes corpos estão unidos entre si e que todos juntos compõem um só corpo, ou seja, um indivíduo que se distingue dos demais por meio da dita união de corpos” (Spinoza, 1998; p.133). Mas, é no escólio do lema 7, que encontramos o sentido plenamente ontológico da “multiplicidade de fusão”: “... um indivíduo composto pode ser afetado de muitas maneiras, conservando, não obstante, sua natureza. E até agora, concebemos um indivíduo que só se compõe de corpos, que só se distinguem entre si pelo movimento e o


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repouso, a rapidez e a lentidão, isto é, que se compõe de corpos mais simples. Se agora, concebemos outro, composto de vários indivíduos de distintas naturezas, acharemos que pode ser afetado de muitas outras maneiras, conservando, não obstante, sua natureza. Com efeito, suposto que cada uma de suas partes está composta de vários corpos, cada parte poderá, sem câmbio algum de sua natureza, mover-se mais lenta ou mais rapidamente, e, por conseguinte, comunicar seus movimentos às outras mais depressa ou mais devagar. Se concebemos, ademais, um terceiro gênero de indivíduos, composto de indivíduos de segundo gênero, acharemos que pode ser afetado de muitas outras maneiras, sem câmbio algum de sua forma. E se continuamos assim até o infinito, concebemos facilmente que toda a natureza é um único indivíduo, cujas partes – isto é, todos os corpos – variam de infinitas maneiras, sem câmbio algum do indivíduo total...” (pp.135-6)

sistema das verdades de essência (às vezes chamado consciência, visto que só aí as idéias se desdobram ou refletem em nós, tais como são em Deus, e nos fazem experimentar que somos eternos). (Deleuze, 2002, p.101-2)

Há ruptura entre o primeiro e segundo gênero de conhecimento: embora sejam certas paixões (idéias inadequadas) que nos induzam a formar noções comuns (idéias adequadas) e embora também estas últimas dependam de certas características da imaginação, há real ruptura entre os dois gêneros, separando o inadequado do adequado, substituindo os afectos passivos por afectos ativos. Já entre o segundo e o terceiro gênero, há apenas diferença de natureza, “passagem de uma vertente a outra da idéia de Deus”: ambos são conhecimentos adequados, só que as noções comuns se aplicam apenas aos modos existentes, enquanto o terceiro gênero é o conhecimento das verdades de essência. É no livro 5 que Espinosa trata do conhecimento de terceiro gênero. Embora a Ética seja basicamente conhecimento de segundo gênero, é para o terceiro gênero que convergem todos seus esforços, é a ele que se quer chegar, a que se deve chegar, aquele a que, o mais difícil e o mais raro, é se chegar. Não são mais signos ou afectos, nem conceitos ou noções comuns, mas “Essências ou Singularidades”: É o terceiro estado da luz. Não mais signos de sombra nem a luz como cor, mas a luz em si mesma e por si mesma. As noções comuns (conceitos) são reveladas pela luz que atravessa os corpos e os torna transparentes; elas remetem, pois, a figuras ou estruturas geométricas (fabrica), tanto mais vivas quanto são transformáveis e deformáveis num espaço projetivo... Mas as essências são de uma natureza inteiramente diferente: puras figuras de luz produzidas pelo Luminoso substancial (e não mais figuras geométricas reveladas pela luz)... são em si mesmas ‘contemplações’, isto é, contemplam tanto quanto são contempladas, numa unidade de Deus, do sujeito ou do objeto... As noções comuns remetem a relações de movimento e de repouso que constituem velocidades relativas; as essências, ao contrário, são velocidades absolutas que não compõem o espaço por projeção, mas o preenchem de uma só vez, num único golpe... São estas, contudo, as duas características das essências: velocidade absoluta e não mais relativa, figuras de luz e não mais figuras geométricas reveladas pela luz. A velocidade relativa é a das afecções e dos afectos: velocidade da ação de um corpo sobre outro no espaço, velocidade da passagem de um estado a outro na duração. O que as noções apreendem são relações entre velocidades relativas. Mas a velocidade absoluta é a maneira pela qual uma essência sobrevoa na eternidade seus afectos e suas afecções (velocidade de potência). (Deleuze, 1997, p.166-7)

Podemos, enfim, retornar a Robinson, após este largo recurso à filosofia de Espinosa. Acreditamos que os elementos de sua filosofia que foram abordados permitem uma compreensão adequada de diversos aspectos da aventura de Robinson, em especial, de como conseguiu alcançar a Grande Saúde. A bem dizer, é a filosofia espinosana que, em grande parte, nos inspira e oferece vários dos componentes do conceito de Grande Saúde que estamos propondo, partilhando uma enorme zona de indiscernibilidade

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conceitual com sua noção de “virtude suprema”, isto é, com sua Ética (parafraseando Deleuze & Guattari: o grande livro da Grande Saúde não seria a Ética?). Mas para se supor uma região em que conhecimento de terceiro gênero, vida ética e saúde sejam indiscerníveis, é preciso incluir a idéia, bastante espinosana e já afirmada no início deste texto, de que a filosofia é uma forma de vida, ou ainda, de que “os gêneros de conhecimento são modos de existência, porque o conhecer prolonga-se nos tipos de consciência e de afetos que lhe correspondem, de sorte que todo o poder de ser afetado seja necessariamente preenchido” (Deleuze, 2002, p.64). A ética do conceito Robinson sobreviveu à neurose e à psicose e conquistou um modo de viver na imanência. Com o desmoronamento da estrutura Outrem, Robinson teve que conquistar um modo de habitar nas malhas do caos. Essa foi a sua conquista da Grande Saúde e ela guarda semelhanças com as aventuras de conquista da arte, da ciência ou da filosofia: um modo de criar e criar-se a partir do caos. Robinson logrou habitar o caos, como o fazem os verdadeiros artistas, cientistas e filósofos, mas Robinson o logrou da maneira mais integral possível e, por isso, falamos aqui de uma Grande Saúde. Mesmo Espinosa, manifestamente, só o atingiu no nível da “potência da alma”19. Robinson o atingiu não apenas no plano de uma potência ou outra de seu ser, mas em sua integralidade, numa experiência de integração total de um homem (e depois outro homem) com a natureza de uma ilha deserta. No entanto, ainda não está inteiramente claro como e porque Robinson o conseguiu. Já sabemos que a experiência de desabamento da estrutura Outrem o coloca face a face com o plano de imanência do desejo, com a imagem verticalizada do mundo, o que potencialmente lança seu ser no oceano Caos; já sabemos também que não sucumbiu no oceano Caos, porque soube conservar para si um “pedaço de nova terra”. Mas isso ainda não é suficiente para explicar porque, como Robinson conseguiu. A circunstância concreta de isolamento numa ilha selvagem talvez explique porque sua aventura acabe sendo a de um envolvimento tão integral de seu ser (e não apenas da alma ou de uma de suas potências), que é o que, afinal, determina que o resultado de sua conquista seja a Grande Saúde (e não o resultado que poderia advir de conquistas realizadas num ou outro plano). Mas ela não é capaz, por si só, de explicar seu sucesso. O nosso entendimento é que Robinson alcançou a Grande Saúde, isto é, logrou viver a imanência do desejo, por dois motivos, um deles definitivo: o log-book e Sexta-Feira. Em última instância ou no limite, Robinson só conseguiu porque, mais tarde, surgiu um outro homem na ilha: Sexta-Feira. Sim, pois podemos conceber que, como o Corpo sem Órgãos, o Mundo sem Outrem também é um limite: não se chega totalmente a um CsO, como não se sobrevive até o fim a um MsO. No limite, Robinson só conseguiu porque, enfim, chegou outrem. Entretanto, pode-se dizer também que só conseguiu porque esse outrem que chegou não abalou sua trajetória rumo à Grande Saúde. Pelo contrário, deu-lhe um impulso ainda mais decisivo. Houvera sido outro

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Auto-retrato de Espinosa, em que ele se representa como Masaniello, um pescador que liderou a revolução popular de Nápoles.

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19 No prefácio do livro 5, em que trata da maneira de alcançar o conhecimento de terceiro gênero, ou seja, a liberdade, ou ainda, a felicidade, Espinosa esclarece: “De que maneira e por que método deva aperfeiçoar-se o entendimento e mediante que arte deva se cuidar do corpo a fim de que possa cumprir retamente suas funções, são questões que não pertencem a este lugar; o último concerne à Medicina, o primeiro, à Lógica. Aqui, tratarei somente da potência da alma, ou seja, da razão...” (Spinoza, 1998, p.383).


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“outrem” (um compatriota inglês, protestante, por exemplo) e é bem possível que a “velha” estrutura Outrem se restaurasse. Mas foi Sexta-Feira, este outro ser solar, quem veio terminar de parir esta Grande Saúde em Robinson, quem veio ajudar para que se completasse a metamorfose de Robinson em Sexta-Feira. Num momento em que a ilha já era coabitada por Sexta-Feira e, portanto, num momento em que seu isolamento já não era absoluto, mas que era, assim mesmo, um isolamento que se extremava num passo que ultrapassava duas décadas, Robinson escreve em seu log-book uma espécie de sumário dos vários momentos pelo qual passou até a chegada de Sexta-Feira, distinguindo com clareza o papel que este desempenha no avanço de sua metamorfose: Mas é certo que, flutuando numa solidão intolerável que só me dava a escolha entre a loucura e o suicídio, procurei instintivamente o ponto de apoio que o corpo social já não me fornecia. Ao mesmo tempo, as estruturas construídas e mantidas em mim pelo comércio dos meus semelhantes caíam em ruínas e desapareciam. Assim, por tentativas sucessivas, era levado a procurar a minha salvação na comunhão com os elementos, tornando-me eu próprio elementar. A terra de Speranza trouxe-me uma primeira solução durável e viável, ainda que imperfeita e perigosa. Depois surgiu inesperadamente Sexta-Feira e, subjugando-se na aparência ao meu reinado telúrico, destruiu-o com todas as suas forças. Havia, no entanto, um caminho de salvação, pois se Sexta-Feira tinha uma aversão absoluta à Terra, ele era, por nascença, tão elementar quanto eu o era por acaso. Sob sua influência, sob os golpes sucessivos que me desferiu, avancei na estrada de uma longa e lenta metamorfose. (Tournier, 1985, p.197)

Até que Sexta-Feira aparecesse, ainda a tempo para a “salvação final” de Robinson, o que sustentou, mesmo que de maneira precária, vacilante, oscilante, sua trajetória rumo à Grande Saúde, o que lhe permitiu fazer um CsO sem desaparecer num buraco negro da ilha, foi, segundo o próprio Robinson, a “terra de Speranza”. Em sua “comunhão com os elementos”, que fez com que ele mesmo se tornasse elementar, foi Speranza, como já dissemos, que representou seu “pedaço de nova terra”. Contudo, seguindo as lições de Espinosa, argumentamos que, se no mundo extenso foi Speranza que representou o seu “pedaço de nova terra”, no mundo intenso, sua “reterritorialização relativa” se deu pela via do conhecimento. Argumentamos que Robinson conseguiu sobreviver graças, fundamentalmente, ao conhecimento de suas afecções e de seus afectos, graças ao fato de jamais ter abandonado a prática de refletir sobre o que se passava consigo. Em outras palavras, à ética dos signos, Robinson soube agregar uma ética dos conceitos, e por isso – e somente por isso – pôde não apenas fazer para si um CsO, mas através dele, ou melhor, nele, alcançar a Grande Saúde, o que só se fez definitivamente possível com a chegada de Sexta-Feira. Essa nossa interpretação sobre o que sustenta o ânimo de Robinson até a chegada de Sexta-Feira, reverbera um aspecto do pensamento de Espinosa que costuma ser tratado como uma “implantação gnóstica” em sua filosofia: a “salvação” só pode ser definitivamente alcançada pelo conhecimento. Portanto, para os homens, o mais sólido pilar da “salvação” seria a potência

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de sua alma de formar idéias claras e distintas de seus afectos (que deixam, assim, de ser paixões), sem que esse conhecimento, no entanto, implique qualquer tipo de supressão dos afectos, mas sim, sua substituição progressiva por afectos ativos20 . Nesse sentido, é que podemos dizer que o caminho para a Grande Saúde passa por se fazer um CsO, mas apenas na medida em este se apresenta como o primeiro passo para se alcançar o conhecimento adequado. O caminho para a Grande Saúde passa pelo CsO, o que significa que passa pela descoberta do bom caminho para o desejo (quando este aprende qual é seu verdadeiro objeto), o que é o mesmo que alcançar a alegria imanente do desejo e experimentar um aumento das potências que seja capaz de nos conduzir ao conhecimento adequado das afecções e dos afectos. Em última instância, o caminho para a Grande Saúde depende do conhecimento adequado das afecções e dos afectos, simetricamente ao que está afirmado na proposição 28 do livro 5: “O esforço ou o desejo de conhecer as coisas segundo o terceiro gênero de conhecimento não pode surgir do primeiro, mas sim do segundo”. E Robinson não o teria conseguido, se tivesse mantido a face apenas voltada para o plano de imanência do desejo, o que certamente teria significado um mergulho irreversível no caos. Mas ele soube também voltar sua face para esta outra face, para essa autêntica fácies, na medida em que uma autêntica “superfície de expressão”: as páginas de seu diário. Foi ele, este pequeno e frágil artefato, que permitiu que Robinson preservasse a possibilidade de deflagrar a reflexão, mesmo quando esta já havia deixado de lhe ser “natural”. Desde muito cedo, no seu processo de transformação, ele começa a anotar suas reflexões no log-book e manterá este gesto (que contrai toda nossa potência “reflexiva” em sua própria instrumentalidade), mesmo numa fase já avançada de sua “desumanização”. É claro que o logbook pode ser visto apenas como um meio, o que por si só não garantiria nenhuma filosofia. Mas, um meio nunca é apenas um meio e, não raramente, ele é o meio, razão pela qual nunca deveríamos subestimar seu papel. É claro também que, depois que um meio viabilizou algo (que talvez nem fosse possível sem ele), aí sim, que esse meio realmente não interessa mais (e tanto mais não interessa, quanto melhor cumpriu seu papel), quando tão somente passa a interessar o que ele viabilizou. E o que viabilizou, para Robinson, escrever sobre o sentido de suas experiências? Viabilizou a Filosofia. A experiência radical do MsO combinada ao esforço de selecionar os melhores afectos – seleção efetuada não apenas em ato, mas também no ato de escrever sobre esses afectos, seleção que já é ato da Razão – conduziram Robinson à possibilidade de formar noções comuns e, no caso, noções comuns necessariamente novas, de tal forma a darem conta das novas ameaças de caos que se impunham pela ausência dos efeitos estruturantes de outrem. Entre as primeiras das novas noções compostas por Robinson, a própria noção de Outrem. Já sabemos que é a partir da estrutura Outrem – por uma espécie de “tomada de poder” dos modos de se estabelecer mundos possíveis e se regular as leis de transição entre os mundos – que se conformam os “mitos e instituições que permitem ao desejo tomar corpo”. Em sociedade, Robinson, “o mais positivo, o menos especulativo dos homens”, jamais se inclinaria a filosofar. Mas, na medida em que sua catástrofe de proporções biográficas o conduziu até os limbos do Caos, criar conceitos ou fazer filosofia, tornaram-se questões de vida ou morte... E Robinson soube criá-los: em parte, porque experimentou um grande

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20 Livro 5: Proposição 3 : “Um afecto que é uma paixão deixa de ser uma paixão, tão logo dele formamos uma idéia clara e distinta.” E, no escólio da proposição 4, afirma que: primeiro, “há que se notar que o apetite pelo qual se diz que o homem age e o apetite pelo qual se diz que o homem padece são um e o mesmo”; segundo, “todos os apetites ou desejos são paixões na medida em que brotam de idéias inadequadas e, são atribuíveis à virtude, quando suscitados ou engendrados por idéias adequadas”; portanto, “todos os desejos que nos determinam a fazer algo podem brotar tanto de idéias adequadas quanto inadequadas; e não há, sob nosso poder, um melhor remédio para os afectos: aquele que consiste no seu verdadeiro conhecimento, posto que a alma não tem outra potência que não seja a de pensar e formar idéias adequadas.”


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aumento das potências quando a libido passou a fluir para os elementos livres, para a natureza “liberada” da ilha; em parte, porque ao registrar essa experiência, passo a passo, em seu log-book, acabou por realizar um processo de autoconhecimento dos afectos, dos novos afectos que experimentava e, principalmente, das novas relações de conveniência que descobria – de resto, relações de conveniência com “corpos” até então desconhecidos, porque ocultados, encobertos, envelopados por Outrem. De um lado, ergue-se, fosforescente, com luz própria, o “duplo glorioso do mundo”; de outro, Robinson, com sua luz própria, ilumina as novas relações de composição que vivencia. Em suma, estão reunidas as condições supremas da criação filosófica. O que significa que, certamente, está presente o desejo de se conhecer as coisas em suas essências singulares ou segundo o terceiro gênero de conhecimento, ainda que, em nenhum momento do romance, a busca de um tal conhecimento, por si mesmo, se explicite como uma meta para Robinson. É que, no seu caso, essa busca se efetua enquanto a busca mais inclusiva e decisiva da Grande Saúde. É desse modo que podemos entender porque esse terceiro gênero de conhecimento não irrompe triunfal em Robinson, como prêmio pela conquista intelectual longamente trabalhada, mas vai se insinuando, pouco a pouco, de maneira quase involuntária, nas formas de seu entendimento, como uma sabedoria que vai se revelando insidiosamente, como novos afectos ativos de alegria (na verdade, “o maior contentamento possível da alma”), como “momentos de inocência”, que se manifestam, primeiramente, modificando sua percepção e seus afectos em relação à terra de Speranza e, depois, em relação ao homem Sexta-Feira, tal como podemos apreender numa certa altura de seus registros no log-book, quando escreve sobre... ... esses breves deslumbramentos que eu por vezes tinha e a que chamava, não sem intuição divinatória, ‘os meus momentos de inocência’. Parecia-me então entrever, durante um curto instante, uma outra ilha escondida sob o estaleiro de construção e a exploração agrícola com que eu cobrira Speranza. Essa outra Speranza, eis-me transportado agora nela, eis-me para sempre instalado num ‘momento de inocência’. Speranza já não é uma terra inculta que é preciso fazer frutificar. Sexta-Feira já não é um selvagem que é meu dever morigerar. Um e outra requerem toda minha atenção, uma atenção contemplativa, uma vigilância maravilhada, pois parece-me – não, tenho certeza – que os descubro pela primeira vez, a cada instante, e que nada ofusca a sua mágica novidade. (Tournier, 1985, p.192-3)

Insistimos, entretanto, que sempre nos parece insuficiente definir a experiência de Robinson como filosofia, pois, como já dissemos, ela implica uma tal integralidade, isto é, um envolvimento tão integral do ser de Robinson, que não podemos restringi-la às “potências da alma” ou a outra potência qualquer, mas só podemos concebê-la como comprometendo a totalidade de seu ser composto e componente de uma totalidade maior. Em suma, o que Robinson realmente experimenta são as condições supremas para se perfazer a Grande Saúde. Portanto, mais que filosofia ou, talvez, finalmente, a Filosofia: quando conhecimento das verdades de essência, vida ética e saúde coincidem. E quando coincidem, já não se trata mais apenas de uma “saúde adequada”, mas, de uma certa forma, “a passagem de uma vertente a outra da idéia” de saúde, quando a própria saúde é apreendida

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como verdade de essência, o que significa o conhecimento da própria essência da saúde, ou seja, para além dos planos modais, o que poderia ser propriamente entendido como uma Saúde da substância ou Saúde de Deus – sem que nenhum tipo de idéia “antropomorfizante” esteja contida nesta última expressão, assim como não há nenhum tipo de antropomorfização quando Espinosa fala em Intelecto de Deus. Basta lembrar a já discutida proposição em que afirma que Deus se ama e se conhece na alma humana (cf. nota 15). Da mesma forma que a “consciência” do Intelecto de Deus não se dá no intelectus absolute infinitus, tampouco a “consciência” da Saúde de Deus pode se dar como substância (que, ademais, só pode liberar uma idéia puramente positiva de saúde – uma Grande Saúde! –, pois que nada saberia limitá-la, em sua imanência absoluta). Então, similarmente, se há uma Saúde de Deus ou uma Saúde da substância, ela só pode ser atingida como “consciência” no homem, na medida em que se trata do único “lugar” no sistema modal da substância dotado de uma potência interna para pensar e, portanto, capaz de realizar os conhecimentos de segundo e terceiro gênero. O que aconteceu com Robinson, por acidente (mas, ao cabo, também por sua força própria), é o que pode haver de mais raro e mais difícil, assim como o mais raro e o mais difícil é que alguém se disponha, livremente, a trilhar tão árduo caminho. Porém... ... se a via que conduz a essa conquista parece mui árdua, é possível, entretanto, achá-la. E árduo certamente deve ser o que tão raramente se encontra. Com efeito: se a salvação estivesse ao alcance da mão e pudesse ser conseguida sem grande trabalho, como poderia suceder que quase todos a desdenhem? Mas, todo o excelso é tão difícil quanto raro. (Spinoza, 1998, p.428)

O Caminho lhes dá vida A Virtude as cria A espécie lhes dá forma O meio as acaba Também é unanimemente que todas as coisas Adoram o Caminho e veneram a Virtude Não que adorar o Caminho Venerar a Virtude Sejam deveres ditados: é inclinação natural Assim portanto é o Caminho que lhes dá a vida

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Lao-tsé, aquarela chinesa do século XVIII, Bibliothèque Nationale, Paris.

A Grande Saúde é o Tao O Tao é o Caminho, o bom caminho, o fortalecimento do conatus, a saúde do CsO. Para Lao-tsé, o velho filósofo – talvez, um contemporâneo de Confúcio (séculos VI-V a.C.), autor do célebre Tao-tê-king (O Caminho e sua virtude) – , o Tao (Caminho) é a origem de todas as coisas e de todos os seres do universo, o princípio cósmico imanente de toda existência humana e de toda atividade da natureza. O tê (virtude) é sua eficácia, sua virtus espontânea – e, nesse sentido, bem diferente da virtude confuciana, inteiramente submetida aos juízos e artifícios da civilização. É esse modo de vincular ontologia e ética, o que interessantemente aproxima o taoísmo e a filosofia espinosana. Para ambos, a sabedoria é o conhecimento do Tao e a virtude é o viver em conformidade com o Tao.


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É a Virtude que as cria Que as sustenta e as faz crescer Que as abriga e as conforta Que as alimenta e as protege. (Lao-tzeu, 1979, p.121)

A Grande Saúde é o Tao-tê: o Caminho e sua virtude. A Grande Saúde é a Ética. A felicidade é a virtude: essa virtus espontânea, que é a eficácia própria da substância, de seu esforço de perseverar em ser. Conforme a última proposição do livro 5: “A felicidade não é um prêmio que se outorga à virtude, mas é a própria virtude, e não gozamos dela porque reprimimos nossas concupiscências, mas, ao contrário, podemos reprimir nossas concupiscências porque dela gozamos.” Para Espinosa, o bom e o mau não são valores em si, nem correspondem a qualidades que existiriam nas próprias coisas. Bom é, simplesmente, tudo quanto aumente a força do conatus; mau, tudo quanto a diminua. Conforme já vimos, não desejamos algo porque é bom, mas é bom porque o desejamos. É por isso que Espinosa pode afirmar na belíssima proposição 21 do livro 4: “Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e bem viver que não deseje ao mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em ato”. E na proposição seguinte diz textualmente: “Não se pode conceber nenhuma virtude anterior ao esforço de se conservar”. Em outras palavras, para Espinosa, a virtude é o conatus. Em sua Ética, virtude não tem o sentido moral de adequação a um modelo, mas o sentido originalmente dado em seu étimo latino de uma “força interna”, de “robustez, vigor” (virtus deriva de vis, “força, poder, influência”). Acreditamos que, pelo que foi exposto até aqui, já está inteiramente claro que é em torno da idéia de fortalecimento do conatus (Tao) que se constitui a zona de indiscernibilidade conceitual entre conhecimento da verdade, vida ética e saúde. Para Espinosa, há não apenas uma alegria, mas também uma liberdade e uma verdade imanentes do desejo. Grande Saúde = Verdade, Liberdade, Felicidade. A Ética, para Espinosa, enquanto vivência da felicidade, da liberdade e da verdade, decorre do conhecimento da “causa absoluta do real”, que é a “substância infinitamente infinita” e o “bem verdadeiro”. A Grande Saúde (ou a Ética) decorre do desejo de conhecer e compartilhar com os outros, o “bem imperecível capaz de se comunicar igualmente a todos”. Já vimos, e de diversas formas, como o fortalecimento do conatus está estreitamente relacionado ao encontro do desejo com esse “bem verdadeiro”, o que significa sempre um aumento de nossa potência interna de formar “idéias adequadas”, o que é, afinal, o mesmo que a “adequação” de nossos afectos ativos, em termos de sentimentos e de ações, incluindo tanto o modo como afetamos (e nos afetamos), quanto o modo pelo qual somos afetados pelo mundo. Pois, como também já dissemos, citando Deleuze, “o conhecer prolonga-se nos tipos de consciência e de afetos que lhe correspondem, de sorte que todo o poder de ser afetado seja necessariamente preenchido”. Se tudo depende de desejarmos o “bem verdadeiro”, então, a grande questão, ou a passagem em que realmente tudo se decide, deve ser mesmo a da “seleção dos afectos”, isto é, das idéias e dos corpos que convêm com o

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nosso. Não há dúvida de que, em boa medida, a Grande Saúde (ou a Ética) depende da maneira como, ao interiorizarmos a causalidade, passamos a nos relacionar com as coisas e as forças externas. Depende da maneira como, ao entrarmos na posse da potência que permite a seleção dos afectos de alegria, nos conduzimos ao encontro com o verdadeiro objeto do desejo, “o bem imperecível capaz de se comunicar igualmente a todos”. É nesse sentido que podemos entender a postulação espinosana de que o desejar (nossa alegria imanente e nossa potência de agir e pensar) depende inteiramente da qualidade do desejado, de “que toda nossa infelicidade e toda a nossa felicidade dependem da qualidade do ser ao qual nos unimos por amor” (Espinosa, no Tratado da correção do intelecto, citado por Chauí, 1995, p.38). Vemos, então, que há duas questões claramente destacadas no pensamento de Espinosa: a identidade da virtude com o fortalecimento do desejo e a dependência da força do desejo da qualidade do desejado. O filósofo nos oferece uma síntese eloqüente, aproximando essas duas questões, no escólio da proposição 18 do livro 4: ... Como a razão não exige nada que seja contrário à natureza, exige, por conseguinte, que cada qual se ame a si mesmo, busque sua utilidade própria – o que realmente lhe seja útil –, apeteça tudo aquilo que conduza realmente o homem a uma perfeição maior, e, em termos absolutos, que cada um se esforce, do modo que estiver a seu alcance, para conservar seu ser... Supondo-se, ademais, que a virtude não é outra coisa senão atuar segundo as leis da própria natureza, e que ninguém se esforça em conservar seu ser senão em virtude das leis de sua própria natureza, daí se segue: primeiro, que o fundamento da virtude é o esforço mesmo de conservar o ser próprio, e a felicidade consiste no fato de que o homem saiba conservar seu ser. Segue-se também, segundo: que a virtude deve ser apetecida por si mesma, e que não devemos apetecê-la por obra de outra causa mais excelente ou útil para nós do que a própria virtude. Segue-se, por último, terceiro: que os que se suicidam são de ânimo impotente e estão completamente derrotados por causas exteriores que repugnam a sua natureza. Ademais, segue-se, que não podemos prescindir de tudo que nos é externo para conservar nosso ser, e que não podemos viver sem ter algum comércio com as coisas que estão fora de nós... Assim, pois, há muitas coisas fora de nós que nos são úteis e que, por isso, hão de ser apetecidas. E entre estas, as mais excelentes são as que concordam por completo com nossa natureza. Com efeito: se, por exemplo, dois indivíduos que têm uma natureza inteiramente igual se unem entre si, compõem um indivíduo duplamente mais potente do que cada um deles em separado. E assim, nada é mais útil ao homem que o homem; quero dizer que nada podem desejar, os homens, que seja melhor para a conservação de seu ser que o concordar todos em todas as coisas, de sorte que as almas de todos formem como que uma única alma e seus corpos como que um só corpo, esforçando-se todos, ao mesmo tempo, o quanto puderem, em conservar seu ser, e buscando todos a uma comum utilidade21; de onde se segue que os homens que se governam pela razão, isto é, os homens que buscam a utilidade guiados pela razão, não apetecem para si nada que não desejem para os demais homens e, por isso, são justos, dignos de confiança e honestos. (Spinoza, 1998, p.306-8)

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21 Nesse ponto, encontramos a melhor intersecção das idéias aqui trabalhadas com o pensamento político de Espinosa. Fica fácil entender porque, para Espinosa, o bem comum não é a finalidade da política, mas o eventual efeito de uma política adequada aos interesses e aos costumes dos cidadãos que a instituíram: “diferentemente de Hobbes, Espinosa recusa tanto a idéia de contrato social quanto de alienação do direito natural no direito civil. De fato, quando os homens, em estado de Natureza, descobrem as vantagens de unir forças para a vida em comum, não fazem pactos nem contratos, mas formam a multidão ou a massa como algo novo: o sujeito político. A massa, constituindo um sujeito único, cria um indivíduo coletivo cujo conatus é mais forte e superior ao de cada um dos indivíduos isolados. Esse conatus coletivo é o soberano ou o Estado civil. Dessa maneira, ninguém transfere a um outro o direito e o poder para governá-lo, mas cada um e todos conservam, aumentando, o direito natural, agora transformado em direito civil e Estado” (Chauí, 1995; p.76). “Assim como a liberdade individual exprime a força do corpo e da alma enquanto causas adequadas de suas afecções, afetos e idéias, assim também a liberdade política só se realiza quando o direito civil (as leis) e o Estado (as instituições de governo) fortalecem o conatus coletivo, em lugar de enfraquecê-lo e subjugá-lo no medo, na ilusão supersticiosa e nas promessas de recompensas numa vida celeste futura para os ofendidos e humilhados nesta vida” (Chauí, 1995, p.78-9).


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No dia em que a tripulação da escuna de bandeira inglesa Whitebird desembarcou em Speranza, a permanência de Robinson na ilha contabilizava exatamente vinte e oito anos, dois meses e dezenove dias. O comandante William Hunter, num primeiro momento intrigado com o surpreendente personagem e “seu serviçal mestiço”, convida Robinson para uma visita à embarcação, onde lhe oferece um almoço e pede para que seu imediato lhe apresente os últimos avanços da tecnologia naval. Tão logo saltou para a ponte do Whitebird, Robinson foi invadido por “uma certa tristeza, tanto mais quanto sentia crescer nele um movimento de oposição a este universo para o qual o arrastavam, parecia-lhe, contra a vontade”... Robinson almoçou com o comandante e o imediato... Não precisou se esforçar para alimentar a conversa. Os seus hospedeiros pareciam ter admitido, de uma vez para sempre, que ele tinha tudo a aprender com eles e nada a revelar de si e Sexta-Feira, e Robinson acomodava-se perfeitamente a esta convenção que lhe permitia observar e meditar à vontade. A bem dizer, era verdade, num certo sentido, que tinha tudo a aprender, tudo a assimilar, a digerir, mas o que ouvia era tão pesado e indigesto como as terrinas e as carnes ensopadas que desfilavam no prato, e seria de temer que um reflexo de recusa o fizesse vomitar em bloco o mundo e os costumes que, aos poucos, ia descobrindo. No entanto, o que mais lhe repugnava não era tanto a brutalidade, o ódio e a ganância que estes homens civilizados e altamente honoráveis demonstravam com inocente tranqüilidade. Ficava sempre a possibilidade de imaginar – e sem dúvida seria fácil encontrar – outros homens que, no lugar destes, fossem amáveis, indulgentes e generosos. Para Robinson, o mal era bem mais profundo. No seu íntimo, reconhecia-o na irremediável relatividade dos fins que os via a todos perseguir febrilmente. Pois o que todos tinham como objetivo era tal aquisição, tal riqueza, tal satisfação, mas porque esta aquisição, esta riqueza, esta satisfação? Decerto ninguém saberia dizê-lo. E Robinson imaginava, sem cessar, o diálogo que certamente acabaria por o confrontar com um destes homens, o comandante por exemplo. ‘Por que vives tu?’, perguntar-lhe-ia. Hunter, evidentemente, não saberia o que responder, e o seu único recurso seria devolver a pergunta ao Solitário. Então Robinson mostrar-lhe-ia com a mão esquerda a terra de Speranza, enquanto levantaria a direita para o Sol. Após um momento de espanto, o comandante rebentaria a rir, riso de loucura perante a sabedoria, pois como poderia ele conceber que o Astro Maior é alguma coisa mais que uma chama gigantesca, que nele houvesse espírito e poder para irradiar de eternidade os seres que soubessem abrir-se a ele? (Tournier, 1985, p.211-2)

Robinson-solar descobriu o “bem imperecível capaz de se comunicar igualmente a todos”. Em sua Grande Saúde, observa aqueles homens, com os quais já se assemelhou, e distingue meridianamente este “traço deplorável do espírito ocidental” que é sempre referir seu desejo a fins exteriores e relativos: “bens perecíveis”, cujo valor se funda justamente em se extraírem ao compartilhamento, o que, para Espinosa, jamais poderá trazer a felicidade, pois a inveja e a cobiça que a posse exclusiva de tal bem atrairá, não permitirá que seu possuidor tenha paz e tranqüilidade. Por isso, os homens que buscam a utilidade guiados pela razão, só desejam para si o que pode ser compartilhado

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pelos demais homens. O Astro Maior e a Terra são certamente “bens imperecíveis capazes de se comunicar igualmente a todos” e, se Robinson chegou a descobri-lo, foi graças ao conhecimento, este outro “bem imperecível...” Quando os homens, como Robinson, passam a se guiar pelo conhecimento, já não desejam nada mais para si que não possa ser igualmente desejado e compartilhado por outros homens. E nada desejam mais do que o conhecimento. Com o intuito de oferecer uma síntese esquemática dos encadeamentos e nexos aqui estabelecidos, selecionamos as seguintes proposições do Livro 4: Proposição 24: “Em nós, atuar absolutamente segundo a virtude não é outra coisa senão agir, viver ou conservar seu ser (estas três coisas significam a mesma coisa), guiados pela razão; pondo como fundamento a busca da própria utilidade.” Proposição 26: “Todo esforço que realizamos segundo a razão não é outra coisa senão conhecimento, e a alma, na medida em que usa a razão, não julga útil senão o que a leva ao conhecimento.” Proposição 33: “Os homens podem diferir em natureza, na medida em que sofrem afectos que são paixões; e, nessa mesma medida, um mesmo homem é volúvel e inconstante.” Proposição 34: “Na medida em que os homens sofrem afectos que são paixões, podem ser contrários entre si.” Proposição 35: “Os homens só concordam sempre necessariamente em natureza, na medida em que vivem guiados pela razão.” Proposição 36: “O supremo bem dos que seguem a virtude é comum a todos e todos podem gozar dele igualmente.” Demonstração: Agir segundo a virtude é agir guiado pela razão, e todo esforço realizado por nós, segundo a razão, é conhecimento, e, desta sorte, o supremo bem dos que seguem a virtude consiste em conhecer a Deus, isto é, um bem que é comum a todos os homens e que pode ser possuído igualmente por todos os homens, enquanto são da mesma natureza. Q.E.D. Escólio: ... o fato de que o supremo bem do homem seja comum a todos, não nasce de um acidente, senão da natureza mesma da razão, pois isso se deduz, indubitavelmente, da própria essência humana, enquanto definida pela razão, e o homem não poderia ser, nem se conceber, se não tivesse a potência de gozar deste supremo bem. Assim, pois, é próprio da essência da alma humana ter um conhecimento adequado da eterna e infinita essência de Deus.”

A medicina espinosana De um ponto de vista espinosano, a mais alta missão da medicina deve ser a de criar, para os corpos e as almas, as melhores condições para que se amplie a potência humana de perfazer a verdade, a liberdade e a felicidade, alcançando, assim, a Grande Saúde (ou a Ética). E, se ela pode cumprir tal missão, é porque os meios que mobiliza tomam parte em nossas possibilidades e qualidades de ser-existir-agir, aumentando ou diminuindo, de forma significativa, nossas chances de chegar ao conhecimento do necessário. A medicina espinosana é a medicina do CsO e para o médico espinosano, em sua teoria e sua prática, os problemas de saúde se colocam em dois grandes planos articulados: num primeiro, o maior problema de saúde da humanidade é a inapetência ou a diminuição das potências e da alegria de viver, cuja expressão mais eloqüente e atual é, sem dúvida, a verdadeira epidemia de quadros depressivos que flagela as sociedades modernas – as quais reconhecemos como sociedades permanente e intensivamente irradiadas pelos mais diversos signos de diminuição de potência, que nos são, entretanto, muitos deles, oferecidos

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22 Por biotecnomedicina, designamos a forma hegemônica da medicina contemporânea, herdeira legítima da medicina positiva e experimental do século XIX e primeira metade do século XX, e que vem se constituindo, mais recentemente, no cenário particularmente “espetacularizado” da tecnociência de ponta. Trata-se, de fato, de um prolongamento extrovertido da iatromecânica, que estabelece, com esse prolongamento, uma particular “continuidade” de elementos conectados – que vão desde componentes biomoleculares, até compostos tecnomolares –, e que constitui o único e mesmo objeto desta medicina: uma única e mesma fabrica intima relacionando componentes descontínuos, distribuídos num mesmo espaço de representação. Uma multiplicidade conectada de componentes mecânicos, homogêneos e quantitativos, em tudo distinta do continuum que se estabelece na duração, quando não são mais ligações mecânicas, mas forças intensivas que conectam (ou não) seus componentes, formando uma multiplicidade conectada de “estados” qualitativamente heterogêneos.

como promessas de salvação, mas que, na realidade, são só novas servidões, alegrias sem consistência, incapazes de nos conduzir a uma autodeterminação positiva de nossas potências (nesse plano, o que tem realmente importância, para a medicina espinosana, é o conhecimento dos signos vetoriais); num segundo plano, colocam-se os problemas (cujo enfrentamento pressupõe uma saúde mínima no primeiro plano) relacionados à qualidade do desejado, o que, em nosso entender, é praticamente um problema “ambiental” (e, nesse plano, o que importa é o conhecimento dos signos escalares). Cremos que tenha ficado claro, na forma como expusemos o pensamento de Espinosa, que estes dois planos estão inteiramente relacionados, são mesmo inseparáveis e sua separação é meramente esquemática, prestando-se apenas para ressaltar duas dimensões do mesmo processo. E qual é esse processo, que faz uma unidade destas duas dimensões (fortalecimento do desejo e qualidade do desejado)? O processo de “seleção dos afectos”. A grande questão para a medicina espinosana, afinal, é: quais os afectos que efetivamente aumentam nossa potência, quais os afectos de alegria consistente? Como já vimos, a questão é das mais complexas, pois os signos são terrivelmente confusos e misturados. E, ao longo da história humana, jamais faltaram aqueles (déspotas e sacerdotes!) prontos para nos impor signos de tristeza, como se se tratassem da própria alegria, para nos propor um caminho de salvação fundado na tristeza e na diminuição de potência, um caminho de libertação que só pode ser uma nova forma de servidão. Para Espinosa (assim como, mais tarde, para Nietzsche), foram os déspotas e os sacerdotes do judaísmo e do cristianismo que desempenharam, emblematicamente, este papel na história do Ocidente. Postulamos que, contemporaneamente, é a chamada biomedicina ou biotecnomedicina22 que desempenha, em boa parte, este papel outrora desempenhado pelas religiões: impor signos de tristeza como se fossem o caminho para a felicidade ou a própria felicidade, novas “servidões” como se fossem “libertações”. Por exemplo, todas as preocupações que passam a reger uma vida orientada pela noção de risco (pela possibilidade de que determinados corpos não convenham com o nosso), tal como é proposta pelas principais práticas atuais de medicina preventiva, promovem, do ponto de vista espinosano, servidões diminutivas (como são os afectos de medo), que podem, entretanto, se transformar em potências apenas fracamente aumentativas (como são os afectos de esperança), na dependência de uma salvação que só poderá ser obtida por suas próprias promessas biotecnológicas: toda diminuição de potência promovida pelo conhecimento dos riscos que nos ameaçam e nos rondam constantemente (e cujo caráter “totalitário” fica tanto mais evidente quando nos damos conta de que várias destas condições de risco dizem respeito a aspectos de nossa vida “normal”), só pode ser recuperada através dos objetos de salvação da própria medicina. Inventa o pecado e inventa a salvação do pecado. Ou, mais propriamente, inventa a salvação, que inventa o pecado. Sob este ponto de vista, indiscutivelmente, há uma concorrência histórica da tecnociência moderna com as religiões monoteístas tradicionais, que vem se resolvendo numa relativa complementaridade (que, talvez, apenas prepare o caminho para uma total confluência), ambas instaurando, em termos deleuzeanos, “o culto da tristeza, da servidão ou da impotência, da morte. Não param de emitir e impor signos de tristeza, que apresentam como ideais e alegrias às almas que eles mesmos tornaram enfermas”. E

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exatamente por que é a medicina em sua versão biotecnológica que desempenha este papel, hoje em dia, que se torna importante advertir que, quando falamos numa medicina espinosana, não queremos, de modo algum, nos referir a mais um tipo de “juiz da vida”, a um outro modo de se exercer esse papel de “juiz da vida”. Não se trata mais de “impor signos”, sejam eles quais forem, uma vez que, apenas por serem signos impostos, já são “diminutivos”. No mínimo, não são capazes de conduzir à verdadeira “libertação” do estado de padecimento, já que apenas representa a submissão do paciente a uma outra causalidade externa: a de suas práticas de salvação. Se há um possível médico espinosano, que não se pretende mais um “juiz da vida”, qual seria, então, seu papel junto àquele que padece? Sendo a principal questão, sempre, a da “seleção dos afectos” (e, em última instância, a do aumento das potências), é nesse processo que o médico espinosano deverá tomar parte. Mas o seu papel não é o daquele que já descobriu, de uma vez por todas, quais são os verdadeiros afectos “aumentativos” e, por isso, pode impô-los, “salvificamente” e sem maiores objeções morais, a seus pacientes. O seu papel deve ser participar deste processo como quem participa de um conflito, de uma disputa, sempre em aberto, não decidida. Deve ter claro também que, mesmo quando participa deste processo junto a um paciente individual, se trata sempre, mais que tudo, de um problema supraindividual. Não é para cada um, individualmente, que este problema da “seleção dos afectos” não está resolvido (nem tampouco para a humanidade que, para este tipo de problema, se constitui numa abstração vazia), mas para os grandes conjuntos humanos, com seus planos coletivos de felicidade. Sua solução não pode resultar apenas de uma ação reflexiva operada sobre si mesmo, pois as formas culturais e societárias podem ser sempre consideradas como uma solução já dada a respeito de quais são os autênticos afectos de alegria e potência. E é nesse sentido que se pode dizer que a medicina espinosana é uma espécie de “Saúde Pública” ou, pelo menos, de “medicina coletiva” ou “do coletivo” 23 . Já dissemos acima que ela, de uma certa forma, tem diante de si um problema “ambiental” e, deste ponto de vista, ela só pode ser uma “medicina ambiental”. Mesmo quando é “medicina do corpo”, ela continua a ser uma “medicina ambiental”, já que o corpo pode ser visto, conectadamente, como uma “região” deste “ambiente”. A medicina espinosana, quando é “medicina do corpo” continua a ser uma “medicina ambiental”, só que da “região” mais sensível deste “ambiente”, a “região” mais decisiva para a “saúde ambiental”. E por que? Simplesmente porque é nessa “região” do CsO que Deus se conhece e se ama, porque só aí pode se dar a “consciência” na/da substância infinitamente infinita, a “consciência” da Saúde substancial. Um “estado de corpo” é sempre um “estado de mundo”, e nossa alma (onde Deus se ama e se conhece) sempre sabe, mais que tudo, da vida de seu próprio objeto, da vida de seu próprio corpo. Em outras palavras, mesmo que ela saiba dos “estados de corpo” enquanto conhecimento dos “estados de mundo”, ela sempre sabe melhor (porque apenas sabe por meio) dessa “região” do mundo que é seu corpo, já que é nele que se projetam os “signos escalares”, já que é ele o “instrumento de medida” – o métron do mundo, embora não no sentido de “medida do mundo” e, sim, de lugar onde o mundo se mede. Temos, em suma, que as modificações nos corpos exteriores, as modificações no mundo, afetam fortemente e determinam os “estados de corpo”, mas estes sempre nos informam muito mais do próprio corpo e, por isso, as modificações que se dão no corpo são ainda mais fortemente capazes de alterar nossas

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23 Aproximamo-nos, uma vez mais, das concepções nietzscheanas, que definem duplamente o filósofo: como um médico da alma (curando-a do niilismo pela afirmação de uma auto-superação e uma auto-perfeição contínua e criativa) e como um médico da cultura (desafiando os princípios prevalentes e forçando a sociedade e seus indivíduos a reconhecer e incorporar anomalias a sua própria Weltanschauung), conforme breve sistematização oferecida por Tauber (2001).


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percepções e sensações (bem como nossas possibilidades de ação), ou seja, o modo como somos afetados pelo mundo (e o afetamos). Retomando a proposição 16 do livro 2 (nota 21), poderíamos agregar um terceiro corolário: se modificamos a constituição de nosso próprio corpo, também, certamente, modificamos as idéias de nossas afecções (as características dos “signos escalares”), já que elas nos informam muito mais da natureza de nosso próprio corpo de que dos corpos exteriores. Acrescentaríamos ainda que uma modificação corporal compromete, imediatamente, a formação dos chamados signos físico-sensíveis e abstrativos e, um pouco mais mediadamente, a formação dos signos imperativos e interpretativos (mais mediada, por exemplo, pelo “corpo social”, que estabelece os modos de produção e distribuição dos meios de modificação corporal). Em outras palavras, os símbolos morais e os ídolos metafísicos, os chamados efeitos morais e imaginários, estão mais ordinariamente implicados nos planos coletivos de felicidade de um dado conjunto humano. Em síntese, a grande questão para a medicina espinosana é realmente a da “seleção dos afectos”, que se apresenta, esquematicamente, em dois planos: o da seleção dos “signos escalares” (perspectiva que a faz uma “medicina ambiental”) e o da seleção dos “signos vetoriais aumentativos” (perspectiva que detém, afinal, o objetivo último desta medicina, qual seja: promover o aumento das potências que conduza ao conhecimento da verdade, da liberdade e da felicidade). E se o médico espinosano não é mais uma reedição da velha figura do sacerdote, qual mesmo seu papel junto ao paciente? Talvez, a melhor maneira de cumprir seu papel, seja praticando uma espécie de “maiêutica da alegria”, seja ajudando a parir a Grande Saúde em seus pacientes, que deixam, assim, de ser pacientes, entrando na posse de suas potências... Ele deve ser um facilitador no nosso processo de busca do que realmente precisamos para ser felizes, e um crítico amigo das soluções ilusórias a que vamos nos apegando pelo caminho. Apesar de sua experiência e sabedoria, ou melhor, por causa delas, o médico espinosano não é aquele que traz a resposta, é aquele que não nos deixa esquecer da pergunta: quais, realmente, os corpos e as idéias que nos convêm, quais os afectos de autêntica alegria? Como estes questionamentos dizem respeito, de fato, a intensas lutas passionais e coletivas, a missão do médico espinosano deve ser, em primeiro lugar, garantir as condições para que estes violentos conflitos sejam os menos sangrentos e dolorosos possíveis, permitindo sempre que “alguma alegria seja salva”. Sua arma principal: o conhecimento (dos afectos, das paixões). Mas, ainda que o conhecimento possa ser o melhor “remédio”, a medicina espinosana não perde de vista que o verdadeiro pilar de nossa “salvação” é realmente a alegria (já que apenas ela nos dá potência suficiente para conhecer). Referências CHAUÍ, M. S. Espinosa, uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. COUTO, M. Terra sonâmbula. Lisboa: Caminho, 1992. DELEUZE, G. Spinoza e as três “Éticas”. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. p.156-70. DELEUZE, G. Michel Tournier e o mundo sem outrem In: DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. p.311-30.

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DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. DELEUZE, G., GUATTARI, F. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992. DELEUZE, G., GUATTARI, F. Introdução: Rizoma. In: DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995a. v.1, p.11-37. DELEUZE, G., GUATTARI, F. 10.000 a.C.: a geologia da moral (Quem a Terra pensa que é?). In: DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995b. v.1, p.53-91. DELEUZE, G., GUATTARI, F. 28 de novembro de 1947: como criar para si um Corpo sem Órgãos. In: DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. v.3, p.9-29. LAO-TZEU La voie et sa vertu: Tao-tê-king. Paris: Seuil, 1979. SPINOZA, B. Ética. Madrid: Alianza Editorial, 1998. TAUBER, A. I. Le rôle de Nietzsche dans l’élaboration de l’utopie médicale. In: SFEZ, L. (Org.) L’utopie de la santé parfaite: colloque de Cerisy. Paris: PUF, 2001. p.9-29. TOURNIER, M. Sexta-Feira ou os limbos do Pacífico. São Paulo: Difel, 1985.

TEIXEIRA, R. R. La Gran Salud: una introducción a la medicina del Cuerpos sin Organos, Interface – Comunic., Saude, Educ., v.8, n.14, p.35-72, set.2003-fev.2004. Partiendo de la Ética de Espinosa y, especialmente, de las lecturas de su filosofía practicadas por Deleuze & Guattari, proponemos el concepto referencial de Gran Salud y esbozamos lo que podría ser la medicina referenciada en esa concepción. Otro concepto propuesto es el de Cuerpo sin Órganos, para sustentar el plano en que se experimenta la Gran Salud: plano de intensidades vivido como variación continua de las potencias, del apetito, del deseo. Esa lectura deleuzeana de Espinosa nos permite entrever las bases de una hipotética medicina espinosiana, con su Fisiología del Cuerpo sin Órganos, su “patología”, aquí entendida como Afectología, su “ciencia de las señales y síntomas” o Semiótica y lo que sería su “terapéutica” orientada por el ideal de la Gran Salud. PALABRAS CLAVE: Salud; Filosofía; Ética.

Recebido para publicação em 17/12/03. Aprovado para publicação em 05/02/04.

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Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde*

José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres 1

AYRES, J. R. C. M. Care and reconstruction in healthcare practices, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.73-92, set.2003-fev.2004.

In recent years, we have witnessed the appearance of a series of new lines of discourse in the field of public health, both globally and domestically, such as health promotion, health vigilance, family health and vulnerability reduction, among others. However, it seems to us that a true consolidation of these proposals and their consequent development depends on fairly radical transformation of our way of thinking about and providing healthcare, especially with regard to its assumptions and its underlying philosophical principles. We would like to bring these thoughts to the debate as a theoretical deconstruction, with a view to contributing to the reconstruction that is underway in healthcare practices. Thus, care is examined from three conceptual points of view: as an ontological category, as a genealogical category and as a critical category. Hermeneutics applied to the interface of these three points of view allows one to indicate directions that may yield a productive effort of healthcare practice reconstruction: an active movement of the professionals and healthcare services toward actively acknowledging the presence of another party in the arena of care, the optimization and diversification of the forms and quality of the “I-Other” interaction in this arena and the enrichment of the horizons of healthcare knowledge and performance from a decidedly interdisciplinary and intersectorial perspective. KEY WORDS: Health promotion; public health practice. Assistimos em tempos recentes à emergência de uma série de novos discursos no campo da saúde pública, mundial e nacionalmente, tais como a promoção da saúde, vigilância da saúde, saúde da família, redução de vulnerabilidade, entre outros. Contudo, uma efetiva consolidação dessas propostas e seu mais conseqüente desenvolvimento parece-nos depender de transformações bastante radicais no nosso modo de pensar e fazer saúde, especialmente em seus pressupostos e fundamentos filosóficos. É na condição de uma desconstrução teórica, com vistas a contribuir para a reconstrução em curso nas práticas de saúde, que se quer trazer ao debate a presente reflexão. Nesse sentido, examina-se o cuidado sob três perspectivas conceituais: como categoria ontológica, como categoria genealógica e como categoria crítica. A hermenêutica realizada na interface dessas três perspectivas permite apontar direções onde parece produtivo um esforço de reconstrução das práticas de saúde: um ativo movimento de profissionais e serviços de saúde no sentido de se voltarem ativamente à presença do outro no espaço assistencial, a otimização e diversificação das formas e qualidade da interação eu-outro nesses espaços e o enriquecimento dos horizontes de saberes e fazeres em saúde numa perspectiva decididamente interdisciplinar e intersetorial. PALAVRAS-CHAVE: Promoção da saúde; prática de saúde pública.

* Trabalho apresentado ao VII Congreso Latinoamericano de Ciencias Sociales en Salud, em Angra dos Reis/RJ, de 19 a 23 de Outubro de 2003. 1

Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). <jrcayres@usp.br>

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AYRES, J. R. C. M.

A Saúde Pública em reconstrução Assistimos em tempos recentes à emergência de uma série de novos discursos no campo da saúde pública, mundial e nacionalmente, tais como a promoção da saúde, vigilância da saúde, saúde da família, redução de vulnerabilidade, entre outros. Tais discursos revelam a vitalidade conceitual da saúde pública deste início de milênio e traz ao debate diversos convites à renovação das práticas sanitárias. Contudo, uma efetiva consolidação dessas propostas e seu mais conseqüente desenvolvimento parece-nos depender de transformações bastante radicais no nosso modo de pensar e fazer saúde, especialmente em seus pressupostos e fundamentos. Acreditamos que há uma série de aspectos filosóficos que precisam ser revisitados para que, aos avanços conceituais já alcançados, possam corresponder transformações práticas mais expressivas. É nesta condição de uma desconstrução teórica, com vistas a contribuir para a reconstrução em curso nas práticas de saúde, que se quer trazer ao debate a presente reflexão sobre o Cuidado. Não se trata de somar mais um discurso àqueles acima listados; a discussão aqui proposta está longe de pretender ter o caráter aplicado que os caracteriza. Trata-se de compreender as práticas de saúde, inclusive aquelas que constituem o substrato dos seus discursos renovadores, sob uma determinada perspectiva que, se feliz em seus propósitos, poderá agregar-se ao esforço de adensamento conceitual e filosófico desse novo sanitarismo. O Cuidado como categoria ontológica Normalmente quando se fala em cuidado de saúde, ou cuidado em saúde, atribui-se ao termo um sentido já consagrado no senso comum, qual seja, o de um conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de um certo tratamento. Contudo, não é nem no sentido de um conjunto de recursos e medidas terapêuticas, nem naquele dos procedimentos auxiliares que permitem efetivar a aplicação de uma terapêutica, que queremos nos remeter à questão. Trataremos aqui do cuidado como um constructo filosófico, uma categoria com a qual se quer designar simultaneamente, uma compreensão filosófica e uma atitude prática frente ao sentido que as ações de saúde adquirem nas diversas situações em que se reclama uma ação terapêutica, isto é, uma interação entre dois ou mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade. Para procedermos a esta construção conceitual, vamos iniciar por uma breve exploração da categoria cuidado tal como proposta em “Ser e Tempo”, por Martin Heidegger (1889-1976), base de uma primeira delimitação de alguns dos principais pressupostos filosóficos nos quais nos apoiaremos. Em Ser e Tempo, Heidegger se vale de uma antiga fábula de Higino para argumentar acerca da situação simultaneamente contingente e transcendente da condição humana. O dasein, ou “ser-aí”, construção com a qual caracteriza a existência humana, é um “estar lançado” num mundo que, por sua vez, só é percebido enquanto tal na (e por meio da) atividade

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“projetiva” humana, isto é, da tripartição temporal da consciência do ser (em presente, passado e futuro), efetivada e possibilitada no e pelo ato de atribuir significado às experiências pretéritas, a partir de uma vivência atual, entendida como o devir de um projeto existencial. Nesta dialética de presente, passado e futuro, o humano surge como criador e criatura da existência, numa construção sempre em curso, que tem como substrato a linguagem e como “artesão” o cuidado (sorge). Em sua incessante atividade, o cuidado molda, a partir do mundo e contra a sua dissolução nesse mundo, as diversas formas particulares da existência (Heidegger, 1995). Nada melhor, porém, para nos reportarmos à complexa construção heideggeriana que recorrermos, também nós, ao poder expressivo da alegoria de Higino: Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. O Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como Cuidado quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter proibiu e exigiu que fosse dado seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço do seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: ‘Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como porém foi o Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado Na tradução brasileira da Editora Vozes o termo “Sorge” é traduzido como Cura, sinônimo de Cuidado. Evitamos usar aqui esse termo para não confundir com curar no sentido médico de eliminar a doença.

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enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar ‘homo’, pois foi feito de humus (terra)’. (Heidegger, 1995, p.263-4) 2

Há diversas e riquíssimas aproximações hermenêuticas a essa alegoria, tal como feito por Heidegger e por seus inúmeros comentadores e prosseguidores. Longe de nós a intenção de inventariarmos todas elas, mas será importante destacar alguns aspectos relevantes para a discussão que faremos acerca do cuidado no âmbito específico da saúde: Movimento. Um dos primeiros elementos que vemos presente na alegoria é o movimento. O cuidado move-se no leito do rio e é movendo-se que percebe a argila. Ele não vai em busca da argila, nem a argila chega até ele. O interesse e a possibilidade de moldar uma forma humana devém do encontro com a argila no movimento mesmo de atravessar o rio. Este elemento da alegoria aponta para aspecto fundamental na construção de nossas identidades de seres viventes, que é o caráter pragmático da nossa construção de identidades. Ou seja, nossas identidades não são construções a priori, inscritas como um destino inexorável para nossas biografias no momento em que nascemos. Esta identidade vai sendo construída no e pelo ato de viver, de por-se em movimento pelo mundo. Interação. A alegoria é permeada de interações. São as interações que

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constróem a sua trama. Interação do cuidado com a argila, transformando-a em criatura; do cuidado e sua criatura com Júpiter, o que transforma a criatura num ser vivente e, no mesmo ato, faz de cuidado e Júpiter contendores, portadores de diferentes projetos para o ser vivente; interação da terra com os três, aumentando a contenda e tornando mais complexa a nomeação do ser vivente; finalmente Saturno, o senhor do tempo, interagindo com todos e determinando o lugar de cada um. Identidade e alteridade. Um aspecto muito relevante das diferentes interações é que as identidades existenciais só se estabelecem no ato mesmo dessas interações. O cuidado se faz artesão em presença da argila e a argila só tem sua plasticidade atualizada por força do cuidado. Do encontro do artesão com a argila surge a criatura que, sendo produto da existência do artesão e da argila, não é mais nem artesão nem argila. Quando a criaturaforma ganha existência, coloca-se o problema da falta do espírito, que acaba por resolver-se com Júpiter, que se faz origem do espírito vivente, fazendo da criatura um ser vivente e da terra a origem do corpo de um ser vivente. A identidade de cada um se faz sempre, portanto, na presença de seu outro. A alteridade de cada um se define sempre pela construção de uma identidade, e vice-versa. Plasticidade. Na base de todo o movimento e de todas as identidades e alteridades criadas pelo movimento, encontramos na alegoria a plasticidade da argila. Não fosse plástica a matéria de nossa existência, não fosse sujeita à transformação, à moldagem, não haveria a existência. Não haveria, porque não se teria concebido e criado o ser vivente, mas também porque não haveria a possibilidade de sua dissolução, de sua finitude, de sua contínua recriação. O cuidado tem a “posse” do ser vivente porquanto e enquanto o mantenha vivo, porquanto e enquanto sustente sua existência (matéria/ forma/espírito) contra a dissolução. Projeto. Toda a plasticidade da argila, por sua vez, não poderia ter posto a trama da alegoria em movimento, ter realizado seu papel de efetivar interações e identidades, se não fosse o potencial criador, a capacidade de conceber e construir projetos própria ao cuidado. É porque antevê na plasticidade experimentada na argila a possibilidade de lhe dar a forma humana, e porque interage com a argila na medida capaz de conferir à sua plasticidade a forma antevista, que o cuidado gera o ser vivente. Daí Heidegger sustentar que o Ser do humano é cuidado. É projetar e, ao mesmo tempo, ser o “curador” do projeto. Desejo. Não se pode perder de vista, ainda, um outro elemento fundamental na tessitura da trama da alegoria, que é o fato de que nenhum dos personagens age de forma completamente determinada. Cuidado cogita dar forma à argila que encontra, e cria uma forma. Refletindo sobre sua criação resolve dar-lhe espírito. Júpiter é convidado a soprar o espírito. A Júpiter agrada essa idéia, e o faz. Cuidado quis nomear a criatura, Júpiter proibiu e exigiu dar o seu nome, a mesma coisa quis a Terra. Ou seja, é do encontro desejante com as circunstâncias que se origina o ser vivente. É de um imponderável cogitar que surge o projeto, e é da realização do projeto que nasce a resolução de soprar o espírito. Por fim, a intenção de nomear a existência, de tomá-la para si, emerge como pura expressão de um livre e

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3 Stein destaca que as repercussões da ontologia existencial heideggeriana vão se fazer sentir em praticamente todo o espectro filosófico da contemporaneidade: atingiu a fenomenologia husserliana (de onde partiu); transformou a filosofia analítica, com Ryle; impactou o intento lógicofilosófico de Wittengenstein, sendo decisivo para as sua Investigações; impactou também a tradição hegelianomarxista das escolas de Budapeste e de Frankfurt; por fim desdobrou-se na hermenêutica filosófica, de Gadamer.

imponderável desejo de manifestação, de presença. Desejo de presença que a alegoria mostra fluir das dimensões corpóreas e espirituais de nossa existência, tanto quanto de nossa aspiração de dar um sentido existencial a ambas, gerando mútuos convites, resistências e conflitos entre o eu e o outro. Temporalidade. É Saturno, senhor do tempo, que arbitra tais aspirações materiais e espirituais, confiando à habilidade artesã de um projeto de vida a tarefa de gerir a presença de cada uma no devir da existência. O Ser é (do) cuidado, mas será (do) cuidado apenas enquanto seguir sendo. É sempre na perspectiva do fluxo do tempo, do devir da existência, que faz sentido falar de cuidado, ao mesmo tempo que o cuidado é, em si mesmo, condição de possibilidade dessa tripartição temporal e deveniente da existência. Não-causalidade. Que estranho personagem, então, é o cuidado! Ele não é o Ser, mas sem ele não há Ser; ele não é a matéria nem o espírito, mas sem ele a matéria não está para o espírito nem o espírito para a matéria; ele é uma dádiva do tempo, mas o tempo deve a ele sua existência. Estas delicadas dialéticas emergem da alegoria do cuidado como uma indicação de que não podemos explicar a existência nos termos de causa e efeito com que aprendemos a nos apropriar racionalmente de certas dimensões dessa existência. Não é possível produzirmos uma externalidade tal que nos permita estabelecer qualquer um dos personagens da alegoria como condição necessária e suficiente para a existência do outro, como não é possível sequer pensar a identidade de qualquer um deles sem a presença de seu outro. Também não é possível pensar o que antecede e o que sucede, já que a temporalidade só se manifesta como tal a partir da coexistência de todos. Nesse sentido, o cuidado exige ser pensado como “compossibilidade”, só podendo ser compreendido como um “círculo hermenêutico” (Gadamer, 1991), no qual cada parte só ganha sentido numa totalidade e a totalidade tem seu sentido imediata e radicalmente dependente de cada uma de suas partes. Responsabilidade. Mas esse “sem começo nem fim”, que caracteriza o círculo hermenêutico, não levaria a um total relativismo? Esse relativismo não é conflitante com a idéia de uma ontologia, isto é, não seríamos nós conduzidos por essa visão circular até um completo indeterminismo e agnosticismo acerca do Ser? E se é assim, como encontrar numa alegoria – uma narrativa, composta de uma trama, com começo, meio e fim – recurso tão feliz para a compreensão da existência? No âmbito da filosofia, esse aparente paradoxo de Heidegger significa, na verdade, talvez o mais relevante giro paradigmático contemporâneo – a ponto de Stein (1988) afirmar que o século XIX filosófico só termina em 1927, com a publicação de “Ser e Tempo”3. A grande novidade desse giro foi a superação da dicotomia entre transcendência e imanência, entre fundacionalismo e relativismo, entre sujeito e objeto. Heidegger mostra com Ser e Tempo que a relação, já dada e inseparável, de homem e mundo torna coincidentes a indagação acerca da existência (ontologia) e do conhecimento (epistemologia). O conhecimento do mundo é já um modo de ser no mundo, e não um distanciamento do mundo. A transcendência é, portanto, um plano de imanência, desde o qual o humano se constrói conhecendo(-se). É, portanto,

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sem sentido a busca ad infinitum do fundamento último do conhecimento do Ser, já que é na circularidade hermenêutica que mais fecundamente o Ser pode vir a conhecer-se. E Heidegger propõe o cuidado como a categoria que mais expressivamente consegue nos colocar em sintonia com esse plano de imanência, sem começo nem fim, no qual o ser do humano resulta de sua ocupação de si como resultado de si. Ora, nesse sentido, a existência tem, sim, um sentido, embora não como trajeto linear; tem uma causação, mas não no sentido causalista de uma cadeia onde um antecedente determina um sucesso, que é um evento distinto do seu antecedente. Podemos entender tanto o sentido como a causação na ontologia existencial como o “tomar-se para si” do dasein, que não é outra coisa que o sentido mais radical da idéia de “responsabilizar-se”. A responsabilidade tem aqui o duplo e, de novo, inseparável sentido de responder por si e responder para si (Grondin, 1999). Cuidar não é só projetar, é um projetar responsabilizandose; um projetar porque se responsabiliza. E não é por outra razão que Saturno concede ao cuidado a posse da sua criatura porquanto e enquanto se responsabilizar por sua existência. Apesar do excessivo grau de abstração desse plano de conceituação ontológico-existencial do cuidado, toda a discussão que se pretende fazer adiante acerca do cuidado em saúde assenta-se sobre essas bases. O que se quer propor resulta intrinsecamente do aceite ao convite à ontologia existencial, da afinação ao giro paradigmático aí efetuado. A centralidade hermenêutica da categoria cuidado no plano filosófico acima exposto e no plano aplicado a que se quer chegar não constitui, absolutamente, mera coincidência: movimento, interação, identidade/alteridade, plasticidade, projeto, desejo, temporalidade, não-causalidade e responsabilidade serão elementos que reencontraremos na discussão do cuidado quando passarmos ao plano das práticas de saúde. Antes de passarmos a esse plano, contudo, será necessário nos determos, ainda que de forma sucinta, num patamar intermediário de reflexão acerca do cuidado. Trata-se de examinar uma segunda construção conceitual de relevância para nossos propósitos, que trata do cuidado como expressão de formas de vida da civilização ocidental. Trata-se da categoria foucaultiana do cuidado de si (Foucault, 2002). O Cuidado como categoria genealógica Em seu processo de investigação genealógica da microfísica do poder, Michel Foucault identificou na sexualidade um campo de fecundas possibilidades. Partindo da polêmica tese de que a moral sexual vitoriana não era o paradigma de uma cultura de sublimação da sexualidade, mas, ao contrário, constituía o ápice de um processo de crescentes interesse e intervenção sobre o assunto, Foucault localiza, em torno do século II da Era Cristã, a emergência de uma “arte da existência” inteiramente nova. A ela Foucault chamou de “o cuidado de si” (Foucault, 2002). Cabe lembrar que, ao longo dos três volumes da História da Sexualidade, o objeto central do filósofo francês não é tanto a sexualidade, em si mesma, quanto a genealogia de uma ética ocidental, entendida não como um conjunto de princípios e pressupostos universais, à moda kantiana, mas como uma espécie de tecnologia que emerge historicamente da experiência

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social, na forma de saberes e práticas voltados para a construção do lugar do eu e do outro na complexa teia de suas interações, nos planos público e privado. É nesta perspectiva que a categoria “cuidado de si” é definida, dando-nos conta de um movimento de construção, manutenção e transformação da identidades dos indivíduos na civilização ocidental cristã, entendidas por Foucault como “tecnologias do si”. Nesse processo, o conhecimento de si, imperativo de qualquer civilização que possamos conceber, passa a especificar, nesse caso particular, formulações do tipo: Que fazer de si mesmo? Que trabalho operar sobre si? (Foucault, 1997). Ainda que não tenha sido seu objetivo fazer a história do cuidado de si, Foucault não deixa de ser um historiador dessa tecnologia social quando busca estabelecer sua genealogia. Nesse sentido, não hesita em apontar o período que vai do século I a.C. ao século II d.C. como aquele de maior desenvolvimento desse dispositivo. Ao demonstrar sua presença já neste período, ainda que não pudesse afirmar estar situada aí sua primeira formulação, Foucault tem o material suficiente para argumentar que a gênese do cuidado de si e suas implicações do ponto de vista biopolítico é anterior ao capitalismo e à moral burguesa, embora nesses contextos possa ter assumido importância particular. Foucault aponta que a idéia de ocupar-se consigo é bem antiga na cultura grega, estando presente, conforme relato de Plutarco, já no ideal do cidadão espartano de treinamento físico e guerreiro em detrimento do cultivo da terra. Ou na afirmação de Ciro, segundo Xenofonte, de que toda a glória decorrente dos grandes feitos de um homem de nada valiam se fosse à custa do sacrifício do ocupar-se consigo mesmo. Sustenta, contudo, que, até então, este ocupar-se de si tinha a conotação de uma prerrogativa (de alguns), ou mesmo de um privilégio, uma dádiva. Mostra, então, que é com o Sócrates do “Alcebíades”, ou da “Apologia”, que esse ocupar-se de si vai ganhar a forma de um cuidado de si, adquirindo progressivamente “as dimensões e formas de uma verdadeira ‘cultura de si’. Por essa expressão é preciso entender que o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance bem geral: o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações, e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber. (Foucault, 2002, p.50)

A epimeleia heautou, ou cura sui, ou essa arte de viver sob o cuidado de si, desenvolve-se, assim, sob o signo do platonismo, como um aperfeiçoamento da alma com auxílio da razão para que se possa levar a melhor vida, da mesma forma como se cuida dos olhos para melhor ver, ou dos pés para

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melhor correr. Já entre os epicuristas pregava-se o cuidado de si como um recurso à filosofia para garantir “a saúde da alma”. Sêneca dará passos mais largos rumo à conformação da arte existencial do cuidado de si ao defender que o homem que vela por seu corpo e por sua alma (hominis corpus animunque curantis) para construir por meio de ambos a trama de sua felicidade, encontra-se num estado perfeito e no auge de seus desejos, do momento em que sua alma está sem agitação e seu corpo sem sofrimento. (Sêneca, apud Foucault, 2002, p.51)

A mais acabada elaboração filosófica desse tema, segundo Foucault, será feita, porém, por Epicteto, que chega a definir o ser humano como “o ser a quem foi confiado o cuidado de si” (Foucault, 2002, p.53), recebendo de Deus, com essa finalidade, a faculdade da razão. E a recomendação do cuidado de si não tem em vista apenas o modo de vida do filósofo, do indivíduo que dedica sua vida à sabedoria. Conforme Apuleu, aperfeiçoar a própria alma com a ajuda da razão é uma regra igualmente necessária para todos os homens. Vê-se, assim, como o cuidado de si constitui-se, simultaneamente, como um atributo e uma necessidade universal dos seres humanos, regido por princípios de aplicação geral, embora orientados para uma prática de escopo e responsabilidades absolutamente individuais. Não mais um prazer ou uma prerrogativa, não cuidar-se é sucumbir, e para não sucumbir era preciso conhecer a verdade que a razão a todos podia dar acesso. Esses preceitos, como já indicado, desdobraram-se para além desse caráter doutrinário, conformando um conjunto bem especificado de ações. Como Foucault adverte, o termo epimeleia designa não apenas uma preocupação, mas um conjunto de ocupações, um labor. Era com esse mesmo termo que se designava as atividades de um dono de casa, as tarefas de um príncipe que vela por seus súditos, ou os cuidados que se deve ter para com um doente ou ferido. Este mesmo sentido está presente também na alegoria de Higino, como vimos: o cuidado se curva, toma a argila do leito do rio, molda com suas mãos a forma humana e recebe de Saturno o privilégio/obrigação de zelar pela vida de sua criatura. Esta vinculação com o labor, com essa atividade relacionada às necessidades vitais, com a vita activa, conforme Arendt (1981), estabeleceu precocemente uma correlação muito estreita entre o cuidado de si e a Medicina. Embora não fosse uma preocupação exclusiva sua, não há dúvida de que o conjunto de atividades que constitui o labor implicado no cuidado de si – exercícios, dietas, regimes de sono e vigília, atividade sexual, cuidados corporais, meditações, leituras etc. – serão formulados principalmente por médicos. Se somarmos a isso que o restabelecimento da saúde é também parte dos imperativos do cuidado de si, maior razão teremos de atribuir à Medicina o papel de grande responsável pelo desenvolvimento da epimeleia heautou. Galeno (129-199) é aqui a figura paradigmática. Ao galenismo não apenas pode ser creditado grande parte do desenvolvimento das tecnologias do cuidado de si (Foucault, 2002) como, na mesma direção e em sentido inverso, a ele se deve forte e influente identificação da Medicina

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ocidental ao racionalismo individualizante e intervencionista que marca tais tecnologias. Com efeito, a partir de Galeno o alcance da saúde passou a depender, de um lado, do diagnóstico de cada constituição individual, apreendida por meio da aplicação racional e sistemática de categorias que expressavam leis universais da natureza (teoria dos humores) e, de outro lado, de uma ativa intervenção do médico sobre os fatores perturbadores ou obstaculizadores do melhor arranjo desta constituição (Ackerknecht, 1982; Sigerist, 1990). Abandonaremos neste ponto o estudo de Foucault, pois não nos interessa aqui as conseqüências que o filósofo extrai da sua genealogia quanto às regulações que se farão sobre a sexualidade e a sociabilidade por intermédio das tecnologias do si. Basta-nos tão somente destacar as relações mutuamente esclarecedoras e fecundantes entre o desenvolvimento do discurso e da prática médica ocidentais e uma ontologia existencial fundada na idéia de cuidado. Em síntese, Heidegger possibilitou-nos uma autocompreensão existencial da condição humana como cuidado. Foucault nos mostra o desenvolvimento do cuidado de si como uma forma de vida no ocidente cristão. O cuidado de si possibilita, assim, enraizar genealogicamente o plano de imanência da ontologia heideggeriana, ao mesmo tempo em que o dasein abre-nos a possibilidade de conferir um sentido existencial à genealogia foucaultiana. É tirando proveito dessa mútua fecundação, da possibilidade de nos argüirmos do valor existencial das tecnologias do si como forma de vida, que buscaremos nos indagar a respeito das práticas de saúde contemporâneas, dos alcances, limites e implicações das formas atuais de cuidado em saúde. Cabe, nesse sentido, nos perguntarmos: até que ponto esse labor individualista e “pan-racionalista” segue instruindo as práticas de saúde contemporâneas? Em que tecnologias específicas se organiza, se é que se organiza? Até que ponto atinge nossas práticas de saúde pública? É possível identificar outros tipos de tecnologia, outras “artes da existência”, outros projetos existenciais nas propostas contemporâneas para as práticas de saúde pública? O Cuidado como categoria crítica O terceiro plano de aproximação à questão do cuidado a que agora nos remeteremos diz respeito ao cuidado como modo de interação nas e pelas práticas de saúde nos seus moldes contemporâneos, restringindo-nos agora às tecnologias já configuradas como o campo institucional das práticas de saúde. Embora o próprio Foucault (2001) tenha demonstrado que a Medicina, nas sociedades capitalistas, tornou-se uma Medicina social, isto é, que sob o capitalismo ampliou-se a esfera de cognição e intervenção normativa dos saberes e fazeres da saúde ao campo das relações sociais, este processo não parece ter afetado radicalmente o caráter individual-universalista do cuidado de si, especialmente quando se trata das ações de assistência médica. Com efeito, Foucault mesmo nos mostra que é sobre o corpo dos indivíduos que as tecnologias do social são aplicadas, disciplinando-os, regulando-os e potencializando-os como força produtiva. Quando pensamos especificamente nas tecnologias mais imediatamente aplicadas aos coletivos humanos,

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organizados em torno da higiene vemos o mesmo se repetir. Ainda que tenham experimentado um momento mais caracteristicamente coletivo, público e politicamente consensual de conhecimento e intervenção normativas na saúde, a higiene pública e a higiene social cederam rapidamente lugar a uma higiene centrada na tradução cientificista e individualmente centrada das tecnologias de cuidado em saúde. Com efeito, desde meados do século XIX a racionalidade que orientou o horizonte normativo da saúde pública passou mais e mais a ater-se a uma racionalidade estritamente científica e as suas correspondentes estratégias reguladoras orientaram-se também progressivamente para uma gestão individual dos riscos à integridade e desempenho funcional do corpo (Ayres, 1997). Foge aos objetivos deste ensaio, no entanto, uma maior fundamentação dessa tese da persistência do caráter individual-universalista do cuidado em saúde. O que nos importa aqui é reter esta tese como o pano de fundo de recentes problematizações desse cuidado no âmbito de suas configurações técnicas e institucionais, em meio às quais se inserem as nossas próprias. Tais problematizações consistem de um variado conjunto de reflexões críticas sobre as tecnologias da saúde que, sob diferentes perspectivas, tratam da organização de ações e serviços de saúde, da formulação de políticas de saúde, das relações médico-paciente, das relações serviçospopulação, das relações entre os diversos profissionais nas equipes de saúde, entre outros aspectos (Schraiber et al., 2000; Pinheiro & Mattos, 2003; Czeresnia & Freitas, 2003). Entre essas diversas possibilidades de aproximação crítica, vamos nos deter especificamente nas tecnologias de assistência à saúde, aspecto que de certa maneira atravessa todas as outras, mas que, sem dúvida, diz respeito mais imediatamente ao encontro terapêutico propriamente dito. As recentes transformações da Medicina contemporânea rumo à progressiva cientificidade e sofisticação tecnológica apresenta efeitos positivos e negativos, já relativamente bem conhecidos. De um lado, identifica-se como importantes avanços a aceleração e ampliação do poder de diagnose, a precocidade progressivamente maior da intervenção terapêutica, o aumento da eficácia, eficiência, precisão e segurança de muitas dessas intervenções, melhora do prognóstico e qualidade de vida dos pacientes em uma série de agravos. Como contrapartida, a autonomização e tirania dos exames complementares, a excessiva segmentação do paciente em órgãos e funções, o intervencionismo exagerado, o encarecimento dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, a desatenção com os aspectos psicossociais do adoecimento e a iatrogenia transformam-se em evidentes limites. Acompanhando a observação desses limites, passou a ser comum a referência a uma crise da Medicina, crise que, no campo em que situamos esta reflexão, identifica-se fundamentalmente com o que Schraiber (1997a) caracterizou como uma “crise de confiança”, referindo-se ao fato de que o paroxístico progresso tecnológico da Medicina acarretou profunda insegurança quanto à adequação prática e correção moral do que está sendo feito nas práticas

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terapêuticas, por todas as razões acima listadas. Nesse sentido, destaca-se, entre outros problemas, uma progressiva incapacidade das ações de assistência à saúde de se provarem racionais, de se mostrarem sensíveis às necessidades das pessoas e se tornarem cientes de seus próprios limites. Uma resposta freqüente ao problema, apoiada na tradicional visão da assistência à saúde como misto de ciência e arte, é a de que o problema estaria num suposto esquecimento da dimensão arte. Haveria muita tecnologia científica e pouca arte na Medicina contemporânea – muita tecnociência porque pouca arte, ou pouca arte porque muita tecnociência. Embora se aproxime de aspectos fulcrais do problema, essa forma de colocar a questão não parece satisfatória. É lícito afirmar que, em nossos dias, falar da arte ou falar da tecnociência da Medicina é quase a mesma coisa. Não há, no âmbito da herança cultural em que nos movemos, arte sem tecnociência nas ações de assistência médica. A tecnociência médica incorpora a arte médica, molda essa arte, expressa essa arte. A arte médica, por sua vez, reclama a tecnociência, alimenta-se dela, transfigura-se nela. Quando um profissional da saúde introduz entre seus procedimentos propedêuticos as evidências produzidas por uma Medicina Baseada em Evidências, ele está sacrificando a arte à tecnociência ou está produzindo arte médica como tecnociência? Quando as ciências e tecnologias médicas tornam-se mais e mais diversificadas e especializadas, estão elas procurando uma condição de pureza e autonomia científicas ou estão respondendo à diversificação de juízos requeridos para a tomada de decisões na assistência? Pensamos poder assumir como verdadeira a segunda posição em ambos os casos. Não parece, por isso, interessante polarizar “arte x ciência”. Devemos, isto sim, problematizar de forma indissociável o par “arte-tecnociência”. Ou seja, o que devemos examinar é o significado desse lugar destacado e determinante que a tecnociência passou a ocupar na arte da assistência. O que é essa arte tecnocientífica? O que são essas ciências completamente dependentes da arte de assistir à saúde? Por que a tecnociência da assistência à saúde tem sido acusada de ser irracional, desumana, onipotente? Temos uma proposição hipotética a respeito dessa última indagação, que pode ser formulada como a afirmação de que a atual crise de legitimidade das formas de organização do cuidado em saúde, isto é, a falta de confiança nos seus alcances técnicos e éticos, decorre do progressivo afastamento da arte tecnocientífica da Medicina em relação aos projetos existenciais que lhe cobram participação e lhe conferem sentido. Dito de outra forma, é como se a terapêutica estivesse perdendo seu interesse pela vida, estivesse perdendo o elo de ligação entre seus procedimentos técnicos e os contextos e finalidades práticos que os originam e justificam. Narcísica, a Medicina tecnocientífica encantou-se consigo mesma. Não cessa de se olhar no espelho, espelho que se desdobra ad infinitum, mostrando sempre mais à arte como ela pode ser poderosa com a ciência e à ciência como são ilimitados seus potenciais artísticos. O conflito entre esses dois pólos não passa, portanto, de um artifício de imagem: o que parece uma negação de um ao outro não é mais que a busca do melhor ângulo para o mesmo reflexo. Uma mesma imagem busca incessantemente a si mesma, como dois espelhos antepostos. Arte e ciência oferecem uma à outra um enorme poder e, nesse encantamento

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mútuo, deixaram muitas vezes de se perguntar: poder de quem, poder porque, poder para quê? Conforme nos mostrou Heidegger (1995), o querer, o julgar, o conhecer e o fazer são diferentes expressões de um mesmo “ser-aí”. A compreensão sobre quem tem poder de fazer o que e porque é portanto fundamental para as relações entre a tecnociência médica e a vida da qual faz parte. Ao tornar-se quase impermeável a questões acerca do que seja, afinal, a saúde que persegue; ao limitar a um mínimo o lugar dos desejos e da busca de felicidade como critérios válidos para avaliar o sentido das práticas; ao não se preocupar suficientemente com a natureza e os mecanismos da construção dos consensos intersubjetivos que orientam seus saberes (a práxis científica) e suas práticas (a práxis médica), a assistência à saúde começa a se tornar problemática, inclusive para seus próprios criadores, enfrentando crises econômicas, crises políticas mas, especialmente, as já citadas crises de legitimidade. Quando pensamos na assistência à saúde, vem-nos de imediato à mente a aplicação de tecnologias para o bem estar físico e mental das pessoas. Em geral a formulação é simples: a ciência produz o conhecimento sobre as doenças, a tecnologia transforma esse conhecimento em saberes e instrumentos para a intervenção, os profissionais de saúde aplicam esses saberes e instrumentos e produz-se a saúde. Precisamos considerar que a direção inversa também é verdadeira: que o modo como aplicamos e construímos tecnologias e conhecimentos científicos determina limites para o que podemos enxergar como necessidades de intervenção em saúde. Precisamos ter claro também que nem tudo que é importante para o bem estar pode ser imediatamente traduzido e operado como conhecimento técnico. E por fim, mas fundamental, precisamos estar atentos para o fato de que nunca, quando assistimos à saúde de outras pessoas, mesmo estando na condição de profissionais, nossa presença na frente do outro se resume ao papel de simples aplicador de conhecimentos. Somos sempre alguém que, percebamos ou não, está respondendo a perguntas do tipo: “O que é bom pra mim?”, “Como devo ser?”, “Como pode ser a vida?” (Mendes Gonçalves, 1994; Schraiber, 1997b). Ora, se tecnologia não é apenas aplicação de ciência, não é simplesmente um modo de fazer, mas é também, enquanto tal, uma decisão sobre quais coisas podem e devem ser feitas, então nós temos que pensar que nós, profissionais de saúde, estamos construindo mediações, estamos escolhendo dentro de certas possibilidades o que devem querer, ser e fazer aqueles a quem assistimos – e nós próprios. Por outro lado, se assumimos também que as respostas necessárias para alcançar a saúde não se restringem aos tipos de pergunta que podem ser formuladas na linguagem da ciência, então a ação em saúde não pode se restringir à aplicação de tecnologias. Nossa intervenção técnica tem que se articular com outros aspectos não tecnológicos. Não podemos limitar a arte de assistir apenas à criação e manipulação de “objetos”. Na qualidade de portador de uma demanda de saúde, qualquer indivíduo é, de fato, potencial “objeto de conhecimento e intervenção”. É isso que se espera das ciências e dos serviços de saúde. Contudo, nada, nem ninguém,

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pode subtrair a esse mesmo indivíduo, como aspirante ao bem-estar, a palavra última sobre suas necessidades. Encontrando suas ressonâncias profundas nas suas dimensões ontológico-existenciais, é preciso que o cuidado em saúde considere e participe da construção de projetos humanos. Como vimos, para cuidar há que se sustentar, ao longo do tempo, uma certa relação entre a matéria e o espírito, o corpo e a mente, moldados a partir de uma forma de vida que quer se opor à dissolução, que quer garantir e fazer valer sua presença no mundo. Então é forçoso, quando cuidamos, saber qual é o projeto de felicidade, isto é, que concepção de vida bem sucedida orienta os projetos existenciais dos sujeitos a quem prestamos assistência. Como aparece ali, naquele encontro de sujeitos no e pelo ato de cuidar, os projetos de felicidade de quem quer ser cuidado? Que papel desempenhamos nós, os que queremos ser cuidadores, nas possibilidades de conceber essa felicidade, em termos de saúde? Que lugar podemos ocupar na construção desses projetos de felicidade de cuja concepção participamos? A verdade é que raramente chegamos sequer a nos indagar sobre os projetos de felicidade daqueles indivíduos ou populações aos quais prestamos assistência, quanto mais participar ativamente de sua construção.

4 Para diferenciar o uso deste termo nesta perspectiva reconstrutiva, isto é, de um “ideal regulador” (Habermas, 1990), o grafaremos sempre com inicial maiúscula.

O Cuidado 4 como categoria reconstrutiva Atribuímos, aqui, ao Cuidado o estatuto de uma categoria reconstrutiva, querendo com isso nos referir à aposta, fundamentada na trajetória reflexiva acima descrita, de que existe uma potencialidade reconciliadora entre as práticas assistenciais e a vida, ou seja, a possibilidade de um diálogo aberto e produtivo entre a tecnociência médica e a construção livre e solidária de uma vida que se quer feliz, a que estamos chamando de Cuidado. O momento assistencial pode (e deve) fugir de uma objetivação “dessubjetivadora”, quer dizer, de uma interação tão obcecada pelo “objeto de intervenção” que deixe de perceber e aproveitar as trocas mais amplas que ali se realizam. Com efeito, a interação terapêutica apóia-se na tecnologia, mas não se limita a ela. Estabelece-se a partir e em torno dos objetos que ela constrói, mas precisa enxergar seus interstícios. Nesse sentido, o Cuidar põe em cena um tipo de saber que se distingue da universalidade da técnica e da ciência, como também se diferencia do livre exercício de subjetividade criadora de um produtor de artefatos. Ou seja não é a theoría nem a póiesis o espaço privilegiado do Cuidado, mas aquele que os amalgama nas interações terapêuticas, a práxis, ou atividade prática. O saber que se realiza aqui (se deixarmos) é algo que na filosofia aristotélica é chamado de phrónesis, ou sabedoria prática, um tipo de saber que não cria objetos, mas constitui sujeitos diante dos objetos criados no e para seu mundo (Gadamer, 1991). Ao considerarmos verdadeiramente esse outro saber no momento assistencial, assumimos que a saúde e a doença, não são apenas objeto, mas, na condição mesma de objeto, configuram modos de “ser-no-mundo”. Enquanto tal, utilizar ou não certas tecnologias,

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desenvolver ou não novas tecnologias, quais tecnologias combinar, quais tecnologias transformar, todas essas escolhas resultam de um juízo prático, um tipo de sabedoria diferente daquela produzida pelas ciências. Trata-se de uma sabedoria que não cria produtos, não gera procedimentos sistemáticos e transmissíveis, não cria universais, posto que só cabe no momento mesmo em que os seus juízos se fazem necessários. Quando o cientista e/ou profissional da saúde não pode prescindir da ausculta do que o outro (o paciente ou os grupos populacionais assistidos) deseja como modo de vida e como, para atingir esse fim, pode lançar mão do que está disponível (saberes técnicos inclusive, mas não só, pois há também os saberes populares, as convicções e valores pessoais, a religião etc.), então de fato já não há mais objetos apenas, mas sujeitos e seus objetos. Aí a ação assistencial reveste-se efetivamente do caráter de Cuidado. Revalorizar a dignidade dessa sabedoria prática é, portanto, uma tarefa e um compromisso fundamental quando se quer Cuidar. Mas isso nem sempre é fácil, porque é freqüente tomarmos o reconhecimento e a valorização desses saberes não-técnicos como obscurantismo, atraso. Isso nos parece um lamentável equívoco. Nós podemos não concordar com uma dada crença de um paciente, por exemplo, e, conversando com ele, seguirmos convictos de que essa crença não lhe beneficia, e até vir a convencê-lo disso. Mas, independente de o convencermos ou sermos convencidos por ele, se simplesmente desconsiderarmos um saber nãotécnico implicado na questão de saúde com que estamos lidando, então não estaremos deixando a pessoa assistida participar de fato da ação em curso. Ela não estará sendo sujeito. É fundamentalmente aí que está a importância do Cuidar nas práticas de saúde: o desenvolvimento de atitudes e espaços de genuíno encontro intersubjetivo, de exercício de uma sabedoria prática para a saúde, apoiados na tecnologia, mas sem deixar resumir-se a ela a ação em saúde. Mais que tratar de um objeto, a intervenção técnica se articula verdadeiramente com um Cuidar quando o sentido da intervenção passa a ser não apenas o alcance de um estado de saúde visado de antemão, nem somente a aplicação mecânica das tecnologias disponíveis para alcançar este estado, mas o exame da relação entre finalidades e meios, e seu sentido prático para o paciente, conforme um diálogo o mais simétrico possível entre profissional e paciente. É claro que certas assimetrias podem ser desejadas, ou mesmo humanamente inexoráveis. Por exemplo, o domínio de um sem número de tecnologias e conhecimentos científicos é, na maior parte das vezes, absolutamente inviável e desinteressante para o assistido. Isto não deve servir de obstáculo, porém, a que este compreenda os significados práticos de qualquer tipo de intervenção que lhe seja proposto, nem de criar canais que lhe permitam participar de escolhas relevantes sobre o que e como produzir nas tecnologias da saúde. Outro exemplo é o lugar terapêutico de uma certa confiança “quase-incondicional” que a pessoa fragilizada por algum padecimento de saúde tende a depositar no seu cuidador, o que não precisa ser confundido com dependência ou inferioridade. Recuperar a dignidade da sabedoria prática, da phrónesis, abrir espaço para a reflexão e a negociação sobre objetivos e meios das ações em saúde, sem determinar de

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modo absoluto e a priori onde e como chegar com a assistência: eis como vemos configurarem-se o norte político e as tarefas práticas de uma reconstrução das ações de saúde quando se tem o Cuidado como horizonte. O Cuidado e os desafios da reconstrução São diversos os desafios que se colocam para a reconstrução das práticas de saúde no sentido “reconciliador” acima apontado. Não temos aqui a pretensão de listá-los exaustivamente, tampouco de estabelecer qualquer tipo de hierarquização ou ordem de prioridades. Contudo é possível identificar alguns mais imediatamente visíveis e que agruparemos conforme três motivações fundamentais: voltar-se à presença do outro; otimizar a interação e enriquecer horizontes. Voltar-se à presença do outro Por tudo o que foi dito, torna-se evidente, no que se refere às tecnologias disponíveis, a necessidade de superar a restrição àquelas que trabalhem restritamente com uma racionalidade instruída pelos objetos das ciências biomédicas. Embora estas ciências ocupem lugar fundamental e insubstituível, pelo tanto que já avançaram na tradução de demandas de saúde no plano da corporeidade, ao atentarmos à presença do outro (sujeito) na formulação e execução das intervenções em saúde, precisamos de conhecimentos que nos instruam também desde outras perspectivas. É assim que a tradução objetiva das identidades e aspirações dos indivíduos e populações de quem cuidamos, para além da dimensão corporal realizada pelas ciências biomédicas, guarda enorme interesse para o Cuidar. Conceitos e métodos da psicologia, da antropologia, da sociologia, podem nos ajudar a compreender mais ricamente os sujeitos com os quais interagimos nas e pelas ações de saúde. Muito em particular, o recurso a estas outras possibilidades objetivadoras são essenciais para superar a perspectiva individualista que exerce tão forte influência em nossas práticas de saúde, desde suas raízes gregas. Claro que não se pode imaginar que a incorporação de outras perspectivas científicas que tratem de estruturas e processos transindividuais seja o suficiente para superar os excessos individualistas das tecnologias da saúde. Há aqui determinantes de diversas outras ordens que precisam ser considerados. Porém, se não é suficiente, certamente esse é um movimento necessário, pois tais disciplinas podem estender a fabulosa capacidade das ciências de produzir consensos intersubjetivos e instrumentalmente orientados a regiões discursivas que se ocupem de experiências coletivas, grupais, culturais, institucionais, ampliando possibilidades de aproximações tecnológicas a essas regiões. As bases científicas das tecnologias de saúde não precisam (e não devem) ficar restritas às ciências biomédicas. Um exemplo da possibilidade e relevância desse enriquecimento disciplinar na instrução de práticas de saúde, e do correlativo alargamento do escopo de suas ações, é a proposição do quadro conceitual da vulnerabilidade (Mann & Tarantola, 1996; Ayres et al. 2003), desenvolvidas no contexto da epidemia de HIV/AIDS. O enfoque da vulnerabilidade tem se mostrado um valioso instrumento para escaparmos à

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lógica cognitivo-comportamentalista na compreensão da suscetibilidade à infecção pelo HIV e, consequentemente, tem nos permitido ampliar as intervenções preventivas para além do território e responsabilidades restritas à individualidade. Temos também clareza, por outro lado, de que não é só na ampliação do espectro de saberes científicos que temos que trabalhar para que o outro e seus contextos estejam presentes no Cuidado. Mesmo considerando as diferenças de pressupostos e métodos das diversas disciplinas, a tendência dos saberes científicos, de modo geral, é trabalhar com regularidades, com relações de determinação que serão sempre muito abstratas com referência às situações concretas que vamos encontrar no cotidiano das práticas de saúde. Por isso é preciso também um trabalho de reconstrução que se dê no espaço mesmo de operação dos saberes tecnológicos. Nesse sentido, parecenos bastante produtiva a classificação proposta por Merhy (2000) para os diferentes “estágios” de conformação e operação de tecnologias, chamando a atenção para a importância das “tecnologias leves”, aquelas implicadas no ato de estabelecimento das interações intersubjetivas na efetuação dos cuidados em saúde. O espaço das tecnologias leves é aquele no qual nós, profissionais de saúde, estamos mais imediatamente colocados frente ao outro da relação terapêutica. Assim, dependendo do modo como organizamos este espaço de prática, teremos maiores ou menores chances de que, através do fluir de uma sabedoria prática por entre o mais amplo espectro de saberes e materiais tecnocientíficos disponíveis, a presença desse outro seja mais efetiva e criativa. Com preocupações desta natureza, vemos recentemente tomar forma algumas das mais importantes iniciativas no sentido de reconstrução das práticas de saúde por meio de reflexões e inovações em aspectos da maior relevância no cuidado em saúde, como acolhimento, vínculo e responsabilização na organização da assistência à saúde (Silva Jr et al., 2003). Otimizar a interação O espaço privilegiado das tecnologias leves nos traz a essa segunda área de motivação, que é a da otimização das interações. Teixeira (2003) chama a atenção para o fato de que o espaço das tecnologias leves pode ser entendido, por sua dimensão comunicacional, como um espaço de conversação e os serviços de saúde como complexas e dinamicamente interligadas redes de conversação. Demonstra, a partir dessa perspectiva, que os onipresentes e substantivos diálogos que entretecem todo o trabalho em saúde não conformam apenas a matéria por meio da qual operam as tecnologias, mas que a conversação, ela própria, na forma em que se realiza, constitui um campo de conformação de tecnologias. O autor exemplifica sua posição com a questão do acolhimento, mostrando que mais que um espaço de recepção, ou um ponto determinado de um fluxograma, o acolhimento constitui um dispositivo que pode perpassar todo e qualquer espaço e momento de trabalho de um serviço de saúde. Para isso, e o mesmo raciocínio parece valer também para a questão do vínculo e da responsabilização, basta que as tecnologias de conversação sejam desenvolvidas no sentido de uma ausculta sensível – que permita em todos

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esses espaços e momentos a irrupção do outro, com suas variadas demandas – e de uma orientação assistencial voltada à integralidade do cuidado – com capacidade e agilidade de produzir algum tipo de resposta do serviço a essas demandas. Por outro lado, quanto mais tais redes de conversação forem percebidas e trabalhadas, tanto mais as vozes e demandas dos sujeitos técnicos se farão ouvir também, pois, do mesmo modo que os indivíduos e populações “alvo”, também os operadores da técnica se vêm limitados em sua expressão subjetiva por tecnologias instruídas por categorias excessivamente universais, abstratas e rígidas. Instruídos por uma concepção dialógica, não apenas a sensibilidade da ausculta (bilateral) e a capacidade de resposta devem ser repensados nos serviços de saúde. A própria avaliação do que seja o bom êxito das ações desenvolvidas precisa sofrer rearranjos correspondentes. Sob este modo de ver, não faz sentido, por exemplo, enxergar necessariamente como fracasso os limitados resultados obtidos no desempenho de uma atividade, a não adesão a uma proposta de atenção ou mesmo a pouca demanda por um serviço oferecido. Desde uma compreensão dialógica das ações de saúde, todo e qualquer fracasso técnico, como também todo e qualquer êxito, admite (e reclama) ser avaliado simultaneamente quanto ao seu significado prático. Em outras palavras, é preciso que não apenas o alcance de fins, mas também a qualidade dos meios, isto é, a efetividade comunicacional das atividades assistenciais, em termos de forma e conteúdo, se incorpore como preocupação e norte do planejamento e avaliação das ações e serviços de saúde (Sala et al., 2000). Enriquecer horizontes Finalmente, a orientação em relação a um Cuidar efetivo, no qual a presença do outro seja ativa e as interações intersubjetivas sejam ricas e dinâmicas, exige que tanto a racionalidade orientadora das tecnologias quanto os âmbitos e agentes de sua operação tenham seus horizontes expandidos. É preciso superar a conformação individualista, rumo a esferas também coletivas, institucionais e estruturais de intervenção e enriquecer a racionalidade biomédica com construtos de outras ciências e outros saberes. Todos esses nortes dependem de que saiam do jargão sanitário e passem a fazer parte de efetivos rearranjos tecnológicos as surradas bandeiras da interdisciplinaridade e intersetorialidade – as quais nunca será demais endossar. A essas somaríamos outra, ainda, não tão celebrada mas já relativamente valorizada: a da pluralidade dialógica, isto é, a abertura dos espaços assistenciais a interações dialógicas por meio de linguagens outras, como a expressão artística, o trabalho com linguagens corporais e mesmo outras racionalidades terapêuticas. Temos razões objetivas para otimismo em relação às possibilidades atuais de expansão de horizontes. Conforme dizíamos no início, há uma série de novas propostas em curso no campo da saúde, algumas ainda apenas na forma de discursos, outras já se estendendo como práticas mais consolidadas que podem contribuir nessa direção. Os Programas de Saúde da Família (PSF) dão nova base para articulações intersetoriais e promovem a entrada de novos cenários, sujeitos e linguagens na cena da assistência; a

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sensibilidade para os aspectos sócio-culturais do processo saúde-doença ganha novo ímpeto com a crescente ênfase dada à promoção da saúde; quadros como o da vulnerabilidade resgatam os aspectos contextuais e institucionais como esfera de diagnóstico e intervenção em saúde, chamando à interação entre diferentes disciplinas e áreas do conhecimento; a vigilância da saúde incorpora novos objetos e tecnologias e, especialmente, propicia um intenso protagonismo comunitário na definição de finalidades e meios do trabalho sanitário. Todas essas mudanças constituem novas interfaces dialógicas com enormes potenciais para os sentidos de reconstrução das práticas de saúde que viemos de discutir. Resta-nos agora o não pequeno desafio de fazer com que os novos discursos trazidos por e com essas recentes proposições permitam, efetivamente, reconstruir nossas práticas de saúde para que possamos sempre mais chamá-las de Cuidado. Referências ACKERKNECHT, E. H. A short history of Medicine. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1982. ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. AYRES, J. R. C. M. Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec, 1997. AYRES, J. R. C. M.; FRANÇA JÚNIOR, I.; CALAZANS, G. J.; SALETTI FILHO, H. C. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Orgs.) Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p.117-39. CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Orgs.) Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 1997. FOUCALT, M. O nascimento da Medicina Social. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p.79-98. FOUCAULT, M. História da sexualidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002. GADAMER, H.G. Verdad y método. Salamanca: Sígueme, 1991. GRONDIN, J. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 1999. HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1995. MANN, J.; TARANTOLA, D. J. M. (Eds.) Aids in the world II. New York: Oxford University Press, 1996. MENDES GONÇALVES, R. B. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Abrasco, 1994. MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor saúde. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.4, n.6, p.10916, 2000. PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Orgs.) Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-Abrasco, 2003.

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CUIDADO E RECONSTRUÇÃO DAS PRÁTICAS...

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AYRES, J. R. C. M. Cuidado y reconstrucción de las prácticas de Salud, Interface Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.73-92, set.2003-fev.2004. Presenciamos recientemente la emergencia de una serie de nuevos discursos en el campo de la salud pública, mundial y nacionalmente, tales como la promoción de la salud, vigilancia de la salud, salud de la familia, reducción de vulnerabilidad, entre otros. No obstante, una efectiva consolidación de esas propuestas y su consecuente desarrollo parecen depender de transformaciones bastante radicales en nuestro modo de pensar y hacer salud, especialmente en sus presupuestos y fundamentos filosóficos. Es en la condición de una desconstrucción teórica, con vistas a contribuir a la reconstrucción en curso en las prácticas de salud, que se quiere poner en debate la presente reflexión. En ese sentido, se examina el cuidado bajo tres perspectivas conceptuales: como categoría ontológica, como categoría genealógica y como categoría crítica. La hermenéutica realizada en la interfaz de esas tres perspectivas permite apuntar direcciones donde parece productivo un esfuerzo de reconstrucción de las prácticas de salud: un activo movimiento de profesionales y servicios de salud en el sentido de dedicarse activamente a la presencia del otro en el espacio asistencial, la optimización y diversificación de las formas y calidad de la interacción yo-otro en esos espacios y el enriquecimiento de los horizontes de conocimientos y prácticas en salud en una perspectiva decididamente interdisciplinar e intersectorial. PALABRAS CLAVE: Promoción de la salud; práctica de salud pública.

Recebido para publicação em 15/12/03. Aprovado para publicação em 30/01/04.

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artigos

O lugar, a teoria e a prática profissional do médico: elementos para uma abordagem crítica da relação médico-paciente no consultório

Giovanni Gurgel Aciole 1

ACIOLE, G. G. The place, theory and professional practice of the physician: elements for a critical approach to doctor-patient relations in the consulting room, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.95-112, set.2003-fev.2004.

The doctor-patient relation is discussed in this paper based on three analytic elements: 1) the consulting room as a place where what occurs, predominantly, is medical practice; 2) the scientific rationality of the biological mold that shapes the near-totality of the theoretical basis of this know-how; and 3) the structural and circumstantial issues that organize the professional practice of physicians. Assessing this relation within the context of the central dimension of medical practice, the author indicates that overcoming the boundaries defined by these elements calls for a different kind of professional practice and for the broadening of its theoretical basis, so as to establish a relationship between the physician and his patient based on a different value and a different meaning. KEY WORDS: Doctor-patient relations; Medicine; Health; societies; conducts in medical practice. A relação médico-paciente é aqui discutida a partir de três elementos analíticos: 1) o consultório como lugar onde se exerce, predominantemente, a prática do médico; 2) a racionalidade científica de matriz biológica que conforma a quase totalidade das bases teóricas deste saber fazer; 3) as questões estruturais e conjunturais que organizam a prática profissional do médico. Propondo considerar esta relação numa dimensão central para a prática médica, aponta-se que a superação dos limites colocados por esses elementos deve se dar por meio de uma outra prática profissional e do alargamento de suas bases teóricas, que acabem por constituir um outro valor e significado para o encontro entre o médico e seu paciente. PALAVRAS-CHAVE: relações médico-paciente; Medicina; Saúde; sociedades; condutas na prática dos médicos.

1 Professor do Departamento de Medicina Social e Preventiva da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (FM/Puccamp); Presidente do Sindicato dos Médicos de Campinas e região (Gestão 2003-2006). <aciolegg@terra.com.br>

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O lugar e os elementos teórico-práticos da prática médica O lugar por excelência do acontecimento da clínica é o consultório médico. Independente da forma pela qual se objetive, ou do setor de produção em que se localize – se sob a gestão estatal nos serviços públicos, ou sob a forma de atividade liberal, autônoma – neste lugar, a clínica assume contornos de prática individual e privada, isto é, representa um modo singular de intervenção que, embora assentada em matrizes explicativas de natureza coletiva, se exerce na solidão do corpo individual. A prática clínica ao se deslocar do consultório para outros espaços como o hospital, em suas enfermarias, adquire outras feições, que não cabe aqui comentar, embora também lá conserve substancialmente o aspecto técnico do saber fazer médico. No hospital, entretanto, a prática clínica fica mais empobrecida em sua função relacional, dado que, neste lugar, se consuma a completa sujeição do paciente, reduzido liminarmente à condição passiva de objeto. O consultório médico é, pois, o lugar de realização de uma prática clínica, espaço onde ela se realiza, ou ainda o lugar em que o procedimento de consulta, ali praticado, encontra possibilidades de realização. Sob esta condição, o consultório se apresenta como o espaço de localização, e de explicitação, de um saber fazer, o do médico, que utiliza uma disciplina, a semiologia. Esta disciplina (no sentido foucaultiano) diz respeito à arte da apreensão dos sinais e sintomas observáveis aos sentidos e é composta de dois momentos: uma linguagem propedêutica - a anamnese - e uma ferramenta diagnóstica - a semiotécnica. A primeira parte consiste na realização de um interrogatório dirigido à obtenção de informações ordenadas sobre o paciente cujo raciocínio lógico se baseia numa taxonomia de doenças. Este arranjo taxonômico estabelece um significado para o conjunto de informações colhidas e, por sua vez, define uma linha de procedimentos para a intervenção clínica na direção da cura e/ou da proteção à saúde. A segunda parte se refere à perfeita e adequada utilização dos sentidos, como o tato, a visão e a audição, em procedimentos como palpação, percussão e ausculta, que buscam acrescentar, aos elementos colhidos na etapa anterior da consulta, outras informações que corroboram ou redirecionam o raciocínio taxonômico iniciado pela anamnese, mas que guardam com a primeira intrínseca relação, uma vez que tanto ordena possível novo interrogatório como é ordenado por este. No momento de acontecimento da clínica, é que se realiza, ou deveria de realizar, o encontro de duas subjetividades, a do médico e a do seu paciente. Este último constitui o objeto de trabalho do saber fazer médico, que se ancora e se inicia, na necessidade de um diálogo, ainda que seja o diálogo induzido pela interrogação da anamnese. Não obstante, esta é uma situação liminar que exige o refúgio num espaço particular, o consultório, indispensável na construção de uma relação de poder - antes um poder fazer, poder operar. Este momento, por sua vez, traz duas condições imprescindíveis para uma situação dialógica de fato, que estão presentes no exercício da prática clínica e, em particular, na relação entre médicos e pacientes. Uma destas condições é a da ciência, isto é, um certo modo de se dar a conhecer alguma coisa sobre a realidade, que se desdobra num contínuo e complexo conhecimento. Fundada cientificamente, a prática médica demanda a necessidade de qualificação específica de extenso e complexo conhecimento científico. Há algo, contudo, que a faz separar-se dos demais trabalhos técnicos e científicos: o imperativo moral, peculiar a sua ética corporativa, que implica uma sabedoria incomum no uso tanto dos conhecimentos quanto dos valores de conduta e que, por isso mesmo, necessita de uma segunda condição: a arte. Arte como capacidade de apreensão e síntese mediada pelos sentidos e de talentosa criatividade de proceder tecnicamente por intermédio de uma ética adequada, ou seja, a

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capacidade de elaborar uma tecnologia do afetivo no científico, muitas vezes tomada como humanismo, em que ouvir, receber, interessar, confortar, orientar são formas de dispor ações técnicas derivadas da ciência (Schraiber, 1993). Arte, porém, que não logra atingir a função apontada por Fischer (1987), para quem esta concerne sempre ao homem ‘total’ e o capacita a identificar-se com a vida dos outros, a incorporar a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser. Arte enquanto signo de transcendência: permanentemente datada segundo um recorte histórico, porém imanente como manifestação específica do gênero humano e só a ele possível de realizar e apreender. No encontro do consultório há, além disso, duas distintas subjetividades. São, porém, oriundas de interesses divergentes, e em duas situações antagônicas, que devem dialogar: um sujeito, portador de necessidades que colocam em xeque sua condição de normalidade; outro sujeito, doador de possibilidades, cientificamente dadas e aprovadas, para a superação e o retorno à condição de higidez. Na situação de um encontro desta natureza, habita uma necessidade: encontrar a saída possível e desejável, dada por uma (re)direcionalidade, agora conjunta, que agregue as subjetividades do usuário e do médico num processo de interação comumente denominado de relação médico-paciente. Esta relação, construída, assentada e baseada nesta conjunção - de base subjetiva constituir-se-ia por um conjunto de necessidades e elementos a que se somariam as capacidades aprimoradas de intervenção resolutiva, portanto, de forte concretitude e objetividade. Esta capacidade aprimorada é dada pelo apoio material e instrumental agregado pelo desenvolvimento científico e tecnológico, gerador de novos produtos e equipamentos capazes de aprimorar a capacidade diagnóstica e terapêutica da intervenção médica, tanto quanto de novos e maiores conhecimentos dirigidos à obtenção de um padrão de qualidade de vida, e de uma maior certeza acerca da capacidade humana de superar seus limites na sua eterna luta de adaptação às condições hostis da sobrevivência. Sob tais elementos e complexidade, habita no consultório esse encontro contínuo e tenso entre necessidades e capacidades! As variáveis que medeiam a relação entre o paciente e o médico Além destas condições assinaladas – os binômios ciência/arte e técnica/moral – há as mediações colocadas por variáveis que interferem na construção de uma conjugação favorável entre as subjetividades do médico e do paciente. Passemos, pois, às considerações sobre algumas variáveis envolvidas nesta relação, que têm, de um lado, o avanço inegável do eixo ciência-tecnologia a ampliar a capacidade de solução de problemas e, de outro, a sensação de desamparo e insegurança verificada no plano dos indivíduos e coletivos atendidos. Mediações que permitem, por exemplo, a constatação da inadequação do conjunto dos serviços de saúde, públicos ou privados, de resolverem os problemas de saúde, quer no plano individual, quer no coletivo. Constatação ainda mais paradoxal diante dos avanços científicos em torno dos problemas de saúde e de suas soluções, do desenvolvimento de

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um arsenal tecnológico existente e disponível em serviços equipados para suas intervenções. Esta situação gera e reforça um sentimento de desproteção do cidadão comum. Tanto mais pungente quanto aquele cidadão comum reclame da falta de interesse e de responsabilização dos diferentes serviços em torno de si e de seu problema de saúde (Merhy, 2002). A primeira variável é o saber fazer médico. Este representa o conjunto de conhecimentos estruturados que permitem sua reprodução e utilização (consumo) pelo usuário, com conseqüente definição de um valor de uso para a intervenção médica e, deste modo, a legitimação da prática médica no espaço social. Este conjunto de conhecimentos e técnicas é composto: pelas Ciências Biológicas (Biologia Molecular, Genética, Microbiologia), pelas Ciências Morfofuncionais (Anatomia, Fisiologia e Patologia), e pelos saberes instrumentais tecnológicos oriundos da Semiologia, da Patologia Clínica e da Imagenologia (Luz, 1987). O fato de ter forte base nas Ciências Biológicas faz com que este conjunto de saberes e instrumentos constitua para a Medicina uma prática profissional armada e intervencionista que extirpa o problema que se localiza em parte específica do corpo como um mal externo a ser debelado e curado. Esta concepção representa o senso comum do que é a profissão no imaginário social e encontra, no consultório, o espaço, o lugar da prática médica por excelência, alimentador e reforçador da mesma. Outra variável nesta questão é o próprio paciente, o indivíduo no qual se exerce o saber fazer médico para legimitação do uso do saber médico: substrato sob o qual se produz um enorme valor de uso para a ciência médica. Para a relação em exame, o paciente acaba como o pólo passivo sobre o qual se opera uma transformação produzida pelo médico. Definamo-lo, pois, como aquele que tem a possibilidade de tornar-se, a quem quase nunca cabe um poder operar. A necessidade do paciente de ser transformado, por outro lado, é recortada, e significada, a partir da capacidade de objetivação do saber fazer médico, em grande medida, negadora de sua subjetividade, o que acaba por reduzir aquele a sua dimensão biológica. Cabe considerar, ainda, que o termo paciente ganha uma denominação prismática sob a qual ficam compreendidas várias situações significativas, a destacar a já mencionada, de alguém sobre quem se exerce o poder (potencial) de vir a ser, de se transformar. Desta forma, podemos denominar “pacientes” todos aqueles que fazem utilização habitual de um dado bem ou serviço público ou coletivo, ou de fregueses ou clientes. Estes significados remetem-nos a planos de relação distintos. No primeiro caso, o termo usuário remete aos serviços de produção do cuidado individual e coletivo sob a ótica do direito de cidadania, cujo acesso vem sendo marcado pela idéia de direito social, de natureza igualitária e coletiva. Já clientes ou fregueses, remetem aos mecanismos pautados pela ótica jusnaturalista do direito individual, porém, ajustado em relações de mercado, de compra e venda de serviços, numa livre competição entre consumidores e produtores, tomados como iguais e em situação de simetria. Esta distinção configura uma certa dicotomia de Estado e mercado, público x privado, que é fortemente arraigada no senso comum (Aciole,

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1999). Não pode, contudo, fazer obscurecer a idéia de que, seja no setor público seja no setor privado, os pacientes devem ter necessidades específicas reconhecidas e atendidas. Entre estas pode ser considerada a garantia de acesso a tecnologias compatíveis com a complexidade do seu ‘problema’ de saúde e/ou obter ‘escuta’ e atenção singular a sua pessoa por um profissional ou por uma equipe de saúde com a qual produza vínculos (Cecilio & Matsumoto, 2000). Este usuário/cliente pode, ainda, apresentar-se perante os serviços com diferentes demandas. Uma é a demanda por cuidado, pela solução de um problema de saúde, uma necessidade básica de cuidado ou intervenção cuidadora. Outra, é a do usuário que comparece para solicitar procedimentos de natureza administrativa como emissão de um atestado de saúde, certificado, declaração ou similar, e no qual não se verifica alteração digna de cuidado, ou cuja situação de normalidade não está posta em risco. Uma terceira possibilidade é a do usuário que se apresenta na forma de um coletivo, grupo ou instituição, como creche, escola, associação etc., para a qual se pode considerar as duas demandas anteriores, necessidade de cuidado específico e/ou de procedimentos normativos administrativos. Uma quarta situação é a do usuário que se apresenta sob representação, como o do conselheiro de saúde local ou municipal. Este, tanto pode reclamar atenção para si, quanto para aqueles que representa, o que lhe dá uma complexidade, na qual a sobreposição de papéis lhe confere uma múltipla identidade. Estas situações apresentadas querem ressaltar a necessidade de diferentes níveis de diálogo, quando muitas vezes se adota uma postura rígida e inflexível que não conjuga diferentes tempos gramaticais e lingüísticos, semântica e semioticamente, somente considerando a abordagem uma dimensão do contato. Contato matizado pela linguagem utilizada, de predomínio temático focado na doença, tomada em seu aspecto “naturalizado” e, assim, biologizado. Podemos dizer, parafraseando Marcuse (1980), que a comunicação realizada, nos serviços de saúde, em geral, e nos consultórios, em particular, padece de uma redução unidimensional: a linguagem médica biologizada unidimensionalmente. Convém destacar a importância das determinações de natureza econômica, ideológica, cultural e política que interferem nesta questão, apontando a construção de estruturas mercadológicas, com segmentação e exclusão de contingentes populacionais do acesso e consumo de serviços e tecnologias, bem como da gestão estatal posta a serviço de lógicas delimitadoras de infraestruturas de baixa e alta densidade tecnológica ou de políticas focalistas ou universalistas. Há, neste sentido, uma ausência de diálogo profícuo entre os médicos e seus pacientes - poderíamos dizer entre os trabalhadores da saúde e os pacientes - uma vez que os primeiros parecem perdidos num ponto eqüidistante entre o cliente e o usuário. Estas duas condições referem-se às supostas condições de atendimento no espaço privado, lugar do cliente, e no espaço público (estatal), lugar do usuário (Aciole, 1999). Aliás, a distinção de ‘privado’ e ‘público’ segundo diferenciais de qualidade é cada vez mais difícil, se olharmos aspectos como produção de segurança, satisfação dos

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usuários, vinculação e responsabilidade, ou mesmo, resolutividade (Aciole, 2000). Outro forte aliado para a ausência de uma relação dialógica entre o médico e o paciente encontra-se, a nosso ver, na mediação de um processo de gestão do trabalho que, ao correlacionar de modo anacrônico a produção e a remuneração - numa equação que correlaciona custo e benefício - dá, a esta última, aspecto de retribuição de merecimento a partir da relação tempo versus produção, em que pese não ter uma vinculação direta. Sendo unicamente uma exploração de força de trabalho numa fração contratada de tempo, contabilizada em horas de jornada disponível. Assim, a gestão acaba restrita, na maioria dos casos, a serviço de prover as condições necessárias ao mínimo de interrupções do processo de trabalho, numa perspectiva de cunho essencialmente taylorista. Com isso, submerge sua potencialidade de atuação no desenvolvimento do trabalho solidário e crítico, e do planejamento da oferta de serviços. Ganha, desta forma, uma lógica estritamente quantitativa, quase nunca qualitativa; fiscalizadora nunca apoiadora; controladora - nunca avaliadora. No setor público, ademais, uma especificidade da gestão diz respeito aos seus imperativos de atender a uma “saúde pública”, aqui entre aspas para se referir ao seu objetivo institucional de organizar a prestação da assistência nos serviços mantidos pelo Estado. Nestes combinam-se a tarefa de ampliar a cobertura para a população mais carente e excluída com o atender aos imperativos de uma extensão de cobertura a custos compatíveis a que o desenvolvimento econômico dos países periféricos possa suportar, estendendo a assistência médica, talvez, de uma forma mais simplificada e barata do que gostaríamos de encontrar (Donnangelo, 1976). Esta lógica de gestão, incorporada ao senso comum como emblemática do espaço público, apresenta-se, por outro lado, matizada no espaço dito privado, posto que este é fruto de uma intensa segmentação do mercado da assistência à saúde. Nesta condição, vamos ter uma competição acirrada em que a disputa por uma clientela cada vez mais restrita tem provocado, ao contrário do que apregoa a regulação pela competitividade, uma queda acentuada na qualidade dos serviços prestados. Em que pese o bombardeio da opinião pública de que é o contrário, a relação entre os agentes do trabalho médico e seus empregadores é marcada pelo conflito entre expansão mercadológica na captação de clientela e adoção de mecanismos de regulação de custos/benefícios. Situação resultante da intensiva incorporação de tecnologia agregadora de valor de capital e de valores de uso e que permite extrair maior mais valia sobre o trabalho médico. E já se desloca fortemente na direção da captura do processo de trabalho, em seu aspecto mais direto que é a relação médico-paciente, por mecanismos oriundos de uma reestruturação produtiva traduzida em propostas como a do managed care e que já se implanta fortemente nos setores complementares à assistência pública (Merhy, 2002). Finalmente, mas não por último, é preciso considerar, como outra variável o paradoxo entre os avanços científicos – tanto em termos de conhecimentos quanto de soluções - em torno dos problemas das pessoas e das comunidades, e até da existência de serviços altamente equipados para

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estas intervenções, e o sentimento de desproteção que acomete o cidadão comum, especialmente na área da prestação de serviços de assistência, sejam públicos sejam privados (Merhy, 1997a). Concordamos com este autor, quando reconhece que os usuários de saúde desejam um trabalho clínico centrado neles, e que o trabalho médico é um arsenal poderoso de práticas clínicas, não exclusivas, contudo, pois, de uma maneira ou de outra, todos os trabalhadores de saúde fazem clínica (Merhy, 1997b). Mas é justamente o caráter desta possibilidade de fazer clínica que gostaríamos de pôr em discussão. Qual clínica? Quando interrogamos acerca disto, temos em mente que a referência daquele autor aponta, muito provavelmente, para o potencial inventivo de uma atenção centrada na escuta da singularidade e na preocupação cuidadora às necessidades dos pacientes. O que quer dizer uma clínica de sujeitos, quaisquer que sejam, desde que criadores, em si e para os outros. Condição que requer a singularidade de um espaço de consulta: o consultório. Antes, porém, receamos uma generalização da atitude médica mais geral, num fortalecimento do atual conceito de clínica, e de sua prática objetivadora, produtora de insegurança. Caso predomine esta atitude como o modo paradigmático da intervenção junto aos, e nos, pacientes, contrariando a manifestação reformuladora que faz aquele autor, continuaremos imersos no imenso paradoxo de ampliar as promessas tecnológicas de produção de longevidade e de intervenção na doença, enquanto aprofundamos a sensação de insegurança que acomete os indivíduos a quem se faz tais promessas. Refletir, então, sobre as possibilidades de construção de uma outra clínica é a tarefa a que devemos nos entregar! Um ponto de partida, por isso mesmo, pode ser buscado no exame crítico das fundamentações teóricas que nos conduziram até o momento. A teoria que conduz a uma prática “objetivadora” do trabalho médico Quando dizemos que o saber médico realiza a “objetificação” do paciente, fazemo-lo pelo reconhecimento de uma abordagem centrada na dimensão biológica do indivíduo. Ao fragmentar, ainda que artificialmente, o complexo corpo humano, em frações histológicas, anátomo-funcionais ou sistêmico-fisiológicas, a clínica médica, especialmente a atual, abstrai de si os demais planos de relações que reúnem e interligam estas partes num todo, e, com isso, produz a redução do homem à condição de objeto, transformando-o em coisa manipulável sobre a qual se intervém com medidas prescritivas ou invasivas. Neste processo, anula, ou faz desaparecer a dimensão subjetiva de tal “coisa”, transformando-a num simulacro do real, visto que cinde a relação dialética subjetivo-objetivo, realizadora do sujeito. E o justifica alegando a necessidade de um distanciamento crítico para o juízo diagnóstico, falacioso eufemismo de neutralidade. Uma vez que mencionamos a cisão da relação dialética sujeito-objeto, vamos nos referir ao pensamento marcusiano no que se refere à compreensão da relação intrínseca entre eles,

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particularmente quando aborda esta questão a partir da análise das formulações feitas por Hegel. Marcuse (1988) aponta-nos que Hegel, em sua ontologia, afirma a existência de uma estrutura universal da totalidade do ser e define que, diante disso, o ser seria, então, um processo: aquele pelo qual uma coisa “compreende” ou “se apodera” dos vários estados de sua existência, levandoos à unidade, mais ou menos duradoura, do seu em-si, constituindo-se, pois, como a mesma, através de toda mudança. Tudo o que é, existe, em maior ou menor grau, como um sujeito. Para Marcuse (1988), portanto, sempre segundo o pensamento hegeliano, a verdadeira existência só começa quando o estado imediato passa a ser compreendido como negativo, quando os entes tornam-se sujeitos e lutam por adaptar seu estado aparente as suas potencialidades. O processo dialético, diz-nos, tem sua força motivadora na pressão para superar a negatividade; processo num mundo no qual o modo de existência dos homens e das coisas é engendrado por relações contraditórias: assim, cada conteúdo particular só se expande ao mudar-se no seu oposto. Este último é parte constitutiva do primeiro, e o conteúdo do todo é a totalidade das relações contraditórias nele implicadas. Logicamente, a dialética começa quando o entendimento humano reconhece ser incapaz de apreender alguma coisa de modo adequado por meio das formas qualitativas ou quantitativas pelas quais a coisa é dada. O verdadeiro ser de alguma coisa surge como sendo diferente de si mesmo: existe, como no seu ser-outro. Em outras palavras, tudo o que existe só é real na medida em que atua num processo de relações contraditórias que constituem sua existência. O sujeito deve, pois, ser considerado como uma espécie de revelação de suas intrínsecas contradições. Assim, por exemplo, uma pedra é uma pedra e somente será alterada por uma força extrínseca que modifique seu ‘existir’, por exemplo, uma picareta ou uma força mecânica que a desloque no lugar; muito diferente é uma planta que existe, isto é, se desenvolve por si mesma, e já traz na forma de uma semente as condições potenciais que assumirá ao existir. Deste modo, uma pedra é um contínuo processo de ser uma pedra, mas uma planta existe totalmente no processo de semente, flor até a destruição. No caso do homem, este processo é ainda mais complexo, pois este é o único ser vivo que tem ‘conhecimento’ de seu próprio desenvolvimento; isto é, o entendimento de poder determinar sua auto-realização, de suas potencialidades e seus limites; seu vir a ser é o resultado do processo de sua adaptação à vida, em que repousa suas ações de trabalho e labor na produção da vida, e a razão só existe através da realização deste processo de ser (Marcuse, 1980). Com base nestas formulações, e para Marcuse (1980), a teoria hegeliana é considerada uma filosofia “negativa” porque seu racionalismo levava a uma crítica do que até então havia sido tido como verdade. As reações em contrário apontavam-na como capaz de reconhecer as potencialidades das coisas, mas incapaz de conhecer sua realidade. Para fazer frente a esta filosofia, que submete a realidade à razão

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transcendental, esboçou-se, principalmente com Auguste Comte, o que veio a se chamar de filosofia positiva, ou posivitismo em sua acepção moderna: concepção de compreender e estudar os fenômenos do mundo como objetos neutros, governados por leis universalmente válidas. Assim, opondose a interpretar os fatos como o trabalho, histórico, do homem, a filosofia positiva estudava-os segundo os modelos da natureza e sob o aspecto da necessidade objetiva. Esta contra-ofensiva foi reforçada pelo grande progresso verificado, especialmente nas Ciências Naturais, a partir da metade do último século até nossos dias, e também por ter logrado êxito em sua pretensão de conduzir à integração de todo o pensamento humano, influenciando, assim, os vários campos do saber, notadamente as Ciências Sociais e Humanas, em particular, as derivadas da Biologia (Marcuse, 1988). É neste estatuto do “positivo” que se ancora e estrutura todo o desenvolvimento e elaboração do pensamento clínico, notadamente no estatuto científico que recebe a Medicina. Esta, a partir de um enorme desenvolvimento, normaliza, disciplina e organiza as regras “universais” de produção e reprodução do saber fazer médico, até o ponto em que se pode, inclusive, reconstruir arqueologicamente seu nascimento, como fez Foucault (1994). Este, ao reconstruir os passos dados para a consolidação da clínica moderna, acaba por demonstrar a importância dos avanços da patologia, que elucida e localiza lesões e distúrbios fisiopatológicos, como fundamentais para a construção e consolidação da semiologia como forma de linguagem da clínica moderna. Sob este paradigma organiza-se a estrutura curricular da formação em Medicina, de modo que na trajetória de vir a ser médico, o aluno vai ser inicialmente apresentado ao silêncio do cadáver a dissecar, e consumirá os dois primeiros anos de sua formação na apropriação dos diferentes planos anátomo-funcionais biológicos. Como etapa intermediária, o estudante será apresentado a uma rica taxonomia de sinais e sintomas, tomada numa linguagem específica, a semiologia, cujo valor de uso lhe permite compreender, significar e intervir, sobre um corpo - agora vivo, mas que continua a se manifestar pelo silêncio dos órgãos que o médico vê, apalpa, percute e pressiona. Finalmente, este corpo será estilhaçado numa interminável variedade de disciplinas que formatam e organizam o saber interventor e que desconstrói o corpo humano em seus vários órgãos, sistemas e aparelhos, cada qual definindo uma especialidade que delimita seu campo de abrangência a partir de uma suposta integração dos vários sistemas e aparelhos: integração que só se daria nos planos abstratos de um lugar inexistente, e que responde pela fragmentação da prática médica que, por sua vez, formata a própria escola médica (Santos, 1998). É assombrosa a capacidade desta Medicina clínica que se constitui no segundo paradigma da História da Medicina (Foucault, 1994). A partir dela constrói-se seu objeto como um saber sobre o individuo, mas tomado como corpo doente que exige uma intervenção que dê conta desta sua singularidade, abstraída dos demais planos da realidade. Esta é a base da chamada Medicina científica e tecnológica atual, erigida nos pilares do

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positivismo científico (Schraiber, 1993; Aciole, 2000). Distante está, portanto, esta clínica de possibilitar acesso ao ser, como sujeito, limitando-se a recortar imagens estáticas, momentos, fragmentos corpóreos deste processo e a reificá-las como verdade, estabelecida pela referência às leis universais imutáveis e a-históricas. Um momento marcante desta forma de proceder foi aquele no qual se estabelece uma história “natural” da doença, ou seja, em que se estabelece o objeto da prática médica, acima e fora da dimensão imanente ao ser humano. Aqui mais uma vez, também em decorrência deste modus operandi, verificamos a ausência de uma relação dialógica entre o médico e o paciente, já que o primeiro nada mais faz do que ‘dialogar’ com a doença que habita o corpo do segundo, e com ela interage, articula, define, recorta e estabelece sua ação. E não com o sujeito que a porta, que se torna mero instrumento de acesso à doença! Geneticamente, podemos localizar a origem da ausência desta relação dialógica no processo de formação médica - outra variável - já que se trata de um processo centrado na dimensão biologicista (Santos, 1998). Esta dimensão não apenas se ramifica em todos os desmembramentos posteriores de superespecializações, mas é também, central à formação de todos os demais saberes correlatos desmembrados a partir da clínica médica, como as outras profissões da saúde. Este processo de formação da maneira como está estruturado, buscando explicitação de uma dimensão mensurável, constitui a primeira das grandes alienações que perpassam e condicionam o processo de produção do cuidado à saúde, por meio do instrumental clínico, centrado numa dimensão positivista que conduz à perda da dimensão crítica envolvida na produção dos indivíduos/sujeitos de sua ação e de sua vida. Processo de alienação que vai ser bem explorado, por exemplo, por Canguilhem (1990) cuja obra se ergue na defesa de que as fronteiras entre o normal e o patológico, entre o ser saudável e o ser doente, serão mais facilmente compreendidas se tomadas, não isoladamente, mas como um todo. A superação deste quadro requer uma profunda reforma no processo de formação do médico, que passa pela afirmação de que a construção de uma outra escola médica é tanto desejável quanto imperativa. Resta fazer, à luz das condições atuais, esta transformação possível e definir como e quando acontecer (Aciole & Merhy, 2003). A ‘alienação’ do trabalho e a organização da prática médica Próximo passo, nesse percurso crítico da relação médico-paciente (e, por extensão, da própria prática médica), é o de analisarmos a concepção de alienação de Marx. Para este (no que, aliás, empresta de Hegel que, por sua vez, o atualiza de Rousseau), é pelo trabalho que o homem vence a separação entre os mundos objetivo e subjetivo; transforma a natureza em um meio adequado ao seu próprio desenvolvimento; satisfaz suas necessidades vitais básicas. É o trabalho que permite exteriorizar nossa capacidade criativa e inventiva, tem forte dimensão ontológica, isto é, produtora de homens (Marx, 1983). Ou numa linguagem hegeliana, o trabalho objetiva o subjetivo, o sujeito se reconhece como produtor do objeto.

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Para que o trabalho se torne alienado, é preciso que a divisão social do trabalho, imposta pelo capitalismo, pela expropriação dos meios de produção do trabalhador, faça com que os indivíduos trabalhem para outros como se para a sociedade e para si mesmos. Assim, reificado, tornado objeto, o trabalhador aliena para o capital a sua força de trabalho, que se torna mercadoria destinada a produzir mercadorias, ou seja, o próprio trabalhador se torna mercadoria (Marx, 1983). Tal situação produz uma outra: a impossibilidade de o trabalhador se reconhecer naquilo que produz, que aparece como uma coisa externa, pronta em si mesma, dura como a pedra. Igualmente, as condições impostas pelo capitalismo são tais que obrigam o trabalhador a vender sua força de trabalho por um preço muito inferior ao trabalho que realiza, colocando o produto do trabalho fora do alcance do próprio trabalhador. É a este tríplice distanciamento que Marx denomina de alienação do trabalho: este se torna “outro”, alheio ao trabalhador, e deste para si mesmo (Marx, 1983). Este processo de expropriação do trabalhador produzido pelo capitalismo tem, ainda segundo Marx (1983), sua gênese facilitada pela produção de um exército de reserva o que impede ou delimita um nível baixo de poder reivindicador dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que reduz ao mínimo o valor de sua força de trabalho no mercado. A organização da prática médica tem sofrido este fenômeno por meio da multiplicação desenfreada de escolas médicas, nos anos setenta e oitenta do último século, desequilibrando o mercado na direção dos baixos salários. Ocorre então, o que é uma constatação cada vez mais comum, o esgotamento da Medicina como uma prática liberal. No caso médico, isto é resultado do fato de que a organização de sua prática tem sido afetada pelas transformações do modo de produção introduzidas pelo capitalismo moderno. Tal transformação traz a perda da dimensão liberal desta prática e a submete, cada vez mais, ao processo de expropriação dos meios de produção, transformando o médico num trabalhador. No sentido marxiano, significa que o médico é cada vez mais um produtor de trabalho que oferece a venda de sua força no mercado em troca da obtenção de uma renda, muitas vezes na forma de salário (Donnangelo, 1976; Schraiber, 1987), em que pese sua reiterada resistência e franca adesão ideológica ao status quo que lhe assegura a sociedade capitalista (Campos, 1988; 1992). Este processo tem se estruturado em torno da progressiva incorporação tecnológica ao trabalho médico, afastando-o da posse material de seus meios de produção, até o ponto em que ganha características muito específicas numa reengenharia tecno-produtiva, que vai remodelando menos a base tecnológica da própria Medicina e mais o território dos processos relacionais dos atos de saúde e das práticas que governam estes atos produtivos, na direção de que o trabalho vivo em saúde se veja quase totalmente capturado pelo trabalho morto: no caso caras e complexas mercadorias como equipamentos e máquinas que prometem saúde, mas mais trazem insegurança (Merhy, 2002). A esta política deliberada, associam-se as sucessivas crises econômicas, em que o modelo concentrador de renda produz o conseqüente deslocamento da profissão do exercício liberal como atividade central de captação de

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recursos via clientela individual. De modo que, hoje, o assalariamento é uma importante, senão principal, via de entrada da categoria no mercado de trabalho. No entanto, a classe médica ainda “sonha” com a clientela privada e com a manutenção de um status quo, presa a uma perspectiva romântica passadista que desconsidera a inexorável transformação da sociedade, na qual se organiza um mercado de trabalho e de consumo, produto e produtora das sobre-determinações que interagem em seu processo de constituição como corporação profissional, por sua vez, imersa numa teia complexa de situações na qual se busca, e se obtém, o acúmulo de diversos vínculos empregatícios: mera forma compensatória do processo de expropriação de que acabamos sendo vítimas e agentes (Aciole, 1999). Nesta trama, em particular, o setor público vai significar, para o médico, um lugar de baixa valorização ideológica, em que seu trabalho ganha dimensão de “bico”: forma ainda mais compensatória de reagir à expropriação da condição liberal que advoga possuir esta corporação (Aciole, 1999). Em grande medida, a persistência deste ideário de sobrevivência encontra seu lugar no processo que acompanhou a explosão de escolas médicas, no Brasil, no interior do qual estas incorporaram as diretrizes flexnerianas para a formação médica e para sua estruturação organizacional. Estas diretrizes estavam consoantes com as necessidades sociais ditadas pelo modelo capitalista em desenvolvimento, bem como em consonância com os avanços científicos legitimados, de então. Isto significou o encontro sinérgico entre sua dimensão de prática técnica que se estruturava de acordo com as características de uma prática social, e a racionalidade que fundamentava esta mesma prática social como direcionada para a construção e consolidação do modo de produção capitalista. Trazer a educação médica para a modelagem científica significou adotar, para aquela, os recortes imanentes dados para a condição de prática técnica: especialização do trabalho e fragmentação do saber (Aciole & Merhy, 2003). Estes têm sido os pilares e os marcos da educação médica, que marcam a complexa relação entre a Medicina e a sociedade, com o adicional de que o século XX revelou o esgotamento deste modelo. Seja porque se esgotou de fora, com as teorias críticas expurgando um certo exagero do centramento da razão; seja porque se esgotou de dentro, pelo próprio esgotamento de uma certa modalidade de expansão científica na qual produz parte de si na forma de tecnologia/equipamentos (Aciole, 2000). A este esgotamento associam-se as crises do modo de produção capitalista, resultantes dos antagonismos e conflitos sociais que vão sendo produzidos e mitigados, pela lógica do capital em sua trajetória histórica. Neste contexto, a Medicina tem sido justamente criticada no modo como vem se realizando tecnologicamente, agregando crescentes e estratosféricos custos, quer a tomemos do ponto de vista individual, quer como prática técnica fundante da saúde pública, sem com isso aumentar proporcionalmente sua capacidade resolutiva ou mesmo realizar sua promessa, muitas vezes implícita, de produzir saúde e felicidade (Aciole & Merhy, 2003). Além disso, como prática técnica e social, a Medicina produz um processo

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de trabalho específico: a prática médica. O processo de trabalho é aqui entendido como sendo, em geral, o modo como se organiza o saber fazer para objetivar resultados e, portanto, o modo pelo qual os conhecimentos, as normas e as técnicas se organizam ao longo do tempo em atividades que possibilitam a interação entre profissionais de saúde e usuários gerando o consumo de recursos materiais, de conhecimentos e de tecnologias, produzindo o consumo dos serviços de saúde e produzindo a sensação de saúde. No caso específico, o trabalho em saúde é determinado pelo saber fazer médico, que como já é fragmentário e compartimentado, tem esse caráter capturado pelo próprio processo, a ponto de o trabalho se tornar, outra vez, alienante. Isto também acontece porque os diferentes modos de competência profissional geram a exclusividade de cada segmento, que se legitimam na produção de atos, que são os procedimentos, cujo compromisso é com a perfeição da técnica em si, e com o pressuposto de que sua somatória compõe um padrão de assistência, de que decorre a luta fratricida pela afirmação de atos corporativos e joga as corporações num processo abstraído do contexto social em que atuam, vendo-se como práticas técnicas exclusivamente. Neste processo, mascaram-se, ou perdem-se de vista, as implicações sociais que tais práticas também possuem e fica quase impossível reconhecer a realidade de alienação (no sentido dado por Marx) que o capital tem produzido sobre o trabalho médico, tendo a este como mais uma mercadoria produtora e reprodutora de mercadorias. Condição, aliás, a que pode ser relegado o ato médico (Aciole, 2003). Fruto desta somatória de fatores resulta, conseqüentemente, um trabalho cada vez mais alienante, produtor e reprodutor daquela sensação de insegurança, a que já aludimos, e duplamente alienado: na sua substância e na sua prática. Em direção a uma outra relação médico-paciente É deste modo, duplamente alienados, duplamente eqüidistantes, que produzimos nossa grande contribuição para a ausência da relação dialógica com nossos clientes, ou pacientes. E esta contribuição reside no modus operandi com que vimos exercendo nosso saber fazer. Ao se render incondicionalmente à supremacia compartimentadora que o avanço tecnológico trouxe de modo incomensurável à prática do saber fazer, nós, médicos, acabamos por colocar a penúltima pá de cal na possibilidade transformadora da clínica e aniquilamos seu espaço, transformando o consultório numa espécie de entreposto mercadológico entre os nossos pacientes e nossas máquinas maravilhosas. E o reforçamos, dedicando-nos, em imensa maioria, a centrar esforços para acumular habilidades no uso da tecnologia armada, hipervalorizando a supremacia tecnológica, saudada como paradigma absoluto de modernidade, esquecidos, alienados, ou submissos às determinações de interesses da cadeia produtiva, na qual nos inserimos como agentes da voz ativa e da voz passiva. Esta atitude explica em grande parte, por exemplo, a intensa desvalorização do acontecimento da clínica, que é a consulta, e, por

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extensão, do seu lugar - o consultório. Ainda que seja pelos condicionantes da gestão externa sobre ela, mas, igualmente, porque a categoria vem tratando a consulta clínica como um momento menor, subvertendo seu potencial criativo e instaurador de uma relação que se pretende, e se constrói, no diálogo entre subjetividades. Esta desvalorização encontra manifestação, por exemplo, no fato de que nos sistemas de remuneração do processo de trabalho, quer na esfera pública quer na privada, este seja o momento de menor valor específico, e que se expressa no pagamento de pouco menos de três reais no Sistema Único de Saúde ao procedimento de consulta médica simples. Este esvaziamento também produz o chamado serviço raso do pronto atendimento, ditado pelo binômio ‘queixa-conduta’. Neste tipo de serviço estão ausentes tanto a exploração de características psicossociais, culturais e familiares dos pacientes, quanto a reconstrução das suas condições de vida. Não se volta para qualquer finalidade que não seja a de tomar a ‘queixa’ como inteiramente derivada do estatuto ontológico que tem, para o médico, a doença, e de colocar aquela como fio condutor de escolhas terapêuticas (Mendes-Gonçalves, 1986). Tal prática significa uma clara expressão da adesão do profissional médico ao processo de expropriação da clínica, aliada à estruturação de um serviço de baixíssima resolutividade, cujo único produto é o de gerar lucro para os sistemas farmacêuticos e laboratoriais, pela produção desenfreada de exames laboratoriais desnecessários e a indução ao consumo, legal, de fármacos prescritos de modo automático e mecânico. Este processo de expropriação da arte na ciência médica e de dupla alienação da prática chega a provocar a redução na procura pela formação em áreas do saber fazer médico de baixíssimo poder de agregar custos à consulta, como a Pediatria. Esta especialidade tem seu centro nas orientações de puericultura e no acompanhamento clínico de pouca invasividade, gerando baixa utilização de exames ou procedimentos de mais alto custo, assim denominados por utilizarem maciçamente propedêutica armada ou invasiva de alta incorporação de tecnologia/equipamento. A reiterante alusão à subjetividade envolvida na relação médico-paciente decorre de que a consideremos uma relação tocada muito profundamente por uma dimensão cuidadora – dimensão que deveria subsumir o consumo de recursos e tecnologias como doadora de sentido para o existir da profissão. Vale ressaltar, do mesmo modo, nossa recusa em resvalar para um certo “psicologismo subjetivista” ou mesmo advogar caráter prescindível ao aporte tecnológico gerado pelo desenvolvimento científico. Pois isso seria negar as contribuições deste progresso científico para a certeza diagnóstica e para as alternativas terapêuticas, e até mesmo para o enfrentamento de patologias, com maior grau de eficácia e eficiência. Significaria, ainda, em última instância, apregoar uma romântica e saudosista volta ao passado, nem tão distante assim cronologicamente, em que as medidas heróicas quase sempre transtornavam mais o doente do que a doença em si. Tampouco pretendemos constituir aqui um argumento na direção de uma guinada estritamente filosófica, de modo a conduzir o ensino e a prática da clínica a um plano epistemológico de limites e contornos

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imprecisos. Antes, convém reconhecer que a objetificação do paciente até seja uma necessidade da eficácia do procedimento terapêutico, o que coloca a necessidade de uma reflexão mais profunda acerca desta questão. Todavia, pretendemos mergulhar na discussão suscitada por Santos (1999), ao propor a busca de caminhos para a construção de um novo saber fazer na clínica, quando menciona as propostas de Campos (1992) e Merhy (1997b). O primeiro, propõe uma clínica ampliada, ou uma clínica da singularidade na qual cada caso é um caso, mas que consegue dialogar e incorporar criticamente outros saberes e diretrizes, incorporando, por conseguinte, preocupações com o vínculo, a resolutividade e a responsabilização. O segundo propõe uma clínica subordinada às tecnologias leves, para propiciar acesso a linhas de fuga, em que os agentes do trabalho médico permitiriam a aparição do trabalho vivo. Isto é, de um agir portador de uma potencialidade e criatividade voltada para a produção de mudanças e rearranjos nos seus processos de trabalho que tome a relação com o paciente/usuário/cliente numa direção totalizante. E que esta relação, principal doadora do sentido para esta mesma prática, seja construída constantemente em ato. Em seus comentários, Santos (1999) acredita que o desafio para a construção de uma clínica ou outra, ou ambas, sem que se limitem a ampliar a superfície de registro e controle, reside na produção de novos conhecimentos autônomos que dêem um novo sentido para a clínica. Sentido este que invada o saber fazer que se produz e, com a força de um instituinte, tome a forma de um novo senso comum. Mas o que seriam estes conhecimentos autônomos doadores de um novo sentido para a clínica? Acreditamos que um passo inicial para esta ruptura e esta invasão do senso comum está em que se inicie urgentemente um movimento de revalorização do acontecimento clínico, a consulta, e o seu lugar, o consultório, dando-lhe um outro significado e uma outra direcionalidade na busca de se fazer espaço, também, para a subjetividade, produtora de conhecimento e de autonomia. Isto implica um duplo movimento: um, interno, de alargamento da prática fragmentária até seu oposto totalizante, pela incorporação crítica, todavia, de outros saberes mais voltados para este ângulo do “ser”, produzido no senso comum. Dito de outro modo, isto equivale a um movimento de significar a Medicina como “arte” mais do que como ciência absoluta. Contudo, tal significação representa menos um mergulho no campo do empirismo e do desenvolvimento de uma aptidão ‘natural’ e mais um movimento dialético de tornar-se um ser-outro, o seu negativo. Um outro, portador de um movimento externo ao lugar que, tendo em vista a recuperação do sentido da prática médica, se coloque em defesa da vida. Atitude que a todo instante requer uma ação constitutiva de um novo sujeito, o sujeito médico. Para fazê-lo é preciso começar por investir no consumo de um tempo maior para o exercício daquela fração de arte contida no ato do interrogatório e do exame físico, sempre lembrando a velha máxima de que a clínica é soberana e de que uma anamnese e um exame bem feitos já solucionam a grande maioria dos casos, porque respondíveis à necessidade

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básica humana de ser ouvido e reconhecido na condição de sujeito portador de singularidades. Para tanto, faz-se necessária uma retomada, ou uma aproximação profunda, com outras linguagens igualmente potentes para a elucidação diagnóstica, de conseqüência resolutiva, ancoradas nos saberes da psicologia, psicanálise e sociologia, por exemplo, mas também com a linguagem verbal, ilocucionária, ou pictórica. Tal medida teria o fim de, continuamente, refundar a clínica enquanto um saber estruturante de um ferramental de técnicas e saberes, e fundante de um novo olhar sobre o indivíduo. Dissemos de técnicas, não essencialmente de tecnologias! Tecnologias leves, não duras! Condição necessária para a aproximação eficiente e eficaz, facilitadora e construtora de uma relação na qual dialoguem subjetividades e se construa reciprocamente um compromisso de intervenção sobre um organismo, visto muito além de sua dimensão biológica, embora este seja o substrato de excelência onde o saber fazer médico opera sua legitimação. Para produzir trabalho vivo em ato, como quer Merhy (1997a), necessita, enfim, o médico superar os liames objetivos de seu trabalho alienado, emprestando a si o verdadeiro significado social de buscar as transformações na cadeia produtiva de insumos e equipamentos que tratam, enfim, a saúde como mercadoria, para devolver a esta a plenitude dos modos de andar a vida, e a capacidade de constituir normalidades. Ao deslocar o centro de gravidade da intervenção médica, na sua relação com os pacientes, para o consultório e para uma maior produção de tecnologia leve, cremos possível tornar-se o médico um sujeito com maior autonomia em relação à propriedade de seus meios materiais e, portanto, menos dependente de sua captura pelo capital. Para tanto, seu saber fazer, sua semiologia, deve ter incorporados novos signos e sinais, ampliando-lhe a superfície de registro e controle de sua clínica, a partir do mergulho, inclusive, numa perspectiva dialética crítica, que incorpore o “negativo”, como o vir-a-ser, o que torne quase impossível sua transformação em trabalho morto, ou sua fetichização em mercadoria (Merhy, 2002). É como movimento organizado, que a categoria médica pode romper com o vaticínio de sua adesão ao capital, em grande medida negadora da dimensão ontológica do trabalho (Antunes, 1999), e do seu trabalho, para a aproximação com o coletivo social, clamante de atenção e cuidado. Este coletivo vem reclamando da crescente sensação de desamparo e desassistência e já é comum a crítica dos bilhões gastos numa assistência cada vez menos produtora de respostas suficientes e satisfatórias, embora sempre repleta de máquinas e tecnologia. Talvez por se perceberem envolvidos na armadilha produtora de falsa segurança pela tecnologia cada vez mais desnudada, mais e mais indivíduos têm buscado amparo em outras formas de cuidado, entre as quais o fortalecimento das práticas holistas e até dos modismos ‘alternativos’. Ao mergulharmos junto com ela nesta crise, é preciso que não temamos o novo, como uma renegação do velho, e nem mesmo o diferente, como a emersão da novidade, abrindo-se, antes, para a produção de diversidade, em sendo diversidade. Para fazer isso, é preciso que busquemos, olhos e ouvidos atentos, semiológica e semioticamente, as incontáveis manifestações da

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O LUGAR, A TEORIA E A PRÁTICA PROFISSIONAL ...

realidade, conhecendo-a, admirando-a e conquistando segurança em trilhá-la, para permitirmos o resgate do primevo papel da Medicina, e da clínica. Tornados substitutos oficiais dos curandeiros, deles extraímos o místico e o execramos. Ao fazê-lo, em seu lugar colocamos uma outra regra de autenticidade e de legitimidade, o estatuto científico do saber médico: estatuto, como vimos, de base positivista, cujas origens cartesianas apontam para um dualismo que separa radicalmente corpo e espírito e elabora uma abordagem antropológica essencialmente mecânica. Mas não podemos negar que a legitimação que encontravam advinha justamente do exercício cotidiano do saber ouvir, antecessor ao saber fazer; pelo exercício paciente do conhecimento (compreensivo) de sua comunidade. Além disso, sua não recusa em constantemente (re)aprender, não somente os fazia amigos do conhecimento como recebedores de uma validação social indiscutível! Romper com as amarras do convencional biológico desalienando a clínica. Quebrar as velhas estruturas que cristalizam a alienação do trabalho. Esta é a dupla jornada a que devemos nos entregar na ampliação da prática médica, e na retomada da significância do consultório. Ao fazê-lo, reconstruiremos o valor social da própria Medicina. Referências ACIOLE, G. G. Entre o cliente e o usuário: uma discussão do trabalho e da cultura médica no Brasil. Rev. Jovem Médico, v.4, n.2, p.103-6, 1999. ACIOLE, G. G. Entre o estado e o mercado: apontamentos para uma discussão de “público” e de “privado” na saúde. Excerto de projeto de tese. Campinas: LAPA/DMPS/UNICAMP, 2000. Mimeografado. ACIOLE, G. G. O ato médico em questão. Campinas: Núcleo de Estudos e Pesquisas em Saúde e Sociedade: trabalho médico, políticas públicas e reestruturação produtiva/SINDIMED - CR, 2003. Mimeografado. ACIOLE, G. G.; MERHY, E. E. Uma nova escola médica é possível? Aprendendo com a CINAEM as possibilidades de construção de novos paradigmas para a formação em Medicina. Rev. Próposições, v.14, n.1(40), p.53-68, 2003. ANTUNES, R. Centralidade do trabalho: a polêmica entre Lukács e Habermas In: ________ Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. p.135-65. CAMPOS, G. W. S. Reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo: HUCITEC, 1992. CAMPOS, G. W. S. Os médicos e a política de saúde: entre a estatização e o empresariamento. A defesa da prática liberal da Medicina. São Paulo: Hucitec, 1988. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. CECILIO, L. C. O.; MATSUMOTO, N. F. Uma taxonomia operacional das necessidades de saúde. Campinas: DMPS/FCM/UNICAMP, 2000. Mimeografado. DONNANGELO, M. C. F. Saúde e sociedade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976. FISCHER, E. A necessidade da arte. 9.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. LUZ, M. T. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988.

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ACIOLE, G. G. El lugar, la teoría y la práctica profesional del médico: elementos para un abordaje crítico de la relación médico-paciente en el consultorio, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.95-112, set.2003-fev.2004. Este trabajo plantea la discusión de la relación entre el médico y su paciente en tres de sus elementos: a) el consultorio, como el lugar de la práctica médica; b) la racionalidad científico-biológica de su “saber hacer”; c) las cuestiones estructurales y coyunturales que aluden a los médicos. Proponiendo considerar esta relación como central para la práctica de la medicina, el autor argumenta que la superación de los límites colocados por esos elementos será alcanzada por medio de otra práctica profesional y por el alargamiento de sus bases teóricas, que constituyan otro valor y otro significado para el encuentro entre el médico y su paciente. PALABRAS CLAVE: Relaciones médico-paciente; Medicina; salud; sociedades; conductas en la práctica de los médicos.

Recebido para publicação em 02/05/01. Aprovado para publicação em 07/08/03.

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O processo de reformulação curricular de duas faculdades de Medicina no Brasil e na Argentina: uma abordagem comparativa*

Lilian Koifman 1

KOIFMAN, L. The process of curricular reform of two medical schools in Brazil and Argentina: a comparative approach, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.113-33, set.2003-fev.2004.

This work investigates, through a comparative approach, the process of curricular reform of the courses offered by two medical schools in Brazil and Argentina, namely, the Federal Fluminense University (UFF) and the University of Buenos Aires (UBA). We avail ourselves, as our starting point, of the Latin American higher education reforms and their discussions in the educational area. Our objective is to identify a set of tensions that manifests itself between the particular cultures of university organization, the desire for the uniformity of globalization and the quest for bureaucratic control derived from the regionalization of the Mercosur. Both countries are undergoing deep reform of their educational systems, articulated with the neoliberal policies of economic reform and the reduction of the role of the State in their respective societies. However, although there are formal similarities in several respects, the results of the analysis of the Brazilian and Argentinean realities reveal differences that should not be neglected. KEY-WORDS: Medical education; higher education; curriculum; medical schools.

Investigamos, em uma perspectiva comparativa, o processo de reformulação curricular de dois cursos de medicina no Brasil e na Argentina: o da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o da Universidade de Buenos Aires (UBA). Trabalhando com a metodologia do estudo de caso, utilizando a entrevista e a observação participantes como instrumentos, partimos do marco das reformas do ensino superior na América Latina e suas discussões na área de educação. Buscamos revelar um conjunto de tensões que se produzem entre as particulares culturas de organização universitária, as demandas pela uniformidade da mundialização e a busca do controle burocrático derivado da regionalização do Mercosul. Ambos os países estão passando por processos de profunda reformulação de seus sistemas educacionais, articulados com as políticas neoliberais de reforma econômica e de diminuição do papel do Estado nas respectivas sociedades. Resultados indicam que, mesmo existindo semelhanças formais em diversos aspectos, o exame das realidades brasileira e argentina revela diferenças que não devem ser negligenciadas. PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; educação superior; currículo; escolas médicas.

* Artigo elaborado a partir de Tese de Doutorado (Koifman, 2002), pesquisa realizada com recursos do CNPq e CAPES. Professora do Departamento de Planejamento em Saúde do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense ISC/UFF). <liliankoifman@hotmail.com>

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Apresentação Neste trabalho propusemos investigar o processo de reformulação curricular de cursos de Medicina no Brasil e na Argentina, estudando os casos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade de Buenos Aires (UBA). Partimos do marco das reformas do ensino superior na América Latina e suas discussões na área de educação. Buscamos revelar um conjunto de tensões que se produzem entre as particulares culturas de organização universitária, as demandas pela uniformidade da mundialização e a busca do controle burocrático derivado da regionalização do Mercosul (a necessidade de equivalências de programas e títulos, uniformidade de condições de acesso etc). Brasil e Argentina estão passando por processos de profunda reformulação de seus sistemas educacionais, articulados com as políticas neoliberais de reforma econômica e de diminuição do papel do Estado nas respectivas sociedades. Entretanto, mesmo existindo semelhanças formais em diversos aspectos, o exame das realidades brasileira e argentina revela diferenças que não devem ser negligenciadas. A partir da comparação entre os processos de reformulação curricular das faculdades de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade de Buenos Aires (UBA), perguntamos: quais as aproximações e divergências levando em conta cada contexto local e o contexto regional? Considerando que há um processo de integração curricular no Mercosul sendo desenvolvido, até que ponto tal processo está presente e influi nas discussões de reformulação curricular na UFF e na UBA? Quais são as motivações que, no contexto de crise dos sistemas públicos de educação e de saúde brasileiros e argentinos e suas respectivas reformulações, orientam as reformas curriculares? Essas questões foram investigadas a partir da comparação dos dois processos de reformulação curricular tomados como estudo de caso. Na comparação pudemos ver questões que se destacaram no caso brasileiro bem como no caso argentino, que apenas puderam ser devidamente dimensionadas quando contrapostas. As particularidades de cada caso passaram a receber a devida atenção e destaque a partir da abordagem comparativa. Para Marginson & Mollis (2002, p.584): (...) realizar um trabalho de educação comparada sempre envolve tanto diferenças quanto semelhanças. Diferenças e semelhanças são oposições filosóficas, mas não são necessariamente antagônicas ou mutuamente exclusivas, nem na teoria nem na prática. Sistemas educacionais mostram diversidade em um aspecto e semelhanças em outro; a relação entre ambos pode ser mais complementar que antagônica.

A comparação toma maior relevo hoje justamente no modelo teórico da globalização ou mundialização, no qual os países periféricos são tratados de forma homogeneizada pelos órgãos de financiamento internacional, fazendo com que pareçam todos semelhantes, mesmo que, na verdade, suas diferenças e especificidades sejam mantidas2.

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O PROCESSO DE REFORMULAÇÃO CURRICULAR...

2 As propostas de reforma educacional, de acordo com Gentili (1998), têm sua regularidade, verificada pela expansão de um mesmo núcleo de diagnósticos, propostas e argumentos acerca da crise educacional e suas supostas saídas, assim como na circulação e no impacto que os documentos e recomendações do Banco Mundial e do FMI têm na definição das políticas públicas destinadas a esse setor. Nestas propostas, são a avaliação das instituições educacionais e o estabelecimento de critérios de qualidade que permitem dinamizar o sistema, mediante uma lógica de prêmios e castigos que estimulam a produtividade e a eficiência.

As pressões externas aos governos centrais orientaram-se por diversificação de fontes de financiamento (venda de serviços e cobrança de taxas escolares), reformas curriculares (encurtamento dos cursos de graduação, para se obter mais rápida inserção no mercado de trabalho), seletividade no acesso (exames tipo vestibular), promoção de novos cursos orientados para o mercado (Marketing, Finanças, Sistemas etc.), atualização docente e rápida expansão de universidades particulares. Estas tendências formam parte de uma “agenda internacional” que se aplica na América Latina (assim como nos países póssocialistas da Europa) e constituem o contexto internacional em que se inserem as reformas universitárias atuais no Brasil e na Argentina (Mollis, 1999). A América Latina está na periferia da mundialização e, dentro da América Latina, Argentina e Brasil estão ocupando um lugar central na nova agenda modernizante. Uma das estratégias para a implementação da nova agenda é o Mercosul. Um dos traços destacados da mundialização capitalista na última década tem sido o aparecimento e consolidação de blocos econômicos regionais destinados a aumentar os níveis de intercâmbio comercial e de integração econômica regional. Os casos da União Européia, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, o bloco que reúne os países do Sudeste Asiático e o Mercado Comum do Sul, constituem os exemplos mais visíveis – ainda que apresentem notórias diferenças em suas dinâmicas e níveis de integração – desta tendência. A evolução desses processos – e a cabal compreensão de suas conseqüências sociais – não pode estar desligada da hegemonia política e econômica do neoliberalismo. Neste sentido cabe assinalar que a evolução recente dos processos de integração (alguns deles de longa data, como no caso da União Européia) tem estado ligada ao que genericamente podemos chamar de “ideologia de mercado” e que em muitos casos tais processos tem servido para veicular ou aprofundar, em espaços regionais mais amplos, os preceitos econômicos ligados à mercantilização dos bens públicos. No caso europeu, por exemplo, a disciplina fiscal exigida pelos acordos de Maastricht e de Amsterdã para a construção da moeda única (o euro) serviu de ferramenta para a aplicação de políticas orçamentárias ortodoxas em escala nacional que tiveram um considerável impacto na retração do gasto público e no debilitamento dos direitos sociais e trabalhistas conquistados pelos assalariados depois da Segunda Guerra Mundial. A ênfase da comparação realizada está no olhar institucional, inserido nas políticas e na tomada de decisões em cada caso e nos dois de forma comparada. Para isso utilizamos os dados coletados e analisados durante a pesquisa, mediante a realização de entrevistas e observação participante em reuniões e seminários. Marginson & Mollis (2002, p.583) afirmam: (...) algumas pesquisas assumem a separação entre educação, política e poder. Acreditamos que no coração da pesquisa internacional de educação comparada, educação se cruza com poder. (...) as demandas do poder moldam as práticas do conhecimento.

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Partimos do pressuposto de que a educação médica, e por conseguinte a universidade, tem o papel de formar médicos que atendam às necessidades de saúde da população. Essa formação deve incluir tanto a visão humanista, o compromisso social, quanto a habilidade técnica competente e atualizada. Na realidade observada, muitas vezes tais princípios foram deixados em segundo plano e foram priorizadas as disputas pelo poder. Os dois casos da Medicina, tanto no Brasil quanto na Argentina, formam parte da agenda de modernização. Como essa agenda – passada pelo Mercosul e outras ‘fórmulas’ – afeta a formação do médico? Para responder a essas e outras perguntas apoiar-nos-emos no referencial teórico e nas entrevistas realizadas com informantes-chave – em sua maioria personagens com poder de decisão política – das duas reformulações curriculares, realizadas no decorrer do desenvolvimento da pesquisa. Os processos de reformulação curricular: os casos da Faculdade de Medicina da UFF e da Faculdade de Medicina da UBA Nos dois casos, foram analisados os currículos de formação médica no Brasil e na Argentina, mais especificamente o processo de reformulação do currículo médico em ambos os países, estudando os casos da UFF e da UBA. O processo de reformulação do currículo da Medicina da UFF, iniciado em 1983, foi concluído em 1992 e sua implantação começou a ser feita a partir de 1994 (Koifman, 2001). A Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires (UBA), desde 1983, passou por várias tentativas de reformulação curricular. O mais recente processo de reformulação curricular inclui dois momentos: o primeiro durante os anos de 1999 e 2000 e o segundo a partir de dezembro de 2000 até 2002 (Koifman, 2003). A escolha da Faculdade de Medicina da UFF como o caso brasileiro a ser analisado deve-se ao fato de que sua proposta de reformulação curricular tem sido considerada referência para a área de educação médica em congressos nacionais e internacionais. E que, desde sua implementação, o chamado ‘novo currículo’ continua a sofrer uma série de mudanças e adaptações, o que reflete o caráter dinâmico tanto da proposta, quanto da Faculdade de Medicina da UFF. Salientamos, ainda, o fato de termos tido a oportunidade de acompanhar o processo de reformulação curricular com ‘observação participante’, desde 1991 até sua implantação, em 1994. A escolha da Faculdade de Medicina da UBA como o caso argentino a ser analisado deu-se por ela ser considerada a principal faculdade de Medicina na Argentina e por seus processos influenciarem grande parte do debate sobre a orientação e o perfil profissional do médico naquele país. Outro ponto de relevância é que atualmente a Faculdade de Medicina está discutindo seu currículo e elaborando uma nova proposta - processo vivenciando por meio da ‘observação participante’. O caso da UFF O processo de reformulação curricular da UFF iniciou-se no final da década de 1970, a partir do descontentamento de alunos e professores com o ensino e aprendizagem realizados até então na instituição e com a inadequação do

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As ações de integração docente-assistencial, envolvendo a Universidade Federal Fluminense e a Secretaria Municipal de Saúde de Niterói, iniciaram-se marcadamente a partir da década de 1970 e foram organizadas como estratégias para viabilizarem as mudanças dos modelos assistenciais e de ensino/aprendizagem. No final da década de 70 organizou-se a construção da rede básica de Saúde na cidade, buscando-se uma lógica de atenção que fosse além da assistência curativa. Esse enfoque incluiu a participação de alunos de graduação da UFF na rede de serviços e incentivou a relação da equipe com as associações de moradores das áreas de abrangência das Unidades de Saúde. No início dos anos 80 implementou-se a administração colegiada das ações do município (Comissão Executiva Local) envolvendo as várias instituições, a regionalização e organização hierárquica dos serviços e privilegiou-se também a educação continuada dos profissionais (ênfase na formação de gerentes em saúde). No final da década e início dos anos 1990 buscouse a reestruturação da SMS visando o processo de municipalização dos serviços e a organização das ações através da constituição de distritos sanitários docente-assistenciais. A construção teórica do currículo de medicina da UFF buscou obedecer os princípios dessa lógica, estruturado em quatro programas: Prático-Conceitual, Teórico-Demonstrativo, Iniciação Científica e Internato (Marins, J. J. N. et al, 1992).

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currículo em relação às necessidades do sistema de saúde e da população3 . Foi criado, então, um grupo de trabalho que elaborou uma proposta preliminar para ser discutida; porém o processo só foi retomado em 1983. O grupo de trabalho concluiu, entre outras coisas, que o sistema de saúde não atendia às necessidades básicas de assistência médica da população e que era dada pouca ênfase à formação de professores e aos métodos de ensinoaprendizagem. “O ensino era voltado para a doença, predominando aulas teóricas e demonstrativas, utilizando-se situações fictícias em detrimento de práticas reais” (Koifman, 2001, p.58). A efetiva elaboração de uma proposta de reformulação curricular só se desenvolveu após modificações profundas no sistema de saúde que, passando pelas Ações Integradas de Saúde (AIS) – com o Projeto Niterói – e pelo Sistema Unificado Descentralizado de Saúde (SUDS), chegaram à implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). A reorganização do sistema de saúde facilitou a implementação da nova proposta e a inserção do profissional que o novo currículo passaria a formar. O processo de reformulação curricular começou em 1983, mas a elaboração final da proposta deu-se em 1992 e foi implantada em 1994. Mas o processo não ocorreu com unanimidade, pois não houve consenso de todos departamentos da faculdade de Medicina quando da implantação do mesmo. Avaliamos que parte da falta de consenso entre os departamentos deveu-se ao fato de que as áreas da Medicina, representadas em parte pelos departamentos, têm diferentes objetos de trabalho e objetivos na formação dos futuros médicos. Durante o processo de reformulação não foi possível criar um verdadeiro diálogo e debate interdisciplinar (Koifman, 2001). No modelo curricular proposto, a parte prática aumenta (Programa Prático Conceitual) à medida que a parte fundamentalmente teórica diminui (Programa Teórico Demonstrativo). Na primeira parte associa-se o conteúdo teórico a uma demonstração prática executada pelos docentes e, na segunda, completa-se uma prática executada pelos alunos, sempre baseada em uma discussão conceitual das ações e de seu referencial teórico (UFF, 1992). Sobre as principais características do novo currículo, a introdução do estudante nas aulas práticas desde os primeiros períodos é um dos pontos inovadores. Os alunos são divididos em pequenos grupos e acompanhados por um preceptor nas atividades práticas e na posterior análise dos problemas encontrados e na elaboração de respostas a esses problemas (trabalho de campo supervisionado). Além disso, a introdução de matérias da área de história da Medicina e outras vinculadas à área de ciências sociais, também contribui para uma formação diferenciada e que amplia a capacidade dos alunos de compreensão e inserção na realidade como profissionais. Uma das idéias centrais do novo currículo, a partir de um contato precoce dos estudantes com a população mesmo antes de serem médicos, tem sido a da formação mais humanista do profissional médico e sensibilização do mesmo para os problemas sociais associados às questões de saúde. Atualmente o currículo, que formou sua primeira turma em dezembro de 1999, está aos poucos conseguindo avançar no sentido da integração de

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departamentos. Isso vem ocorrendo, segundo depoimento de professor do Instituto de Saúde da Comunidade (ISC) (março de 2000), como reflexo da melhor estruturação das disciplinas e do melhor domínio, por parte dos professores, do que seja a proposta curricular e de suas etapas. As dificuldades, desde a implantação do currículo, com a organização do trabalho de campo persistem. Durante o primeiro ano do curso ainda não é possível realizar, plenamente, as atividades de campo previstas. Na opinião dos professores entrevistados, o problema continua centrado no treinamento de professores e preceptores para compreenderem claramente a proposta e tornarem-se capazes de trabalhar melhor em suas atividades. Mas, mediante uma pesquisa de avaliação da proposta curricular, desenvolvida por uma equipe de professores do ISC (Oliveira, 2001), os 44 alunos formados na primeira turma, ao responderem a um questionário, manifestaram-se favoravelmente ao currículo. Apesar de muitas críticas aos primeiros semestres do curso, os alunos consideram que sua postura profissional e a compreensão da realidade social foram fortemente influenciadas por esse currículo. O caso da UBA Na Faculdade de Medicina da UBA, desde 1986, surgiram as primeiras discussões sobre a reforma curricular e foram implantadas novas “experiências curriculares”. O mais recente processo de reformulação curricular tem dois momentos: o primeiro durante os anos de 1999 e 2000 e o segundo a partir de dezembro de 2000 até a presente data (nosso acompanhamento foi até 2002). A interrupção de um processo e começo de outro deu-se em conseqüência da mudança de direção da faculdade: cada momento corresponde a duas gestões de dois diferentes decanos. Os processos de discussão na década de 1980 estiveram inseridos no contexto de redemocratização do país e, conseqüentemente, das universidades públicas. A experiência de mudança que teve maior impacto e que foi comentada nas entrevistas que realizamos foi a introdução dos Módulos de Atenção Primária (MAPs) no ciclo biomédico (a partir do 2o ano do curso), com três módulos de 64 horas em cada semestre. Tais módulos incluíam uma atividade prática nos centros de saúde, que aos poucos foi sendo reduzida até a substituição, em 1996, pela disciplina Medicina Familiar, que se estende até o ciclo clínico do curso. Em 1992 foi elaborada uma proposta de modificação do currículo que gerou impacto e muita discussão, pois teve como premissa a criação de um exame de ingresso. A idéia trazia poucas variações nas disciplinas e uma proposta metodológica baseada nas atividades práticas. Mas, como o Conselho Superior aprovou a proposta (em vigor) e não aprovou a implementação de um exame de ingresso, foi aplicado (em 1993) um plano piloto, o Plan B (no caso, uma proposta curricular). A intenção era provar, com o plano piloto, que a reformulação curricular só poderia ter sucesso se fosse reduzido o número de alunos por ano. Com uma maior carga horária, os alunos que participaram do “Plan” B tinham contato com pacientes em hospital desde o primeiro período de curso e o ensino era tutorial. Um dos objetivos era a integração do Ciclo Biomédico

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As críticas à experiência estiveram inseridas em disputas políticas e ao fato do decano que impulsionou a implantação do projeto ter, também, implementado uma experiência de modificação na forma de ingresso dos alunos de medicina diferente do resto da universidade de Buenos Aires. Especificamente com relação ao plano piloto, entre as críticas recebidas pela comissão que avaliou a experiência (e professores e alunos entrevistados): foram selecionados os alunos com melhores médias e não ao azar; não houve um grupo controle da experiência, já que o número de alunos que continuou com o currículo “normal” era muito superior ao do Plan B (dificultando qualquer comparação) e, portanto, não se poderia considerar a experiência para aplicar ao grupo todo de alunos.

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Em 1995, durante a segunda gestão do decano Dr. Luis Ferreira criou-se o Ciclo Pré-Universitário de Ingresso (CPI) amparando-se na Lei de Educação Superior de 1995 (N° 24.521/1995), que, no seu artigo n°50 estabelece que “… nas universidades com mais de cinquenta mil (50.000) estudantes, o regime de admissão, permanência e promoção dos estudantes será definido ao nível de cada faculdade ou unidade acadêmica equivalente”. Porém a Universidade de Buenos Aires, através de seu reitor, não tinha acatado a Lei e criou-se uma situação de conflito entre a faculdade de medicina e a reitoria. Muitos alunos foram prejudicados por vários anos pois a Reitoria não concordava em emitir os diplomas de medicina para alunos que tivessem cursado o CPI em vez do CBC. Em 1998 foi derrogado o CPI” (Koifman, 2003, p.42).

com o Clínico desde o começo do curso, demonstrando que a redução do número de alunos significaria uma melhora na qualidade do ensino. Mas o “Plan” B foi muito criticado e a experiência foi interrompida em 1998, tendo a última turma terminado o curso em 20014. Depois da experiência do Plan B e do Ciclo Pré-Universitário de Ingresso (o CPI) para substituir o CBC (Ciclo Básico Comum), primeiro ano dos estudos universitários da UBA, que funciona como um curso introdutório, de nivelamento e seleção (Mignone, 1998) , que não foi uma reformulação curricular apenas para o curso de Medicina mas para toda a faculdade de 5 Medicina , a seguinte reformulação curricular elaborada não foi implementada. Desenvolveu-se durante os anos de 1999 e 2000 – e teve como uma das características principais a implementação da metodologia do aprendizado baseado em problemas (PBL). Quando a proposta foi concluída (elaborada a partir de reuniões de uma comissão delegada pelo decano e de mais de um ano de discussões de comissões interdepartamentais), houve uma mudança na direção da faculdade de Medicina e o novo decano deu início a um novo processo de reformulação. O novo processo deu-se entre os anos 2001 e 2002 com objetivo de impulsionar um processo democrático e com palestras e debates entre profissionais convidados e professores da faculdade com experiências isoladas de reformulação dentro dos departamentos (cátedras). Após um ano de reuniões quinzenais, a coordenação do processo – decanato, secretaria acadêmica e secretaria de planejamento educacional – decidiu estimular o desenvolvimento da reformulação a partir das diversas experiências, gerando “motores de mudança”. Não se optou por uma reformulação total do currículo mas, em seu lugar, por estimular reformulações que já estejam em processo nas cátedras e ajudar a divulgação e possível ampliação das experiências de êxito. Após a breve descrição dos dois casos de reformulação curricular, apresentamos um levantamento mais detalhado dos dados relevantes que demonstram semelhanças e diferenças entre os casos, por meio de análise comparativa. Metodologia No caso das duas reformulações curriculares analisadas, a comparação foi feita por meio da metodologia de descobrimento de variáveis por contexto. Quando usamos técnicas qualitativas para examinar fenômenos extraídos de um contexto, quanto mais perto se observa mais complexo será o critério usado na observação, e mais semelhanças se transformarão em diferenças. Nos estudos qualitativos baseados no estudo de caso complexo, nos quais há sempre mais para pesquisar do que pode ser abarcado, há um viés de prima facie (a primeira vista), com respeito à criação, de diferença e incomensurabilidade entre os casos, tendendo a eliminar a possibilidade de comparação. Mas a comparação também pode ser usada para transformar fenômenos diferentes em semelhantes (Marginson & Mollis, 2002, p.585).

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Os pontos considerados relevantes quanto a sua influência em ambas as reformulações curriculares, utilizados para descrever as diferenças são: os contextos sóciopolíticos, autonomia universitária e avaliação institucional, forma de ingresso dos alunos, importância do acompanhamento pedagógico, objetivos da formação médica (papel social do médico). Resultados da análise comparativa Contexto sóciopolítico Quanto às influências do contexto político regional do Mercosul, no caso da reformulação curricular da UFF, na época da reformulação, não houve influência que possa ser determinada. Nesse caso o contexto político de maior influência não foi o do Mercosul mas o da Reforma Sanitária Brasileira, portanto mais local. O projeto da Reforma Sanitária, sustentado por uma produção teóricocrítica, foi formulado a partir do movimento pela democratização da saúde que tomou corpo no Brasil durante a segunda metade da década de setenta. Entre outros fatores, o movimento, segundo Paim (1997, p.11) “teve a importância de questionar a concepção de saúde restrita à dimensão biológica e individual, além de apontar diversas relações entre a organização dos serviços de saúde e a estrutura social”. Os departamentos de Medicina Preventiva e Social e as escolas de saúde pública ou seus equivalentes foram o braço acadêmico do movimento reformista . Para Silva Júnior (1998), foram percorridos três caminhos para tornar a Reforma Sanitária viável: o legislativo-parlamentar, possibilitando a elaboração da Lei Orgânica de Saúde (no 8.080 de 1990) e de leis Estaduais e Municipais; o sóciopolítico, procurando envolver a sociedade civil e suas organizações; o institucional, implementando um novo sistema de saúde mais identificado com os ideais de universalidade, eqüidade, integralidade na atenção da saúde. A Reforma Sanitária foi um processo que passou pelas Ações Integradas de Saúde (AIS) e Sistema Unificado Descentralizado de Saúde (SUDS) e que sofreu a implantação distorcida do Sistema Único de Saúde (SUS) mas não se confunde com os mesmos (Arouca, 1988). “Os esforços para a unificação e descentralização, bem como as tentativas de mudança do modelo assistencial hegemônico nos últimos anos, inscrevem-se nesse resgate” (Paim, 1997, p.12). A reformulação curricular da UFF teve influências do movimento sanitário tanto nas discussões prévias quanto na elaboração de sua estrutura curricular. A lógica da proposta de reformulação está intimamente ligada aos ideais da Reforma Sanitária e sua busca de construção de um profissional médico integrado ao sistema de saúde público (Saippa, 2001). Um dos reflexos dessa influência pode ser traduzido pelo fato de os alunos, desde o início do curso de Medicina, desenvolverem a prática nas unidades de saúde e não somente no hospital universitário. E, diferente de outros currículos de Medicina brasileiros que também passaram por reformulações recentemente, os estudantes inserem-se na realidade em suas horas práticas de aula. No caso da prática realizada pelos alunos de Medicina da UBA, a prática é

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Em dezembro de 2001 o Ministério de Saúde e o Ministério de Educação brasileiros lançaram um programa de incentivo às mudanças nos cursos de medicina – o PROMED. O programa oferece apoio técnico e financeiro para as escolas médicas que entraram em processos de mudança que levem a um trabalho articulado com os serviços de saúde, à adoção de metodologias ativas de ensino-aprendizagem e à formação geral, crítica e humanista (Feuerwerker, 2002). Mesmo que um dos objetivos centrais do PROMED tenha sido a gradual adequação dos currículos das escolas médicas às novas Diretrizes Curriculares, no caso brasileiro não parece haver uma única vertente explicativa para o movimento de reorientação dos modelos de atenção. A influência do Sistema Único de Saúde sobre os processos de formação profissional é vista, por muitos segmentos, como uma possibilidade de ampliar a relevância social da universidade e, fundamentalmente, formar profissionais com perfil mais adequado às necessidades de saúde da população.

desenvolvida principalmente nos hospitais (universitário e não universitário) e a proposta de reformulação não prevê, até o momento, modificação nesse campo. Isso denota uma menor articulação do currículo com o sistema público de saúde e com a formação do médico que conhece a prática do sistema no qual deverá atuar. Tal questão também foi percebida durante as reuniões de reformulação curricular (tanto do processo anterior de reformulação curricular da UBA quanto o iniciado no final do ano 2000). A necessidade de articulação da formação do médico com as unidades básicas de saúde foi um tema pouco debatido que apareceu em três das mais de trinta reuniões assistidas. A primeira, uma reunião geral, na qual apareceram vários temas, a segunda, sobre o internato rotatório, em que se relatava a implementação do novo internato rotatório e que havia sido feita uma seleção de hospitais e unidades de saúde para a realização das atividades dos internos (pela primeira vez se falou sobre a prática nas unidades de saúde). E a terceira reunião quando apareceu o assunto mais especifico e se debateu a necessidade da mudança do sistema de saúde para que houvesse uma real mudança no perfil do profissional médico. Nessa reunião também se descreveu a aplicação do Programa de Atenção Primária em Saúde (PROAPS) e a participação da Faculdade de Medicina da UBA no mesmo, debatendo sobre a necessidade de a faculdade de Medicina garantir que sejam formados profissionais preparados para trabalhar com a Atenção Primária em Saúde. Sobre o referido programa – segundo as informações levantadas nas entrevistas –, em ambos os países, no momento da pesquisa, seriam utilizados recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o PROAPS, um programa de hierarquização da atenção primária na saúde. O Ministério da Saúde argentino (pela Subsecretaria de Atenção Primária com o BID), lançou o Programa (PROAPS) a ser desenvolvido em cinco anos, com o empréstimo de 120 milhões de pesos. Por esse programa planejava-se construir novos centros de saúde equipados e comprar equipamento dos consultórios dos médicos de “cabeceira”. A idéia do Ministério de Saúde seria a de apoiar economicamente as faculdades de Medicina para ampliar e melhorar os currículos e orientá-los para a formação de médicos de primeiro nível de atenção à saúde. Esse é um exemplo que indica uma forma de articulação entre as mudanças curriculares estudadas e as políticas sanitárias promovidas pelos organismos de financiamento internacional 6 . Podemos supor que as recomendações das agências internacionais de financiamento (Banco Mundial, BID, FMI etc.) vêm influenciando a construção das políticas educacionais do Mercosul assim como a agenda para as reformas no setor saúde. Costa (1998) descreve que os estudos sobre políticas públicas convergem para a idéia que os governos nacionais estão cada vez mais afetados pelos procedimentos de políticas supranacionais. Um aspecto relevante deste consenso é a compreensão do papel das organizações internacionais e de sua influência na definição de agendas políticas nacionais, definindo os temas substantivos a serem apreciados e configurando as políticas de governo. “As mudanças econômicas, ideológicas e políticas definidas pelos

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especialistas do Banco Mundial apelam para a diminuição do papel do Estado e para o fortalecimento do mercado para financiar e oferecer cuidado à saúde” (Costa, 1998, p.129). Esse tema também vem sendo debatido na literatura contemporânea na área das reformas educacionais. Para Leher (2001), a participação do Banco Mundial não se limita à mera assessoria técnica, como os empréstimos fazem supor, visto que esta instituição, assim como o FMI, atua por meio de condicionalidades. A recusa de uma política por determinado país pode levar o banco a não lhe conceder o seu aval, deixando-o à margem do mercado internacional de capitais (…) o que faz os governos com legitimidade corroída acatarem o fundamental de suas condições. (Leher, 2001, p.185)7

Ao centrarmos nossa atenção na influência do Mercosul nas reformulações, percebemos que o ponto mais forte de influência do Mercosul Educativo8, além de gerar maior interesse de ambos os países em conhecer a formação médica de seus ‘vizinhos’, foi a discussão e elaboração das diretrizes curriculares. Apesar de os representantes brasileiros nos grupos de trabalho do Mercosul Educativo terem apresentado as diretrizes elaboradas para criar uma padronização dos cursos brasileiros em 1999, a criação das diretrizes comuns para o Mercosul foram apresentadas mais recentemente. O ponto importante a ser considerado é que, no Brasil, o Ministério de Educação e Cultura já controlava anteriormente a expedição dos diplomas e essa medida não gerou impacto no currículo da UFF. No Brasil, para que uma escola médica seja habilitada, o Conselho Nacional de Educação (CNE) deve autorizar, obedecendo a um currículo mínimo (agora substituído pelas diretrizes curriculares9). Talvez a necessidade de haver sempre controle e centralização das autorizações esteja relacionada com o grande número de faculdades particulares no Brasil, expansão muito anterior à da Argentina. Porém, na Argentina, a expedição de diplomas é responsabilidade da universidade, autonomia conquistada na Reforma de 1918. Nesse caso, a imposição de diretrizes curriculares externas gera um impacto significativo. Principalmente quando algo choca com a autonomia universitária. Autonomia universitária e avaliação institucional Na Argentina, até a Lei de Educação Superior de 1995, não havia nenhum órgão controlador nem avaliador das universidades. Só a partir de então, com a criação da Comissão Nacional de Avaliação e Acreditação Universitária (CONEAU), em 1996, teve início um processo voltado para o estabelecimento de um sistema de avaliação e acreditação das universidades.

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“O modus operandi do Estado brasileiro configura um determinado modelo de privatização, guardando forte similaridade com as políticas do Banco Mundial para a educação latinoamericana e, particularmente, para suas universidades. Em essência, o banco determina que o modelo europeu de universidade – estatal, autônoma, pública, gratuita e baseada no princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão – não é compatível com a América Latina” (Leher, 2001, p.155)

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Apesar do seu caráter essencialmente comercial, o Mercosul conta com um setor educativo em funcionamento. Um mês depois da assinatura do Tratado de Assunção, realizouse, em Buenos Aires um encontro de técnicos, responsáveis e Ministros de Educação do Cone Sul para discutir a conveniência de incorporar ao processo de integração econômica iniciado entre os quatro países, a dimensão educativa. A partir desse momento, realizaram-se várias reuniões e, em 13 de dezembro de 1991, os Ministros de Educação da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai assinaram um Protocolo de Intenções que incluiu as áreas de: “formação da consciência cidadã favorável ao processo de integração; capacitação de recursos humanos para contribuir para o desenvolvimento; harmonização dos sistemas educativos” (Piñon, 1997, p.187).


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No Brasil a construção das diretrizes curriculares na área de saúde se deu em um processo entre os anos de 1999 e 2001, envolvendo ampla mobilização das escolas e dos atores da saúde, que conseguiram encaminhar suas propostas contra uma primeira versão apresentada e considerada conservadora por esses mesmos atores. O resultado foi que as diretrizes apresentadas para os cursos de medicina refletem as propostas dos movimentos de mudança existentes na área (ABEM, CINAEM etc).

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Em 1998, a Associação de Faculdades de Ciências Médicas da República Argentina (AFACIMERA) editou o documento “Carreras de riesgo: el caso de la medicina. Metodología, procesos y productos la formulación de los patrones y estándares previstos por la ley de Educación Superior”.

A CONEAU tem mandato legal para realizar avaliações externas, acreditar cursos de graduação e pós-graduação, avaliar projetos institucionais para a criação de novas instituições universitárias nacionais ou provinciais, e avaliar o desenvolvimento dos projetos para o posterior reconhecimento de instituições universitárias particulares pelo Ministério de Cultura e Educação. (Mollis, 2001, p.23)

Da mesma forma não existia um currículo mínimo ou parâmetros curriculares a serem seguidos pelas novas escolas de Medicina. Em geral, seguiam o modelo da Universidade de Buenos Aires, mas com autonomia e liberdade para suas próprias adaptações ou inovações. Na década de 1990, com a abertura dos cursos de Medicina nas faculdades particulares, passa a existir preocupação com algum nível de controle e regulamentação. E, a partir desta época, começam a ser implementados os projetos para os programas de avaliação e, fundamentalmente, o trabalho da CONEAU. As discussões do Mercosul Educativo impulsionaram a necessidade de se estabelecer as diretrizes curriculares e os standards para os cursos de Medicina. Como foi considerado um curso de risco, em 1998 foi o primeiro a ter standards estabelecidos para acreditação (as outras carreiras consideradas de risco foram engenharia e agronomia) 10 . As faculdades de Medicina públicas e privadas, com exceção da UBA, reuniram-se (1999) e levaram o pedido à CONEAU de adaptação dos standards dos EUA às necessidades locais. A CONEAU adaptou-os e devolveu-os em forma de Guia de Auto-Avaliação dos cursos de Medicina. Estabeleceu-se uma convocatória obrigatória acatada pela totalidade das faculdades de Medicina argentinas, com exceção da UBA. Os 184 indicadores dos standards dos EUA transformaram-se em 126 argentinos (“Guía de Autoevaluación de Carreras de Medicina. Convocatoria Obligatoria. Año 2000-2001”). No Brasil, a universidade não tem autonomia para expedir diplomas. Ou melhor, expede o diploma mas a carteira profissional depende do MEC. Além deste, há corporações que legitimam e concedem permissão para exercer a Medicina: Conselhos Regionais de Medicina, Conselho Federal de Medicina. A cultura avaliativa, de certa forma instalada previamente no Brasil, também facilitou a implementação do programa de avaliação do MEC. Desde a década de 1960 discutia-se no país a avaliação institucional. Foi a partir da Reforma Universitária de 68, implantada durante a ditadura militar, que se constituiu o sistema departamental e o novo padrão de carreira universitária, pondo fim às cátedras. O sistema de pós-graduação expandiu-se e outras mudanças foram trazidas pela implantação do modelo chamado “norte-americano” de universidade. Esse substituiu os modelos clássicos alemão e francês – que exerceram forte influência nas universidades brasileiras até a década de 1960 – dando lugar à busca da racionalização das universidades, sobretudo as públicas, reatualizadas com mais força nas décadas de 1980 e 1990 (Paula, 2001). A Reforma Universitária, no contexto dos acordos MEC/USAID, trouxe embutidas as idéias avaliadoras, abrindo caminho para um sistema universitário que incluía a avaliação e a acreditação

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como parte inerente11 . Foi a partir do relatório da Comissão Nacional para a Reformulação da Educação Superior, em 1985, que o trinômio autonomia-avaliaçãofinanciamento desponta nas novas políticas e propostas para a universidade brasileira. As propostas apresentadas no relatório reatualizam várias medidas contidas na legislação referente à Reforma de 68. Na atualidade, a defesa da autonomia universitária pelo governo brasileiro tem inspiração neoliberal. Segundo Leher (2001, p.154), “para introduzir sua política, de autonomia, o governo teve de operar uma contradição: negar a autonomia universitária constitucionalmente estabelecida (art.207) por meio de sua ressignificação: “autonomia diante do Estado para agir livremente no mercado”. Para reforçar essa declaração, o autor cita o provão (Exame Nacional de Cursos) e as diretrizes curriculares, entre outros, como estratégias que limitam a competência da universidade para definir o conhecimento a ser transmitido, a forma de transmissão e os temas a serem pesquisados. No caso das universidades argentinas, as discussões a respeito da avaliação institucional começaram a desenvolver-se, fundamentalmente, a partir da década de 90, com a promulgação da Lei de Educação Superior em 1995. A Lei e decretos de lei passaram a criar órgãos responsáveis pela avaliação e acreditação do ensino superior. A Lei foi promulgada em meio a inúmeros debates e manifestações contrárias a ela. A autonomia é um princípio fundamental na comunidade acadêmica argentina, promulgada na Reforma Universitária de Córdoba de 1918. Para os defensores da autonomia universitária, a avaliação, como foi desenhada na nova Lei de 1995 – de forma autoritária – é vista como uma intromissão indevida do Estado. A montagem do sistema de avaliação comum às universidades públicas e privadas, e que estimula o estabelecimento de critérios de eficiência e competitividade, é rejeitado pela maioria das universidades nacionais12 . O Exame Nacional de Cursos, ‘Provão’, aplicado gradualmente a todos os cursos desde 1996, no Brasil, sofre boicotes por parte do movimento estudantil13 e, segundo os entrevistados do nosso trabalho, terá impacto nos conteúdos curriculares na medida que, futuramente, pode-se prever uma necessidade de adaptação dos currículos de Medicina às necessidades da prova. Como aconteceu com o vestibular, quando o segundo grau (atualmente ensino médio) aos poucos foi se transformando em um nível preparatório, apenas voltado para a prova e não para os objetivos iniciais do segundo grau14 . O Ministério de Educação argentino ainda não implementou um exame equivalente, embora tenha sido iniciada sua discussão com a possibilidade de que seja implementado futuramente. Essa não será a primeira vez que os dois países se inspiram um no outro para implementar sistemas de avaliação. Um exemplo anteriormente citado é o das diretrizes curriculares. Dentro de tantas variáveis descritas que vêm influenciando, de uma ou outra forma, as reformulações curriculares estudadas, cabe perguntar qual o lugar e a participação da questão pedagógica nas reformulações. Nos dois casos observaram-se especificidades descritas no próximo item.

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11 A primeira experiência se instaurou através da avaliação das pósgraduações, na qual a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), teve papel fundamental. Em 1979, a CAPES realizou sua primeira avaliação institucional “por pares”. Na segunda metade da década de 80 e toda a década de 90, o Ministério de Educação e Cultura (MEC), passou a criar departamentos e órgãos com funções de avaliação e controle do ensino superior. Como exemplo podemos citar os seguintes órgãos: Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior, em 1985, o Grupo Executivo de Reformulação da Educação Superior (GERES), em 1986, a Comissão Nacional de Avaliação, o Programa de Avaliação das Universidades Brasileiras (PAIUB), em 1992, e o Exame Nacional de Cursos, em 1996 (Cunha, 1998).

12 Os órgãos criados pelo Ministério de Educação a partir da Lei são os seguintes: Conselho Nacional de Educação Superior (CNES), em 1993; Secretaria de Políticas Universitárias (SPU), em 1993; Comissão de Acreditação Universitária (CAP), em 1994; Comissão Nacional de Avaliação e Acreditação Universitária (CONEAU), em 1996. Cada comissão de avaliação externa deverá ser constituída por pares, nomeados pela CONEAU ou por entidades que a substituam, como a das universidades privadas. Na área específica da medicina, ainda foi criado um órgão com funções de avaliação e acreditação específicos na área do ensino médico: Associação Argentina de Escolas de Ciências Médicas da República Argentina (AFACIMERA).


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Antes disso, algumas entidades vinham discutindo a necessidade de avaliar a qualidade da formação oferecida pelos cursos universitários, de forma a contribuir para a melhoria do ensino superior, como o Programa de Avaliação Institucional da Universidade Brasileira (PAIUB) e a Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM), que foram completamente ignorados pelo MEC. Há uma página na Internet, criada pelo movimento estudantil, convocando a um plebiscito para avaliar o provão (<www.plebiscitoprovao. hpg.ig.com.br> Acesso em 07 jan 2003)

14 Em um documento produzido pela DENEM (Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina) em 27/02/ 2002, o Exame Nacional de Cursos (ENC – Provão) é criticado: “... o tipo de avaliação proposto pelo MEC, o qual na verdade não consegue fazer um diagnóstico consistente da realidade das escolas e muito menos apontar caminhos de como as escolas devem melhorar. Ao contrário, o tipo de incentivo para melhoria que essas avaliações propiciam é o objetivo do corte de verbas para o conjunto geral de instituições de ensino e uma verdadeira desqualificação do ensino, no momento em que as escolas se vêem tentadas a criar cursinhos pré-provão para melhorar seu desempenho.

Acompanhamento pedagógico das reformulações Quanto às questões pedagógicas, no caso da reformulação curricular da UFF, não houve um acompanhamento pedagógico permanente. Apesar de realizada uma assessoria pedagógica, no final do processo, a mesma desenvolveu-se sem remuneração ou vínculo oficial com a universidade. Não foi instalada uma instância de avaliação pedagógica na implementação do currículo nem em sua continuidade, apesar de ter sido prevista a criação de uma equipe de avaliação pedagógica permanente do processo de implementação do currículo. Durante a primeira parte do processo também se contou com a assessoria de uma pedagoga de maneira extra oficial (não era um profissional contratado nem integrante do corpo docente da UFF na época). Por outro lado, as sucessivas reformulações curriculares da UBA têm sido assessoradas e até coordenadas por equipes de pedagogas do quadro permanente de professores da Faculdade de Medicina da UBA. Sua função, na Secretaria de Educação Médica, é organizar e oferecer cursos de formação pedagógica para os professores da Faculdade de Medicina da UBA. Assim, nas reformulações curriculares, os processos têm sido acompanhados permanentemente por equipes pedagógicas. A pedagoga que coordena o processo de reformulação curricular de 2001/2002 é responsável, cnjuntamente com o secretário acadêmico da faculdade, pela recém-criada Secretaria de Planejamento Educativo. O caso da reformulação curricular da Medicina da UBA tem esta característica particular. Apesar de contextualizado, o processo decisório político institucional inclui a perspectiva pedagógica e, em alguns momentos, até reforça o nexo da reformulação com os princípios da Lei de Educação Superior e preocupação em realizar a avaliação proposta pela CONEAU (em concordância com princípios da Associação de Faculdades de Ciências Médicas da República Argentina - A.FA.CI.ME.R.A). Nas entrevistas realizadas, pudemos concluir que o suporte pedagógico esteve também vinculado ao momento político e econômico, além dos aspectos técnicos pedagógicos. Na literatura das reformas curriculares, em geral, são citados os aspectos pedagógicos técnicos e metodológicos como centrais para que efetivamente seja reformulado o currículo e modificado o ensino, além da reforma do conteúdo (a Faculdade de Medicina da universidade canadense de Mac Master, freqüentemente citada nos processos de reformulação da UBA, é um exemplo de reformulação com utilização da metodologia de aprendizado baseado em problemas). Porém, como produto de nossa pesquisa, chegamos à conclusão que a motivação política e econômica, no caso argentino, esteve muito presente, o que faz do mesmo um caso particularmente atrativo. No que consiste a particularidade do caso argentino? Consiste em que, nos vários momentos de reformulação, desde a volta à democracia, é lançado mão de todo um aparato técnico pedagógico brutal mas, em última instância, com a mudança do decano (e mudança na linha política) muda tudo e o trabalho realizado até então volta à estaca zero. Ou seja, por mais que haja um aparato técnico pedagógico, a racionalidade é outra. E ela tem origens na história da Universidade de Buenos Aires e na faculdade de

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Medicina, ao mesmo tempo em que está fortemente afetada pelo movimento internacional de mundialização da economia. Uma das discussões internas da universidade que afeta amplamente as reformulações curriculares é a do sistema de ingresso na universidade. E como o tema gerou e gera discussões nas reformulações curriculares da Faculdade de Medicina da UBA, passaremos a detalhá-lo um pouco em seus reflexos nas duas faculdades em estudo. Sistema de ingresso universitário O sistema de ingresso nas universidades é um ponto com grandes diferenças entre as universidades públicas dos dois países e que influencia os processos de reformulação curricular. Na UFF os alunos são selecionados pelo exame vestibular, realizado pelos estudantes que terminam o ensino médio. Na UBA o ingresso dos alunos é irrestrito, ou seja, ao terminar o nível secundário de estudos os alunos automaticamente podem se inscrever para iniciar o CBC (Ciclo Básico Comum) 15 . Em conseqüência do grande número de alunos que se inscrevem por ano para cursar o Ciclo Básico Comum na faculdade de Medicina (assim como em outras faculdades da UBA), o debate sobre as implicações da chamada “massificação”16 do ensino superior tem sido constante na faculdade e é um tema considerado central. Nota-se, neste sentido, a falta de discussão sobre a questão inserida no tema do financiamento universitário. Ao afirmar a necessidade de se determinar um número de vagas por ano para a entrada de alunos na faculdade, o decano anterior (até 2000) ganhou impopularidade. Esse fato tem como raízes a própria cultura reformista (Reforma de Córdoba de 1918, na qual um dos princípios fundamentais foi a democratização do ensino universitário) e a posterior experiência da ditadura militar que estabeleceu o ingresso restrito de alunos por ano. Portanto, ainda que venha sendo debatida a idéia da dificuldade de organização do ensino para um número tão grande de alunos na faculdade de Medicina – principalmente no período de escassez de recursos determinado fundamentalmente pela política neoliberal em vigência17 – defender ou atacar tal postura pode significar uma ruptura política importante. No caso da mudança de decano da faculdade de Medicina, no final do ano 2000, parte do conflito gerado, que resultou em sua saída do cargo, foi visto pela maioria dos entrevistados como conseqüência do projeto de reformulação haver proposto a entrada de, no máximo, 1400 alunos para o segundo ano do curso de Medicina. Os conflitos existentes na gestão que foi substituída foram decorrentes de fatores ligados à reformulação curricular, bem como a outros de origem na política universitária da faculdade de Medicina e sua inserção na UBA. Já a pressão de setores da faculdade discordantes da proposta do perfil de médico que seria formado e da metodologia de ensino proposta (ensino baseado em problemas) não foi tão forte. As especificidades da conexão entre o acadêmico e o político na faculdade de Medicina argentina chamaram-nos a atenção. Na reformulação da UFF, por outro lado, grande parte das disputas entre

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15 No caso da Universidade de Buenos Aires, ainda que o ingresso ao CBC seja irrestrito e considerado como primeiro ano de estudos universitários, o CBC funciona, realmente, como um curso introdutório e de seleção. Entre 1995 e 1997, por exemplo, segundo informação da reitoria da UBA, uma média anual de 17.400 se perderam no caminho que vai do CBC até as faculdades (Mignone, 1998). 16 A massificação do ensino superior se traduz no rápido crescimento da matrícula no ensino superior. Para mais detalhes ler Trindade, 2001.

Na América Latina, as políticas neoliberais implementadas a partir da década de oitenta seguindo os lineamentos do “Consenso de Washington”, foram os veículos da “mercantilização” da esfera pública. Esse processo se deu tanto através da asfixia e diminuição do orçamento (conseqüência dos planos de ajuste promovidos pelos organismos de financiamento internacionais e implementados pelos governos da região) como da privatização de serviços públicos, cujo exemplo mais ilustrativo da década de noventa foi a Argentina. Esta transferência progressiva de serviços públicos para a esfera privada, como a educação e a saúde, resultou em um crescimento do setor privado que, no caso da educação, tenta apropiar-se de maneira crescente da “rentabilidade educativa” tradicionalmente “retida” na esfera pública.

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os departamentos e sua discordância no processo de reformulação curricular – assim como um boicote na implementação do mesmo – esteve conectada com a discordância entre os departamentos nos objetivos da formação do médico estabelecidos no novo currículo. A formação de um médico mais inserido no meio social e preparado, também, para a solução dos problemas de saúde pública despertou questionamentos e debate na Faculdade de Medicina da UFF. Objetivos da formação médica/papel social do médico Ao que parece, a comparação entre os dois processos de reformulação curricular demonstra, no caso brasileiro, que o currículo foi reformulado baseado nas necessidades locais e com uma perspectiva de atender às demandas de saúde pública, integrado ao sistema público de saúde. No caso argentino, percebe-se uma tendência que responde a diferentes interesses, tanto a políticos internos da faculdade de Medicina, quanto às necessidades expressas pelos professores e seus departamentos, com objetivos de modernização da formação médica e preocupação com a qualidade do profissional formado. Algumas falas de professores durante as reuniões de reformulação curricular da UBA ilustram nossa afirmação: “Não vai haver mudança no currículo, até que a faculdade defina que médico deseja formar, que tipo de profissional quer”. “A reformulação não deve ser mudar disciplinas mas mudar a mentalidade dos professores”. “Esta faculdade tem uma história de que os alunos não se formam para atender às necessidades de saúde da população. E teriam que ser formados para o 1o nível de resolução”. “Somos profissionais mas somos cidadãos. Quando se melhorem as condições sociais se melhorará a saúde..”. (Entrevistas realizadas entre os anos de 2000 e 2001).

Não há dúvida de que a Saúde Pública está em crise na Argentina mas, apesar das declarações transcritas, durante as discussões nas reuniões de reformulação curricular não foi possível transformar a preocupação e vincular a formação médica com a resolução dos problemas de saúde pública do país. Sempre as discussões derivam na impossibilidade de resolução dos problemas já que são vistos como meramente financeiros. Nos relatos durante as entrevistas apareceu diversas vezes que, nas várias tentativas de reformulação curricular da Medicina da UBA, não houve preocupação com as questões acadêmicas, mas, em seu lugar, com as de cunho político (política universitária que, por sua vez, está vinculada a disputas partidárias) e de orçamento. Outro ponto interessante a ser observado é o fato de que, no caso da UFF, a reformulação curricular foi liderada pelo Departamento de Saúde da Comunidade (atual Instituto de Saúde da Comunidade), o que indica uma tendência clara de desenvolvimento da área de Saúde Pública e concentração de esforços para considerar uma área central no currículo. Na reformulação da UBA, o departamento de Saúde Pública não tem tido nenhum papel central nem de destaque. O departamento de Pediatria, por

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outro lado, destaca-se mais quanto à representação nas reuniões de reformulação curricular e participação no processo. Discussão Reflexões que surgem da comparação Algumas diferenças, nos dois casos investigados, devem ser levadas em conta em nossa discussão. Para Almeida (1999), as mudanças curriculares no campo da educação médica podem ser classificadas, de acordo com seu plano de profundidade, em inovações, reformas ou transformações. Nos dois casos estudados poderse-ia descrever o caso da UFF como transformação enquanto o da UBA, em seus vários momentos, como inovação. A reformulação curricular da UFF realmente constitui um processo longo, construído continuamente ao longo de um período, propiciando mudanças na organização e na lógica de todos os anos do curso, com ênfase principalmente na diversificação dos cenários de ensino-aprendizagem e na relação da teoria com a prática. Já as alterações descritas na UBA são pontuais, descontínuas, sem articulação clara entre os vários momentos, afetando um número limitado de disciplinas, algumas vezes nem ultrapassando o limite dos planos e intenções. A escolha da Faculdade de Medicina da UFF como unidade de análise do caso brasileiro deu-se pelo fato de sua proposta de reformulação ter sido considerada referência para a área de educação médica em congressos nacionais e internacionais, tendo os professores envolvidos no processo sido convidados, inúmeras vezes, a relatar a experiência da UFF para as escolas de Medicina que começavam suas reformulações curriculares. E, ainda, por continuar a ser permantentemente revista, desde sua implementação, sofrendo uma série de mudanças e adaptações, o que reflete seu caráter dinâmico. A Faculdade de Medicina da UBA foi escolhida como unidade de análise do caso argentino, por ser considerada a principal faculdade médica na Argentina, sendo boa parte do debate a respeito do perfil profissional do médico influenciado pelas reformulações ali desenvolvidas. A escolha deu-se, ainda, em função das recentes tentativas de mudanças curriculares realizadas na instituição e pelo interesse no fato de essa faculdade ter resistido a entrar no programa de avaliação do Ministério de Educação Argentino (Comissão Nacional de Avaliação e Acreditação Universitária). A comparação entre as duas reformulações curriculares almejou enriquecer os resultados da pesquisa. Esse foi um dos principais motivos da opção pelo estudo comparado. No contexto da mundialização e de tendência à homogeneização dos países, continua sendo necessária e útil a percepção das particularidades de cada país e compreensão da origem de suas diferenças e semelhanças. Além da perspectiva de intercâmbio de profissionais médicos entres os dois países, pelos protocolos assinados no marco do Mercosul, foi necessário comparar para entender o impacto das agendas globais dos países centrais, impondo um modelo para os países periféricos. E quanto há de agenda internacional em ambas reformas, quanto de Mercosul e de particular e

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18 Sobre o significado e a importância da implantação do Programa de Saúde da Família dentro do processo de construção do SUS ainda existe polêmica. As duas maiores “teses” partem de opiniões que consideram que o PSF é uma estratégia que tem o potencial de induzir a transformação do modelo de atenção ou que essa política é uma tradução das propostas de focalização e de “cestas básicas” para a população mais pobre.

19 “A Alma Ata teve importância fundamental na definição de uma proposta para organização mais democrática dos serviços de saúde: a atenção primária à saúde. Essa proposição influenciou profundamente o processo de formulação de políticas de saúde em toda a América Latina e no Brasil em particular”. (Feuerwerker, 1998, p.136)

específico na dinâmica da Argentina e do Brasil? Quanto há de cultura própria institucional? Quão eficientes foram os processos internos de reformulação? Mesmo que a autonomia universitária, no caso argentino, seja historicamente consolidada, das duas reformulações curriculares analisadas o modelo argentino é o que se mostra mais dependente e influenciado pela macro economia. Apesar da diferença constatada entre as duas reformulações curriculares, no ano de 2002 (finalização da pesquisa) ambos os países receberam recursos do BID para a implementação de programas ligados à Atenção Primária de Saúde. Tal fato reforça a idéia de que a percepção dos órgãos financiadores internacionais com relação aos dois países obedece à mesma lógica. A formação médica no Brasil e na Argentina, além de tendências concomitantes (Programa de Saúde da Família 18, Médicos de Família), está valorizando os programas de Atenção Primária. O que significa isso? Por que países como Brasil e Argentina continuam tendo deficiência nessa área? Por um lado, partindo da formação médica, a resposta nos remete à discussão do perfil do médico e da forma como vem se adaptando sob a influência das pressões de um mercado cada vez mais especializado e voltado para a Medicina privada com toda a tecnologia lucrativa que está em seu bojo (um aprofundamento da discussão do modelo biológico pode ser visto em Koifman, 2001). Por outro, relacionamos os princípios do programa financiado pelo BID com as recomendações da Conferência de Alma-Ata (1978)19, em relação à implantação de uma rede de atenção primária à saúde. Tal rede, além de democratizar os serviços de saúde, deveria baixar os custos da área de saúde nos países da América Latina. Para Silva Júnior (1998), a Organização Mundial de Saúde passa a ser a maior difusora da filosofia de Atenção primária em Saúde e o Banco Mundial o principal financiador dessas políticas de saúde. Ao que parece, as recomendações que influenciaram as reformulações curriculares na década de 1980, incluindo os dois casos analisados, ainda estão em vigor. E a crítica que tem sido feita a esse tipo de política de saúde é a de que, embora os discursos oficiais falem de universalização do acesso, na prática é mantida a dualidade do sistema, oferecendo os cuidados primários para os segmentos menos favorecidos da população e a Medicina de ponta para os mais favorecidos. Com a crise econômica mundial, aumentaram as críticas neoliberais às possibilidades de se manter as propostas universalizantes de prestação de serviços. Em seu lugar são lançadas propostas de modernização e racionalização do papel do Estado. E, nesse contexto, várias propostas de atenção seletiva são formuladas e estimuladas pelos organismos financeiros internacionais como o BID e Banco Mundial. Até que ponto tal discurso parece renovar-se permanentemente? Durante a análise dos processos de reformulação curricular, por diversas vezes, questionamo-nos quanto aos objetivos de ambos os currículos e de suas lideranças. Parece-nos evidente que o financiamento de projetos e linhas de pesquisa determina prioridades e objetivos. Na atual crise de

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financiamento público, influenciada pelas políticas de ajuste em ambos os países, é preciso se perguntar pelas conseqüências que acarretam as possibilidades de diversificação de fontes de financiamento que parecem condenar as universidades públicas a uma dependência crescente do financiamento internacional ou do setor privado (laboratórios etc.). Qual o espaço para a reivindicação de recursos públicos para as universidades públicas? A Universidade de Buenos Aires, por exemplo, hoje tem em seu quadro docente cerca de 30% de professores ad honorem, ou seja, que trabalham sem receber salários. Esse será o ideal de financiamento, baseado em trabalho voluntário? Dos resultados obtidos, ratificamos a luta em defesa da universidade pública e gratuita e a necessidade de aumento do investimento público para as universidades públicas. São vários os motivos e vários os casos de países em que as universidades públicas, passando a ser financiadas por grupos de empresários ou empresas privadas, mudaram seus objetivos acadêmicos “adaptando-se” às necessidades de tais financiadores. A ‘desinversão’ universitária forma parte do mandato globalizador pelo qual se deixa a produção do conhecimento inovador nas mãos dos países altamente industrializados, ou seja, o desenvolvimento da pesquisa às universidades e empresas do norte. Na distribuição das funções mundiais do conhecimento, às nossas universidades corresponde o papel de treinadoras de recursos humanos desde que sejam “recursos” e não os currículos humanistas. (Mollis, 2001, p.18)

Nossa preocupação é com o compromisso da universidade pública em estar voltada para a necessidade de saúde da população, tanto na oferta de atenção primária (e portanto primeira) de saúde quanto ao acesso aos recursos tecnológicos mais modernos. Na área da formação médica, os profissionais devem ser formados para lidar com ambas as necessidades. Outro elemento importante a ser considerado, embora não tenha sido objeto central do trabalho, é o perfil de cada uma das universidades e das escolas de Medicina em particular: ambas não têm o mesmo tipo de perfil de inserção no âmbito acadêmico e no âmbito dos serviços. Essas diferenças complementam a compreensão das características e das diferenças entre os dois processos. Como descrevemos anteriormente, Niterói foi uma das cidades pioneiras na construção do SUS e o então chamado departamento de Saúde da Comunidade da faculdade de Medicina da UFF teve um papel fundamental durante esse processo de construção, com grande força política no contexto municipal. Não podemos deixar de relacionar boa parte da explicação das características da reformulação curricular da UFF com essa história. No caso da UBA, a principal e mais tradicional universidade Argentina, o destaque principal dos currículos parece ter estado mais voltado para a produção científica em áreas básicas e tecnológicas, e menos voltado para a transformação do sistema público de saúde e seus problemas. Essas diferenças aproximam-nos da compreensão das modificações realizadas nos dois casos estudados e geram indagações:

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A partir do que foi relatado em duas das reuniões de reformulação curricular e na Conferência de Educação médica (2001), na Argentina será implementada uma reforma de saúde direcionada para a área de Atenção Primária em Saúde.

Como, no caso da Faculdade de Medicina da UBA, o projeto de reformulação curricular atual ainda está em desenvolvimento, cabe perguntar se esta implementação melhorará ou não a formação dos médicos. Se não for retomada a função social do médico, conectado com o sistema público de saúde, preparando os profissionais para trabalhar nesse sistema, o que acontecerá com a formação? Quais mudanças sofrerá o sistema público de saúde a partir do desenvolvimento de programas na área de atenção primária20? Considerando que a Faculdade de Medicina da UBA foi a única que resistiu por muito tempo a entrar no programa de avaliação do Ministério de Educação argentino (por intermédio da CONEAU), que implicações haverá na reformulação curricular quando o currículo for avaliado? No caso brasileiro, do mesmo modo que existiu um movimento que influiu na elaboração das diretrizes curriculares para a área de saúde, existe um movimento para adequar o Provão e a avaliação do ensino das faculdades de Medicina ao perfil proposto pelos movimentos de mudança e pelas diretrizes curriculares. Isso pode significar que o Provão continue a existir, apesar de todos os protestos contra sua existência. Neste caso, qual será o impacto do Provão no currículo da UFF? Haverá mudanças no currículo tendendo a uma adaptação aos requisitos do exame? Até que ponto a liderança do novo currículo continuará sendo do Instituto de Saúde da Comunidade ou envolverá outros departamentos? As mudanças nas lideranças da Faculdade de Medicina podem alterar o processo em curso? Estas perguntas poderão ser respondidas à luz da evolução dos currículos de Medicina das faculdades estudadas, nos próximos anos. A resistência pela preservação de espaços democráticos conquistados passa a ser uma imposição da conjuntura para todos os que lutam pela Reforma Sanitária. Os obstáculos que se antepõem a esse projeto requerem, além de esforços pedagógicos e técnico-científicos, saídas substancialmente políticas. (Paim, 2002, p.145)

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KOIFMAN, L. El proceso de reforma curricular de dos facultades de Medicina en Brasil y Argentina: un abordaje comparativo, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.113-33, set.2003-fev.2004. En este trabajo nos proponemos discutir, en una perspectiva comparada, el proceso de reformulación de dos facultades de medicina en Brasil y en Argentina: el de la Universidad Federal Fluminense (UFF) y el de la Universidad de Buenos Aires (UBA). Partimos del marco de las reformas de la educación superior en América Latina y sus discusiones en el área de educación. Buscamos revelar un conjunto de tensiones que se producen entre las particulares culturas de organización universitaria, las demandas por la uniformidad de la mundialización y la búsqueda del control burocrático derivado de la regionalización del Mercosur. Los dos países atraviesan procesos de profunda reformulación de sus sistemas educativos, articulados con las políticas neoliberales de reforma económica y disminución del papel del Estado en las respectivas sociedades. No obstante, aunque existan semejanzas formales en muchos aspectos, el examen de las realidades brasileña y argentina revela diferencias que no pueden ser ignoradas. PALABRAS CLAVE: Educación médica; educación superior; currículum; escuelas medicas.

Recebido para publicação em 05/07/02. Aprovado para publicação em 18/09/03.

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Explicações de crianças internadas sobre a causa das doenças: implicações para a comunicação profissional de saúde-paciente Gimol Benzaquen Perosa 1 Letícia Macedo Gabarra 2

PEROSA, B. G.; GABARRA, L. M. Explanations proffered by children hospitalized due to illness: implications for communication between healthcare professionals and patients, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.135-47, set.2003-fev.2004.

The purpose of this research was to study the cognitive development and explanation of the causes of illness as perceived by hospitalized children, especially the influence of experience with disease and educational level on the explanations. 50 Brazilian children aged five to nine, hospitalized with different diagnoses, took part in the research. Cognitive development and ideas of the cause of illness were evaluated within a Piagetian framework. As in previous studies, the children processed the information in a foreseeable cognitive sequence. However, these hospitalized children reflected a delay in the acquisition of conservation and voiced explanations with few subjective elements, devoid of references to the actual disease. The causes of illness that were mentioned were similar to those quoted by children in other countries. The relation between the complexity of the explanations and the number of hospitalization episodes was statistically significant. Most of the sample, regardless of age and cognitive level, ascribed becoming ill to disobedience, a possible mechanism for self-protection against a feeling of helplessness. These results point to implications that should be taken into account when pediatric patients are approached. KEY WORDS: Causality; physician-patient relations; children’s explanations; cognitive level; hospitalized children. Esta pesquisa pretendeu estudar o desenvolvimento cognitivo e as explicações sobre a causalidade das doenças em crianças hospitalizadas, particularmente a influência nas explicações da experiência com doenças e da escolaridade. Participaram da pesquisa cinqûenta crianças brasileiras internadas em um hospital público, com diferentes diagnósticos e idade variando entre cinco e nove anos. O desenvolvimento cognitivo e as concepções sobre as causas das doenças foram avaliados dentro de um referencial piagetiano. Como em estudos anteriores, as crianças processaram as informações numa seqüência cognitiva previsível. Entretanto, as crianças internadas mostraram atraso na aquisição da conservação, e explicações com poucos elementos subjetivos, sem referências à própria doença. As causas atribuídas às doenças foram similares às apontadas por crianças de outros países. Foi estatisticamente significativa a relação entre a complexidade das explicações e o número de internações. A maioria da amostra, independente da idade e nível cognitivo, atribuiu o adoecimento à desobediência, possível mecanismo adaptativo ao desamparo, resultado que parece trazer implicações a serem consideradas quando se abordam pacientes infantis. PALAVRAS–CHAVE: Causalidade; relações médico-paciente; explicações infantis; nível cognitivo; crianças hospitalizadas.

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Professora do Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP. <Gimol@fmb.unesp.br> Aprimoranda do Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP. <legabarra@yahoo.com>

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Apesar de o principal paciente do pediatra ser a criança, até recentemente seu papel específico na comunicação com o médico foi pouco abordado nas pesquisas. A maioria dos estudos centrou-se nas interações diádicas entre adultos, especialmente entre o pediatra e a mãe. Há, entretanto, indicadores clínicos e teóricos mostrando que o papel da criança, nessa relação, é fundamental para a satisfação e adesão ao tratamento, possibilitando um melhor prognóstico. As relações mais igualitárias preconizadas hoje nos serviços de saúde entre médicos e pacientes, o declínio das relações autoritárias na família, especialmente no momento da tomada de decisões a respeito dos tratamentos e prevenção de doenças, a preocupação com a promoção da saúde, redirecionaram o olhar dos pesquisadores para a interação com a criança, no setting pediátrico. A interação médico/criança é bastante diversa daquela que ele mantém com os pais. Se com os adultos o médico oferece informações e orienta condutas, quando se comunica com a criança ele se restringe ao afetivo. Preocupado em agradá-la, para que colabore no exame, ele brinca com ela. Mesmo quando a criança oferece informações sobre o seu estado, elas são regularmente checadas com os adultos responsáveis. A interação afetiva e amistosa cria uma boa relação interpessoal, mas deixa de lado dois aspectos fundamentais da relação médico-paciente: a troca de informações e a tomada de decisões. Os pais oferecem informações importantes, mas não se pode assumir, a priori, que a percepção que eles têm da doença reflita com precisão os sentimentos e necessidades dos filhos, especialmente quando estes vão se tornando mais independentes (Takes & Meeuwesen, 2001). Um estudo realizado na Inglaterra em 1998 mostrou que a opinião, os sentimentos e informações das crianças raramente são levados em conta nos serviços de saúde. Os autores acreditam que não se trata de falta de interesse pelo que a criança pensa, mas da dificuldade dos médicos em abordá-las verbalmente ou é uma tentativa de protegê-las de informações, que poderiam perturbá-las emocionalmente (Hart & Chesson, 1998). Os primeiros estudos interessados nas reações afetivas da criança perante a doença centraram-se em pacientes crônicos ou internados. Os pesquisadores, numa perspectiva psicanalítica, interpretavam as perturbações emocionais observadas nos pacientes hospitalizados como decorrentes da privação de contato, segurança e confiança, que a mãe geralmente proporciona (Bibace & Walsh, 1980). A partir dos anos 1980 um novo grupo de pesquisadores se propôs a avaliar como as crianças assimilam sua experiência com a doença, do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, deixando para um segundo plano as reações afetivas (Bibace & Walsh, 1980). Segundo esses autores, Piaget e Werner já haviam demonstrado, experimentalmente, que em áreas fundamentais do conhecimento, como na aquisição da noção de espaço, tempo, causalidade e número, a criança apresenta uma lógica, com princípios próprios, qualitativamente diferente da do adulto. Esse enfoque teórico também fundamentou pesquisas interessadas nos conceitos infantis sobre morte, reprodução, religião etc... Seus resultados nortearam intervenções de médicos e educadores, ao abordar crianças com quadros graves e de prognóstico incerto (Perrin & Gerrity, 1981).

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EXPLICAÇÕES DE CRIANÇAS SOBRE AS CAUSAS...

A hipótese de que há uma mudança previsível nos conceitos infantis sobre a causa, prevenção e cura das doenças, que acompanha a compreensão dos outros fenômenos físicos, e que é conseqüência do aumento da idade e experiência, já foi devidamente comprovada (Brewster, 1982; Perrin et al., 1991; Hansdottir & Malcarne, 1998). Crianças no nível pré-operatório conceituam a doença em termos circulares, indiferenciados e mágicos. Fixam-se em características externas; recorrem a explicações autoculpatibilizantes; acreditam que adoeceram porque desobedeceram com ações concretas e vão sarar, também, de forma mágica. As crianças do nível operacional concreto, com mais de sete anos de idade, fazem uma distinção clara entre fenômenos internos e externos, mas continuam dando mais importância aos fenômenos externos como causa das doenças. Acreditam que são os germes os principais responsáveis pelo adoecer e que podem evitar a doença evitando o contágio. Apenas crianças do estágio lógicoformal conseguem ter um pensamento hipotético e entender a doença como uma combinação de um estado corporal que responde de formas diversas às agressões externas. Para eles, a doença é causada e pode ser curada pelo resultado de uma interação complexa entre agentes e hospedeiros. A partir desses resultados, especialistas em educação médica apontam a necessidade de considerar a idade ou o estágio cognitivo da criança, no momento de explicar a doença: utilizar comparações e metáforas na fase préoperatória; explicar as cirurgias atendo-se aos aspectos externos (o corte, a sedação, a sala cirúrgica), e deixar as explicações anatômicas para crianças que tiverem alcançado o estágio lógico-formal (Whitt et al., 1979; Walsh & Bibace, 1991). Se a maioria dos trabalhos de linha estruturalista procurou associar as explicações com os estágios de maturidade do pensamento, estudos com enfoque funcionalista deram prioridade ao papel da aprendizagem e experiência na aquisição dos conceitos infantis. Partindo do pressuposto de que a doença é uma experiência aprendida, alguns autores acreditam que as mudanças nas respostas devam sofrer uma influência maior da experiência do que dos estágios cognitivos. Os dados ainda são inconclusivos. Algumas pesquisas mostraram que crianças com doenças crônicas e múltiplas internações têm um entendimento da doença mais maduro que crianças saudáveis. Outras, entretanto, concluíram que o entendimento da doença não está diretamente associado com a experiência (Campbell, 1975; Hansdottir & Malcarne, 1998). Pressupõe-se, também, que os diferentes níveis de escolaridade possam influir nas explicações infantis sobre a causalidade das doenças, na medida em que os currículos têm uma disciplina de Ciências que aborda a fisiologia humana e os cuidados com a saúde. Entretanto, a influência da escola no entendimento das causas das doenças ainda não foi demonstrada. No estudo de Boruchovitch & Mednick (1997), houve uma relação significativa entre o nível de escolaridade e a percepção de que as doenças têm múltiplas causas. Para Peltzer & Promtussananon (2003) poucas foram as informações que um grupo de crianças negras sul-africanas obteve na escola. As principais fontes de informação foram a família e os meios de comunicação,

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especialmente quanto à AIDS. Apesar do consenso generalizado de que é preciso desenvolver pesquisas transculturais na área da saúde, a maioria das pesquisas a respeito das concepções infantis de saúde e doença foram realizadas com amostras de países desenvolvidos (Boruchovitch & Mednick, 1997). Mesmo que os estudos mostrem que a maturação cognitiva progride de forma invariável nas culturas ocidentais, diferenças climáticas, diferentes recursos lingüísticos, a facilidade de acesso aos cuidados médicos, à escola, poderiam marcar, de forma diversa, as respostas de crianças criadas em diferentes países e contextos (Hansdottir & Malcarne, 1998). Trabalhos recentes, entretanto, sugerem que as semelhanças nos conceitos de saúde e doença, nas diferentes culturas, são bem maiores que as diferenças (Boruchovitch & Mednick, 2000; Peltzer & Promtussananon, 2003) Outra polêmica entre os pesquisadores diz respeito ao local e momento da coleta de informações. A maioria dos estudos avaliou crianças saudáveis, ou crônicas, quando não internadas. Partiam do pressuposto que a hospitalização interferia nos resultados, pelo stress que acarretava (Perrin et al., 1991). Entretanto, a internação, passado o impacto inicial, é o momento em que a criança mais recebe informações e questionamentos sobre sua doença. O hospital é parte integrante do contexto social da criança enferma e acaba interferindo nas suas relações psicossociais com o meio (Linhares, 2000). As explicações elaboradas na vigência do quadro, durante a internação, podem apontar singularidades que merecem ser conhecidas. Nesta pesquisa pretendeu-se investigar o desenvolvimento das explicações sobre a causalidade das doenças por crianças brasileiras, internadas em um hospital público, provenientes da região centro-oeste do Estado de São Paulo. Como em estudos similares, utilizou-se o referencial piagetiano para análise dos dados, por tratar-se de uma teoria que analisa a aquisição de conceitos, a partir da ótica do desenvolvimento. Se, de acordo com Piaget (1971), esse processo sofre a influência da idade e da experiência, nesta pesquisa procurou-se verificar o impacto desta última, principalmente como a vivência pessoal com doenças e internações e a escolaridade afetavam o conteúdo das explicações. Como a amostra era composta por crianças brasileiras, pretendeu-se, também, comparar os dados do recente estudo com os resultados obtidos com amostras de outros países, tendo sempre em vista implementar estratégias que facilitem a comunicação das equipes de saúde com os pacientes infantis. Método Sujeitos Participaram do estudo cinqüenta crianças internadas na Enfermaria de Pediatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu/ UNESP, um hospital-escola que atende a pacientes do Sistema Unificado de Saúde (SUS). Eram crianças internadas por diferentes motivos e portadoras de diversos quadros: agudos, crônicos e cirúrgicos. A idade das crianças variou de cinco a nove anos, com dez crianças representando cada faixa etária. Pretendeu-se contemplar sujeitos que estivessem nos estágios préoperatório e operatório concreto, preconizados por Piaget.

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3 Neste estudo só foram analisadas as respostas sobre causalidade das doenças. A análise dos outros tópicos foi apresentada em trabalho anterior (Gabarra et al., 2002).

Medidas Nível de desenvolvimento cognitivo – o desenvolvimento cognitivo foi avaliado a partir de um conjunto padrão de tarefas propostas por Piaget (1978) para avaliar a conservação de massa, tamanho, número e volume. A forma de pontuação seguiu os trabalhos do grupo de Perrin (Perrin & Gerrity, 1981; Perrin et al., 1991). Dois pesquisadores independentes pontuaram o desempenho das crianças. O índice de acordos foi superior a 80%. As crianças que tinham mais de duas conservações eram consideradas no estágio operatório concreto; aquelas que não tinham nenhuma conservação, ou apenas uma, estavam no estágio pré-operatório. Entendimento das causas das doenças – este item foi avaliado a partir da aplicação de uma entrevista semi-estruturada de cinco perguntas que abrangia as causas, sintomas, prevenção, tratamento e papel da medicação, extraído da Entrevista Sobre as Doenças proposta por Perrin & Gerrity (1981)3. Complexidade cognitiva das explicações - a resposta sobre a causa das doenças foi avaliada segundo os critérios propostos por Perrin & Gerrity (1981). A resposta recebia um ponto quando era inapropriada, ou a criança se esquivava de responder (“não sei”). Dois pontos correspondiam a respostas circulares (enumeração de sintomas) e mágicas (respostas características do estágio pré-operatório). As respostas que mereciam três e quatro pontos já demonstravam relação de causa e efeito e correspondiam ao nível operatório-concreto. Atribuiu-se três pontos quando a criança enumerava regras concretas e proibições associadas com o adoecer (“sair sem casaco”; “desobedecer a mãe”). Nas respostas de quatro pontos, as crianças citavam os agentes causadores e mostravam alguma compreensão quanto à internalização do agente (“Você respira e o bichinho entra no seu pulmão”). Apesar do nível concreto há um entendimento do processo de adoecer. As respostas foram pontuadas por dois avaliadores independentes e o nível de confiabilidade foi r= 0,87. Dados pessoais - a partir do prontuário foi realizado um levantamento do número de internações da criança nos últimos cinco anos. O grupo todo foi dividido em quatro subgrupos de acordo com o número de internações: uma, duas, três, quatro ou mais internações. Registrou-se, também, o diagnóstico da última internação e, com os pais, verificou-se se as crianças freqüentavam (ou não) a escola e qual a série. Procedimento Quando a criança estava próxima da alta, era contatada pela pesquisadora, uma psicóloga que trabalhava na enfermaria, e questionada se gostaria de participar da pesquisa. Caso afirmativo pedia-se o consentimento dos pais. A aplicação dos instrumentos ocorreu individualmente, sem a presença dos pais. Todas as crianças iniciaram a avaliação com as provas de conservação. Em seguida realizaram a entrevista. A pergunta sobre a causalidade das doenças era “Porque as crianças ficam doentes?”. As crianças respondiam às questões e o aplicador registrava suas respostas, por escrito, logo após sua emissão. As provas como um todo, duravam em média de trinta a quarenta

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minutos. A maioria realizou as atividades na mesa de recreação, mas algumas foram avaliadas no leito. Todas as respostas foram transcritas, sem identificação do sujeito, e avaliadas por dois psicólogos independentes. Diante do nível de concordância satisfatório nas pontuações dos dois avaliadores, os resultados foram submetidos a tratamento estatístico. Para verificar as correlações de interesse, utilizou-se o Teste Exato de Fisher e, em todos os casos, foi adotado nível de significância de 0,05. O Projeto de Pesquisa e o termo de consentimento foram aprovados pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. Resultados Como era esperado, houve uma progressão no número de conservações, que se correlacionou significativamente com o aumento de idade (p = 0,003 < 0,005). Entretanto o desempenho desse grupo de crianças, nas tarefas de conservação, foi inferior ao de outros trabalhos. Assim, 15% de crianças maiores de sete anos não tinham nenhuma conservação e, 50,0% apenas uma, correspondendo a um nível de pensamento pré-operatório (Tabela 1). Só acertaram todas as provas 12% das crianças acima de oito anos e que freqüentavam a terceira e quarta séries do Ensino Fundamental. Tabela 1 - Número e porcentagem de conservações nas diferentes idades

idade

5 6 7 8 9 Total

número de conservações 2 1

0

4

3

N

%

N

%

N

%

N

%

N

%

6 5 6 2 1

30,0 25,0 30,0 10,0 5,0

3 1 1 3 7

18,75 6,25 12,5 18,7 43,8

1 3 1 0 0

20,0 60,0 20,0 0,0 0,0

0 1 1 0 1

0,0 33,3 33,3 0,0 33,3

0 0 0 5 1

0,0 0,0 0,0 83,3 16,6

20 40,0

16

32,0

5

10,0

3

6,0

6

12,0

P=0,003<0,005 S

Com relação às causas atribuídas às doenças, houve, com o aumento da idade, uma diminuição de respostas circulares e de esquiva e uma maior porcentagem de explicações causais, mas sem significância estatística (Gráfico 1). 24% das crianças, especialmente as menores, as que não tinham nenhuma conservação e portadoras de doenças congênitas, não souberam atribuir causas às doenças ou deram respostas fatalistas (“porque tinha que ser”, “Deus quis”, “porque crianças são escolhidas para nascer doentes”). A confusão entre causas e sintomas ocorreu com 18% das crianças (“fica doente porque vomita”; “espirra, tem febre, e fica doente”). As respostas de contágio, às quais se atribuiu quatro pontos, só foram emitidas por 8% da amostra. Apesar de identificar agentes externos como causa das doenças (bichinhos, vírus, acidentes, infeções...), a forma de contágio ainda permanecia mágica. As crianças explicavam que se fica doente quando “se brinca com quem está doente”, ou “tem um pó no ar que entra no corpo e traz a doença”.

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Gráfico 1 - porcentagem de explicações circulares e causais sobre a doença em crianças de diferentes idades

Identificaram-se, também, explicações animistas (Piaget, 1971), que conferem sentimentos e intenções aos agentes (“são bichinhos malvados que entram na gente”; “subi no tanque e ele veio para cima de mim e quebrou minha perna”). Entretanto, as respostas mais freqüentes foram as explicações auto-culpabilizantes: 50% da amostra, independente da faixa etária, associou a doença com desobediência (ficar descalço, tomar sorvete, sair sem agasalho...) (Tabela 2). Poucas fizeram referência a outras transgressões (subir no muro, correr com a bicicleta). Tabela 2 - Número e porcentagem de explicações sobre as causas doença, com diferentes graus de complexidade, nas diferentes idades nível de complexidade das explicações idade

5 6 7 8 9 Total

1 N %

N

4 2 4 1 1

33,3 16,6 33,3 8,33 8,33

2 2 3 2

12 24,0

9

2 %

3

4

N

%

N

%

22,2 22,2 33,3 22,2

4 5 6 4 6

16,0 20,0 24,0 16,0 24,0

0 1 0 2 1

0,0 25,0 0,0 50,0 25,0

18,0

25

50,0

4

8,0

P=0,55>0,05 NS

Não foi significativa a associação da escolaridade com o nível de complexidade das respostas, mas houve uma porcentagem maior de respostas causais em crianças de séries mais avançadas (Gráfico 2). Suas explicações eram mais objetivas, racionais e, às vezes, faziam referência a explicações fisiológicas da transmissão de doenças, principalmente do aparelho respiratório. Gráfico 2-Porcentagem de respostas circulares e causais oferecidas por crianças de diferentes níveis de escolaridade, para explicar a causa das doenças

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O papel da experiência, avaliado a partir do número de internações, teve uma relação estatisticamente significativa com a complexidade das explicações (p=0,04 >0,05). Crianças com um maior número de hospitalizações, que possivelmente estiveram mais expostas a informações pelas equipes de saúde, demonstravam uma maior compreensão da internalização dos agentes. Entretanto, estes resultados precisam ser tomados com cautela pois a maioria das crianças tinha apenas uma ou duas internações. A metade da amostra não fez nenhuma referência aos fatores responsáveis pela sua internação ao explicar as causas das doenças (por exemplo, criança com fratura de fêmur que respondia “ficam doentes porque ficam descalças”; ou criança com mal formação congênita que cuja resposta era “ficam doentes porque tomam chuva ou sofrem acidente”). Com o aumento da idade aumentou a porcentagem de associações entre as causas citadas e a estória do próprio adoecimento (Tabela 3). Tabela 3 - Número e porcentagem de explicações sobre a causa das doenças, relacionadas (ou não) ao próprio quadro, em crianças de diferentes idades relação das explicações com a própria doença idade

5 6 7 8 9 Total

não sei N % 4 2 4 1 1

sem relação N %

com relação N

%

41,6 16,6 41,6 0,8 0,8

5 6 3 7 4

20,0 24,0 12,0 28,0 16,0

1 2 3 3 5

0,7 14,3 2,1 2,1 35,7

12 23,5

25

49,0

14

27,5

Contrariando a hipótese, o fato de as crianças dessa amostra residirem em um país com clima, condições econômicas e sanitárias diversas do contexto de outros estudos, não pareceu interferir nas explicações. Os fatores climáticos identificados como causadores de doenças foram o frio, a chuva, a umidade. Nenhuma criança fez referência ao calor, ao sol intenso, a alimentos estragados etc. Algumas explicações peculiares, que faziam referência ao meio particular onde estas crianças vivem, lembravam slogans de campanhas de saúde pública, veiculadas pelos meios de comunicação, sem muita relação com o caso específico da criança (“não deixar água parada”, “matar o mosquito”,“tomar vacina”,”usar camisinha”). Discussão Neste estudo, assim como em trabalhos anteriores, houve uma progressão no número de conservações, que acompanhou o aumento da idade. Entretanto as crianças internadas tiveram um desempenho inferior ao das crianças saudáveis, ou crônicas de outras pesquisas (Brewster, 1982; Perrin et al., 1991; Hansdottir & Malcarne, 1998). Há controvérsias na literatura sobre o desenvolvimento cognitivo de crianças com várias internações ou determinadas doenças crônicas. MyersVando et al. (1979) sugerem que a doença é um fator intrusivo que retarda

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as funções cognitivas e, portanto, essas crianças têm conceitos menos sofisticados. Outros pesquisadores não encontraram diferenças significativas entre crianças saudáveis e doentes, quanto à aquisição da conservação e causalidade de fenômenos físicos (Carraccio et al., 1987; Sussman et al., 1987). Segundo Perrin et al. (1991), além do fato de estar doente, há outras variáveis influindo na aquisição dos conceitos, como inteligência e nível sócio econômico que, quando controladas, mostram que os conceitos gerais de crianças doentes equivalem ao das saudáveis. Nesta amostra, levanta-se a hipótese de que a exploração limitada do espaço, imposta pelas restrições motoras de algumas doenças e tratamentos, as possíveis faltas à escola, e as baixas expectativas por parte de familiares perante crianças doentes, apontadas em outros estudos (Perrin et al., 1991), possam justificar o atraso no desenvolvimento cognitivo. Com relação às explicações sobre as causas das doenças, assim como na aquisição de outros conceitos pesquisados por Piaget (1971), houve uma evolução nas explicações, que acompanhou o aumento da idade. Entretanto, a maioria das crianças ofereceu explicações finalistas, animistas e mágicas, características do pensamento egocêntrico. Algumas crianças mais velhas mostraram uma assimilação mais racional, própria do estágio das operações concretas, recorrendo ao conceito de contágio, mas, mesmo quando fizeram referência a agentes externos ao organismo, a descrição da incorporação do vírus era mágica prescindindo de pensamento lógico (Piaget, 1971). As crianças menores, que freqüentavam a pré-escola, davam explicações circulares sem se preocupar com a relação de causa e efeito. Foi freqüente o uso de explicações finalistas (“porque sim”, “Deus quis”, tinha que ser”) que demonstram a assimilação de uma realidade em que se confunde causa com intenção (Piaget, 1971). Na seqüência, as crianças identificavam sintomas como causas, mostrando uma forma de pensar dominada por imagens e um raciocínio centrado em aspectos visíveis e de concretitude imediata. A partir dos seis anos, as explicações causais substituíram as explicações circulares, entretanto as características finalistas e animistas persistiram, por exemplo, nas respostas auto-culpabilizantes, cuja incidência foi maior que em outras pesquisas (Perrin & Gerrity, 1981; Perrin et al., 1991; Brewster, 1982; Hansdottir & Malcarne, 1998). Mesmo crianças mais velhas, de oito e nove anos, que a partir das provas de conservação foram classificadas como estando no estágio de pensamento operatório-concreto, apontaram a desobediência como responsável por sua doença. Acreditavam que adoeceram em decorrência de ações concretas que fizeram (ou deixaram de fazer) e se propunham a obedecer para poder sarar. Redpath & Rogers (1984) e Walsh & Bibace (1991) já haviam demonstrado que a compreensão mais sofisticada dos conceitos de saúde/doença não necessariamente acompanha o desenvolvimento cognitivo, avaliado pelo número de conservações, fenômeno que Piaget denominou decalagem horizontal, ou seja, que o desenvolvimento cognitivo em uma área do conhecimento pode diferir do grau de desenvolvimento em outra.

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Entretanto, a alta porcentagem de respostas de culpa em adolescentes e mesmo em adultos doentes, referida na literatura (Paulhan, 1994), permite levantar outra hipótese: essas explicações podem estar sinalizando uma interseção entre fatores afetivos e cognitivos. Em áreas de conflito e situações estressantes, assumir a culpa pode aliviar a sensação de desamparo e criar uma ilusão de controle, bastante útil perante doenças crônicas ou quadros de previsibilidade incerta. O pensamento culposo teria o papel de mecanismo de defesa (Brewster, 1982). Segundo Boruchovitch & Mednick (1997), é interessante notar que mesmo numa cultura como a brasileira, que pode ser descrita como tendo um considerável grau de fatalismo, a maioria dos sujeitos identificou seu próprio comportamento como responsável pela doença. Diante desses dados, as equipes de saúde devem tomar cuidado com a insistência de algumas crianças mais velhas, internadas, em manter idéias distorcidas, pensamentos mágicos e egocêntricos, apesar das contínuas e exaustivas informações, por parte dos profissionais. A internação geralmente coincide com o recrudescimento do quadro crônico; é a instância mais crítica da doença aguda, e o contexto com maior probabilidade de procedimentos invasivos e dolorosos. Se esse tipo de pensamento funciona como mecanismo de defesa, é preciso lidar cuidadosamente para não quebrar defesas de crianças que, possivelmente, não têm outros mecanismos adaptativos, no momento em que mais precisam deles (Brewster, 1982). Com relação ao papel da escola, contrariamente aos achados de Boruchovitch & Mednick (2000), com estudantes brasileiros que cursavam o ensino fundamental no Rio de Janeiro, não foi significativa a relação entre o grau de escolaridade e a atribuição de causalidade das doenças. Os atuais resultados estão mais próximos dos obtidos com crianças negras sulafricanas, para quem a escola teve pouca influência, mas campanhas educativas veiculadas pelos meios de comunicação, especialmente em relação a AIDS, foram lembradas freqüentemente (Peltzer & Promtussananon, 2003). Os temas associados com o adoecimento nas crianças desta amostra foram bastante similares aos citados nos estudos desenvolvidos com crianças brasileiras (Boruchovitch & Mednick, 2000) e com crianças de outros países (Perrin et al., 1991; Brewster, 1982; Hansdottir & Malcarne, 1998; Peltzer & Promtussananon, 2003). A falta de elementos subjetivos ao explicar as doenças, seja em relação ao próprio quadro ou às condições particulares do país em que vivem, precisa ser mais bem analisada. Na grande maioria das vezes, as respostas das crianças pareciam cópia do discurso dos adultos, mais especificamente das mães, tentando evitar situações de perigo à saúde das crianças. Isso também ocorreu no estudo de Berthoud-Papandropoulou et al. (1990), que observaram que as explicações de crianças francesas com menos de sete anos se situavam no domínio das interdições e obrigações e que só mais tarde elas expunham suas crenças e justificavam suas ações . Segundo Piaget (1978), no período pré-operatório, a criança, porque ainda não desenvolveu representações mentais, tenta compreender o mundo por meio de imagens interiorizadas do comportamento emitido

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tanto por objetos (trem, avião) como por pessoas avaliadas positivamente. Trata-se de uma imitação diferida, isto é, reprodução do comportamento de alguém, sem a presença do modelo. No geral, ela imita o adulto que dispõe de autoridade pessoal, os pais, o médico, os professores. A apropriação do discurso do outro poderia explicar porque essas explicações são estereotipadas e de certa forma moralistas. Mas, a falta de elaboração pessoal e possível reprodução da fala do adulto talvez tenha sido favorecida pela forma como se coletaram os dados. Em uma entrevista, as respostas induzidas pelas perguntas de um pesquisador não têm o mesmo status psicológico que as explicações espontâneas (Berthoud-Papandropoulou et al., 1990). É uma situação social, interativa, de construção discursiva, centrada em um contexto em que os protagonistas oferecem as informações que eles imaginam que o outro espera ouvir. As respostas não necessariamente explicitam os reais sentimentos e pensamentos do entrevistado (Hart & Chesson, 1998). Nesse sentido, a criança pode estar repetindo o discurso que, ela acredita, o adulto, da equipe da enfermaria, quer ouvir. Nos próximos estudos sugere-se uma mudança na forma de entrevista, aproximando-a do método clínico, proposto e adaptado por Piaget, para contextos experimentais (Walsh & Bibace, 1991). Em oposição aos testes padronizados, a utilização de um interrogatório flexível, criando problemas e explicitando contradições, ajudaria a descobrir os processos de raciocínio subjacentes às respostas, e evitaria a simples repetição das palavras da autoridade, muitas vezes sem nexo, como quando a criança repetia os slogans televisivos (“não usam camisinha”, “ tem que matar o mosquito”). Não se pretende com isso medir a solidez de suas convicções, mas criar a necessidade de elaboração. Considerações finais A compreensão de como as crianças explicam as doenças, e sua relação com a idade e desenvolvimento cognitivo possibilitou, no decorrer dos últimos anos, elaborar estratégias e material didático, para informá-las adequadamente sobre o processo de adoecer, o tratamento e a prevenção. As similaridades encontradas nas formas de explicar as causas das doenças nas várias culturas, reiteradas neste estudo, aumentam a possibilidade de aproveitar materiais desenvolvidos e testados em outros países. Esses conhecimentos possibilitaram, também, ao médico, no contato direto com os pacientes infantis, adequar as informações, assim como entender vários dos medos, muitas vezes considerados inócuos ou irracionais, na perspectiva dos adultos. As evidências de que outras variáveis influem na compreensão das doenças, como as internações e a interação entre fatores emocionais e cognitivos, aliada à possibilidade de a criança não explicitar seus pontos de vista mas repetir o discurso esperado pela autoridade, sugerem novas posturas, especialmente com crianças hospitalizadas. Se o objetivo da equipe de saúde está em facilitar a adaptação da criança à internação e aumentar as chances de sua participação no tratamento, os profissionais precisam ter a intenção de envolver-se em um processo interativo de comunicação, no qual o ponto de partida consiste em ouvir, individualmente, como cada criança

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concebe seu adoecimento, tentando evitar que ela apenas repita falas estereotipadas. Em um segundo momento, ao invés de apenas oferecer informações, dialogar com ela, estabelecendo uma troca que pode ter diversos objetivos, dependendo do caso: esclarecer pontos obscuros, desmistificar fantasias, dar novas explicações ou mesmo respeitar concepções errôneas que podem funcionar como mecanismos adaptativos, em momentos de stress. Referências BERTHOUD-PAPANDROPOULOU, I.D.; FAVRE, C.,; VENEZIANO, E. Construction et reconstruction des conduites d’explication. Le jeune enfant et léxplication, v.7/8, p.9-35,1990. BIBACE, R.; WALSH, M. Development of children’s concepts of illness. Pediatrics, v.66, n.6, p.912-7, 1980. BORUCHOVITCH, E.; MEDNICK, B.R. Cross-cultural differences in children’s concepts of health and illness. Rev. Saúde Pública, v.31, n.5, p.448-56, 1997. BORUCHOVITCH, E.; MEDNICK, B. R. Causal attributions in Brazilian children’s reasoning about healh and illness. Rev. Saúde Pública, v.34, n.5, p.484-90, 2000. BREWSTER, A. Chronically ill hospitalized children’s concepts of their illness. Pediatrics, v.69, p.35562,1982. CAMPBELL, J. O. Illness is a point of view the development of children’s concept of illness. Child Dev., v.46, p.92-100, 1975. CARRACCIO, C.; MC CORMICK, M.C.; WELLER, S.C. Chronic disease effect on health cognition and health locus of control. J. Pediatr., v.110, p.982-7, 1987. GABARRA, L.; MILARÉ, L.; PEROSA, G. B. O entendimento das causas das doenças e do poder da medicação, por crianças de diferentes quadros e idades internadas em uma enfermaria de pediatria. In: REUNIÃO ANUAL DE PSICOLOGIA, 32., 2002, Florianópolis. Resumos... Florianópolis, 2002. p.338-9. HANSDOTTIR, J.; MALCARNE, V. Concepts of illness in Icelandic children. J. Pediatr. Psychol., v.23, t.3, p.187-95,1998. HART, C.; CHESSON, R. Children as consumers. Br. Med. J., v.316, p.1600-3, 1998. LINHARES, M. B. M. Psicologia pediátrica: aspectos históricos e conceituais. In: CICLO DE SAÚDE MENTAL, 8., 2000, Ribeirão Preto. Resumos... Ribeirão Preto, 2000. p.112-5. MYERS-VANDO, R.; STEWARD, M.; FOLKINS, C.; HANES, P. The effects of congenital heart disease on cognitive development, illness causality concepts, and vulnerability. Am. J. Orthopsychiatr., n.49, p.61725, 1979. PAULHAN, I. Les strategies d’ajustement ou “coping”. In: BRUCHON-SCHWEITZER, M.; DANTZER, R. (Orgs.) Introduction á la Psychologie de la Santé. Paris: PUF, 1994. p.22-30. PELTZER, K.; PROMTUSSANANON, S. Black South African children’s understanding of health and illness: colds, chicken pox, broken arms and AIDS. Child: Care, Health and Development, v.29, n.5, p.385-93, 2003. PERRIN, E. C.; GERRITY, S. There’s a demon in your belly: children’s understanding of illness. Pediatrics, v.67, t.6, p.841-9,1981. PERRIN, E.C.; GERRITY, S. Desenvolvimento das crianças portadoras de enfermidades crônicas. In: HAGGERTY, R. J. (Org.) Clínicas pediátricas da América do Norte. Rio de Janeiro: Editora Interamericana, 1984. p.21-34.

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Desenho atribuído a Odilon Redon

WHITT, J.K.; WEISS, D.; TAYLOR, C. A. Children’s conceptions of illness and cognitive development. Clinic. Pediatr., v.18, p.307-39, 1979.

PEROSA, B. G.; GABARRA, L. M. 5. Explicaciones de niños internados sobre la causa de las enfermedades: implicaciones para la comunicación profesional de salud-paciente, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.135-47, set.2003-fev.2004. El objetivo de este trabajo fue investigar el desenvolvimiento de las explicaciones sobre las causas de las enfermedades en niños hospitalizados. Participaron 50 niños brasileños internados en un hospital publico, con diferentes diagnósticos, con edad que variaban entre 5 y 9 años. El desenvolvimiento cognitivo y el entendimiento de las enfermedades fueron evaluados según el referencial piagetiano. Los resultados fueron consistentes con otros estudios: los niños procesaron las informaciones en secuencias cognitivas previsibles, pero los niños hospitalizados tenían un atraso en la adquisición de las tareas de conservación y ofrecían explicaciones con pocas referencias a su propia enfermedad. Los factores identificados como causadores de enfermedades fueron similares a los apuntados por niños de otros países. Fue estadísticamente significativa la relación entre la complejidad de las explicaciones y el número de internaciones. Independiente de la edad o del nivel cognitivo, 50% de los niños atribuía las enfermedades a desobediencia, posible mecanismo adaptativo al desamparo, resultado que parece traer implicaciones que deben ser consideradas cuando se abordan los pacientes infantiles. PALABRAS CLAVE: Causalidad; relaciones medico-paciente; explicaciones infantiles; niño hospitalizado.

Recebido para publicação em 25/08/2003. Aprovado para publicação em 05/02/2004. .

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© Taller Experimental Cuerpos Pintados, 2003

JIM AMARAL

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LER/DORT: multifatorialidade etiológica e modelos explicativos* Luiz Gonzaga Chiavegato Filho 1 Alfredo Pereira Jr. 2

CHIAVEGATO FILHO, L. G.; PEREIRA JR., A. Work related osteomuscular diseases: multifactorial etiology and explanatory models, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.149-62, set.2003-fev.2004.

A brief bibliographic review was undertaken on Repetitive Strain Injury/Work Related Osteomuscular diseases, analyzing the etiological factors involved and current explanatory models. A proposal for a new approach is suggested, integrating the biopsychosocial factors involved in the generation and evolution of such injuries and diseases. This article reflects the idea that the transition from a study of isolated factors to the consideration of the dynamics of the interaction between these factors would allow the current multidisciplinary approach to progress towards a transdisciplinary model. KEY WORDS: Cumulative trauma disorders; models; multidisciplinarity; transdisciplinarity; occupational health. Parte-se de uma breve revisão bibliográfica sobre as LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos/Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho), analisando os fatores etiológicos envolvidos e os modelos explicativos vigentes. Discute-se a proposta de uma abordagem integradora de fatores biopsicossociais envolvidos na gênese e evolução das LER/DORT. Considera-se que a transição do estudo dos fatores isolados para a consideração de formas dinâmicas de interação desses fatores possibilitará a evolução da atual abordagem multidisciplinar para um modelo transdisciplinar. PALAVRAS-CHAVE: Transtornos traumáticos cumulativos; modelos; multidisciplinaridade; transdisciplinaridade; saúde ocupacional.

*

Texto elaborado a partir de Dissertação de Mestrado (Chiavegato Filho, 2002), pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq.

1

Professor do Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Sergipe, UFS, e Universidade Tiradentes, UNIT. <rafanini@hotmail.com> 2

Professor do Departamento de Educação, Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista, UNESP-Botucatu. <apj@ibb.unesp.br>

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CHIAVEGATO FILHO, L. G.; PEREIRA JR., A.

Introdução As lesões por esforços repetitivos (LER) ou distúrbios osteomusculares relacionadas ao trabalho (DORT) são um conjunto de doenças que afetam músculos, tendões, nervos e vasos dos membros superiores (dedos, mãos, punhos, antebraços, braços, ombro, pescoço e coluna vertebral) e inferiores (joelho e tornozelo, principalmente) e que têm relação direta com as exigências das tarefas, ambientes físicos e com a organização do trabalho. Verthein & Minayo-Gomes (2000) reportam discordâncias referentes à caracterização desses distúrbios. Vários são os termos utilizados, dependendo do aspecto clínico que se quer enfatizar e do modelo que se quer adotar para lidar com o problema. Estudos datados do século XVIII (Ramazzini, 1992) descrevem o sofrimento físico e mental dos escribas e notários acometidos por esses distúrbios. Nas últimas décadas, com as transformações no processo de produção, a reestruturação produtiva (automação do processo de produção), as elevadas exigências de produção, a competitividade exacerbada, as mudanças na gestão do trabalho e as novas políticas de gestão de pessoal, o que antes se restringia aos artesãos, escribas e digitadores, se estende a diversas categorias profissionais. Para Dwyer (2000), vivemos a transição de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial, onde se trabalha cada vez menos com a matéria prima e cada vez mais com a informação e o processamento de dados. Em decorrência desses fatores, alguns países, como o Japão, Austrália, Canadá, Estados Unidos da América e o Brasil, enfrentam uma alta incidência desses distúrbios, assumindo um caráter epidêmico (Araújo et al., 1998; Brasil, 2001). 3

Revisão bibliográfica Revendo a literatura3 sobre as LER/DORT, com base em dissertações de mestrado e teses de doutorado apresentadas nos últimos dez anos, entre 21 trabalhos encontrados foi possível constatar que prevalecem as teses e dissertações de metodologia qualitativa (14), sendo a maior parte destes (oito) estudos de casos e de representações sociais dos portadores de LER/ DORT, seguidos por estudos sobre o trabalho em equipes inter ou multidisciplinares, e análises sobre a reabilitação profissional do portador (quatro); entre as análises quantitativas, predominam os estudos epidemiológicos (quatro). Esses trabalhos constatam que as LER/DORT constituem um grave problema de saúde pública, de alta e crescente incidência, que apresentam dificuldades na forma de abordagem, na reabilitação e na prevenção. Predomina a controvérsia na caracterização dos quadros referentes às LER/ DORT, refletindo as limitações em relação à caracterização dos quadros clínicos e aos aspectos envolvidos na sua causação (Santos Filho & Barreto, 1998). Armstrong et al. (1984, p.199) informam que numerosos estudos em âmbito internacional, durante os últimos cem anos, mostram que “as tendinites são a maior causa de sofrimento do trabalhador cuja atividade é manual, bem como de indenização trabalhista”. No Brasil, não dispomos de um banco de dados epidemiológicos que

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Utilizando os bancos de dados da USP, UNIFESP, UNICAMP e LILACS, em 2000, busca pela palavrachave: LER/DORT.


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cubra a totalidade dos trabalhadores. De acordo com os próprios órgãos governamentais, os levantamentos estatísticos oficiais não retratam o quadro real de como adoecem os trabalhadores, sem contar a subnotificação no registro do número de acidentes do trabalho e de doenças profissionais (Alves & Luchesi, 1992; Reis et al., 2000). Com exceção de alguns serviços municipais e estaduais especializados em saúde do trabalhador, não encontramos dados que possam dar a devida dimensão ao fenômeno das LER/DORT no Brasil (Pinheiro et al., 1995; Santos Filho & Barreto, 1998; Reis et al., 2000). Segundo informações do Ministério da Saúde (Brasil, 2000), o sistema nacional de informação do Sistema Único de Saúde não inclui os acidentes de trabalho em geral e nem as LER/DORT em particular. Os dados disponíveis para análise são provenientes do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS, 2000), que se referem apenas aos trabalhadores do mercado formal (menos de 50% da população economicamente ativa), coletados para fins pecuniários e não epidemiológicos. Como é possível observar na tabela 1, o grupo das tenossinovites e sinovites no qual foram codificadas as LER/DORT é predominante. Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2000), esses dados, que indicam a prevalência das LER/DORT, e os da tabela 2, sugerem que o aumento de casos de doenças ocupacionais registrados pela Previdência Social, a partir de 1992, deu-se por conta dessas afecções. Tabela 2 - Distribuição de doenças ocupacionais no Brasil (1982 a 1997)

Tabela 1 - Distribuição de acidentes de trabalho no Brasil em 1997 Natureza da Lesão

Típico

Sinovite e tenossinovite

2.605

Condições suspeitas não especificadas

1.823

Lumbago Convalescença

2.727 5.047

Trajeto

Doenças

156

9.527

261 92 926

677 241 176

Total Ano

Freqüência

1982

2.766

1983

3.016

1984

3.233

1985

4.006

3.060

1986

6.014

6.149

1987

6.382

1988

5.025

1989

4.838

1990

5.217

1991

6.281

12.258 2.761

Fonte: Comunicação de Acidentes de Trabalho, CAT, DATAPREV.

Segundo o Programa Nacional de Prevenção às 1992 8.299 1993 15.417 LER/DORT (UOL, 2002), esses distúrbios 1994 15.270 atingem o trabalhador no auge de sua 1995 20.646 produtividade e experiência profissional. A 1996 34.889 maior incidência ocorre na faixa etária de 1997 29.707 trinta a quarenta anos. As categorias Total 171.006 profissionais que encabeçam as estatísticas são bancários, digitadores, operadores de linha de Fonte: Boletim Estatístico de Acidentes do Trabalho - BEAT, montagem, operadores de telemarketing, INSS, 1997. secretárias, jornalistas, entre outros, sendo as mulheres as mais atingidas. Santos Filho & Barreto (1998, p.559) também apontam algumas limitações desses estudos, como a falta de padronização e rigor na definição e identificação dos casos; não diferenciação segundo a

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especificidade e gravidade clínica; inclusão de casos prevalentes e incidentes no mesmo estudo; imprecisão e precariedade na definição e nomenclatura dos fatores de exposição e de confusão relevantes; limitação metodológica dos desenhos adotados; falta de estudos epidemiológicos para avaliação do efeito dos procedimentos de prevenção e tratamentos adotados na prática médica até então, e falta de abordagem da dimensão temporal na grande maioria dos estudos conduzidos, dificultando muito a avaliação da real implicação dos fatores identificados na produção das doenças afetadas. A etiologia das LER/DORT Não há uma causa única para a ocorrência de LER/DORT. Há fatores psicológicos, biológicos e sociológicos envolvidos na gênese desses distúrbios. Inicialmente as LER/DORT eram reconhecidas como decorrentes preponderantemente das condições de trabalho. Com o aumento explosivo da incidência entre várias categorias profissionais, surgiram novas correntes explicativas. Na Austrália, por exemplo, essa transformação levou ao questionamento da sua ligação com o trabalho, surgindo explicações psicológicas e biológicas do distúrbio, ou mesmo sua ‘psiquiatrização’ (Verthein & Minayo-Gomes, 2001). O debate atual tende para o reconhecimento da multideterminação dessa afecção (Sato et al., 1993; Lima & Oliveira, 1995; Dias, 1995; Kuorinka & Forcier, 1995; Martin & Bammer, 1997; Araújo et al., 1998; Settimi et al., 1998; Borges, 1999; Brasil, 2000; 2001; Asssunção & Almeida, 2003). Esses autores admitem que não é possível determinar com precisão, a priori, quais fatores, sejam psicológicos, sociológicos ou biológicos, estariam envolvidos na configuração desses distúrbios. Tampouco, determinar de que forma esses fatores interagem e qual é a proporção de responsabilidade de cada um deles. No entanto, ainda subsistem abordagens parciais, que não consideram a integração entre os fatores apresentados, acarretando graves distorções no diagnóstico, no tratamento e na prevenção, trazendo prejuízos aos portadores desses distúrbios (Araújo et al., 1998; Settimi et al., 2000). Na discussão dessa problemática, seguiremos a orientação de Lima (1998; 2000), apresentando as abordagens parciais sobre a concepção das LER/ DORT, distribuídas em três grupos: o viés psicológico, o sociológico e o biológico. Incluem-se, na visão psicologizante, os trabalhos que alegam serem as LER/DORT decorrentes de processos psíquicos, geralmente desvinculados das condições e da organização do trabalho, ou de uma predisposição psíquica oriunda de características específicas da personalidade. Alguns trabalhos com este tipo de visão unidimensional, que privilegia os aspectos psicológicos, sugerem a inexistência dos distúrbios biológicos e afirmam que a origem das LER/DORT está na intenção de fugir de problemas e traumas psicológicos, não necessariamente ligados ao ambiente profissional (Martin & Bammer, 1997). Nesta perspectiva, destacam-se os trabalhos que sustentam a hipótese da ‘conversão histérica’ ou ‘neurose histérica’, concebendo as LER/DORT como conseqüência de uma somatização ou expressão da insatisfação de necessidades e desejos não realizados (Lucire, 1986; Almeida, 1995). Os portadores de LER/DORT, para se livrarem de

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seus sintomas, segundo esta teoria, deveriam submeter-se a um tratamento psicoterápico, que possibilitasse a lembrança das situações traumáticas que deram origem aos sintomas histéricos e sua superação. Ao considerar as características subjetivas do processo de adoecimento, esta concepção descaracteriza o vínculo com o trabalho, apresentando o portador do distúrbio como naturalmente predisposto. Transfere para o sujeito a responsabilidade do adoecer, culpando-o pelo descuido com a saúde, pela não utilização dos equipamentos de segurança, pelos seus problemas pessoais etc. (Verthein & Minayo-Gomes, 2001). Algumas abordagens oriundas da psicossociologia, da psicopatologia do trabalho e da ergonomia francesa, segundo Araújo et al. (1998), investigam a relação entre o biológico, o psicológico e o social, mediante o ‘processo de individuação da doença’, ou seja, a forma pela qual os processos sociais e as determinações gerais do contexto profissional e afetivo se manifestam no indivíduo. Neste caso, situações que envolvem uma ansiedade excessiva (p. ex., uma organização de trabalho rígida e opressora) propiciam condições de sofrimento e manifestações de somatização. Quando o sujeito ou o trabalhador não é capaz de dar vazão a essas sensações ansiogênicas no próprio trabalho ou atividade, a manifestação somática vem à tona (Almeida, 1995; Dejours, 1987; Inselin & Pezé, 1996). Settimi et al. (2000, p.21) apontam para a “falta de consistência dessa teoria com estudos populacionais, restando apenas o caráter especulativo na construção de seus conceitos”. As LER/DORT, em uma visão psicossomática, poderiam estar ligadas a um comportamento compulsivo, que só se expressaria diante de uma organização do trabalho patogênica, ou seja, a organização do trabalho aproveitaria e estimularia o trabalhador com este perfil, gerando os problemas decorrentes (Araújo et al., 1998; Lima, 2000). Na mesma direção, Sato et al. (1993) argumentam que os traumas psicológicos, a culpa e a baixa auto-estima são conseqüências desta doença e não pilares de uma personalidade naturalmente predisposta a adoecer. Estudos realizados por Araújo et al. (1998) constatam que aspectos relativos à personalidade, tais como perfeccionismo, elevado senso de responsabilidade, busca excessiva de reconhecimento (aumentando a produção e acelerando o ritmo de trabalho), submissão às exigências de produção e de qualidade, podem contribuir para o desenvolvimento desses distúrbios. Todavia, estes fatores isolados não geram a doença, o que reafirma a necessidade de integrá-los aos demais aspectos determinantes das LER/DORT. A perspectiva sociologizante diz respeito aos trabalhos que atribuem aos contextos socioeconômico e cultural um papel preponderante na determinação da gênese das LER/DORT. Nesta visão destacam-se, principalmente, duas correntes de pesquisa, os discursos da iatrogênese social e da simulação (Martin & Bammer, 1997). Nessas abordagens afirmase que as LER/DORT são, na verdade, simulações, que se caracterizam, na maior parte das vezes, como artifícios utilizados pelos empregados no conflito social com seus patrões, no contexto do trabalho, tendo em vista benefícios relacionados ao salário, autonomia, ritmo de produção etc. Tratase de uma questão delicada, pois não há como verificar, de maneira

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definitiva, a presença ou não da dor (Scarf & Wilcox, 1984; Ireland, 1986; Bell, 1989; Oliveira, 1999). Também é difícil visualizar os benefícios ou ‘ganhos secundários’ do trabalhador com esta simulação, uma vez que a vida de quem possui o diagnóstico confirmado de LER/DORT não é fácil; muito pelo contrário, enfrenta conseqüentemente inúmeros preconceitos, até da própria família, e dificuldades de reinserção profissional e social. As doenças iatrogênicas sociais são aquelas causadas por condições sociais específicas. Os proponentes deste conceito não negam a existência de um distúrbio, mas recusam o estabelecimento de um nexo com as condições e organização do trabalho (Cleland, 1987; Spillane & Deves, 1987; Oliveira, 1999). Além disso, esta corrente acredita na possibilidade de caracterização de uma ‘dor normal’ como sendo um caso de LER/DORT. Isto seria decorrente do incentivo ou encorajamento de sindicatos e colegas de profissão ou de alguns profissionais da saúde, visando, de alguma forma, trazer benefícios ou ganhos secundários aos trabalhadores, como uma compensação monetária por sofrimento ou incapacidade. Dentro da visão sociológica das LER/DORT, inclui-se também, a abordagem marxista do distúrbio. Nessa perspectiva, as doenças emergem como conseqüência iminente e necessária da lógica de produção capitalista. As LER/DORT seriam encaradas como uma construção social, resultante do conflito de classes e de movimentos sociais dos trabalhadores (Bammer & Martin, 1988; 1992). Finalmente, a visão biologizante é aquela que confere aos fatores fisiopatológicos, biomecânicos, ou seja, às características biofísicas dos indivíduos e características materiais do trabalho, as determinações sobre a gênese das LER/DORT, desconsiderando os aspectos subjetivos e sociais desse distúrbio (Quintner & Elvey, 1991; Cohen et al., 1992; Dennett & Fry, 1988). Trata-se da visão mais aceita pelos profissionais de saúde. Admite-se a lesão dos músculos, tendões ou nervos, responsabilizando-se os movimentos repetitivos, o uso excessivo de força ou movimentos rápidos, ou uma combinação desses fatores. O problema é que, muitas vezes, não há sinais objetivos que caracterizem a doença, o que dá margem a interpretações como as citadas acima, que negam o distúrbio, que sugerem a simulação etc. (Martin & Bammer, 1997). A questão da multifatorialidade No diagnóstico, prevenção e tratamento das LER/DORT pelas equipes de profissionais do sistema de saúde, tem-se adotado recentemente a perspectiva da multideterminação desses distúrbios, ou seja, de que são afecções multifatoriais cuja abordagem exige investigação das dimensões biomecânicas, cognitivas, sensoriais e afetivas da atividade de trabalho. O Ministério da Saúde (Brasil, 2000) orienta para a constituição de uma equipe multidisciplinar, dentro dos serviços especializados, baseada nesta abordagem multifatorial, para investigação do diagnóstico, prevenção e tratamento. O diagnóstico das LER/DORT é essencialmente baseado no histórico ocupacional e no exame clínico e físico dos pacientes (Assunção & Rocha, 1993; Brasil, 2000; Assunção & Almeida, 2003). Se possível, considera-se importante realizar também uma análise ergonômica do

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trabalho realizado pelo indivíduo que apresenta os sintomas (Settimi et al., 2000). Muitas vezes, os portadores de LER/DORT “apresentam quadros clínicos onde os sintomas e a dor crônica não condizem com os resultados do exame clínico” (Merlo et al., 2001, p.25). Seu maior sintoma é a própria dor do paciente, que pode apresentar, ainda, queixas de parestesias, edema, perda da força muscular e/ou diminuição dos controles dos movimentos. Segundo Assunção & Almeida (2003, s/p), a dor não segue curso linear e não tem estágios definidos. Ela depende de interações entre a percepção do sintoma, suas interpretações, expressão e os comportamentos de defesa. Neste contexto os “fatores culturais e sociais devem ser considerados. A sensação dolorosa é acompanhada de reações cognitivas e emocionais, podendo explicar o comportamento do indivíduo”. Na evolução do quadro clínico, em relação ao estabelecimento da sintomatologia, com base no desenvolvimento da dor e da capacidade funcional do paciente, pode-se estabelecer graus que variam do I ao IV. O nível I corresponderia a uma sensação de peso e desconforto do membro afetado, com caráter ocasional, enquanto o nível IV corresponderia a uma dor forte e um sofrimento intenso, com manifestação de edema persistente e aparente deformidade (Verthein & Minayo-Gomes, 2000). O tratamento ideal é considerado como resultante da colaboração de diversos profissionais (psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, enfermeiros, acupunturistas, assistentes sociais, médicos e ergonomistas), ou seja, de uma equipe multidisciplinar, que deve responsabilizar-se pela avaliação de cada um dos casos atendidos e pela definição de um procedimento terapêutico individualizado correspondente (Assunção & Almeida, 2003; Brasil, 2000). Esta equipe deve orientar e informar o paciente acerca de sua condição e contexto, visando uma participação ativa deste no processo de recuperação; propiciar emancipação e autonomia do paciente em relação ao tratamento adequado a sua sintomatologia; discutir as repercussões das LER/DORT no seu cotidiano familiar e social; possibilitar a ressignificação da doença, seus determinantes e suas conseqüências, diminuindo a ansiedade, angústia e depressão do cotidiano; aumentar gradativamente a capacidade laboral e possibilitar o seu retorno ao trabalho (Ribeiro, 1997a, 1997b, 1997c). As atividades a serem desenvolvidas e que englobariam esses objetivos, incluem a terapia corporal, fisioterapia, acupuntura, grupos de informação e aconselhamento, grupos terapêuticos, tratamento medicamentoso etc. (Brasil, 2000; Merlo et al., 2001). A abrangência de todos esses aspectos no tratamento deve-se à pouca eficácia dos tratamentos isolados e à conduta dos portadores de LER/DORT, que freqüentemente, apresentam dependência, passividade, resignação. Com o surgimento das LER/DORT, há uma desestruturação da identidade, freqüentemente seguida de quadros graves de depressão. Neste caso, a possibilidade de uma reavaliação da vida afetiva e profissional pode ocorrer durante as atividades de reabilitação, ou ser incluída como parte de um programa interdisciplinar de recuperação (Dias, 1995; Lima & Oliveira, 1995; Duarte, 1998; Borges, 1999). Os programas de prevenção das LER/ DORT são considerados eficientes e consistentes se todos os aspectos,

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organizacionais, ergonômicos, psicossociais e biomecânicos, forem considerados simultaneamente, sendo esta a melhor forma de obter os resultados positivos esperados. Uma ação preventiva pode ser construída baseando-se numa abordagem de natureza ergonômica, organizacional ou psicossocial (Miranda & Dias, 1999). No caso do ambiente de trabalho, quando se fala em prevenção, as empresas, em sua maioria, preferem trabalhar apenas com aspectos biomecânicos, pelas mudanças nos equipamentos e no mobiliário e de uma orientação para a correção de posturas, ignorando os aspectos ligados à organização do trabalho. Esta postura pode contribuir para piorar ou não resolver o quadro clínico dos distúrbios, dependendo da configuração que se obtém dos outros fatores determinantes das LER/DORT no local de trabalho (Araújo et al., 1998). Da multidisciplinaridade à transdisciplinaridade As LER/DORT desafiam as condutas médicas tradicionais, pois são multideterminadas, exigindo investigações dos aspectos biomecânicos, cognitivos, afetivos, entre outros, da atividade desenvolvida pelos pacientes, dificultando a atuação dos profissionais da saúde, “preparados para trabalhar sob a égide do paradigma reducionista biológico da medicina” (Assunção & Almeida, 2003, s/p). Para constituição de uma agenda de pesquisas para o caso das LER/DORT, Sato (2001) sugere tratar-se de um problema de saúde pública que denuncia a insuficiência dos paradigmas e práticas dessa área, exigindo a criação de um campo multidisciplinar nos serviços públicos de saúde (Sato, 2001). As abordagens das LER/DORT que reduzem sua etiologia a um único tipo de fator causal não estão encontrando respostas satisfatórias em relação ao diagnóstico, tratamento e à cura. Pelo que foi apresentado, pode se constatar que as LER/DORT não se enquadram em um paradigma médico de interpretação do processo saúde-doença baseado na causalidade linear, em que seria possível encontrar uma causa única para cada tipo de doença. Daí surge a necessidade de conhecer e valorizar abordagens integradoras que considerem não só o caráter físico e biológico, mas, também, o contexto geral da doença, ou seja, as dimensões sócio-histórica e psicológica. Segundo Minayo (1994), o primeiro passo para a configuração de uma abordagem integradora é considerar o objeto de nossas pesquisas como sendo histórico, estabelecendo-se a partir de variáveis relativas a um momento específico, num determinado espaço e numa dada sociedade, ou seja, circunstancial e de acordo com o contexto. Isto proveria o objeto de investigação, no caso as LER/DORT, de valores ligados a uma dinâmica e a uma intencionalidade. Contudo, em uma equipe inter ou multidisciplinar cada especialidade tem sua prática discursiva definida, dificultando a integração de conhecimentos e práticas, o que torna necessário estabelecer parâmetros que possibilitem a comunicação, pois as fronteiras metodológicas não deveriam implicar domínios de investigação excludentes (Spink, 1992). Para que se possa compreender a saúde e a doença, é preciso reconhecer a multiplicidade de fatores desencadeadores das patologias nos seus aspectos biológicos, psicológicos, naturais e sociais. A superação da fragmentação

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começaria pela aceitação e incorporação das diferenças entre esses aspectos (Spink, 1992; Fontes, 1995). Algumas armadilhas devem ser evitadas, como agrupar disciplinas e elaborar conclusões superficiais sobre a comunicação e articulação entre elas, tratando-as como um avanço do paradigma e não como uma ruptura (Palma & Mattos, 2001). Desta forma, Spink (1992, p.22) reporta que mesmo a formação de equipes multiprofissionais nos serviços de saúde, apesar de conceitualmente importante, na prática não está obtendo sucesso, pois “acabam por perpetuar a fragmentação do atendimento prestado ao paciente adotando uma divisão tácita de competências e práticas”. Pesquisadores da área da saúde pública concordam que a superação do paradigma reducionista, bem como da submissão e dependência à clínica e ao modelo médico, representam o alvo de uma importante missão a ser cumprida (Paim & Almeida Filho, 2000; Palma & Mattos, 2001). Assim sendo, percebe-se a necessidade de uma nova abordagem que consiga reunir e articular as diversas dimensões do processo saúde-doença (Spink, 1992; Minayo, 1994). As equipes multidisciplinares de saúde são capazes de dar conta dos diversos aspectos das LER/DORT, mediante o esforço cooperativo entre os profissionais de diversas especialidades. Entretanto, para se avançar no entendimento teórico deste problema é preciso ainda formular novas hipóteses e realizar novos estudos empíricos, enfocando as formas dinâmicas de interação entre tais aspectos. Considerando que “um fenômeno permanece inexplicável enquanto o âmbito da observação não for suficientemente amplo para incluir o contexto em que o fenômeno ocorre” (Beavin, 1967, p.18), um avanço no entendimento das LER/DORT implicaria a consideração de uma noção de sistema: “um todo organizado produz qualidades e propriedades que não existem nas partes tomadas isoladamente” (Morin, 2000, p.17). Nesse caso, a auto-organização de um sistema também é fundamental, pois “sugere uma causalidade circular onde o próprio efeito volta à causa” (Morin, 2000, p.18). Para compreender o portador das LER/DORT e seu contexto como um sistema que se autoorganiza, é preciso transitar para uma abordagem transdisciplinar, na qual os pesquisadores efetivamente integrem os conteúdos temáticos envolvidos na etiologia e terapêutica das LER/DORT, não se restringindo a uma justaposição de conhecimentos e habilidades profissionais. Segundo a teoria dos sistemas auto-organizados, o nosso organismo está, continuamente, interagindo, numa via de mão dupla, com seu ambiente físico e natural, que o influencia ininterruptamente, obrigando-o a responder criativamente aos desafios ambientais surgidos. As respostas, entretanto, não são determinadas pelo ambiente, mas pela interação dos sub-sistemas componentes do organismo. Como seria esta interação no caso das LER/DORT? Segundo Berlinguer (1988), a doença é um sinal de rompimento de um equilíbrio, individual e coletivo, levando a uma necessidade, por parte do paciente, de rever e reestruturar toda sua identidade social, moral, ética, cultural, familiar etc. Isto é corroborado por resultados de pesquisas sobre a trajetória do portador desses distúrbios, desde a desestruturação psicossocial até a configuração de um novo padrão de vida (Sato et al., 1993; Lima & Oliveira, 1995; Araújo et al., 1998;

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Duarte, 1998; Borges, 1999; Magalhães, 1999). A doença pode ser considerada como uma ‘perturbação’ que impõe, na história de vida das pessoas, uma reconstrução dos fatores determinantes de si mesmo e que, por isso, requer a verificação de conteúdos e de relações que contêm a identidade até então gestada no decorrer da história de vida de cada um. Dessa maneira, admite-se que, na história de vida de uma pessoa, as LER/ DORT, mesmo que sejam, inicialmente, deflagradas por um único fator (biológico, social ou psicológico), ao longo do tempo este evento inicial irá afetar as demais dimensões em que se desenrola a história individual. Portanto, qualquer que seja a causa inicial das LER/DORT, no atendimento aos portadores dessa afecção, o profissional da saúde pode observar que essas dimensões se articulam de modo inextrincável no processo de adoecer. Assim sendo, uma abordagem terapêutica que leve em conta a dinâmica temporal das interações entre os fatores poderia ter maiores chances de ser bem sucedida. Tal abordagem pode ser exemplificada por relato feito por Rosemberg & Minayo (2001) de atendimento em saúde, em que, diante da insuficiência do atendimento tradicional oferecido à paciente, adotaram abordagem transdisciplinar. Baseando-se no relato de história de vida da paciente, construíram novo diagnóstico e estabeleceram novo tratamento, conseguindo encontrar soluções mais eficazes. Desse modo, de acordo com Fontes (1995, p.71), a saúde pode ser definida como um estado de equilíbrio dinâmico que envolve as realidades físicas e psíquico-mentais dos indivíduos em suas interações com o meio ambiente natural e social. Portanto, a saúde e a doença são ambas partes integrantes da auto-organização de um sistema vivo.

A construção de uma abordagem transdisciplinar depende diretamente da habilidade e invenção criativa de cada pesquisador; da capacidade de reunir, organizar e articular os fatores que dão ao objeto seu caráter provisório e singular (Morin, 1998). São qualidades que requerem do pesquisador autonomia e independência para tomar decisões e responsabilidade dos seus pares para avaliar e controlar todo o processo de construção desta abordagem. Assim, sugerimos que, em futuras investigações, a concepção de uma abordagem transdisciplinar da dinâmica do processo saúde/doença deva ser considerada como fundamental na construção de seus objetivos, hipóteses e metodologias. Referências ALMEIDA, M.C. Características emocionais determinantes das LER. In: CODO, W.; ALMEIDA, M.C. (Orgs.) LER: diagnóstico, prevenção e tratamento: uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1995. p.2456. ALVES, S.; LUCHESI, G. Acidentes de trabalho e doenças profissionais no Brasil: a precariedade de informações. Inf. Epidemiol. SUS, v.1, n.3, p.5-19, 1992. ARAÚJO, J.N.G.; LIMA, M.E.A., LIMA, F.P.A. (Orgs.) LER: dimensões ergonômicas, psicológicas e sociais. Belo Horizonte: Health, 1998. ARMSTRONG, T. J.; CASTELLI, W. A.; EVANS, F. G.; DIAZ-PEREZ, R. Some histological changer in Carpa

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LER/DORT: MULTIFATORIALIDADE ETIOLÓGICA E ...

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COOK, Estados Unidos. Arte Postal, XVI Bienal de São Paulo, 1981

CHIAVEGATO FILHO, L. G.; PEREIRA JR., A.

CHIAVEGATO FILHO, L. G.; PEREIRA JR., A. LER/DORT: multifactorialidad etiológica y modelos explicativos, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.149-62, set.2003-fev.2004. Fue realizada una breve revisión bibliográfica al respecto de las LER/DORT (lesiones por esfuerzos repetitivos/disfunciones osteomusculares relacionadas al trabajo) discutiendo los factores etiológicos involucrados, y analizando los modelos explicativos vigentes. A partir de este trabajo, se propone una nueva aproximación integrada de los factores biopsicosociales, los cuales están involucrados en la génesis y la evolución de las LER/ DORT. Los factores aislados serán considerados como formas dinámicas de interacción mutua, lo cual posibilitará la evolución de la actual aproximación multidisciplinar hacia un modelo transdisciplinar. PALABRAS CLAVE: Trastornos traumáticos cumulativos; modelos; multidisciplinariedad; transdisciplinariedad; salud ocupacional. Recebido para publicação em 08/05/03. Aprovado para publicação em 04/09/03.

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Mercado Simbólico: um modelo de comunicação para políticas públicas

Inesita Soares de Araújo 1

ARAÚJO, I. S. The symbolic market: a communication model for public policies, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.165-77, set.2003-fev.2004.

The purpose of this paper is to put forth a model for the analysis and strategic planning of the communication of public policies, given that the current models fail to adequately fulfill communication requirements in the processes of social intervention, frustrating the high investments and expectations that they give rise to. The “Symbolic Market Model”, in network form, both decentralized and multipolar, is comprised of (i) a theoretical formulation, (ii) a graphical representation of the main components and the relations between them and (iii) an analysis and strategic planning matrix of communicative relations. The graphic representation takes into account: the network of social senses, the interlocutors and their contexts, and the “place of dialogue”. The matrix includes sources, fields, instances, discursive communities and a typology of mediation factors. KEY WORDS: Communication and public policies; communication models; strategic planning. O trabalho tem como objetivo propor um modelo para análise e planejamento estratégico da comunicação nas políticas públicas, considerando que os modelos correntes não dão conta adequadamente da prática comunicativa nos processos de intervenção social, frustrando os altos investimentos e expectativas que despertam. O “Modelo do Mercado Simbólico”, em rede, descentrado e multipolar, é composto por uma formulação teórica, uma representação gráfica dos principais componentes e suas relações e de uma matriz de análise e planejamento estratégico das relações comunicativas. A representação gráfica contempla: a rede de sentidos sociais, os interlocutores e seus contextos e “lugar de interlocução”. A matriz inclui fontes, campos, instâncias, comunidades discursivas e uma tipologia de fatores de mediação. PALAVRAS-CHAVES: Comunicação e políticas públicas; modelos de comunicação; planejamento estratégico.

1 Pesquisadora do Centro de Informação Científica e Tecnológica e do Departamento de Comunicação e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (CICT/DCS/Fiocruz). <isoares@cict.fiocruz.br>

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ARAÚJO, I. S.

Por determinadas contingências históricas, o modelo de comunicação mais adotado no campo das políticas públicas, em geral e especificamente no da saúde coletiva é o da Comunicação & Desenvolvimento, introduzido no Brasil nos anos 1950, no contexto da luta contra o comunismo internacional. Subsidiário do modelo informacional de Shannon & Weaver, (apud Araújo, 2000), concebe a comunicação como moldagem de atitudes e comportamentos, que se efetivaria por meio de informação suficiente e adequada. É um modelo bipolar, linear, unidirecional e vertical, não dando conta da complexidade da prática comunicativa e social. Este trabalho objetiva apresentar um outro modelo que, sem abrir mão de conquistas dos anteriores, pretende representar mais adequadamente os processos sociais de formação dos sentidos e a prática comunicativa na intervenção social. Qualquer produto, uma vez pronto e em circulação, passa a ser visto de forma isolada das condições sociais que o formaram. Com modelos não é diferente e o modelo da Comunicação & Desenvolvimento oculta hoje suas condições de produção, fortalecendo sua presença. Oculta também o que está fora do modelo, impedindo uma compreensão mais abrangente da realidade. Ao longo da minha experiência de ensino para profissionais da agricultura, saúde e campos correlatos, pude sempre constatar tanto a presença hegemônica desse modelo nas práticas institucionais, como uma insatisfação com seus limites, ainda que disto não se tenha clareza, até mesmo porque estamos falando de uma hegemonia, no pleno sentido do conceito. Atualmente, em alguns espaços a noção de “comunicação” vem sendo substituída pela de “informação”, conceito que prejudica a compreensão dos processos sociais implícitos e implicados no conceito de comunicação, quando usado como equivalente deste. “Informação”, assim utilizado, é um conceito predador, que engole as dimensões histórica, política e econômica das relações sociais e oculta os interesses em luta. A substituição em nada modifica a natureza e as conseqüências do modelo desenvolvimentista. Uma dificuldade do modelo desenvolvimentista em dar conta da realidade comunicativa está na sua natureza linear e unidirecional. A comunicação é entendida como um processo de repasse de mensagens de um pólo a outro, cuja maior preocupação, além de utilizar códigos reconhecíveis, é eliminar os chamados ruídos, as interferências que possam prejudicar a decodificação dessas mensagens. Ou seja: eliminar a polifonia social e discursiva e garantir a linearidade do processo. Ao fazer isto, promove a dissolução tecnocrática do político, para usar uma expressão de Barbero (1993). De fato, ao eliminar a polifonia, o modelo não considera as divergências, eliminando aquilo que representa justamente o confronto de interesses. “A tendência é, então, deixar sem sentido as contradições, por considerá-las não como expressões de conflitos, mas como resíduos de ambigüidade” (Barbero, 1993, p.224). Um outro ponto de estrangulamento é a concepção de significado, entendido como algo imanente aos códigos lingüísticos, portanto algo transferível. O deslocamento ocorrido a partir dos anos 1980, em alguns espaços acadêmicos e institucionais, que inverteu o foco do processo comunicativo, atribuindo ao receptor a responsabilidade pela produção dos sentidos,

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MERCADO SIMBÓLICO: UM MODELO DE...

pouco mudou o caráter funcionalista da comunicação (Mattelart, 1999). Desde os anos 1950, a partir da teoria da Comunicação em Duas Etapas, depois com a corrente dos Usos e Gratificações, já havia o reconhecimento da importância do receptor, sem que isto modificasse traços essenciais desses modelos, a bipolaridade e a linearidade do processo comunicativo. Assim, tomam-se dois pólos e são estabelecidas suas relações, apenas invertendo-se o protagonismo da relação. O deslocamento para o receptor repete a limitação dos modelos dominantes: oculta as determinações estruturais, as relações de poder, as contradições. Se o estruturalismo levava a um emissor e um receptor abstrato, o empirismo dos estudos atuais de recepção produz um receptor tão concreto que oculta a sociedade em que vive. Não obstante, outras possibilidades vão se esboçando: são postas em cena as mediações e negociações, nos diversos âmbitos e entre os diversos atores e fatores que formam a prática comunicativa. Adquirem relevância as noções de consumo (Certeau, 1994; Canclini, 1995), mediações culturais (Barbero, 1993; Orozco, 1997), táticas e estratégias (Certeau, 1994), entre outras. É nesse contexto teórico que minha proposta se inscreve. Introdução ao modelo do mercado simbólico O modelo que proponho deseja representar a prática comunicativa nos processos de intervenção social que dão concretude às políticas públicas. Para tanto, articulei elementos conceituais já existentes em outros quadros teóricos, acrescentei o conceito de lugar de interlocução e propus uma formulação básica, com uma correspondente representação gráfica. Que formulação é esta? A comunicação opera ao modo de um mercado, onde os sentidos sociais – bens simbólicos – são produzidos, circulam e são consumidos. As pessoas e comunidades discursivas que participam desse mercado negociam sua mercadoria – seu próprio modo de perceber, classificar e intervir sobre o mundo e a sociedade – em busca de poder simbólico, o poder de constituir a realidade.

Detalhando os termos: 1. Comunicação é o processo de produzir, fazer circular e consumir os sentidos sociais, que se manifestam por meio de discursos. 2. Esse processo caracteriza um mercado simbólico, no qual o circuito produtivo é mediado por uma permanente negociação. 3. Esse mercado pode ser operado por indivíduos ou por comunidades discursivas, considerados no modelo como interlocutores. 4. Comunidades discursivas são grupos de pessoas, organizados ou não de forma institucional, que produzem e fazem circular discursos, que neles se reconhecem e são por eles reconhecidos. 5. Cada interlocutor ocupa nesse mercado uma posição, que se localiza entre o centro e a periferia discursivos, posição que corresponde ao seu lugar de interlocução e lhe confere poder de barganha no mercado simbólico. 6. Cada interlocutor desenvolve estratégias de trânsito entre as posições,

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visando sempre uma maior aproximação com o Centro. Essas estratégias se apóiam em fatores de mediação, que são os fatores que favorecem ou dificultam o fluxo entre as posições. 7. Os fatores de mediação são de ordem pessoal, grupal, coletiva ou organizacional, material ou simbólica e ocorrem em contextos, cuja articulação determina o lugar de interlocução. A construção social dos mercados Apesar do destaque adquirido na contemporaneidade, mercado é uma categoria de análise presente na teoria econômica desde o séc. XVIII e, na sua concepção capitalista, aparece na História desde a revolução industrial. São diferentes, porém, os modos de considerá-lo. Desejo destacar dois deles, o que fundamenta a idéia de “mercado livre” e o que mais se aproxima da concepção do mercado simbólico, que é o da “construção social dos mercados”. O primeiro configura a perspectiva neoclássica, que sustenta que os atores se encontram individualmente para transacionar, em busca do preço melhor e acredita no homem econômico, que independe do jogo social ou político. Acredita também que o único interesse seria a maximização do lucro e que, como qualquer fenômeno, o mercado possuiria leis próprias de funcionamento. Outra crença é que a informação está disponível de modo igual para todos. Em contraposição, temos a perspectiva institucionalista, que afirma que o mercado está social e culturalmente enraizado; que funciona segundo fatores como confiança, reciprocidade, costume etc.; que, além do preço, há outros elementos que definem as escolhas; que o acesso à informação é assimétrico. Sendo sustentado por um conjunto de instituições (jurídicas, sociais, políticas...), as relações nesse mercado são estruturadas pelos interesses em jogo. A noção de interesses remete para a de confronto e luta, pois os interesses não são harmônicos. Pelo contrário, vivemos numa sociedade desigual, com distribuição desigual dos recursos de toda ordem. Nesta perspectiva, devemos admitir que uma negociação de desiguais não pode prescindir do caráter de luta. É por isto que podemos operar ao mesmo tempo com uma perspectiva de luta simbólica e com um modelo que privilegia a noção de mercado: o mercado simbólico é um mercado de desiguais e a negociação que nele se processa tem o caráter de luta por posições de poder discursivo. Como toda luta, supõe confrontos e embates, mas também acordos, alianças, sinergias. Mas, quero ainda argumentar a favor da opção por um modelo de mercado, ao enfocar a prática comunicativa. Quando Bourdieu (1989) escreveu Ce que parler veut dire (“o valor exato do que é dito”, numa tradução livre desta expressão popular francesa), estava se contrapondo a uma teoria estruturalista, baseada fortemente na lingüística, que se coloca diante dos fenômenos simbólicos como se estivesse lidando com línguas mortas, estáticas, diante das quais se deve reconstituir o código. É como se o fenômeno social que o texto expressa tivesse sido produzido para ser decifrado pelo cientista. O modelo bourdineano diz

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respeito a uma teoria da ação, em particular ao ato de fala. A expressão francesa remete para a compreensão de que existe algo mais no ato de falar do que simplesmente a língua. Tal como Bakhtin (1988), Bourdieu (1993) substitui o ponto de vista da língua pelo ponto de vista da fala. E, além de trabalhar com a competência lingüística, comum a todos os lingüistas, ele enfoca a competência para usar corretamente a competência. A essa situação ele chamou de “mercado”. E, quem fala de mercado, fala de capital, no caso dele capital simbólico. Quando falamos, produzimos um produto que, sob certo aspecto, é um produto como outro qualquer, portanto, destinado a estar sujeito não só à interpretação, mas também à avaliação. (...) A antecipação do preço que o produto vai receber vai intervir no nível da produção. Concretamente, isso significa que, quando produzo um determinado discurso, preocupo-me mais ou menos com o efeito que ele vai produzir naquele a quem o dirijo. A antecipação do preço que meu discurso receberá ajuda a determinar a forma e o conteúdo dele, que será mais ou menos tenso, mais ou menos censurado, às vezes até o ponto de ser anulado – é o silêncio da intimidação. Se meu discurso pode receber um preço, isso ocorre porque quando falo, digo o que digo, mas também digo algo a mais na maneira de dizê-lo. (Araújo, 2000, p.53)

Ele fala então da aceitabilidade, um conceito que determina justamente o que pode ou não ser dito em tal ocasião ou tal lugar. Para ele, este senso de aceitabilidade, que temos em estado prático, exerce coerção sobre o discurso. É aí que entra a questão da “competência” para falar, ou seja, das distinções sociais que se exercem no domínio da fala. As competências concorrem entre si e definem o valor que será atribuído a cada fala. Voltamos então ao tema do mercado simbólico, espaço dessa concorrência, na qual intervêm inúmeros fatores. A competência lingüística se exerce desigualmente, ela é monopolizada por alguns, outros são despossuídos em graus variados. Essas desigualdades manifestam-se nas trocas cotidianas. A competência é, por outro lado, um diferencial social, não só acentua, mas produz as diferenças sociais. Então a língua, para Bourdieu, não é um tesouro comum, mas um artefato histórico, o produto de um trabalho social operado pelos agentes em situação de concorrência. Em outro lugar, Bourdieu (1989) fala mais deste tema, tratando o espaço comunicativo como um mercado lingüístico, do qual ele destaca algumas propriedades. Uma, a de ser um espaço pré-construído, ou seja, operado por um grupo social determinado, regido por regras determinadas, que estabelecem, entre outras coisas, quem pode falar e o que se pode falar. Outra, ser o lugar da atualização da interseção entre os diferentes campos. Em outras palavras, ele põe em cena as múltiplas negociações que se verificam no mercado simbólico, desde as textuais até as macrocontextuais. E realça a importância daquilo que eu chamo de contexto situacional, como a pertença a campos e o lugar que ali ocupam – o “lugar de interlocução”,

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nos termos deste trabalho. As estratégias discursivas dependem das relações de força entre os campos e os trunfos que a pertença a estes campos conferem ao interlocutor. A partir da noção de comunicação como um mercado simbólico, pode-se definir a prática comunicativa como o ato de ativar o circuito produtivo dos sentidos sociais. Produção e circulação são seu espaço mais evidente. Mas, se considerarmos o processo de semiose infinita, que estabelece que cada receptor/consumidor é também um produtor de novos sentidos, a partir mesmo do ato e dos modos de consumir, então o consumo é espaço essencial da comunicação. Uma estratégia de comunicação é, então, o modo como se ativa algum fragmento desse circuito e como se participa do mercado simbólico, lugar onde os sentidos sociais são produzidos. Se pensarmos que a prática discursiva está submetida a condições de desigualdade do poder simbólico – poder de constituir a realidade – e se pensarmos na noção de intertexto e interdiscursividade presentes na formação dos sentidos sociais, teremos que pensar que é imprescindível perceber como relevante o processo de formação dos sentidos sociais. No fim da linha, estão conceitos como liberdade, democracia, cidadania, política. A perspectiva do mercado simbólico é um modo de compreender como se formam os sentidos sociais, portanto, como se formam as condições de percepção e ação das pessoas sobre o mundo. Passemos, porém, à visualização dos componentes do modelo. Representação gráfica do modelo 1. Sentidos sociais Os sentidos sociais formam uma rede semiótica, dinamizada pela interdiscursividade. O processo de produção – circulação – consumo, que caracteriza o mercado simbólico, é representado no modelo por uma malha de fios, cujo traçado ondulante busca caracterizar a contínua transformação dos sentidos, em seu processo de circulação.

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2. Os interlocutores A produção, circulação e consumo dos sentidos sociais é mediada por um processo de negociação, que é operada por pessoas e comunidades discursivas, os “interlocutores”. O modo de cada interlocutor participar do mercado simbólico é produto da articulação de vários contextos, sendo que os mais relevantes para um modelo comunicativo são: contextos existencial, situacional, textual e intertextual, que podem ser assim representados:

A noção de interlocutor se opõe às de “emissor e receptor”, dissolvendo a estrutura linear e instaurando a idéia de que cada pessoa participa por inteiro do circuito produtivo que caracteriza a prática comunicativa. No modelo, os interlocutores são localizados nos nós da rede, significando que cada interlocutor é, simultaneamente, agente e espaço de negociação dos sentidos.

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3. Posições discursivas Neste modelo, Centro e Periferia são posições móveis e negociáveis. Optei por representá-las por uma espiral, que traz a idéia de movimento, fundamental para compreender a proposta. A espiral concilia a idéia de rede e o descentramento e multilinearidade que lhe são inerentes, com a bipolaridade e linearidade da idéia de Centro e Periferia. O conceito chave é “negociação”: num modelo que representa o circuito produtivo da comunicação, “negociação” é um conceito estratégico. Toda enunciação é um produto negociado e esta concepção permite evitar oposições simplistas e bipolares entre posições de poder discursivo. A espiral também tenta solucionar a questão de como representar a desigualdade dos interlocutores quanto às condições de produção, circulação e consumo: justamente por meio da posição discursiva, mais ou menos distante do Centro ou da Periferia. O tema da desigualdade está presente em todo o modelo, que pode ser entendido como uma proposta de seu enfrentamento e superação. Ela está diretamente relacionada com cada etapa do circuito produtivo. Nas condições de produção, aparece de forma mais evidente, implicada na propriedade dos meios, no lugar de interlocução, na condição econômica (contexto existencial), no lugar que o interlocutor ocupa na topografia social e institucional (contexto situacional) etc. Mas, é na circulação, esquecida pelos demais modelos e tão desprezada pelo planejamento da comunicação nas políticas públicas, que se produz mais fortemente a exclusão social. Ou seja, na desigualdade das condições de se fazer circular os sentidos sociais. Quem consegue fazer circular os seus sentidos? Quem consegue ser ouvido? É ali que os sentidos dominantes ampliam sua hegemonia, ao silenciar os demais. O fenômeno da comunicação em rede (basicamente fluxos, circulação) acentuou a diferenciação, manifesta tanto na possibilidade de acesso, como no lugar que se ocupa nas redes. No mundo simbólico, nada assume existência antes de ser posto em circulação. É a circulação que confere existência aos produtos simbólicos, ao mesmo tempo em que a lança no espaço público. E é justamente aí, na capacidade de fazer circular mensagens e sentidos privados, tornando-os públicos, que se localiza grande parte da assimetria no poder discursivo. Não é por acaso que as redes de comunicação são um dos principais alvos de quem procura acumular poder. Há desigualdade de condições também no consumo, território onde finalmente se concretiza a hegemonia. O que se consome, de que forma, o uso possível das informações e do conhecimento, tudo isto é diferenciado de acordo com os contextos e lugares de interlocução. Localiza-se aí a questão do acesso a outras fontes de informação, tão cara ao movimento da democratização da comunicação e de setores específicos, como o da saúde coletiva.

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Quando a espiral é superposta à rede dos sentidos, espaço ocupado e operado pelos interlocutores, temos caracterizado o lugar de interlocução, posição que cada indivíduo ou comunidade discursiva ocupa no mercado simbólico. A representação corresponde, então, ao modelo completo.

Este é um modelo reticular, multipolar, multidirecional, desenvolvido para compreensão da prática comunicativa no campo das políticas públicas. Ele faz sentido numa perspectiva analítica que considere as políticas públicas como espaço de confrontos sociais, que se dão pela via discursiva. Também requer que se considere, ao modo de Fairclough (2001), que os discursos trazem inerentes uma dimensão e a possibilidade de transformação social. Neste sentido, o modelo, como instrumento de planejamento da comunicação, pretende também se opor às forças centrípetas de concentração de poder, na medida em que percebe os lugares de interlocução móveis e negociáveis. A compreensão dos fatores que permitem a mobilidade desses lugares pode ser propiciada por uma matriz de análise, cujo resumo exponho a seguir. Matriz de análise dos fatores de mediação Esta matriz tem como objetivo oferecer uma estrutura de análise das relações de poder na sociedade, no contexto das políticas públicas e na perspectiva discursiva, que remete para a negociação de lugares de interlocução mais favoráveis ao exercício do poder simbólico. Requer uma percepção do poder que considere a existência de posições discursivas matriciais, Centro e Periferia, que são móveis, relacionais, negociadas e por fatores de mediação, que são elementos simbólicos e materiais que promovem o fluxo dos interlocutores entre essas posições. É este espaço, onde se defrontam e se articulam as forças sociais, em busca do poder simbólico, que a Matriz busca sistematizar.

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Para compreendê-la, é necessário ter em vista que o estatuto do sujeito central ou periférico não é fixo: mesmo que se possa ser centro ou periferia, institucionalmente falando, discursivamente não se ocupa sempre a mesma posição. Pode-se afirmar que, de um modo geral: as estratégias desenvolvidas pelo centro tendem a ser no sentido de manutenção da ordem discursiva que lhes permita continuar ocupando essa posição de poder; e as estratégias da periferia tendem a ser no sentido de permitir uma melhor posição na escala de poder discursivo, ou seja, um melhor lugar de interlocução. Neste trabalho, entendo que mediação é a propriedade exercida pelo elemento que possibilita a conversão de uma realidade em outra. Os fatores de mediação, ao promoverem o fluxo dos interlocutores entre os diversos lugares de interlocução, favorecem e mesmo determinam o equilíbrio de forças. É, então, um conceito que encerra a idéia de movimento, mas também as de condições de produção, o que permite perceber que as mediações constróem os pólos da relação, não sendo destacáveis delas. É impossível mapear todas as possibilidades mediadoras de uma prática discursiva. Elas compõem uma rede de sentidos, não apenas contextuais, mas também intertextuais, que mobilizam uma enorme diversidade de campos, instâncias e fatores. Como se sabe, o processo de semiose social é produto da articulação desses muitos âmbitos, cuja combinação em cada situação discursiva é particular e única. A paradoxal natureza desse processo, ao mesmo tempo ampla e restrita, aponta para a necessidade de uma matriz de análise que permita ao pesquisador ou ao planejador acercar-se de seu objeto de um modo mais preciso e delimitar um âmbito mais circunscrito de análise, sem perder de vista a interdiscursividade. Foi este meu empreendimento: procurei estruturar uma matriz composta de níveis progressivamente mais restritos de mediações, assim classificados menos por sua importância na composição dos sentidos (a importância é definida pelos contextos) ou por seu grau de inerência aos sentidos (todos os níveis são constitutivos dos sentidos) e mais pela sua natureza e grau de especificação. Assim, fui do mais amplo – as fontes – ao mais restrito – os fatores de mediação entre as posições discursivas de poder, Centro e Periferia. A realidade empírica que se apresenta à utilização da matriz permite identificar um elenco de fatores, percebê-los como estratégias de produção de lugares de interlocução, relacioná-los e por fim classificá-los, de modo a facilitar seu uso como instrumento analítico e de planejamento. Componentes da Matriz Fontes – designa espaços simbólicos que organizam e produzem mediações a partir do acervo individual, social e cultural dos indivíduos e grupos sociais, os quais se apresentam como pré-construídos. Embora estejam sempre sendo atualizadas, em contextos específicos, pelas articulações com outros níveis, tendem a se apresentar como “cicatrizes dos sentidos”, produzidas no campo da memória e do imaginário (discursos fundadores, sobretudo), que são acionadas em cada situação comunicativa e em contextos específicos. Ex.: História, Cultura, Religião.

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Campos – espaços sociodiscursivos de natureza abstrata, que podem ser mais ou menos estruturados. Ao primeiro tipo correspondem as instituições, como Estado, a Igreja, a Escola, o Mercado, as Forças Armadas, a Sociedade Civil etc. Ao segundo, as temáticas e práticas sociopolíticas, como a Saúde Coletiva, a Comunicação, o Ambientalismo (temáticas); o movimento da saúde indígena, o movimento da reforma sanitária, rituais mágico-religiosos (práticas sociopolíticas), entre outros. Instâncias – espaços sociodiscursivos concretos, estruturados formalmente, como as organizações, mas também por princípios não formais de organização, como as famílias, por exemplo. As instâncias especificam os campos, mas não guardam uma relação de equivalência. Um campo pode compreender diversas instâncias e uma instância pode conferir materialidade a mais de um campo. Instâncias têm uma dimensão simbólica – território de articulação com outras instâncias e campos – que permeia uma outra dimensão, a material, representada por pessoas específicas, equipamentos, recursos, rotinas, tecnologia. Comunidades discursivas – como antecipado, designa grupos de pessoas que produzem, fazem circular discursos, que neles se reconhecem e são por eles reconhecidos. Estes grupos encarregados da produção e gestão textual possuem uma hierarquia interna (instâncias de decisão e poder, um centro e uma periferia) e uma organização de trabalho; desenvolvem relações com outros que dividem o mesmo espaço discursivo, de antagonismo ou cooperação; dispõem de mais ou menos recursos financeiros e dependem de modo diferenciado das fontes geradoras desses recursos; seus membros possuem uma história e uma motivação para estar ali e desenvolver aquele trabalho. Estes fatores afetam os discursos produzidos e as estratégias de circulação. Não são, pois, meros porta-vozes de um discurso que lhes transcende, mesmo que assim se julguem, sejam técnicos, religiosos, ou militantes. (Araújo, 2000, p.161)

Na Matriz, as comunidades discursivas ocupam uma posição especificadora das instâncias. São o espaço onde se manifestam e podem ser observados os fatores de mediação. Fatores – de natureza e amplitude diversas, os fatores emanam dos vários contextos analisados. Por outro lado, não possuem uma valoração em si mesmos, nem são em si mesmos estratégias de manutenção ou transformação da ordem dominante. Sua valoração está vinculada à noção de capital simbólico (Bourdieu, 1989). Ou seja, a posse em maior ou menor grau daquela propriedade confere capital simbólico ao interlocutor, modificando sua posição na escala de poder entre Centro e Periferia. É esse mecanismo que confere aos fatores de mediação valor como instrumento estratégico. A partir de um elenco de fatores identificados num universo empírico estudado, emergiu uma tipologia de fatores. Em princípio, estes tipos têm relevância em situações de intervenção social e fazem sentido numa análise

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que se inscreva numa concepção de comunicação como um processo de produção, circulação e consumo dos sentidos sociais. Eis a matriz sistematizada: Fontes Campos Instâncias Comunidades discursivas Fatores 1. Motivações e interesses 2. Relações a. Relações pessoais, grupais e comunitárias b. Relações institucionais e organizacionais 3. Competências 4. Discursividades a. Discursos b. Sistemas de nomeações c. Paradigmas, teorias, modelos 5. Dispositivos de comunicação a. Dispositivos de enunciação b. Dispositivos de produção e circulação discursiva c. Mediações tecnológicas 6. Leis, normas e práticas convencionadas

O princípio da interdiscursividade faz com que os fatores sejam mutuamente constitutivos. Por exemplo, os dispositivos de enunciação formam os discursos e são por eles formados; também incluem fatores de competência cultural e de relações de interlocução, que por sua vez são afetados pelos dispositivos; os dispositivos de produção e circulação discursiva são fortemente permeados pelas relações tecnológicas e pelas rotinas, cujo âmbito de significação é em parte estabelecido pelos dispositivos. Por outro lado, os espaços de organização coletiva, como fóruns e redes, tanto são fatores do tipo “relações institucionais”, como podem ser incluídos nos dispositivos de produção e circulação discursiva, sejam como aparato de produção ou circulação ou mediação tecnológica. Últimas palavras A noção de mercado simbólico se opõe à de “pensamento único” e assim como existe uma luta política para se contrapor ao pensamento único sobre a globalização, há a possibilidade de uma luta por um funcionamento do mercado simbólico mais eqüitativo. O modelo foi proposto no escopo de uma tese de doutorado, denominada “Mercado Simbólico: interlocução, luta, poder – Um modelo de comunicação para políticas públicas”, defendida na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/ UFRJ), em novembro de 2002 (Araújo, 2002). As dimensões exigidas para este artigo permitiram apenas uma aproximação ao tema, que supõe maiores discussões quanto ao seu contexto teórico, metodológico e empírico. Quanto ao modelo, antes que possa assim ser intitulado

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legitimamente, requer que não só seja submetido ao crivo teórico e metodológico dos especialistas do campo da comunicação e da intervenção social, mas também seja exposto à experimentação como modelo organizador do planejamento estratégico da comunicação aplicada às políticas públicas. Referências ARAÚJO, I. A reconversão do olhar: prática discursiva e produção do sentido na intervenção social. São Leopoldo: Unisinos, 2000. ARAÚJO, I. Mercado Simbólico: interlocução, luta, poder – Um modelo de comunicação para políticas públicas. 2002. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988. BARBERO, J. M. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonia. Barcelona: Gustavo Gilli, 1993. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001. MATTELART, A. Comunicação-Mundo: história das idéias e das estratégias. Petrópolis: Vozes, 1999.

ARAÚJO, I. S. Mercado Simbólico: un modelo de comunicación para políticas públicas, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.165-77, set.2003-fev.2004. El trabajo tiene como objetivo proponer un modelo para análisis y planificación estratégica de la comunicación en las políticas públicas, considerando que los modelos corrientes no sustentan adecuadamente la práctica comunicativa en los procesos de intervención social, frustrando las altas inversiones y expectativas que despiertan. El “Modelo del Mercado Simbólico”, en red, descentrado y multipolar, es compuesto por una formulación teórica, una representación gráfica de los principales componentes y sus relaciones y de una matriz de análisis y planificación estratégica de las relaciones comunicativas. La representación gráfica contempla: la red de sentidos sociales, los interlocutores y sus contextos y “lugar de interlocución”. La matriz incluye fuentes, campos, instancias, comunidades discursivas y una tipología de factores de mediación. PALABRAS CLAVE: Comunicación y política publica; modelos de comunicación; planificación estratégica.

Recebido para publicação em 10/12/2003. Aprovado para publicação em 12/01/2004.

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notas breves

Encontro de movimentos e práticas de Educação Popular e Saúde The meeting of Popular Education and Healthcare movements and practices Realizou-se em Brasília, nos dias 5 e 6 de dezembro de 2003, o I Encontro Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, uma iniciativa da Articulação de mesmo nome, com a participação e o apoio do Ministério da Saúde, por meio de seu Departamento de Gestão no Trabalho e Educação na Saúde. Este encontro culminou um processo iniciado em 2 de agosto de 2003 no VII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, com a participação de mais de 1.500 pessoas em encontros ocorridos em 21 Estados da federação brasileira. A ANEPS (Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde) nasceu na manhã do dia 5 de dezembro com a mística organizada pelo pessoal do Maranhão e, no encantamento da apresentação da criança de cada um dos participantes (perto de duzentas pessoas), transformou-se da gota na água dos rios, destes na bacia que finalmente desaguou no grande mar, no dia 6 de dezembro. Adotamos a metáfora das águas porque nos constituímos assim, da água que nasce na fonte serena do mundo (Guilherme Arantes) constituído por pessoas e coletividade, brasileiros que somos no caminho das águas. Foram dois dias de intensa participação, com debates em torno do roteiro proposto, trocas de experiências e vivências comuns. Nos rios, nas bacias e no mar foram sistematizadas respostas às seguintes perguntas: por que nossas práticas são educativas? Como nossas práticas transformam/interferem em nossa realidade? De que modo se manifesta a educação

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popular e saúde nas nossas práticas? Como estas práticas podem contribuir para a construção das políticas de saúde? Que estratégias são necessárias para a consolidação da ANEPS? A alegria de reconhecer-se no outro, de descobrir como se pode atingir um objetivo de maneira diferente e de interrogar-se sobre a possível unidade de pessoas vinculadas a instituições (movimentos e organizações populares, universidades, serviços) tão diferentes, todas essas emoções e inquietações perpassaram os participantes do encontro. Se o adjetivo popular qualifica uma educação que se pretende assim porque procura partir do saber das pessoas comuns, principalmente aquelas que vivem de seu próprio trabalho e das que são oprimidas, mas não se dirige apenas para elas e, sim, também para os profissionais e técnicos dos serviços públicos, para ressaltar a importância do reconhecimento deste saber, por outro lado, nos debates ocorridos no encontro ficou também claro que não se trata de venerar a cultura popular. Falou-se em “resgate da cultura popular”, mas argumentou-se que seria necessário falar também em mudança cultural, ou de mudança de crenças e valores a respeito de certos problemas. Debateu-se bastante a respeito da conscientização, um processo envolvendo sujeitos diferentes numa relação de trabalho ou de disputa política. Afirmou-se que os educadores populares são mediadores deste processo. Por vivermos numa sociedade de classes que é histórica, na qual as posições dos diferentes grupos sociais estão sempre se modificando umas relativamente às outras, é importante reconhecer que os saberes alteram as práticas

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e o fundamental, do ponto de vista da educação popular, é lutar pela afirmação dos sujeitos e, portanto, respeitar as diferenças, saber escutar e reconhecer. E isto passa também pelas próprias pessoas poderem (disporem de condições objetivas e subjetivas) optar por um outro jeito de viver, de ser, de pensar e sentir. Uma liderança de uma comunidade indígena amazonense mostrou que, a respeito da cultura, há fortes diferenças entre brancos e índios. Afirmou que nas águas do grupo em que estava participando, havia peixes diferentes, de água doce e salgada e que não dava para misturar tudo, tinha de saber preparar cada tipo. Entre as diferenças, apontou para a questão da cultura que, para os indígenas era religião, para nós, brancos, folclore. Dentre outros aspectos, vale destacar a dificuldade em desenvolver práticas educativas nas quais se realize de fato a construção coletiva do conhecimento, ainda que com perspectivas diferentes. Isso fica mais claro quando se trata de pensar a mobilização social. Os agentes sociais reclamam da falta da participação da população, principalmente de grupos sociais excluídos. Exemplo interessante é o da população de rua. Aparentemente carente da autoconfiança em si mesma e descrente da possibilidade de mudar seu próprio destino, isto não significa que não tenha potencial e nem disponha de um saber feito de experiência. Acontece é que tem uma perspectiva própria, singular. Aliás, o que acontece nas intervenções sociais é um estranhamento, pois os agentes ou técnicos são pessoas com uma vida organizada, recebendo alguma remuneração mensal e podendo pensar em termos de futuro, de planejamento, enquanto a chamada população-alvo ou clientela tem de ganhar a vida a cada dia, na incerteza do amanhã. O que se precisa é encontrar metodologias apropriadas e dar-lhes a forma pública. Então, ao se falar da construção de uma política pública, a palavra certa é formulá-la “com” a

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população, considerando situação, modo de vida, conhecimento, crenças e expectativas como ponto de partida. Falar em construção de política pública é falar na institucionalização da Educação Popular. Não seria um risco a se evitar? Este tema também surgiu nos debates na pergunta “será que o Estado não quer botar a gente no bolso?” A dúvida é legítima, mas as organizações populares devem estar organizadas de modo a garantir sua autonomia e, por outro lado, estas mesmas organizações, juntamente com profissionais dos serviços de saúde e pesquisadores de universidades públicas, estabelecerem uma relação de interdependência com o governo de Lula, na medida em que participam da formulação da política de educação popular e saúde do Ministério da Saúde capaz de incidir nas transformações do sistema e da política de saúde no Brasil. É preciso pensar em referências para uma política de educação popular em saúde para os serviços de saúde, as escolas e universidades e os órgãos de controle social. Assim, o que está nascendo com a ANEPS? A Articulação é uma instância de interlocução entre movimentos e práticas populares, profissionais de saúde, pesquisadores e técnicos do governo, representados, na base, por centenas de entidades espalhadas pelo país afora cujo perfil será de conhecimento público com a edição de um Catálogo de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde. No nível nacional, a ANEPS é atualmente integrada pelas seguintes entidades: Rede de Educação Popular e Saúde, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, Movimento Popular de Saúde, Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, Movimento das Mulheres Camponesas, Projeto Saúde e Alegria, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, Movimento de Reintegração dos Atingidos pela Hanseníase e Ministério da Saúde. Trata-se de uma experiência nova que almeja construir uma relação com o Estado capaz de fortalecer a sociedade civil do ponto

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NOTAS BREVES

de vista popular e, ao longo de um processo histórico e social mais amplo, subordinar o Estado à sociedade. O papel a que a ANEPS se propôs, no I Encontro, é fundamentalmente o de articular e apoiar os movimentos e práticas de educação popular e saúde a fim de qualificar suas práticas, desenvolver processos formativos e reflexivos a partir da práxis e construir referências para a formulação de políticas públicas. Sua forma específica de ação é o encontro no qual se constituem as “rodas de conversa”, procura-se sistematizar as questões aí formuladas e decidir os rumos a tomar. A criação de fóruns permanentes estaduais será uma forma de assegurar a continuidade deste processo que, além de desenvolver ações de saúde e de luta social, vai procurar: interagir com os pólos de educação permanente em saúde; participar nos conselhos gestores, conselhos de saúde, plenárias de conselheiros e conferências de saúde; participar em audiências e consultas públicas; propor consultas populares. Na formulação das políticas públicas, a ANEPS se propõe a: 1 Reafirmar os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, SUS, especialmente da integralidade na atenção à saúde; luta pela garantia de acesso e a qualidade dos serviços, orientada pelas necessidades da população e não pelos interesses do lucro. 2 Fortalecer o controle social e da participação popular: fortalecer e dinamizar os espaços de participação popular, da base às conferências, conselhos, audiências públicas; expandir e ampliar o controle social; qualificar a representação; investir na capacitação permanente de conselheiros de saúde e agentes sociais. 3 Considerar as práticas de atenção à saúde na perspectiva da educação popular, com destaque para a integralidade das ações e particularidades dos contextos de seu desenvolvimento. 4 Considerar a educação popular como instrumento de gestão dos

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serviços de saúde, privilegiando a escuta da população e o reconhecimento de suas experiências. 5 Apoiar redes de entidades, escolas de formação dos movimentos sociais populares, centros e núcleos de educação popular para a realização de processos de formação na área de Educação Popular e Saúde. 6 Apoiar ações coletivas capazes de incidir nos determinantes dos processos saúde/ doença, vinculados a questões como as da dívida externa, da Associação para o Livre Comércio das Américas (Alca), do uso indiscriminado de agrotóxicos e transgênicos, do patenteamento das plantas medicinais, dos problemas da água e do saneamento básico, entre outras. 7 Apoiar os movimentos de inclusão dos segmentos sociais tradicionalmente excluídos. 8 Apoiar e fortalecer as práticas populares de saúde, com a valorização e apoio pedagógico, político e financeiro às práticas populares de saúde (de atenção integral à saúde, de participação popular no controle social, de formação, de pesquisa, de organização, de comunicação em saúde, de luta pelo acesso aos direitos) e à construção de redes sociais de saúde popular. 9 Fortalecer estratégias e ações que garantam a intersetorialidade das políticas públicas. O processo de organização da ANEPS nos Estados iniciou-se em janeiro de 2004. Há uma expectativa grande quanto a este processo. As proposições acima foram definidas e devem ser encaminhadas. Mas o processo vai guardar os ritmos próprios de cada local, como a imagem da água dos rios, no percurso da nascente à foz, entre montanhas, vales e planícies, entrelaçando-se nas bacias, permite supor. Porque se é possível propor, não se pode prever algo que acabou de nascer. Todo começo é imprevisível, disse o poeta. Eduardo Navarro Stotz, Coordenador da ANEPS (Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde). < stotz@alternex.com.br>

- Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.179-82, set.2003-fev.2004

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NOTAS BREVES

PALAVRAS-CHAVE: Educação; saúde; prática de saúde pública. KEY WORDS: Education; salud; public health practice. PALABRAS-CLAVE: Educación; salud; pratica de salud publica.

Recebido para publicação em 05/01/2004. Aprovado para publicação em 30/01/2004.

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- Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.179-82, set.2003-fev.2004


livros

A África ensinando a gente/Africa

teaching people

FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. São Paulo: Paz e Terra, 2003. 228 páginas

Trata-se do último livro escrito por Guimarães com Paulo Freire e, só por isso, valeria a pena lê-lo. Mas os trabalhos aqui reunidos têm qualidade e inquietantes questionamentos (que mesmo quase trinta anos depois ainda são atuais e muito pertinentes). As análises dialogadas de Freire e Guimarães ainda mantêm o vigor e a indignação militante que permitem ao leitor mais implicado perceber a origem de alguns problemas e a repetição de outros. Nessas páginas apaixonadamente escritas, os autores nos conduzem em diferentes tempos a alguns países de língua portuguesa. Além das experiências que tiveram juntos na África, o livro apresenta as reflexões e análises de Guimarães construídas em suas idas e vindas ao continente africano. Parte desta obra foi construída após o falecimento de Paulo Freire. “A África ensinando a gente” é uma obra que está na seqüência de outras parcerias entre os autores: Sobre Educação, volumes I (1982) e II (1984), Pedagogia, diálogo e conflito (com Moacir Gadotti) e Aprendendo com a própria história, volumes I (1987) e II (2000). A África, afirmava Freire, “vai ensinando a gente” e, nesta obra, percebe-se que continua a ensinar. Na era da globalização e do neoliberalismo o aumento da miséria e da violência tem assolado diversos países e os africanos estão na lista dos mais afetados. As feridas da África já haviam sido percebidas por Paulo Freire há trinta anos e neste livro Guimarães mostra que se acentuaram e se difundiram cada vez mais. As contradições e a riqueza continental da África e as particularidades de cada um dos países e

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pessoas visitados transporta o leitor pelo tempo e pelo espaço. A linguagem usada é direta e objetiva, imersa em uma simplicidade revolucionária que inquieta e se mostra inexorável e fatal, tal qual as cartas que Paulo Freire plantou e semeou e que temos recolhido ao longo desses anos todos. Seu legado permite sustentar a esperança em tempos de angústia e desencanto. A dialogicidade conserva sua ética e sua estética revolucionária e aponta que existem alternativas, a África nos ensina isso... Entrar em contato com as questões africanas é mergulhar de cabeça em nossas origens, é nos reconhecer na cultura e nas histórias das nações africanas, mas é também refletir sobre as marcas africanas no Brasil. Obriga-nos também a discutir o racismo e muitas formas de opressão, violência e exclusão a que são submetidos os afro-descendentes no Brasil. A repressão a que foram submetidos os povos africanos do escravagismo ao colonialismo é tão perversa e cruel quanto os recalques e chistes que a negritude enfrentou e enfrenta no Brasil. Essa pode e deve ser vista também como um espaço para a resistência e para a reflexão: é na conscientização e na indignação que se constrói a esperança e se caminha para a autonomia e para a igualdade na diversidade. O leitor mais atencioso entenderá porque a alfabetização de adultos ou a própria educação são evitadas ou esvaziadas pelos donos dos modos e meios de produção. Às vezes, ver no outro é mais fácil do que ver em nós mesmos. Na primeira parte “Um debate de salão”, capítulo 1 -“ Este reaprendizado que a África me oferece” - Freire & Guimarães discutem com os educadores locais os êxitos e fracassos de algumas experiências na alfabetização de jovens e adultos em terras africanas, européias

- Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.183-4, set.2003-fev.2004

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LIVROS

e latino-americanas, especialmente as brasileiras. O cenário é um debate com estudantes na Universidade de Lyon (França). Na segunda parte, denominada “São Tomé e Príncipe”, apresenta-se o capítulo 2 - “Praticar para aprender: caminhos de São Tomé ” - no qual, em um inédito diálogo entre os dois autores, a experiência freiriana na África é problematizada. Mesmo que brevemente são discutidas algumas críticas à perspectiva freiriana. Segue-se o capítulo 3 - “O processo ? Extraordinário, mas simplesmente houve ruptura” - em que Guimarães reencontra, em 2000, uma antiga parceira de Freire (Alda Espírito Santo) na alfabetização de jovens e adultos em São Tomé, em 1976. A segunda parte encerra-se com o capítulo 4 - “SãoTomense Leve-Leve? A mudança tem que ser geral! ”. Ali, Sérgio Guimarães reencontra, em 2000, o educador e parceiro de Freire, Sinfrônio Mendes, que conviveu com o velho mestre em outras experiências no mesmo país. Um relato emocionante sobre venturas e desventuras de educadores que optaram pela libertação do oprimido. A terceira parte da obra, “Angola”, apresenta o capítulo 5 - “O ideal perdeu-se. É uma catástrofe!”. Nele, Guimarães resgata com Lúcio Lara as experiências freirianas em Angola, sobretudo nos centros de instrução da revolucionária no final da década de 1960 e na década de 1970. Interessante encontrar as realizações e as frustrações de Lara quase trinta anos depois e como ele avalia hoje as experiências freirianas em seu país. No capítulo seguinte (6), “Apostar na educação, mais cedo ou mais tarde”, a mesma reflexão é feita com o educador angolano Pepetela. A terceira parte se encerra com o capítulo 7, “Angola? Uma visão política completamente diferente ”, um diálogo com o professor e Ministro da Educação de Angola, Antônio da Silva, realizado em 2001. A quarta parte, “Guiné-Bissau” revê as experiências freirianas naquele país. Inicia-se o capítulo 8, “Tivemos que construir a partir da primeira pedra”, com o debate realizado com Mário Cabral, em 2002. Juntos, Cabral & Guimarães revivem e

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problematizam as clássicas experiências em Guiné-Bissau realizadas por Paulo Freire na década de 1970 e consagradas no livro de sua autoria Cartas à Guiné-Bissau (1984, 4.ed). A obra apresenta, ainda, um primeiro anexo denominado “O ato de estudar” , de autoria do Ministério da Educação de São Tomé e Príncipe, e um texto de Guimarães “Alfabetização em Massas no Brasil: uma visão comparada do método MOBRAL e do método PAULO FREIRE”, no qual o autor compara teórica e metodologicamente as duas concepções de alfabetização e de educação. O livro se encerra com algumas cartas das equipes alfabetizadoras de Angola. Sidney N. de Oliveira Instituto Paulo Freire Universidade Federal do Paraná <sidney@institutopaulofreire.org.br> <sidney@ufpr.br>

Para saber mais sobre Paulo Freire, recomenda-se: APPLE, M.; NOVOA, A. (Orgs) Paulo Freire: política e pedagogia. Porto: Porto Editora, 1998. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1981. FREIRE, P. Extensão ou comunicação. São Paulo: Paz e Terra, 1981. FREIRE, P. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991. FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. FREIRE, P. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho d’água, 1995. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997. FREIRE, P. Pedagogia da indignação. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. GADOTTI, M. Um legado de esperança. São Paulo: Cortez, 2001 ROMÃO, J. E. Dialética da diferença. São Paulo: Cortez/IPF, 2000. <http.www.paulofreire.org>

PALAVRAS-CHAVE: Educação; alfabetização. KEY WORDS: Education; teaching literacy. PALABRAS CLAVE: Educación; alfabetización.

- Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.183-4, set.2003-fev.2004

Recebido para publicação em 04/09/03. Aprovado para publicação em 29/09/03.


teses

O amor à política em Hannah Arendt Hannah Arendt’s love of politics

A presente Dissertação apresentou o pensamento político de Hannah Arendt como sendo capaz de contribuir com novos conceitos que, de certa forma, superam os cânones habituais da filosofia ocidental. Num primeiro momento, o trabalho discorreu sobre os fundamentos da reflexão política mais madura de Arendt, o locus de sua compreensão em torno daquilo que se denomina totalitarismo. O totalitarismo, segundo o pensamento arendtiano, seria, ele mesmo, o meio responsável pela desnaturação da política. Num segundo momento do trabalho, analisou-se o posicionamento da política no pensamento de Hannah Arendt, rejeitando-se, desse modo, a maneira como a política é habitualmente entendida pela modernidade. Objetivou-se apresentar o modo pelo qual a pensadora judia faz emergir o conceito de liberdade no âmbito da política. Em um terceiro momento, o trabalho voltou-se para a questão do poder, enquanto avesso, ou seja, o “outro” da violência. Foram discutidos os conceitos de poder e violência, sendo assinalada a disparidade presente entre ambos. Em um quarto momento do estudo, a questão política foi interpretada como sendo liberdade plural, e chega-se à conclusão sobre a relação existente entre a proposta arendtiana e a filosofia clássica grega. Priorizou-se, no caso, a obra O que é a política? Por ser a mais significativa de Hannah Arendt no que concerne ao tema. Após essa explanação, foram abordadas as

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relações estreitas entre política, liberdade e dignidade. A ética política fundada na noção de dignidade é, para Hannah Arendt, um elemento de harmonização nas relações humanas, já que recusa tudo que minimize a condição humana. Por fim, a abordagem acerca daquilo que se caracteriza como condição humana foi, particularmente enfatizada, já que o pensamento arendtiano estabelece como central essa questão.

Paulo Petry Dissertação de Mestrado, 2002 Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. <ppetry@zipmail.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: Política; formação de conceitos. KEY WORDS: Politics; concept formation. PALABRAS CLAVE: Politica; formación de conceptos.

Recebido para publicação em 07/08/03. Aprovado para publicação em 20/09/03.

- Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.185-90, set.2003-fev.2004

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TESES

A biblioteca em realidade virtual como um ambiente colaborativo The virtual reality library as a collaborative environment

A realidade virtual (RV) tem-se mostrado uma tecnologia que pode ampliar o espectro de acesso à informação. Desde um simples programa para computador, que permite a interação através de ambientes tridimensionais, até programas mais sofisticados, como por exemplo, simuladores de vôo, que proporcionam um envolvimento e grau de realismo jamais vistos. Por meio de vários recursos, aliados a essa tecnologia, evidenciamos o acesso à informação por meio de Ambientes Virtuais Colaborativos (AVC) em que indivíduos em lugares geograficamente distantes, podem compartilhar informações e o próprio ambiente. Nesse contexto, o ambiente biblioteca mostrou-se propício para a incorporação de AVC, considerando que mediante simulações em realidade virtual, o usuário pode pegar um livro na prateleira, folhear, escolher os assuntos e interagir com conteúdos e outros sujeitos, tudo isso sem dispensar a ajuda e o papel do bibliotecário, que pode ser representado no ambiente tridimensional por avatares e desenvolver a função de facilitador. Com o objetivo de propor a aplicação da tecnologia de realidade virtual em ambientes de bibliotecas acessadas pela Internet, desenvolvemos uma proposta de uma biblioteca em realidade virtual como um ambiente colaborativo. Para o desenvolvimento da pesquisa, utilizou-se como metodologia, a revisão da literatura disponível sobre o tema em apreço e a identificação dos tipos de bibliotecas

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disponíveis na Internet. Após a coleta de dados bibliográficos, verificou-se a ausência de Bibliotecas em Realidade Virtual como Ambiente Colaborativo e a falta de consenso sobre o significado de uma biblioteca em realidade virtual. Como resultados apresentamos um relato de estudo sobre a aplicação da RV em bibliotecas, destacando a importância de ambientes colaborativos no processo de geração e uso de informações para a construção coletiva de conhecimento, proporcionado pela utilização das tecnologias de Realidade Virtual, objeto de estudo desta pesquisa. Andréa Toti Matos Dissertação de Mestrado, 2003 Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista - UNESP, Campus de Marília, São Paulo. <atotimatos@uol.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: Bibliotecas; internet. KEY WORDS: Libraries; internet. PALABRAS CLAVE: Bibliotecas; internet.

- Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.185-90, set.2003-fev.2004

Recebido para publicação em 18/07/03. Aprovado para publicação em 28/08/03.


TESES

Regionalização da assistência à saúde: análise de demanda ao Serviço de Urgência/Emergência de um Hospital Universitário The regionalization of healthcare: an analysis of the demand for Emergency Services / Emergencies at a university hospital

A organização regionalizada e hierarquizada do atendimento em saúde tem enfrentado dificuldades para sua efetivação, necessitando de análise objetiva em cada região quanto aos aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, para que a regionalização do sistema seja um instrumento, não apenas regulatório, mas também emancipatório em direção à universalidade, à eqüidade e ao atendimento integral. Partindo desta premissa, o presente estudo, realizado na região de Botucatu, Direção Regional de Saúde – DIR XI – do Estado de São Paulo, mediante análise de demanda ao serviço de referência em urgência-emergência de nível terciário, pretendeu contribuir para o diagnóstico de problemas da região que dificultam a integração dos serviços de saúde. O conceito de regionalização adotado neste estudo foi o da busca da melhor distribuição técnica, espacial, científica e operacional das ações de saúde distribuídas em níveis de atenção, articulados entre si, com a melhor eficiência, eficácia e efetividade dos serviços e com impacto epidemiológico e social. Nesse sentido, a atenção primária ou básica exerce um papel fundamental. Foi realizada análise quantitativa da demanda ao Serviço de Urgência/Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP (HC-FMBUNESP), mediante dados coletados em entrevistas com 410 doentes que procuraram

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esse serviço, e em questionários aplicados aos médicos que os atenderam. A partir dos dados apurados e analisados, foram entrevistados: gestor regional, gestores municipais, médicos da Central de Regulação Médica e chefia do Serviço de Urgência/ Emergência do HC – FMB – UNESP. Para análise das entrevistas adotou-se a abordagem metodológica qualitativa do Discurso do Sujeito Coletivo, desenvolvida por Lefèvre. No Serviço de Urgência/ Emergência apurou-se elevado percentual de doentes, com alto grau de dependência do Sistema Único de Saúde, cujos problemas poderiam ser eqüacionados em Unidades Básicas de Saúde e/ou Hospitais Secundários. Foram identificadas deficiências da atenção básica e seu baixo potencial de cobertura, oferta insuficiente de serviços, principalmente ambulatoriais e hospitalares que atuam no nível secundário, acarretando sobrecarga para o HC-FMB-UNESP, além de desarticulação dos serviços, participação da comunidade no controle social bastante tímida, desorganização dos sistemas de saúde locais e regional, provocando um movimento de demanda em direção inversa à da hierarquização dos níveis de atenção, ou seja, grande número de doentes procura, primeiramente, o serviço de saúde mais complexo e, muitas vezes, mais distante. Observou-se a persistência de um modelo de assistência médica curativa, evidentemente importante e necessária, porém parcial e pouco resolutiva. Gestores manifestaram

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preocupação em assegurar o acesso universal aos diversos níveis de assistência à saúde, apontaram necessidades de alterações na sistemática de atendimento das Unidades Básicas e revelaram interesse por mudanças na filosofia da atenção à saúde, apontando o modelo de promoção da saúde como o mais satisfatório para a população. Como perspectivas promissoras para a região foram identificados: a implantação do Programa Saúde da Família e o empenho dos gestores municipais para efetuarem pactuações entre municípios, visando ao atendimento das necessidades de saúde dos usuários. A

pesquisa conclui indicando a necessidade de potencialização dos esforços para a organização do sistema regional e dos sistemas locais, mediante articulação entre todos os atores envolvidos: conselhos municipais de saúde, serviços de saúde municipais, estaduais e universidade, objetivando o desenvolvimento de um sistema integrado que priorize a produção social da saúde. Heloisa Wey Berti Mendes Tese de Doutorado, 2003 Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. <weybe@uol.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: Urgência; hospital universitário; assistência à saúde; regionalização. KEY WORDS: Urgency; university hospital; health assistance; regionalization. PALABRAS CLAVE: Urgencia; hospital universitario; ayuda de la salud; regionalización.

Recebido para publicação em 02/10/03. Aprovado para publicação em 28/10/03.

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- Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.185-90, set.2003-fev.2004


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O ensino de Odontologia no Estado de São Paulo: as concepções de qualidade dos coordenadores de cursos de Odontologia The teaching of Odontology in the state of São Paulo: the conceptions of quality among the coordinators of Odontology courses As novas demandas sociais e as diretrizes curriculares brasileiras para os cursos de Odontologia colocam desafios à prática docente nas Instituições de Educação Superior. Nesse contexto, investigam-se as concepções de qualidade de ensino universitário de professores que atuam em Odontologia como coordenadores de graduação, visando obter um diagnóstico que possibilite pensar um projeto de formação docente na área, tendo a pós-graduação como um espaço de referência. O universo do estudo são os coordenadores de Curso de Graduação das Faculdades de Odontologia do Estado de São Paulo que possuem PósGraduação stricto-sensu. Como instrumento de levantamento de dados utilizou-se um questionário, contendo perguntas abertas e fechadas, elaborado e testado pela Faculdade de Educação de Salamanca, Espanha, adaptado à realidade brasileira por Morosini et al (1999). Articulado a outras pesquisas sobre qualidade no ensino superior e formação docente, este trabalho tem como objetivo refletir sobre os desafios da formação docente na área de Odontologia, apontando indicadores que possam subsidiar projetos voltados para a profissionalização da docência universitária, sinalizando a pós-graduação como um espaço privilegiado para esse debate. Os dados foram descritos e discutidos mediante análise quantitativa e qualitativa, a partir de três categorias apoiadas nas dimensões da prática docente analisadas por Cunha (1995): dimensão político-estrutural, dimensão curricular e dimensão pedagógica. Na análise do material, as diferentes etapas

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na carreira docente e as entrevistas com alguns coordenadores abriram espaço para o aprofundamento da discussão. Os resultados apontam, no âmbito político-estrutural, para a crise que a Odontologia vivencia (como crise de status da profissão e desafios em termos de universalização da saúde bucal à maioria da população e seu impacto social); no plano curricular apontam tendências em relação à valorização das condições materiais, da titulação acadêmica e dos processos de avaliação docente, mostrando algumas contradições em relação à defesa da formação generalista. Os pontos que expressam posturas mais contraditórias aparecem no plano pedagógico (métodos de ensinoaprendizagem, participação do aluno, tutoria), com concepções que oscilam entre modelos de ensino-aprendizagem tradicionais e inovadores, apontando para a falta de teoria em relação aos aspectos da prática no plano pedagógico. Luciane Gabeira Secco Dissertação de Mestrado, 2003 Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina de Botucatu/Universidade Estadual Paulista (FMB/UNESP) <lucianesecco@uol.com.br>

PALAVRAS-CHAVE: Educação superior; qualidade de ensino; Odontologia. KEY WORDS: Higher education; quality of teaching; Dentistry. PALABRAS CLAVE: Educación superior; calidad de la enseñanza; Odontologia. Recebido para publicação em 15/10/03. Aprovado para publicação em 05/11/03.

- Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.185-90, set.2003-fev.2004

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espaço aberto

Nós e a D oze: algumas inéditas Doze: considerações sobre a mais inédita Conferência de Saúde do país

Caco Xavier 1

Dia 7 de dezembro, início da noite, e eu correndo feito barata tonta de um lado para o outro da Academia de Tênis, em Brasília, cuidando dos muitos detalhes da área sob a minha responsabilidade na 12ª Conferência Nacional de Saúde. Eu havia dormido menos de três horas, passado todo o dia anterior, e também todo esse dia, às voltas com os preparativos da etapa nacional da Conferência, e precisava estar atento a tudo. Era a primeira conferência a ser totalmente registrada em vídeo – com exceção dos cem grupos de trabalho –, e desse registro dependia ainda a transmissão completa pela internet, em tempo real, ação igualmente inédita. Corria eu, portanto, entre o salão principal da Conferência e a Sala de Imprensa, tentando integrar as cinco equipes de filmagem, os técnicos responsáveis pela transmissão pela internet e os jornalistas da assessoria de imprensa da Conferência. Além disso, em razão da presença do vice-presidente da República, José Alencar, os procedimentos da segurança e do cerimonial da Presidência exigiam atenção constante. Eu entrava, portanto, atropeladamente no salão onde iniciava-se a cerimônia de Abertura, com alguma pequena urgência em mente a ser resolvida. Acompanho Conferências Nacionais desde a Nona, mas foi só entrar no chamado Salão Sergio Arouca e a expectativa das quatro mil pessoas que aguardavam o início desta Conferência paralisou-me como um susto. Esqueci o problema que devia resolver e decidi assistir a um pouco da Abertura. O zumzumzum das muitas vozes, a ‘eletricidade’ no ar, a certeza de cada um ali presente de que esta seria uma Conferência ‘diferente’, tudo isso foi confirmado com a chamada dos integrantes da mesa de Abertura. A menção ao nome do Coordenador da Conferência, Eduardo Jorge, fez o povo levantar-se em palmas e gritos num movimento único que lembrava a comemoração de gol do Flamengo em dia de FlaFlu. Impossível deixar de emocionar-se. Logo a seguir, ouve-se o nome do Ministro da Saúde, Humberto Costa. Para minha surpresa – lembrando-me de como os participantes de uma Conferência costumam recepcionar o ministro da vez–, também ele é saudado com muitas palmas, mais um fato inédito dessa Conferência. Ali, ‘curtindo’ a materialidade daquilo que a Comissão Organizadora, o Conselho Nacional de Saúde e muitos colaboradores havíamos construído nos meses anteriores, também eu percebi que havia no ar alguma coisa diferente, algo que movia essa massa de gente. Esperança, confiança, segurança e ainda sentido de responsabilidade. “Arouca está aqui”, dizia Sarah Escorel, enquanto no fundo do

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Jornalista da Fundação Oswaldo Cruz; Assessor especial da Comunicação da 12ª Conferência Nacional de Saúde.

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ESPAÇO ABERTO

palco lia-se a frase inspirada na vida e nas ações de nosso maior sanitarista, de nosso Estadista da Saúde: “Aqui é permitido sonhar!”. Foram tantas reuniões, preparativos, tensões, oficinas, treinamentos! Tanta coisa nova, da metodologia e sistema de Relatoria às ações de comunicação, da organização do Conselho à coordenação executiva apoiada pela recém-nascida Secretaria de Gestão Participativa. Tanta coisa podia dar tão certo, e tanta coisa podia dar tão errado! Era preciso cuidar de tudo, e de tanto! Naquele momento, no entanto, escondido entre milhares de vozes, braços e lágrimas, eu simplesmente respirava fundo e dizia para mim mesmo: “Começou! Começou bem, começou forte!” A 12ª Conferência Nacional de Saúde é um marco, tanto pelo que deu certo quanto pelo que não deu certo. Tudo o que deu certo parece estar definitivamente implantado, e deve ser continuamente aperfeiçoado nas edições que se sucederem. Aquilo que não deu certo, por outro lado, deve necessariamente forçar a reflexão sobre a revisão do modelo sobre o qual são organizadas as Conferências de Saúde. Tudo aquilo que deu certo, deu muito certo, e não se pode imaginar uma próxima Conferência de Saúde sem tais inovações. E tudo aquilo que não deu certo, deu muito errado, a ponto de podermos ousar dizer, com segurança, que esta Conferência foi a última realizada segundo esse modelo. A partir, portanto, de qualquer perspectiva que se olhe, esta 12ª Conferência Nacional de Saúde é um marco. O tom, acorde maior Se alguém, hoje, beneficiado pela curta ‘distância’ que já nos separa de Brasília, me perguntasse qual foi o ‘tom’ da Conferência, eu diria que foi um acorde maior, composto por três notas da escala: a primeira, a terça e a quinta. A primeira nota é, sem dúvida alguma, a participação popular. Em animada conversa duas semanas depois da Conferência, no conhecido bar carioca Bracarense, um grupo de amigos do Ministério comentava comigo que a “correlação de forças está mudando” e que alguns sinais já se viam na Conferência. Segundo a análise deles, o que tinha desequilibrado a votação de certos grupos de propostas não tinha sido, como anteriormente, o embate estados x municípios x União, ou entre trabalhadores de saúde x gestores x usuários, mas entre segmentos sociais. Foi lembrada a articulação entre a Pastoral da Criança e lideranças de grupos indígenas, e também o trabalho da Aneps (Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde), inserindo a educação popular em tudo o que dizia respeito à educação em saúde e à comunicação. Foi lembrada, sobretudo, a participação ativíssima e organizada dos agentes comunitários que, espalhados em praticamente todos os grupos de trabalho, tornaram-se fontes de dor de cabeça para coordenadores de grupo, por sua combatividade ao bater insistentemente na mesma tecla de suas articuladas propostas. A ‘terça’ que compõe esse acorde maior é a participação, desde o primeiro momento, do Ministério da Saúde, em duas atitudes muito importantes. A primeira foi a reiterada declaração do ministro Humberto Costa de que as deliberações da Conferência serão implementadas, tornando-se a base da política de governo para a área da Saúde. Este é um compromisso inédito, e sua divulgação em massa parece ter sido um dos elementos que proporcionaram a boa acolhida ao Ministro, por parte dos delegados da Conferência, que do mesmo modo certamente exigirão o cumprimento de tal compromisso, tão logo seja divulgado o Relatório Final. A segunda boa atitude do Ministério foi a publicação de suas teses sobre os Dez Eixos Temáticos, o que favoreceu bastante o debate antes e durante a Conferência. A última nota desse acorde, a ‘quinta’, ficou evidenciada na Abertura da Conferência, mas não foi nenhuma surpresa para aqueles que já estavam trabalhando e acompanhando a sua organização. Quando o Coordenador Geral Eduardo Jorge abriu mão de sua fala em nome da Relatora Adjunta Sarah Escorel (“Por ser presidente do Cebes, entidade histórica nas lutas da Saúde; por ter sido casada com o sanitarista Sergio Arouca, nosso maior

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homenageado; e por ser mulher!”), a plenária veio abaixo e não se calou enquanto não subiram ao palco uma cadeira para que ela se sentasse à mesa que, adivinha, era composta só de homens. “As estruturas de poder são tão machistas, não?”, comentou Sarah, ocupando seu merecido lugar na Abertura. No dia seguinte, enquanto os releases oficiais da Doze e as matérias de jornal saíam com fotos do Ministro na capa e títulos frios como ‘Conferência começa em tom governista’, o singelo Diário da Doze, todo feito por mim e pelo designer Fabiano Bastos literalmente da noite para o dia, saía com a foto de Sarah e a manchete ‘Uma Conferência com alma feminina’. É óbvio que recebi alguns delicados ‘puxões de orelha’ por ter sido tão pouco político, ignorando a presença do Ministro e do Vice-Presidente na Abertura da Doze, mas eu sabia do que estava falando, e não me referia apenas às cerca de três horas da cerimônia do dia anterior. Conferência com alma feminina, sim, e a frase não era minha e nem tinha sido dita pela primeira vez, já que dias antes a Coordenadora Adjunta Fátima Souza, chefe de gabinete do secretário de Atenção à Saúde Jorge Solla, a havia utilizado para ilustrar as iniciativas que estavam se formando para que o ambiente da Doze primasse pela cordialidade, pelo companheirismo e pelo diálogo. Na verdade, ‘masculinos’ nessa Comissão Executiva éramos eu, Eduardo Jorge, Paulo Gadelha e Artur Custódio. A ‘mão’ que guiou quase todos os processos de construção dessa etapa nacional era mesmo feminina: Fátima Souza (Coordenação Adjunta), Márgara Cunha (Secretaria de Comunicação), Sarah Escorel e Ana Costa (Relatoria Adjunta), Eliane Cruz (Secretaria Geral) Marylene Rocha (Infra-estrutura). Isso sem falar na três Meninas Superpoderosas, Florzinha, Docinho e Lindinha (Ana Lúcia Amstalden, Denise Alves e Mariana Sá), que tinham como missão salvar o ‘mundo’ da Conferência todo dia antes do jantar. Foi uma Conferência com alma feminina, sem dúvida alguma. O que deu certo Não é necessário que me estenda. O que deu certo nesta Conferência já foi bem explicitado pelo próprio Eduardo Jorge em sua participação no programa Canal Saúde e pode ser descrito em três dimensões. A primeira diz respeito à compreensão da Conferência como um longo processo que se inicia nos municípios e tem o ápice na etapa nacional. Mas não foi uma compreensão meramente teórica. Ela se deu na prática, graças principalmente à metodologia de trabalho e à construção ascendente de relatórios. A recomendação, portanto, era de que todas as conferências municipais deveriam pautar-se sobre os Dez Eixos, e discuti-los. Assim, cada Conferência municipal apresentava seu relatório à Estadual, que produzia síntese e, por sua vez, gerava um relatório estadual. O Consolidado de 26 relatórios estaduais foi o documento apresentado à plenária da nacional. A metodologia, definitivamente, deu certo. Ainda há o que aperfeiçoar e lapidar, mas já é possível perceber que dessa forma é possível compor um Relatório Final realmente sintético e propositivo, centrado em ações, e que expresse de fato a vontade da sociedade. Destaq ue-se, também, o trabalho eficiente e criativo do DataSus, que criou, a pedido da Relatoria Geral, um sistema informático para operacionalizar confortavelmente o trabalho dos relatores, ao mesmo tempo em que torna possível o acompanhamento das propostas oriundas dos municípios e estados. Nem tudo foram flores, no entanto. Lembro-me que, numa reunião de Câmara Técnica na Fiocruz, o Relator Geral Paulo Gadelha explicou minuciosamente seu plano de trabalho. Eu, impertinente, fiz logo a primeira pergunta: “A metodologia parece fantástica, e todos estamos torcendo pra que funcione. Mas, cá entre nós, você tem um Plano B, pro caso desse complexo e sofisticado sistema falhar?”. “Não. Por isso o Plano A tem que funcionar”, respondeu com segurança o Relator, também vice-presidente da Fiocruz. Apesar do otimismo da resposta, a pulga não saiu de trás da orelha, e cada vez

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que eu ouvia mais detalhes do planejamento, pensava comigo mesmo no mesmo tom de Hardy, a hiena do desenho animado: “Isso não vai dar certo”. Mas deu. O Plano A deu totalmente certo, e não foi preciso nenhum Plano B. Pelo menos até a véspera da Plenária da etapa Nacional. O papel da Informática foi além da construção de um sistema de Relatoria. A inscrição dos delegados e o envio dos relatórios estaduais, por exemplo, foram realizados pela internet, e um eficaz sistema possibilitava que qualquer pessoa conectada à web, em qualquer lugar do país, pudesse conhecer, duas semanas antes da Conferência, a relação completa dos delegados, seus estados e os segmentos que representavam, e também os relatórios estaduais, na íntegra. Não se pode conceber, daqui por diante, uma Conferência que não se utilize de todas as tecnologias de informação e comunicação disponíveis, a serviço da transparência e da construção democrática. A segunda grande dimensão da Conferência citada por Eduardo Jorge foi a própria área de Comunicação. Um site-referência para todas as informações a respeito da Doze, edições do Jornal da Doze, alegre, com jeito popular, a criação do personagem ‘Arouquinha’, que possibilitou grande simpatia e empatia à Conferência, enfim, foram muitas ações integradas. Mas o diferencial deu-se a partir de duas ações essenciais e inéditas: o registro integral da Conferência, em vídeo – e sua preservação pela Coordenadoria Geral de Documentação e Informação, do Ministério da Saúde –, e a transmissão ao vivo, pela internet, de quase todos os trabalhos, possibilitada pelo DataSus e por uma parceria, também inédita, com a conceituada Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), ligada aos Ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia. Graças a essas ações, essa foi a Conferência mais documentada e mais transparente da história. A terceira dimensão do que ‘deu certo’ foi a já citada participação social. O que não deu certo É uma questão matemática. Como votar oitocentas propostas e quatro mil destaques em dois dias? Numa jornada de, na melhor das hipóteses, 12 horas por dia, mais de três propostas/destaques por minuto teriam que ser votados, em dois dias de sessão ininterrupta, para que se conseguisse aprovar o Relatório ainda em Brasília. Missão impossível. Chegando-se à etapa nacional, o Plano A era ter o Relatório completo às nove horas da manhã do primeiro dia de Plenária, para ser lido inteiramente até às 12 horas. Os delegados, então, apenas se pronunciariam identificando a necessidade de destaques a cada proposta lida, sem ainda externar o conteúdo deles, o que seria encaminhado às mesas criadas para recebê-los. Para que isso fosse possível, os relatores de síntese teriam, então, cerca de 12 horas para sistematizar e incluir a totalidade das contribuições oriundas dos cem grupos de trabalho. Depois disso, deveria haver uma estrutura eficientíssima de gráficas e copiadoras prontas a imprimir quatro mil exemplares de um pré-Relatório com cerca de cento e vinte páginas, ou seja, quatrocentos e oitenta mil páginas rodadas das duas da manhã (horário estimado em que o relatório estaria pronto) às nove. Outra questão matemática, outra missão impossível. Como destinar apenas uma noite/madrugada para a síntese e impressão de vinte relatórios por eixo? O resultado é que, apesar do bravíssimo e competente trabalho da relatoria de síntese e dos cerca de duzentos relatores de apoio – que muito contribuíram para que os relatórios dos grupos chegassem ‘limpos’ à Relatoria de Síntese – e do programa informático que facilitou muito a redação e sistematização dos relatórios –, às nove horas da manhã do primeiro dia de Plenária somente um dos Dez Eixos estava impresso para leitura, e estimava-se que o Relatório só estaria completo no final do dia. O primeiro dia passou-se, assim, totalmente dedicado à leitura conta-gotas do relatório. À noite, o Conselho Nacional de Saúde reuniu-se com a Comissão Executiva da

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Conferência e com a Relatoria para rever o procedimento e a coordenação dos trabalhos. O quadro era sombrio, já que, no dia seguinte – o último dia da Conferência – deveriam ser votados todas as oitocentas propostas e os mais de quatro mil destaques apresentados no dia anterior. Acrescente-se a esse caldo de dificuldades o fato de a cerimônia de encerramento da Conferência estar marcada para as 19 horas, com a presença do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Isso significava que, não importando a mínima em que estágio estivesse, a Plenária teria que forçosamente interromper os trabalhos às 17 horas, para a tradicional ‘varredura’ da equipe de segurança da Presidência. A decisão foi reunir mais uma vez os relatores de síntese para extrair de cada eixo algumas propostas polêmicas ou contraditórias, no máximo de cinco por eixo, selecionadas pelo Conselho Nacional de Saúde. Essas iriam à Plenária para votação. O Coordenador da Conferência, Eduardo Jorge, do alto dos seus vinte anos de Parlamento, dizia que o ideal seria encaminhar apenas 25 propostas para votação. Enviaram cinqüenta. O encaminhamento, assim, foi o seguinte: as propostas que não foram alvo de nenhum destaque estavam previamente aprovadas; as cerca de cinqüenta propostas enviadas à Plenária seriam votadas e aprovadas, segundo os critérios de quorum e tempo de apresentação e defesa já previstos; finalmente, as demais propostas, com os destaques expressos em emendas aditivas ou substitutivas seriam encaminhadas aos delegados por correio e por e-mail, que lançariam seus votos em uma planilha de votação e a devolveriam à Relatoria, que então se encarregaria de somar os votos e realizar a redação final do Relatório. Ou seja: somente em – na melhor das hipóteses – fim de abril teremos o Relatório Final da 12ª Conferência Nacional de Saúde. O atraso não é nenhum bicho de sete cabeças, e já aconteceu – várias vezes – antes. O importante é que o Relatório seja representativo, isto é, que todas as propostas e emendas tenham sido objeto de votação, segundo o quórum estipulado no Regimento. Este parece ser um consenso: é hora de se propor uma reflexão exaustiva acerca do modelo que utilizamos desde 1986 para organizar Conferências de Saúde. É hora de se rever o papel e a metodologia do trabalho de grupos, mesas temáticas, plenárias. Esta Doze, por seu caráter ‘total’ e por sua metodologia ascendente de elaboração de propostas, fez desembocar na Plenária Final um volume muito maior de propostas do que o que era esperado. Além disso, as etapas (municipal, estadual, grupos da nacional, plenária) girando sempre em torno dos mesmos eixos possibilitou que propostas que ‘caíam’ numa etapa fossem sistematicamente re-integradas ao debate nas outras, o que ocasionou um grande desperdício de energias. As tecnologias de comunicação, algumas inauguradas – ou potencializadas – na Doze, permitem imaginar uma verdadeira conferência on-line em que, sem a pressa e a antecipação desta, possa ter suas discussões estabelecidas ao longo de vários meses entre delegados já credenciados de vários estados. Alguns dizem que o momento do encontro nacional deve ser totalmente dedicado à votação de um documento já estudado e discutido. Outros dizem que, ao contrário, esse deve ser um momento de plena discussão, aberta, participativa. Todos concordam, porém, que esse modelo palestras / grupos de trabalho / plenária está esgotado, é ineficaz e precisa ser revisto. Com isso concorda também Eduardo Jorge, Coordenador dessa Conferência. Suas palavras, na Carta de Agradecimento que enviou aos participantes, apontam uma importante direção: “Este modelo de Conferência precisa ser superado. A próxima Conferência precisa ser muito mais Acre, Piauí, Paraíba e Santa Catarina do que Brasília”. Encerramento: o Lula vem? O Lula foi. A presença de Lula no Encerramento dividiu opiniões. A maioria dos participantes gostou de ver o apoio do Presidente da República à Conferência, apesar do tom,

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XAVIER, C.We and the “Twelfth”: novel thoughts on the most novel Health Conference in the country, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.191-4, set.2003-fev.2004. It concerns a critical evaluation of the facts and significant moments of the 12th National Health Conference, presented by one of the persons responsible for organizing the event. KEY WORDS: Health; public policies. Trata-se de uma avaliação crítica de fatos e momentos significativos que marcaram a 12ª Conferência Nacional de Saúde, apresentada por um dos responsáveis pela organização do evento. PALAVRAS-CHAVE: Saúde; políticas públicas. Se trata de una evaluación crítica de hechos y momentos significativos que marcaron la 12ª Conferencia Nacional de Salud, presentada por uno de los responsables por la organización del evento. PALABRAS CLAVE: Salud; politicas publicas.

Recebido para publicação em 15/01/04. Aprovado para publicação em 04/02/04.

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Caco Xavier, 2003

digamos, pouco assertivo de suas palavras, já que os delegados esperavam a confirmação do compromisso expresso pelo ministro Humberto Costa. Outros reclamavam das ‘conseqüências’ da vinda do Lula, já que esta exigiu grande aparato de segurança e a inflexibilidade própria das estruturas de poder. No caso da Conferência, ela praticamente teve que ser paralisada na hora mais ‘quente’ das discussões em plenário, em virtude dos rígidos horários e procedimentos requisitados pelo Cerimonial da Presidência. Todos já sabiam: haveria uma cerimônia de Encerramento, mas nada de ‘encerramento’, porque os delegados voltariam à plenária para votar até o fim as propostas encaminhadas. Nesse Encerramento simbólico, portanto, imagens variadas da Conferência, incluídas no clip do Hino Nacional, belissimamente editado pelo Canal Saúde, emocionaram cada um e fizeram renovar as forças dos delegados. Às seis da manhã, esgotados e felizes, a etapa nacional da 12ª Conferência Nacional de Saúde oficialmente terminou. Quer dizer, quase. Documentos contendo todas as emendas e destaques sugeridos pelos delegados estão sendo encaminhados nesse momento a suas casas – ou a seus computadores – para serem avaliados e aprovados. Só depois que os relatores sintetizarem o resultado final dessa votação a distância – mais um ineditismo dessa já tão inédita Conferência – é que poderemos dizer: “acabou”. Para encerrar esse artigo, volto à cerimônia de Abertura, quando um grupo de teatro encenou uma rápida apresentação em que, brincando com a noção bíblica de ‘primeiro, segundo, terceiro dia...’, chega ao sétimo dia, o do descanso, e se pergunta: “Mas e no Oitavo Dia, o que aconteceu?”. “No Oitavo Dia aconteceu a Oitava!”, diz o ator. Arlindo Fábio, superintendente do Canal Saúde, chefe de gabinete da presidência da Fiocruz e Relator Geral da Oitava Conferência de Saúde não se conteve: “Espera aí! Quer dizer que quem fez a Oitava foi... Deus??? Eu jurava que tínhamos sido nós!”. Ninguém duvida disso, Arlindo! E ninguém duvida também que essa Doze foi realizada por esse mesmo ‘nós’, sempre renovado e renovador. O grande desafio, a partir de agora, está expresso na segunda parte da frase que criei para ilustrar uma Carta de Boas Vindas da Conferência e que acabou estampada no fundo do palco. “Aqui é permitido sonhar”, já sabemos e comprovamos, no SUS é permitido sonhar, e é por isso que estamos aqui. Agora queremos saber se, no que diz respeito à Doze, “aqui é permitido realizar o sonho sonhado”. De quem depende? Mais uma vez, de ‘nós’.


Inov ação na Educação Superior Inovação

Marcos Masetto 1

Organizando idéias O interesse pela temática da Inovação na Educação Superior foi despertado pelo contato recente com palestras, artigos, livros e projetos sobre o assunto, com diferentes conotações, a saber: utilizar Novas Tecnologias de Informação e Comunicação na prática docente; prover os alunos de computadores para suas anotações e trabalhos escolares; dispor de laboratórios de informática; substituir aulas expositivas por trabalhos em grupo; trabalhar com ensino a distância. Considerando minha experiência de quarenta anos de docência e pesquisa sobre ensino na universidade, levanto algumas reflexões visando contribuir para o debate atual sobre o tema, a partir do conceito de inovação na educação superior, entendida como o conjunto de alterações que afetam pontos-chave e eixos constitutivos da organização do ensino universitário provocadas por mudanças na sociedade ou por reflexões sobre concepções intrínsecas à missão da Educação Superior. 1 Examinando o primeiro elemento constitutivo do conceito, entre as alterações que afetam pontos-chave e eixos constitutivos da organização do ensino universitário universitário, pode-se considerar: · o projeto pedagógico de um curso ou de uma Instituição, desde sua criação (pela inexistência dele) até alterações no projeto existente, por força de novas exigências da sociedade ou de novas políticas governamentais; · a explicitação de objetivos educacionais mais amplos incluindo, além dos aspectos cognoscitivos, habilidades e competências humanas e profissionais e atitudes e comportamentos exigidos pela sociedade atual, como ética, política, profissionalismo; · a re-organização e flexibilização curricular para atender às novas exigências do projeto pedagógico ou de novas metas educacionais;

1 Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação e Currículo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP); professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. <mmasetto@ajato.com.br>

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· a reconceptualização do papel das disciplinas como componentes curriculares, selecionadas em função dos objetivos formativos pretendidos e como fonte de informações necessárias para o profissional que se pretende formar; · a integração das disciplinas e atividades curriculares em função dos objetivos educacionais, superando o isolamento e a fragmentação do conhecimento; · a substituição da metodologia tradicional, baseada apenas em aulas expositivas, por metodologias que favoreçam o alcance dos vários objetivos educacionais, estimulem o aluno para aprender e possibilitem sua participação no processo de aprendizagem; · a exploração das novas tecnologias, baseadas na informática, telemática, internet, propiciando atividades a distância, fora do espaço sala de aula, ao mesmo tempo estimulando o aluno para o encontro com o professor e os colegas; · a revisão do conceito de avaliação, entendendo-a como avaliação formativa, instrumento de feedback (retro-informação) que motive o aluno para aprender, colabore para o seu desenvolvimento integral, o acompanhe em seu processo de aprendizagem de forma contínua, e que, com a colaboração de colegas, professor e do próprio aluno (auto- avaliação), consiga ampliar e aprofundar sua aprendizagem; · a substituição do papel do professor de ministrador de aulas e transmissor de informações para o papel de mediador pedagógico, desenvolvendo relação de parceria e co-responsabilidade com seus alunos, trabalhando em equipe; · a preparação dos professores para se comprometerem com a inovação e assumirem projetos inovadores, mediante um trabalho de formação docente contínua e em serviço que possibilite a reflexão sobre suas atividades docentes, o intercâmbio de experiências com colegas e o diálogo entre as áreas; · a revisão de infraestrutura de apoio para projetos inovadores, incluindo biblioteca atualizada e informatizada, laboratórios adequados, preparação dos novos ambientes de aprendizagem. 2 Considerando o segundo elemento constitutivo de conceito de inovação apresentado – alterações provocadas por mudanças na sociedade – sabe-se que por muito tempo o sistema universitário brasileiro vem se organizando conforme o modelo francês-napoleônico, voltado principalmente para a formação de profissionais, a partir de currículos inicialmente transpostos de universidades européias, com alterações posteriores que não afetaram significativamente o modelo original. Nas últimas três décadas, a sociedade brasileira vem sofrendo profundas alterações, provocadas principalmente pela nova revolução tecnológica da informática e da telemática que, além de afetar a vida cotidiana das pessoas, atinge o setores fundamentais da vida universitária. Na chamada “Sociedade do Conhecimento” somos bombardeados com informações procedentes das mais longínquas regiões do globo, disseminadas rapidamente através da Internet, de sites especializados, da

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mídia, das revistas de grande circulação, que abordam assuntos outrora só encontrados em periódicos científicos. Tais informações, ao mesmo tempo em que nos atualizam, deixam uma sensação de impotência em relação a acompanharmos tudo o que acontece, mesmo que fiquemos restritos a nossa área de especialização. Mas sendo o conhecimento a matéria prima de trabalho da escola, em particular da educação superior, é preciso avançar na reflexão sobre as conseqüências das alterações na sociedade, trazidas pela tecnologia, para o trabalho acadêmico na universidade, a exigir mudanças profundas na cultura organizacional da instituição. Para que essas mudanças aconteçam, sabe-se que é preciso, no mínimo: abertura, diálogo, intercomunicação e parceria com as mais diversas fontes de produção de conhecimento; revisão e reformulação de bancos de dados e informações; implantação de novos processos informativos e de comunicação. Por outro lado, as atuais demandas da “Sociedade do Conhecimento” levam a uma crise das próprias carreiras profissionais, pela exigência de novas habilidades e competências, sem desconsiderar a competência técnica: trabalho em equipe, adaptação a situações novas, aplicação de conhecimento e aprendizagens, atualização contínua pela pesquisa, abertura à crítica, busca de soluções criativas, inovadoras, fluência em vários idiomas, domínio do computador e de processos de informática, gestão de equipe, diálogo entre pares. Tais exigências afetam diretamente a universidade em seu papel de formação do profissional exigido pela sociedade atual. O que necessariamente leva a se pensar em inovação na educação superior. Além disto, as atuais políticas governamentais para a Educação Superior, independentemente dos princípios que as provocaram, têm dado espaço para propostas de inovação no ensino de graduação e na pesquisa em diferentes áreas do conhecimento, envolvendo parcerias entre organizações da mesma área, com objetivos comuns, ou entre organizações de áreas diferentes com objetivos afins. A educação superior e a pesquisa na universidade estão exigindo cada vez mais o conhecimento interdisciplinar, cooperativo, integrado. 3 Finalmente, uma breve reflexão sobre o último componente constitutivo do conceito de inovação apresentado – alterações que traduzem na vida das instituições as reflexões atuais sobre concepções intrínsecas à missão da Educação Superior Superior. Revendo a Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação da UNESCO, esta defende a missão do Ensino Superior voltada para a formação de pessoas altamente qualificadas e cidadãos responsáveis, aprendizagem permanente, promoção, geração e difusão da pesquisa e proteção e consolidação de valores atuais. Destaca a função ética da universidade, a necessidade de reforçar a cooperação da Academia com o mundo do trabalho, analisando e prevenindo as necessidades da sociedade. O documento da UNESCO explicita, ainda, alguns aspectos a exigir mudanças essenciais, inovadoras, na educação superior: nos currículos, métodos pedagógicos, na formação contínua de professores, incluindo a formação pedagógica; além da incorporação crítica da tecnologia, da educação a

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distância e da compreensão e exploração dos ambientes virtuais. Tais pontos poderão provocar inovações significativas e relevantes na Educação Superior. Além destes, outros indicadores da inovação estão na pauta atual das discussões acadêmicas. O ensino com pesquisa na graduação e o uso de novas tecnologias na sala de aula, são defendidos como propostas de tornar o estudante universitário sujeito do processo de aprendizagem, alterando radicalmente a disposição anterior de se entregar todas as informações já prontas e sistematizadas pelo professor para memorização e reprodução. A valorização da parceria e co-participação entre professores e alunos e entre os próprios alunos na dinamização do processo de aprendizagem e de comunicação se justificam pela necessidade de gerar novas formas de trabalho pedagógico e aproveitamento das atividades escolares. Defende-se, por fim, o papel do professor como educador responsável pela mediação pedagógica, que estimule a aprendizagem do aluno como processo pessoal e grupal, oriente seus trabalhos, discuta com ele suas dúvidas, seus problemas, incentivando a avançar no processo do conhecimento. Buscando interlocutores Autores da área da Administração (Drucher, 2000; Senge, 1996; Kanter, 1996) têm colocado a questão da inovação na pauta de debate atual sobre a crise das organizações sociais. Drucker (2000) afirma que nos próximos cinqüenta anos as escolas e universidades sofrerão mudanças e inovações mais drásticas que nos seus últimos trezentos anos quando se organizaram em torno da mídia impressa. As novas tecnologias de informação e comunicação, a informática e a telemática, a perspectiva da aprendizagem contínua, ou seja, da “life long learning”, têm criado novas demandas sociais, exigindo das organizações respostas inovadoras, uma vez que as soluções antigas já não se mostram suficientes e adequadas. A organização para a mudança, requer um alto grau de descentralização. Isto porque a organização deve ser estruturada para tomar decisões rapidamente. E essas decisões devem ser baseadas na proximidade – com o desempenho, com o mercado, com a tecnologia, e com todas as muitas mudanças ocorrentes na sociedade no meio ambiente, na demografia e no conhecimento que propiciarão as oportunidades para a inovação. (Drucker, 2000, p.7)

Senge (1996) chama atenção para uma atitude fundamental em qualquer inovação: o compromisso entre os que estão envolvidos no projeto de mudança, pois inovação e mudança andam juntas, mas só acontecem de fato quando as pessoas nelas envolvidas se abrem para aprender, para mudar, para adquirir novos conhecimentos, para alterar conceitos e idéias trabalhadas, às vezes, durante muitos anos, para assumir novos comportamentos e atitudes não comuns até aquele momento, para

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repensar a cultura pessoal e organizacional vivida até aquele momento, para mudar suas próprias crenças e aderir a novas e fundamentais maneiras de pensar e de agir. Kanter (1996) focaliza outra grande característica da inovação: a parceria ou a capacidade de desenvolver fortes vínculos entre as organizações, defendendo que “cultura da empresa deva ser aberta em duas direções: ao cliente, cuja voz e visão são o melhor guia para o desenvolvimento dos produtos e a todo pessoal da empresa, cujas idéias devem ser ouvidas” (p.110). O desenvolvimento da organização passa pela linha da cooperação e da parceria, não mais pelo individualismo e fechamento de cada um em seu negócio. Na área da educação, Imbernón (2000) desenvolve reflexões interessantes sobre os desafios do futuro imediato para a educação, muito próximas das idéias sobre inovação na educação superior trazidas na primeira parte deste trabalho, e destaca quatro idéias-força na base da mudança que deve impulsionar o futuro imediato da educação: a recuperação por parte dos professores e demais agentes educativos do controle sobre seu processo de trabalho; a valorização do conhecimento, tanto daquele já adquirido e desenvolvido pelas gerações e culturas anteriores, que tem seu valor e importância mesmo nos dias de hoje, mas que se apresenta como insuficiente para os próximos tempos, quanto dos novos conhecimentos que são investigados e produzidos atualmente em novas condições de número de informações, de velocidade de comunicação e de proliferação de fontes de conhecimento; a valorização da comunidade como verdadeira integrante do processo educativo, da comunidade de aprendizagem, co-responsável pelo projeto pedagógico da instituição; a diversidade como projeto cultural e educativo. (Imbernón, 2000, p.80)

Procurando resumir seu pensamento sobre mudanças em educação, Imbernón (2000, p.85) identifica alguns imperativos: um meio social baseado na informação e nas comunicações; a tendência a que tudo seja planejado; uma situação de crise em relação ao que se deve aprender e/ou ensinar em um mundo onde imperam a incerteza e a mudança vertiginosa; o novo papel do educador como gestor e mediador de aprendizagem.

Tais imperativos comportam novas exigências e demandas à instituição escolar e aos professores, em termos de uma nova concepção de trabalho educativo: análise da obsolescência dos processos, dos materiais e das ferramentas de aprendizagem existentes; diagnóstico das novas necessidades dos alunos; busca de novas motivações dos alunos

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para a aprendizagem; grande influência do meio social na aprendizagem; busca de novos métodos; gestão coletiva da aprendizagem; utilização dos meios tecnológicos; formação permanente como parte intrínseca da profissão de educar e como compromisso na aprendizagem durante toda a vida. (Imbernón, 2000, p.89-90)

Neste espaço aberto a outras idéias que contribuam para o desenvolvimento de projetos inovadores para a educação superior, buscou-se sublinhar alguns aspectos essenciais do processo de mudança educativa, a refletir-se na formação de profissionais críticos e competentes, exigidos pela sociedade atual. Referências DRUCKER, P. A nova sociedade das organizações. In: HOWARD, R. (Org.) Aprendizado organizacional. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p.1-7. IMBERNÓN, F. (Org.) A educação no século XXI. Porto Alegre: ARTMED, 2000. KANTER, R. M. Líderes da classe mundial: o poder da parceria. In: HESSELBEIN, F. ; GOLDSMITH, M.; BECKHARD, R. (Orgs.) O líder do futuro. São Paulo: Futura, 1996. p.100-5. SENGE, P. Conduzindo organizações voltadas para o aprendizado: o destemido, o poderoso e o invisível. In: HESSELBEIN, F.; GOLDSMITH, M.; BECKHARD, R. (Orgs.) O líder do futuro. São Paulo: Futura, 1996. p.121-5.

MASETTO, M. Innovation in higher education, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p. set.2003-fev.2004.

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This paper discusses the concept of “Innovation” that is frequently found to mean changes in higher education. It explores features of the innovation process such as commitment, partnership and decentralization. KEY WORDS: Organizational innovation; social change; higher education. Este artigo discute o conceito de “inovação” freqüentemente encontrado referindo-se a mudanças na Educação Superior, explorando algumas características de um processo de inovação: compromisso, parceria, descentralização. PALAVRAS-CHAVE: Inovação organizacional; mudança social; educação superior. Este artículo discute el concepto de “innovación” que frecuentemente encontramos refiriéndose a alteraciones en la Enseñanza Superior. Presenta ideas que exploran algunas características de un proceso de innovación como por ejemplo, el compromiso, la asociación y el proceso de descentralización. PALABRAS CLAVE: Innovación organizacional; cambio social; enseñanza superior.

Recebido para publicação em 04/03/2003. Aprovado para publicação em 07/11/2003.

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O Corpo e a Saúde The Body and Health João Monteiro

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Artistas del Taller que participan en esta edición ALBERTO MONTAÑO - Nació en 1953, en la Ciudad de México. Fue aprendiz del Maestro Pedro Medina y estudió en Chelsea School of Art, Londres, Inglaterra y en Atelier Dix Sept, con Willism S. Hayter, Paris, Francia. Exposiciones Colectivas más actuales: “10 Artistas de México”, Grace Borgenicht Gallery, Nueva York, N.Y.; ”Europulia”, Actualidad Plástica en México, Provinciaal Museum von der Moderne Kunst, Oostende, Bélgica; “Por el Camino de Ecos: Arte Contemporáneo en México”; Ruth Siegel Gallery, N.Y.; “Abstract Visions”, Panorama de los pintores abstructos en Latino America, Museum of Contemporary Hispanic Art, N.Y.; “Raíces Populares en el Arte Contemporáneo”, Galería O.M.R., Ciudad de México; “17 Artistas de hoy en Mexico”, Museo Rufino Tamayo, Ciudad de México. Entre sus exposiciones individuales destacan “Momias”, Ex-convento de Tepoztlán,Tepoztlán Morelos, México; Galería Ramis Barquet, Monterrey, N.L.; Galería O.M.R., Ciudad de México; P.S. 1 Museum, Project Room, N.Y.; Mexican Cultural Institute Gallery, Consulado de México en Nueva York; Centro Cultural Posada, l.N.B.A, Ciudad de México; Martin Molinary Gallery, N.Y.; Galería Mollet, Ciudad de México; Galería Mier-Kup, Ciudad de México. ARCANGELO IANELLI - Nació en Sao Paulo, Brasil, en 1922. Tempranamente se inició en el dibujo, y a los veinte años comenzó a estudiar pintura, tanto de caballete como de frescos y murales. Ha participado activamente de la escena cultural brasileña como expositor, integrante de jurados y comisiones de salones oficiales, curador y miembro del Consejo de Arte de Museos y de la Comisión Nacional de Artes Plásticas. Entre 1940 y 1960 produjo un tipo de pintura figurativa de referencias posimpresionistas que fue evolucionando a distintas modalidades de abstracción desde 1961, llegando a crear un lenguaje propio donde el color es protagónico en todas sus posibilidades expresivas, espaciales y poéticas. Figura trascendente del arte brasileño y latinoamericano, su trayectoria ha sido reconocida con innumerables premios. Ha participado en las principales bienales internacionales y expuesto en los más importantes museos del mundo. Entre sus retrospectivas destacamos las realizadas en: Museu de Arte Moderna de Sao Paulo (1978); Museu de Arte Moderna de Rio de Janeiro (1984); III Bienal Internacional de Pintura de Cuenca, Ecuador (1991), y Museu de Arte de Sao Paulo (1993). JAIME ZAPATA - Nació en Quito, Ecuador, en 1957. Estudió Artes en el Colegio de Artes Plásticas de la Universidad Central de Quito. Participó en los talleres de Miguel Gayo (Perú), Thomas Daskam (Chile) y Carmen Silva (Ecuador). En 1984 se trasladó a París, ciudad donde vive desde entonces, para trabajar en el Centro Cultural de Galerie de Nesle. En 1998 creó el Espacio Taller Jaime Zapata en Quito. Su obra se desarrolla en el terreno de la pintura figurativa. Ha experimentado con la aplicación de distintas técnicas de representación para crear escenas de mundos mágicos, visualmente coherentes, pero de atmósferas perturbadoramente fantásticas. De esta manera, elabora contenidos de la memoria biográfica, histórica y del arte occidental. Entre sus numerosas exposiciones individuales y colectivas figuran las realizadas en: Galería Nesle, París (1987); Salón de Anticuarios y Arte Contemporáneo, Rouen (1992); III Bienal de Cuenca, Ecuador (1991); FIART, Bogotá (1992); Latin American Art Show, Bolívar Hall, Londres (1993); Talbot Rice Gallery, Edimburgh University, Edimburgo (1994); Galería Taller J.Manzano, Collioure (1998), y Galería M.S., Quito (2000). En 1983 obtuvo el Premio Cristóbal Colón, Madrid.

© Taller Experimental Cuerpos Pintados, 2003

JIM AMARAL - Nació en California, EEUU, en 1933. Estudió en Stanford University y realizó un postítulo en Cranbrook Academy of Arts, Michigan. Desde 1957 vive y trabaja en Colombia. Su obra se ha desarrollado en los ámbitos del dibujo, la pintura y la escultura, pese a que en los últimos años se ha dedicado principalmente a trabajos tridimensionales. Sus esculturas consisten en una serie de criaturas antropomorfas de su mitología personal, cuyas presencias –ambiguas y herméticas– son un enigma que aúna lo arcaico y lo contemporáneo. Ha expuesto individualmente en varias galerías y museos de Europa, EEUU y Latinoamérica, entre los que figuran: Museo de Bellas Artes, Caracas (1964); Museo de Arte Moderno, Bogotá (Retrospectiva; 1983), y Galería Garcés Velázquez, Bogotá (1986, 1988). Transformación transitoria se presentó como una exposición individual del artista dentro de la XVII Bienal de Sao Paulo, Brasil (1983). Destaca su participación en las colectivas realizadas en: Museo de Arte Moderno, Bogotá (1973 y 1986); Musee d’Art Moderne, París (1979), y Museo de Arte Moderno La Tertulia, Cali (1974, 1994 y 1996). También participó en la XXII Biennale di Florence, Italia (1975). JULIO ALPUY - Nació en Tacuarembó, Uruguay, en 1919. Estudió en el Taller de Joaquín Torres García y formó parte de la Asociación de Arte Constructivo en Montevideo. Es de los más destacados exponentes de la Escuela del Sur, fundada por Torres García, y del universalismo constructivo. Sus pinturas, murales y relieves son trabajados de acuerdo a los principios de estructura, unidad, geometrismo, simplificación y abstracción y guiados por la influencia del modelo de pensamiento y sensibilidad arquitectónica. Entre sus exposiciones individuales figuran las realizadas en: Biblioteca Luis Angel Arango, Bogotá (1958); Center for Inter-Americam Relations, Nueva York (1972); Museum of Contemporary Hispanic Art, Nueva York (1985); Cecilia de Torres Gallery, Nueva York (1994, 1997 y 1999); las retrospectivas realizadas en la Municipalidad de Montevideo (1999), y en el Centro Cultural Recoleta, Buenos Aires (1999). Ha participado en numerosas

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colectivas de arte constructivo en Europa y América, y en la Bienal de Sao Paulo (1951, 1953 y 1983). Ha obtenido los siguientes reconocimientos: beca New School for Social Research, Nueva York (1963-1965); Medalla de Plata, I Bienal de Artes Gráficas, Cali (1971); beca National Endowment for the Arts, Washington (1983); beca New York Council for the Arts, Nueva York (1986), y beca Gottlieb Foundation, Nueva York (1990). LILIANA PORTER - Nació en Buenos Aires en 1941 y reside en Nueva York desde 1964, fue alumna de la Escuela de Bellas Artes Manuel Belgrano en esa ciudad hasta que viajó con su familia a Méjico, en 1958, y se abocó allí a la técnica del grabado como alumna del colombiano Guillermo Silva Santamaría, al tiempo que participaba en un espacio de arte experimental promovido por el célebre artista alemán Mathías Goeritz. En 1964, de viaje por París, hizo escala por unos días en Nueva York, pero ya no pudo salir de esta ciudad, gustosamente atrapada por las alternativas de vida artística que allí se le ofrecían, en medio de la turbulencia social e intelectual de los sesentas. Porter llega al Pratt Graphic Art Center dominando ya las técnicas del grabado en metal, y conoce en ese centro al uruguayo Luis Camnitzer, que desarrollaba entonces una especialidad en la xilografía. Poco después será ella quien trasmita los fundamentos técnicos del aguafuerte a Luis Solari, así como unos años antes, en México, había ayudado a realizar su primer grabado al joven dibujante Luis Cuevas. Junto a Luis Camnitzer y al venezolano José Guillermo Castillo, cofundó en 1965 el New York Graphic workshop, un taller que desarrolló una producción experimental sobre bases programáticas que proponían una crítica conceptual a la circulación social del grabado y del arte tradicional. El dominio del aguafuerte, la serigrafía y el fotograbado fue el instrumental a partir del cual Porter construyó, desde 1960-63, la refinada poética de su lenguaje. MARÍA GRACIA DONOSO - Nació en Santiago, en 1965. Estudió Arte en la Universidad de Artes y Ciencias Sociales (ARCIS), Santiago, Chile. Realizó estudios de posgrado en París, en Université de La Sorbonne y en Académie Julien (Met de Penninghen); y en Barcelona, en la Universidad de Bellas Artes y en Fak d’Art. Su obra consiste en una investigación visual del cuerpo humano que involucra tecnologías y posibilidades de manipulación de la imagen digital de acuerdo a comportamientos derivados de la gráfica. Ha expuesto individualmente en la Galería Animal, Santiago (2001) presentando la exposición Japanese e-Motions – Fotografía digital, video e instalación. Entre sus exposiciones colectivas se destacan las realizadas en: Gran-de Arche de la Défense, París (1997); Global Culture Center, Osaka, Japón (2000), y Museo Internacional de Electrografía (MIDE), Cuenca, España (2001). Entre los reconocimientos obtenidos por esta artista figuran: Prix Saint-Exupéry Valeurs Jeunesse, París (1988); Primer Premio de Dibujo e Ilustración de SCAM (Société Civil des Auters Multimedia), París (1996), y Primer Premio de Fotografía Portraits, Photo Magazine, París (1997). OFELIA DAMMERT - Nació en Lima, Perú, en 1962. Desarrolló su talento como dibujante y retratista de manera autodidacta. Estudió Tecnología de Medios Audiovisuales en Turín, Italia, con una beca otorgada por la OIT (Organización Internacional del Trabajo), y Comercio Exterior en la Escuela de Comercio Exterior de la Asociación de Exportadores ADEX de Perú. En 1990 se radicó en Santiago de Chile donde ejerció profesionalmente su habilidad innata en la técnica del dibujo, especializándose en retratos de animales e ilustraciones de flora y fauna. Su minucioso y delicado trabajo de dibujo comenzó con la representación de caballos utilizando como medio los lápices de colores. Luego, orientó su actividad hacia una amplia variedad de especies de la fauna chilena incorporando la acuarela y sus posibilidades en esta temática. Algunas de sus ilustraciones ya han sido publicadas en una serie de láminas que forman parte de un proyecto editorial de Fundación América, actualmente en proceso. En 1994 expuso la serie Retratos de caballos en la embajada de Perú, Santiago.

© Taller Experimental Cuerpos Pintados, 2003

SEBASTIAN LEYTON - Nació en Santiago, Chile, en 1961. Estudió Arquitectura en la Universidad Católica de Valparaíso y Pintura en la Universidad de Chile, Santiago. Formó parte del colectivo Truffa-CabezasLeyton, surgido como reacción al conceptualismo de la década de 1980. Residió y trabajó en París entre 1989 y 1997, y en Nueva York en 1999. Actualmente vive en Santiago. Su obra reivindica con fuerza la pintura como terreno de investigación donde elabora la experiencia y la lectura de la realidad desde una propuesta de lenguaje que evoluciona de acuerdo a la tensión entre la vida y la pintura. Entre sus exposiciones individuales destacan N.O.S.E., Museo de Arte Contemporáneo, Santiago (1994) y Arte nuestro: 7 invocaciones y un fondo común, Museo de Arte Contemporáneo, Santiago (2002). Formando parte del colectivo TruffaCabezas-Leyton ha expuesto, entre otras: La moda mata, Gale-ría Visuala, Santiago (1986); Soberbia, Galería Plástica 3, Santiago (1987); Mi nombre es Legión, Instituto Cultural de Las Condes, Santiago (1988); Historia natural, Museo de Arte Contemporáneo, Santiago (1996); El enemigo público, Galería Sur, Santiago (1985); Cirugía plástica, Staatlichen Kunsthalle, Berlín (1989); en Maison de l’Amerique Latine, París (1990), y en Künstler Bethanien Kreuzberg, Berlín (2000).

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