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ELISETE ALVARENGA, 2000

APRESENTAÇÃO

Com a publicação de seu número 13, Interface: Comunicação, Saúde, Educação convida seus leitores a refletirem sobre a Educação em tempos de mudança. Traz um conjunto articulado de contribuições que, em diferentes âmbitos e possibilidades de práticas educacionais emancipatórias, tem como unidade o esforço de construir reflexões e experiências inovadoras, com toda a complexidade que a palavra inovar carrega, desafiando-nos a pensar a realidade latino-americana. Começando pela seção Criação, que sempre nos instiga, destaco um fragmento que nos aproxima da idéia de inovação como ruptura, como alternativa à mudança... “Os olhares são um movimento de ir e vir. Uma via de dupla mão. Quando cruzam, e encontram-se, interagem. (...) Mundos interno e externo que conversam e, ao travar esse diálogo, impulsionam mente e corpo, integrados numa nova práxis...” No complexo panorama da Educação, o eixo organizador deste número da Interface é desdobrado em quatro aspectos. Discussão sobre as possibilidades de mudança de uma universidade européia, seu papel atual na sociedade, contextualizando a trajetória a ser trilhada, buscando a eqüidade, melhor qualificação profissional e participação da comunidade no processo de construção. Questões focais da Educação Superior nas profissões da Saúde, com destaque às experiências de diferentes projetos UNI desenvolvidos no Brasil e em outros países da América Latina, que vêm desenvolvendo a reestruturação e/ou transformação dos modelos político-pedagógicos das instituições que integram o Projeto. Textos focais que discutem a Educação e seu contexto de mudança no âmbito do discurso das ONGS/Aids no Brasil, no uso de tecnologias de informação e comunicação via internet, na atividade profissional da Enfermagem no Programa de Saúde da Família e nas possibilidades do trabalho preventivo em relação à violência. Polêmico debate sobre as possibilidades e limites das inovações pedagógicas, entendidas como ruptura paradigmática, frente “aos dilemas e impasses de nosso tempo histórico e à compreensão de que os processos educativos estão vinculados às práticas sociais”. Destaco ainda, neste número, a discussão sobre a graduação em Saúde Pública, já sinalizando pontos para reflexão, e a presença de artigos com abordagem qualitativa que, de diferentes maneiras, elaboram importante “reflexão sobre a dimensão simbólica das ações dos projetos e da complexidade das relações sociais”, contribuindo com outras possibilidades de construção do conhecimento e rompendo com a hegemonia de um modelo único de produção científica. A reflexão aqui colocada nos possibilita viajar como agente crítico e analítico das políticas educativas atuais vigentes e buscar energia inovadora “a legitimar formas alternativas de conhecimentos bem como ousar andar na subjetividade das fronteiras”. Eliana Goldfarb Cyrino Professora, Departamento de Saúde Pública Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP Editora Associada da Interface

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PRESENT ATION PRESENTA With the publication of its issue number 13, Interface: Comunicação, Saúde, Educação invites its readers to reflect on Education in times of change. It gives a well presented set of contributions, which, in their different ways and their different possibilities of liberating and educational practice, have the endeavor to build innovative reflections and experiences as their common ground, with all the wealth that the word innovate implies in challenging us to think of Latin American circumstances. Beginning with the section Creation, which always encourages us, I emphasize a fragment which brings us close to the idea of innovation as a break, as an alternative to change... “The glances come and go. A two-way street. When they cross and meet, they interact. (...) Internal and external worlds that talk to each other and, in engaging in this dialog, drive the mind and body forward, together in a new praxis...” In the complex context of Education, this issue of Interface is divided into four parts, as its organizing arrangement. A broad discussion of the ability to change at a European university, its present role in society, putting the entire course to be traced into context, seeking equity, better professional qualifications and participation by the community in the building process. The central matters in Higher Education in the Healthcare professions, emphasizing the experiences of the different UNI projects undertaken in Brazil and in other Latin American countries, which have been developing and/or transforming the political and teaching models of the institutions forming part of the Projects’ courses. The central texts discussing Education and its context of change within the scope of the attitude of the NGOs/Aids in Brazil, using information technology and communication over the Internet, in the profession of Nursing in the Family Healthcare Program and the ability of preventive work with regard to violence. A controversial debate on the abilities and limits of teaching innovation, understood as being a break of the paradigm, faced with and “heedful of the dilemmas and impasses of our historical time and the understanding that education is associated with social practice”. I also emphasize, in this issue, a discussion on Public Health graduation studies, projecting points of reflection, and the presence of articles with a qualitative approach, which, in different ways, prepare a compact “reflection on the symbolic size of the action of the projects and the complexity of social relationships”, contributing widely to the building of knowledge, breaking the hegemony of a single scientific production model. The reflection expressed here enables us to travel as critical and analytical agent of present-day educational policy and to seek innovative energy, to “legitimize alternative forms of knowledge as well as to dare to walk in the subjectivity of frontiers”. Eliana Goldfarb Cyrino Lecturer, Department of Public Health Botucatu Faculty of Medicine, UNESP Associate Editor of Interface

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Los caminos de la Universidad en un contexto de cambio social Araceli Estebaranz García 1

GARCÍA, A. E. The course of the university in a period of social change, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.9-26, 2003.

In this article, we reflect on the current problems and paradoxes of Higher Education. Also, we present the prospects for improvement in the immediate future. The functions that ought to be part of Higher Education in today’s society are examined, as are the quality demands of a service that increasingly affects a larger number of citizens, and on which social change to a large degree depends. Finally, suggestions concerning teaching methodologies. KEY WORDS: Higher education; social change; teaching methodology. En este artículo se hace una reflexión sobre la problemática actual y las paradojas de la Enseñanza Superior. También se ofrecen perspectivas de mejora para el futuro inmediato. Se analizan las funciones que debe cumplir la Educación Superior en la sociedad de hoy, así como las exigencias de calidad de una formación que afecta cada vez a un mayor número de ciudadanos, y del cual depende en gran medida la transformación de la sociedad a niveles nacionales e internacionales. Más adelante se hacen propuestas didácticas para la innovación en la formación que proporciona. PALABRAS CLAVE: Educación Superior; cambio social; pedagogía universitaria.

1 Catedrática, Departamento de Didáctica y Organización Escolar, Faculdad de Ciencias de la Educación, Universidad de Sevilla. <tebaranz@us.es>

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La Universidad hoy debe servir para formar una amplísima masa crítica de ciudadanos exigentes y capaces de deliberación política circunstanciada, y de miembros activos y participantes en empresas económicas y asociaciones de toda índole que prosperen en un medio institucional exigente. (Pérez, 1995)

Las funciones de la Universidad en el nuevo siglo Voy a comenzar con un breve repaso de las tres grandes etapas que se pueden reconocer en la historia de la Universidad. Alvin Toffler (1996), en su obra La Tercera Ola, reconocía una diferencia de foco y de funciones: Lo que él llama la primera ola, ha sido una época larga, en la que a la Universidad se le encomendó la investigación y difusión de la Ciencia. Era la Universidad de elites. Una institución para minorías, bien dotadas y capacitadas para crear y utilizar, o proponer la utilización de la ciencia. Claramente se le encomendaba la formación de los futuros dirigentes intelectuales de la sociedad. El crecimiento económico, la exigencia de una mayor calificación para una mayor diversidad de puestos de trabajo, y la conquista de la democracia (en España, en la segunda mitad del siglo XX) provoca un cambio en la concepción y en la realidad de la Universidad. La segunda ola se caracteriza por el interés de dar oportunidades a la mayor cantidad de ciudadanos posible de acceder a la cultura, de disfrutar de los más altos grados de educación. Así se llega a conquistar la Universidad de masas, como Institución que potencia la igualdad social. Pero este crecimiento no ha ido acompañado de medidas adecuadas para dar respuesta a esas exigencias de la sociedad, y hoy nos encontramos inmersos en el discurso de la calidad. La cuestión hoy es cómo lograr una Educación Superior de calidad para el mayor número de ciudadanos posible. Y esto supone ir construyendo caminos. La calidad es un camino por hacer. Parafraseando al poeta A. Machado “Caminante no hay camino, sino estelas en la mar”. Y en el mar se pueden trazar todos los caminos que se imaginen, con brújula, o con GPS, que proporcionan orientación. Pero la técnica, que nos sirve para recorrer caminos, no nos los puede imponer. Estamos en la tercera ola de la Universidad (como parte de la tercera ola que estamos viviendo en lo social, cultural, político, económico, tecnológico, científico e ideológico) y, como dice Toffler, “es una gran marea que levanta el mundo, lo asentado, y que está creando un entorno nuevo en el que trabajar, jugar, casarse, criar hijos y jubilarse” (p.10). Es una tercera ola levantada por la Globalización y por el impacto de las Nuevas Tecnologías, que yo no voy a analizar desde el punto de vista económico y sus problemas, pero que indudablemente están generando nuevas relaciones, estilos de vida, modos de comunicación, nuevas formas de nacimiento y de vida, y una conciencia planetaria, pero, con ello también, nuevos problemas, nuevas necesidades y nuevas posibilidades de dar respuesta a problemas que son nuevos. Es decir, que hoy, a causa de la globalización, debemos ser conscientes de que nuestras acciones pueden influir decisivamente sobre el equilibrio ecológico planetario, y por lo tanto,

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sobre la evolución de la sociedad global en su conjunto, y por ello hacen falta unos niveles mayores de formación y de anticipación, para que podamos encontrar antes las soluciones convenientes. Aunque el objetivo es claro. Al menos sabemos dónde queremos llegar: Mayores niveles de educación para todos los ciudadanos que lo deseen y hayan logrado un nivel mínimo de formación necesaria para acceder a estudios superiores. El camino de la equidad es irrenunciable. Pero lo importante no es la cantidad, meta a la que ya sabemos cómo llegar, sino que lo importante es la calidad. ¿Cómo entender la calidad de la Universidad? Nuestro trabajo nace de un conocimiento, comprensión y análisis de los problemas, características, e idiosincrasia de nuestra sociedad cercana, y la propuesta que hacemos está marcada por una especificidad concreta, pero con bastantes relaciones con el contexto general de la enseñanza en España, y de la Universidad española y europea, incluso, en el momento actual, en el que se percibe claramente una necesidad de Reforma profunda, que afecta a la misma identidad de los Estudios Superiores. Y que analizando los textos de la Unesco sobre el tema, vemos que en alguna medida en el ámbito de principios pueden generalizarse, porque se entiende que la calidad del sistema de Educación Superior debe evaluarse según la correspondencia entre lo que la sociedad espere de las instituciones y lo que ellas hacen. Ello requiere visión ética, imparcialidad política, capacidad crítica, y, al mismo tiempo, una mejor articulación con los problemas de la sociedad y del mundo del trabajo, basando las orientaciones a largo plazo en las necesidades y finalidades de la sociedad, incluyendo el respeto a la cultura y la protección ambiental (Unesco, 1998b). Un acercamiento didáctico a la calidad tiene que ver con las funciones que se encomiendan a la Universidad; funciones derivadas de las nuevas necesidades sociales: La custodia y promoción de la cultura. La Universidad es una institución cultural. Una institución para la vivencia cultural. El “conservatorio vivo del patrimonio de la Humanidad” (Delors, 1996, p.153), donde el debate sobre los grandes problemas éticos y científicos actuales cobra todo su sentido (Benedito, 1998), y además es posible por la autonomía que posee, frente a los poderes políticos, económicos, o de otra índole. La Universidad, en primer lugar, debe proporcionar una cultura que se reconoce por un interés por conocer, y un peculiar modo de pensar, normalmente opuesto al utilitarismo, que se enriquece con el debate y el análisis crítico. Desarrollar el saber y difundir el conocimiento, aumentando la base de conocimiento de la sociedad, a través de la investigación básica y aplicada. Es una institución obligada a la investigación, sensible a los problemas de la sociedad para producir el conocimiento que necesita con el fin de progresar hacia mayores niveles de calidad de vida para todos. El conocimiento es un medio de cohesión social, y de profundización en la democracia (Michavila & Calvo, 1998). La Universidad tiene sentido como institución cuyas actividades se destinan al enriquecimiento intelectual, moral y material de la sociedad (Bricall, 2000). Por ello, la necesidad de apertura y permeabilidad a la sociedad. Proporcionar formación profesional a sus alumnos, y facilitar el desarrollo profesional de sus propios profesores y de otros profesionales. Es

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una institución formativa. Y esta formación es necesaria como respuesta a las necesidades sociales y profesionales de la sociedad. Por ello, la Universidad tiene que transformarse, ofrecer no los saberes de siempre, sino los saberes que responden a preguntas. Contribuir a la equidad de la sociedad por la educación de un mayor número de ciudadanos, por más canales, y con diversidad de niveles de formación, y por más tiempo. Debe ser un asunto de Estado. En la sociedad de la información hay que procurar que el conocimiento sea un bien distribuido al alcance de todos. Así se concibe la Universidad como una agencia de educación permanente. Ello ha exigido la diversificación de los estudios de Tercer Ciclo, integrando además de los programas de Doctorado los cursos de Especialización, de Experto y de Master. Proporcionar la oportunidad de desarrollo personal, y como tal, tiene una función de revelación -descubrimiento y desarrollo - de las capacidades individuales. Es una institución de aprendizaje en todos los ámbitos del desarrollo personal. Ello supone que debe buscar los métodos de enseñanza que promuevan el desarrollo de la capacidad de aprendizaje y de construir conocimiento. La cuestión es que puestas en fila las funciones se ven claras. Si se unen en una sola proposición ilusionan: “La universidad debe seguir siendo el templo de la cultura, de la ciencia, de la reflexión intelectual, de la formación humana en su plenitud” (Benedito, 1998, p.51). Conjugar las exigencias de todas ellas es complicado, difícil y costoso. Conjugar cantidad y calidad es un reto. ¿Quién debe asumir el reto?. Es una preocupación general, y debe ser una responsabilidad compartida. Pero hay que tener en cuenta que hay muchas realidades universitarias. Hay diferencia de medios, de recursos humanos (porcentaje de doctores, por ejemplo), de experiencia y conocimiento, de posibilidades de investigación etc. En la encrucijada de caminos: las paradojas de la enseñanza superior Masificación progresiva en la enseñanza superior, pero a la vez, reducción relativa de los recursos económicos materiales y humanos que se les asignan. Cuando estudiamos las relaciones entre Universidad y Sociedad, encontramos una gran demanda del servicio que no va acompañada de los necesarios apoyos del sistema (traducidos en apoyo económico) por parte de los Órganos e instrumentos de vinculación entre Universidad y Sociedad (Consejo Social, particularmente), para todos los objetivos que se encomiendan a la Institución universitaria. Por ello, en nuestro contexto se ve la necesidad de un gran pacto social y político sobre el modelo de financiación.

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Adaptación a nuevas modalidades de empleo pero sin coste, o con el mínimo. Es el caso de nuestra Reforma Curricular realizada fundamentalmente durante los años 1990 y 1991, por la que se crean 133 titulaciones específicas, pero para la implantación de nuevas titulaciones se aprueban fundamentalmente aquellos proyectos de las Universidades que supongan coste cero. Ello quiere decir que lo nuevo tiene que enseñarse con los medios y recursos humanos de que disponemos. Masificación y a la vez mecanismos de exclusión. Las mujeres, que son más en cuanto al número de matricula y de egresados, siguen estando poco representadas en el campo científico y técnico y en el de gestión de la Universidad. Y si imprimen su carácter de más apertura, consenso y acogida, se encuentran con problemas, y a veces con la exclusión. Necesidad de internacionalización frente a la contextualización de la tarea, por otra parte. Así tenemos muy claro que la investigación debe promover la innovación, interdisciplinariedad y transnacionalidad de los proyectos (Unesco, 1998b, Art.7). Pero a la vez se insiste en la importancia del papel que las Universidades locales y nacionales pueden desempeñar en el desarrollo de su país (Delors, 1996). Investigaciones contextualizadas y efectivas, y más donde son más necesarias. Pero la Universidad ya no tiene el monopolio de la investigación. Cada vez más las multinacionales tienen sus propios centros de investigación y formación, y existen cada vez más PYMES especializadas en la investigación y en el desarrollo. Ello supone la necesaria colaboración entre ambas. Ahí surgen los parques científicos y tecnológicos, en los que pueden colaborar las empresas, las universidades, las administraciones regionales o locales. Esto parece una tendencia en alza en los próximos años. Pequeñas sociedades mixtas de investigación y desarrollo, y de formación. Unesco pronostica que en adelante las Universidades podrán ser también accionistas. Esto supone un aumento de la tercera vía de financiación. Ahora estamos en la idea de colaboración por contratos para proyectos con las administraciones públicas o las empresas. Lo cual plantea problemas de tiempo y de recursos, sobre todo humanos. En adelante es preciso la planificación estratégica. Si la Universidad debe investigar para dar respuesta a las necesidades laborales, sociales y morales de la sociedad, hay que invertir en capital humano. No se puede dedicar demasiado tiempo a la enseñanza, a la enseñanza de masas, por parte de jóvenes investigadores, en los mejores años de su producción y creación, sin que se resienta la investigación y la calidad de la vida humana. Nuevas Tecnologías de la Información y la Comunicación - la mayor parte tienen su origen en la investigación científica fundamental llevada a cabo en las Universidades y desarrolladas en ellas o en colaboración con empresas. Pero en la práctica siguen siendo aún poco utilizadas en la educación, o en la formación, y principalmente como complementarias del ambiente de aprendizaje real, y sobre todo en los estudios relativos al Tercer Ciclo. Actualmente se empiezan a impartir asignaturas por el sistema de Teleformación.

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La apertura y la flexibilización de la formación son necesarias pero sigue habiendo una gestión rígida del tiempo del docente a corto plazo. En la sociedad de la información, el paradigma de la enseñanza debe cambiar por el del aprendizaje. El docente pasa a ser autor y administrador del aprendizaje. Pero en la Universidad sigue habiendo demasiada enseñanza y quizá poco aprendizaje. Y en este sentido, sabemos que las Nuevas Tecnologías aportan flexibilidad al aprendizaje y a las tareas de investigación. Por ello, se deberá generalizar en la mayor medida posible la utilización de las Nuevas Tecnologías para reforzar el desarrollo académico, ampliar el acceso, lograr una difusión universal y extender el saber, y facilitar la educación durante toda la vida. Formación ¿general o especializada? Cuando se critica a la Universidad se le pide formación especializada. Pero la Universidad, y sobre todo la de masas, debe proporcionar formación general, plurivalente, aún dentro de las carreras, que ya suponen una cierta especialización. En ese sentido, muchos científicos o especialistas en el campo de las ingenierías y tecnologías reconocen el valor de la formación general, para posteriormente especializarse. Por otra parte, datos de la Unesco indican que el conocimiento queda obsoleto en poco tiempo. Ello abogaría por la necesidad de la formación más general. Pero, además, la Universidad debe proporcionar una mejor orientación a los estudiantes respecto a su futuro laboral, ello supone que es adecuado conservar el carácter pluridimensional de la enseñanza superior, porque da más versatilidad a los titulados para adaptarse al mercado laboral, y para orientarse sobre si trabajar en el mercado, en la industria, en la educación o en la investigación. Y precisamente el tercer ciclo de los estudios universitarios supone la especialización: o para la investigación o para las funciones de responsabilidad en el mercado de trabajo. Una colaboración entre ambos mundos puede y debe ser útil a través de contratos, programas en Facultades y Departamentos, que pueden competir con otras universidades, y determinar el nivel logrado en determinados parámetros de calidad, lo que redundará en la financiación. Los caminos hacia la calidad: la necesaria reconstrucción de la Universidad La situación actual de la Universidad puede considerarse como un proceso de reconstrucción de su identidad para poder adaptarse y transformarse según las necesidades de la sociedad actual (Benedito, 1998). Pero paralelamente la búsqueda de la identidad lleva consigo la necesidad de calidad y de prestigio. Así, el futuro de la Universidad debe resolver algunos retos, como el incremento de la calidad de la enseñanza aún con las dimensiones que tiene la Universidad actual y la futura; la prestación eficiente y eficaz del servicio público de Educación Superior a la sociedad, atención a las demandas de formación de un número creciente de personas de la tercera edad, la búsqueda del equilibrio entre la investigación básica y la aplicada, y recuperar su papel orientador, iluminador y provocador de los cambios sociales, económicos y culturales. Y para ello, necesita afrontar los cambios y las Reformas legislativas necesarias y graduales que hagan posible el logro de

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los objetivos señalados. Podemos señalar algunos principios para orientar el cambio: Profundizar en la equidad. La educación superior seguirá siendo de masas; ha sido una conquista de la democracia, y a causa de la innovación y del progreso tecnológico, las economías exigirán cada vez más competencias profesionales, que requieran un nivel elevado de estudios. Por eso hay más demanda de estudios superiores. A nivel Internacional el Proyecto Marco de Acción Prioritaria para el Cambio y el Desarrollo de la Educación Superior, presentado en la Conferencia Mundial sobre la Educación Superior, celebrada en París del 5 al 9 de octubre de 1998, en su apartado 1.2 (Unesco, 1998a), recomienda a los Estados que se esfuercen por garantizar un nivel de educación superior adecuado a las necesidades actuales de los sectores público y privado de la sociedad…, sobre todo a aquellos países cuyo nivel medio de estudios superiores no alcanza los niveles aceptados internacionalmente. La permeabilidad. Las relaciones entre la Universidad y el mundo social, cultural y laboral, deben ser cada vez más estrechas, porque ambas se beneficiarán. De hecho, se ve a la Universidad como una institución con fines de desarrollo regional. La relación es más apropiada con las realidades más cercanas. Por ello, se pide a las Instituciones de Educación Superior permeabilidad, que posibilite el conocimiento mutuo, la apertura al entorno (a través del diálogo por medio de los representantes sociales en el Consejo Social de la Universidad) y relaciones de colaboración. Se reconoce esta necesidad pero también la dificultad de que se materialice si no cambia la cultura universitaria, desde el polo de lo académico a la colaboración interdisciplinar y a las relaciones entre los investigadores y los usuarios o beneficiarios de la investigación, así como la propia estructura de la Universidad. Cambio en el empleo y cambio de la Universidad: tecnología, saber y empleo La revolución de la información está favoreciendo la mutación de la vida social y del trabajo. La Educación Superior, como la de otros niveles, debe prepararse y preparar para la sociedad del saber, de la información y de la educación, o del aprendizaje. Probablemente la tarea más importante de cualquier sociedad o empresa. De tal manera que la Sociedad de la Información ha llegado a incorporar el concepto de “valor añadido” a las empresas de producción, y a las empresas de formación. El “valor añadido” de las empresas hoy se define en función del saber. Así como la sociedad industrial se orientó hacia el valor producto; la sociedad de la información valora el saber. Las Nuevas Tecnologías han llegado a revalorizar el saber, y el saber conduce a la formación como un valor añadido al mercado globalizado de hoy, de tal manera que las empresas tecnológicas han creado un puesto de trabajo, o incluso Departamento –según el tamaño de la

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menor tasa de desempleo, y además los salarios de los trabajadores con título universitario son más altos. Ello supone que sí hay correspondencia entre necesidades sociales y formación universitaria, y que son rentables los estudios universitarios tanto individualmente considerados como socialmente. El índice de paro de los universitarios de carreras de ciclo corto es menor que el del resto de la población y aún menor el de las carreras de ciclo largo. La estadística muestra que habiendo más universitarios ha subido el empleo de los mismos en los últimos 30 años. Sin embargo, hay un dato de interés: el autoempleo de las mujeres es menor. Por ello, hay empresas de formación empeñadas en orientar la actividad formativa a potenciar la capacidad de iniciativa de las mujeres: a formar mujeres emprendedoras. ¿A qué se debe el índice de mayor empleo de los universitarios? Parece que se debe precisamente a que éstos disponen de una mayor flexibilidad y habilidad para afrontar los cambios que tienen lugar en los sistemas culturales y productivos (Bricall, 2000). Pero la necesaria permeabilidad de la Universidad a los cambios sociales exige adoptar medidas de respuesta, tales como las siguientes: innovación curricular - cambios en los Currículos, atendiendo a los principios de la diversificación curricular (ofrecer nuevas carreras y titulaciones en función de las demandas sociales y profesionales); definir los planes de estudio en función de la orientación profesional de cada titulación (el perfil profesional puede servir de guía para la selección de contenidos, la organización del tipo de prácticas más convenientes (Zabalza, 1999); la flexibilización de los currículos, en función de la propia flexibilidad del mercado laboral y de las profesiones, y del reconocimiento de la capacidad de los estudiantes «dentro de unos límites imprescindibles» para elaborar su propio itinerario formativo; la actualización permanente de los Planes de Estudio (equilibrar una cierta estabilidad con el reajuste de los componentes más variables. Y ello supone la posibilidad de cambiar o «redenominar» las disciplinas en función de los avances científicos en cada campo (Zabalza, 1999); asesoramiento al estudiante (medidas paralelas de ayuda o apoyo para que los estudiantes puedan hacer elecciones responsables y apropiadas a sus expectativas profesionales (Bricall, 2000); la organización colaborativa del Practicum con las empresas o entidades «colaboradoras» (Marcelo & Estebaranz, 1998), para resolver el reto de la falta de formación práctica y de especialización de los graduados universitarios, de los que suele acusarlos la sociedad, en general, y que da lugar a una de las paradojas que vive la Universidad. Por ello, la primera idea a plantear es la necesidad de cooperación entre la Universidad y la empresa pública y privada. Por otra parte, darle sentido al Practicum es una tarea cada vez más exigente. La colaboración con centros de empleo, centros de formación, empresas etc. exige contar con una red estable de centros, con los que se puede ir planificando y darle sentido a cada tarea dentro de un currículum; y profesores de prácticas estables, y enterados e interesados en esta formación, para que no sean únicamente unos créditos que se usan para cubrir el horario de los nuevos profesores, que pueden ser contratados incluso a mitad de curso, o simplemente de aquellos profesores que tienen

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menos carga docente, pero cuyas materias y cuya especialización no tiene ninguna relación con el campo de trabajo en el que sus alumnos deben aprender el sentido de una profesión. Y esto es una cuestión de cultura. De una cultura de la formación universitaria y de la dedicación y orientación del currículum y del trabajo de todos y de la organización; cultura que no existe en la Universidad. Y que por ello, es una cuestión de crear condiciones, de planificación estratégica, y de tiempo. No de tiempo de espera para que sucedan las cosas, sino de tiempo de trabajo para conseguir las cosas que pensamos. La necesidad de planificación estratégica Ello empalma con la necesidad de planificación estratégica. La planificación estratégica supone un análisis de lo que la Universidad debe ofrecer y puede ofrecer con éxito. Dónde poner el foco y qué acciones emprender de manera sincronizada para cumplir su misión. La Planificación estratégica se presenta como herramienta de gestión participativa, que hace posible integrar los cuatro niveles de gestión interna: Universidad, Centro, Departamento y Materia de Enseñanza, anticipándose al futuro y planificando la oferta académica y formativa en torno a prioridades consensuadas, buscando la eficacia y el logro del éxito en la misión de la Universidad, frente a una actuación precipitada como respuesta a demandas del entorno. Y ello exige tener en cuenta el principio siguiente: Gestión democrática: autonomía y participación, y transparencia. El derecho a la Autonomía de la Universidad, supone la posibilidad de «autodisposición de las Universidades frente a los poderes externos (el Estado, la Administración Pública, y otras entidades jurídicas y económicas) que pueden condicionarlas en el cumplimiento de sus funciones: enseñanza, investigación, y formación de profesionales. Sin embargo, el cambio se puede propiciar a través de la participación en los distintos órganos responsables de la gestión y la docencia universitaria (Facultades y Departamentos), y del desarrollo de la investigación. La investigación es el alma de la docencia, y se lleva a cabo a través de los Grupos de Investigación. La participación del alumnado en los órganos de gobierno es un elemento activador importante. Los alumnos son agentes de innovación, por lo que aportan, o por lo que exigen. Deben tener la capacidad de formar Asociaciones culturales, y para ello necesitan medios: espacios para reunirse, tiempos, presupuesto económico, que les llega a través de una partida del presupuesto del Órgano de Gobierno en el que participan. Los estudiantes pueden participar en los órganos orientadores de la Universidad. En la Universidad de la experiencia, en actividades y servicios sociales: por ejemplo, residir con ancianos, con un beneficio mutuo. La labor de los alumnos al servicio de la comunidad (residir y convivir con ancianos) respondiendo a las necesidades de comunicación de este colectivo social, que es independiente pero está necesitado de relación y apoyo humanos, figuran entre los factores que pueden enriquecer la función cultural y social. Son agentes de innovación curricular, siempre que se les permita pensar en qué currículum debe configurar un Plan de Estudios, o en la propia

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Ministerios de Educación de la Unión Europea de 1999 realizada en Bolonia; es un compromiso común de búsqueda de la calidad. Selección y formación pedagógica de los docentes. El concepto de “valor añadido” como el saber disponible en una empresa para afrontar los problemas de producción, mercado y empleo, orienta directamente el problema económico del empleo y el desempleo hacia las empresas de producción del conocimiento que son las Universidades y su funcionalidad. Y ello conduce directamente a los profesionales de la producción del conocimiento y de la formación: los profesores. Si la Universidad es una institución formativa debe tener especialistas en formación: los profesores. Y lógicamente deben pasar un periodo de formación inicial, un periodo de iniciación a la docencia y un periodo largo, permanente, de desarrollo profesional específico, que puede realizarse de forma colaborativa entre principiantes y mentores, o entre colegas analizando la propia la enseñanza en grupo, porque quien enseña a enseñar aprende a enseñar mejor. Los profesores principiantes tienen especial necesidad de aprendizaje de la enseñanza y de apoyo. Mayor & Sánchez (1998) concretan la posibilidad de apoyo a través de la figura del mentor en dos sentidos: en la dimensión de contenido como apoyo al aprendizaje de la tarea de enseñar, y como apoyo personal para la responsabilidad de la enseñanza como colega, o como parte integrante de un equipo. Lo cual es importante si ha de darse una coherencia a la formación. Dos tareas señalan como principalmente formativas, dentro de un marco de supervisión, que definen cómo trabajar con profesores para mejorar su enseñanza: la reflexión sobre las cuestiones de planificación, metodología, gestión de clase, motivación, aprendizaje etc. y la discusión sobre la forma de trabajar y de desarrollar la práctica y sus resultados. Desarrollo profesional. Si la práctica docente no se analiza, se rutiniza. Si los conocimientos didácticos que se poseen no se cuestionan y no se aprende nada nuevo, la enseñanza se desprofesionaliza (Fernández Pérez, 1998). Si además, sabemos que los métodos que utilizan los profesores son los que se han aplicado en su enseñanza y en su aprendizaje, quiere decir que va a haber necesidad de aprender de otra manera, de entrar en otro tipo de aprendizajes a los ya conocidos, para poder empezar a cambiar la enseñanza. El desarrollo profesional y los programas de formación permanente son necesarios, e inevitables como programas de innovación para responder a los cambios en los que nos vemos inmersos sin buscarlos. Quizá los más generalizados son los cursos de duración breve o larga, los seminarios o grupos de trabajo permanente (de un a tres años); los grupos de innovación, en algunos casos son proyectos de innovación en la enseñanza que no implican a grupos de profesores sino a un solo profesor, que puede implicar a muy pocos alumnos; programas de intercambio entre países, como Intercampus etc.; y por supuesto, la formación a distancia. Pero la mejora de la Universidad no se conseguirá con la mejora de los profesores como individuos aislados, lo cual es importante, sino como miembros de una institución con una tarea valiosa que es la formación superior de los ciudadanos y profesionales de un país.

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inversión inicial es importante. Deben ser de buena calidad, y de última producción. O se queda obsoleta inmediatamente la formación que proporcionan. Una cultura de rendición de cuentas, evaluación y regulación. Pero el trabajo a largo plazo de la Universidad, hace más difícil la evaluación de su impacto. Evaluación como instrumento de calidad La evaluación es un requisito y una medida de las que primero se han adoptado. Evidentemente, para mejorar hace falta saber qué ocurre. Pero también por razones de interés de política internacional muy influenciada por el ámbito económico. En Europa la aspiración al mercado único de las profesiones obliga a la certificación de la formación y a la homologación de los títulos, que responda a la pregunta, por ejemplo, sobre ¿Qué sabe un ingeniero químico y qué sabe hacer? Lo haya cursado donde lo haya cursado. Ello tiene que ver con la evaluación de los alumnos. Sin embargo, en estos momentos, hay otros campos sometidos a evaluación en educación superior, como los profesores, la investigación y la gestión, como efecto de la propuesta de evaluación de la calidad total, derivada del modelo empresarial, y sobre los que haremos alguna reflexión. La evaluación del profesorado universitario La Evaluación en la Universidad ha comenzado siendo, en primer lugar, evaluación del profesorado (Art. 45.3 de la Ley de Reforma Universitaria), más tarde considerada como evaluación de la calidad de la docencia. De hecho, la evaluación de la calidad de la enseñanza en nuestros Estatutos está regulada por la Comisión de Docencia, un instrumento de control y de poder de los alumnos, que no se ha investigado hasta qué punto tiene relación con la evaluación de la calidad, y desde luego no sabemos qué relación tiene con la mejora de la calidad de la enseñanza. Aunque en algunos contextos la Comisión de Docencia del más alto nivel haya tomado alguna conciencia de la necesidad de unir la preocupación por la formación del profesorado junto a la de dar respuesta administrativa a las denuncias de los alumnos por cuestión de calificaciones. Hay tres argumentos que avalan la evaluación de los profesores individualmente considerados: en primer lugar, el rendimiento de cuentas ya que el profesor está contratado para un servicio que debe ser útil y provechoso; en segundo lugar, la promoción, que debe tener en cuenta su competencia y su eficacia docente; y en tercer lugar, la mejora: la evaluación es un instrumento que debe proporcionar conocimiento sobre las fortalezas y las debilidades de un sistema, en este caso de enseñanza, del cual deben derivar las propuestas de cambio. De Miguel (1998), desde un enfoque más bien técnico, ha propuesto algunos criterios para la evaluación del profesorado: productividad; competencia docente; excelencia y desarrollo profesional. La evaluación institucional de la Universidad En la actualidad, ha ido evolucionando el concepto de calidad y la

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LOS CAMINOS DE LA UNIVERSIDAD

necesidad de evaluación de la calidad, percibiéndose la necesidad de que abarque a la institución. Por eso, evaluación institucional. ¿Cuáles son las razones? La misma autonomía. Un servicio público autónomo en una sociedad democrática, debe rendir cuentas a la sociedad que recibe sus servicios, y a la Administración que lo crea y lo financia. La Universidad debe rendir cuentas sobre qué hace, y cómo, y esto es un deber moral e intelectual, no sólo legal (Rodríguez Espinar, 1998). Pero, además, hay otros argumentos: la expansión del sistema de enseñanza superior ha puesto de manifiesto sus debilidades; los altos costes son una presión hacia la eficiencia; la sociedad exige más aportaciones al desarrollo nacional; la internacionalización de la producción y de la formación superior reclaman niveles de calidad contrastados y contrastables; el derecho de los usuarios a conocer la calidad de la institución en la que se forma o desea formarse; “la naturaleza de las funciones y actividades de las instituciones universitarias reclama la existencia de procesos internos y externos de evaluación como procedimiento para garantizar la pertinencia, eficacia y eficiencia de las mismas” (Rodriguez Espinar, 1998, p.8). Desde un punto de vista didáctico la evaluación está íntimamente ligada a la calidad como a todo proceso de enseñanza. No se puede planificar sin evaluar, no se pueden hacer planes de mejora de la calidad sin evaluar ésta. Un modelo de evaluación institucional, respecto a la metodología, creo que debe integrar la Evaluación Interna (Comité responsable de la evaluación interna), con la Evaluación Externa (Comité externo de evaluación), que desemboca en un Informe síntesis de ambos estudios, el cual debe ser sometido a una metaevaluación con el fin de valorar el propio informe, y a partir de ahí hacer las propuestas de mejora, que deberán ser seguidas por un plan de evaluación continua de las mejoras adoptadas. Por otra parte, dos criterios complementan la evaluación: Publicidad y participación (Plan Nacional de Evaluación de la Calidad de las Universidades). La calidad de la investigación La investigación es un motor de calidad. Pero como es una función universitaria, afecta a la calidad de la institución universitaria. Por ello, es preciso evaluar y mejorar la calidad de la investigación que produce y a su impacto. Previamente, es preciso poder investigar, y ello requiere recursos humanos, temporales y financieros. En la OCDE el promedio de gasto en investigación es del 2.2% del PIB (en 1997), en España el 0,86%. Pero de ello, el 52,4% en España correspondió a las Administraciones Públicas, cuando en la OCDE el promedio fue del 33,8% Supuesto todo ello, hay problemas que solucionar, porque la búsqueda de recursos y la justificación de los mismos no puede ser tarea de los que tienen que hacer la investigación, la calidad de la misma puede valorarse en relación con algunos criterios: a) La respuesta a los problemas de la sociedad (los problemas de la sociedad son sus problemas de investigación. La calidad de la investigación exige la formación de investigadores, no sólo la evaluación. Este es un campo forzosamente de trabajo en equipo, de formación en equipo, y de

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colaboración con otros equipos; también interdisciplinar. Pero los problemas son teóricos y de la realidad, y hay que trabajar con los que viven en otras realidades que la universitaria). Desde el punto de vista del trabajo, hay que pensar en la producción de conocimiento orientado a las necesidades de producción de las empresas. Ello supone estudiar las demandas y la prospección de demandas del mercado de trabajo, y organizar la investigación aplicada y la formación en esa línea de futuro; aunque no sólo eso. Los sistemas de educación superior deberían aumentar su capacidad para vivir en medio de la incertidumbre, para transformarse y provocar el cambio, para atender a las necesidades sociales y fomentar la solidaridad y la igualdad, preservar el rigor y la originalidad científicos con espíritu imparcial, como requisito para la calidad. b) Los resultados de la investigación solucionan problemas, o se utilizan para buscar las soluciones oportunas. Es decir, qué nivel de impacto tiene la investigación en el conocimiento y en la realidad. c) Se integra en las orientaciones y políticas de la Unión Europea y de la colaboración internacional, respecto a la búsqueda de la innovación en distintos campos de la actividad humana; también en la formación, y específicamente en todo lo relacionado con la necesidad de potenciar la cohesión social y el uso de las Tecnologías de la Información y la Comunicación, por su potencial para promover el aprendizaje a lo largo de toda la vida (Comisión de las Comunidades Europeas, 2000). d) Supone la iniciativa en la investigación básica y la prospectiva en el planteamiento de nuevos problemas, nuevas formas de investigar, de definir y entender las realidades. La Universidad puede ofrecer la sabiduría del distanciamiento de los fenómenos y de las apariencias, su capacidad de previsión, y su interés por el largo plazo, su afán por la universalidad del conocimiento y la justicia para el desarrollo de un mundo más armonioso. e) Se realiza en equipo integrando los saberes y técnicas de distintos profesionales y distintas áreas de conocimiento. f) La evaluación externa por expertos debería enfocarse no sólo a efectos de reconocimiento curricular y económico, sino también a efectos de mejora. Ello supone información sobre criterios utilizados que pueden orientar los pasos siguientes en el trabajo de investigación. Para finalizar, aprovechamos la recomendación de la UNESCO para una mejora de la Educación superior: La colaboración y las alianzas entre las partes interesadas (los responsables de las políticas nacionales e institucionales, el personal docente, los investigadores y estudiantes y el personal administrativo y técnico de los establecimientos de enseñanza superior, el mundo laboral y los grupos comunitarios) constituyen un factor importante a la hora de realizar transformaciones. Las organizaciones no gubernamentales son también agentes clave en este proceso. Por consiguiente, la asociación basada en el interés común, el respeto mutuo y la credibilidad deberá ser una modalidad esencial para renovar la enseñanza superior. (Unesco, 1998c, p.14)

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GARCÍA, A. E.

LUXÁN, J.M. (Ed.). Política y reforma universitaria. Barcelona: CEDECS, 1998. p.131-58. SÁENZ BARRIO, O. La universidad del siglo XXI. Un reto a la postmodernidad. In: MARTÍN-MORENO CERRILLO, Q.; MONCLÚS ESTELLA, A.; MEDINA RIVILLA, A.; DOMÍNGUEZ FERNÁNDEZ, G. (Coords.) CONGRESO INTERUNIVERSITARIO DE ORGANIZACIÓN DE INSTITUCIONES EDUCATIVAS: LAS ORGANIZACIONES ANTE LOS RETOS EDUCATIVOS DEL SIGLO XXI, 5., 1998, Madrid. Resumenes... Madrid: Departamento de Didáctica y Organización Escolar, 1998, p.751-70. TOFFLER, A. La tercera ola. Barcelona: Plaza y Janés, 1996. UNESCO. Proyecto de Marco de Acción Prioritaria para el Cambio y el Desarrollo de la Educación Superior. In: CONFERENCIA MUNDIAL SOBRE LA EDUCACIÓN SUPERIOR, 1998, Paris. Documento de Trabajo... Paris, 1998a. UNESCO. La educación superior en el siglo XXI. Visión y acción. In: CONFERENCIA MUNDIAL SOBRE LA EDUCACIÓN SUPERIOR, 1998, Paris. Documento de Trabajo... Paris, 1998b. UNESCO. La educación superior en el siglo XXI. Visión y acción. Hacia un programa 21 para la educación superior. In: CONFERENCIA MUNDIAL SOBRE LA EDUCACIÓN SUPERIOR, 1998, Paris. Documento de Trabajo... Paris, 1998c. ZABALZA, M. A. Los planes de estudio en la universidad. Algunas reflexiones para el cambio. Fuentes, n.1, p.27-68, 1999.

GARCÍA, A. E. Os caminhos da universidade em um contexto de mudança social, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.9-26, 2003. Neste artigo faz-se uma reflexão sobre a problemática atual e os paradoxos da Educação Superior e apresentam-se perspectivas de aperfeiçoamento para um futuro imediato. Analisam-se as funções que a Educação Superior deve cumprir na sociedade atual, assim como as exigências de qualidade de uma formação que afeta um número cada vez maior de cidadãos, e da qual depende, em grande medida, a transformação social. Finalmente, são feitas propostas didático-pedagógicas para uma formação inovadora na Universidade. PALAVRAS-CHAVE: Educação superior; mudança social; Pedagogia universitária.

Recebido para publicação em 20/08/01. Aprovado para publicação em 05/06/03.

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A mudança no discurso educacional das ONGS/AIDS no Brasil: concepções e desdobramentos práticos (1985-1998)

João Bôsco Hora Góis 1

GÓIS, J. B. H. The change in the NGOS/AIDS educational speech in Brazil: conceptions and practical results (1985 –1998), Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.27-44, 2003.

This article examines the main statements and conceptions present in the educational speech produced by the Brazilian AIDS Non Governmental Organizations - ASOs and examines how these speechs influenced the production of intervention projects. The paper identifies two main interconnected phases in such speechs: the universalist and the convergent ones. Without denying the importance of the work of the ASOs, the article asserts that their use of the conception of reason sometimes led them to use simplistic and punitive forms of intervention. KEY WORDS: Education; Health; AIDS; Non-Governmental Organizations.

Este artigo examina as principais concepções contidas nos discursos educacionais das Organizações NãoGovernamentais de Luta Contra a AIDS brasileiras (1985-1998) e analisa como tais discursos incidiram na elaboração de projetos de intervenção. O trabalho indica a existência de duas fases principais do discurso (universalista e focalista) e salienta o intercâmbio de características entre uma e outra. Sem negar a relevância do trabalho das ONGs/AIDS, conclui-se que a adesão acrítica à noção de razão levou essas organizações muitas vezes à elaboração de modelos analíticos e interventivos simplistas e punitivos. PALAVRAS-CHAVE: Educação; Saúde; AIDS; Organizações Não-Governamentais.

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Professor Adjunto, Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense; Pesquisador do CNPq. <jbhg@uol.com.br>

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GÓIS, J. B. H.

Introdução Em torno da epidemia de AIDS foram travados inúmeros debates acerca da sua origem, da identidade sócio-sexual e racial dos seus atingidos e das medidas a serem tomadas para sua superação. Tais debates, particularmente nos anos iniciais da década de 1980, conduziram à criação de uma série de representações que estabeleceram a divisão entre os já infectados em vítimas-culpadas e vítimas-inocentes, indicaram aqueles com maior probabilidade de virem a contrair o vírus e sinalizaram quem eram os responsáveis pela introdução e expansão da AIDS no solo brasileiro (Parker, 1994). Nesse contexto, grupos que já eram historicamente objeto de discriminação e preconceito - homossexuais, negros, prostitutas, dentre outros - tornaram-se alvos fáceis de culpabilidade. Para a difusão dessas representações em muito colaboraram as diferentes organizações da mídia. A partir delas foram construídas imagens preconceituosas sobre a doença e o doente que modelaram muitas das respostas à epidemia e geraram uma sub-epidemia conexa: a do medo, da violência e do desespero (Neto, 1999). A este complexo contexto adicionava-se ainda o descaso governamental para com os perigos reais e potenciais da AIDS, o que levou ao atraso no lançamento de ações globais de vigilância sanitária, assistenciais e educacionais que pudessem impedir sua expansão (Camargo Jr, 1999). Muito em conseqüência disso, a doença alastrou-se e agressivamente atingiu os setores mais marginalizados da população brasileira. É dentro desse contexto de crescimento da epidemia, falta de ação governamental e expansão de discursos preconceituosos pela mídia, que foram construídas as nossas organizações não-governamentais de luta contra a AIDS - ONGs/AIDS (Altman, 1995; Góis, 1998; 1999; 2000a). Tais organizações opuseram-se às formas de intervenção discriminatórias e segregacionistas e buscaram produzir uma linguagem descritiva da epidemia que não fosse fundada no preconceito e no desejo de criar novas divisões sociais. Para fazê-lo, entraram em confronto direto com segmentos conservadores detentores de grande poder. No que pode ser descrita como uma prolongada batalha político-cultural contra tais segmentos, essas organizações implementaram um conjunto de ações de enfrentamento à epidemia no qual, em par com retórica da solidariedade, a educação assumiu um papel fundamental. É o exame dos discursos e das ações educacionais defendidas por elas entre os anos de 1985 e 1998 que constitui a matéria examinada neste artigo2. Ao fazê-lo, tento contribuir para o re-exame de práticas educativas que, nos marcos atuais da expansão da epidemia de AIDS, perfazem uma das mais concretas esperanças de sobrevivência para uma enormidade de indivíduos em situação de maior vulnerabilidade ao HIV. Dois tempos dos discursos e ações educacionais das ONGs/AIDS Apoiadas nas descobertas científicas que determinavam a natureza biológica da AIDS e demarcavam os mecanismos de infecção (Erni, 1994) (a troca de determinados fluídos corporais), as ONGs/AIDS recusaram-se a apoiar quaisquer propostas de controle da epidemia que não fossem formuladas exclusivamente a partir desses dados. Desta forma, elas combateram

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Embora a análise aqui realizada faça mais referências às ONGs/AIDS e ao contexto do Rio de Janeiro, ela parece válida, no geral, para as experiências educacionais levadas a cabo em outros Estados. Isto porque as inúmeras divergências entre as ONGs/AIDS não impediram que ao longo dos anos se consolidasse um discurso educacional que não mais exibiria variações em torno dos seus princípios básicos e que, portanto, passou a apresentar-se como discurso oficial.

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A MUDANÇA NO DISCURSO EDUCACIONAL DAS ONGS/AIDS...

3 Esta análise, porque centrada na questão da transmissão do HIV através do contato sexual, não se refere diretamente à atuação das ONGs/ AIDS na esfera da transmissão vertical ou da AIDS transfusional, por exemplo.

inúmeras alternativas vistas por alguns setores médicos, leigos e religiosos como positivas para o controle da epidemia - por exemplo, a redução de parceiros, a monogamia e, no limite, a abstinência - pelo que tais propostas continham de associação entre a infecção pelo HIV e condutas morais supostamente reprováveis. Ao assumir esta postura, tais organizações buscavam reafirmar que, mesmo em tempos de AIDS, as nossas vidas sóciosexuais poderiam permanecer como antes e que as medidas de luta contra a doença a serem desenvolvidas deveriam pautar-se pelo respeito a esta posição. Dentro deste quadro de percepções, a educação para a AIDS proposta pelas ONGs erigiu-se como uma medida de controle sanitário que contemplava em seu interior a defesa de um princípio político – o da liberdade das múltiplas expressões do desejo sexual. Em função disto elas concentraram suas expectativas de controle da epidemia e desenvolveram muito de suas práticas educativas em torno do então único elemento conhecido capaz de servir de barreira à troca de fluidos corporais potencialmente infectados entre um corpo e outro: a camisinha masculina.3 Para fins expositivos agrupo tais práticas e as idéias que lhes são subjacentes em duas fases, ambas discutidas nas próximas seções. A fase campanhista e a ênfase na informação No Brasil, ações no sentido do estímulo ao uso da camisinha, mesmo que tímidas, foram levadas a cabo já em 1983. Grupos gays de São Paulo e da Bahia, por exemplo, incorporaram tal orientação às suas propostas educacionais e tentaram difundi-la. A confirmação, em 1984, de que a doença era causada por um vírus específico fortaleceu o pressuposto de que seu uso generalizado era a alternativa mais viável do ponto de vista sanitário e mais avançada do ponto de vista político. Em 1987, o presidente do Grupo Gay da Bahia, Luís Mott, declarava a vitória do condom sobre os preconceitos e a sua afirmação como personagem central do cenário sexual brasileiro dos anos oitenta do século XX. Servindo-se de um grande número de fontes jornalísticas, Mott assegurava que o condom superara o status de objeto obscuro e o apresentava como elemento capaz de nos livrar do mal do século. Muito do seu otimismo assentava-se no aumento radical do consumo após as primeiras campanhas de divulgação. Dizia ele: Pesquisas recentes comprovam que também aqui cresce dia-a-dia o uso dos preservativos. À pergunta ‘você passou a usar preservativos em suas relações sexuais por causa da AIDS?’, em dezembro de 85, 6% responderam ‘sim’, elevando-se para 27% as respostas positivas em fevereiro de 87 – todos os jovens entre 15 e 25 anos. A mesma questão foi colocada para homens adultos, homossexuais e bissexuais: em dezembro de 85, 17% responderam ‘sim’, elevando-se para 49% quatorze meses depois, comprovando-se que os chamados ‘grupos de risco’ têm manifestado maior cuidado profilático do que a população em geral. Pesquisas de opinião em farmácias e estabelecimentos comerciais comprovam que as mulheres brasileiras, como as norteamericanas, tornaram-se cada vez mais, também elas, compradoras e divulgadoras do uso da camisinha. (…) (Mott, 1987, p.36)

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Uma vez atingido este estágio de conhecimento e certezas, as ONGs/AIDS concentraram muito dos seus esforços em ações que pudessem contribuir para a universalização do acesso ao preservativo de borracha e na implementação de campanhas informativas capazes de difundir sua importância. Nesse contexto, elas construíram o diagnóstico de que a expansão da epidemia residia em grande medida nas características (superficialidade, principalmente) e volume (pequeno) da informação disponibilizada pelas agências governamentais. Elas também destacavam que o tipo de informação disponibilizada pelo Estado, além de reforçar percepções equivocadas, produzia mudanças negativas na experimentação social da doença, tornando-a mais dolorosa e letal. Outrossim, diziam que tal informação criava as condições necessárias para a expansão do curandeirismo, para a consolidação de uma ciência arrogante e para a difusão do medo o qual, a seu turno, produzia a clandestinização do doente. Sobre tal obscurantismo, propunham as ONGs/AIDS, o conhecimento crítico deveria lançar novas luzes. Assim, a informação era vista como um valor político, como uma alavanca de libertação e, principalmente, como fator democratizante. Informação assumia, antes de tudo, o papel de agente salvador: quanto mais rápido ela e o condom chegassem a uma pessoa, menor seria a probabilidade da sua infecção. Daí porque se dizia “que devem [deveriam] ser produzidas verdadeiras maratonas de informação, programas de horas, em horário nobre, onde se forneçam [fornecessem] os dados necessários para que cada um entenda e decida” (ABIA, 1988, p.3). A partir dessa pressuposição desenvolveu-se em ritmo e caráter campanhista a maior parte da educação anti-AIDS crítica em diversas cidades do país naquele período. As ONGs/AIDS foram às massas e desencadearam um amplo processo de transmissão indiferenciada de informações para toda a população, visto por elas, uma vez superadas as tecnicalidades postas pela ciência e utilizadas uma linguagem popular, como uma tarefa de fácil execução. Nesse contexto, a campanha para a divulgação do condom era expressão e, ao mesmo tempo, transmitia uma crença constituída de três componentes. O componente político informava que sexo era uma atividade saudável e prazerosa que não deveria ser abandonada. Do ponto de vista psicológico, anunciava-se que uma vez já conhecidos os mecanismos de transmissão, o pânico deveria ceder lugar a uma convivência menos tensa com a doença já que o seu evitar dependeria, e este é o componente sanitário, de se usar o condom a cada relação sexual, não importando onde ou com quem. Com isto, supunha-se, estaria assegurada a manutenção de princípios políticos libertários e a saúde (sexual) do povo. Mas o que fazer diante dos inúmeros problemas apresentados pelos preservativos enquanto unidades materiais? Ou seja, como lidar com os recorrentes relatos de falhas de funcionamento associadas a defeitos de fabricação e ineficácia abaixo dos 100% supostos pela lógica do discurso educacional das ONGs/AIDS? Em outros termos, como lidar com as dúvidas sobre a questão da eficácia do preservativo como forma de prevenção das

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FLÁVIO DE CARVALHO, O futuro se repete no passado, n.1, 2000

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A MUDANÇA NO DISCURSO EDUCACIONAL DAS ONGS/AIDS...

4 Neste artigo os termos educação e pedagogia anti-AIDS, embora possuam sentidos semelhantes, não são intercambiáveis. A educação anti-AIDS é entendida como o ensino da alteração/ eliminação de práticas que podem conduzir à infecção pelo HIV. Já a pedagogia anti-AIDS, incorporando as práticas educativas, assume uma dimensão maior no que toca aos conteúdos que quer ensinar e, com efeito, só pode ser plenamente entendida quando vista nos leitos do processo civilizador na acepção que esse termo assume na obra de Elias (1994).

doenças sexualmente transmissíveis em geral e do HIV em particular? A depender da amostra e dos procedimentos de análise, as pesquisas indicavam diferentes níveis de eficiência. Falhas decorriam tanto do uso inadequado, como das características inapropriadas para certas atividades sexuais. Esses números constituíam a indicação mais precisa de que, hetero-, homo- e bissexuais não estavam totalmente protegidos do vírus com uso do condom. Em muitos casos, os estudos relataram, as falhas mecânicas conduziram ou à gravidez indesejada, ou à infecção ou a ambos. Tornando a situação ainda mais complexa, diversos alertas sugeriram que o problema não estava situado apenas nas deficiências do condom enquanto unidade material. Ao lado disso, vários estudos, desde o final dos anos oitenta e por toda a década de 1990, indicaram que a manutenção de um regime sexual no qual os preservativos de borracha fossem sempre um componente presente constituía uma pretensão infundada (Dean & Meyer, 1995). No lastro otimista em que a campanha do condom defendida pelas ONGs/AIDS se dava, contudo, essas discussões assumiram uma importância secundária…ou nenhuma. A necessidade de manter a coerência entre a mensagem política e a mensagem sanitária determinou que a reflexão sobre essas problemáticas fosse relegada a segundo plano. Sua importação para o terreno central do debate, em um momento de agressivos ataques de dados segmentos conservadores, poderia por em causa a confiança não somente no preservativo de borracha, como também na inteira pedagogia que começava a ser construída4. Assim, em vez de proceder a uma ampla avaliação dessas questões, preferiu-se insistir que os problemas de adesão à nova ordem erótica estavam relacionados ao campo político- econômico: “Os problemas da camisinha são outros: em primeiro lugar é cara e nem sempre está disponível. Devemos lutar para que o governo controle qualidade e preço e a torne acessível para toda a população” (Abia, 1997a, s/p), asseverava a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS - ABIA já no final dos anos de 1990. Outrossim, persistiu-se na afirmação – apesar das indicações epidemiológicas em contrário - de que determinados grupos haviam incorporado definitivamente o condom ao seu cotidiano. Análises pouco fundamentadas de que as prostitutas, por exemplo, “aprenderam o uso correto do preservativo e não somente o usam para a sua segurança como para a segurança dos clientes” (Pim, 1994), conduziram a níveis de certeza confortadores. Daí porque a resposta da pedagogia ao fenômeno da inconsistência no uso do condom foi o aumento do esforço de sua erotização - uma perspectiva presente até hoje. Como ressalta uma brochura educativa do final dos anos 90, “A camisinha (…) pode introduzir uma nova brincadeira na transa e trazer mais consciência para os parceiros sobre o sexo, porque os leva a falar sobre o assunto” (Abia, 1997a, s/p). O intuito era mostrar que, ao contrário das afirmações então correntes sobre a perda do prazer sexual causada pelo intruso de látex, o condom poderia ser, uma vez objeto de marketing positivo e explicadas as formas de utilizá-lo, facilmente inserido no menu de opções eróticas do povo brasileiro. Mais do que isso, sugeria-se que ele poderia tornar mais prazerosas aquelas já em uso. Esta é, sem dúvida, uma perspectiva que avançou pelos anos 90,

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constituindo uma peça central dos instrumentos e técnicas da pedagogia crítica anti-AIDS. No âmbito deste esforço a camisinha ganhou nomes; tentou-se popularizá-la aproximando-a do cotidiano do cidadão comum. Ela passou a ser sugerida como peça obrigatória do vestuário masculino e feminino e sinal de uma nova etiqueta sexual. Não carregar sempre um preservativo de borracha passou a ser deselegante. Além disso, a pedagogia, muito ambiciosamente, esforçava-se em produzir uma redescrição e ressignificação dos atos sexuais de homens e mulheres. Em tal tentativa, buscava-se estimular a substituição de antigas práticas sexuais por outras novas ou a agregação de diferentes itens ao menu sexual. Intimidade ali ganhou novos sentidos, deslocando-se a centralidade do sexo penianovaginal ou anal e enfatizando-se o valor erótico do olhar, dos toques, das carícias e, no limite, do abraço fraterno. Vistas como formas de sexo mais que seguro, essas práticas foram postas no mesmo patamar erótico das suas predecessoras arriscadas. Esta abordagem tomava como certa a possibilidade de, por meio do ensino, vencer a epidemia pela conversão de sexo comum agora tornado perigoso em sexo seguro, tornado, por sua vez, sexo sanitário e oficial. Mais profundamente, assumia que se trabalhava com uma população cujos déficits emocionais a afastava de um tipo e volume de comunicação que levasse ao diálogo entre parceiros necessário à plena implantação do novo regime sexual. Por meio de palestras e workshops, supunha-se que tais déficits poderiam ser superados. Essas suposições organizaram-se em torno do princípio analítico que modelou muito da pedagogia anti-AIDS crítica durante toda essa fase e que se projetou nos anos seguintes: a certeza de que o comportamento de saúde inadequado residia na ignorância individual expressa no comportamento sexual inseguro, cuja superação dependia da maior expansão da informação até então negada ou mal-distribuída pelo governo. Uma vez possuída, a informação levaria ao desejo e à efetivação da mudança comportamental. Centrada na idéia de responsabilidade individual, a estratégia campanhista-informacionista manteve-se fiel à tradição punitiva que com freqüência a acompanha. No Brasil, o rigor da nova etiqueta sexual levou ao silêncio (e à mentira) dezenas, centenas e milhares de indivíduos que vez por outra (ou freqüentemente) saíam do figurino. A interdição da possibilidade de afirmar a incapacidade de aderir plenamente a tal etiqueta e de, a partir disso, buscar outras formas de proteção; a repressão de desejos; a expansão de tensões emocionais; a sensação de incapacidade individual e os sentimentos de culpa por uma eventual infecção foram, certamente, os produtos principais, mas não os únicos, derivados do traço coercitivo dessa estratégia. A ação saneadora do tempo, com diferentes graus de sucesso, mostrou a necessidade de mudanças e de reconhecimento dos limites dos métodos de intervenção prevalecentes. Apesar do extremo esforço posto por diversos setores envolvidos na luta anti-AIDS pela preservação da pedagogia em questão, a percepção crescente na falibilidade do condom não a deixou completamente ilesa. Aqui, e mundo a fora, o discurso do sexo seguro (safe sex) teve de acrescentar mais uma palavra (e a depender da língua, uma

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A MUDANÇA NO DISCURSO EDUCACIONAL DAS ONGS/AIDS...

letra) ao seu vocabulário. Em tempos de AIDS, o sexo correto foi muitas vezes denominado de seguro (safe), mas em muitas outras, pelas entidades e pessoas envolvidas, foi também chamado de mais seguro (safer sex). Em outros termos, significou que a idéia de tornar o uso da camisinha uma norma cultural à qual todos adeririam sempre e indefinidamente era uma proposta que precisava ser re-estruturada, admitindo-se que mesmo seu uso contínuo não conferia total segurança contra a infecção. Significou também que se fazia necessário repensar as estratégias de intervenção vigentes. Novas propostas e perspectivas pediam passagem. A fase focalista e a busca das especificidades grupais A chegada dos anos de 1990 jogou novas luzes nas idéias sobre educação contra a AIDS e sugeriu diferentes pautas interventivas. A perspectiva campanhista e seus pressupostos continuaram firmes, mas dividindo a posição de estratégia privilegiada com a intervenção mais dirigida a grupos específicos que até então era residual ou secundária. Isso foi conseqüência também, em grande parte, das mudanças nos modos de financiamento da ação anti-AIDS no mundo, em especial a exigência das charities do hemisfério norte - fontes essenciais de apoio às nossas ONGs - de que as solicitações de recursos fossem feitas a partir de definições bem claras no que dizem respeito às populações-alvo, aos métodos de ação e às possibilidades de avaliação de resultados (Durão, 1995). Desta forma, a partir de 1990, a perspectiva de intervenção mediante projetos bem demarcados de atuação com uma clientela específica passou a definir o modus operandi da pedagogia crítica anti-AIDS. A informação continuou sendo um elemento imprescindível; mas não era mais equalizada ao todo do trabalho educativo/preventivo, além do que ganhou uma maior sofisticação intelectual. Ativistas afirmavam, por exemplo, que ‘Prevenção’ já não é um conceito genérico e abstrato (…) nem se resume a difundir informação pré-fabricada: há que fazer chegar esta informação às diversas populações sob formas interativas e motivantes. Programas específicos destinados a jovens, crianças, adultos, mulheres, homens, homossexuais, bissexuais, heterossexuais, profissionais da saúde, profissionais do sexo, donas de casa, motoristas de caminhão, usuários de drogas, e muitas outras categorias apresentadas. A informação não é homogênea nem existem receitas: a melhor receita é criar cada programa com a participação da população, respeitando, porém, o princípio da informação clara e frontal. (Bastos, 1993, p.2)

Nesse período, sexo e sexualidade eram vistos menos como atos unitários nos quais pudessem ser facilmente inseridos uma técnica erótica – o sexo mais seguro – e um instrumento de prevenção – a camisinha. Inversamente, ambos passaram a ser teorizados a partir de uma pluralidade de olhares que, além de visualizar as questões políticas mais amplas ali presentes, dedicavam-se também à apreciação da dinâmica dos micro poderes contidos nas relações afetivas e seu papel na estruturação de

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comportamentos de risco. Em função disso, os temas da negociação, das relações de gênero, da auto-estima e das emoções em geral ganharam maior relevância e as intervenções passaram a incidir mais na modificação dos cenários sócio-culturais onde os atos sexuais se dão. Isto só foi possível, graças à reorganização do quadro analítico mais amplo por onde se moviam os raciocínios sobre o processo de educação e saúde no campo da AIDS. O paradigma da vulnerabilidade social Tal reorganização se deu no corpo de um esforço internacional de compreender a contínua expansão da epidemia em áreas e grupos humanos até então pouco atingidos e de avaliar os impactos reais das atividades antiAIDS desenvolvidas até então. Uma das principais conclusões desse esforço foi o amplo reconhecimento dos limites e mesmo do fracasso das políticas de disseminação em massa de informação e do simplismo das idéias educacionais nelas contidas. Tal esforço identificou também que estratégias mais elaboradas tiveram maior sucesso, sem no entanto atingir um grau satisfatório de eficácia e eficiência. Sobre isso, afirmava-se que modelos de luta anti-AIDS fundados na tríade informação e educação, prestação satisfatória de serviços de saúde e sociais e construção de um ambiente não discriminatório e acolhedor para os doentes atingiram muitos dos seus objetivos, mas não permaneceram imunes a limitações críticas. Dizia-se que, se de um lado tais modelos levaram à consolidação de programas interventivos mais abrangentes e avançaram na formatação de um padrão assistencial que criou condições materiais mais favoráveis à prevenção primária e secundária pela distribuição ampliada de condons e medicamentos, de outro lado, foram marcados pelo caráter local, pela ausência de análises críticas amplamente discutidas, incapacidade da resposta em face ao crescimento do problema, burocratização e isolamento. A partir daí as ONGs brasileiras passaram a apontar para a inadiável necessidade de se buscar novos patamares de análise e intervenção junto à epidemia de AIDS. Sugeriam, especificamente, a importância de se entender e intervir nos processos sociais que respondiam mais diretamente pela incapacidade de indivíduos e determinados grupos sociais evitarem a exposição ao HIV. Foi a partir dessas balizas que se consolidou no Brasil o conceito de vulnerabilidade social, entendido como a relação entre pertencimento a grupos marginalizados e comportamentos de risco (Mann et al., 1993; Ayres, 1999; Paiva, 2000; 2002). Submetidos às formas mais diversas de discriminação, a tais grupos eram negadas informações e educação compatíveis com suas necessidades, acesso pleno aos serviços de saúde e possibilidades de crescimento dentro de ambientes onde fosse possível desenvolver uma saudável identidade individual e grupal (Abia, 1993). Esse raciocínio mais geral iria ser repetido em relação a grupos sóciosexuais específicos os mais diferentes. Sobre os homossexuais, por exemplo, dizia-se: a prática continuada de comportamentos de risco entre esta população está intimamente associada ao isolamento social e a conflitos psicológicos provocados pela discriminação e por preconceitos amplamente disseminados pela sociedade. (Abia, 1996, s/p)

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Mas o ponto de partida principal não era a sexualidade. Não que ela não fosse considerada um fator crucial a partir do qual foram modelados programas específicos. Todavia, foram a divisão entre classes sociais e a questão da pobreza que assumiram a função de agente modelador da versão brasileira do novo paradigma. Os ambientes, grupos sociais e pressupostos do novo paradigma: rupturas e continuidades Ao colocar os dilemas da pobreza como marco divisor essencial do novo estágio do debate, erigiu-se uma nova unidade de intervenção: a comunidade. Tal fato acompanhou movimentos mais amplos de revalorização das instâncias locais já então presentes no debate sobre a gestão da saúde e novas formas de convivência influenciados, em boa medida, pela contribuição habermasiana. Apesar de seu desenvolvimento dentro de um lastro crítico, é possível supor que os caminhos da incorporação do conceito de comunidade no movimento anti-AIDS brasileiro não se deu com o volume necessário de críticas a sua estrutura interna, história e a suas implicações operacionais. Obviamente, não se trabalhou em torno de uma visão totalmente ingênua que equalizava comunidade, união e partilhamento de objetivos e princípios; mas, ao mesmo tempo, não se deixou de incorporar muito das versões mais positivistas daquele conceito. Isto teve implicações relevantes no que toca aos procedimentos de abordagem educacional, algo que se agravou muito em função do tipo de apropriação daquele que historicamente tem sido o principal construto auxiliar do conceito de comunidade - participação social. Foi no uso dele que se revelaram muitas das dificuldades das nossas ONGs/AIDS de reproduzir o seu discurso mais progressista quando atuavam em contextos e em atividades mais específicas. Em alguns projetos a participação parecia corresponder à idéia de adesão a pautas interventivas estabelecidas pelas organizações executoras da ação. Isto talvez tenha decorrido de uma percepção dos pobres como aglomerados populacionais “que se apresentam enquanto foco de fácil penetração e disseminação da epidemia” (Gonçalves & Santana, 1994, p.43). Mas, é também muito provável que noções de povo e pobreza oriundas das vulgatas marxistas nas quais alguns dos principais idealizadores do discurso educacional em tela foram formados tenham contribuído para tanto. Sob tais noções, as massas pobres eram infantilizadas e vistas como inexperientes e portadoras de uma consciência mágica, o que sugeria a necessidade de que lideranças esclarecidas as conduzissem a um novo patamar de compreensão e ação. Seja lá como for, sob a rubrica comunitária desenvolveram-se, tanto pela prestação direta de serviços quanto pela formação de agentes comunitários multiplicadores do saber, diversas atividades que buscaram melhorar o nível de conhecimento e de manuseio dos riscos de infecção de uma população efetivamente necessitada. Favelas e morros tornaram-se alvos preferenciais de algumas propostas. Em intervenções desse tipo reconhecia-se que a mensagem educacional teria que ser diferenciada em função das peculiaridades de cada gênero, estrato social e etnia, o que levou diferentes ONGs, com populações distintas, a desenvolver materiais específicos para as

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suas clientelas e a salientar a necessidade de uso de um vocabulário adequado à linguagem local. Ao lado disso, apontava-se para a importância do aproveitamento dos recursos humanos comunitários, uma vez suposta como certa a maior possibilidade de identificação dos moradores com os agentes educacionais e de saúde oriundos do local. Esse tipo de trabalho organizava-se em torno de uma série de pressupostos. Um deles é o que dizia que uma vez atingido um certo volume de massa crítica nas comunidades, as mudanças comportamentais mais gerais poderiam seguir um fluxo normal de reprodução - seja pela repetição, seja pela pressão daqueles já educados sobre os não-aderentes - rumo à criação de normas de conduta sexual amplamente aceitas. Essencialmente, esperava-se que uma vanguarda esclarecida impulsionasse a mudança necessária. Daí porque tais projetos eram com freqüência de curta ou média duração. Assim, revelando a sobrevivência de traços da fase campanhista em seu interior, esses projetos guardavam consigo a crença de que a transposição de informações feita com adequações e de forma culturalmente sensível pudesse dar conta de um tipo de dinâmica que exigia um raciocínio mais complexo. Além dos trabalhos no plano comunitário, as ONGs ingressaram de forma maciça em uma série de ambientes. É como se descobrissem as múltiplas diversidades concretas encobertas pela visão do social indiferenciado que marcou o discurso delas nos anos 19805. Um dos ambientes preferenciais foram os denominados locais de trabalho (Vianna & Vieira, 1994; Duarte, 1994). Neles, as ONGs/AIDS tanto criaram quanto atenderam a uma demanda por serviços. Não que elas já não tivessem em alguma medida feito incursões nesse domínio. Mas, o caráter campanhista referido anteriormente não permitia que sua inserção ali fosse mais do que ocasional. As escolas também foram alvo de projetos específicos. Os diversos episódios de discriminação contra crianças registrados no sistema escolar brasileiro sugeriram a necessidade de ação. Material educacional foi elaborado visando à ruptura de preconceitos e falsas concepções sobre os mecanismos de transmissão, principalmente a não-transmissibilidade do HIV pelo contato social. Pais e crianças eram alvos preferenciais dessa atividade, enfatizando-se junto a eles a necessidade de solidariedade com os diretamente afetados. Mas educadores e gestores do sistema de educação também receberam especial atenção, tanto por sua capacidade multiplicadora da informação quanto por seu papel na própria disseminação da discriminação (Monteiro & Branco, 1994). Populações de rua foram abordadas e mais adiante, na década de 1990, ainda sob os signos do conceito de vulnerabilidade social, mulheres e jovens negros foram tornados alvos preferenciais de intervenção. Essas mesmas populações negras foram atingidas por projetos que tinham como alvos as casas de candomblé e umbanda. Ali foram estabelecidos vínculos cada vez mais sólidos entre as chamadas comunidades de terreiro e as ONGs/AIDS, num movimento que avançou das preocupações mais imediatas sobre a AIDS para um campo mais amplo de indagações sobre desigualdade de participação social demarcada por linhas de adesão a determinadas práticas

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As ONGs/AIDS percorreram um longo caminho até incorporarem a diversidade de identidades sóciosexuais existente no Brasil. Na base disto esteve o caráter universalista do seu discurso e o conseqüente ocultamento que ele produzia de grupos menos visíveis. Daí porque mulheres heterossexuais, negros, lésbicas, idosos, só gradativamente vão sendo objeto de intervenção e, por conseguinte, passam a ocupar um local específico e a possuir a voz própria que foi retumbantemente instigada pelas ONGs/ AIDS.


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6 Em realçando o ineditismo dos projetos aí incluídos, não queremos afirmar a inexistência de ações anteriores voltadas para a população homossexual desenvolvidas pela ABIA e outras instituições dentro e fora do Rio de Janeiro.

religiosas (ISER,1993). Publicação específica para esse grupo chegou ao mercado e a língua Iorubá foi adicionada ao rol das várias linguagens descritivas da AIDS. Isso não somente porque termos nigerianos passaram a ser utilizados nessa ou naquela publicação, mas porque um tipo de percepção peculiar às tradições afro-brasileiras se erigiu como uma das matrizes explicativas dos sentidos da doença e dos meios de se superá-la. Os chamados divergentes sexuais passaram a ser cada vez mais objeto de atenção. Servindo-se de atividades iniciadas na década anterior, consolidaram-se trabalhos junto a prostitutas e travestis (Barreto,1994). Umas e outros eram recrutados para atuar como agentes de saúde comunitários. Os profissionais do sexo, de todos os gêneros, foram instruídos para estabelecer medidas de auto-proteção e de proteção para os seus clientes. Mas, a grande novidade, parece-me, foi o trabalho especificamente dirigido a homossexuais, seja pela sua consistência seja pelo atraso no seu início, pois, como é amplamente sabido, foram eles os primeiros e os mais afetados pela epidemia no Brasil6. Uma tendência no discurso das ONGs/AIDS é entender a ausência inicial de trabalhos específicos para os gays como um problema situado fora de seus marcos institucionais. Relatando projeto desenvolvido no Rio e São Paulo, Veriano Terto, da ABIA, afirmava: As razões [desta ausência] podem ser localizadas tanto no preconceito ainda infiltrado nas instituições coordenadoras e/ou financiadoras dos programas, quando [quanto] na falta de apoio e recursos necessários ao desenvolvimento de iniciativas simpáticas à questão (Terto Jr., 1993, p.6).

Por concepção universalista refiro-me à dimensão do discurso crítico anti-AIDS que combatia a associação entre a doença e os grupos minoritários. Ao fazê-lo, tal discurso propunha que todos eram passíveis de contrair o vírus e que, pela necessidade de se construir uma pauta de trabalho mais humanitária, era imprescindível que todos se sentissem membros de uma mesma família sorológica.

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No que pese ser plausível, essa explicação pode ser aprofundada ao se lhe acrescentar mais alguns elementos. O primeiro deles refere-se ao fato de que a concepção universalista da doença7 predominante nos anos de 1980, constituía uma barreira à percepção das necessidades particulares desse grupo. Ao mesmo tempo, porque buscava-se dissociar homossexualidade e AIDS, programas específicos foram vistos não somente como ineficazes mas também como indesejáveis do ponto de vista político. Um outro fator repousava na própria concepção de homossexualidade que parece ter impregnado por muito tempo e até hoje as nossas ONGs/AIDS. Embora o paradigma essencialista (Parker & Gagnon, 1995) tenha sido objeto de profundas críticas por parte de membros das ONGs/AIDS, ele não parece ter sido totalmente superado. Enquanto, de um lado, dizia-se que o comportamento sexual era resultante de forças históricas múltiplas e que detinha significados variáveis, mantinha-se, por outro lado, que a experiência homossexual não constituía um marcador relevante na definição do indivíduo e da sua colocação social. Seja lá como for, gradativamente a homossexualidade passou a ocupar uma posição central no debate crítico anti-AIDS e, servindo-se da história de identificação com comportamentos homoeróticos de uma grande maioria de membros e dirigentes das principais ONGs/AIDS nacionais, apresentou-se como um dos investimentos de maior consistência com o paradigma da

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vulnerabilidade social. Emblemático é o projeto Homens Que Fazem Sexo Com Outros Homens, executado pela ABIA e pelos grupos Pela Vidda do Rio de Janeiro e de São Paulo e depois reproduzido em outras cidades do país8. Apoiado em estudos sobre comportamentos de risco que apontavam o isolamento social e os conflitos psicológicos decorrentes da discriminação social entre homossexuais como os seus determinantes, o projeto visava atuar sobre as causas que modelavam tais comportamentos. Em face disso, buscou-se implementar um amplo conjunto de atividades que atingissem as necessidades da população-alvo. Informação e distribuição de condons permaneceram como desencadeadores da intervenção, mas passaram a ser vistos como estágios de menor importância quando comparados a uma abordagem mais sistemática da população-alvo e com as tentativas de conhecimento e intervenção junto à ambiência mais ampla onde ela existia e se movimentava. As ONGs/AIDS foram às ruas e à noite. Homossexuais foram objeto de abordagens corpo-a-corpo e de um novo esquadrinhamento social. Buscou-se conhecer seus locais de encontro, de procura de parceiros sexuais, lazer, paquera e namoro e suas organizações associativas. Esses locais tornaram-se espaços de prevenção: boates e bares possibilitaram a realização de oficinas de sexo seguro em seu interior. Semanalmente foram desenvolvidas atividades de aconselhamento relativas às Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS - DSTs/AIDS e aos dilemas psicossociais da experiência homoerótica. A presença da população-alvo nas ONGs patrocinadoras do projeto foi estimulada, mas, quando da impossibilidade de fazê-lo, aos interessados eram disponibilizados serviços telefônicos como o Disque-AIDS. Buscou-se a ruptura de uma série de mistificações sobre a homossexualidade produzidas fora e dentro das próprias ONGs/AIDS. Sublinhou-se a imprecisão dos indicadores que sugeriam ser os homossexuais o grupo mais informado. Esta percepção, dizia-se, contribuía para o deslocamento dos esforços para outros grupos vistos como mais vulneráveis. O próprio conceito de homossexualidade foi criticado, tanto por suas raízes médicas e medicalizantes, quanto por sua imprecisão ao agrupar homens que guardam entre si laços identitários os mais diversificados. Assim, afirmava-se que o termo homossexualidade sugeria uma equalização entre identidade sexual e comportamento. Já a nomenclatura Homens Que Fazem Sexo Com Homens era vista como portadora de uma maior capacidade de apreender a multiplicidade (Costa, 1994; Mott, 2002). Buscava-se, com isso, romper com a idéia de que práticas homossexuais são sempre semelhantes, organizadamente definidas segundo um menu de opções permanentes e percebidas igualmente pelas pessoas que as praticam (Parker & Terto Jr., 1998). Novas técnicas de intervenção Ao lado das novas ambiências e grupos, emergiram também novas técnicas de intervenção. Nelas, sem abrir mão de conceitos políticos os mais importantes, a idéia de indivíduo-cidadão cedeu espaço para a idéia de indivíduo-pessoa. Buscou-se, então, fazê-lo falar, não só dos seus direitos mas também da sua intimidade, das suas vivências, emoções, da sua experimentação como ser no mundo. Não surpreende, assim, que o teatro e

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Para conhecimento desse projeto ver Parker & Terto Jr, 1998.


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as oficinas de sensibilização tenham sido utilizadas como instrumento técnico privilegiado. Com ambas buscava-se superar a participação reduzida da audiência e, ao dar-lhe voz, reafirmar de modo mais consistente um dos jargões mais repisados pelas ONGs: o de que a AIDS atinge a todos e, portanto, por não ser propriedade de médicos e cientistas, deveria ser expressa, comentada e julgada na primeira pessoa, a do cidadão comum (Prata, 1994; Gapa-SP, 1994). Rupturas e continuidades: sobrevivências campanhistas na fase focalista Esse movimento, que positivamente trouxe o debate sobre a necessidade de utilização de abordagens diferenciadas para os diversos grupos humanos, infelizmente não representou uma ruptura completa com as idéias sobre o processo de ensino-aprendizagem que estiveram subjacentes à estratégia campanhista de educação indiferenciada. Já no final dos anos 1990, o safesex é ainda apresentado como um processo simples e gratificante. Diz um folheto informativo que “sexo seguro é tudo isso. Você transando com alegria, prazer e tranqüilidade, usando a camisinha nas transas com penetração ou descobrindo o sexo sem penetração. Para tudo rolar numa boa, sem grilos” (Abia, 1997b, s/p). A grande viragem metodológica, assim, conservou pressupostos intelectuais antigos sobre os processos de aprendizagem que geraram em seu interior muito dos mesmos problemas da perspectiva anterior. Além disso, foram fortemente criticadas as pessoas que não utilizavam o condom em todas as suas relações sexuais. Foi como se a especialização do trabalho interventivo servisse como justificador de uma cobrança mais dura à população por parte das ONGs quanto à adesão consistente aos seus ensinamentos. Nos anos 1990, incorporando mais sofisticadamente conceitos científicos a suas práticas e análises, a pedagogia crítica anti-AIDS defrontou-se, normalmente sem notar, com um dos seus dilemas centrais: ensinar uma etiqueta tão rígida implica sempre premiar os bons alunos e punir, de uma forma ou de outra, os que a ela não conseguem aderir. No centro estava a certeza, mais uma vez, de que a pedagogia em si permanecia correta e que as falhas preventivas situavam-se nos indivíduos. Isto fica visível na avaliação de um projeto dirigido a mulheres negras na qual se vê, por contraste, a atribuição de valores negativos às supostas recalcitrantes. Dizia-se, por exemplo, que: Algumas mulheres quando impedidas pelos parceiros de usar a camisinha na hora que rola aquele tesão, têm dito não, demonstrando amadurecimento, auto-estima e principalmente instinto de preservação. Mas ainda assim a AIDS continua crescendo entre as mulheres, porque muitas não conseguem perceber a singularidade desse momento. Preocupadas em satisfazer o parceiro, acabam tendo procedimentos que as colocam em situação de risco. Em outros momentos, as mulheres não querem perder a transa e acabam fazendo sexo sem os

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cuidados necessários, o que pode acarretar problemas no futuro. (Abia, 1997c, p.3)

Pode-se, assim, concluir que o desenvolvimento de projetos educacionais específicos, com suas qualidades e problemas, não eliminou de todo a estratégia campanhista, da mesma forma que esta estratégia nunca impediu que ações educativas especificamente dirigidas para grupos identitários fossem, mesmo pontualmente, levadas a cabo. Além disso, a perspectiva de atuação por grupos não apagou a convicção de que mediante informação 9 correta insistentemente repetida a AIDS seria derrotada . Por fim, vale ressaltar que a infecção individual continuou sendo lida como expressão direta da inércia estatal. Desta forma, a noção de indivíduo assumida, em várias situações, retirava do sujeito infectado a condição de agente da ação e reduzia-o a uma determinação e vítima político-econômica. Esse tipo de postura - a dissolução do individual dentro da esfera da política e da economia - não seria muito surpreendente se no centro da pedagogia e dos projetos educacionais em causa não estivesse bem situada uma outra noção - a razão - relativamente incompatível com o grau e 10 tipologia da dissolução apontada acima . Tal noção, na sua associação direta com a idéia de escolha racional, foi outro elemento modelador da educação anti-AIDS no Brasil no período em análise. Foi também, como tento mostrar na seção seguinte, um dos seus componentes mais problemáticos. A razão como problema A idéia de razão, na forma como nós a usamos hoje, é basicamente composta das certezas de que nós podemos controlar o ambiente e que as nossas conquistas são conseqüências das nossas opções e intenções. Outrossim, tal idéia enfatiza a superioridade da racionalidade sobre as outras habilidades humanas e indica o método das ciências naturais como o paradigma mais eficiente para a produção do conhecimento, predição, o alcance da verdade e controle dos fenômenos que nos circundam. Ainda que apresente variações no seu conjunto, esse ideário pode ser visto como um produto da tradição iluminista e como um amplo projeto epistemológico. O racionalismo, contudo, tem sido muito mais do que um programa acadêmico. Com efeito, ele impregnou e, em alguma medida, dependeu da existência de amplos segmentos populacionais das sociedades ocidentais que aderiram a seus pressupostos, o que levou a padrões de comportamento econômico, social e religioso, público e privado, que se davam fora do círculo de debate intelectual. Neste sentido, tal ideário, mais do que uma escola de pensamento, foi um estilo de vida que, fundando-se nos séculos XVII e seguintes, segue-nos até hoje (Gelner, 1994). No campo da educação para AIDS, as noções de razão e escolha racional foram responsáveis pela derrubada de muitas concepções errôneas e preconceitos sobre o HIV e sobre as pessoas por ele afetadas. Certamente tais noções ajudaram a eliminar uma série de falsas idéias sobre os mecanismos de transmissão deste vírus e, conseqüentemente, reduziram o isolamento das pessoas vivendo com AIDS. Assim fazendo, encorajaram sentimentos de solidariedade em relação aos doentes e produziram uma

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Este tipo de discurso descolou-se de forma muito clara das experiências históricas de educação para a saúde mundial posto que inexistiam bases históricas que pudessem (ou possam) dar suporte à pretensão de que a eliminação de uma epidemia ocorrerá apenas mediante atividades educacionais - mesmo que bem realizadas - e sem o concurso de vacinas ou terapias medicamentosas realmente eficazes.

10 Produzo uma avaliação das questões teóricas e das implicações práticas dessa contradição em Góis, 2000b.


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11 A certeza de que a razão é a condutora máxima do comportamento humano tem sido criticada por diversos pensadores. Freud, por exemplo, afirma que o plano inconsciente, além de conter a nossa história de traumas, fantasias, perversões, desejos nãocivilizados, é aquele que joga o papel central no nosso processo de tomada de decisões. Embora essa linha de reflexão venha sendo extremamente útil na área clínica e na análise social, no campo da educação e AIDS parece ter encontrado um solo pouco fértil para sua expansão, tendo pouca influência sobre ele.

12 Junto a isto existe ainda a dificuldade real de obtenção e/ou manutenção da ereção quando do uso de condons durante o intercurso sexual – um obstáculo de difícil superação para muitos homens. O posicionamento das ONGs em relação às dificuldades de incorporação plena do condom no cotidiano sexual dos brasileiros certamente sofreu revisões ao longo dos anos, as quais traduziram-se no esforço de criar técnicas para erotizar os preservativos de borracha. Isto, contudo, não impediu que se mantivesse a conhecida afirmação de que transar de camisinha era o mesmo que chupar bala com papel no domínio das interpretações irracionais e popularescas.

melhoria na qualidade de suas vidas. Contudo, o emprego persistente de tais noções, embora essencial, não se deu de modo a permitir avaliações que auferissem a sua viabilidade, aplicabilidade e eficiência no campo da educação contra a AIDS. Ao contrário, da forma como foram ali empregadas, eram refratárias a exercícios mais ou menos rigorosos e contínuos de (re)exame. Assim, ao tomarem tais noções como veio analítico, político e, principalmente, técnico interventivo privilegiado, as ONGs/AIDS deixaram de lado as controvérsias peculiares a suas histórias e, conseqüentemente, deixaram de beneficiar-se dos desenvolvimentos, nem tão recentes, contidos 11 na reflexão sobre elas . Pelo menos duas conseqüências relevantes derivaram disso. A primeira, vale reafirmar, foi a repetição tautológica da concepção de que a mudança de comportamento sexual era o resultado de decisões conscientes entendidas como produtos do intelecto, subestimando, por exemplo, o papel do inconsciente na modelação do comportamento sexual. A segunda foi a não consideração dos múltiplos significados do sexo não-seguro para pessoas e grupos. Deixou-se de ver que muitas atividades consideradas inseguras podem ser emocionalmente importantes para aqueles que as praticam. Por exemplo: as práticas penetrativas não-protegidas podiam tanto representar mais prazer quanto funcionar como um indicador de maior confiança e intimidade, mútuo-pertencimento e complementariedade entre parceiros sexuais. Conectada a isso estava a questão dos significados e dos efeitos dos preservativos de borracha nas performances sexuais. Como pode ser visto em dezenas de peças de material educativo, tomava-se por certo que o uso de condons poderia ser facilmente assimilado e tornado parte integrante dos jogos sexuais. Não havia nessa esfera, ao contrário, nenhuma certeza: para homens e mulheres, de todos os gêneros, o preservativo de borracha poderia funcionar como um agente impeditivo do prazer e ser visto como um elemento estranho ao setting sexual12. Outrossim, se a presença permanente do condom nas interações sexuais reafirmava a possibilidade de segurança e prazer sem doenças, por outro lado nos lembrávamos, a cada interação sexual, que a precaução era (e é) uma necessidade porque existia um perigo potencial e real presente no sangue, esperma e secreções de todos com o qual teríamos que conviver por muito tempo. Walt Odets sumariou com primor as implicações daí decorrentes. Referindo-se ao preservativo de borracha, afirma Este objeto outrora não-mencionável é agora visto em T-shirts, brincos e chaveiros. Mas no quarto de dormir, o condom tem outros significados. Ele introduz associações freqüentemente perturbadoras e inconscientes cada vez que aparece durante o ato sexual: associações de prazer e violência, sexo e punição, intimidade e ferimento, amar e matar – ou ser morto. Terminado o ato sexual, ele jaz cheio de um fluido letal, uma lembrança concreta dos sentimentos misturados sobre homossexualidade, pecado, punição sofrimento e morte. (Odets, 1995, p.133)

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Finalizando Sabe-se que o avanço na produção de medicamentos e uma política relativamente estável de ampliação do acesso aos serviços de saúde aumentou o tempo e melhorou significativamente a qualidade de vida das pessoas afetadas pelo HIV/AIDS. Isso não significa, contudo, que tenhamos conseguido impedir o crescimento do número de pessoas que se infectam e adoecem a cada dia. Ao contrário, relatórios de diferentes agências de saúde, nacionais e internacionais, indicam a expansão da epidemia entre nós (WHO, 1998; Ministério da Saúde, 2001). Paralelamente, profissionais envolvidos com a questão e algumas pesquisas internacionais apontam para um crescente relaxamento das medidas de prevenção em alguns grupos sociais. Estes fatos requerem uma postura crítica em relação às estratégias desenvolvidas para o enfrentamento à AIDS. Reconhece-se a inestimável contribuição dada pelas ONGs na superação dos preconceitos, no auxílio à construção de um ambiente social menos opressor para os doentes e seus familiares e no aumento dos investimentos estatais no setor. Reconhece-se, também, que o que temos de mais avançado no campo da educação anti-AIDS deve-se à capacidade delas de superar carências de recursos, barreiras políticas, conflitos internos e preconceito social. Contudo, esta mesma perspectiva deve ser hábil na produção de uma crítica capaz de identificar pontos de estrangulamento, retrocessos e dificuldades nas práticas desenvolvidas. Desta forma, é preciso produzir uma avaliação continuada dos princípios analíticos dessas posturas e ajudar a reconstituir permanentemente as utopias que elas acalentam em relação às formas de superação dos dilemas que o HIV colocou para a nossa sociedade. Referências ABIA. Pontos para uma campanha de informação. Bol. Inform. ABIA, n.2, s/p, 1988. ABIA. Por uma nova estratégia de saúde frente a AIDS. Bol. Inform. ABIA Esp., s/p, 1993. ABIA. A prevenção à AIDS para homens que fazem sexo com outros homens no Rio de Janeiro e São Paulo. Folheto Informativo, s/p, 1996. ABIA. AIDS. O que podemos fazer. Bol. Inform. ABIA, s/p, 1997a. ABIA. Editorial. Bol. Inform. ABIA, s/p, 1997b. ABIA. Quando elas dizem não. Bol. Arayê, n.7, s/p, 1997c. ALTMAN, D. Poder e comunidade: respostas organizacionais e culturais à AIDS. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. AYRES, J. R.; FRANÇA JR., I.; CALAZANS, G.; SALETE, F. H. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. In: BARBOSA, R.; PARKER, R. Sexualidades pelo avesso. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. p.49-73. BARRETO, M. L. Avaliação em programas de intervenção junto a grupos específicos (prostitutas). In: ENCONTRO NACIONAL DE PESSOAS VIVENDO COM HIV/AIDS, 4., 1994. Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro,1994. s/p. BASTOS, C. Tomar o muro de Berlim como exemplo. Bol. Inform. ABIA, n.20, s/p, 1993. CAMARGO JR., K. R. Políticas públicas e prevenção em HIV/AIDS. In: PARKER, R.; GALVÃO, J.; SECRON BESSA, M. (Orgs.). Saúde, desenvolvimento e política: respostas frente à AIDS no

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A MUDANÇA NO DISCURSO EDUCACIONAL DAS ONGS/AIDS...

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Recebido para publicação em 27/08/02. Aprovado para publicação em 14/03/03.

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A interface Internet/S@úde: perspectivas e desafios Luis David Castiel 1 Paulo Roberto Vasconcellos-Silva 2

CASTIEL, L. D.; VASCONCELLOS-SILVA, P. R. The interface He@lth/Internet: perspectives and challenges, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.47-64, 2003.

Information and communication technology (ICT) through the Internet are changed into elements, processes and objects produced in order to be used by human bio-sciences relating to the practice of BioMedicine, such as Public Health. ICT has been covering increasingly large fields of medical information, producing specialization sectors known as telemedicine, cyber-medicine and the so-called consumer healthcare information technology. It tries to meet consumers’ information needs, by apparently creating something similar to self-treatment with some degree of expertise. In this way, consumers would be able to make more ‘informed’ decisions in terms of their purchases in the healthcare field. In order to attain this objective, computer programs have come up with decision aids software for healthcare and Web semantics have been created. The mingling of three powers that participate in the mechanisms that organize present-day life is clear – the predominance of instrumental reasoning and its techno-scientific production, the power created by the union of institutions and ideologies, and the belief in the myths, symbols and rites of scientific technology. As a possible result, we may see society colonized by an alliance between authorities that produce specialized knowledge, professionals that apply this knowledge to produce technological items or package them in technological wrappings, by industrial systems and by information, distribution and commercial networks. KEYWORDS: Internet; computer science and Medicine; tele-medicine; health care; health promotion. As tecnologias de informação e comunicação via Internet (TICs) são transformadas em elementos/processos/ objetos produzidos para serem utilizados no âmbito das tecnobiociências humanas, vinculadas tanto às práticas da Biomedicina como às da Saúde Pública. As TICs ocupam domínios cada vez mais abrangentes da informática médica, produzindo setores de especialização denominados e-saúde, telemedicina, cibermedicina e a chamada informática para a saúde do consumidor (ISC). A ISC, em especial, procura suprir as necessidades de informação de consumidores que, a princípio, poderiam fazer escolhas para aquisições mais bem informadas. Surgem programas computacionais para auxílio a decisões (decision aids’ software) e a Web semântica. Percebe-se nesta situação, a imbricação de três sistemas: o predomínio da razão instrumental e suas produções tecnocientíficas; o poder enfeixado pela junção de instituições e ideologias; a crença na supremacia dos mitos, símbolos e ritos promovidos pela tecnociência. Como possível resultado, temos uma colonização da sociedade pela aliança entre autoridades geradoras de conhecimentos especializados, profissionais encarregados de produzi-los como objetos técnicos ou empacotá-los com invólucros tecnológicos, o conjunto do sistema industrial e as redes de comunicação, distribuição e consumo. PALAVRAS-CHAVE: Internet; informática médica; telemedicina; assistência médica; promoção da saúde.

1

Pesquisador, Departamento de Epidemiologia, Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/FIOCRUZ.<castiel@ensp.fiocruz.br>

Professor, Departamento de Clínica Médica, Universidade do Rio de Janeiro; Médico e membro do Conselho de Editoração de Internet; Médico do Instituto Nacional do Câncer. <paulor@inca.org.br> 2

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Na edição de 5 de setembro de 2001 da Revista Veja (p. 64), em matéria intitulada ‘A dor de nunca saber o bastante’, de Cristiana Baptista, sobre a “angústia típica dos tempos atuais” devido aos efeitos psicológicos do excesso de informação, há um trecho que faz menção aos cybercondríacos, “pessoas que por meio de pesquisas sobre saúde na Internet descobrem informações que deveriam estar disponíveis apenas para médicos”. Além disso, há declarações do infectologista do hospital paulista Albert Einstein, Artur Timerman, que considera ter se tornado rotineiro “atender pacientes que fazem pesquisa na Internet e, sem a menor base, querem palpitar no tratamento”. Diz ele: “Sem um bom conhecimento prévio, a Internet é um caos que joga com a ignorância das pessoas” (Batista, 2001, p.64). No Brasil, é difícil precisar a quantidade de sites ligados à saúde. Esta dificuldade pode ser ilustrada pela rápida pesquisa no tópico específico relativo à ‘saúde’ no Google. Foi obtida (em 15/05/2003) a indicação de 469.000 itens em língua portuguesa (inclui sites de Portugal e outros países de língua portuguesa) com as mais variadas origens, características, finalidades, temas, teores. No entanto, ao tentarmos acessá-los, vamos obter portais não mais existentes em um número considerável de casos. Como introdução a questões desta ordem, ainda de modo preliminar, cabe indagar: qual a pertinência e as implicações das múltiplas facetas do complexo cenário na atualidade nas interseções saúde/meios eletrônicos de comunicação parcialmente representadas por estes breves comentários de abertura? Como é possível se orientar diante de diversas e eventualmente conflituosas perspectivas que emanam das inter-relações entre usuários/ consumidores/pacientes, portais de saúde (públicos e privados), páginas de profissionais/serviços responsáveis por assistência de variados tipos disponibilizando informações com distintos níveis de qualidade? Como dimensionar a confiabilidade da informação (e dos produtos e serviços apresentados) (Castiel & Vasconcellos-Silva, 2002)? Ora, todo projeto de ação, sobre o qual pairam incertezas sobre suas conseqüências, exige estratégias baseadas em informações dentro de um padrão de racionalidade econômica, ou seja, interessada na seleção de meios com previsão dos custos e benefícios daí derivados. A informação definidora de rumos no interior de incertezas é sempre desejável e valiosa, já que pode nortear nossas ações e neutralizar a ansiedade das indeterminações quanto aos efeitos das resultantes. De forma inversa, a informação que encerra contradições gera dubiedades, incertezas e temores de forma equivalente à falta ou ao excesso de informações.

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Comunicação virtual entre cuidadores e pacientes Voltemos à ilustração delineada no início da introdução, que consiste no uso de correio eletrônico entre médicos e pacientes. Há estudos que propõem protocolos éticos para lidar com problemas oriundos da recepção de mensagens não-solicitadas de pacientes na ausência da relação médico-paciente preexistente (Eysenbach, 2000a). Assim, construiu-se uma tipologia de modalidades de contatos: tipo B (relações bona fide), onde há uma relação médico-paciente preexistente (ou, então, que o paciente tenha tido um primeiro contato com o profissional de saúde em sua atividade prática, ou que este tenha tido acesso a seus dados médicos eletrônicos ou, ainda, que haja ocorrido uma consulta com tal médico); tipo A (ausência de relação médico-paciente prévia), onde as interações on-line carecem das características já descritas (a comunicação tende a ser impessoal, eventualmente anônima; mais informal, menos específica, mais acessível que pessoalmente). Exemplos: paciente envia uma mensagem não solicitada a um médico; serviços tipo ‘pergunte ao doutor’ na Internet; resposta de um médico a um pedido de aconselhamento público em uma homepage ou newsgroup. Tais contatos possuem características e implicações distintas. Isto mostra as dificuldades de definir o estatuto do contato em cada contingência. Esta temática vem sendo alvo de estudos e proposições de princípios éticos para nortear tais contatos e evitar possíveis desdobramentos indesejáveis. A priori, parece existir acordo quanto à necessidade de educar pacientes para indicar falhas deontológicas médicas em diagnosticar e tratar pela Internet, na ausência de relação médico-paciente de base (Eysenbach, 2000b). Ainda assim, são perceptíveis os enredamentos das novas questões midiáticas e a necessidade de maiores estudos e reflexões. Nesse sentido, no ano de 2001, a pesquisa da Harrisinteractive mostrou que 79% dos médicos entrevistados não veiculavam informações clínicas por e-mail, mas em torno da metade se disporia a fazê-lo se houvesse garantias de segurança e privacidade. O restante não o faria por razões outras que as citadas. Telemedicina e Cibermedicina: apresentação de sites Se compararmos a incidência nos sistemas de busca bibliográfica biomédica Medline dos termos ‘telemedicina’ e ‘cibermedicina’ (em 15/05/2003), verificamos que o segundo (23 indicações, sendo 12 artigos de autoria de Eysenbach et al., 1999) está longe de possuir a presença do primeiro (5.627 referências em 15/05/2003) (PubMed). Ainda assim, há discussões conceituais com vistas a distinguir tais campos, apesar das assumidas superposições. Wootton (2000) considera o termo ‘telemedicina’ como um guardachuva que engloba qualquer atividade médica envolvendo um elemento de distância. Creio ser importante explicitar que este autor é o editor da primeira revista acadêmica a abordar tais tópicos – justamente chamada Journal of Telemedicine and Telecare. Neste grau de generalidade, um tradicional telefonema entre médico e paciente poderia se abrigar sob este amplo guarda-chuva. Creio que a referência às modernas tecnologias

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comunicacionais é necessária para as tentativas de difícil circunscrição deste novo território. Apareceram outros termos que visam melhor definir o campo: tele-saúde (telehealth) e, mais recentemente, saúde on-line e e-saúde (ehealth). Um dos mentores da cibermedicina (Eysenbach et al., 1999) estabelece demarcações que, implicitamente, veiculam maior amplitude e alcance das modalidades ligadas à cibermedicina. De modo geral, as diferenças tendem a reproduzir especificidades que caracterizam a Medicina Diagnóstica/curativa e a Medicina Preventiva/Saúde Pública moderna, com ênfase na prevenção, promoção da saúde e autocuidado. Estes últimos aspectos assumiriam novas configurações ao envolverem predominantemente consumidores, dentro dos cânones do chamado projeto globalizante neoliberal. Por sua vez, a informática da saúde do consumidor (ISC) surge como conseqüência da chamada cibermedicina dirigir-se para as necessidades de informação e de decisão de consumidores. A criação de uma suposta auto-expertise do consumidor que, a priori , teria como propósito funcionar como instrumento para escolhas mais informadas. Um dos emblemáticos exemplos da idéia moderna individualista dos consumidores de autocuidado pode ser percebida nas propostas de avaliação de risco em saúde da Sociedade da Medicina Prospectiva norte-americana e seu portal sintomaticamente denominado Youfirst. Ao acessarmos o sítio, descobrimos mais um elemento digno de nota: aparece no cabeçalho a grafia YouFirsttm , onde, como sabemos, a sigla sobrescrita indica tratar-se de marca registrada com sua devida legislação de proteção jurídica de propriedade privada. Na página de abertura, temos uma sucinta apresentação que diz: Você está sob o risco (risking) de morte precoce? Como o estresse, a falta de exercício, a nutrição deficiente, o alcoolismo, a hipertensão arterial, o colesterol elevado e a obesidade atingem seu bem-estar pessoal? Descubra como com uma avaliação de saúde pessoal grátis. ... Manter-se saudável significa cuidar de si próprio. Em outras palavras – colocando você em primeiro lugar. (Youfirst, 2003)

Submetidas as respostas ao portal, recebe-se uma computação do risco e são feitos relatórios com mensagens educativas individualizadas. Evidentemente, são explicitados alertas indicando que mesmo sendo a avaliação de risco à saúde (ARS) “extremamente útil para avaliar riscos à saúde de indivíduos e grupos, não são substitutos da história e do exame médico completo”. Também, as ARSs não são apropriadas para todas as pessoas. Pessoas com doenças crônicas como câncer ou doença cardíaca, por exemplo, não obterão projeções acuradas de risco nestas áreas. Também, alguns bancos de dados populacionais excluem informações referentes a jovens e/ou idosos, em populações socioeconomicamente desfavorecidas (challenged) e em algumas minorias. Nestes casos, as ARSs

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podem não projetar acuradamente riscos para esses grupos (Youfirst). A idéia de vigilância dos fatores de risco embute uma noção de possível procrastinação da morte para além de sua perspectiva radical, mediante sua ‘fragmentação’ em fatores de risco e correspondentes tentativas de controle destes virtuais, múltiplos e traiçoeiros componentes (Bauman, 2000). Não é despropositado pensar que o portal se volta primordialmente para indivíduos que se constituam, de fato, como potenciais consumidores de bens e serviços considerados protetores dos riscos. O portal não explica por que não se dirige a consumidores falhos, excluídos do acesso aos supostos benefícios da prevenção dos riscos em virtude de não disporem de condições econômicas necessárias e suficientes para atuarem efetivamente como agentes de consumo. Ademais, começam a surgir programas de auxílio a decisões em questões de saúde que não substituem a ida ao médico (não se constituem em auxílios de acesso à informação!). Um deles se chama HouseCall, que produz um diagnóstico a partir dos sintomas dos usuários e da história médica pregressa (Eysenbach, 2000a). Mas pouco se sabe como pacientes interagem com tais recursos. Como lidar com a possibilidade de estímulo à automedicação e a suposta proliferação de ‘cybercondríacos’? No Brasil, temos o site Medicart, aparentemente sediado no estado do Paraná e sem indicar (pelo menos de modo visível) os responsáveis pelo portal (a única forma de identificar responsabilidades na visita ao portal, em maio de 2003, residia no nome, breve currículo e o respectivo registro em seu conselho do farmacêutico responsável pelas informações especializadas, técnicas e farmacológicas). Temos aí um exemplo de instrumento capaz de permitir tanto a pesquisa de preços comparativos entre medicamentos como a existência de similares e genéricos. De fato, o portal atua como se fosse um sintético dicionário de especialidades farmacêuticas com a característica de discriminar preços online. Na sua página de entrada, enfatiza os riscos da chamada automedicação e da mudança de medicamentos sem a devida consulta ao médico. Pretende desestimular a automedicação mas sugere trocadilho com a forma reflexiva do verbo ‘medicar’... Se vale a analogia, estes alertas nos fazem lembrar os obrigatórios avisos dos malefícios do tabagismo que estão impressos nos maços de cigarros por determinação das autoridades governamentais de saúde. Pois, a estrutura do portal virtualmente (nos dois sentidos da expressão) constitui um potente veículo para aqueles que buscam a autoprescrição de medicamentos: o modo de acessar os produtos farmacêuticos e seus preços pode se dar por meio de designações químicas, dos nomes ‘fantasia’, das ações farmacológicas e da sintomatologia do paciente/consumidor. Dessa forma, o resultado da pesquisa gera configurações com estes quatro elementos, de modo a permitir a obtenção de supostas relações entre ‘sinais/sintomas/diagnósticos’, ‘efeitos farmacológicos’ e ‘medicamento’. Apesar de possíveis críticas metodológicas, em março de 2002 o site Harrisinteractive, em uma pesquisa (survey) por telefone, observou numa amostra de 707 pessoas de mais de 18 anos que, nos Estados Unidos, 110

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milhões de adultos vão em busca de informação de saúde na rede, em média três vezes por mês. Em 1998, eram 54 milhões, em 1999, 69 milhões, e em 2000, 97 milhões (Harrisinteractive, 2002). Outro aspecto do projeto cibermédico se constituiria na criação/adoção de sistemas de acesso e armazenamento de dados de saúde de indivíduos. Poderiam, por exemplo, assumir a forma de smartcards que conteriam informações integradas sobre a saúde do seu possuidor passíveis, inclusive, de serem transferidas pela Internet. Ferramentas computacionais estão sendo desenvolvidas para auxiliar clínicos a conjugarem particularidades, preferências dos pacientes às questões clínicas e às restrições contextuais. Um aspecto crucial reside no acesso e controle dos pacientes sobre seus registros e também na confidencialidade da informação. É preciso conceber formas de reduzir a fragmentação dos registros médicos, ao permitir a agregação de dados provenientes de diferentes fontes com teores diversos (Mandl et al., 2001). Escolha do paciente baseada em evidências Uma outra forma de vincular Internet e saúde é constituída pela junção entre a ISC (informática da saúde do consumidor) e a MBE (Medicina baseada em evidências), sendo batizada como ‘escolha do paciente baseada em evidências’. Curiosamente, neste momento, o termo ‘consumidor’ sai de cena sendo substituído pelo tradicional ‘paciente’. Uma possível explicação seria a argumentação oferecida pelos autores desta vertente ser resultante da interseção entre a citada MBE (que enfatiza a necessidade de ‘evidências cientificamente corretas’ para intervenções em busca de efetividade) e a ‘medicina centrada no paciente’, cuja premissa essencial é: pacientes devem desempenhar papel central nas decisões sobre a assistência à sua saúde e de seus familiares. Tais informações podem ser divididas em: as específicas ao caso daquele paciente (diagnóstico, dados como faixa etária, gênero, condições gerais de saúde) e as de caráter generalizado, como, por exemplo, estatísticas de efetividade das distintas intervenções para a doença em foco. Há diversas questões importantes envolvidas nesta temática, tais como os problemas de acessibilidade à linguagem médica, as formas de lidar com a incerteza, a ênfase na redução de custos etc., mas não é o propósito deste texto se deter nelas. Aqui, vamos comentar a aparente candura em meio ao tom supostamente caricatural com que se propõe a ascese do paciente/consumidor ao saber via e-saúde. Esta postura fica evidenciada na tipologia analógica ilustrada dos modelos de relação consumidor (que volta à cena) e profissional de saúde criada por Eysenbach (2001): paternalista – na qual o clínico, na ‘terra sagrada dos conhecedores’ (holy land of the knowing), está ao lado de um ‘poço’ vazio (o buraco da ignorância) para onde lança o medicamento em pílulas para um paciente prosternado no fundo do poço, dizendo como o mesmo deve ser ministrado e ordenando que não sejam feitas perguntas; educacional – onde o clínico anuncia que vai educar o paciente e lança para ele uma corda e este inicia uma subida pela parede (com a observação ‘ex ducere – conduzir para fora’); era Internet – o médico olha estupefato pacientes subindo para sair do poço pela escada de madeira www, através de self-support, uns galgando os ombros dos outros ou alçando-se mediante um balão e-mail, e o que conseguiu sair joga fora a tabuleta; consumidor como parceiro – o médico

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Circuito integrado

recebe de mão estendida dizendo bem-vindo ao paciente que saiu pela sólida escada da educação do paciente via Internet. Aí, então, suas escolhas serão baseadas em evidências no contexto da medicina centrada no paciente. De qualquer forma, há ensaios randomizados para mensurar a efetividade de programas (software) instrumentos de auxílio à decisão na assistência primária (primary care) no caso de reposição hormonal pós-menopausa, sem mediação pela Internet. Em geral, os resultados são considerados satisfatórios no que se refere à melhoria do conhecimento do paciente, à redução do conflito decisório e ao estímulo ao paciente desempenhar funções mais ativas na decisão sem aumentar sua ansiedade (Murray et al., 2001). Mas serão suficientes neste processo de decisão de caráter racional para não só ‘orientar’ o doente em suas escolhas cognitivas, mas também na esfera emocional? Será que pelo fato de não se produzirem nítidas evidências da importância de aspectos de caráter subjetivo/relacional (de mensuração problemática) não sejam relevantes? Como evidenciar os efeitos das manifestações de acolhimento por parte do profissional, dos signos de empatia entre as pessoas envolvidas na interação – que podem se manifestar, por exemplo, em uma conversa afável sobre educação de filhos? Apesar das contribuições das atividades técnicas na Medicina, que se procura basear em evidências, parece existir um exagero de busca de evidências na relação médico-paciente, em detrimento de tal relação. Psicoterapia via fluxo de elétrons Negroponte (1995) definiu o terreno das redes de comunicação, ou ciberespaço, como o “mundo dos fluxos de elétrons” em contraste com o “mundo dos átomos” no qual nascemos, crescemos, nos reproduzimos e perecemos. Além da voragem e da obsolescência, caberia destacar o desapego da WEB ao mundo dos átomos, ao qual deveria oferecer seu suporte. Nos sítios se observam esparsas referências ao mundo não-virtual: poucos números de telefone, endereços, nomes de autores dos conteúdos, entre outros vínculos com o real. Tal desapego transposto para o terreno em questão, nos conduz à observação de fenômenos peculiares. Seriam possíveis trocas simbólicas plenas on line? Se possíveis, seriam consistentes? A título de exemplo: a “terapia” on-line se tornou viável após o advento do IRC (Internet Relay Chat), um protocolo de comunicação na Internet que permite conversações on-line de grupos. Esta apropriação tecnológica parte do pressuposto de que uma terapia psicanalítica é, meramente, uma “conversa” em sua dimensão mais estreita: como trocas de informação. As vantagens aí conquistadas se ligam aos valores neoliberais mais caros: distância, dinheiro e tempo abreviados (além da privacidade do anonimato). O esforço de locomoção contemplaria os mais abúlicos. O custo das sessões poderia ser reduzido drasticamente, pois o terapeuta poderia economizar na montagem da estrutura de seu consultório virtual. Uma simples montagem de fundo – com uma estante repleta de livros de Freud ou um cenário neutro, bucólico e acolhedor bastariam. Pela ótica da doutrina da Comunicação Linear, os psicólogos e psiquiatras, ao contrário de outros profissionais da saúde, dispensariam o contato físico, já que suas intervenções ocorrem no campo simbólico.

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Por outro lado, alertam os críticos, os terapeutas não teriam contato presencial com seus entrevistados, o que é imprescindível no processo de percepção da linguagem corporal. Os entusiastas teriam a citar as facilidades dos videochats, e de aplicativos como o Microsoft NetMeeting (o que não é grande coisa no ponto atual de nosso desenvolvimento de transmissão de dados por via telefônica sem banda larga – esmagadora maioria dos usuários no Brasil). Além de alertar os usuários quanto aos riscos de um tipo de atividade no qual os responsáveis não se expõem diretamente, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo desaconselhou seus associados a adotar tal modalidade de atenção, baseado em sua questionável efetividade. Esta premissa da comunicação humana como sinônimo de transmissão de mensagens não é inédita nem recente como a Internet. Web Semântica e Saúde A profusão de páginas e sites desafiou os pesquisadores da indexação de informações, uma vez que a linguagem HTML e suas “tags” (anexos ocultos que definem a página e informam à máquina como esta vai ser exibida na tela) não permitem atribuir múltiplos desdobramentos semânticos à informação. A informação produzida para consumo na WEB é essencialmente unívoca, não admite múltiplas interpretações. Até agora, a informação sempre foi produzida armazenada, localizada e consumida por humanos. O objetivo das TICS é, obviamente, atender às pessoas e não às máquinas. Não obstante, se fosse possível reconstruir uma linguagem adequada à máquina, ou, como conceituam Berners-Lee et al. (2001), se adotarmos a idéia de “machine-understandable Information” chegaríamos bem perto da compreensão do conceito de WEB Semântica. A Web Semântica se baseia essencialmente na descrição de denotações para alcançar variadas conotações no formato de dados e links que se enquadrem em ontologias criadas por peritos. Nas TICs, “ontologias” são categorias de elementos que descrevem uma determinada área de interesse, além de uma linguagem especializada em manipular as categorias destas representações. A idéia básica da WEB Semântica parte do princípio de que pelo acesso às ontologias, os browsers poderiam interpretar necessidades e recomendar aos usuários informação muito mais específica e adequada. Entretanto, cabe acrescentar que tais recomendações correm o risco de se repetir, o que limita a oferta aos usuários de outros conteúdos, conduzindo-os sempre aos mesmos temas. Berners-Lee et al. (2001) afirmam que “...a WEB semântica não é uma Web à parte, mas uma sua extensão, na qual a informação é dada com sentidos semânticos bem definidos, o que aumenta a capacidade dos computadores de trabalharem em cooperação com as pessoas...”. Para exemplificar, descrevem o caso de Pete e sua irmã Lucy, que buscam na Internet através de seus agentes (softwares que entram em contato com outros agentes para obter informações especificadas relevantes em outros sistemas), alternativas para a fisioterapia de sua mãe. Os agentes de Pete e Lucy conhecem, com base nos dados coletados à medida que foram sendo

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ativados, o endereço, os rendimentos e a agenda de seus usuários, o número do seguro-saúde de sua mãe, seu prontuário médico com várias informações sobre suas doenças, medicamentos usados, reações adversas etc. A partir desses dados buscam na Web listas de profissionais credenciados, assim como os espaços em suas agendas. Por fim, oferecem uma lista de opções de escolha com base nas limitações de orçamento e qualificações em especialidades preliminarmente estabelecidas. Assim, Pete muda parte de seus compromissos, em coordenação com o agente e a agenda de Lucy, sua irmã. Ao apreender suas demandas, os agentes acumulariam as condições ideais tão ambicionadas por todos os empresários que pisaram neste planeta desde os primórdios do capitalismo: 1 A construção do perfil de consumo individual das pessoas (e não mais categorias de consumo segmentadas em faixas etárias, níveis de renda, padrões sócio educacionais etc.). 2 O privilégio da exposição e destaque de mercadorias e serviços no momento em que o usuário mais precisa deles – um estupendo avanço em relação às propagandas na TV (sob o ponto de vista dos que querem vender seus produtos). Ocorre um aproveitamento máximo das condições ideais de “vulnerabilidade” do consumidor, que consome itens e serviços em círculos viciosos impelidos por suas próprias “pulsões de consumo”. Como se pode perceber, as metas declaradas do projeto da Web Semântica são mais ambiciosas do que simplesmente permitir indexar melhor a informação da Web. Em sua proposta preliminar, são formas de fazer as máquinas compreenderem e assimilarem o mundo das demandas humanas para melhor atendê-las. Uma questão: quem define as ontologias e em que bases? Se admitimos que a evolução da sociedade se dá pela via cognitiva, quem definirá em nosso nome as pequenas verdades que compõem as ontologias do mundo dos elétrons? Haverá pela primeira vez na história da Internet, uma regulamentação universal abrangente e ao mesmo tempo específica, que dedique espaço exclusivo às definições que propiciem o aprendizado coletivo? Será possível prever desdobramentos éticos nos atos conseqüentes a tais ontologias? A história da WEB e da Informática, de forma geral, nos demonstra que as grandes invenções nasceram e cresceram em berço acadêmico, mas reproduziram-se e proliferaram na selva do mercado, modificando-o e por ele sendo modificado. Um visão distópica mais próxima ao que observamos no cotidiano poderia ser descrita em bases não tão otimistas: Pete, que necessita de um fisioterapeuta para sua mãe, é um homem solteiro, na quinta década de vida. Percebe na mídia mensagens que dão conta da obesidade e das dislipidemias que predispõem ao risco de doenças cardiovasculares. Seu entendimento de dislipidemias não é muito preciso, porém o de obesidade lhe parece ser. É calvo e sente-se acima do peso, portanto, fisicamente pouco atraente em relação ao padrão estético dominante. A demanda de Pete é potencializada pela necessidade de preservação de sua saúde, mesclada à baixa auto-estima. Certa vez, encontrou em um site técnico sobre saúde a informação de que os homens calvos são mais predispostos a sofrer eventos coronarianos (por mecanismos relacionados aos hormônios masculinos).

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Desde então, passou a acessar sites sobre calvície e obesidade. Seu agente “apreendeu” que este é o foco capital de suas demandas no terreno da saúde. A cacofonia da mídia em nada contribuiu para esclarecê-lo. A WEB lhe potencializou o consumo de informações sobre “calvície e obesidade em homens de meia-idade solteiros”. Sente-se solitário e seu padrão de renda lhe permite adquirir todas as inúmeras novidades oferecidas por seu agente. Seu microondas passaria a recusar todas os alimentos considerados calóricos demais. Suas compras nos supermercados on line seriam customizadas segundo suas cotas de calorias diárias. Seu ambiente informacional seria assolado por inúmeros SPAMs (mensagens eletrônicas enviadas simultaneamente a milhares de usuários para divulgar produtos e serviços). Frente à frustração quanto aos resultados de suas buscas, o agente tutor de Pete passa, finalmente, a lhe oferecer links de psicoterapia on line. Os profissionais seriam selecionados, assim como os fisioterapeutas de sua mãe, segundo suas agendas e qualificações virtuais. Epílogo: acumulam-se no apartamento de Pete aparelhos para exercícios abdominais que desafiam cientificamente seus depósitos de calorias, além de produtos para tratar a calvície – novos problemas de saúde pública no imaginário do homem urbano contemporâneo. Pete buscou e encontrou precisamente aquilo que esperava da rede. A qualidade da informação em saúde na rede Surge o considerável problema de controle de qualidade dos conteúdos relativos à saúde na Internet. Estudos da Rand elegeram dez instrumentos de busca de língua inglesa e quatro em língua espanhola e buscaram informação sobre câncer de mama, asma infantil, depressão e obesidade. Médicos investigaram a qualidade de informação em 25 websites. Em linhas gerais, vários sites continham informações contraditórias e/ou datadas e/ou incompletas em diversos aspectos de seus temas específicos. Mas, os elementos mais dignos de atenção são as questões relativas à compreensão dos receptores das informações (Feder & Lyons, 2001). Em termos globais, as preocupações quanto à qualidade da informação estão voltadas para: educar o consumidor, estimular a regulação dos emissores de informação em saúde, possuir instâncias não comprometidas para avaliar a informação e estabelecer sanções em casos de disseminação nociva ou fraudulenta de informação. Há alguns projetos de certificação e classificação da informação confiável em saúde na Internet como o MEDPics – plataformas de avaliação de conteúdos relacionados à Medicina na Internet (Eysenbach, 2000a) e o já citado TEAC-health (Rigby et al., 2001). Existem, também, iniciativas voluntárias de códigos de conduta na rede (exemplos: American Medical Association, Internet Heath Coalition, Health Internet Ethics, Quackwatch – Your guide to health fraud, quackery and intelligent services e Health on the Net Foundation – HON). Para efeitos deste trabalho, vamos enfocar esta última (a HON) como uma simplificada ‘descrição de caso’, destituída de pretensões metodológicas. A HON está sediada em Genebra e seu código de conduta dirige-se à padronização da confiabilidade da informação na rede, sem, no entanto, avaliar a qualidade de

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tal informação. Os portais que, em tese, seguem tais preceitos recebem o direito de exibir o selo de qualidade da HON. Os princípios, sinteticamente, são: 1) autoridade – profissionais treinados e qualificados serão responsáveis pela informação apresentada, a menos que seja declarado expressamente em caso disto não suceder; 2) complementaridade – a informação não substitui o relacionamento existente entre pacientes e respectivos profissionais; 3) confidencialidade – os dados disponibilizados por usuários serão mantido em sigilo (incluindo a identidade); 4) atribuições – quando for o caso, as informações terão a chancela de referências claras a fontes de consulta, inclusive indicando links para acesso a tais fontes. A data em que cada página médica foi atualizada deverá ser evidenciada; 5) justificativas – similar ao anterior no que se refere a comprovar benefícios e resultados de tratamentos, produtos, serviços apresentados; 6) transparência na propriedade – os administradores visuais do portal devem apresentar claramente a informação e indicar endereços de contato para visitantes. O webmaster deverá exibir seu endereço eletrônico em todas as páginas; 7) transparência de patrocínio – os apoios (financeiros, materiais e de serviços) devem ser explicitados claramente, identificando, inclusive, as organizações comerciais e não-comerciais que tenham participado da construção do site; 8) honestidade da publicidade e da política editorial – deve ser claramente explicitado se a publicidade se constitui em fonte de renda do site. Os proprietários devem esclarecer sumariamente a política de divulgação empregada. Anúncios e publicidade devem ser diferenciados em seus contextos de apresentação dos conteúdos originais produzidos (HONcode, 2003). Alguns autores afirmam que a HON Foundation apresenta deficiências por não possuir verificação externa. E, portanto, está vulnerável a abusos, podendo proporcionar uma falsa impressão de segurança (Rigby et al., 2001). Ademais, é interessante observar que esses portais assumem, de forma geral, dois dos três princípios de conduta que no nosso modo de ver estão em jogo nas questões da comunicação de conteúdos em saúde. A informação tem que ser correta, pertinente, adequada (princípio de correção), explícita quanto aos autores e patrocinadores (princípio ético). Entretanto, não se percebe menção a aspectos referentes à reflexão de questões básicas relativas aos processos de construção/difusão/consumo dos produtos tecnocientíficos, essencial para o exercício da crítica. Não notamos estes portais questionando o aumento dos preços de medicamentos, as debilidades das políticas públicas, a ênfase da mídia sobre aspectos ‘selecionados’ etc. Até agora, aparentemente, ainda não é possível divisar com clareza como lidar satisfatoriamente com as questões relativas à avaliação da qualidade das informações de saúde disponibilizadas na rede. Dois relevantes trabalhos foram realizados por Jadad & Gagliardi (1998; 2002). O primeiro mostrou que, em 1998, dos 47 instrumentos de avaliação da qualidade dos portais aparecendo em ‘websites’ oferecendo informação em saúde, 14 descreveram como foram desenvolvidos e cinco proporcionaram instruções para uso. Um segundo estudo, em 2002, procurou indicar se todos os sites de avaliação em 1998 ainda estavam operando. Foram identificados mais 51 novos

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instrumentos. Muitos dos instrumentos de avaliação do estudo original não mais estavam disponíveis. Destes 51, somente cinco forneciam alguma informação que permitisse sua qualificação. Em relação aos seis sites localizados no primeiro estudo que permaneciam funcionando, nenhum desses instrumentos parecia ter sido validado. Como conclusão, os autores sinalizam que muitos instrumentos incompletos de avaliação da informação em saúde na rede continuam a aparecer. Muitos pesquisadores e organizações estão explorando formas de ajudar pessoas a procurar e a utilizar informação de qualidade confiável na rede. Mas, se tais informações são necessárias, efetivas ou sustentáveis ainda precisa ser demonstrado. (Jadad & Gagliardi, 2002). A expansão caótica da WEB: a soma das máquinas e as sínteses dos humanos Desde o início da Modernidade, a faceta cultural sustentada pelo arcabouço científico nos tem protegido do medo ancestral do desconhecido. O que é externo ao conhecimento esclarecido e nos escapa pelas frestas da ciência, gera receios. O que não é racionalizável, nos amedronta pela impressão de sua intangibilidade pelo conhecimento científico. Ocorre que com o advento das TICs e o crescimento incremental do volume de “conhecimento relevante”, acrescentou-se uma forma peculiar de receio pelo desconhecido. Com a expansão desmedida e ininterrupta deste universo de informação ao longo do tempo, explicita-se, de forma cada vez mais reincidente, o receio da indeterminação das fronteiras geradas por este tipo de manancial. Perante tamanha exposição a dados textuais e visuais nunca antes vista na história da humanidade, os desafios também se modificaram. Não obstante, uma proposta razoável para o problema da integração de informação com conhecimento no plano coletivo ainda está para ser formulada pelas TICs. Talvez esta não surja daí, uma vez que seus técnicos parecem estar mais ocupados na potencialização da capacidade das máquinas para transmitir e armazenar mais dados. É possível, mais do que nunca, manipular tais dados em formas cada vez mais sofisticadas, convencendo quanto à utilidade destes expedientes para os mais variados problemas que nunca tivemos. Em outras palavras, estes informatas parecem estar se dedicando inadvertidamente a agravar o problema, certos de que o volume disponível de informação, per se, irá levar, mediante um processo de ‘seleção natural virtual’, à evolução cognitiva do homo sapiens. A capacidade das máquinas de armazenar e apresentar informações há muito superou a potência cognitiva humana em sintetizá-las em conhecimento. Tal fenômeno não é recente, embora ultimamente tenha alcançado níveis paroxísticos, talvez por falta de crítica aos domínios que se sentem livres para nos inundar com dados sem qualquer compromisso com qualidade. No campo movediço da saúde, nos deparamos freqüentemente com dados ambíguos e contradições, tanto no âmbito leigo como no técnico, nas encruzilhadas de variadas visões de mundo e distintos interesses. Tal avalanche de informações tende a nos saturar diante da ‘erudição’ do factual que nos distancia das sínteses essenciais. Neste terreno, como pesquisadores, são intensos nossos esforços em direção a conhecimentos verdadeiros pela busca criteriosa na rede das provas de sua existência (ou utilizando um termo

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traduzido da língua inglesa em voga – as evidências). Nas Ciências da Saúde, o enfoque individual tem procurado ancoramento para suas decisões abordando a dimensão do coletivo. No entanto, mesmo diante da cada vez mais ampliada disponibilidade de tecnologias de acesso a informações, ainda somos obrigados a nos contentar com possíveis e fugidias ‘verdades pontuais’, de acordo com as possibilidades e conveniências delimitadas pelas contingências. Muitas vezes, sentimo-nos desgastados diante do vórtice informacional, onde se acoplam meios e mensagens, em uma poderosa sinergia geradora de compulsividades, tanto ligadas à impraticável atualização de conhecimentos, como na busca insaciável de orientações, preceitos, aconselhamentos, referências. Em especial aquelas dirigidas ao âmbito da saúde que, infelizmente, tendem, também, a perder sua validade. Basta ver como certas dietas alimentares são consideradas adequadas durante algum tempo, para depois serem substituídas por outras novidades, que superariam supostas falhas não detectadas das anteriores. Confundem-se relevâncias e consistências. Desafios na interface Internet/saúde: breves comentários finais Há esforços para amenizar a importante questão da ‘divisão/brecha digital global’ entre as populações informatizadas e as despossuídas que tendem a ampliar as discrepâncias socioeconômicas. Mas as propostas tendem a ser primordialmente técnicas. Para além da falta de acesso dos desinformatizados (sem-hardware e/ou software e/ou web), é preciso levar em conta o fato de que estes recursos não foram concebidos, nem desenvolvidos pelos respectivos produtores de bens e serviços para tais grupos. Basta ver o idioma predominante na rede. Portanto, são mais desafiadores os problemas de aproximar culturalmente indivíduos desinformatizados às novas tecnologias e seus desdobramentos (Edejer, 2000) . Apesar disso, há valorosas e admiráveis iniciativas para enfrentar tais limitações. Um dos melhores exemplos não é governamental. Trata-se do Comitê para a Democratização da Informática, criado por Rodrigo Baggio, filho de um ex-executivo da IBM. Ele e sua equipe procuram locais de aula, treinam instrutores e fornecem computadores para favelas. Já recebeu auxílio de empresas nacionais e estrangeiras e dá consultoria em outros países. Ademais, é perceptível a qualidade desigual da informação na rede, como aponta uma nova linha de estudos avaliativos, por exemplo, o dimensionamento da qualidade da informação na web sobre tratamento da depressão (Griffiths & Christensen, 2000). O que dizer sobre nossos portais de saúde? Em nosso trabalho, à guisa de ilustração, destituída de rigor avaliativo, sinalizamos breves aspectos que sugerem a necessidade de investigação nesta área. No caso de informações sobre saúde, existem aspectos relativos a dimensões socioculturais e educacionais para decisões bem informadas. Estas envolvem entendimentos, nem sempre acessíveis, dos processos de construção dos conhecimentos tecnobiocientíficos na resolutividade de

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questões de saúde. Quais seriam os conteúdos básicos de epidemiologia e de estatística necessários para os indivíduos decidirem racionalmente acerca de medidas de autocuidado sobre dieta, exercício e não-tabagismo? Será que se trata de fornecer informação e técnicas de auxílio à decisão baseada em evidências? Estas condições podem ser necessárias, mas talvez não suficientes, se levarmos em conta dimensões não racionais, inconscientes que habitam a volição humana. Em meio às tentativas de análise sobre a contemporaneidade (seja tecnófila, seja tecnófoba, seja tecnoambivalente), podemos visualizar a imbricação de três sistemas que participam da organização das configurações do mundo atual: o predomínio da razão instrumental e suas produções tecnocientíficas; o poder enfeixado pela junção de instituições e ideologias; a crença na supremacia dos mitos, símbolos e ritos promovidos pela tecnociência. Como possível resultante deste cenário, presenciamos uma colonização da sociedade pela aliança entre geradores de conhecimentos especializados, especialistas que os produzem como objetos tecnológicos, o conjunto do sistema industrial (os macrossistemas técnicos) e as redes de comunicação, distribuição e consumo. Convivemos com excesso de imagens, textos e de escolhas possíveis. Uma das conseqüências palpáveis se constitui na ampliação de rupturas com as configurações simbólicas e com as mediações que regem as maneiras de ser em conjunto (Balandier, 1999). No caso da saúde, temos a geração de uma sociedade de indivíduos que se reconfiguram sob a forma de protopacientes sem médicos, em consumidores de mercadorias/serviços ligadas tanto à informática como à pretendida proteção da saúde. Baseando-nos em Cohn (2001), cabe aqui um comentário sobre a relação consumidor/cidadão/indivíduo: nos países economicamente mais fortes, as políticas sociais proporcionaram maior igualdade no interior de suas sociedades, por meio dos chamados welfare states. Apesar de seus atuais ‘encolhimentos’ a partir dos ditames neoliberais e das crises fiscais, foi aí que se constituíram e se estabeleceram os direitos de cidadania. Estes, de fato, não vieram separados do movimento de afirmação do próprio estatuto do ser ‘cidadão’, viabilizado pelas inerentes condições socioculturais e políticas de seus contextos socioculturais. Assim, tais cidadãos ocupariam criteriosamente seu lugar de consumidores bem informados que lidariam com as injunções do mercado de forma mais autônoma, pois estariam cientes de seus direitos. Porém, como indica Bauman (2000), em função do inexorável processo de individualização contemporâneo (como mencionado no início do texto), o indivíduo se constitui como um vetor de desgaste e fragmentação para o cidadão. O primeiro usufrui da liberdade pessoal de escolha, inclusive para consumir como melhor lhe aprouver, descrente, indiferente, ou, na melhor das hipóteses, cauteloso quanto a participar de ações efetivas dirigidas ao ‘bem comum’. Já o segundo buscaria seu próprio bem-estar pelo bem-estar da ‘cidade’. Por mais resultados favoráveis que proporcionem, a busca de interesses comuns dos cidadãos é vista, no limite, como restrição à liberdade de escolha pessoalizada por parte do indivíduo de direito. Mas, para este se tornar um indivíduo de fato, é imperioso que se torne antes cidadão. Enfim, inegavelmente, vivemos no Ocidente, com variações conforme as

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características das distintas formações sociais, políticas e econômicas, em situações hipermediatizadas – sociedades de indivíduos submetidos à nova trindade: informação, comunicação, técnica. Como assinala Balandier (1999), somos todos cada vez mais pertencentes à categoria Homo cathodicus, seres mediados por teclas e telas. Nestas circunstâncias, proliferam informações nem sempre congruentes e, também, aumentam as incertezas e as ansiedades diante desta saturação de possibilidades. Apesar da importância atribuída à faceta libertária e democratizante da Internet, são necessários pré-requisitos tecnoculturais para acessá-la. Vale retomar a discussão de Sousa-Santos (2000) sobre a dupla ruptura epistemológica entre conhecimento científico e senso comum: a primeira se dá quando a ciência se diferencia do senso comum, a segunda consistiria em romper com a primeira para transformar o conhecimento científico em um novo senso comum. Mas que este não se torne regulatório e sim emancipatório. Então, como as estratégias comunicacionais viabilizadas pelos objetos tecnocientíficos nos permitiriam sair do senso comum conservador e chegar ao conhecimento emancipatório, aquele que não recusa a tecnologia, inclusive a utiliza para aceder ao “autoconhecimento ... e traduzir-se em sabedoria de vida”? Para isto, o referido autor detalha os elementos de uma “epistemologia dos conhecimentos ausentes” no interior de uma “epistemologia da visão” que lida com a tensão entre as facetas regulatórias e emancipatórias do conhecimento (Sousa-Santos, 2000, p.248). Aí, o sociólogo luso aponta a necessidade de prudência com vistas a perceber e controlar a maior insegurança, especialmente nos grupos oprimidos, excluídos, vulneráveis da sociedade e que mais se beneficiariam de práticas emancipatórias. Se, por um lado, são visíveis as manifestações de descontrole da técnica tais como se observa: na proliferação de sites que difundem pedofilia, nazifascismo, anorexia nervosa, que ensinam processos químicos e técnicas laboratoriais para a produção de psicofármacos (como o ecstasy), ou mesmo artefatos explosivos etc; na criação incessante de novos e virulentos vírus de computador, (transgressões da técnica contra si própria); no recrudescimento e ampliação do terrorismo fundamentalista que utilizou a web em suas comunicações, fato que gerou restrições e controle do fluxo de mensagens da rede. Por outro lado, é preciso assumir os indiscutíveis benefícios da inovação, da produção e da eficácia dos recursos tecnobiocientíficos no âmbito da saúde: vacinas, fármacos mais potentes, equipamentos médicos para aumentar a acurácia do diagnóstico, tratamento e reabilitação. São evidentes os efeitos em termos de aumento da longevidade e nas tentativas de procrastinação dos efeitos do envelhecimento para aqueles capazes de atuar como agentes de consumo. A disponibilização de dados e de programas computacionais de auxílio à decisão via Internet pode ampliar o acesso das populações a informações sobre cruciais questões da vida e da saúde. Pode, também, ajudar a reduzir desgastes e ansiedades decorrentes das incertezas que se insinuam nas práticas de saúde, tanto no lado do profissional como no daquele que necessita de cuidados, não obstante o nome ou papel que se lhe atribua.

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Sem dúvida, é importante o estudo de usos da informática em saúde e respectivos riscos conforme a inadequação dos contextos de comunicação e, também, acerca das dificuldades de regulamentação consistente diante de temas relativos à saúde na rede. Mas, sobretudo, mesmo com os problemas decorrentes da individualização, ainda é essencial que se criem condições de aproximação entre os estatutos de cidadão e de consumidor (e de conhecimentos regulatório e emancipatório) em sociedades profundamente iníquas como a nossa. Referências BALANDIER, G. O dédalo. Para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. BAPTISTA, C. A dor de nunca saber o bastante. Veja, n.1716, p.62-6, 2001. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2000. BERNERS-LEE, T.; HENDLER, J.; LASSILA, O. The Semantic Web. A new form of Web content that is meaningful to computers will unleash a revolution of new possibilities, 2001. Disponível em: <http:// www.sciam.com/article.cfm?articleID=00048144-10D2-1C70-84A9809EC588EF21>. Acesso em: 14 abr. 2003. CASTIEL, L. D.; VASCONCELLOS-SILVA, P. R. Internet e o autocuidado em saúde: como juntar os trapinhos? Hist., Ciênc., Saúde – Manguinhos, v.9, n.2, p.291-314, 2002. COHN, A. Saúde e democracia: o resgate da política. In: CONGRESSO PAULISTA DE SAÚDE PÚBLICA, 7., Santos, 2001. Resumo... Santos, 2001, p.12-9. EDEJER, T. T. Disseminating health information in developing countries: the role of Internet. BMJ, n.321, p.797-800, 2000. EYSENBACH, G. Consumer health informatics. BMJ, n.320, p.1713-6, 2000a. EYSENBACH, G. Towards ethical guidelines for dealing with unsolicited patients emails and giving teleadvice in the absence of a pre-existing patient-physician relationship – systematic review and expert survey, 2000b. J. Med. Internet Res., v.2, n.1. Disponível em: <http://www.jmir.org/2000/1/e1/>. Acesso em 14 abr. 2003. EYSENBACH, G.; DIEPGEN, T. L. The role of e-health and consumer health informatics for evidence-based patiente choice in the 21st century’. Clin. Dermatol., n.19, p.11-7, 2001. EYSENBACH, G.; SA, E. R.; DIEPGEN, T. L. Shopping around the Internet today and tomorrow: towards the millenium of cybermedicine. BMJ, n.319, p.1294-6, 1999. FEDER, B.; LYONS, J. S. Study gives mixed reviews to health sites on Web Online medical informations can be uneven, hard to find, 2001. Disponível em: <http://www.siliconvalley.com/docs/news/depth/ health052301.htm>. Acesso em 12 dez. 2002. GRIFFITHS, K. M.; CHRISTENSEN, H. Quality of web based information on treatment of depression: cross sectional survey. BMJ, n.321, p.1511-5, 2000. JADAD, A. R.; GAGLIARDI, A. Rating health information on the Internet: navigating to knowledge or to Babel? JAMA, n.279, p.611-4, 1998. JADAD, A. R.; GAGLIARDI, A. Examination of instruments used to rate quality of health information on the Internet: chronicle of a voyage with an unclear destination. BMJ, n.324, p.569-73, 2002. MANDL, K. D.; SZOLOVITS, P.; KOHANE, I. S. Public standards and patients control: how to keep electronic, medical records accessible but private. BMJ, n.322, p.283-6, 2001.

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CASTIEL, L. D.; VASCONCELLOS-SILVA, P. R. Interfaz Internet/s@lud: perspectivas y desafíos, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.47-64, 2003. Las tecnologías de información y comunicación vía Internet (TIC) son transformadas en elementos/procesos/objetos producidos para ser utilizados en el ámbito de las tecnobiociencias humanas, vinculadas tanto a las prácticas de la Biomedicina como a las de la Salud Pública. Las TIC ocupan dominios cada vez más abarcadores de la informática médica, produciendo sectores de especialización denominados e-salud, telemedicina, cibermedicina y la llamada informática para la salud del consumidor (ISC). La ISC, en especial, busca suplir las necesidades de información de los consumidores, que podrían hacer elecciones para adquisiciones, en principio, mejor informados. Surgen programas computacionales para ayuda a decisiones (‘decision aids’ software) y la Web semántica. Se percibe en esta situación la imbricación de tres sistemas: el predominio de la razón instrumental y sus producciones tecnocientíficas; el poder hacinado por la unión de instituciones e ideologías; la creencia en la supremacía de los mitos, símbolos y ritos promovidos por la tecnociencia. Como posible resultante tenemos una colonización de la sociedad por la alianza entre autoridades generadoras de conocimientos especializados, profesionales encargados de producirlos como objetos técnicos o empaquetarlos con envolturas tecnológicas, el conjunto del sistema industrial y las redes de comunicación, distribución y consumo. PALABRAS CLAVE: internet; informática médica; telemedicina; asistencia médica; promoción de la salud.

Recebido para publicação em 26/05/03. Aprovado para publicação em 27/06/03.

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artigos

Evaluación del impacto de los cambios de las metodologías de enseñanza-aprendizaje en egresados de los programas de Medicina y Enfermería de la Universidad del Norte, Colombia Rodrigo Barceló 1 Edgar Navarro 2

BARCELÓ, R.; NAVARRO, E. Assessment of the effect of the exchange rate on the teaching-learning methods deriving from the Medicine and Nursing programs of the Universidad del Norte, Colombia, Interface Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.65-78, 2003. A transverse descriptive study was carried out in order to assess the effect of the changes to the teaching learning methods of students of the Medicine and Nursing programs of the Universidad del Norte of Barranquilla, Colombia. Groups of students graduating in 1993 and 1999 were compared. The latter correspond to the first group of graduates exposed to the changes in the curricula promoted by the Barranquilla UNI Project. The information was obtained by means of a questionnaire addressed to those taking part. The results show statistically significant differences between the groups, favoring the UNI – exposed graduate groups using active student-centered teaching methods, the ability to gain access to new technologies, fostering cross-professional and community teamwork, continuing self-learning after graduation, conducting research into the epidemiological circumstances of the regions and proposing solutions to the needs expressed by the community. As these students have very recently graduated, new studies should be carried out for subsequent assessment and monitoring. KEY WORDS: Evaluation studies; teaching; learning; methods; curriculum; universities; Medical Education. Se realizó un estudio descriptivo transversal con el objetivo de evaluar el impacto de los cambios en las metodologías de enseñanza-aprendizaje en estudiantes de los programas de Medicina y Enfermería de la Universidad del Norte de Barranquilla, Colombia. Se compararon dos cohortes de estudiantes egresados en los años 1993 y 1999, esta última correspondiente al primer grupo de egresados expuestos a la influencia de los cambios curriculares propiciados por Proyecto UNI – Barranquilla. La información se obtuvo mediante la aplicación de una encuesta autodiligenciada a los participantes. Los resultados muestran diferencias estadísticamente significativas entre los grupos a favor de la cohorte de egresados expuestos al ideario UNI respecto a: utilización de metodologías activas de enseñanza, posibilidad de utilizar nuevas tecnologías, implementar el trabajo multiprofesional y con líderes comunitarios, dar continuidad al autoestudio, investigar la realidad epidemiológica de la región y proponer soluciones para las necesidades presentadas por la comunidad. Como el tiempo de formación de esos estudiantes es muy reciente, deberán ser realizados nuevos estudios para evaluación y seguimiento posterior. PALABRAS CLAVE: Estudios de evaluación; enseñanza; aprendizaje; metodos; currículo; universidades; Educación Médica.

1 Director do Proyecto UNI – Barranquilla; Docente, Departamento de Salud Familiar y Comunitaria. Universidad del Norte. <rbarcelo@uninorte.edu.co> 2 Coordinador de Investigación. Proyecto UNI – Barranquilla. Docente, Departamento de Salud Familiar y Comunitaria. Universidad del Norte. <enavarro@uninorte.edu.co>

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Introducción Las características del entorno y los cambios permanentes que ocurren en nuestra sociedad influyen de manera decisiva en la educación superior, y por lo tanto esta debe realizar los ajustes necesarios en los currículos de los programas para dar respuesta a los requerimientos y necesidades que aparecen y así cumplir cabalmente su papel social. La práctica médica y de enfermería no esta exenta de la realidad social y por lo tanto deben realizar los ajustes necesarios para adaptarse a los cambios. Los cambios han ocurrido en diferentes aspectos, dentro de los cuales se encuentran: la atención del paciente (se transformó la práctica individual en una práctica colectiva; lo anterior conduce a establecer la necesidad de entender al individuo dentro del contexto familiar y social; los cambios ocurridos en la legislación de la seguridad social que exigen una prestación de servicios médicos eficientes, de buena calidad y con una amplia cobertura; énfasis en los aspectos de promoción de la salud y prevención de la enfermedad); en la ciencia y tecnología (la producción vertiginosa de información científica y su amplia difusión por redes computarizadas; innovaciones en los campos de la genética y la inmunología; avances en la biotecnología); en la estructura demográfica (inversión en la relación urbano/rural en el país debido a los problemas sociales, económicos y de violencia; inversión de la pirámide poblacional con disminución de los grupos de población de 0 a 15 años y aumento del grupo de edad entre 15 a 64 años, y leve incremento en los mayores de 65 años) (Velasco, 1993); en la legislación (en la constitución colombiana de 1991 se establece que la salud es un derecho irrenunciable del individuo; las modificaciones establecidas por la Ley 100 de 1993; la ley 60 de 1993 sobre la distribución de competencias y recursos; incremento de la participación ciudadana en la toma de decisiones en el Sector Salud); en la tendencia epidemiológica (los cambios en la estructura demográfica y social del país conllevan a una transición epidemiológica) (Velasco, 1993). Pero a pesar de que se aprecian en los primeros lugares de la morbilidad y mortalidad patologías propias de países desarrollados existe aún presencia de patologías tales como paludismo, parasitismo, desnutrición, tuberculosis, consideradas como enfermedades reemergentes (Ordóñez, 1995). En cuanto a las causas de morbilidad de consulta externa y egresos hospitalarios el primer lugar es ocupado por embarazo y parto normal y sus complicaciones, en la consulta de urgencia este lugar lo ocupan los traumas y heridas como consecuencia de la etapa de violencia social que atraviesa el país (Ordóñez, 1995). Al realizar el análisis de los años de vida potencialmente perdidos y años de vida saludables perdidos (AVISAS) (Murray, 1995) se aprecia que las patologías relacionadas con la violencia también ocupan el primer lugar en nuestro país, seguidas de las enfermedades cardiovasculares e infecciosas (Corposalud, 1997). Por todo lo anterior, es necesario realizar en los currículos de Medicina y Enfermería cambios que conlleven a una estrategia de articulación de la

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enseñanza del aprendizaje que trascienda el trabajo de una sola profesión e involucre la conformación de equipos multiprofesionales que desde el pregrado le permitan al estudiante trabajar en equipo con otras profesiones respetando cada uno su campo de saberes y donde la comunidad se involucre no solo como receptora de actividades de los servicios y la academia sino como participante activa en todas las acciones sobre ellos emprendidas. Con el anterior ideario, se inició el Proyecto UNI - Barranquilla, Una Nueva Iniciativa en la Educación de los Profesionales de la Salud, proyecto de ámbito comunitario en el cual participan como socios desde el inicio, agosto de 1994, La Universidad del Norte, La Comunidad de trece barrios del Suroccidente de Barranquilla, Distrisalud, Dasalud y Organizaciones No Gubernamentales (Fe y Alegría, Plan Internacionales) además se ha integrado al proceso la Universidad del Atlántico, con su Facultad de Nutrición y Dietética. Las estrategias que utiliza el Proyecto son la integración vertical y horizontal para articular los esfuerzos de los diversos departamentos y disciplinas en el desarrollo de los currículos de Medicina y Enfermería de la Universidad del Norte. El mercadeo social que permite identificar, anticipar y satisfacer las necesidades y expectativas de la comunidad. La Planificación Estratégica nos ayuda a identificar las fortalezas, debilidades, oportunidades y amenazas en cada uno de los componentes del Proyecto, además de establecer prioridades y planes de desarrollo institucional. Con la Investigación Acción se realiza el diagnóstico de los problemas de la comunidad, servicios y universidad; la Metodología de Sistemas como enfoque sistemático en el análisis de problemas contribuye al desarrollo de la evaluación de cada uno de los componentes del Proyecto (Oficina de Planeación Universidad del Norte, 1995). El proyecto UNI presenta como resultado esperado en la academia el establecimiento de modelos académicos de unión con la comunidad y articulación con los servicios de salud, que incluyan: tecnologías apropiadas para enseñanza-aprendizaje junto con la presentación de servicios en centros de salud, o junto a la comunidad en equipos multiprofesionales; ajustes académicos necesarios para que el trabajo antes mencionado sea realizado en tiempo curricular; actividades de investigación clínica, epidemiológica y gerencial orientada a la solución de problemas de la comunidad y de los servicios; desarrollo de nuevos líderes en el campo de la educación de los profesionales de la salud (Kisil & Chaves, 1994). El componente de Evaluación, dentro del Proyecto UNI Barranquilla, es el encargado de identificar, obtener y proporcionar información útil descriptiva acerca del valor y el mérito de las metas, la planificación, la realización y el impacto de las actividades y procesos desarrollados por los otros componentes del Proyecto con el fin de servir de guía para la toma oportuna de decisiones, solucionar los problemas y promover la comprensión de los fenómenos implicados (Jauregui & Suarez Chavarro, 1998; Barcelo et al., 1996; Aguilar & Ander-Egg, 1994). En la segunda fase, en la cual se encuentra el Proyecto UNI Barranquilla, el componente Evaluación centra sus actividades en identificar y determinar

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el resultado e impacto de los procesos iniciados durante la primera fase. Dentro de la determinación del resultado e impacto de los cambios surgidos en la academia está evaluar el desempeño de los estudiantes egresados de los programas de medicina y enfermería antes del inicio del proyecto UNI Barranquilla para realizar la comparación con el desempeño de la primera cohorte de estudiantes que recibieron todos los cambios surgidos en los currículos y metodologías de enseñanza-aprendizaje por influencia del proyecto UNI. Los resultados de la presente investigación contribuirán de manera importante en la evaluación de Cluster realizada por la Fundación W. K. Kellogg. Evolución del currículo de la Facultad de Medicina La Universidad del Norte en los inicios de la Facultad de Medicina, se planificó para tener como producto final del currículo a un médico general bien informado y de excelente formación ética y moral. Era un currículo rígido, con una fijación vertical y horizontal inamovible, en el que no se observaba una proyección a la comunidad, que estudiara y enseñara a los alumnos las prioridades de los problemas de salud tanto en la comunidad como en la región y el país (Espinosa Taboada, 1997). Era la forma universal de enfocar la salud, y las escuelas de medicina aunaban todo su esfuerzo en formar profesionales cada día más expertos en curar la enfermedad y desarrollar tecnologías más capaces de diagnosticarla. Sin embargo, era preocupante ya en las organizaciones de salud a nivel mundial el incremento cada día más evidente de las enfermedades tanto en el campo infeccioso como en el crónico. Se investigaba muy aceleradamente para conseguir un marco que permitiera campañas y educación tanto en la epidemiología como en la prevención de las enfermedades. Todo ello provocó que en las facultades de medicina, inspiradas por las organizaciones mundiales de la salud y los encuentros a nivel de los países y del mundo en general, se iniciara una preocupación constante para buscar, aplicar y poder desarrollar un currículo que permitiera no sólo conocer las enfermedades de la comunidad, sino enfocar los problemas de salud hacia las prioridades en estas enfermedades, y en forma activa poder educar a los nuevos galenos con una proyección eminentemente social y comunitaria. Fue así como la División Ciencias de la Salud propuso a las autoridades de la Universidad una reforma curricular para ser aplicada a partir de 1988, y que fundamentalmente incluyera cambios metodológicos en la enseñanza y en la proyección del aprendizaje de los alumnos hacia la comunidad. Basado en lo anterior, en 1986 se inició una revisión exhaustiva de todo el currículo, el contenido de sus cátedras, la aplicación de los contenidos en las distintas etapas y la repetición de muchos elementos en la enseñanza, y finalmente el tiempo requerido para un aprovechamiento de los alumnos en las distintas cátedras. Esta investigación se llevó a cabo con participación de alumnos, profesores, coordinadores de cátedra y jefes de departamento. Después de varias reuniones de distinto tipo, y dirigidos por el Comité Curricular, y de análisis de contenido, se llegó a la conclusión, conforme a la época, que era

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necesario aumentar un año más al currículum, con el fin de satisfacer las enseñanzas a nivel de Medicina Interna, Cirugía General y Especialidades Quirúrgicas, además de insertar nuevas cátedras que cubrieran las necesidades de enseñanza a los alumnos, como son la Salud Ocupacional y la Gerencia en Salud. Igualmente se consideró que los alumnos debían presentar un trabajo científico, ubicado en el VIII y XII semestre, con lo cual se satisfizo el desarrollo de la investigación, como eje fundamental del nuevo currículum. Con este currículum se inició en forma tímida una integración entre los distintos Departamentos de la División y sus respectivas cátedras, de tal manera que docentes de Medicina Preventiva se involucran en la enseñanza de Ciencias Básicas. También, docentes de las Ciencias Clínicas Médicas alternan en algunas cátedras con docentes de los otros departamentos. Concluidos todos los estudios y análisis para esta reforma curricular, finalmente es aprobada por el Comité Curricular y a nivel del Consejo Académico, y se escogió para su iniciación el primer semestre de 1988. Con este currículum se lograron los siguientes propósitos: Se adopta en forma definitiva la metodología de enseñanza por solución de problemas. La Salud Familiar y Comunitaria se hace transcurricular, lo cual permite que desde sus primeros semestres el estudiante entre en contacto con la comunidad y se inicie su aprendizaje de problemas de salud en atención primaria. Se comienza la etapa de iniciar al estudiante en el desarrollo de investigaciones mediante la enseñanza, a través de los primeros semestres, de las metodologías propias de cada disciplina investigativa, y posteriormente la elaboración de un trabajo para obtener su título de médico. Se da comienzo a la integración de las diferentes cátedras de cada departamento de la División Salud en una forma muy tímida, pero con empeño de desarrollarlas. El Comité Curricular toma más conciencia de mantenerse en permanente actividad investigativa con los estudiantes, profesores, coordinadores de cátedra y jefes de departamentos, sobre la aplicación del currículo, su desarrollo y sus posibles ajustes semestrales cuando así se considere. Se logra un currículo flexible, adecuado a los tiempos que vivimos y a las grandes transformaciones en salud y la enseñanza médica de pregrado. Creemos contribuir para formar al médico ético que nuestra región y Colombia necesitan: un médico general con excelente preparación científica y con una educación integral.

Hasta este momento hemos analizado lo que ha pasado con nuestro currículo después de quince años de evolución de nuestra Facultad de Medicina. Es indudable el progreso tanto en la enseñanza científica como en la formación humanística que se les brindará a nuestros estudiantes a partir de esta reforma. Así mismo, se consideró que la permanente evaluación en

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el desarrollo del currículo exigía ajustes e innovaciones que debían hacerse en cada semestre, acordes con la evolución en la enseñanza médica y las reformas en el campo de la seguridad social que estaban por llevarse a cabo en el país. A partir de 1993 se consideró la imperiosa necesidad de iniciar una integración Básico-Clínica - Preventiva y Comunitaria, para lo cual se llevó a cabo un análisis del contenido de cada programa y la elaboración de seminarios y paneles cuyo contenido tuviera el marco de clases magistrales, con el objeto de que a medida que se desarrollara la enseñanza por solución de problemas se fueran suprimiendo paulatinamente las clases magistrales en cada programa. A principios de 1994, la Rectoría planificó, para toda la Universidad, hacer una Reconceptualización del Crédito, y poder así evaluar el tiempo necesario para cada asignatura y considerar el espacio que cada estudiante debiera tener para sus propias actividades en sus obligaciones académicas. Fue así como el Comité Curricular, en forma muy activa, procuró un intercambio de los contenidos de cada programa entre los distintos departamentos y cada una de las cátedras. A partir de 1994 con el inicio del proyecto UNI - Barranquilla se incrementa más la integración entre los distintos departamentos, y se establecen las bases para lograr una mayor aplicación, entre alumnos y profesores, de la Metodología de enseñanza por solución de problemas y el aprendizaje basado en problemas (Espinosa Taboada, 1997). Con todos estos sucesos y haciendo el Comité Curricular permanentes evaluaciones del proceso de enseñanza y aplicaciones y desarrollo del currículo, se propuso, para iniciar en el II semestre de 1995, una integración entre las cátedras del área del Comportamiento y Salud Mental, con las cátedras de Salud Familiar y Comunitaria, y Química y Biología y Ciencias Básicas. Fue así como la Psicología Medica, Psicología Evolutiva y Psicopatología se integraron con las cátedras de Salud Familiar y Comunitaria I, II, III, IV y V. Además, en Psiquiatría, aunque quedó como una cátedra aparte, se involucraron Módulos en Medicina Interna I, Medicina Interna II, Ginecología y Obstetricia y Cirugía I. En forma simultánea se inició Historia de la Medicina en el segundo semestre, integrada a Morfofisiología, y en el tercer semestre a Morfología, y se suprimió en el primer semestre. Se trasladó la Introducción a la Salud Familiar y Comunitaria al primer semestre. Creemos que de esta manera se logre preparar en forma aún más práctica a los nuevos alumnos para la actividad temprana de la medicina comunitaria, reforzada con la enseñanza que se da en la Introducción a la vida universitaria, directamente por la Dirección de Programas, sobre inducción de las metodologías de la enseñanza por solución de problemas y el aprendizaje basado en problemas. Dentro de los cambios más relevantes ocurridos con el Proyecto UNI – Barranquilla en los currículos de Medicina y Enfermería se encuentran: orientado hacia la comunidad, trabajando de manera integrada con miembros de la comunidad y no por o para la comunidad; integración horizontal de los contenidos (clínico – básico – epidemiológica) tanto en la teoría como en la práctica; investigación como transdisciplina; basada en la

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Atención Primaria en Salud; el estudiante como eje del proceso de aprendizaje; trabajo en equipos multiprofesionales desde los primeros semestres de su formación; practica clínica descentralizada de los niveles terciarios de atención a los centros de salud del primer nivel de atención; empleo de metodologías activas de aprendizaje, en aproximadamente el 70% de las asignaturas del Plan de estudio, que incluyen solución de problemas, aprendizaje basado en problemas, aprendiendo a aprender e investigación – acción - participación. La División Ciencias de la Salud de la Universidad del Norte con sus programas de Medicina y Enfermería ha participado desde el inicio del Proyecto UNI - Barranquilla, en 1994, por lo que se considera importante evaluar el desempeño de dos cohortes de estudiantes egresados de los programas de Medicina y Enfermería, las cohortes del 93 y 99, sin y con la influencia de las modificaciones realizadas en las metodologías de enseñanza-aprendizaje comparado para evaluar de manera indirecta los resultados e impacto debido al proyecto su desempeño. Objetivos Evaluar el impacto de los cambios en las metodologías de enseñanzaaprendizaje en estudiantes de los programas de Medicina y Enfermería de la Universidad del Norte; Recibir información eficiente de los egresados para la evaluación institucional y los ajustes curriculares; Realizar los ajustes institucionales necesarios para la promoción de profesionales con mayor capacidad para el ejercicio de sus labores, con espíritu investigativo y conocimiento de los campos ocupacionales en que se va a desempeñar. Materiales y métodos Un estudio descriptivo trasversal (Pineda et al., 1994), en el cual no se busca establecer una representación probalística del Universo de egresados sino establecer una comparación entre una cohorte de egresados que no hayan recibido la influencia de los cambios generados por el Proyecto UNI Barranquilla en los currículos de Medicina y Enfermería (cohorte 1993) y comparado con una cohorte que recibió la influencia del Proyecto UNI – Barranquilla (cohorte 1999). Población de estudio: el proceso de selección de la muestra no se realizará para ninguno de los egresados de los dos programas de manera aleatoria porque no se pretende una representación de todo el Universo sino extraer información de los actores claves dentro del proceso. La muestra estuvo constituida por 65 egresados de los programas de medicina y enfermería de ambas cohortes. La unidad de análisis estuvo constituida por los egresados de los programas de Medicina y Enfermería que brinden la información solicitada en el cuestionario de recolección de la información. Recolección de la información: la información se recolecta mediante una encuesta autodiligenciada en la cual se obtuvieron los datos de identificación de los egresados, problemas surgidos durante la carrera,

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realización de prácticas en la comunidad y/o puestos de salud, fuentes de obtención de información para su aprendizaje, concepciones y opiniones sobre: los cambios o innovaciones en la educación, los procesos de evaluación utilizados en las asignaturas del plan de estudio, la participación de la comunidad en la toma de decisiones relacionadas con la salud, el trabajo en equipo multiprofesional y la utilidad de los procesos de investigación en la generación de conocimiento científico durante su desempeño profesional. La recolección de la información se lleva a cabo a través de dos métodos, primero de encuestas a los egresados que se encuentren en la ciudad de Barranquilla o en ciudades próximas a la ciudad de Barranquilla. Otra parte de los egresados fue localizada a través de llamadas telefónicas y envío posterior de cuestionario por correo postal certificado. Para la realización de las encuestas se realizaron las siguientes etapas: estandarización de encuestadores, con la finalidad de establecer una recolección adecuada de la información se realizó el entrenamiento de un grupo de encuestadores en el diligenciamiento del formulario y realización de Prueba Piloto. Posteriormente se revisaron las recomendaciones y observaciones realizadas por los encuestadores y encuestados para realizar los ajustes necesarios y reproducir el cuestionario de la investigación. El procesamiento de los datos se realizó con una base de datos simple creada en EpiInfo v. 6.04c. El análisis de los resultados se realizó utilizando medidas de frecuencias relativas para aquellas variables de tipo cualitativo y medidas de tendencia central (promedio) y de dispersión (desviación estándar) para las de tipo cuantitativo que fueron recogidas en nivel razón. Para las variables de tipo cuantitativo recogidas en rangos se realizó un análisis con frecuencias relativas. El análisis de los resultados se ejecutó de manera global para los egresados del programa de Medicina y Enfermería. No se realizó análisis en el interior de cada uno de los grupos debido a que el tamaño de la muestra de manera individual no permite la inferencia adecuada de los resultados a la población de la cual proviene cada uno de ellos. Resultados En la tabla 1, se aprecia que no existen diferencias estadísticamente significativas entre las características sociodemográficas y con su desempeño durante las carreras en las cohortes de estudiantes estudiadas. El promedio de edad, el porcentaje de hombres y el porcentaje de personas casadas o en unión libre en las cohortes es similar. De igual manera los grupos son homogéneos en cuanto a promedio de años de duración de la carrera tanto en el programa de medicina como de enfermería y el promedio académico acumulado (rango de valores posibles de 1–5).

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Tabla 1. Distribución de características sociodemográficas de las cohortes de estudiantes de medicina y enfermería.1993 – 1999. Universidad del Norte. Barranquilla Característica

Cohorte 1993

Cohorte 1999

Prueba estadística

Valor de p

Promedio de años de duración de la carrera de Medicina

6.2

6.1

Prueba t = 0.59

0.55

Promedio de años de duración de la carrera de Enfermería

4.3

4.3

Prueba t = 0.1

0.957

Edad

24.5

23.8

Prueba t = 1.89

0.06

Promedio académico acumulado

3.73

3.84

Prueba t = 0.93

0.35

Sexo (porcentaje de hombres)

68

64

Chi cuadrado = 0.14

0.71

Estado civil durante la carrera (% de casados o unión libre)

3

5

Chi cuadrado = 0.01

0.93

En la tabla 2, se muestran las características que los egresados consideraron predominantes en las currículos cursados dentro de su formación profesional. Los datos muestran diferencias estadísticamente significativas a un nivel del 95% a favor de la cohorte del 99, en cuanto al grado de utilización de metodologías de enseñanza centradas en el estudiante, la posibilidad de acceso a nuevas tecnologías para el fortalecimiento del proceso de aprendizaje, el fomento del trabajo en equipo para asegurar los problemas de la comunidad y el fortalecimiento del aprendizaje autodirigido y para continuar aprendiendo después de la graduación. Tabla 2. Distribución de aspectos curriculares en las cohortes de estudiantes de Medicina y Enfermería.1993 – 1999. Universidad del Norte. Barranquilla Cohorte 1993 Cohorte 1999

Aspectos evaluados

Chi cuadrado

Valor de p

4

75.44 *

0.0000001

58

7

57.32*

0.0000001

47

53

12

37.32*

0.000001

26

59

6

16.45*

0.0000498

SI

NO

SI

NO

12

53

61

Possibilidad de acceso a nuevas tecnologías para el fortalecimiento del proceso de aprendizaje

15

50

Fomento del trabajo en equipe para asegurar los problemas de la comunidad

18

Fortalecimiento del aprendizaje autodirigido y para continuar aprendiendo después de la graduación

39

Utilización de metodologías de enseñanza centradas en el estudiante

* Estadísticamente significativo a un 95%

En la tabla 3, se puede apreciar que existen diferencias estadísticamente significativas a un nivel del 95% en cuanto a los procesos académicos desarrollados por los egresados de la cohorte del 99, entre los que se resaltan la existencia de trabajo conjunto con lideres comunitarios, la realización de prácticas en centros comunitarios y primer nivel de atención en salud, la participación de los profesionales de los centros de salud y de la

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comunidad en el proceso de enseñanza de estudiantes y el desarrollo de investigaciones teniendo en cuenta la realidad epidemiológica de la región.

Tabla 3. Distribución de aspectos curriculares en las cohortes de estudiantes de medicina y enfermería.1993 – 1999. Universidad del Norte. Barranquilla Aspectos evaluados

Cohorte 1993 Cohorte 1999

Chi cuadrado

Valor de p

11

30.38 *

0.0000001

62

3

17.74*

0.0000253

38

61

4

23.69*

0.0000011

43

57

8

39.22*

0.0000001

SI

NO

SI

NO

23

42

54

Prácticas en centros comunitarios y primer nivel de atención en salud

43

22

Professionales de los centros de salud y de la comunidad participando en el proceso de enseñanza de estudiantes

37

Investigaciones realizadas teniendo en cuenta la realidad epidemiológica de la región

22

Existencia de trabajo conjunto con lideres comunitarios

* Estadísticamente significativo a un 95%

En la tabla 4, se destacan los aspectos dentro de los currículos de los programas que no muestran diferencias estadísticamente significativas entre las cohortes de estudio. Dentro de ellas se encuentran: la evaluación de los estudiantes centrada en procesos más que en resultados, una posible explicación de este hecho es que a pesar de existir un incremento significativo en las metodologías de enseñanza-aprendizaje activas no se ha podido lograr una modificación en el esquema de evaluación el cual se encuentra centralizado en la Universidad y es igual para todas las otras carreras diferentes a las de salud. Otro de los aspectos que no mostró diferencias significativas en las cohortes fue el fortalecimiento de los aspectos éticos en el proceso de atención en las instituciones de salud y en la interacción con los pacientes, pero el cual no se puede considerar como negativo sino que es un aspecto bastante trabajado e implementado en los currículos desde antes del inicio del Proyecto UNI – Barranquilla con porcentajes de cumplimiento superiores al 80% en ambas cohortes. Es de anotar que existe la necesidad de trabajar en el fortalecimiento del componente administrativo orientado hacia la solución de problemas en la comunidad y los servicios y la preparación del egresado para un eficiente desempeño corporativo.

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Tabla 4. Distribución de aspectos curriculares en las cohortes de estudiantes de medicina y enfermería.1993 – 1999. Universidad del Norte. Barranquilla Aspectos evaluados

Cohorte 1993 Cohorte 1999

Chi cuadrado

Valor de p

51

0.81*

0.36

41

24

2.51*

0.11

10

58

7

0.60*

0.44

41

24

48

17

1.73*

0.18

40

25

46

49

1.23*

0.27

SI

NO

SI

NO

10

55

14

Posibilidad de desempeñarse eficientemente sobre el las nuevas bases de legislación en salud

32

33

Fortalecimiento de los aspectos éticos en el proceso de atención en las instituciones de salud y en la interacción con los pacientes

55

Evaluación de los estudiantes centrada en procesos más que en resultados

Componente administrativo orientado hacia la solución de problemas en la comunidad y los servicios Preparación para un eficiente desempeño corporativo

* Estadísticamente significativo a un 95%

En la tabla 5, se encuentran detalladas las percepciones sobre sus habilidades y competencias reconocidas como satisfactorias durante su desempeño profesional por los egresados en las cohortes de estudiantes de medicina y enfermería. Las que mostraron diferencias estadísticamente significativas a un nivel del 95% a favor de los egresados de la cohorte del 99 son la capacidad para participar en equipos multiprofesionales, la identificación de la necesidad de buscar información para resolver un problema de salud, la capacidad de trabajar de manera conjunta con la comunidad, la identificación de la necesidad de remitir al paciente a un nivel superior de atención o consultar un profesional especialista, la capacidad para evaluar la validez de las publicaciones científicas, la capacidad para desempeñarse dentro del nuevo sistema de salud, la habilidad para realizar actividades de educación en salud, la capacidad para tomar el liderazgo del equipo de salud y la adquisición de la responsabilidad de su propio aprendizaje y aprendizaje continuo. Tabla 5. Distribución de las percepciones sobre habilidades y competencias reconocidas como satisfactorias durante su desempeño profesional por los egresados en las cohortes de estudiantes de medicina y enfermería.1993 – 1999. Universidad del Norte. Barranquilla Competencia o habilidad

Cohorte 1993 Cohorte 1999

Chi cuadrado

Valor de p

SI

NO

SI

NO

Capacidad para participar en equipos multiprofesionales

20

45

38

37

5.64*

0.017

Identificación de la necesidad de buscar información para resolver un problema de salud

33

32

51

14

10.82*

0.001

Capacidad de trabajar de manera conjunta con la comunidad

42

23

53

12

4.69*

0.03

Identificación de la necesidad de remitir al paciente a un nivel superior de atención o consultar un profesional especialista

40

25

48

17

2.23*

0.13

Capacidad para evaluar la validez de las publicaciones científicas

31

34

49

16

10.45*

0.001

Capacidad para desempeñarse dentro del nuevo sistema de salud

21

44

50

15

25.9*

0.000004

Habilidad para realizar actividades de educación en salud

45

20

56

9

4.49*

0.03

Capacidad para tomar el liderazgo del equipo de salud

34

31

49

16

7.44*

0.006

Responsabilidad de su propio aprendizaje y continuar el autoaprendizaje

39

26

59

6

16.45*

0.0000498

* Estadísticamente significativo a un 95%

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BARCELÓ, R.; NAVARRO, E.

Discusión La evaluación de las modificaciones adoptadas en los programas es una necesidad indispensable para determinar el grado de impacto de las mismas. La evaluación de las innovaciones curriculares se constituye en el eje de apoyo para soportar la continuidad de los cambios y mostrar ante los diversos entes interesados el impacto de las mismas. El impacto se puede determinar en términos del estado de salud de la comunidad atendida por el grupo de egresados pero también existen otras maneras de ser medido como: los resultados del programa, los procesos educacionales adoptados y la percepción de los participantes de los programas sobre la importancia de los cambios en su desempeño profesional (McGuire, 1998; Santos Guerra, 1996; Santos, 1993; Briones, 1993). En la presente investigación se encontró que los egresados de los programas de medicina y enfermería expuestos durante su formación académica a las innovaciones curriculares propuestas por el Proyecto UNI – Barranquilla refirieron haber recibido durante su currículo una mayor integración de los contenidos básicos y profesionales, un equilibrio entre la teoría y la práctica, una diversificación de los escenarios de enseñanzaaprendizaje, una educación con orientación a los problemas más relevantes de la sociedad, realización de investigaciones acordes a las necesidades de los servicios de salud, participación en grupos de trabajo multiprofesionales, trabajo conjunto con miembros de los servicios de salud y la comunidad y una educación centrada en el alumno, como sujeto de los procesos de enseñanza-aprendizaje. Lo anterior, según la percepción de los encuestados ha logrado tener un impacto en su desempeño profesional en diferentes aspectos. Las innovaciones curriculares promovidas por el Proyecto UNI – Barranquilla están acordes con las directrices generales para la Educación de los Profesionales de Salud en el siglo XXI, las cuales han sido reseñadas y destacadas en diversos escenarios y espacios de debates sobre el tema (Oberholt & Saunders, 1996). Aún cuando los investigadores reconocen la posibilidad de posible sesgo de información, debido al tiempo transcurrido entre la exposición a los currículos y la evaluación realizada para la cohorte de 1993, los resultados muestran que las percepciones y opiniones de los egresados son congruentes con el ideario impulsado por el Proyecto UNI – Barranquilla y las innovaciones propuestas en el componente académico. Y se considera que los hallazgos son un importante complemento para la evaluación de los programas y deben ser tenidos en cuenta en las nuevas propuestas de ajuste curricular que se están desarrollando en el interior de la Universidad en los currículos de Medicina y Enfermería. Conclusiones Los resultados muestran diferencias estadísticamente significativas entre los grupos a favor de la cohorte de egresados expuestos al ideario UNI en cuanto a la utilización de metodologías activas de enseñanzas centradas en el alumno, la posibilidad de acceder a nuevas tecnologías para fortalecer el proceso de enseñanza-aprendizaje, el fomento del trabajo en equipo

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EVALUACIÓN DEL IMPACTO DE LOS CAMBIOS ...

multiprofesional con el propósito de asegurar la solución de las necesidades de la comunidad, la responsabilidad del propio aprendizaje y continuar con el proceso de autoaprendizaje después de egresado, la existencia de trabajo conjunto con líderes comunitarios, la realización de prácticas en los centros de salud y en espacios comunitarios, la participación de los profesionales de los centros de salud y miembros de la comunidad en las prácticas profesionales, la realización de investigaciones acordes a la realidad epidemiológica de la región. Demuestran que las modificaciones implantadas en las estrategias de enseñanza-aprendizaje en los currículos de Medicina y Enfermería de la Universidad del Norte a través del ideario del Proyecto UNI han generado un impacto en el desempeño de los egresados en su vida profesional, aún cuando el tiempo de egresada de la cohorte expuesta al ideario es muy corta y debe realizarse un estudio de seguimiento posterior. Referências AGUILAR, M.J.; ANDER-EGG, E. Evaluación de servicios y programas sociales. Colección Política, servicios y trabajo social. Buenos Aires: Editores LUMEN, 1994. BARCELÓ, R.; NAVARRO, E.; YANCEN, L.M.; HERRERA, W. V.; ESPINOSA, H.; ROSALES, M.; YEPES, F. Evaluación de las concepciones, conocimientos y opiniones de los diferentes actores del proyecto UNI Barranquilla sobre el ideario UNI y el proyecto. Barranquilla: Universidad del Norte, 1996. (Documento Proyecto Uni, may - julio, 1996). BRIONES, G. Evaluación educacional: formación de docentes en investigación educativa. 2.ed. Santa Fe de Bogotá: SECAB, 1993. ESPINOSA TABOADA, H. Evolución del currículum de la Facultad de Medicina de la Universidad del Norte: reflexiones sobre formación integral. Barranquilla: Ediciones Uninorte, 1997. OFICINA DE PLANEACIÓN UNIVERSIDAD DEL NORTE. Estrategias Generales de Desarrollo, 1995 1998: la Universidad hacia el siglo XXI. Santa Fe de Bogotá: Editorial Presencia, 1995. JAUREGUI, C.A.; SUAREZ CHAVARRO, P. Promoción de la salud y prevención de la enfermedad. Enfoque en Salud Familiar. Bogotá: Editorial Médica Internacional Ltda, 1998. MCGUIRE, C. Evaluación de programas: ¿un lujo cómodo o una necesidad básica? en educación de orientación comunitaria de los profesionales de Salud. Maastricht: Network Publications, 1998. MURRAY, C. J. L. Cuantificación de la carga de enfermedad: la base técnica del cálculo de años de vida ajustados en función de discapacidad. Bol. Ofic. Sanit. Panam., v.118, n.3, p. 221-42, 1995. ORDOÑEZ, M.; OCHOA, L.H.; OJEDA, G. Encuesta nacional de demografía y salud. 1995. PROFAMILIA. Santa Fe de Bogotá, 1995. CORPOSALUD. Perfil Epidemiológico Costa Caribe Colombiana 1996: análisis de la carga de la enfermedad 1994. Colombia, 1997. PINEDA, E. B.; ALVARADO, E. L.; CANALES, F. H. Metodología de la Investigación. 2.ed. Washington: Organización Panamericana de la Salud, 1994. OBERHOLT, C. A.; SAUNDERS, M. K. (Eds.). Policy choices and practical problems in health economics. Washington (D.C.): World Bank, 1996. KISIL, M.; CHAVES, M. (Orgs.) Programa UNI: una nueva iniciativa en la educación de los profesionales de la salud. Battle Creek: W. K. Kellogg Foundation, 1994.

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BARCELÓ, R.; NAVARRO, E. Avaliação do impacto das mudanças das metodologias de ensino-aprendizagem em egressos dos programas de Medicina e Enfermagem da Universidade do Norte, Colombia, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.6578, 2003. Realizou-se um estudo descritivo transversal com o objetivo de avaliar o impacto das mudanças em metodologias de ensino-aprendizagem em estudantes dos programas de Medicina e Enfermagem da Universidade do Norte de Barranquilla, Colômbia. Compararam-se os coortes de estudantes egressos nos anos de 1993 e 1999, estes últimos o primeiro grupo de egressos expostos às influências das mudanças curriculares propiciadas pelo Projeto Uni Barranquilla. Os dados foram obtidos mediante aplicação de questionário dirigido aos participantes. Os resultados mostram diferenças estatisticamente significativas entre os grupos, a favor do coorte de egressos expostos ao ideário Uni quanto à: utilização de metodologias ativas de ensino, possibilidade de utilizar novas tecnologias, implementar o trabalho multiprofissional e com líderes comunitários, dar continuidade ao auto-estudo, investigar a realidade epidemiológica da região e propor soluções para as necessidades apresentadas pela comunidade. Como o tempo de formação desses estudantes é muito recente, novos estudos deverão ser realizados para avaliação e seguimento posterior. PALAVRAS-CHAVE: Estudos de avaliação; ensino; aprendizagem; métodos; currículo; universidades; Educação Médica.

Recebido para publicação em 19/11/02. Aprovado para publicação em 28/03/03.

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Projeto Uni: cenário de aprender, pensar e construir a interdisciplinaridade na prática pedagógica da Enfermagem Roseni Rosângela de Sena 1 2 Juliana Carvalho de Araújo Leite 3 Kênia Lara da Silva 4 Fabíola Moura da Costa

SENA, R. S.; LEITE, J. C. A.; SILVA, K. L.; COSTA, F. M. Uni Project: a background in which to learn, think and build interdisciplinarity in teaching nursing, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.79-90, 2003.

The study examines the incorporation of the interdisciplinary approach in two nursing courses in Brazil that pursue UNI Projects. It is a descriptive, qualitative study, using historical dialectic materialism as its theoretical framework. Its purpose was to examine the changes that have taken place in the teaching of the nursing courses, with emphasis on interdisciplinarity. The primary data was gathered using interviews by focus groups, teachers and students of the courses and nurses in service. The secondary sources were obtained through an examination of curriculums and other documents available in these schools. It was found that the courses are using interdisciplinarity as a strategy to substitute the organization of the curriculum by subject. The teachers described the difficulties of working from this point of view, indicating biological training as one of the determinants of this difficulty. They concluded that the emphasis on interdisciplinarity and team work has demanded the adoption of active teaching methods and has contributed to the change to the nursing teaching model in the university investigated. KEY WORDS: Teaching; Nursing; interdisciplinarity; professional practice.

Investiga-se a incorporação do enfoque interdisciplinar em dois cursos de Enfermagem no Brasil, que desenvolvem o Projeto UNI. Trata-se de pesquisa qualitativa, com referencial teórico-metodológico crítico. Teve como objetivo analisar as transformações ocorridas no processo de ensino desses cursos, tendo como ênfase a interdisciplinaridade. Os dados primários foram levantados utilizando a técnica de grupo focal, junto a docentes e alunos dos cursos das escolas cenários da pesquisa. Os dados de fonte secundária foram obtidos da análise documental de currículos e de outros documentos de ensino disponíveis nessas escolas. Resultados evidenciam que os cursos estão utilizando a interdisciplinaridade como estratégia para a superação da organização do currículo por disciplina. Os docentes relatam as dificuldades do trabalho sob esse enfoque, apontando a formação biologicista como um dos determinantes dessa dificuldade. Conclui-se que a ênfase na interdisciplinaridade e no trabalho em equipe tem exigido a adoção de metodologias ativas de ensino e contribuído para a transformação do modelo de ensino de Enfermagem vigente nas universidades investigadas. PALAVRAS-CHAVE: Ensino; Enfermagem; interdisciplinaridade; prática profissional.

1 Professora e Diretora da Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG), Coordenadora do NUPEPE. <roseni@enf.ufmg.br> 2 Enfermeira, Secretaria Municipal de Saúde, Belo Horizonte. <denis@spress.com> 3 Aluna, 8º período da EEUFMG; bolsista de IC/CNPq. <kenia.silva@globo.com> 4 Enfermeira, Secretaria Municipal de Saúde, Ribeirão das Neves, MG. <fabiola@enf.ufmg.br>

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Introdução A inovação pedagógica desenvolvida pelos educadores de saúde em diferentes instituições de ensino no país em particular na formação dos profissionais da área, encontra suporte na interdisciplinaridade e tem contribuído para a construção de uma escola participativa e decisiva na preparação de alunos como sujeitos sociais. Para Gadotti (1982), o objetivo da interdisciplinaridade é a experimentação de vivências de uma realidade global, inserida nas experiências cotidianas do aluno, do professor e do povo, a qual, na teoria positivista, é compartimentalizada e fragmentada. Observam-se práticas pedagógicas no ensino de Enfermagem que buscam construir o saber pela articulação das várias vivências, sejam elas originadas na escola, na família, na comunidade ou em qualquer outro grupo social. Essas práticas inovadoras na educação em Enfermagem objetivam construir a interdisciplinaridade que é traduzida, efetivamente, por um trabalho coletivo e solidário na organização da escola e, especialmente, do processo ensinoaprendizagem. A interdisciplinaridade se desenvolveu em diversos campos e, de certo modo, contraditoriamente, até especializou-se, caindo na armadilha que visava evitar ou que se propunha superar. A educação incorporou e disseminou o conceito de interdisciplinaridade de forma particular, o que culminou com o reconhecimento de sua importância em diferentes campos do conhecimento (Demo, 1998). Analisar o processo ensino-aprendizagem tem sido uma tarefa prioritária de investigadores na área de educação como Bordenave & Pereira (2001), Demo (1998), Gadotti (1982, 2000), Sacristán & Gómez (1998), cujos ideais e proposições têm sido utilizados para inovação do ensino na área da saúde. Nas duas últimas décadas, a produção científica sobre o tema tem contribuído para a construção de um novo paradigma da educação. O presente trabalho orienta-se pela concepção de que a educação não pode ser interpretada apenas à luz das teorias do comportamento humano, mas deve se sustentar no conteúdo principal da vida humana, de suas transformações e das potencialidades dos sujeitos em construir uma nova história. Defende-se a idéia de que a educação deve se desenvolver em estreito vínculo com as necessidades concretas de vida, considerando as atividades culturais e o modo de produção hegemônico na sociedade. Conforme analisam Bordenave & Pereira (2001), Demo (1998), Sacristán & Gómez (1998), Gadotti (2000), a teoria pedagógica idealista se apóia em conceitos, arbitrariamente eleitos e constantes, de homem e de representações subjetivas, impossíveis de se dominar, não podendo responder à grande contradição de educar para a vida em sociedades orientadas para o consumo de bens materiais e para um comportamento cada vez mais individualista. Acredita-se, assim, que a configuração da existência humana e de sua atividade social própria caracteriza a concepção de sujeito histórico-social e culturalmente determinado. Nesse contexto, a educação é parte tanto do ambiente, quanto da consciência desse sujeito e deve se concretizar como prática transformadora (Bordenave & Pereira, 2001; Demo, 1998; Gadotti, 2000). Para explicitar a orientação de educação como prática social, este estudo apóia-se na explicação de Vásquez (1997), que discute a práxis humana como uma tradução da produção e da auto-criação do ser humano configurando-se,

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assim, como práxis criadora. A compreensão desse conceito permite conhecer como os homens e as mulheres enfrentam novas necessidades e novas situações, estabelecendo o ciclo de inventar e recriar, próprio da natureza humana, que deveria se expressar na educação plena e libertadora. Para Vásquez (1997), toda práxis é uma ação criadora sobre a matéria, sendo fundamental distinguir a práxis imitativa, reiterativa ou espontânea, da práxis reflexiva ou criadora. Para construir uma reflexão, deve-se tomar como pressuposto a adoção dos modelos de ensino-aprendizagem de caráter interdisciplinar, assumidos neste estudo como uma possibilidade conceitual e uma ferramenta no campo da educação de profissionais de saúde, em particular da Enfermagem. Foram tomados como referência para realizar a pesquisa de campo os Projetos “Uma Nova Iniciativa na Formação dos Profissionais de Saúde” Projetos UNI, caracterizados pelo movimento de transformação do ensino dos profissionais para o setor saúde, com propostas de forte potencialidade para mudanças do modelo de ensino na área (Almeida et al., 1999). Os Projetos UNI, desenvolvidos em países da América Latina desde a década de 1990, vêm experimentando a conceitualização e execução de uma nova possibilidade de pensar e fazer a educação dos profissionais do setor saúde. Suas proposições aproximam-se do pensamento da práxis criadora / transformadora que pode ser observada em muitas dimensões, mas adquire expressão máxima na luta pela reestruturação ou transformação dos modelos político-pedagógicos dos cursos das instituições que integram o Projeto. Definiram-se como cenários dois cursos de Enfermagem que estão construindo novos modelos, caracterizados, em sua singularidade, por projetos pedagógicos diferenciados e por um serviço de saúde no qual a práxis é desenvolvida com uma tecnologia de trabalho em saúde orientada para os sujeitos envolvidos na produção da saúde: docentes, estudantes, população e trabalhadores. São dimensões comuns aos dois cenários desta pesquisa: a vigilância à saúde, a interdisciplinaridade, o trabalho multiprofissional, a adoção de metodologias ativas e a diversificação de cenários de ensinoaprendizagem. A interdisciplinaridade foi tomada como dimensão central do estudo por caracterizar-se como uma das estratégias utilizadas pelos Projetos cenários da pesquisa com o propósito de transformar a prática educativa e recriar a práxis do processo de ensino-aprendizagem. Entende-se por interdisciplinaridade o movimento de construção de um conhecimento mais globalizante que rompe com as fronteiras das disciplinas e que, para tal, adota não somente a integração dos conteúdos mas um compromisso de reciprocidade diante do conhecimento como propõem Fazenda (1996) e Gadotti (2000). Assim, essa dimensão determina novas relações entre os sujeitos que interagem nesse processo: docentes, estudantes, profissionais dos serviços de saúde e população. A escolha pelos Projetos UNI como cenário da pesquisa deveu-se ao fato de adotarem a interdisciplinaridade na construção do conhecimento, seu caráter inovador e sua capacidade de apontar soluções para problemas pertencentes a uma realidade cada vez mais complexa. Aceita-se, assim, que a intervenção nessa realidade requer uma revisão de valores, atitudes, crenças, questionamentos e conceitos para servir à vastidão de conhecimentos e à rapidez com que estes são recriados e disseminados.

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Percurso metodológico O estudo é resultado de uma pesquisa qualitativa ancorada no referencial crítico. Teve como objetivo identificar e analisar as transformações do processo de ensino de Enfermagem, captando a articulação da interdisciplinaridade nos cenários de ensino-aprendizagem de dois cursos de Enfermagem em escolas que realizam o Projeto UNI. Os dados primários foram obtidos pela realização de um grupo focal em cada cenário, com duração de três horas e a participação de docentes e discentes. Usaram-se como referências as orientações de grupo focal de Westphal et al. (1996) e Sena & Duarte (1999) e a questão norteadora do grupo foi: “Como você percebe o Curso de Enfermagem desta Instituição?”. As falas foram gravadas e transcritas e posteriormente analisadas seguindo-se a técnica de análise de discurso como proposta por Fiorin (1993). Utilizou-se, também, um diário de campo, no qual foram registrados fatos ou aspectos do cotidiano dos pesquisadores: impressões, observações e ocorrências relacionadas aos sujeitos e ao ambiente. Os dados de fonte secundária foram obtidos dos currículos dos cursos e outros documentos fornecidos pelas duas instituições que subsidiaram a compreensão do fenômeno em estudo. A interdisciplinaridade como uma estratégia para romper paradigmas Pela análise dos dados empíricos contidos nos discursos dos sujeitos da pesquisa, inferiu-se que estes caracterizam a trajetória das escolas como imersa em um processo dinâmico, complexo e desafiador. Um dos aspectos fundamentais para perfilar e dar cor a esse movimento foi a criação, pelas instituições, de espaços de socialização do processo de ensino-aprendizagem, os quais permitiram aos atores envolvidos redefinir o conceito de educação e o papel dos docentes, estudantes e profissionais dos serviços que participam do pensar e fazer do currículo de Enfermagem. Esse movimento está ancorado nas afirmativas de Sacristán & Gómez (1998, p.14) de que ...dentro do complexo e dialético processo de socialização que a escola cumpre nas sociedades contemporâneas é necessário aprofundar a análise para compreender quais são os objetivos explícitos ou latentes do processo de socialização e compreender os mecanismos e procedimentos que sustentam a norma.

Os entrevistados afirmam, também, que o processo de socialização desenvolvido nas escolas, em geral, busca a incorporação futura do seu egresso ao mundo do trabalho e a formação do cidadão para sua intervenção na vida pública. Com essa compreensão, pode-se inferir que a construção do futuro profissional passa pela ampliação dos cenários de ensino, como estratégia para que o aluno atue criticamente nos serviços de saúde, nos espaços / domicílios dos grupos familiares, na comunidade e em outros ambientes de produção do cuidado e da atenção à saúde. Esses novos espaços exigem uma nova reflexão sobre os conceitos do processo saúde-doença e, por conseqüência, de novos fazeres que impõem um enfoque interdisciplinar e intersetorial para a solução de questões complexas e multidimensionais. Como refere Gadotti (2000, p.223)

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o conceito de interdisciplinaridade chega ao final deste século com a mesma conotação positiva do início do século, isto é, como forma (método) de buscar, nas ciências, um conhecimento integral e totalizante do mundo frente à fragmentação do saber e, na educação, uma forma cooperativa de trabalho para substituir procedimentos individualistas.

Para construir as mudanças necessárias nas escolas que adotam este pensamento é preciso que o projeto político pedagógico seja construído em parceria com instituições e organizações para além da Escola. A análise dos documentos sobre o programa de ensino, nos dois cursos cenários da pesquisa, revelou a força da parceria entre a universidade, o serviço de saúde e a comunidade, para viabilizar o projeto de transformar os seus modelos de ensino. A parceria foi apontada pelos informantes como a “força motriz” que potencializa cada sócio e otimiza as capacidades do conjunto em relações dinâmicas bi e trilaterais: universidade-serviço, serviço-comunidade, universidade-comunidade, universidade-serviço-comunidade, como também identificado no estudo de Sena-Chompré & Egry (1998). Essas autoras analisaram que a parceria cria, segundo as avaliações internas dos Projetos, fortes espaços para a possibilidade de ação comunicativa, já proposta por Habermas (1987), e a invenção do fato novo entre atores sociais e instituições que intervêm no processo ensino-aprendizagem. Neste movimento, todos são responsáveis pela identificação, pela priorização e pela intervenção na solução dos problemas de saúde de indivíduos e grupos populacionais. A análise dos dados secundários permitiu valorizar o tema parceria, ao revelar os grandes avanços obtidos pelas instituições integrantes do Projeto UNI, que pode ser caracterizado pela construção de sujeitos sociais. Os cursos objeto da investigação estão implementando estratégias para a superação da realidade existente, principalmente mediante discussão e capacitação dos docentes e dos profissionais de saúde, com o objetivo de qualificar o desempenho, que outrora seria considerado insuficiente ou inadequado para dar resposta às necessidades de formação dos profissionais para a produção dos serviços de saúde. Dessa forma, tornou-se viável a implantação do programa planejado, construindo um marco de referência que se contrapõe ao modelo anterior, conservador e tradicional, criando um novo modelo que apresenta qualidades diferentes, no pensar e no fazer do processo de formação e de produção dos serviços de saúde. A vivência dessas concepções, que se apresentam como pólos contrários, evidencia as proposições de transformação, conforme revela o enunciado a seguir: ...era do projeto, o que quer dizer; meu trabalho, minha meta, meus objetivos, minhas diretrizes e dessa forma a gente fazia a discussão e conseguia institucionalizar as mudanças que a gente estava pretendendo dentro do ideário. Quer dizer de mudança do modelo assistencial, de integração com a academia, com a comunidade, e essas coisas foram sendo mudadas na verdade... (relato de entrevista)

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Quanto às mudanças relacionadas à prática pedagógica, foram analisados elementos que se referem à reformulação curricular nos dois projetos, permitindo detectar os avanços que vêm ocorrendo nos cenários da pesquisa e os obstáculos e desafios às inovações propostas. As possibilidades de recriar, questionar e discutir o modelo de ensino adotado pelos cursos confrontam-se com uma nova realidade, construída a partir das propostas de transformação curricular. Salienta-se a ampliação dos horizontes da prática docente, despertando o desejo dos mesmos de se aprimorarem e construírem alternativas novas para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem. Outro grande desafio que os Projetos vêm enfrentando, segundo os sujeitos da pesquisa, refere-se à incorporação da pesquisa no processo ensinoaprendizagem, fundamental na construção da interdisciplinaridade. A articulação ensino / pesquisa está sendo proposta, em um dos cursos, como um avanço do ensino na área de saúde. Parece que, acertadamente, tocase no aspecto fundamental para a almejada indissociabilidade entre ensino / pesquisa / extensão no programa de formação de profissionais de saúde, como é destacado no enunciado a seguir: ... O curso de Enfermagem teve um grande avanço, porque o nosso aluno foi mais cedo possível para a comunidade para ter o contato direto com os problemas reais. Então a Enfermagem teve um avanço muito grande nessa parte da extensão, nessa parte de ir direto, de conhecer os problemas, de atuar, de levantar, de inclusive registrar também em termos de pesquisa, publicações, iniciação científica ... (relato de entrevista)

A análise dos dados primários e dos documentos evidenciou as tentativas das duas instituições em tornar a ação pedagógica uma proposição de mudança contínua, sustentada na experiência vivida e na produção do conhecimento. A partir das informações dos sujeitos, captou-se que a pesquisa, ainda, é usada insuficientemente como estratégia de ensino-aprendizagem. Esta situação permite reconhecer que a velocidade das mudanças tecnológicas e sua aplicação no setor produtivo requerem das universidades um compromisso de se transformarem em espaços de experimento e formação de recursos humanos, com grande capacidade de aprender a aprender, como proposto por Delors (1999). Ampliando essa idéia, Demo (1998, p.138) analisa que o “fenômeno científico assumiu o lugar de inovação como processo, assentando-se no desafio de aprender a aprender”. A articulação do ciclo básico com o ciclo profissional, referida pelos sujeitos ao discorrerem sobre o enfoque interdisciplinar, envolve a integração dos conteúdos de suas disciplinas, além da mudança de concepção sobre o que seria fundamental para a formação do profissional de saúde e, muito especialmente, do pessoal de Enfermagem. Os enunciados a seguir revelam essa concepção: ...Mudança do que seria realmente básico para o estudante, o verdadeiro básico já denotaria a necessidade de integração de disciplinas que unissem o morfológico com o funcional, com o patológico e que não o dissociasse.

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...uma oportunidade extremamente interessante do pessoal do básico se envolver na parte profissionalizante, conhecer a Unidade Básica de Saúde, conhecer a comunidade, entrar em contato com o Conselho Local de Saúde, Conselho Municipal de Saúde, creches etc. (...) Extremamente rica, uma repercussão muito grande no ciclo básico com a experiência que eles estavam desenvolvendo a ponto deles reverem até a metodologia de ensino, de avaliação. (relato de entrevista)

Ao analisar a interdisciplinaridade, Loureiro (1992) afirma que a mesma é uma necessidade para a prática de saúde, em decorrência da crescente complexidade dos problemas na área. O autor descreve a interdisciplinaridade como a integração de duas ou mais disciplinas diferentes, lembrando que essa integração pode ser uma simples comunicação interdisciplinar de idéias ou atingir uma interação mútua de conceitos, métodos e procedimentos. Segundo Minayo (1990), a interdisciplinaridade é indispensável para superar a atomização e a fragmentação do conhecimento em áreas circunscritas. A autora analisa a interdisciplinaridade para serventia do saber, em função da compreensão e da busca de soluções às questões cada vez mais complexas da sociedade contemporânea. No presente estudo, os sujeitos destacam como finalidades fundamentais da interdisciplinaridade: responder a questões complexas, abordar questões amplas, explorar relações entre disciplinas e profissões, solucionar problemas que ultrapassem os limites de uma disciplina e alcançar a unidade do conhecimento no processo de ensino-aprendizagem. Os dados indicam, ainda, que a adoção do enfoque interdisciplinar nos currículos tem como proposta uma orientação para o estabelecimento da esquecida síntese dos conhecimentos, não apenas pela integração de conteúdos produzidos nos vários campos de estudo, de modo a ver a realidade globalmente, mas, sobretudo, pela associação dialética entre as dimensões polares como, por exemplo, teoria e prática, ação e reflexão, generalização e especialização, curativo e preventivo, ensino e avaliação, meios e fins, conteúdos e processos, indivíduo e sociedade, dentre outras, confirmando as idéias de Minayo (1990). Os sujeitos indicam que o objetivo da interdisciplinaridade é, portanto, promover a compreensão da complexidade da realidade e a superação da visão restrita de mundo buscando, ao mesmo tempo, resgatar a centralidade do homem, na realidade e na produção do conhecimento, de modo a permitir uma melhor apreensão da realidade e do homem como um ser determinado e determinante.

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Assim, a interdisciplinaridade é defendida pelos sujeitos como uma resposta à necessidade de superar a visão fragmentada na produção do conhecimento, como também de articular e produzir coerência entre os múltiplos fragmentos que estão postos no acervo de conhecimentos da humanidade (Loureiro, 1992). Trata-se, assim, de um esforço que vem sendo realizado nos cenários deste estudo pelos docentes e discentes para promover a elaboração de sínteses que desenvolvam a contínua construção do conhecimento, utilizando-se de representações da realidade (Sakai, 1994). Mesmo reconhecendo os avanços, os sujeitos indicam ser a interdisciplinaridade um dos grandes desafios na construção do conhecimento, no currículo integrado adotado pelos cursos. Apontam, ainda, que a aproximação dos docentes do ciclo básico com a realidade com a qual os alunos vão encontrar quando se tornarem profissionais constitui um facilitador para a associação dos conteúdos, que passam a ser vistos não mais de forma dissociada e repetitiva, como descrito no enunciado a seguir: ...um dos pontos importantes do PAPIENS foi o fato de que, ao mesmo tempo que a gente trabalhava com os alunos, a gente trabalhava também tanto com os profissionais como com os professores que eram em grande parte da área básica. Então, esses professores que nunca viram e nem tiveram vivência da área de saúde, passaram a ter. (...) Isso faz com que o professor veja que tipo de problema os alunos vão enfrentar no futuro como profissionais. (...) Isso possibilita uma maior integração do pessoal do básico com o pessoal da área profissional.(...) Além dos projetos de ensino, tiveram outros também como os projetos de apoio de pesquisas interdepartamentais, devendo ter pelo menos um da área profissionalizante. (relato de entrevista)

Os dados primários indicam que o exercício da interdisciplinaridade, nos cursos cenários deste estudo, fora do contexto da sala de aula, implica a vivência da parceria universidade / serviço / comunidade e permite a articulação dos conteúdos numa realidade concreta. Dessa forma, o currículo com desenho interdisciplinar é apontado pelos entrevistados como mais efetivo, por valorizar experiências conjuntas e criativas dos docentes, discentes e profissionais dos serviços de saúde. Segundo Sakai (1994), o valor da interdisciplinaridade também tem sido identificado e reconhecido, no cuidado do usuário, por várias profissões de saúde. Entretanto, raramente é praticada nos setores clínico ou educacional. Dessa forma, as tendências e abordagens do modelo interdisciplinar, propostas pelos Projetos UNI nos cenários deste estudo, podem ser apontadas como inovadoras, uma vez que rompem com o modelo tradicional e, mesmo estando, ainda, em implementação, permitem a articulação de conteúdos e práticas pedagógicas em áreas críticas, possibilitando a integração das disciplinas do ciclo básico com as do ciclo profissional. O enunciado que se segue retrata essa percepção: ...agora não existe mais a disciplina do ciclo básico, a disciplina do

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ciclo profissional, existem conhecimentos que no conjunto fornecem subsídios para a formação e capacitação do aluno. Foram criados módulos de orientação para o estudante. Afinal, o que é básico para um estudante? Eu não tenho a pretensão de saber responder.... (relato de entrevista)

Os sujeitos apontam que a avaliação do processo ensino-aprendizagem não poderia deixar de ser inovadora, adotando a avaliação formativa, de finalidade social, que busca diferenciar-se das modalidades tradicionais de pontuação para adotar como parâmetro o conceito de competência sendo, portanto, coerente com a interdisciplinaridade que propõe o fim da fragmentação do conhecimento. O enunciado a seguir expressa as percepções de um dos sujeitos acerca do modelo de avaliação adotado por um dos cursos cenários investigados: Eu acho que entra aí o conceito do que é buscar uma avaliação formativa que permita uma prescrição individual, que tem inclusive uma finalidade social. Afinal de contas até quando nós iríamos somar uma laranja boa com uma um pouco estragada? (....) é fundamental que se priorize o individual e o que realmente interessa que os alunos saibam... (relato de entrevista)

Contribuindo para a análise do sistema de avaliação, Hoffmann (1995) sugere que a nova perspectiva de avaliação exige do educador uma concepção do indivíduo como sujeito inserido no contexto de sua realidade social e política, que constrói e recria seu auto-conhecimento. Essa perspectiva exige, também, do aluno a formulação de seus próprios conceitos, já que as avaliações não medem resultados e aspectos pontuais e nem mesmo negligenciam os aspectos fundamentais do processo de aprender a aprender, a fazer, a ser e a trabalhar, como proposto por Delors (1999). Os sujeitos assinalam que os cursos adotaram processos avaliativos mais justos e menos estereotipadores de “respostas corretas”. Esse pensamento pode ser verificado no enunciado que se segue: Os modelos de avaliação melhoram e inclusive acredito que não estejam ainda no ponto que deveriam estar, mas pelo menos os professores estão muito mais preocupados com o sistema de avaliação. A auto-avaliação foi nosso grande gancho de trabalho, porque os alunos não tinham essa habilidade, e eu acho que ninguém se avalia melhor do que a gente mesmo. Então, o aluno quando desde o começo se auto-avalia já está fazendo um exercício profissional, porque não é teu chefe que te avalia; é você mesmo que se auto-avalia e é você mesmo que pode melhorar e corrigir suas faltas... (relato de entrevista)

Bordenave & Pereira (2001, p.70) afirmam que a avaliação é um aspecto fundamental no processo de inovação do ensino. Para os autores, apesar de ser um tema/situação/problema de domínio dos docentes, a questão é que se “não

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se muda a avaliação, será muito difícil fazer alguma coisa que tenha consistência, seja eficiente e que resista ao Teste do Tempo”. Afirmam, também, que a avaliação formativa é a base do processo ensino-aprendizagem baseado em problema e centrado no estudante. Pode-se inferir que esses pressupostos se alcançam com a adoção da interdisciplinaridade, pois esta permite “a identificação precoce dos problemas que o aluno pode ter em seu trabalho e, ao fazê-lo, permite ao estudante identificar as suas dificuldades e buscar os caminhos de correção” (Bordenave & Pereira, 2001, p.70). As informações dos docentes investigados indicam que, no processo de inovação, os mesmos enfrentam uma grande dificuldade em superar os modelos de avaliação orientados para averiguação de aquisição de conhecimento, que enfatizam as habilidades cognitivas, e em adotar um processo de avaliação, com enfoque interdisciplinar, que articula diferentes áreas do conhecimento de fazeres e de atitudes no processo ensinoaprendizagem e assistencial. Os sujeitos revelaram, ainda, que na avaliação formativa há possibilidade de conhecer as limitações e potencialidades do aluno na sua aprendizagem, em seus aspectos cognitivos, de aquisição de habilidades e de atitudes / comportamentos. Em uma das instituições da pesquisa, o processo de avaliação ainda está orientado pelo currículo organizado por disciplinas. No outro curso tem uma aproximação do modelo de avaliação inovador orientado para a competência dos estudantes e para o enfoque interdisciplinar, facilitado pelo currículo integrado, como podemos perceber no enunciado que se segue: Está cada vez mais presente a idéia de que a avaliação é para ajudar no processo de aprendizagem e, cada vez menos a idéia de punir ou simplesmente classificar. Só o fato de se ter esse conceito e da gente institucionalmente ter valorizado essa postura, eu acho que mudou bastante... é um avanço. (relato de entrevista)

Os sujeitos afirmam que os profissionais de saúde, freqüentemente, são educados com uma visão fragmentada e experimentam uma prática com pouca cooperação entre as disciplinas e os setores da sociedade que têm como responsabilidade resolver os problemas de saúde da população. Assinalam, também, que a fragmentação é um problema por causa da sobreposição de papéis, criando poderes paralelos do pessoal de saúde, com nichos em suas respectivas áreas do sistema de saúde e de ensino, que prejudicam a relação com os demais setores. A análise dos dados permite inferir, ainda, que a conceitualização do processo saúde-doença adotada nas escolas é um desafio, pois cada vez mais há necessidade de se adotar concepções mais abrangentes de vigilância à saúde em contraposição à natureza setorial que caracteriza a atuação dos profissionais da área. Assim, a interdisciplinaridade é uma possibilidade de romper com essas amarras e construir novas relações de cooperação, colaboração e associação entre os profissionais e comunidade para solucionar os problemas de saúde no bojo dos problemas sociais. Considerações finais Os dados empíricos permitem concluir que, nos cursos investigados, a

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PROJETO UNI: CENÁRIO DE APRENDER, PENSAR E CONSTRUIR...

interdisciplinaridade pressupõe a possibilidade de reduzir a hegemonia dos saberes, de projetá-los numa mesma dimensão epistemológica, sem negar os limites e a especificidade das disciplinas. Permitem indicar, ainda, que há necessidade de as instituições de ensino definirem um projeto políticopedagógico, no qual esteja priorizada a parceria universidade / serviços / comunidade, para propiciar a formação de profissionais com perfil necessário para atender à demanda e às necessidades de saúde da população, abrangendo a saúde nas dimensões biológica, do estilo de vida, das relações dos seres humanos com o meio ambiente e os serviços de saúde. O estudo revela também que a interdisciplinaridade tem exercido um relevante papel em face da construção de um novo modelo de ensino nos cursos cenários da pesquisa. Os suportes técnico, metodológico e financeiro, promovidos pelos Projetos UNI, têm permitido avanços dentro das instituições de ensino, nos serviços e na comunidade, construindo e reconstruindo o cotidiano do processo de educar, de aprender e ser em uma relação de acumulação qualitativa. Os aspectos relativos à interdisciplinaridade, analisados no estudo, demonstram que a mesma tem um caráter positivo no processo de aprendizagem, produzindo situações de superação, tanto na construção de um novo paradigma do ensino quanto no relacionamento deste com o processo saúde-doença. Fica evidenciado seu caráter processual e gradual, exigindo tempo para ser absorvido pela instituição e liberdade para identificar as questões a serem inovadas em um contínuo processo de pensar, agir, e transformar. Referências

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SENA, R. S., LEITE, J. C. A., SILVA, K. L., COSTA, F. M. Proyecto Uni: escenario de aprender, pensar y construir la interdisciplinariedad en la práctica pedagógica de la enfermería, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.79-90, 2003. El estudio analiza la incorporación de un enfoque interdisciplinar en dos cursos de Enfermería en Brasil que desarrollan el Proyecto UNI. Se caracteriza como un estudio descriptivo cualitativo, utilizando el materialismo histórico dialéctico como referencia teórico-metodológica. El estudio tiene el objetivo de analizar las transformaciones ocurridas en el proceso de enseñaza de los cursos de enfermería, teniendo como énfasis la interdisciplinariedad. Los datos primarios fueron tomados utilizando entrevistas en grupo focal, docentes y alumnos de los cursos y enfermeros de los servicios. Los datos de fuentes secundarias fueron obtenidos del análisis documental de currículos y otros documentos de las universidades escenarios del estudio. Se identificó que los cursos están utilizando la interdisciplinariedad como estrategia para la superación de la organización del currículo por disciplina. Los docentes relatan las dificultades del trabajo con ese enfoque, apuntando la formación biologicista como uno de los determinantes de esta dificultad. Se concluye que el énfasis en la interdisciplinariedad y en el trabajo en equipo ha exigido la adopción de metodologías activas de enseñaza y ha contribuido en la transformación del modelo de enseñanza de enfermería. PALABRAS CLAVE: enseñanza; enfermería; interdisciplinariedad; practica profesional.

Recebido para publicação em 04/04/02. Aprovado para publicação em 20/04/03.

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Pensar cientificamente: representação de uma cultura*

Eliane Brígida Morais Falcão 1 Andréa Huckleberry Siqueira 2

FALCÃO, E. B. M.; SIQUEIRA, A. H. Thinking scientifically: representing a culture, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.91-108, 2003.

Results of research and analysis on scientific thought in the context of organizational culture at academic areas of scientific development and production - natural science, biology and biochemistry laboratories - are reported. Our main purpose was to increase the understanding of what scientists put forward about scientific thought is, using comparative research. The method used was the case study, which includes the strategy Lefèvre suggested (2000), the examination of the attitude of collective analysis. Conclusions showed that there are differences among scientific representations and that they can be associated with the organizational culture of each of the three scientific groups investigated. They also showed that organizational culture results from ways of life in laboratories and because of this, it requires permanent investigation and reflection to create conditions for implementing quality and ways of achieving it. KEY WORDS: Scientists; Organizational culture; thinking; learning; social representation.

Relatam-se resultados de pesquisa e análise de representações de pensar cientificamente no contexto da cultura organizacional de espaços acadêmicos de formação e produção científicas: laboratórios da área de Ciências Naturais, Biologia e Bioquímica. O objetivo principal foi o de, mediante exercício comparativo, ampliar a compreensão sobre como se dá a representação do pensar cientificamente, entre cientistas. A metodologia utilizada foi estudo de caso, incluindo a estratégia proposta por Lefèvre (2000) de análise do discurso do sujeito coletivo. Os resultados permitem concluir que: há diferenças entre as representações, associadas às características da cultura organizacional de cada um dos três grupos de cientistas investigados; a cultura organizacional é resultado de modos de vida nos laboratórios e como tal deve ser objeto de permanente investigação e reflexão para que se criem condições de implementação de qualidade em seus objetivos e se propiciem formas de atingilos. PALAVRAS-CHAVE: Cientistas; cultura organizacional; pensamento; aprendizagem; representação social.

* Agradecemos o Prof. José Leão Marinho Falcão Filho, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), pela contribuição na elaboração de idéias que deram origem a este trabalho, particularmente quanto à aplicação do conceito de cultura organizacional no entendimento de fenômenos específicos dos meios acadêmicos. Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES), Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). <elianebrigida@uol.com.br> <elianeb@nutes.ufrj.br > Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES), Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) .

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FALCÃO, E. B. M.; SIQUEIRA, A. H.

Introdução A pesquisa que relatamos pertence a um conjunto de três investigações cujo objetivo foi examinar a representação do exercício do pensamento científico3 no contexto da cultura organizacional de espaços de formação e produção científicas4. O interesse pelo tema surgiu no decurso de nossa convivência com cientistas da área de ciências naturais. Nesse meio, freqüentemente, ouvíamos afirmações sobre a “importância de se desenvolver o pensamento científico dos estudantes”. No entanto, verificávamos que professores ou cientistas dessa área, quase sempre, se sentiam inseguros ao formular uma resposta “correta” sobre o que entendiam por “pensar cientificamente”. Suas declarações, geralmente, desconsideravam a literatura especializada, apoiando-se mais na própria experiência do fazer ciência. Diante dessa constatação, decidimos empreender nossa pesquisa, julgando que as formulações sobre pensamento científico poderiam ser mais bem elucidadas se as considerássemos como representações sociais desenvolvidas no contexto da cultura organizacional dos laboratórios onde a ciência é praticada. Na literatura especializada, chama-se de cultura organizacional aos procedimentos e hábitos de trabalho, valores, normas e afetos produzidos por um grupo cujos integrantes, organizados em torno de alguns objetivos, passam um certo período de vida juntos (Alvesson, 1993; Bernardes,1988; Brown, 1995; Schein, 1984; Thévenet, 1990). É nesse meio cultural que se desenvolve a representação de um pensar como um padrão de comportamento intelectual aceito e divulgado por pares. Já o conceito de representação social aparece, aqui, no sentido dado por Lefèvre (2000, p.13): “um conhecimento muito próximo à ação cotidiana, e que tem a função de guiar, orientar, justificar esta ação”. A ação guiada ou justificada, no caso estudado, é a atividade científica, realizada no cotidiano de espaços de formação e produção científicas. O trabalho foi realizado no Laboratório de Vertebrados do Departamento de Ecologia de uma universidade pública brasileira. Esse Laboratório, seguindo tendência atual de nossos espaços acadêmicos, embora integre um departamento da instituição universitária a que pertence, tem vida praticamente autônoma em relação a essa unidade - ou seja, possui recursos e atividades próprios, entre os quais o atendimento a estudantes de quatro cursos de pós-graduação de duas diferentes universidades. Neste artigo, não nos limitamos a apresentar tão-somente a representação do que é pensar cientificamente expressa nesse Laboratório. Incluímos, aqui, a comparação dos resultados colhidos neste estudo com os de dois outros grupos já investigados em trabalho anterior (Falcão, 2000). Mediante esse exercício comparativo esperamos ampliar a compreensão sobre como se dá essa representação entre os cientistas5 no âmbito de seu local de trabalho - o laboratório. O Laboratório objeto da pesquisa O laboratório de uma universidade é um ambiente privilegiado para a produção de conhecimento científico e formação profissional. Possui uma dinâmica grupal peculiar que permeia e possibilita essas duas atividades.

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Ao início desta pesquisa, pretendíamos investigar a representação de “pensamento científico” - por ser esta a expressão ouvida por nós nos laboratórios. No entanto, no transcorrer do trabalho, substituímos essa expressão por outra: pensar cientificamente. Por que? Descobrimos que não era nossa intenção examinar o que entendíamos como o processo, a faculdade, o produto da elaboração mental em seu caráter substantivo, de ser -“pensamento”-, com uma característica peculiar - científico”. Nosso propósito era mais pesquisar a ação intelectual como manifestação de verbo pensar- em sua especificidade circunstancial, e de advérbio – cientificamente. Pensar cientificamente seria visto como um padrão de comportamento intelectual que se ajusta às normas e rituais do fazer ciência em um contexto cultural, no caso, a unidade acadêmica de formação e produção científicas. Aproximase, portanto, do sentido de prática intelectual de um grupo. Mas, para evitar repetições, às vezes, a expressão foi substituída por “exercício do pensamento/pensar científico”, pela intenção de acentuar seu caráter ativo, presente no termo escolhido.

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Parte deste trabalho deu origem à tese de mestrado A representação do pensamento científico: o discurso do sujeito coletivo no contexto da cultura organizacional de um laboratório de pesquisa científica-Nutes/UFRJ (Siqueira, 2001).

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PENSAR CIENTIFICAMENTE: REPRESENTAÇÃO DE UMA CULTURA

As referências a “cientistas” devem ser entendidas como relativas ao conjunto de estudantes em formação científica (graduandos e pósgraduandos) e professores envolvidos com as atividades científicas no Laboratório que foi objeto da pesquisa aqui relatada.

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Muitos estudantes entram em seu espaço ainda no início da graduação e nele permanecem até se profissionalizarem pelo mestrado e doutorado. Dedicam-lhe muitas horas de seu dia e anos de sua existência a aprender teorias e técnicas de pesquisa, a construir valores e visões de mundo. Aí, formam-se não só profissionalmente mas também como pessoas. A aprendizagem e a vivência, nesse local, são oportunidades que tanto lhes permitem uma identidade profissional como afetam suas identidades pessoais e sua inserção social. Nesse amplo contexto, familiarizam-se com o mundo da ciência, isto é, com um mundo social estruturado em torno de projetos e metodologias de pesquisa que incluem não somente práticas científicas mas, também, um modo de ser e de perceber o mundo. É desse modo que mergulham em um contexto cultural típico, a chamada cultura organizacional. E é desse meio cultural que recebem matrizes cognitivas que nortearão seu pensar. Essa descrição sumária do que é um laboratório e de seu papel na produção de conhecimento científico e formação profissional pode ser captada ao longo do período em que estivemos no espaço do Laboratório de Vertebrados. Nesse tempo, procuramos acompanhar estagiários, mestrandos, doutorandos e professores em seu dia-a-dia, para observar como são construídas e conquistadas as características de um pensar típico, o pensar cientificamente, requerido para a realização de atividades cujo objetivo final é a produção do conhecimento científico. No local, o que nos chamou a atenção, em primeiro lugar, foi o clima de trocas permanentes que ali existiam. Os trabalhos eram desenvolvidos quase como por “dinâmica de grupo”. Havia muita conversa e discussões informais, o que conferia ao ambiente um burburinho constante. O espaço facilitava a aproximação, pois, praticamente, não havia salas individuais, a não ser as do professor-chefe e do professor adjunto que eram também, freqüentemente, usadas pelos estudantes. Mas víamos, igualmente, que era habitual a informalidade ser substituída pela disciplina das reuniões formais e seminários – estes, obrigatórios e semanais. Com todos os alunos e professores presentes, nesses encontros eram discutidas as pesquisas em andamento e a redação de artigos; relatos de participação em congressos eram feitos; também buscava-se solução para problemas de ordem institucional e burocrática ocorridos. Além disso, pontuava-se a necessidade de desenvolvimento simultâneo do espírito de iniciativa e de cooperação para a melhor execução dos trabalhos. Conforme íamos aprofundando nosso conhecimento desse espaço de formação científica e profissional, pudemos perceber como ali era ressaltada - sobretudo pelo professor-chefe – a importância da atividade científica como componente fundamental da formação universitária. A presença do estudante no Laboratório era bastante estimulada por ser considerada a que promove e estrutura a regularidade das atividades de pesquisa e a produção dos comunicados escritos de seus resultados: relatórios, dissertações, teses e, principalmente, artigos destinados às revistas de prestígio no meio científico. É notório que o financiamento de um laboratório de pesquisa em uma universidade, hoje, depende de artigos, fruto de trabalhos conjuntos entre

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FALCÃO, E. B. M.; SIQUEIRA, A. H.

professores e alunos. São eles, em grande parte, os responsáveis pelo reconhecimento do padrão científico de um grupo. E, a nós, mostrava-se evidente que o Laboratório de Vertebrados esmerava-se na busca desse padrão, ao manter um leque diversificado de projetos e largo intercâmbio com várias instituições nacionais e estrangeiras que lhe são similares. As revistas científicas são uma instância decisiva no processo de institucionalização do mundo da ciência. Elas representam uma estrutura de controle da qualidade dos trabalhos científicos. É seu corpo editorial que avalia e julga o produto final das pesquisas realizadas - o artigo -, conferindo-lhe legitimidade ao publicá-lo. A instância que lhe é anterior – o laboratório, onde o produto é gerado – recebe seu “certificado de qualidade”, passa a ser respeitada e reconhecida na medida em que trabalhos de seus membros são divulgados nessas publicações de prestígio. No momento em que, participando do dia-a-dia de uma instituição científica, chegamos a essa percepção do importante papel da avaliação dos pares para a formação e produção do conhecimento científico, inferimos que, numa perspectiva sócio-cultural, ali a representação de conhecimento científico poderia ser assim resumida: conhecimento científico é aquele que, produzido em instituições reconhecidas pelo meio científico, é publicado em revistas cujo corpo editorial, formado por cientistas influentes, o avaliou e legitimou. Para nós tornava-se evidente a relação entre formação, produção e representação do pensar cientificamente e o contexto social de sua ocorrência. Entendíamos também que o conceito de cultura organizacional era um instrumento que nos permitiria uma análise investigativa sobre a possível dialética dessa relação. Pois, se o contexto social fornece os elementos básicos de informação, valores, prioridades, a partir dos quais uma representação toma forma, também o inverso é verdadeiro: uma representação, ao surgir desse contexto, passa não só dinamicamente a incluir esses e outros elementos como a influenciar caminhos, ações, prioridades, objetivos desse contexto. São, pois, duas as instâncias que aparecem a guiar e justificar a elaboração da representação do que é pensar cientificamente: o espaço de sua produção e o de sua divulgação. É na primeira dessas instâncias que centramos nosso estudo. Julgamos que ela nos oferecia elementos seguros para o alcance de nossos objetivos: caracterizar a representação do exercício do pensamento científico no contexto de uma cultura organizacional. Para a elaboração de nossa investigação, concentramos a atenção nos membros do Laboratório6 diretamente envolvidos com a atividade científica regular: estudantes (graduandos em iniciação científica, mestrandos, doutorandos) e professores (um deles, seu chefe). Os alunos de iniciação científica (12), na faixa etária de 20 a 23 anos, estavam em estágio há pelo menos sete meses. Os nove mestrandos, em sua maioria entre 23 e 25 anos, encontravam-se no laboratório no mínimo há um ano, pois cinco deles tinham feito ali sua iniciação científica. A maior parte dos doutorandos (cinco), entre 28 e 35 anos, completou seu mestrado na instituição, trabalhando nela há pelo menos três anos e meio. Um dos dois professores, o chefe do Laboratório, é também o seu fundador.

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O Laboratório estudado responde aos requisitos da comunidade científica. Com mais de quinze anos de existência - sendo um dos primeiros relacionados à sua área, no Brasil, e mantendo uma produção científica estável -, tornou-se referência nacional e internacional. Possui um leque diversificado de projetos de pesquisa, envolvendo cientistas de diferentes níveis de profissionalização (estudantes e professores), com uma expressiva produção de artigos publicados e de teses defendidas (mestrado e doutorado). Além disso, desenvolve largo intercâmbio com diferentes instituições de pesquisa. Os trabalhos realizados são publicados em diferentes revistas nacionais e estrangeiras.


PENSAR CIENTIFICAMENTE: REPRESENTAÇÃO DE UMA CULTURA

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Lefèvre (2000), apoiando-se em Geertz (1989) e em Bourdieu (1990), define imaginário social como os diversos conteúdos cognitivos que, conformando o ambiente ideológico de um grupo, nutrem esse grupo para que pense e emita juízos particulares, produza explicações ou justificativas sobre os mais variados temas. Dito de outra maneira, respostas individuais, desencadeadas por estímulos de perguntas, conversas ou solicitação de depoimentos, expressam óticas, perspectivas ou prioridades conjunturais ou contextuais de um mesmo imaginário social, isto é, advêm de matrizes cognitivas comuns (o imaginário do grupo).

Metodologia O procedimento metodológico empreendido neste trabalho foi o estudo de caso, na linha da pesquisa antropológica, na qual o trabalho de campo contato direto com o ambiente onde atuam os sujeitos pesquisados - tem papel relevante. Como instrumento de coleta de dados, usamos a observação direta e as entrevistas individuais. Estas, semi-estruturadas, foram conduzidas em torno de três perguntas feitas a cada um dos membros (estudantes e professores) do Laboratório: o que é pensar cientificamente, segundo a própria experiência do entrevistado? O que favorece a realização deste pensar no Laboratório, segundo a experiência do entrevistado? O que não favorece a realização deste pensar no Laboratório, segundo a experiência do entrevistado? O estudo analítico das respostas fez-se em dois momentos: o primeiro, foi o da identificação da representação do que é pensar cientificamente expressa nas respostas à primeira pergunta; o segundo, foi o da caracterização da cultura organizacional do Laboratório extraída das respostas às duas outras perguntas. A observação direta mostrou-se instrumento valioso para que se checassem, tanto quanto possível, as afirmações feitas nas entrevistas e as ocorrências no cotidiano do Laboratório. As entrevistas tiveram duração média de vinte a trinta minutos. A observação, feita semanalmente (dois/três dias), transcorreu durante o período de oito meses (1999/2000). Os entrevistados revelaramse atenciosos e prestativos, além de muito interessados nos resultados. Estes foram apresentados em seminário, no Laboratório, antes da redação final do relatório da pesquisa. Para a identificação da representação do que é pensar cientificamente, usamos o processo metodológico proposto por Lefèvre: a análise do discurso do sujeito coletivo (DSC). Esse tratamento metodológico fundamenta-se na teoria da representação social e seus pressupostos sociológicos (Lefèvre, 2000). Segundo esse autor, o que as pessoas pensam e emitem como respostas em diferentes formatos, orais ou escritos, reflete o compartilhamento de um imaginário social 7, comum, coletivo, existente num dado momento . Assim, é possível que um mesmo indivíduo de um determinado grupo social formule respostas diferentes em momentos diferentes mas ambas as respostas serão elaboradas a partir de um repertório comum grupal - ou de um mesmo imaginário grupal. Por isso, mais importante do que “contar” quantos deram determinadas e semelhantes respostas será identificar as matrizes que sustentam tal conjunto de respostas. O discurso do sujeito coletivo refere-se a tais matrizes. Com a análise do discurso do sujeito coletivo, busca-se reconstruir, “com partes de discursos individuais, como um quebra-cabeças, tantos discursos-síntese quantos se julgue necessário para expressar uma determinada ‘figura’ ou tema” (Lefèvre, 2000, p.19). A partir das idéias centrais e expressões-chave semelhantes de todos os respondentes, é possível compor um ou vários discursos-síntese de um grupo social. O conjunto desses discursos formaria o discurso do sujeito coletivo desse grupo. Para a análise da cultura organizacional, não sendo esta uma

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FALCÃO, E. B. M.; SIQUEIRA, A. H.

representação social mas a caracterização de um ambiente de trabalho, seguimos o modelo proposto por Bernardes (1988), que consiste em analisar os depoimentos, ou respostas, dos sujeitos da pesquisa e os registros da observação à luz de três variáveis ou dimensões culturais de uma organização. A dimensão tecnológica diz respeito a métodos, procedimentos de trabalho, processos utilizados (manuais, mecânicos, automatizados etc.) e insumos necessários (máquinas e materiais diversos, conhecimentos, habilidades dos executores etc.). Ela alude não somente à tecnologia material necessária à transformação dos produtos mas, também, aos procedimentos técnicos de organização do trabalho, como divisão de trabalho e identificações de papéis. A dimensão institucional refere-se ao conjunto elaborado de normas de procedimento, entre as quais incluem-se as de recompensa e de punição, de organização e de relacionamentos sociais. Ela também leva em conta as posições ocupadas pelos participantes dos vários subgrupos (graduandos, mestrandos, doutorandos, professores) assim como crenças e valores compartilhados. A dimensão afetiva faz referência aos sentimentos e emoções nascidos, desenvolvidos, cultivados e expressos nas relações interpessoais e com a instituição. Essas três dimensões, apenas separadas como um recorte didático, estão em interação permanente e sempre presentes no cotidiano da vida institucional, ainda que, em determinados momentos, uma possa ser percebida de forma mais destacada do que as outras. As observações realizadas e as respostas dos alunos e professores às perguntas sobre o que mais favorecia e o que mais desfavorecia o pensar cientificamente no Laboratório, analisadas à luz dessas dimensões, propiciaramnos investigar e caracterizar a cultura organizacional. A representação do que é pensar cientificamente A representação do que é pensar cientificamente, apreendida mediante o uso da metodologia descrita e a partir das respostas à pergunta realizada, foi identificada em cada um dos subgrupos (estagiários, mestrandos, doutorandos e professores) que, no seu conjunto, expressa o discurso do sujeito coletivo do Laboratório. A visualização por subgrupo, embora estritamente desnecessária porque os discursos, teoricamente, são coletivos - colabora para confirmar justamente esse pressuposto: os discursos são idênticos, as diferenças perceptíveis entre os subgrupos referem-se tão-somente a maior ou menor precisão da linguagem utilizada. O caminho para a obtenção desses discursos obedeceu a um padrão. Sempre que foi identificada uma idéia-central com suas respectivas expressões-chave, em pelo menos uma resposta, construiu-se um discurso em cada subgrupo. Quando, igualmente, duas idéias-centrais ou mais apareceram articuladas por pelo menos um sujeito, também daí surgiu o discurso respectivo. Com esse material foram compostos os discursos coletivos, relacionados à representação do que é pensar cientificamente de cada um daqueles subgrupos (Quadro 1).

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PENSAR CIENTIFICAMENTE: REPRESENTAÇÃO DE UMA CULTURA

Quadro 1 - Discursos do Sujeito Coletivo: Pensar Cientificamente Discursos

Subgrupo Estagiários

Mestrandos

Doutorandos

Professores

Discurso 1 Método cientifico

Pensar cientificamente é observar um fenômeno, propor uma explicação e testar. É pensar tentando encaixar algum conhecimento ou dado que se tenha, num modelo, buscando elaborar uma fórmula, uma teoria. Além disso, é muito importante ter uma mente aberta, objetiva; ser capaz de elaborar questões e vê-las sob vários ângulos; é ter um olhar crítico sobre tudo aquilo que é feito por outro e por nós.

Pensar cientificamente é uma tentativa de aproximação da realidade. Aplicam-se os conhecimentos num problema, pegam-se modelos ou outros trabalhos relacionados ao tema e tenta-se aplicar uma técnica.

Pensar cientificamente é elaborar perguntas sobre determinado assunto, levantar hipóteses a partir do que se leu, observar fatos. Evidentemente, é preciso testar e tentar deduzir alguma coisa que faça sentido. È ter clareza, objetividade.

Pensar cientificamente é pensar racionalmente, buscando explicações, contrabalançando argumentos a favor e contra É também um modo de agir, sempre com hipóteses, pressupostos, previsões e testes.

Discurso 2 Limites do método científico: possibilidades de diferentes interpretações e provisoriedade do conhecimento

Pensar cientificamente exige método, isto é, elaboração de hipótese, observação, teste, comprovação, mas exige também saber que tudo é uma maneira de se interpretar o mundo, que não existe uma verdade, não existe uma realidade científica. É conviver com a impossibilidade de uma resposta única, final. Os testes e resultados podem conduzir a diferentes interpretações.

Pensar cientificamente é pensar considerando teorias, hipóteses, observações e testes, mas é também saber que há sempre uma perspectiva ou outra para se olhar a mesma coisa e pode-se concluir coisas diferentes. Para escrever artigos, as pessoas “chegam” a conclusões, mas são conclusões parciais, sempre, e nunca se tem um resultado definitivo.

Pensar cientificamente exige o uso dos princípios do método científico, mas é preciso saber que se chega sempre a respostas provisórias, quase nunca se chega a conclusões, o cientista vai chegando a perguntas melhores, mais refinadas, vai diversificando, chegando a outras perspectivas.

Pensar cientificamente é poder juntar e relacionar coisas separadas, demonstrar, ter exatidão na linguagem, pois vivemos no meio de duas culturas diferentes (quer dizer, no meio de várias, mas duas têm mais influência sobre nossa área: a inglesa e a americana) e esse choque cultural é importante. A ciência é construída socialmente, intencionalmente, é um produto histórico, do envolvimento social das pessoas.

Pensar cientificamente é analisar os dados sem deixar que a sua opinião ou a sua vontade de que as coisas caminhem de determinado jeito interfiram.

Pensar cientificamente é procurar relações na natureza, procurar padrões usando o método científico, mas você precisa tentar não ter uma visão subjetiva.

(discurso não expresso)

Pensar cientificamente é pensar racionalmente, não ser tendencioso se você gosta de uma teoria.O oposto seria ser subjetivo, emotivo.

Pensar cientificamente é alguém escolher alguma área de interesse ou alguma coisa que tenha a intenção ou a vontade de conhecer melhor como funciona e criar uma maneira, um método para investigála.

Para pensar cientificamente, o cientista precisa ter uma pergunta, uma dúvida, que o interesse. Precisa ter curiosidade por pequenos detalhes e testar para saber se são verdadeiros ou artifícios.

Pensar cientificamente é pensar com referência às exigências da metodologia científica, mas a pessoa realmente tem que ter uma curiosidade, tem que querer satisfazer uma necessidade pessoal de trabalhar com alguma coisa que ela se propôs.

Pensar cientificamente é observar, fazer relações, testar para ver se os dados obtidos “batem” ou não. Mas o cientista precisa ser capaz de olhar para algo e ter sua curiosidade despertada.

(discurso não expresso)

Pensar cientificamente é observar a natureza, querer saber como ela funciona, relações e padrões repetidos e daí então medir e padronizar seu método.

(discurso não expresso)

Pensar cientificamente é ser capaz de olhar a floresta e perceber uma lógica nisso: poder daí extrair princípios. Existem padrões de regularidade na natureza, então o cientista vai à natureza e vê coisas.

Discurso 3 Método cientifico e subjetividade excluída

Discurso 4 Método científico e subjetividade incluída

Discurso 5 Método cientifico e conceito de natureza

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FALCÃO, E. B. M.; SIQUEIRA, A. H.

Pela análise dos discursos, constatamos a repetição de uma mesma representação do exercício do pensamento científico, pois um mesmo discursomatriz está presente em quase todos os diferentes discursos identificados nos subgrupos que compõem o Laboratório pesquisado. Vistos sob essa perspectiva, os discursos mostraram três aspectos relativos a essa representação. Em primeiro lugar, vê-se que pensar cientificamente envolve a adoção de uma diversidade de práticas e estratégias metodológicas em que a disciplina metodológica aparece como prioritária, no entendimento de todos os subgrupos. Assim, pensar cientificamente significa, antes de tudo, pensar sob condições determinadas pelos princípios da metodologia científica. Um segundo aspecto que ressalta nessas respostas é que o pensar cientificamente envolve também a adoção de uma visão de mundo inacabada. O conhecimento que explica os fenômenos desse mundo está, sempre, sujeito a uma revisão crítica, isto é, pode ser reinterpretado, revisto e até mesmo abandonado. Além disso, pensar cientificamente envolve um confronto permanente entre os aspectos subjetivos – a intenção, a vontade, o interesse, a curiosidade - do pesquisador e a obrigatória necessidade de ser o trabalho legitimado pela chamada objetividade crítica dos pares. Convém notar que todos os entrevistados chamaram a atenção para: “a necessidade de se ter a mente aberta”, o que significa, entre outras coisas, estar interessado nas opiniões dos colegas; “a importância de se ver uma questão sob vários ângulos”, considerando que são as trocas entre colegas que promovem tal exercício; “o fato de que a ciência é construída socialmente”, isto é, em colaboração com os pares; “o valor de não ser o cientista tendencioso”, pelo reconhecimento de que o controle das críticas de colegas é fundamental para a formulação do pensamento e para as atividades nas ciências. Em todas essas considerações, percebe-se que, na atividade científica, há uma condição de vida social requerida. Assim, os processos interativos entre colegas são vistos como um estímulo, assegurando a manutenção dos objetivos que caracterizariam, para o grupo, a realização do que entendem por pensar cientificamente. Devemos ressaltar que não identificamos uma representação coerentemente articulada apenas em torno de idéias unívocas. Percebemos a existência de idéias conflitantes e controversas. E isso não surpreende uma vez que nosso trabalho não visa buscar um conceito de pensamento científico no sentido de sua precisão. Nosso propósito é, antes, investigar a representação do pensar cientificamente em um determinado grupo, como fruto da vivência de um contexto cultural típico. Entre as principais idéias conflitantes identificadas, uma refere-se, por um lado, ao pensar cientificamente como um comportamento intelectual de buscar a verdade: “...testar e saber se os dados são verdadeiros ou não”(professor). Por outro lado, esse pensar é visto como construtor da realidade: “olhar a floresta e perceber uma lógica nisso, poder daí extrair princípios” (professor). Outra idéia que, nas entrevistas, aparece de forma conflitante é a da natureza. Esta, às vezes, é entendida como objeto imediato de estudo: “o cientista vai à natureza e vê coisas” (professor); “observar a natureza, ter a curiosidade de saber como ela funciona” (mestrando). Outras vezes, ela é

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PENSAR CIENTIFICAMENTE: REPRESENTAÇÃO DE UMA CULTURA

8 É necessário dizer que estamos conscientes de que a subjetividade existe, isto é, de que processos originais do indivíduo ocorrem no decorrer do exercício do pensar científico. Entretanto, discutir esses processos não é objeto deste trabalho.

concebida como uma interpretação de um conjunto de fenômenos, como se pode inferir de um tipo de fala que não diz respeito à natureza especificamente, em que se exalta o aspecto “construtivista” do pensar cientificamente: “...exige também saber que tudo é uma maneira de se interpretar o mundo” (estagiário). Tais conflitos nos remetem a antigas questões que ainda perpassam todo discurso sobre o conhecimento: o problema da objetividade e da subjetividade; a ciência como construção ou como “fato descoberto”; a natureza como “realidade exterior”, independente da percepção humana, ou como produto marcado por nossa percepção. Temas sobre os quais os estudos (filosóficos, antropológicos e sociológicos) da ciência se voltam, com bastante ênfase, atualmente. Se, a esses temas, somarmos o da subjetividade8 no pensamento científico, teremos um quadro resumido de aspectos centrais da reflexão contemporânea sobre a ciência. No mundo da ciência, tais questões têm sido respondidas de forma controvertida. O debate é atual. A representação desse grupo de cientistas reflete aspectos das controvérsias existentes. Talvez revele também um esforço, não intencional, de síntese, uma vez que os cientistas vivenciam no cotidiano os desafios dos objetivos e das práticas de sua área: o cientista busca soluções, além de boas perguntas! Neste ponto da análise, poderíamos ficar tentados a concluir que a representação do que é pensar cientificamente, no grupo estudado, estaria menos relacionada à cultura organizacional do Laboratório e mais ao contexto cultural amplo que cerca o mundo da ciência, uma vez que foram apreendidos, nos seus discursos, temas que compõem a agenda contemporânea dos estudos da ciência. Convém aqui lembrar que vivemos num mundo globalizado, em que as informações são trocadas de forma acelerada. A homogeneidade nas formas de pensar tende a afirmar-se. Além disso, no que diz respeito ao pensamento científico, este sempre buscou a universalidade. Certamente, nesse contexto, o mundo particular do Laboratório inclina-se à integração no mundo mais amplo da ciência. Mas, no caso em foco, no que diz respeito à presença desses temas da agenda científica contemporânea na fala dos entrevistados, nos parece mais interessante buscar explicações mais próximas. Comparando os grupos por nós estudados, verificamos que esses temas controversos não são habituais ao cotidiano de cientistas da área de ciências naturais. Um indício disso é que, nas duas pesquisas realizadas com bioquímicos, esses assuntos não apareceram nas respostas dadas por seus diferentes subgrupos. Por isso, pensamos que a questão parece ter relação mais imediata com o fato de que todos esses temas estão presentes no discurso da chefia do Laboratório, cuja atuação repercute bastante no dia-a-dia desse espaço de formação científica. Esse chefe, também fundador do Laboratório, foi quem estabeleceu as primeiras diretrizes de seu funcionamento. De personalidade forte, suas características pessoais incluem não só a solidez de sua atividade cientifica, atestada por sua produção internacionalmente reconhecida, mas também a grande variedade de seus interesses - mostrados até na autoria de livros infantis -, gosto pela conversa diversificada, extroversão e uma forma bastante contundente de se expressar. Ele dialoga muito com os estudantes

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Na dimensão afetiva, que permite ressaltar os ângulos das relações interpessoais no Laboratório, notamos reflexos das outras dimensões. Os conflitos entre colegas e com o chefe têm sua origem no uso pouco organizado da infra-estrutura do Laboratório assim como do espaço físico, considerado limitado para tantos usuários. Entretanto, nesta dimensão, foi percebida como favorável a existência de relações bastante amistosas no grupo. Se o chefe mostra momentos de autoritarismo, tende ele mesmo a suavizar tal comportamento com o interesse, manifestado freqüentemente, pelos trabalhos de todos, como indicam alguns depoimentos: “(...) a estrutura intelectual colocada à disposição pelo chefe do Laboratório favorece (...) de cara, quando chega ao Laboratório, a gente tem acesso a tudo que ele acumulou. “(...) isto é o principal, o exemplo que ele dá de trabalhar, a forma como incentiva as pessoas” (doutorando). Portanto, esse professor é visto como o incentivador de todos. E o grupo, em seu conjunto, vê o Laboratório como um ambiente aberto culturalmente, o que gera um sentimento de segurança quanto à possibilidade de livre expressão do pensamento. A liberdade de expressão, aliada ao clima amistoso de trocas e colaboração mútua, produz um ambiente propício ao interesse e à participação nas atividades, o que fortalece as bases afetivas. Duas falas de estudantes exemplificam essa percepção: “(...) o que eu acho que faz deste Laboratório um centro de excelência (...) é a convivência entre as pessoas (...) Não instalei meu correio eletrônico em casa para me obrigar a ir ao Laboratório, sinto falta das pessoas”(doutorando); “Essa atmosfera de cooperação cria laços mais estreitos e acaba que a gente se envolve mais com o trabalho também” (mestrando). A percepção de tal dinâmica, sob a ótica da afetividade, diminui significativamente o risco de que as críticas sejam percebidas como destrutivas, o que instalaria um clima de inimizade e hostilidade nas relações pessoais e profissionais. No caso, as críticas são vistas mais pelo lado do interesse e da cooperação de uns com os outros, o que permite que possam ser comunicadas e também recebidas de forma construtiva, ainda que disputas por espaço físico, uso de equipamentos e até silêncio apareçam como geradoras de conflitos. Concentrando o olhar sobre as queixas expressas por causa de conflitos, percebemos que elas se ligam ao que já foi detectado na dimensão institucional, isto é, à presença fraca de normas para o uso da infra-estrutura e do espaço físico de trabalho. Tal deficiência parece instalar um contínuo estado de desorganização no ambiente, fonte permanente de irritação no Laboratório. Tais queixas surgiram mais entre os alunos. Os professores, certamente por disporem de salas próprias, não se referiram a essa questão. Poder-se-ia pensar que o Laboratório, sendo caracterizado como de trabalho científico e não burocrático, não deveria ser organizado de acordo com as regras de um escritório. Estas, possivelmente, dificultariam a dinâmica de uso requerida pelo processo das atividades científicas nem sempre obedientes a regulações estritas. Entretanto, as queixas chamam a atenção tanto pela ênfase que lhes foi dada pelos entrevistados quanto por sua recorrência. Diante disso, podemos supor que, se houvesse um aprimoramento desse aspecto, as

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FALCÃO, E. B. M.; SIQUEIRA, A. H.

condições de trabalho seriam mais facilitadoras da conquista dos objetivos propostos, podendo melhorar até mesmo as relações entre as pessoas. A análise da cultura organizacional do Laboratório revelou duas condições básicas que se sobressaíram como favoráveis ao atendimento do objetivo do que seus integrantes entendem como pensar cientificamente: um ambiente de estímulo à cooperação, o que permite manter, no local, um estado coletivo de prontidão crítica disponível para o exercício do pensar cientificamente; e sentimentos amistosos que propiciam um clima de confiança mútua, necessário à expressão e aceitação tanto de comportamentos de aprovação quanto de críticas. Ambos os traços parecem abrir caminhos para a relativização das dificuldades detectadas na vida organizacional. Ressaltamos que seria difícil a sobrevivência de uma representação do que é pensar cientificamente com as características identificadas nos diferentes discursos (Quadro 1) em uma cultura organizacional em que cooperação e trocas entre colegas em clima amistoso estivessem fracamente identificadas. Pela análise dos discursos sobre essa representação, verificamos que o grupo releva a idéia de que é importante estudar todo fenômeno à luz de uma teoria, mas sem perder de vista que as teorias constituem modelos construídos, não são a tradução de uma realidade cabal. Dessa representação surge a consciência tanto dos limites de qualquer teoria quanto da necessidade do exercício constante da crítica entre os pares. O grupo vê que essas duas características devem estar presentes no ambiente de formação e atividade científicas. Nossa observação e as entrevistas revelaram que os integrantes do Laboratório percebem seu espaço de trabalho como um ambiente aberto e culturalmente diversificado, no qual as trocas são vistas como instrumento e norma do trabalho intelectual, o que torna o local propício à formação e atividade científicas. As queixas ouvidas, por seu lado, correspondem ao que é observado como negativo a essa mesma formação e atividade. Com isso, foi-nos possível extrair o aspecto dinâmico da cultura da organização acadêmica estudada. Pudemos estabelecer a relação entre certos discursos e as características da cultura organizacional, nas quais apontamos ângulos em que aparece uma associação positiva e faces em que há mostras da necessidade de intervenção para se promover melhor articulação entre objetivos, procedimentos, valores e normas. Comparação entre os três grupos estudados Na introdução, relatamos que o trabalho realizado no Laboratório de Vertebrados pertencia a um conjunto de três investigações, sendo que as duas outras tiveram como objeto de estudo dois grupos de bioquímicos universitários, um brasileiro e outro britânico. Por julgar que a comparação entre esses três grupos poderia propiciar um melhor entendimento das questões por nós aqui levantadas, decidimos incluí-la neste artigo, resumidamente. Três temas sobressaíram na representação do que é o pensar cientificamente do grupo de bioquímicos brasileiros: método científico, compreensão da natureza e criatividade. Em relação a essa representação,

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PENSAR CIENTIFICAMENTE: REPRESENTAÇÃO DE UMA CULTURA

foi-nos possível identificar uma estratificação entre professores e estudantes. Os primeiros enfatizaram a criação (entendida como qualidade mental) e a compreensão da natureza. Já os estudantes deram ênfase ao método científico. A análise da cultura organizacional revelou haver uma divisão de trabalho muito definida entre professores e estudantes. Aqueles não realizavam trabalho de bancada, nos quais as etapas mais visíveis e operacionais do método científico são efetuadas. Eram os estudantes os responsáveis por essa atividade. O trabalho experimental nas bancadas de laboratórios, na área de bioquímica, é fundamental e compõe uma parte expressiva tanto da produção do conhecimento científico como da formação de seus profissionais. Assim, justamente por atuarem na parte mais experimental de seu trabalho, esses estudantes mostraram, em sua representação do que é pensar cientificamente, uma forte ênfase nos aspectos da metodologia científica. Um outro ângulo que sobressaiu nessa cultura foi a identificação de problemas de comunicação entre os componentes do grupo. Muitos de seus integrantes citaram a crescente falta de espírito de colaboração no ambiente - fato lamentado por quase todos por perceberem a cooperação como fundamental para o exercício do pensar científico. O grupo de bioquímicos britânicos expressou uma representação semelhante à dos bioquímicos brasileiros. No entanto, ela incluiu alguns aspectos bastante específicos. Não os ouvimos falar apenas de “metodologia cientifica” mas de “estratégias experimentais inovadoras” a cada problema pesquisado. Aí também os estudantes enfatizaram mais a “metodologia”. Entre os britânicos, repetiu-se, claramente, a mesma divisão de trabalho percebida no Brasil: os estudantes nas bancadas e os professores nos gabinetes. Entre eles, porém, pouco se falou em criatividade. Sua representação fixou-se, sobretudo, no sentido de “solução de problemas”. Levando em conta a forte tradição empirista dos britânicos, consideramos não ser redundante apontar esse traço cultural como expressão mais geral de um ambiente acadêmico delimitado como o desse grupo aqui pesquisado. Entretanto, a análise da cultura organizacional mostrou outro ângulo a respeito dessa questão. O grupo todo revelou clara consciência de que dispunha de muitos recursos financeiros, o que lhe permitia “experimentar todas as idéias” que desejasse. Por isso, a idéia de criatividade apareceu sempre conectada à de experimentar na bancada com ampla liberdade financeira. A natureza, nesse ambiente, foi pouco lembrada como referência do exercício do pensar científico, ao contrário do que aconteceu com o grupo brasileiro. Isso se explica não só pela enorme diferença de aporte financeiro, entre os dois grupos, mas também pela solidez do aparato da ciência de que o grupo britânico dispõe. O mundo científico contemporâneo trabalha com modelos simplificados de investigação e utiliza, com freqüência, materiais já distantes do natural, o que requer custoso aparato tecnológico. Em escala incomparavelmente maior que no grupo brasileiro, tal aparato é flagrante no contexto britânico. Dessa forma, ali, a natureza tem bem menos chance

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FALCÃO, E. B. M.; SIQUEIRA, A. H.

de ser lembrada9. De modo semelhante ao ocorrido com o grupo brasileiro, entre os britânicos surgiram muitas queixas sobre as dificuldades crescentes de comunicação entre os cientistas. Essas dificuldades foram consideradas, como entre os brasileiros, expressão do enfraquecimento de um ambiente favorável ao pensar científico. Na representação do que é pensar cientificamente do grupo do Laboratório de Vertebrados, vimos que não ocorreu a estratificação entre professores e estudantes, notada entre os bioquímicos. Tal característica parece dever-se, conforme nossa análise da cultura organizacional mostrou, ao forte espírito de colaboração presente no grupo, o que, de certa forma, não permite a divisão de trabalho entre professores e estudantes, pelo menos na forma nítida e marcante percebida nos outros dois grupos. Também, como entre os bioquímicos brasileiros, houve referência clara à natureza como objeto especial do pensar científico, o que se pode explicar por não contarem esses cientistas com o aparato tecnológico e aporte de verbas necessários às investigações científicas que prescindem do mundo “natural”. Como já referido, no Laboratório de Vertebrados é explícita a norma da busca de colaboração. Também é usual a discussão sobre os limites da metodologia científica, a consciência de aspectos polêmicos e mesmo competitivos das afirmações científicas e de seu caráter social. Conforme ressaltamos, a presença de tais temas teria origem na atuação do professorchefe do grupo, figura bastante atuante na cultura dessa organização. É interessante observar que a ênfase atribuída aos aspectos interpretativos do pensar científico, percebida neste grupo, traz embutida uma associação com a idéia de criação como componente desse mesmo pensar. Por esse fato, de acordo com nossa análise, o contexto cultural desse Laboratório poderia ser caracterizado como original, no campo das ciências naturais, já que tais concepções não foram manifestadas nos dois outros grupos. Considerando-se que o exercício do pensar cientificamente é visto como um comportamento intelectual com pretensões de universalidade, poder-seia supor que não haveria diferenças entre suas representações em diversos grupos. Mas vimos, em nossas pesquisas, conforme essa análise comparativa mostrou, o inverso. A universalidade tem um limite: o contexto cultural mais próximo dos diferentes grupos, ou seja, sua cultura organizacional. Conclusão Ao longo deste trabalho, expressamos conclusões parciais, relativas a cada uma das partes que compõem este artigo. Ao final, pensamos ser útil ressaltar o que nossa pesquisa demonstrou: as representações do que é pensar cientificamente estão relacionadas às características das culturas organizacionais onde se expressam. As observações de campo e as entrevistas feitas revelaram que a cultura organizacional tanto resulta das diferentes formas de interação e objetivos comuns de um grupo como ela própria afeta a continuidade da vida grupal, suas contínuas trocas, objetivos e resultados. As representações dos três grupos estudados exemplificam essa dinâmica. Expressam a dialética que nos

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A idéia de “natureza” como referência da atividade científica tem sido objeto de reflexão na sociologia da ciência. Por exemplo, KnorrCetina (1981,p.3), ao descrever um laboratório, questionou o que, aí, haveria de “natureza” ou “realidade”, se o que se encontra, nesse espaço, é altamente préconstruído - se não, completamente artificial. Barnes (1982, p.5), por sua vez, ressalta que, na ciência, a “natureza” tem sido caracterizada de diferentes formas. Tais reflexões, de certa forma, explicam os conflitos, em relação à representação de “natureza”, detectados por nós nesta pesquisa.


PENSAR CIENTIFICAMENTE: REPRESENTAÇÃO DE UMA CULTURA

permite desvendar as conexões entre as características da cultura organizacional e cada uma dessas representações. A análise da cultura organizacional, aqui desenvolvida, forneceu-nos base para a compreensão de diferenças e semelhanças entre as representações sociais do que é pensar cientificamente expressas pelos três grupos pesquisados. Isso sugere a importância da tomada de consciência, por parte de todos que trabalham nos ambientes organizacionais, da existência de uma cultura típica, cujos traços podem favorecer ou desfavorecer o objetivo final de sua existência: a produção e divulgação do conhecimento científico. Essa consciência pode contribuir para que se desenvolvam, entre os participantes dos grupos, iniciativas de intervenção na própria cultura visando seu aprimoramento. A cultura de uma organização acadêmica deve ser objeto de permanente investigação e reflexão para que se criem condições de implementação de qualidade em seus objetivos e formas de atingi-los. Foi também com essa intenção que realizamos nossas pesquisas. Referências ALVESSON, M. Cultural perspectives on organizations. USA: Cambridge University Press, 1993. BARNES,B.; EDGE, D. Science in context. UK: The Open University Press, 1982. BERNARDES, C. Teoria geral das organizações: os fundamentos da administração integrada. São Paulo: Atlas, 1988. BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. BROWN, A. Organisational culture. UK: Pitman Publishing, 1995. FALCÃO, E. B. M. Variety in concepts of scientific thinking within a single field of science. Ciênc. Cult., v.52, n.1, p.21-6, 2000. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. KNORR-CETINA, K. The manufacture of knowledge. UK: Pergamon Press, 1981. LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M.; TEIXEIRA, J. V. O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica. Caxias do Sul: EDUSC, 2000. SCHEIN, E. Coming to a new awareness of organizational culture. Sloan Manag. Rev., n.25, p.3-16, 1984. SIQUEIRA, A. S. A representação do pensamento científico: o discurso do sujeito coletivo no contexto da cultura organizacional de um laboratório de pesquisa científica-Nutes/UFRJ. 2001. Dissertação (Mestrado). Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. THÉVENET, M. Cultura de empresa. Lisboa: Monitor, 1990.

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Comunicação e informação em Saúde no pré-natal*

Escolástica Rejane Ferreira Moura 1 Maria Socorro Pereira Rodrigues 2

MOURA, E. R. F.; RODRIGUES, M. S. P. Pre natal healthcare communication and information, Interface Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.109-18, 2003.

This investigation intended to examine the business of healthcare communication and information, during prenatal care carried out by nurses working in the Family Health Program (HFP) in Brazil. The data were collected in eight towns in Ceará state from May to June of 2001, using interviews, a questionnaire and participant observation. Thirty nurses and thirty pregnant women constituted the sample. It was observed that healthcare communication and information activities were implemented by the group in a more participative and innovative way, in the universe surveyed, therefore, it was performed less frequently. The absence of planning the group activities was observed, thus systematically and continuously jeopardizing the execution. It was seen that individual nurses have undertaken healthcare communication and information activities as part of routine care of pregnant women, their performance recognized by the government. These activities should be implemented in such a way as to replace medical consultations, with the purpose of helping the introduction of a healthcare promotion model. KEY WORDS: Prenatal care; primary health care; health promotion; Health Education; communication. Trata-se de pesquisa que teve por objetivo investigar as atividades de comunicação/informação em saúde, implementadas no decorrer da assistência pré-natal, por enfermeiros que atuam no Programa Saúde da Família, Brasil (PSF). Os dados foram colhidos em oito municípios do Estado do Ceará, de maio a junho de 2001, utilizando as técnicas de observação participante, entrevista e questionário. A amostra foi constituída por trinta enfermeiros e trinta gestantes. Constatou-se que as atividades de comunicação/informação em saúde começam a ser implementadas de forma mais inovadora e participativa, no universo pesquisado, porém com baixa freqüência. Identificou-se ausência de planejamento das atividades grupais, prejudicando sua execução de maneira sistemática e contínua. Já no âmbito individual, os enfermeiros estão desenvolvendo ações de comunicação/ informação como parte da rotina dos cuidados de enfermagem às gestantes, inclusive tendo seus desempenhos reconhecidos no âmbito estadual. Recomenda-se que essas atividades sejam implementadas de maneira a sobrepor as consultas, a fim de contribuir para a implantação de um modelo de promoção da saúde. PALAVRAS-CHAVE: Cuidado pré-natal; cuidados primários de saúde; promoção da saúde; Educação em Saúde; comunicação.

*

Artigo produzido a partir de Dissertação de Mestrado (Moura, 2001).

1

Enfermeira, Assessora Técnica da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, Brasil. <escolpaz@yahoo.com.br>

2

Enfermeira, Professora Adjunta da Universidade Federal do Ceará, Brasil. <socorro@ufc.br>

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MOURA, E. R. F.; RODRIGUES, M. S. P.

Introdução A década de 1980 foi marcada como um período de transição democrática no qual um crescente sentimento de democratização tomou conta do país, fazendo despontar a organização de vários movimentos sociais, destacando-se o movimento feminista. As mulheres passaram a reivindicar direitos relacionados à saúde reprodutiva, como o planejamento familiar, a sexualidade, a democratização da informação em saúde, além de outras medidas entendidas na esfera da Saúde Pública e não mais, na esfera biomédica. Nesse período, a saúde da mulher passou a ser discutida com mais intensidade nas universidades, nos sistemas formais de saúde e nas organizações sociais (Tyrrel & Carvalho, 1995). As mesmas autoras afirmam que, em decorrência desse processo de mobilização social e de formação de alianças com as instituições formais de saúde, o Ministério da Saúde (MS), em conjunto com líderes feministas e profissionais da saúde, iniciaram a elaboração de normas e propostas capazes de garantir à mulher o atendimento a seus direitos reprodutivos, resultando na estruturação das bases fundamentais do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). A implantação do PAISM veio estimular o desenvolvimento de várias atividades de cunho informativo/educativo nas unidades de saúde, com vistas à promoção do autoconhecimento e da autoestima das mulheres, em que se incluíram oficinas e outros tipos de abordagens grupais com enfoque participativo. Sobre a assistência pré-natal, o MS enfatiza que a gestação caracteriza-se por ser um período de mudanças físicas e emocionais, determinando que o principal objetivo do acompanhamento pré-natal seja o acolhimento à mulher, o oferecimento de respostas e de apoio aos sentimentos de medo, dúvidas, angústias, fantasias ou, simplesmente, à curiosidade de saber sobre o que acontece com o seu corpo (Brasil, 2000). Segundo Navajas Filho (1997), o mais importante para a equipe e, em particular, para o enfermeiro que presta cuidado às gestantes no pré-natal, é conhecer o que está acontecendo com elas e saber que, por trás de toda pergunta, aparentemente ingênua, feita por uma gestante, poderão existir importantes demandas emocionais latentes. Infere-se, portanto, que o estabelecimento de uma escuta ativa, aliada a uma prática de comunicação/informação adequada junto às gestantes, parece contribuir sobremaneira para que essas mulheres ganhem autonomia, passando a participar da promoção de sua saúde e da saúde do concepto. As atividades de comunicação/informação em saúde devem ser priorizadas no transcurso da assistência pré-natal, uma vez que o intercâmbio de informações e experiências pode ser a melhor forma de promover a compreensão do processo da gestação. Neste sentido, o MS ressalta que o foco principal do processo de orientação/informação deve ser as gestantes, incluindo, porém, seus companheiros e familiares (Brasil, 2000). Sendo assim, o contexto em que se apresenta o Programa Saúde da Família (PSF) parece favorecer uma práxis efetiva de comunicação/informação em saúde, visto ter como prioridade a promoção da saúde e prevenção das doenças, cujo pilar de sustentação é exatamente a educação em saúde. Ademais, os profissionais do PSF compreendem que seu universo de atuação é a pessoa

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COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO EM SAÚDE NO PRÉ-NATAL

inserida no seio familiar e integrada a uma comunidade. Sobre esse assunto Varela (2000) considera fundamental o envolvimento dos profissionais de saúde com outros atores da comunidade (familiares, lideranças etc.). A autora ressalta que esses atores levam cuidados de saúde à população dentro do sistema comunitário, exercendo forte influência, aspecto que precisa ser levado em conta pelos profissionais. Portanto, a aproximação entre enfermeiros e esses atores sociais parece ser um elemento facilitador à adequada compreensão da realidade e identificação dos traços culturais da comunidade. Diante do exposto, decidiu-se pela realização do presente trabalho, tendo por objetivo realizar uma análise crítica das atividades de comunicação/ informação em saúde, implementadas pelos enfermeiros, por ocasião da assistência pré-natal, oferecida no PSF de oito municípios do Ceará. Materiais e métodos Trata-se de pesquisa descritiva, com abordagem predominantemente qualitativa. Os dados foram coletados em oito municípios que compõem a micro região de saúde de Baturité, Ceará, no período de abril a julho de 2001. A amostra foi constituída por trinta enfermeiros e trinta gestantes. O número de enfermeiros correspondeu a 93,8% do total de enfermeiros da micro região que atuavam no PSF, uma vez que dois se eximiram da pesquisa. O número de gestantes foi determinado pela saturação dos comentários abordados nas entrevistas. Para a seleção dos sujeitos, foram estabelecidos os seguintes critérios: as enfermeiras deveriam estar atuando na assistência pré-natal, enquanto integrantes de equipe de PSF, e manifestar aceitação voluntária à participação no estudo; as gestantes deveriam ter realizado, pelo menos, três consultas de enfermagem no prénatal atual, e demonstrar aceitação voluntária à participação na pesquisa. A coleta dos dados procedida junto às gestantes foi realizada por meio de entrevista, com base em roteiro pré-estabelecido. Foram realizadas, em sua maioria, nas Unidades Básicas de Saúde da Família (UBASF) e as demais, no domicílio das próprias gestantes. Esta tarefa contou com a colaboração de enfermeiras, agentes de saúde e auxiliares de enfermagem no sentido de guiar e acompanhar a pesquisadora aos referidos domicílios. Segundo Cruz Neto (1995, p.57), a entrevista “faz parte da relação mais formal do trabalho de campo, em que, intencionalmente, o pesquisador recolhe informações, através da fala dos atores sociais”. Para este autor a entrevista é o procedimento mais usual no trabalho de campo, para obtenção de dados objetivos e subjetivos sobre determinada temática. Optou-se pela modalidade de entrevista semi-estruturada, por esta permitir, também, que o informante aborde, livremente, o tema proposto, sem respostas ou condições prefixadas pelo pesquisador. O levantamento de dados junto às enfermeiras foi realizado mediante solicitação de respostas diretas ao questionário, em caráter de autoaplicação. Neste sentido, é importante informar que, em princípio, foi testado tanto o roteiro de entrevista para as gestantes como um roteiro de entrevista para as enfermeiras, utilizando-se um gravador como recurso

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MOURA, E. R. F.; RODRIGUES, M. S. P.

para documentar as falas. Foram entrevistadas, na ocasião, cinco enfermeiras e 3 oito gestantes . Levando-se em conta o fato de que as enfermeiras se encontravam no ambiente de trabalho, com uma alta demanda de atendimento e considerando que as UBASF não ofereciam um ambiente adequado para gravação, decidiu-se pelo uso do questionário auto-aplicável pelas próprias enfermeiras e o registro escrito pela pesquisadora, no caso das gestantes. Utilizou-se a observação participante, por ocasião da interação com coordenadores de PSF, funcionários das UBASF, enfermeiras, famílias e gestantes, buscando aprofundamento para compreensão do objeto estudado. Para Triviños (1993), a observação ajuda a conhecer os atos, a dinâmica espontânea dos indivíduos, sua prática, e seu cotidiano, possibilitando o entendimento do fenômeno que está sendo investigado. Os dados advindos da observação foram registrados em um diário de campo, com o objetivo de documentar esta etapa da pesquisa, com relação a tudo o que se passava no contexto social. Durante a fase de coleta de dados teve-se a oportunidade de participar de dois seminários micro regionais (Seminário Micro regional da Atenção Primária e Seminário Micro regional de Saúde da Mulher), e da Semana de Enfermagem, quando houve possibilidade de constatar a dimensão da educação continuada das enfermeiras, de aspectos de saúde trazidos para debate, favorecendo a interação das pesquisadoras com as enfermeiras e enriquecendo o diário de campo. Resultados e discussão Os enfermeiros afirmaram que as atividades de comunicação/informação em saúde dirigidas às gestantes são realizadas no transcorrer das consultas de enfermagem (nível individual) e, também, por meio de atividades grupais. Outra forma citada foi por ocasião das reuniões mensais, às quais a gestante comparece com objetivo específico e, visto serem mais prolongadas, favorecem melhor captação das mensagens divulgadas. As principais temáticas abordadas pelos enfermeiros, por ocasião da assistência pré-natal, quer seja no nível individual (com maior freqüência) e/ou grupal, e das quais emergem as informação em saúde, conforme afirmam as gestantes, destacaram-se: preparação para o parto, cuidado com as mamas e preparo para o aleitamento materno, vestuário adequado, combate ao tabagismo, uso de medicamentos, alimentação e cuidados com a criança (higiene e vacinação), exames laboratoriais, atividade física regular, contato e afeto com o bebê, ainda no útero, entre outros. Diante desses dados, constatou-se que os enfermeiros do universo estudado parecem ser conhecedores da importância da prática de informação em saúde, principalmente no nível individual, e que as temáticas abordadas possam ajudar a gestante a se conduzir de forma mais adequada no que diz respeito às circunstâncias da gestação, do parto e puerpério. A avaliação de impacto da situação da Saúde Reprodutiva no Ceará (Ceará, 1998) divulgou que os enfermeiros vêm estabelecendo satisfatória interação com as gestantes e proporcionando a essas mulheres uma troca de informações mais completa, por ocasião da consulta de enfermagem, fato que corrobora nossa colocação. Nesse sentido, Fortes & Martins (2000) ressaltam que a proposta do

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O consentimento de participação do estudo foi dado por todos os sujeitos pesquisados. Foram assegurados aos mesmos, o sigilo e o anonimato. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Ceará, na conformidade das diretrizes e normas que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos, Resolução nº 196/ 96, do Conselho Nacional de Saúde – MS. Foi financiada pela Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP), sob a forma de bolsa de demanda social e, para sua execução, teve apoio da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará.


COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO EM SAÚDE NO PRÉ-NATAL

modelo assistencial atual, pautada na promoção da saúde, requer o direito do usuário à informação, de tal forma que seja este o elemento vital para a sua tomada de decisões. Assim, os enfermeiros parecem estar atuando em conformidade com o modelo de política de saúde vigente, comprometidos com a democratização do saber em saúde e com o desenvolvimento de potencialidades da clientela. Podemos enriquecer essa reflexão, subsidiadas pela idéia de King (1981), ao afirmar que, na medida em que é dever do enfermeiro informar os clientes sobre como cuidar da saúde, ajudando-os a tomar decisões conscientes, é direito dos clientes serem informados sobre os cuidados de saúde e participarem das decisões que influenciam sua vida, sua saúde e os serviços comunitários. Analisando o contexto descrito e tomando por base dados da observação participante, pode-se afirmar que existe deficiência no planejamento das atividades de informação em saúde, no nível grupal, no sentido de que seja considerada uma atividade prioritária e realizada de forma sistemática, conforme preconizado pelo PSF, e não de forma isolada, sem um projeto de continuidade, conforme vem acontecendo. Este fato foi bastante caracterizado por ocasião do período de coleta de dados, uma vez que se teve a oportunidade de assistir, em apenas um município, a uma reunião mensal com gestantes, apesar de haver o atendimento sistemático de gestantes, nas consultas. Essa mesma constatação já havia sido feita anteriormente, por Moura & Sousa (2002, p.1811), que identificaram déficit quanto à oferta de atividades de informação em saúde, nos mesmos municípios, atribuindo ao fato às seguintes causas: insuficiente cobertura da população por equipes de PSF, predomínio do modelo tradicional curativo, ausência ou inadequação de local para o desenvolvimento das atividades educativas, disponibilização insuficiente de material de apoio e despreparo e desmotivação dos profissionais.

Nos depoimentos apresentados a seguir, as gestantes confirmam a escassez de atividades grupais, de informação em saúde, justo no momento em que ressaltam sua importância como parte da assistência de enfermagem no prénatal. Que tivesse mais reunião. É pra ter toda vez que a gente tá marcada, mas às vezes elas [as enfermeiras] chegam tarde, aí as gestantes já tão tudo aqui, aí atrasa e ela já chega pra atender (G22 e G27). Eu adoro quando a gente se reúne. Todo mundo fica se conhecendo, a gente fica sabendo quem vai ter o parto primeiro e pode até visitar e ajudar quem for tendo o filho. A gente aprende a dar de mamar, não fumar, não tomar remédio em vão (G22).

Da observação feita no transcorrer de uma reunião mensal, realizada durante a fase de coleta dos dados, constatou-se que esta foi conduzida de forma bastante participativa, com apoio audiovisual (álbum seriado, vídeo e entrega de folder), aplicação de linguagem clara, acessível às gestantes,

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possibilitando a interação entre enfermeiras e gestantes. Sabe-se que a observação de uma só reunião grupal é insuficiente para a inferência de que os enfermeiros estão aptos a realizar adequadamente a tarefa. Comparando esses dados com o que foi observado por Moura e Sousa em 1999 (despreparo dos profissionais das equipes de PSF, médicas e enfermeiras, para promover a participação dos grupos; orientação pouco direcionada às necessidades de informação do grupo; uso freqüente de linguagem científica; repasse de informações desatualizadas; e utilização inadequada do material de apoio) (Moura & Sousa, 2002), pode-se afirmar ter ocorrido um avanço. Percebe-se que as enfermeiras demonstraram compreensão aprimorada quanto ao enfoque das práticas de informação em saúde, inclusive no que se refere à adoção da metodologia participativa, valorização das necessidades de informação do grupo e utilização adequada do material de apoio. Entretanto, Collet & Rosso (1999) tiveram percepção diferenciada a esse respeito, ao revelarem que a prática desenvolvida por enfermeiros, em um município do interior paraense, corresponde, na maioria das vezes, a um simples repasse de informações, negando a oportunidade de se fazer uma reflexão da realidade local e das políticas oficiais de saúde. Acrescentam, ainda, que médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes de saúde que atuam em PSF precisam estar cônscios da responsabilidade individual de esclarecer os usuários acerca de questões que lhes dizem respeito e criar condições para o estabelecimento de uma cultura institucional de informação e de comunicação que leve em conta a condição sócio-cultural de cada comunidade atendida. Nessa perspectiva, as chances das gestantes virem a adotar medidas de autocuidado, com vistas ao alcance de metas de saúde, tornam-se mais reais. Um estudo realizado sobre os significados e imagens do PSF, em um município do Ceará, identificou a necessidade de sistematização do componente educação em saúde, sugerindo que este seja desenvolvido por meio de uma metodologia de educação popular, formando grupos por interesses comuns, possibilitando discussões com as gestantes, simulações de práticas de atenção à criança e à mulher, em uma partilha intergrupal e profissional de saberes (Almeida, 2001). A mesma autora acrescenta, ainda, a importância da aproximação dos profissionais com movimentos sociais, lideranças comunitárias, grupos de interesse, conselhos, igrejas etc., no sentido de promover uma efetiva integração e participação da comunidade nas intervenções de saúde. Considera-se oportuno discutir com mais profundidade o conceito de Educação em Saúde introduzida com o relato de Almeida (2001), como algo bem mais abrangente do que uma simples atividade de repasse de informação. Para Candeias (1997, p.210) a educação em saúde é entendida como “quaisquer combinações de experiências de aprendizagem delineadas com vistas a facilitar ações voluntárias conducentes à saúde”. A palavra delineada diferencia o processo de educação em saúde de quaisquer outras experiências acidentais de aprendizagem, ou seja, define-a como uma atividade sistematicamente planejada; a voluntariedade, por sua vez, significa sem coerção e com plena compreensão e aceitação dos objetivos educativos implícitos e explícitos nas ações desenvolvidas e recomendadas. Já Levy (2000)

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afirma que a educação em saúde deve oferecer condições para que as pessoas desenvolvam o senso de responsabilidade, tanto em relação a sua própria saúde, como em relação à saúde da comunidade, merecendo consideração como um dos mais importantes elos entre as perspectivas dos indivíduos, os projetos governamentais e as práticas de saúde. Kawamoto (1993) e Levy (2000) ressaltam, ainda, que as ações educativas em saúde são processos que objetivam capacitar indivíduos e/ou grupos, de modo que possam assumir a responsabilidade de ajudar na melhoria das condições de saúde da população. As autoras acrescentam, ainda, que os profissionais e a população devem compreender que as ações oferecidas pelos serviços de saúde, assim como o esforço da própria população, mediante conhecimentos, motivação, reflexão e adoção de novas práticas de saúde, é que irão garantir a saúde da comunidade. Diante desta reflexão vale chamar a atenção dos enfermeiros para que, ao realizarem as atividades de orientação/informação, tenham a compreensão de que estão contribuindo profundamente para a educação em saúde, valendo avançar para o alcance da educação como meta maior. A adoção de práticas benéficas à saúde, bem como a mudança para comportamentos favoráveis à saúde é o resultado esperado de um bom programa de educação em saúde. Serão destacados, a seguir, alguns depoimentos de gestantes que fomentaram uma tentativa de avaliação do impacto das atividades de orientação/informação em saúde sobre a implementação do autocuidado por parte dessas usuárias. Os depoimentos das gestantes demonstram que a prática do autocuidado é exercida por algumas gestantes, confirmado pelas percepções das enfermeiras com relação a prática do autocuidado: 16 enfermeiros (53,3%) consideraram que as gestantes realizam o autocuidado satisfatoriamente; 13 enfermeiros (43,3%) consideraram que o autocuidado é exercido com limitações e um enfermeiro (3,3%) não avaliou. Ressalta-se que esse tipo de avaliação, permitindo identificar os efeitos da orientação/informação sobre a qualidade de vida dos clientes, deve ser realizado continuamente pelos enfermeiros. Ela [a enfermeira] orienta mais sobre a alimentação. Eu estava com muito peso. Ela [a enfermeira] mandou diminuir as massas e eu estou achando bem melhor. Pediu pra eu caminhar, estou fazendo e é bom mesmo (G30). A enfermeira orientou sobre o repouso e como evitar esforço, pois eu estava com dores, e eu cumpri o que ela mandou. Hoje eu queria que ela me orientasse sobre a inflamação [...] (G18). Ter cuidado de repousar. Proibiu ter relação. Conversei com meu esposo e ele entendeu (G15).

Portanto, a prática de comunicação/informação em saúde pode ser desenvolvida por meio de uma proposta de sistematização da assistência de enfermagem (SAE), de maneira que sejam identificadas as principais necessidades de informação do cliente, da família e/ou da comunidade, e ao serem atendidas, possam os efeitos ser monitorados com relação ao impacto sobre o comportamento e a vida das pessoas.

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Considerações finais O trabalho desenvolvido possibilitou constatar que a atividade de comunicação/ informação em saúde, como assistência de Enfermagem no pré-natal, começa a ser implementada de forma mais inovadora e participativa, nos municípios onde foi realizada a pesquisa, apesar da baixa freqüência observada e da ausência de planejamento de atividades grupais, o que poderá servir para resgatar a dimensão de uma atividade sistemática e contínua. Já no nível individual, as enfermeiras vêm atuando de forma mais constante, com o reconhecimento em pesquisa de âmbito estadual. Ademais, é necessário introduzir a prática dessas atividades (individual e grupal), de maneira a sobrepor as consultas, com a proposta de reversão do modelo tradicional biomédico (voltado à doença) para o modelo atual, que tem como foco a promoção da saúde e que, portanto, traz a democratização do saber em saúde e a avaliação de impacto sobre a qualidade de vida das pessoas como principal meta. Pode-se considerar, ainda, o salto qualitativo que foi dado de 1999 para 2001, uma vez que se observou, no transcorrer desta pesquisa, uma experiência grupal, na qual constatou-se a introdução de técnica adequada à participação do grupo, aspecto favorável ao desenvolvimento de potencialidades para o exercício do auto-cuidado, da promoção da saúde e do estímulo à cidadania. Conclui-se que o desenvolvimento de atividades de comunicação/informação em saúde na assistência ao pré-natal merecem ser priorizadas, planejadas e desenvolvidas com vistas a gerar mudanças de comportamentos, pela adoção de práticas sistemáticas e participativas por todos os profissionais que integram as equipes de PSF. Referências ALMEIDA, M. Programa Saúde da Família: significados e imagens. 2001. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem, Universidade Federal de Fortaleza. Ceará. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Assistência pré-natal: manual técnico. Brasília: Ministério da Saúde, 2000. CANDEIAS, N. M. F. Conceitos de educação e de promoção em saúde: mudanças individuais e mudanças organizacionais. Rev. Saúde Pública, v.3, n.1, p.209-12, 1997. CEARÁ. SECRETARIA DE SAÚDE DO ESTADO. II Análise situacional da saúde reprodutiva no Ceará: avaliação de impacto 1993-1997. Fortaleza: Secretaria da Saúde, 1998. COLLET, N.; ROSSO, C. F. W. Os enfermeiros e a prática de educação em saúde em municípios do interior paranaense. Disponível em: <http://www.fen.ufg.br/revista>. Acesso em: 17 out. 1999. CRUZ NETO, O. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p.51-66. FORTES, P. A. C.; MARTINS, C. L. A ética, a humanização e a saúde da família. Rev. Bras. Enferm., v.8, n.53, p.31-3, 2000. KAWAMOTO, E. E. Educação em saúde. Enfermagem comunitária. EPU, v.3, p.29-33, 1993. KING, I. M. A theory for nursing: systems, concepts, process. New York: Wiley medical publications, 1981.

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COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO EM SAÚDE NO PRÉ-NATAL

LEVY, S. Programa educação em saúde. Disponível em: <http://www.saúde.gov.br/programas/pes/ pes/index.htm>. Acesso em: 05 out. 2000. MOURA, E. R. F. Assistência de Enfermagem no pré-natal no contexto do Programa Saúde da Família. 2001. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem, Universidade Federal de Fortaleza. Ceará. MOURA, E. R. F.; SOUSA, R. A. Educação em saúde reprodutiva: proposta ou realidade do programa saúde da família? Cad. Saúde Pública, v.18, n.6, p.1809-11, 2002. NAVAJAS FILHO, E. Os processos de identificação e introjeção na gravidez. In: ZUGAIB, M.; TEDESCO, J. J. A.; QUAYLE, J. (Org.). Obstetrícia psicossomática. São Paulo: Atheneu, 1997. p.10-4. TRIVIÑOS, A.N.S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1993. TYRREL, M. A.; CARVALHO, V. Programas nacionais de saúde materno-infantil: impacto político social e inserção de enfermagem. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. VARELA, Z. M. V. Habilidades femininas no agir didático. In: VARELA, Z. M. V.; SILVA, R. M.; BARROSO, M. G.T (Org.). Ensino na universidade: integrando graduação e pós-graduação. Fortaleza: FCPC, 2000. p.17-25.

MOURA, E. R. F.; RODRIGUES, M. S. P. Comunicación e información en Salud en el examen prenatal, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.109-18, 2003. Se trata de una investigación que tuvo por objetivo analizar las actividades de comunicación / información en salud, implementadas en el transcurso de la atención prenatal, por enfermeros que actúan en el Programa Salud de la Familia, Brasil (PSF). Los datos fueron recolectados en ocho municipios del Estado de Ceará, de mayo a junio de 2001, utilizando las técnicas de observación participante, entrevista y cuestionario. La muestra fue constituida por trinta enfermeros y trinta gestantes. Se constató que las actividades de comunicación / información en salud comienzan a ser implementadas de forma más innovadora y participativa, en el universo investigado, no obstante con baja frecuencia. Se identificó ausencia de planificación de las actividades grupales, perjudicando su ejecución de manera sistemática y continua. En el ámbito individual, los enfermeros están desarrollando acciones de comunicación / información como parte de la rutina de la atención de la enfermería a las gestantes, incluso con sus desempeños reconocidos en el ámbito provincial. Se recomienda que esas actividades sean implementadas de manera que sobrepongan las consultas, con la propuesta de contribuir a la implantación de un modelo de promoción de la salud (PSF). PALABRAS CLAVE: Atención prenatal; atención primaria de la salud; promoción de la salud; Educación en Salud; communicación.

Recebido para publicação em 12/12/02. Aprovado para publicação em 04/06/03.

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MOURA, E. R. F.; RODRIGUES, M. S. P.

MARIA DO SOCORRO FIGUEIREDO, 2003

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Violência na escola: identificando pistas para a prevenção Kathie Njaine 1 2 Maria Cecília de Souza Minayo

NJAINE, K.; MINAYO, M. C. S. Violence in schools: identifying clues for prevention, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.119-34, 2003.

This is a qualitative study aiming to examine the levels of violence in different social contexts and the ways violence appears daily in schools, starting from statements of youths and educators in public and private schools in three Brazilian municipalities - Iguatu (CE); Juiz de Fora (MG) and Campinas (SP). It surveyed the sense attributed to the practice of violence, as carrying firearms in the school environment, and the interrelationship between these practices and the institutions that carry out the role of socializing the youths: school and family. Given the importance that they have today, the media in society, above all television, also attempt to reflect on new strategies for combating violence starting from its meeting point with daily schoolwork. The conclusion is that the role of the school and the family as advantaged sources of mediation enables wide performance in the field of violence prevention. But these institutions need to work together, seeking mainly to establish a respectful relationship with the young people. As to the role of the media, the need was clear for the school to work as mediator in the critical evaluation of the violent contents broadcast by the media. KEYWORDS: violence; schools; firearm; adolescent; television; prevention. Trata-se de um estudo qualitativo cujo objetivo é analisar os significados que a violência assume em diferentes contextos sociais e as formas como se manifesta no cotidiano escolar, a partir dos depoimentos de jovens e educadores de escolas públicas e privadas de três municípios brasileiros - Iguatu (CE); Juiz de Fora (MG) e Campinas (SP). Investiga-se o sentido atribuído às práticas de violência, como o porte de arma de fogo no ambiente escolar, e a inter-relação entre essas práticas e as instituições que cumprem um papel de socialização dos jovens: escola e família. Dada a centralidade que hoje dispõem os meios de comunicação na sociedade, sobretudo a televisão, busca-se também refletir sobre novas estratégias para o enfrentamento da violência a partir de sua interseção no cotidiano da escola. Conclui-se que o lugar da escola e da família como fontes privilegiadas de mediações possibilita uma atuação ampla no campo da prevenção da violência. Mas é necessário que essas instituições caminhem juntas, buscando principalmente estabelecer uma relação respeitosa com os jovens. No que concerne ao papel da mídia evidenciou-se a necessidade da escola trabalhar como mediadora na reflexão crítica dos conteúdos sobre a violência veiculados pelos meios de comunicação. PALAVRAS-CHAVE: violência; escolas; arma de fogo; adolescente; televisão; prevenção.

1 Pesquisadora colaboradora, Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli; Escola Nacional de Saúde Pública; Fundação Oswaldo Cruz (CLAVES/ENSP/FIOCRUZ) <kathie@claves.fiocruz.br> 2

Coordenadora Científica do CLAVES/ENSP/FIOCRUZ.<cecilia@claves.fiocruz.br>

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NJAINE, K.; MINAYO, M. C. S.

Introdução Este artigo busca analisar os diferentes significados que o fenômeno da violência adquire em contextos sociais diversos e as formas como se manifesta no cotidiano da escola, a partir dos relatos dos alunos da sétima e oitava séries do ensino fundamental e do primeiro e segundo anos do ensino médio, de escolas públicas e privadas de três municípios brasileiros - Iguatu (CE); Juiz de Fora (MG) e Campinas (SP). Também são analisados os depoimentos dos educadores sobre a questão da violência que envolve os adolescentes. A investigação é parte da pesquisa Avaliação do Processo de Implantação e dos Resultados do Programa Cuidar, realizada entre os anos de 2000 e 2002, coordenada pelo Centro LatinoAmericano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, da Escola Nacional de Saúde Pública - Fundação Oswaldo Cruz. O Programa Cuidar, idealizado pela Modus Faciendi, instituição que oferece consultoria na área de educação, é uma iniciativa que procura testar na prática uma modalidade de ação educativa que coincide com a visão ampliada e integral de promoção da saúde. Tem como finalidade principal efetuar uma reflexão filosófica, por meio da identificação, incorporação e vivência de valores, tomando como espaço privilegiado o universo escolar e as relações professor-aluno. Trata-se de um programa piloto, iniciado nesses três municípios, e atualmente está sendo adaptado e adotado por outras redes de ensino do País. Objetivos Com este trabalho, procuramos identificar pistas que possam contribuir com propostas para a prevenção da violência, conforme vem recomendando a Organização Pan-Americana da Saúde (McAlister, 2000). Cabe sublinhar que buscamos o sentido atribuído às práticas de violência, como o porte de arma de fogo no ambiente escolar, citado por educandos e educadores, e a inter-relação entre essas práticas e as instituições que cumprem um papel de socialização dos jovens: escola e família. Embora não se trate de um estudo de recepção, alunos e professores, ao atribuírem à mídia uma parcela significativa de responsabilidade no incremento da violência, podem oferecer possibilidades de compreensão de como a violência na mídia é recebida e interpretada por esses atores. Dada a centralidade que hoje dispõem os meios de comunicação na sociedade, buscamos também refletir sobre novas estratégias para o enfrentamento da violência a partir de sua interseção no cotidiano da escola. Abordagem teórico-metodológica Trata-se de uma abordagem qualitativa, optando-se pelo método hermenêuticodialético, por tentar dar conta de uma interpretação aproximada da realidade (Minayo, 1992). Procuramos interpretar a fala no contexto onde é produzida e unir na análise o nosso olhar a partir da atuação em campo, da reflexão sobre a dimensão simbólica das ações dos sujeitos e da complexidade das relações sociais. Recorremos também ao campo dos estudos culturais latino-americano (MartínBarbero, 2001; Orozco, 1993), para buscar compreender os significados da violência e a interação da violência na mídia no cotidiano dos adolescentes. A teoria das mediações culturais procura explicar as relações entre as práticas de comunicação e as práticas cotidianas que se dão no espaço da cultura e que atravessam as instituições mediadoras tradicionais como escola, família e comunidade, introduzindo novos sentidos do social (Martín-Barbero, 2001).

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Orozco (1993) acrescenta que nenhuma prática isolada ou um determinado significado se constitui em uma mediação propriamente dita e destaca outras fontes de mediação tais como: a própria cultura, a política, a economia, a classe social, o sexo, a idade, a etnia e os meios tecnológicos. Para fins deste trabalho foram privilegiados os dados qualitativos, oriundos de grupos focais realizados com alunos e professores que fizeram parte da avaliação na primeira e segunda etapas. Foi analisada a questão que investiga a violência na escola e os fatores e comportamentos de risco à saúde dos adolescentes. A participação dos alunos e professores nos grupos focais ocorreu mediante a aceitação espontânea, firmada na assinatura de um termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme preconizado na Resolução 196/ 96 do Conselho Nacional de Saúde. Os grupos com os alunos foram organizados a partir de alguns critérios: aceitação para participar do grupo; pertencer às séries delimitadas; equilíbrio entre sexos masculino e feminino; garantia de representação da diversidade etária e étnica das séries. A inclusão dos professores levou em consideração sua adesão espontânea, a disponibilidade de horários e a diversidade das matérias lecionadas nessas séries escolares. No primeiro momento da avaliação, realizado em 2000, foram realizados 36 grupos focais com alunos da sétima série do ensino fundamental e do primeiro ano do ensino médio, com a participação de 297 alunos de escolas públicas e privadas (58,1% do sexo feminino e 41,9% do sexo masculino); e de setenta professores do ensino fundamental e médio das duas redes de ensino, em nove escolas das cidades de Iguatu (CE), Juiz de Fora (MG) e Campinas (SP), alvos do Programa Cuidar. Outras nove escolas serviram como grupo-controle, seguindo o modelo de investigação quase-experimental escolhido na avaliação, onde se identifica um grupo experimental, no qual se faz a intervenção e outro controle, isento da intervenção (Souza & Assis, 2000). No total, seis escolas em cada município foram avaliadas (três com e três sem o Programa). Os dados da última etapa referem-se ao ano de 2000, oriundos de 24 grupos focais com os alunos da oitava série do ensino fundamental e do segundo ano do ensino médio, totalizando 204 jovens (55% do sexo feminino e 45% do sexo masculino) e com 65 professores dos três municípios (Souza & Assis, 2002). Resultados e discussão Formas de violência referidas no cotidiano escolar No primeiro momento da pesquisa, em 2000, constatamos que a violência sofrida e praticada nas escolas dos três municípios se apresentava sob diversas formas. Aspectos como: estrato social; natureza da instituição (pública ou privada); cultural e de gênero mediavam esse fenômeno. Os dados quantitativos revelaram que, para todas as escolas, a humilhação foi a forma de agressão mais sofrida pelos alunos, seguida dos furtos, ameaças e destruição de seus objetos. Em relação ao comportamento violento, muitos dos alunos que se queixaram de ser humilhados na família, na escola e na comunidade, também disseram agir da mesma forma com seus semelhantes, reproduzindo o comportamento censurado. A relevância dessa referência foi entre os jovens do ensino privado, que correspondem à classe média. Do ponto de vista das suas características, as escolas públicas enfatizaram as experiências de agressões físicas e depredações; nas particulares, as queixas

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maiores foram de roubos e humilhações. Nas escolas situadas em áreas de intensos conflitos entre traficantes e a polícia, a existência de armas de fogo, foi mais citada tanto pelos adolescentes quanto pelos educadores. Essas escolas também eram as mais depredadas e pichadas, evidenciando-se a inter-relação do ambiente com a instituição escolar. Diferenças também foram observadas nas respostas por cidade. Campinas foi a cidade em que o maior número de experiências violentas foram mencionadas, e o porte de arma de fogo foi relatado com maior freqüência pelos estudantes, dado que se comprovou também pela fala dos professores. Em contrapartida, os docentes de Iguatu referiram menos transgressões graves entre os estudantes. A oposição entre professores da rede pública e privada ficou bem demarcada quando os primeiros afirmaram com maior freqüência a ocorrência de atos infracionais praticados pelos seus alunos e os últimos disseram o contrário. Segundo investigação realizada por Cardia (1997) e confirmada no nosso trabalho, na visão dos professores, os seus alunos apresentam um comportamento agressivo, intolerante, apático e de baixa auto-estima. Alguns fatores são apontados para esse comportamento: família composta por muitos filhos, nas quais os pais dedicam pouco tempo à sua educação e como resultado, esses jovens apresentariam dificuldades no relacionamento com o outro; e uma presença cada vez menor do adulto na vida da criança, comprometendo sua noção de civilidade e companheirismo. Ainda, os pais e responsáveis estariam repassando a sua função de preparar esses jovens para a vida aos professores. Pesquisa realizada com professores do ensino público no Estado do Rio de Janeiro (Lucinda et al., 1999) também vem ao encontro do que constatamos na nossa investigação, de que a violência na escola se apresenta através de brigas, agressões verbais ou mesmo ameaças, assim como quando um professor não dá atenção ao aluno ou o agride verbalmente. Um grande número de reprovações escolares pode sugerir esse desprezo do professor com o aluno. A depredação das instalações físicas e materiais da escola; o roubo de material escolar e o descaso do governo com a educação figuram como formas de violências referidas no cotidiano escolar. Grosso modo, os professores revelaram despreparo e ausência do apoio familiar para lidar com essa realidade violenta. Na abordagem qualitativa investigamos a questão da violência na escola, nos grupos focais com os alunos, apresentando uma situação ficcional sobre um jovem considerado pelos demais como uma pessoal legal, que leva uma arma de fogo para a escola e, por acidente, essa arma dispara e acaba por matar um colega. Nos grupos focais com os professores perguntamos sobre as situações de risco a que os seus alunos estavam expostos. Nos depoimentos dos alunos e professores de todas as escolas públicas e privadas envolvidas na primeira etapa da pesquisa, verificamos que as relações entre os adolescentes são por vezes tensas e a necessidade de afirmação diante do grupo pode manifestar-se de forma agressiva, com ameaças, brincadeiras físicas que podem levar a agressões mais graves. Muitos aspectos negativos nas relações entre os educandos e desses com os professores ficaram evidentes. Não se consegue demarcar os limites de manifestação para essas agressões que podem envolver meninos, meninas, professores, pais e mesmo galeras, com todas as possíveis combinações entre esses atores.

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A presença de armas de fogo e armas brancas nas escolas, identificada na nossa pesquisa, tornou-se um fato preocupante, dada a baixa idade dos alunos e a contribuição desses meios para o cenário da violência social. Várias pesquisas no Brasil vêm mostrando que as mortes por violência, provocadas por armas de fogo, têm incidido de forma muito grave entre adolescentes e adultos jovens, atingindo sobremaneira o sexo masculino. Estudo recente, em nível nacional, verificou que entre todos os grupos etários, os adolescentes, entre 15 a 19 anos, apresentam maior crescimento de taxas de homicídios (incremento de 47,8%), do triênio 1980/82 para o triênio 1998/2000. O uso de arma de fogo foi predominante em todas as grandes regiões analisadas. No país, no ano de 2000, o uso de arma de fogo foi responsável por 68% dos homicídios (Souza et al., 2002). O acesso e a disponibilidade de armas na população são citados por vários autores e confirmado por alguns alunos nos grupos focais da presente pesquisa, revelando uma intricada rede de violência invadindo o cotidiano dos jovens, inclusive no espaço escolar. Um dos achados de Castro (1998), em um estudo sobre a vida e morte nas representações de violência de crianças e adolescentes, foi o fato de a arma ser a categoria mais expressiva entre os estudantes de dez a 14 anos de uma escola particular e uma pública do Rio de Janeiro, demonstrando a introjeção na cultura, dessa tecnologia de morte. Nos resultados da primeira etapa da pesquisa observamos que, apesar da condenação do porte de armas, há no imaginário de certos jovens sua exaltação como símbolo de poder e de desafio de determinadas normas do convívio social. Evidenciou-se, também, nos depoimentos, a visão de que um jovem que age assim, o faz por exibicionismo, para “se mostrar” e porque “vão me achar o máximo”. É importante notar que esse tipo de comportamento é muito atual, evidenciando, ao mesmo tempo, que a violência tornou-se uma forma de “comunicação urbana”, e o fato de que esses instrumentos encontram-se disponíveis à população. Alunos e alunas dos três municípios comentaram a facilidade para se conseguir uma arma, às vezes acessível na própria casa, ao alcance de crianças e adolescentes, ou em outros lugares: Está cada vez mais fácil você conseguir uma arma. Só tem que ter dinheiro. Isso influi na violência (aluno/1º ano/pública/JF). Basta ir lá na favela e comprar uma arma (aluno/1º ano/particular/CA).

A naturalização do uso de arma de fogo pela sociedade é demonstrada por alguns adolescentes, quando comentam a pertinência do porte da mesma em determinados espaços como o da escola, e a tolerância do uso em outros espaços: “...usar o objeto certo no lugar exato” (aluna/1º ano/pública/IG); “...porque ele não deixou a trava na arma? Pelo menos enquanto estivesse na escola” (aluno/7ª série/pública/JF). Estudantes de Juiz de Fora referiram-se ao fato de que é difícil pensar no ato de portar arma sem a conseqüente intencionalidade de ferir e matar: “... se ele levou a arma foi com a intenção de intimidar, de matar ou de machucar alguém” (aluno/1º ano/pública/JF). Algumas questões podem ser levantadas a partir desse depoimento. A primeira é de que a arma potencializa a violência. Estudos feitos nos Estados Unidos evidenciam que uma pessoa portadora de

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uma arma tem 43 vezes mais chance de ferir ou matar alguém (familiares, vizinhos etc.) do que quem não a possui (Mercy et al., 1993). Em segundo lugar está a discussão sobre a inimputabilidade dos menores de 18 anos. Na consciência de quem proferiu o depoimento, o fato de andar com arma coloca, para quem o faz, sua intencionalidade de usá-la. Mas os estudantes também lembraram que o papel dos pais nas questões de segurança não pode ser esquecido, nem quanto à permissividade nem quanto ao uso civil da arma de fogo. Muitos alunos, ao ensejo da dramatização, comentaram sobre a existência, em suas escolas, de casos reais de jovens portando armas de fogo e armas brancas como punhal, faca e estilete. Os depoimentos deram conta de que nesses espaços públicos: há alunos que portam armas de fogo; alguns chegam a atirar ou usar armas brancas em situações de conflito; há escolas, inclusive, imitando a solução norte-americana de colocar porta detectora de metais na entrada da escola. Um jovem de uma escola pública de Juiz de Fora relatou ter presenciado a discussão de um colega com a professora porque ela não tinha dado permissão a ele para sair da sala para ir ao banheiro. Mesmo sem a permissão, o aluno saiu e quando voltou foi impedido de entrar e “aí ele puxou um 38, botou na cara da professora”, ameaçando-a de matá-la. Após esse incidente contou que a escola colocou um porta giratória. A discussão sobre a violência foi uma oportunidade para abordar o papel da orientação para liberdade que a escola deveria exercer: “...eu acho errado colocar porta giratória, porque escola não é prisão”; “...no lugar da porta eletrônica tinha que ter o papel da educação” (alunos/1º ano/pública). Alunos e professores das escolas públicas dos três municípios referiram, com maior freqüência, conviver com todos os tipos de conflitos graves não resolvidos, sobretudo quando estão localizadas em bairros onde os eventos violentos são mais freqüentes. Nesse sentido, estudos vêm mostrando que as raízes da violência na escola encontram-se na violência no bairro, na família e em condições estruturais como a pobreza e privação (Cardia, 1997; Lucinda et al., 1999; Guimarães, 1996). Para Cardia (1997), a violência vivida e testemunhada fora da escola tem impacto direto e indireto sobre a vida escolar: Afeta o desempenho dos estudantes, as relações entre os alunos e dos alunos com os professores e contribui para ampliar a violência social. Essa mesma autora aponta a escola tanto como parte do problema quanto como parte da solução. Algumas escolas públicas convivem mais seriamente com esses conflitos, especialmente aquelas que se encontram próximas aos locais de tráfico de drogas, e que experimentam dia a dia o medo e a ameaça na comunidade e na escola: “Os cara daqui apagam”; “Vai dedurar? Quem dedura morre cedo” (alunos/1º ano/pública/ CA). No que diz respeito à violência praticada pelos jovens, embora os atos mais violentos nos colégios sejam peculiarmente cometidos por meninos, suas expressões existem também entre meninas, e se manifestam, sobretudo, nas disputas por namorados: “... tem que trazer armas e objetos para nós se defender”; “trazer compasso bem apontado, bem riscado no chão para furar as meninas” (alunas/1º ano/pública/CA). Alunas da 7ª série dessa mesma escola pública de Campinas também relataram casos de violência entre elas, “porque se não

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brigar vira vacilona”, repetindo o comportamento das meninas do 1º ano do ensino médio e evidenciando uma inter-relação da violência no bairro com a escola: “Se eu vejo que as meninas estão atrás de mim, aí vou chamo os bandidos, aí sai aquele tiroteio”. Em Juiz de Fora as alunas também revelaram, de forma menos agressiva, que a violência entre as meninas tem como seu principal motivo as brigas por namorados, a inveja que sentem “quando chega uma menininha novinha no colégio” (aluna/1º ano/pública/JF) e conquista um rapaz que é cobiçado por outras. Ainda que em uma proporção muito menor, a linguagem da violência entre as meninas como forma de comunicação, surge de modo tão cruel quanto no universo masculino. Em pesquisa com meninas em cumprimento de medidas sócio-educativas, Assis & Constantino (2001) observaram essa aculturação que vêm sofrendo as jovens, a reboque do aumento da violência masculina. Em Juiz de Fora, as brincadeiras do tipo corredor polonês, onde uns dão socos e chutes naqueles que passam pelo corredor, e o uso de facas nas brigas foram citados pelos alunos como formas de agressões. No entanto, o uso de armas brancas foi citado com maior freqüência pelos estudantes de Iguatu. As causas da violência na escola: a ótica dos atores Ao serem solicitados a dar sua opinião sobre as causas da violência nas escolas, fenômeno que vem aumentando nos últimos anos, os alunos apontaram os principais motivos, que procuramos analisar, agrupando-os da seguinte maneira: a agressividade dos próprios alunos que afeta a luta pela afirmação de sua identidade, e que não é reconhecida pelos educadores; o descaso da escola e a violência, sobretudo verbal, dos professores e funcionários contra os jovens; a influência da mídia; e a negligência da família. A agressividade entre os pares é identificada pelos jovens nas atitudes agressivas explícitas ou veladas, e que permeiam as relações interpessoais na escola. Essas atitudes foram bastante criticadas pelos alunos, pois consideraram esse espaço um aliado para a sua afirmação. E também porque qualquer referência negativa à capacidade, ao desempenho e ao comportamento dos jovens entre si, ou deles com os professores, lhes soa como uma comparação desabonadora em relação aos outros. Toca na sua identidade em construção, quando estão em busca de apoio, de elogios, de estímulos para crescer: “O cara tá formando a personalidade dele ainda, ele fica meio perdido. Ele não sabe como se enquadrar, não sabe o que fazer”(aluno/7ª série/particular /IG). A indiferença dos professores frente à luta dos adolescentes e jovens pela afirmação de sua identidade também pode ser exemplificada na fala de uma aluna que se recusou a fazer o mesmo trabalho que a outra turma fez: “... eu não sou obrigada a fazer o que a outra sala fez (...) eu odeio me comparar com alguém” (aluna/7ª série/pública/CA). Os jovens apontaram as dificuldades que têm para lidar com o descaso da escola e a violência verbal por parte dos professores e funcionários da escola. As atitudes distantes e autoritárias dos professores obstrui o diálogo com os alunos e impede a verdadeira orientação. Alguns exemplos citados pelos alunos evidenciaram o comportamento autoritário e agressivo por parte dos agentes responsáveis por sua educação e revelaram a significativa atuação da escola

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como espaço de mediação da violência, e o poder de transmitir os sentimentos mais positivos e os mais negativos com relação à vida aos adolescentes. Falar palavrões em sala de aula, chamar o aluno de “burro”, “ignorante” e tratar com desprezo são algumas das agressões citadas. Os dois depoimentos abaixo revelam o quanto a relação professor/aluno pode atingir graus de agressividade, de desrespeito mútuo e de desprezo para com a tarefa de educar: ...a professora começou a ofender o cara [que escreveu errado no quadro], falar da mãe dele e aí o vulgo ‘psicopata’, que é o apelido dele, fechou a mão e falou: ‘vou te meter um bico’. E a professora disse: ‘vem então’. Aí ele começou a chorar... (aluno/1º ano/pública/JF) ...eu comecei a estudar no ano passado e parei em abril. Só que ele [o professor] também não me perguntou porque eu parei (...) Quando eu voltei ele falou que eu estou vindo pra desfilar, pra passear. Se eu estou com uma dúvida e pergunto, ele fala: ‘isso é o cabelo, pinta o cabelo que você pára de entender’. Eu estou boiando nessa matéria. (aluna/1º ano/ pública/JF)

A agressividade com que muitos alunos também se dirigem aos professores, leva a que muitos educadores desistam de sua profissão, por temer violências por parte dos alunos. “A professora mandou um aluno para fora, depois ele voltou e falou assim para a professora: vê se anda na sombra, viu?” (aluno/1º ano/ pública/CA). Em Iguatu foi muito comentada a agressão de uma mãe e de seu filho a uma professora que é muito estimada por todos os jovens, porque esta chamou a atenção desse aluno. A maioria considerou a atitude injusta e despropositada. Em Campinas, uma pesquisa conduzida por Guimarães (1996) em escolas públicas apontou que a violência se manifesta em distintas modalidades no cotidiano escolar, tanto do ponto de vista dos poderes instituídos quanto da potência (discórdia entre professores e alunos). Alguns alunos mencionaram a falta de atividades extracurriculares que torna a vida escolar desinteressante, sugerindo que isso pode contribuir para atitudes agressivas: “Às vezes a escola parece uma tortura”; “Porque você chega na escola dá aquele desânimo, é só matéria. Não tem nada diferente” (alunos/1º ano/pública/CA). A mídia, em particular a televisão, foi apontada pelos adolescentes como uma das causas da violência nos colégios, sobretudo por noticiar os acontecimentos de jovens atirando em seus colegas nas escolas norte-americanas, e usar a violência para buscar pontos no IPOBE. A violência mediatizada parece atingir adolescentes e jovens de uma forma peculiar. Ao veicular excessivamente cenas de agressão praticadas por esse grupo etário, de algum modo pode constituir-se em fator de risco para o comportamento agressivo: “a mídia te leva a enxergar um mundo que você vai, você entra nele sem saber. Quando você vê, você já fez um monte de coisa!” (aluna/7ª série/particular/JF). Para a maioria dos alunos, seja pela via da glamourização do criminoso, pela glorificação das armas de fogo, ou pela violência interpessoal que caracteriza alguns gêneros televisivos, principalmente quando não há o adequado debate sobre a violência, a televisão “facilita” e “influencia” para a adoção de atitudes agressivas. Vários depoimentos deram conta de que a televisão serve como fonte de informação, mas também incita à novas interpretações da violência, pela reapropriação que o jovem faz dessa

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REUTERSWÄRD, A não violência. Desenhos para a escultura do edifício das Nações Unidas, Nova York.

informação. Esses usos dos meios de comunicação são compreendidos por Martín-Barbero (2001) como mediações entre a televisão e espectador, produzindo no imaginário da juventude novos sentidos sobre a violência. No livro Fala Galera, Minayo et al. (1999) constataram uma visão crítica dos jovens, sobretudo em relação à televisão. Ultimamente estão se aprofundando estudos sobre o impacto das mídias sobre o comportamento, frente à tese tradicionalmente defendida de que os meios de comunicação não criam a realidade, e sim, a expõem para a sociedade. Ora, no caso da violência social, existem indícios fortes de que a sua exposição intensa promove uma certa confusão de perspectiva sobre o real e o imaginário e, por conseqüência, uma banalização das relações sociais fundadas nas agressões e na eliminação do outro. No mínimo elas não incentivam o diálogo e a solução de conflitos pela argumentação. Alunos das escolas particulares dos três municípios são mais críticos com relação à programação televisiva, embora em pesquisa nacional recente tenha se constatado que a primeira opção de lazer dos adolescentes de todos os estratos sociais, nas faixas etárias de 12 a 14 anos e 15 a 17 anos, é assistir televisão. Contudo, determinadas opções de lazer como ir ao cinema, ler, ir a lanchonetes e divertir-se no computador não estão acessíveis a todos os estratos ((Unicef/Fator OM, 2002). Adolescentes mais velhos de uma escola particular de Campinas criticaram os programas que mostram violência, embora alguns tenham declarado que é “típico” dessa idade ver violência. Refletiram sobre o poder que esse meio possa exercer sobre as mentes dos mais novos, demonstrando que a idade também é um fator de mediação nessa relação, porque esse grupo seria mais suscetível, conforme vem apontando alguns estudos psicológicos (Strasburger, 1999). Os desenhos animados, os filmes e os jogos de computador também foram lembrados como sendo violentos. Para grande parte dos professores entrevistados a televisão constitui um problema, seja porque esse meio influencia o jovem a adotar comportamentos consumistas, seja pela crescente erotização da programação ou por veicular a violência de forma banalizada. Contudo, muitos relataram que o mais grave é a substituição do convívio familiar pela programação da televisão. Pais que possuem pouco tempo para estar com os filhos delegam ao aparelho televisivo a conversa que não travam. Segundo os professores que entrevistamos, a sociedade e os meios de comunicação de massa também divulgam modelos de sucesso que seriam alcançados por meio de outros mecanismos sociais (que não a escolarização) e aqueles eticamente condenáveis. Esses “maus modelos” teriam um poder nefasto para a consolidação do caráter desses jovens, constituindo-se, portanto, num sério risco à sua formação. Seriam eles, tanto os que vendem uma idéia de sucesso econômico e fama “fáceis”, que não passam pelos canais da escolaridade, do conhecimento, do “valor pelo trabalho e pelo estudo”. Os artistas, manequins, pagodeiros, jogadores de futebol seriam os protótipos desses modelos, na visão dos educadores. A ascensão social dar-seia por “sorte” ou por “talentos inatos” em detrimento do trabalho e do esforço escolar. O outro tipo de “mau exemplo” seria encarnado nas personalidades e políticos corruptos que ganhariam fortunas por meio de expedientes desonestos.

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Isso é um risco para a formação dos jovens, porque se você copia o modelo ruim, você vai perpetuar o modelo ruim, querendo levar vantagem. Para que eu vou ser honesto, pra que eu vou ter retidão de caráter, para que eu vou ter postura em determinados valores? Eu acho que é risco, é uma convulsão imensa, já em prática na sociedade. (professor/particular/JF)

Indagados sobre o papel da mídia nessas consideradas distorções sociais, os educadores disseram crer que a mídia espetaculariza essas distorções, pois mostra também os seqüestradores e outros delinqüentes que se dão bem, “..você está vendo aí um grupo de seqüestradores, pessoas de excelente aparência e bem vestidas. Então muito adolescente se identifica com uma pessoa dessas” (professor/pública/JF). Alguns educadores se referiram à televisão como um meio quase onipotente e que tem um efeito devastador na formação dos jovens. A televisão é a sociedade corrompendo eles o tempo todo. Eu até acho que a gente faz muito nas quatro horas que têm de aula. As outras vinte eles estão sendo massacrados por televisão, crime, drogas, é muito pouco para esse risco social que eles têm, a influência que eles têm. (professor/pública/JF)

Como se pode perceber, frente aos outros veículos e às possibilidades de informação e comunicação, os mestres julgam que a escola não só tem um papel central, como “faz muito” nas quatro horas de aula. Mas ela tem grandes concorrentes que acabam por atrair mais os jovens. Por outro lado, a “aprovação” ou conivência social diante desses modelos veiculados pelos meios de comunicação de massa, acontece ao mesmo tempo em que uma profunda crise de valores afeta a sociedade. Os professores sentem que seu próprio prestígio diminuiu diante dos jovens. Já não são um modelo a ser copiado, muitas vezes são apontados pelos próprios alunos como um profissional fracassado, “que não deu certo”, que não soube ganhar dinheiro e prestígio. Como conseqüência indireta, a desvalorização da educação e da qualidade do ensino seria banalizada pelos jovens. Esses dados também foram constatados na pesquisa de Lucinda et al. (1999). As questões que a discussão sobre a mídia ensejou são nevrálgicas para uma proposta de educação para valores. Como resgatar a admiração e o respeito pela figura e pelo papel de educador e dos profissionais que mesmo sem ganhar muito dinheiro, cumprem uma missão importantíssima na sociedade? Como tornar a própria mídia uma aliada nesse resgate? Seria esse somente um papel das televisões educativas? As respostas dadas pelos educadores a essas perguntas mostraram desânimo, sobretudo com o ambiente familiar que, segundo eles, constitui empecilho ao desenvolvimento intelectual do aluno. Se um jovem chega em casa depois da escola, a mãe vai para frente da televisão (...) ninguém fala, porque o pai, que é o chefe da família, está dizendo que o mais importante para ele é o jornal. Como é que a gente vai querer, que esse aluno não se espelhe com a televisão?...São esses os riscos. (professor/particular/IG)

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Parte da responsabilidade pela atitude de um jovem que leva uma arma de fogo na escola foi relacionada pelos alunos à negligência da família, dirigida particularmente à figura paterna, que deveria ser “punida” por sua cumplicidade e fraqueza, demonstrando que o exercício desta autoridade tem forte influência para esse grupo etário. A falta de diálogo na família foi ressaltada pelos alunos como um fator de risco que leva os jovens a praticarem atos violentos. A família também foi profundamente criticada pela maioria dos professores, conforme já foi apontado anteriormente. A principal crítica referese ao fato de que essa instituição delegou quase que inteiramente à escola seu papel de formar esse jovem. Acusaram sua pouca participação na educação, no diálogo franco, na presença afetiva, e na colocação de limites junto aos filhos. A família foi incriminada, muitas vezes, pelos professores, como uma instituição violenta, sobretudo pela atitude ausente dos pais no cotidiano dos adolescentes, na sua vida escolar e nas etapas de seu crescimento e desenvolvimento. Alunos de escolas públicas de Iguatu correlacionaram a violência intrafamiliar à violência cometida pelos jovens na sociedade, como revela esse depoimento: “A violência até dentro de casa influencia os jovens” (aluno/1ª série/pública /IG). Foi dada ênfase à influência do machismo, que sobrepõe as relações de gênero, e ao alcoolismo citados em outros momentos da pesquisa. Aqui constatamos o contexto cultural como uma instância mediadora importante, que legitima junto à família uma noção de violência, perpassando todos os espaços sociais. Nessa direção, reconhecemos nos depoimentos dos jovens de Iguatu um complexo significado para a violência que passa pela necessidade de expandir o diálogo com a família sobre a raízes desse fenômeno, “... se os pais falassem mais da violência, não aconteceria violência nos colégios (...) falar da violência na vida” (aluno/7ª série/pública /IG). Cabe aqui também interrogar e questionar a quase total responsabilização da família por esses problemas que são muito mais amplos. Se a família é por tradição uma fonte de mediação, se a televisão intervém concretamente no processo de educação, que possibilidades têm os educadores de atuar a favor do desenvolvimento dos adolescentes nesse campo? Os próprios adolescentes indicaram que essa responsabilidade pode e deve ser partilhada pela escola, família e mídia, inclusive, desde que cada uma dessas instituições respeite e contribua com o seu processo de crescimento. Reportando à situação hipotética apresentada para o debate sobre a violência na escola, em quase todos os grupos focais foi discutido o tipo de penalidade que o jovem deveria receber, no caso de levar uma arma para a escola e essa disparar contra um colega, levando-o à morte. Alguns foram favoráveis a punições mais leves e outros se mostraram propensos ao rebaixamento da idade penal para que os jovens. Para muitos meninos e meninas volta a questão da intencionalidade de quem porta uma arma: ferir ou matar. As manifestações podem ser assim resumidas: primeiramente uma tendência conservadora com relação aos direitos da criança e do adolescente e; em segundo lugar, a necessidade de uma discussão entre os próprios jovens sobre seus direitos, tendo como parâmetro o Estatuto da Criança e do Adolescente. Os professores também mostraram carências de informação, conhecimento e debate sobre essa Lei.

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A discussão sobre a segurança pública ensejou a manifestação da descrença dos jovens na justiça e na polícia, até de forma contraditória com a idéia defendida de que os jovens deveriam ser punidos pela lei, independente da idade. Denunciaram, sobretudo, o que sabem ou que já vivenciaram de práticas de suborno e o que consideram frouxidão ou corrupção dos agentes da lei: policiais, advogados e juízes. Cenários da intervenção do programa Na segunda etapa da avaliação, em 2001, verificamos alguns avanços nos debates sobre a questão da violência como resultados positivos da intervenção do programa. Em maior ou menor grau, observamos sensíveis mudanças na perspectiva do jovem e da escola como mediadora principal da proposta de intervenção. De maneira geral, alunos e professores das escolas que foram alvos do programa Cuidar, pareceram convergir para um olhar mais ampliado sobre a violência que ocorre nessas instituições, se comparado ao primeiro momento da avaliação. Ou seja, questionaram-se entre si e mutuamente no que se referia à relação de respeito, de ajuda e de possibilidades de imprimir um novo sentido para o convívio nesse âmbito. Algumas vezes vincularam esse questionamento à intervenção do Programa, e outras a uma reflexão mais crítica sobre a nossa sociedade. Nessa última etapa da avaliação, poucos alunos relacionaram o fato de um jovem portar uma arma de fogo na escola, questão também proposta para a discussão, aos eventos ocorridos nos EUA nos anos anteriores e que ganharam destaque na mídia internacional. Esse fato sugere que no processo de interação televisão e público, a mediação tecnológica é relevante, pois a televisão no seu modo de produzir cria agendas que colocam determinados temas em pauta para o debate público (Wolf, 2001). Contudo, adolescentes e jovens da oitava série do ensino fundamental e segundo ano do ensino médio, de uma escola particular de Iguatu, sem o Programa, criticaram profundamente a programação violenta da televisão aberta, e a influência negativa que esses conteúdos exercem sobre o comportamento daquele grupo etário. Os alunos dessa escola disseram gostar da programação da televisão educativa, mostrando o quanto os jovens apreciam temas que não só trazem a violência. Esse achado sugere que, se houve modificações nas discussões e essas não correspondem a uma intervenção específica e focalizada, existem mudanças político-culturais mais abrangentes no âmbito das instituições e na sociedade como um todo, e que irrompem de forma particular no universo dos adolescentes e jovens. Nossa hipótese é de que, na medida em que o tema da violência passou a ser “pauta obrigatória” da mídia, dos políticos e do mundo da vida no país hoje, foi também apropriado pelos estudantes com um pouco mais de profundidade. Sobre essa socialização do tema, alguns fatos podem ser destacados. No ano de 2002, duas campanhas contra armas de fogo foram veiculadas na televisão, uma da TV Globo, que falava sobre o risco da presença de armas de fogo na escola, e outra do Movimento Viva Rio que apregoava o perigo das armas de fogo em casa (só que esses informes educativos aconteceram depois de terminado o trabalho de campo da avaliação). Também ainda estão em discussão diversos projetos no Congresso Nacional que visam a limitar ou eliminar a venda de armas de fogo, promovendo um debate público sobre o assunto. Vários documentários e debates na televisão têm tido como mote, a violência e a criminalidade. Por outro lado, há o influxo dos

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próprios dados da realidade, o que pode ou não propiciar o aprofundamento da compreensão do fenômeno. Tal é o caso do crescimento da violência social em Campinas, que acabou tornando a ficção criada para animar a pergunta, uma realidade muito próxima da vida dos alunos daquele município. A reflexão evita a banalização da violência no próprio ambiente escolar, fato identificado por Ristum (2001) como efeito da constância com que ocorre no cotidiano dos jovens. Em síntese, assinalamos em que sentido a discussão sobre a violência avançou, da primeira para esta última fase nas escolas com e sem a intervenção do Programa. Na produção do discurso, a violência é vista de forma muito mais ampliada que a mera visão do crime. Mas, seguindo a imagem hegemônica hoje ampliada por todo o território nacional, em primeiro lugar, o debate privilegiou a questão da arma de fogo. Mas a questão foi acompanhada pela abordagem das condições macrossociais, conjunturais e interacionais de emergência da violência, de forma mais complexa numa escola sem o programa de Juiz de Fora. Foram analisadas como violência, as agressões domésticas, a ausência de valorização e a falta de diálogo com os pais, propiciando a revolta e a delinqüência juvenil em todos os grupos pesquisados e nos três municípios. Foi lembrado, por vários grupos, que as perturbações e os problemas mentais e individuais também são causadores de comportamentos violentos entre os jovens. Nos vários grupos foi igualmente discutida a presença de impunidade e da corrupção como fenômeno generalizado na sociedade e no Estado, como fatores propulsores do clima de violência em que estamos vivendo, mas muito importante. Os jovens assinalaram também sua responsabilidade pessoal quando cometem atos de violência por exibicionismo, para serem legitimados em seu grupo ou quando ingressam em gangues, ou cometem crimes, o que remete à crença na liberdade individual, mesmo quando as condições sociais são desfavoráveis. Alguns aspectos das discussões, no entanto, não seguiram no mesmo sentido, como a questão da punição para um adolescente ou jovem que usa uma arma de fogo. Foram raros os depoimentos como o de uma aluna que acha que na prisão ou na FEBEM o jovem “só piora”. Esses consideraram que só o diálogo com o jovem é capaz de mudá-lo, não a prisão. Esta visão mais crítica a respeito dos malefícios do encarceramento foi mais presente nas falas dos estudantes de Juiz de Fora e de Campinas, apesar das experiências violentas nas escolas serem mais freqüentes nesta última cidade e menos freqüente na primeira. Desvendando caminhos para a prevenção da violência Recorrendo, ainda, à idéia das mediações, embora esse conceito seja considerado impreciso por alguns autores (Sodré, 2002), constatamos que são múltiplas as combinações de mediações que interferem na relação com os adolescentes e que não se limitam a processos diretamente relacionados à televisão. A violência é interpretada pelos adolescentes como uma forma de comunicação, mediada pela escola, família, pelos pares e pela televisão, constituindo cada um parte da “trama dos discursos e da própria ação política”, como nos revela Martín-Barbero (2001, p.14). Nesse processo novos sentidos sobre esse fenômeno são produzidos e plasmados no contexto social de cada município, bairro, família e escola, até nas microestruturas de salas de

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aula, de grupos etários, na questão de gênero e no discurso das diversas mídias. As sugestões para prevenir a violência nas escolas e melhorar a situação atual dadas pelos alunos demonstraram um leque de possibilidades que dá uma visão do dinamismo desse processo. Alguns advogam também a expulsão dos estudantes que tumultuam a convivência. A perplexidade que segue à idéia de “extirpar a pessoa violenta” do convívio, dá conta de levantar a amplitude do fenômeno, pois os estudantes constataram que o ambiente violento ultrapassa a responsabilidade de um indivíduo: ele é mais complicado. Por isso, sua reflexão aprofunda alguns propósitos mais positivos que podem ser assim resumidos: acolher o jovem e dialogar com ele; melhorar o ambiente da escola; trabalhar os problemas de forma alternativa; melhorar os laços de convivência. Uma outra possibilidade apontada por alguns para acabar com a violência nas escolas seria a repressão sobre armas, drogas e bebidas alcoólicas. Os adolescentes refletiram igualmente sobre o problema da segurança nos colégios e reivindicaram mais policiamento treinado e revista na porta de entrada. Os educadores afirmaram que deveriam discutir com os alunos sobre a exposição deles à violência, buscando juntos formas de prevenção, mas muitos não se julgam preparados para desenvolver esse tipo de atividade. Impotência, medo, angústia e revolta foram sentimentos às vezes comuns entre os educadores que têm que lidar com a questão da violência na escola, no entorno e nas relações conflituosas que permeiam o ambiente escolar. Frente às situações de maus-tratos na família percebidas pelos professores, por exemplo, muitos expressaram o sentimento de impotência “você tem que estar alimentado psicologicamente para encarar” (professora/pública/JF). Notamos em diversos momentos, durante nossa presença nas escolas, o desespero e o empenho de muitos professores para não perder seus alunos para o crime, ou para a violência familiar e ou mesmo para a própria falta de esperança no futuro. A família e a escola têm sido historicamente a base da educação de crianças, adolescentes e jovens e da inserção social desse grupo. A negação do diálogo, as formas de violência física, sexual, moral e psicológica contra esse grupo etário que ocorrem muitas vezes no âmbito intrafamiliar podem refletir na vida escolar sob a forma de comportamentos agressivos ou mesmo apáticos dos alunos, desafiando os educadores para o enfrentamento dessa problemática. Diante da violência, o desafio maior é o reconhecimento da complexidade de suas manifestações, sem reduzi-la a uma única fonte. O lugar da escola, como fonte privilegiada de mediação, assim como o da família possibilita uma atuação ampla no campo da prevenção da violência. Mas é necessário que essas instituições caminhem juntas, buscando principalmente estabelecer uma relação respeitosa com os jovens. Os educadores reconhecidos na pesquisa como seminais para a mudança, mostraram que esses caminhos são possíveis em todos os espaços, disseminando os conteúdos escolares e sobre a vida e construindo um elo de confiança e amizade com os jovens. O desenvolvimento de atividades criativas para que se possa estar abordando a questão da violência, suas conseqüências para a sociedade e para os indivíduos constitui em um outro desafio para muitos educadores. As atitudes de ruptura de preconceitos, medos e silêncios de alguns professores diante do conhecimento de situações graves de violência envolvendo os alunos

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demonstraram o potencial transformador da escola no sentido de ampliar o diálogo sobre essa questão, diminuindo as distâncias entre educador-educando, revertendo alguns comportamentos agressivos, de baixa auto-estima e apatia de alguns alunos. No que concerne à representação sobre o papel da mídia ficaram evidenciadas a importância da televisão no cotidiano dos adolescente e jovens como fonte de informação e produção de sentidos e o conflito dos educadores em relação a esse meio tecnológico. Na percepção da maioria dos alunos e professores a mídia constitui um risco para a violência juvenil. Destacamos a necessidade da escola trabalhar como mediadora na reflexão crítica dos conteúdos sobre a violência veiculados pelos meios de comunicação, a exemplo do que já vem acontecendo em algumas escolas que utilizam notícias de jornais, filmes etc. para a discussão sobre esses meios. Pesquisas e resoluções internacionais sobre educação para a mídia estão sendo desenvolvidas em diversas partes do mundo (Carlsson & Von Feilitzen, 2002). Entretanto, no Brasil, essas metodologias ainda são pouco disseminadas, embora isso não se constitua em empecilho para a criação de metodologias próprias e ações educativas sobre os meios de comunicação e as novas tecnologias de informação. O discernimento crítico sobre os conteúdos violentos mediatizados podem contribuir com propostas de prevenção da violência no âmbito da escola, da família e da sociedade. Referências ASSIS, S. G.; CONSTANTINO, P. Filhas do mundo: infração juvenil feminina no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001. CARLSSON, U.; VON FEILITZEN, C. (Orgs.). A criança e a mídia: imagem, educação, participação. São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco, 2002. CARDIA, N. A violência urbana e a escola. Contemp. Educ., v.2, n.2, p.26-99, 1997. CASTRO, M. R. B. A vida e a morte nas representações sociais de violência de crianças e adolescentes. 1998. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. GUIMARÃES, A. M. A dinâmica da violência escolar: conflito e ambigüidade. Campinas: Autores Associados, 1996. LUCINDA, M. C.; NASCiMENTO, M. G.; CANDAU, V. M. Escola e violência. Rio de Janeiro: DP & A, 1999. MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. McALISTER, A. La violence juvenil en las Américas: estudios innovadores de investigación, diagnóstico y prevención. Washington: Organização Pan-Americana da Saúde, 2000. MERCY, J. A.; ROSENBERG, M. L.; POWEL, K. E.; BROOME, C. V.; ROPER, W. L. Public health policy for preventing violence. Health Affairs, v.12, n.4, p.7-29, 1993. MINAYO, M. C. S.; ASSIS, S. G.; SOUZA, E. R.; NJAINE, K.; DESLANDES, S. F.; SILVA, C. M. F. P.; FRAGA, P. C. P.; GOMES, R.; ABRAMOVAY, M.; WAISELFISZ, J.; MONTEIRO, M. C. N. Fala galera: juventude, violência e cidadania na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; Rio

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NJAINE, K.; MINAYO, M. C. S. Violencia en la escuela: identificando pistas para la prevención, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.119-34, 2003. Se trata de un estudio cualitativo cuyo objetivo es analizar los significados que la violencia asume en diferentes contextos sociales y las formas como esta se manifiesta en el cotidiano escolar, a partir de las declaraciones de jóvenes y educadores de escuelas públicas y privadas de tres municipios brasileños - Iguatu (CE); Juiz de Fora (MG) y Campinas (SP). Se investiga el sentido atribuido a las prácticas de violencia, como el porte de armas de fuego en ambiente escolar, y la interrelación entre esas prácticas y las instituciones que cumplen un papel de socialización de los jóvenes: escuela y familia. Dada la centralidad de la que hoy disponen los medios de comunicación en la sociedad, sobre todo la televisión, se busca también reflexionar sobre nuevas estrategias para el enfrentamiento de la violencia a partir de su intersección en el cotidiano de la escuela. Se concluye que el lugar de la escuela y de la familia, como fuentes privilegiadas de mediaciones, posibilita una actuación amplia en el campo de la prevención de la violencia. No obstante, es necesario que esas instituciones caminen juntas, buscando principalmente establecer una relación de respeto con los jóvenes. En lo que concierne al papel de los medios de comunicación de masas se evidenció la necesidad de que la escuela trabaje como mediadora en la reflexión crítica de los contenidos sobre la violencia difundidos a través de los medios de comunicación. PALABRAS CLAVE: violencia; escuelas; armas de fuego; adolescente; television; prevención. Recebido para publicação em 13/02/03. Aprovado para publicação em 20/06/03.

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ELISETE ALVARENGA, 1999

Saúde e produção de sentidos no cotidiano: práticas de mediação e translingüística bakhtiniana Luiz Augusto Vasconcelos da Silva 1

SILVA, L. A. V. Health and the creation of meaning in daily life: mediation practices and bakhtinian translinguistics, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.135-48, 2003.

This article discusses some concepts and uses of semiotics in the field of Public Health focusing mainly on texts by the Russian writer Mikhail Bakhtin. These reflections encompass specific topics prepared after I had taken part in an ethnographic research project about the practice of epidemiological investigation. This study emphasizes the contribution of semiotics to the analytical construction of the different meanings of health. It presents a synthesis of narrative fragments as examples of the shift in health texts. It highlights Bakhtin’s current influence allowing us to think about how different agents participate as mediators in the construction of meanings of health. Thus, human agents - social subjects - with their different cultural backgrounds are engaged in the production of health-disease-care models, because they share, dispute and negotiate points of view in a continual process of creating meaning in daily life. KEY WORDS: Communication; Semiotics; Public Health; meanings of health; concept formation.

A partir da participação em um projeto de pesquisa etnográfica sobre a prática de produção epidemiológica, busca-se discutir alguns conceitos e usos da Semiótica no campo da Saúde Coletiva, focalizando principalmente os textos do escritor russo Mikhail Bakhtin. Destaca-se a contribuição da Semiótica para a análise de sentidos de saúde e apresenta-se uma síntese de fragmentos de narrativa como exemplos de deslocamento de textos de saúde. Ressalta-se a atualidade de Bakhtin ao nos fazer pensar sobre a participação dos diferentes agentes como mediadores na construção de sentido. Dessa forma, os agentes humanos – sujeitos sociais – em suas diversas trajetórias culturais, encontram-se engajados na produção de sentidos de saúde-enfermidade-cuidado, pois compartilham/disputam/negociam pontos de vista ou tendências, num processo contínuo de produção de sentidos. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação; Semiótica; Saúde Coletiva; sentidos de saúde; formação de conceitos.

Professor, Departamento de Psicologia, Universidade Federal da Bahia (UFBA); Pesquisador Associado, Instituto de Saúde Coletiva/UFBA. <luisvascon@uol.com.br>

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SILVA, L. A. V.

Introdução Este artigo encontra-se vinculado a estudo etnográfico sobre a prática cotidiana de produção de dados e textos epidemiológicos, realizado em 1998, tendo como ponto de partida dois projetos de investigação epidemiológica do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia2 . Essa experiência etnográfica resultou na minha dissertação de mestrado, intitulada produção e comunicação de sentidos-de-saúde em práticas concretas de investigação epidemiológica3 . Longe de ‘fixar’ significados ou buscar esta ou aquela representação do conceito de saúde entre epidemiólogos e seus pares, busquei destacar as ‘ações conectadas’ entre os agentes cotidianos de pesquisa e as ‘práticas discursivas’ na mobilização de sentidos de saúde. Foi possível, assim, desenvolver uma discussão sobre a produção de sentidos no cotidiano, com toda sua diversidade e permanência. Em contrapartida, acredito que as práticas de mobilização científica delimitam uma área específica de produção de signos e significados, uma rede mais ou menos extensa de comunicação na qual os sentidos de saúde adquirem, em etapas posteriores, uma forma peculiar de uso científico. Dessa maneira, produz-se um ‘repertório empírico’ – sob a forma de doença – deixando para trás uma possível ‘experiência’ sobre outros sentidos de saúde. Certamente, as considerações que proponho desenvolver limitam-se a alguns aspectos que compuseram minha dissertação. Preferi, assim, abordar separadamente os textos bakhtinianos, com o objetivo de torná-los menos estranhos ao campo da Saúde Coletiva, viabilizando também outras possibilidades de ‘tradução’ de signos de saúde. No que concerne à produção e comunicação de sentidos de saúde, pretendo salientar uma atividade contínua que inclui o próprio ‘agenciamento humano’ sobre o mundo e a natureza, delimitando e/ou modificando práticas cotidianas de saúde ou modos de vida. Na confusão cotidiana de produção científica - vozes/atividades/textos/ruídos – são incorporados (e gerados) novos modelos e estratégias de produção de conhecimento. De forma similar, as ‘atividades de promoção de saúde’ significam, potencialmente, processos de mediação em que os agentes humanos (na diversidade de mediadores) compartilham/disputam/negociam pontos de vista ou tendências, podendo-se alcançar – mesmo provisoriamente - alguns propósitos ‘comuns’ de ação ou efeitos de sentido. O dialogismo bakhtiniano É difícil definir ou enquadrar os textos do semioticista russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), em uma linha precisa de pesquisa, como bem atestam Clark & Holquist (1998) em sua biografia de referência no Ocidente. Teórico do romance, da literatura, lingüista, filósofo da linguagem, foram muitas as tentativas de cooptá-lo no meio de uma obra tão difusa. Talvez sua melhor definição tenha sido indicada por eles mesmos: “Bakhtin não se via a si mesmo como um teórico da literatura, em primeiro lugar. O termo que julgava mais próximo daquilo que estava tentando fazer era o de antropologia filosófica” (Clark & Holquist, 1998, p.37). Conforme enfatizada em sua biografia, os autores denominam sua filosofia da linguagem de translingüística, na medida em que estava mais preocupado

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A elaboração do projeto que deu origem à etnografia da epidemiologia contou com a participação de diferentes pesquisadores: Carmen Fontes Teixeira, Jairnilson Silva Paim e Naomar de Almeida Filho – este último como coordenador e responsável pela pesquisa.

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Gostaria de agradecer a meu orientador, Prof. Dr. Naomar de Almeida Filho, pela disponibilidade intelectual para discutir o capítulo de minha dissertação referente aos textos do escritor russo Mikhail Bakhtin. Agradeço também às agências financiadoras (CAPES e CNPq) pela concessão de bolsa de pesquisa durante o mestrado.


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4 A partir desse ponto de vista, similarmente à linguagem, também nos constituímos responsivamente: “o nosso si mesmo é um fenômeno de fronteira. Na prática, é menos uma entidade e mais uma estratégia ou conjunto de estratégias, um modo ou um conjunto característico de modos de responder aos outros ao nosso redor. Algo que só aparece nesse ponto de contato com aqueles outros. Ou se é uma entidade, é uma com fronteiras constantemente disputadas e mutáveis” (Shotter, 1996, p.223).

com a comunicação, com as conexões e articulações entre as variedades e outridades, enfim, com os processos de mediação. Respaldados nos escritos de Bakhtin e nas críticas contundentes a uma tradição lingüística quer seja formalista ou subjetivista, diferentes autores passam a enfatizar o caráter comunicativo da linguagem, como um processo relacional, concreto e ativo (Burkitt, 1998; Gergen, 1996, 1997; Shotter & Billig, 1998) ou mesmo retórico-responsivo (Shotter, 1993, 1996)4. Para compreender a produção de textos e argumentos científicos, ou ainda a construção de sentidos no cotidiano, enfatiza-se uma dimensão pragmática da linguagem, situada histórica e culturalmente: “as palavras começam a ter seus significados apenas dentro de contextos de relações contínuas” (Gergen, 1997, p.49). Entre os fragmentos difusos de Bakhtin, que se misturam às vozes de seus interlocutores, por exemplo, com a publicação do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, na década de 1920, sob a autoria de Volochínov, aparece de forma contundente esta preocupação com a dinâmica viva do signo, com as suas ‘formas de vida’ – situação social e contextos possíveis de uso (Bakhtin, 1999a) - extrapolando as formas fechadas, isoladas e monológicas das estruturas de análise lingüísticas. É o que sintetiza Bakhtin (1997, p.350) quando afirma: A palavra (e em geral, o signo) é interindividual. Tudo o que é dito, expresso, situa-se fora da “alma”, fora do locutor, não lhe pertence com exclusividade. Não se pode deixar a palavra para o locutor apenas. O autor (o locutor) tem seus direitos imprescritíveis sobre a palavra, mas também o ouvinte tem seus direitos, e todos aqueles cujas vozes soam na palavra têm seus direitos (não existe palavra que não seja de alguém). A palavra é um drama com três personagens (não é um dueto, mas um trio).

A constituição social do signo fundamenta, pois, a relação dialógica no processo contínuo de produção de sentido. Essa dialogia implica a compreensão do próprio enunciado, visto que a palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder à resposta, e assim ad infinitum. Ela entra num diálogo em que o sentido não tem fim (entretanto ele pode ser fisicamente interrompido por qualquer um dos participantes). (Bakhtin, 1997, p.357)

Ao considerar o enunciado como um elo na cadeia de comunicação - como unidade da comunicação discursiva - Bakhtin posiciona a palavra no fluxo da ‘conversação cotidiana’, sendo orientada/antecipada para e por uma (futura) palavra resposta. Dessa maneira, ainda que formada em uma atmosfera já falada, da língua, ao mesmo tempo é determinada pelo que ainda não foi dito (Bakhtin, 1998, p.280). Assim, como atividade viva, o enunciado dirige-se a alguém, está voltado para o destinatário, não podendo ser considerado como puramente individual:

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(...) Está na fronteira entre um e o outro. A palavra na linguagem é a metade de alguém (...), existe em outras bocas, em outros contextos, servindo a outras intenções: é de lá que alguém pode tomar a palavra, e fazê-la sua própria. Expropriá-la, forçá-la a submeter-se à sua própria intenção e acento é um processo difícil e complicado. (Bakhtin, 1998, p.293-4)

O conceito de heteroglossia de Bakhtin (1998) busca cobrir esta multiplicidade de vozes sociais e a extensa variedade de relações e interrelações, orquestrada dialogicamente, onde forças centrípetas (que unificam e centralizam o mundo verbal-ideológico) e as forças centrífugas (processos ininterruptos de descentralização e diferença, ‘desunião’), em todo enunciado concreto, se (des)encontram. Assim, a ‘heteroglossia’ possibilita perceber o que está na margem, incorporando as formas vivas da linguagem, como processo formativo, flexível, cambiante. Dessa forma, o processo da fala deve ser compreendido em uma perspectiva mais ampla (como processo da comunicação cultural). Diferentemente do sistema da língua, as práticas discursivas são formas então de comunicação, num processo ininterrupto de interação verbal (nas situações concretas, que inclui o não-verbal). É nesse sentido que “a língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares. Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua” (Bakhtin, 1999a, p.127). Essa perspectiva de análise estende-se para a compreensão dos ‘enunciados’ como processo dialógico de produção de sentidos, para as práticas concretas de vida das palavras e atos (signos). Entretanto, alguns aspectos devem ser mais bem desenvolvidos em se tratando da atividade de mediação sígnica. Nessa perspectiva, a dialogia bakhtiniana apresenta-se de forma inconclusa quando buscamos conectar natureza e cultura, ainda que seus escritos tenham se mostrado de muita relevância nos estudos sobre a ‘comunicação humana’, pontuando a abertura da língua à vida: apenas o contato entre a significação lingüística e a realidade concreta, apenas o contato entre a língua e a realidade – que se dá no enunciado – provoca o lampejo da expressividade. Esta não está no sistema da língua e tampouco na realidade objetiva que existiria fora de nós. (Bakhtin, 1997, p.311)

Para além do limite bakhtiniano Em notas originárias da década de setenta do século XX, talvez buscando ampliar/ esclarecer uma perspectiva de dialogismo para além da comunicação verbal, Bakhtin (1999b, p.138) especifica três tipos de relações: relações entre objetos (fenômenos e coisas, relações causais, lógicas e lingüísticas etc.), relações entre sujeito e objeto e relações entre sujeitos (relações dialógicas entre enunciados, relações éticas, relações entre consciências, verdades etc.). Entretanto, uma relação pode se transformar em outra, sendo possível ‘personalizar’ muitas relações objetais e transformá-las no terceiro tipo. De fato, a perspectiva bakhtiniana preocupa-se mais com os contextos concretos de produção de sentido e de mediação sígnica tendo como ponto de partida o

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aspecto pragmático da linguagem. Bakhtin busca enfatizar o terreno interindividual ou social do signo, principalmente quando diz que “todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos não-verbais – banhamse no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele” (Bakhtin, 1999a, p.38). Se o dialogismo bakhtiniano não pode ser confundido com dialética, uma vez que o mesmo enfatiza o “caráter polifônico dessa relação exibida pela linguagem” (Brait, 1997), não podemos também resumi-lo puramente/ simplesmente a uma relação diádica, a um duelo de forças, como alguns leitores parecem enfatizar; por exemplo, a semioticista Santaella (1985). Podemos, assim, enriquecer e atualizar o dialogismo bakhtiniano considerando a atividade de mediação e tradução sígnica, que envolve a própria interatividade dos signos culturais, como processo contínuo de “migração de formas” (Machado, 1995, p.22). Conforme sugerem Clark & Holquist (1998, p.36-7), ao distinguirem Bakhtin de uma tradição filosófica sobre a diferença, podemos compreender a atividade de mediação a partir de “diferenças na simultaneidade”; e assim, como concebeu Bakhtin, destacar a interação de forças, ao invés de pensá-las como mutuamente exclusivas. Diferentemente de Bakhtin, o semioticista americano Charles Peirce desenvolve uma definição lógico-abstrata do signo ao explicitar a relação triádica entre signo-objeto-interpretante. Todavia, podemos assinalar alguns possíveis equívocos quando relacionamos atividade ou ação de signos (semiose) à relação com o intérprete/interpretante. Se o interpretante não se confunde com um intérprete, já que “o interpretante é uma propriedade objetiva que o signo possui em si mesmo, haja um ato interpretativo particular que a atualize ou não” (Santaella, 2000, p.63), deve-se destacar que no processo de produção dos ‘saberes cotidianos’, que inclui a própria produção de informação científica, os agentes humanos participam ‘ativamente’ na tradução de signos. Dessa forma, como chamou a atenção Merrel (1998), os interpretantes que não gozam de alguma interação com agentes semióticos (humanos e outras classes de organismos) não são genuínos – “o agente semiótico, como vaso comunicante, tem a função de um intermediário para que haja mediação entre as três entidades que compõem um signo em seu sentido cabal” (p.48-9). O aspecto comunicativo dos signos não se confunde, portanto, com uma relação de significação pré estabelecida (Deely, 1990). Vale destacar, então, a seguinte definição de signo em Peirce (1999, p.74): qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idêntico, transformando o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente ad infinitum.

Na perspectiva então do próprio agente semiótico/intérprete/interpretante, deve-se compreendê-lo também como signo, gerando outros signosinterpretantes. Sobre a relação intérprete/interpretante em Peirce, assinala Merrel (1998, p.49): Um signo tem que ser algo que se refere a algo para alguém em algum respeito ou capacidade. Se esse alguém não está presente, então o

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signo goza de um interpretante só em potência. Porém, cabe dizer, a fim de contas, este alguém é, por si, nada mais nem nada menos que outro signo, outro interpretante, para algum outro signo, e, por onde, para outro intérprete.

Nesse aspecto, há uma convergência entre Bakhtin e Peirce, no sentido de que o próprio pensamento está conectado a outros pensamentos. Para ambos autores, todo pensamento é dialógico, de modo mais geral, social. Santaella (1985, p.10), em relação a Peirce, diz que a semiose ou ação sígnica é eminentemente social. Um ato interpretativo, uma interpretação aqui-agora de um signo não é senão um caso especial do interpretante, visto que este é, por natureza, mais geral, social e objetivo do que um ato particular e exclusivo de um só intérprete.

Por sua vez, na perspectiva bakhtiniana, “não há atos isolados na consciência. Cada pensamento está ligado a outros pensamentos e, o que é mais importante, aos pensamentos de outrem” (Clark & Holquist, 1998, p.101). Na mobilização de sentidos e práticas cotidianas, podemos reconhecer a ação sígnica como “crescimento contínuo e tendencialidade” (Santaella, 2000, p.74), ao mesmo tempo em que outros repertórios e estratégias interpretativas surgem em contextos de comunicação diversos. Estabelece-se aqui o desafio de não perder a perspectiva de que os agentes humanos, cotidianamente, “não emitem signos no vazio, eles falam em meio a e para outros sujeitos que, por sua vez, também falam. (...) Um bom sistema de signos é aquele que também abrange seleções contextuais” (Eco, 1999, p.188). Nessa direção, tanto em Bakhtin quanto em Peirce o sentido surge como ‘potencialmente’ infinito; e nessa direção, um pode complementar o outro em se tratando de uma análise mais ‘extensiva’ da noção de signo, para além de uma compreensão lingüística. Na perspectiva de Peirce (1999), o ‘potencialmente’ deve ser compreendido a partir de um terceiro, já que no processo de tradução ou mediação, ocorre uma certa tendência/determinação do sentido em relação às ‘convenções e aos hábitos’. Para Merrel (1998, p.57), 4 por exemplo, “a terceiridade marca o desenvolvimento vital dos signos, um processo criador por meio do qual o caos se faz ordem”, e assim continuamente. A produção de sentidos, segundo o próprio Bakhtin (1997, p.413), é potencialmente infinita na medida em que “não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado)”. Para um entendimento recíproco entre locutores, entretanto, deve-se levar em consideração os gêneros do discurso, já que “todos os nossos enunciados têm formas relativamente estáveis e definitivas de construção do todo” (Bakhtin, 1999b, p.78). O ‘processo de mediação’ e relacional dos signos permite, portanto, uma mobilização de novos sentidos na cadeia de comunicação cultural, isto é, pela compreensão responsiva ativa do outro (Bakhtin, 1997) ou engajamento

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Esta dimensão do signo leva em consideração aspectos de generalidade e hábitos implicados na produção do sentido.


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Expressão retirada do livro Speech Genres & Other Late Essays (Bakhtin, 1999, p.7).

contínuo dos intérpretes e interpretantes (signos) na interação dialógica (Merrel, 1997, p.30). Vale ressaltar, em relação à dialogia Bakhtin-Peirce (Merrel, 1997), que os respectivos outros não são mudos, eles são atualmente ou potencialmente outros intérpretes/interpretantes engajados em um processo contínuo de tradução em contextos de cultura. A expressão ‘compreensão ativa’ utilizada por Bakhtin pode ser traduzida em inglês por creative understanding6 . A tradução ‘entendimento criativo’ sugere abertura, movimento, no ‘ato compreensivo’, na medida em que tende para o futuro, ‘incorporando’ uma potencialidade de produção do novo (novas possibilidades). Entretanto, estas expressões/traduções encontram-se interrelacionadas, sendo importante compreendê-las de forma articulada, isto é, o ‘entendimento criativo’ implicando uma ‘atitude responsiva ativa’. Cabe lembrar, então, que a compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente o produz: o ouvinte torna-se o locutor. (Bakhtin, 1997, p.290)

Sobre a condição/compreensão responsiva de todo enunciado, ainda que não tenha como efeito uma ação/realização imediata, Bakhtin (1999b, p. 69) esclarece: “todo entendimento real e integral é ativamente responsivo e constitui nada mais do que o estágio preparatório inicial para uma resposta (ela pode ser atualizada em qualquer forma)” (grifos nossos). Por outro lado, se o signo está vinculado ao objeto sob algum aspecto ou modo/qualidade (Peirce, 1999) e sempre ‘tende’ para o futuro (seu interpretante - mediatamente relacionado ao mesmo objeto), ao que ainda não é, ‘apresenta-se’, por conseguinte, de forma incompleta. Segundo Deely (1990, p.46), “nunca confinada àquilo que foi ou é, a semiose emerge na fronteira entre o que é e o que pode ser, ou o que poderia ter sido”. É possível, assim, ampliar a análise das práticas discursivas incluindo, de uma forma mais ampla, a linguagem (signo) não-verbal e toda uma prática constitutiva de ações entre os agentes cotidianos, nos diferentes contextos performativos. Isso implica reconhecer também os ‘interlocutores’ constituindo-se em diversas atividades sociais, ou em ‘pautas de interação social semelhantes a jogos’, conforme enfatiza Barnett Pearce (1994, p.274): Nascemos e nos incluímos em pautas de interação social semelhantes a jogos que nós mesmos não iniciamos. Escutamo-los, começamos a sentirnos poderosamente envolvidos, aproveitamos a oportunidade de participar, e ao fim partimos, porém as conversações seguem. Creio que essa é a substância do mundo social.

Vale enfatizar que os agentes de discurso, científicos e não científicos, encontram-se engajados circunstancialmente, delineando contextos relacionais de cooperação e/ou resistência. Estes contextos constituem o que

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chamamos de momentos dialógicos implicados/constrangidos por um terceiro – pelo reconhecimento de hábitos (sociais/científicos/naturais) ou regras (metodo) lógicas. O termo ‘constrangimento’ é aqui utilizado como um apoio lingüístico, não podendo ser compreendido em um sentido estático, permanente, sincrônico – refiro-me à crítica feita por Pickering (1995) ao enfatizar a co-produção dos agentes (materiais e humanos) temporalmente emergentes, no contexto de produção científica. Entretanto, como ‘efeitos de discurso’, em diferentes situações vividas cotidianamente, há um deslocamento de termos, sugerindo limites, restrições e controle. O mais importante a considerar é que os agentes encontram-se engajados/situados temporalmente em atividades mutáveis e dinâmicas. Considerações sobre as teias narrativas Mesmo com o risco de incorrer em uma tradução/redução simplificada, gostaria de tecer breves comentários em torno de três fragmentos de narrativa retirados da etnografia sobre a produção de dados epidemiológicos. As narrativas descritas a seguir referem-se a um dos projetos de investigação epidemiológica do Instituto de Saúde Coletiva, denominado Projeto Bahia Azul, durante uma trajetória etnográfica, no ano de 1998, em que vários agentes (técnicos, coordenadores de campo, epidemiologistas e outros profissionais da Saúde Coletiva) foram acompanhados nos diferentes contextos de investigação. Cada narrativa apresenta uma perspectiva possível de análise no desdobramento de sentidos de saúde. Parto, então, da premissa de que diferentes níveis de atividade (e de linguagem) encontram-se conectados na produção ‘crescente’ de sentido, irredutível às suas dimensões originárias e particulares. A figura 1 apresenta este esforço de ‘síntese narrativa’ sobre a mobilização de textos de saúde, a partir de um engajamento coletivo ou trabalho contínuo de mediação. Essa teia de sentidos ‘extravasa’ o campo de discurso epidemiológico, acolhendo (e gerando) outras atividades ‘difusas’ no cotidiano; uma (trans)formação que indica pluralidade (e abertura) de textos de saúde. Figura 1

Cincia/socidad Cotidiano/culturas

atura/tcnoloias

Saúde arratia/arratia/arratia

Compartilho aqui uma concepção de texto para além de seu sentido literárioverbal. Danesi & Perron (1999, p.92), por exemplo, definem o texto como uma “colagem de signos tomados de um ou mais códigos em ordem para construir e comunicar uma mensagem”. No processo de circulação e compreensão de textos, são necessárias, portanto, convenções semióticas que

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7 Como destacam Bruno Latour & Woolgar (1997), o termo inscrição remete a uma operação anterior à escrita, que serve para resumir traços, números de registros, pontos, gráficos etc.

estabeleçam uma ordem significante. Para os autores (Danesi & Perron, 1999), há uma interrelação entre semiose, representação e ordem significante, isto é, uma interrelação entre a capacidade inata para produzir e compreender signos (semiose), a atividade de usar signos para referir-se a um objeto, ser etc. (representação) e o sistema comum ‘providenciando’ signos que influenciam e guiam representações dentro de uma cultura específica (ordem significante). Conforme a síntese esboçada na figura 1, vale ressaltar que as narrativas foram produzidas a partir de ‘níveis de mediação’ – que incluem as atividades de campo, produção de dados e informação científica. Assim, quando ‘localizamos’ uma rede de comunicação cultural, tendo como ponto de partida os objetos e agentes (circulantes) no cotidiano de investigação científica/ epidemiológica, de certa forma buscamos acompanhar o desdobramento dos níveis de mediação. Este foco de análise trabalha com a perspectiva de que os diversos agentes (científicos e não científicos; humanos e não-humanos) se movimentam como mediadores e se apresentam como mediados na produção de textos de saúde. Os momentos dialógicos implicados nesta produção significam, portanto, atividades de mediação ou atualização possível de sentidos de saúde. Acompanhando as ações conectadas entre os agentes humanos (por sua vez, incluindo a participação/mediação dos agentes materiais), é possível estabelecer uma ‘dialogia’ entre natureza e cultura/sociedade. Nas atividades de campo, por exemplo, em que as entrevistadoras processavam os números e anotações nas fichas de seguimento de crianças de 0-3 anos, chamei a atenção para uma rede de ação onde se interconectavam textos biológicos/naturais e culturais. Dessa forma, localizei a própria entrevista como ‘ato conversacional’ ou espaço de negociação e de posicionamentos, buscando-se produzir inscrições7 e signos interpretativos. A ‘objetivação do dado’, mediante a produção de inscrições sígnicas, ocorria mediante o ‘reconhecimento’ de uma narrativa familiar e de hábitos sociais e científicos. Em cotidianos de práticas científicas/epidemiológicas, localizadas histórica e culturalmente, as narrativas transitam entre a confusão, o movimento incessante de textos/dados/atividades, e o ‘esforço conjunto’ de agentes no processo de produção, organização e circulação (inteligibilidade) de dados e informação científica. As muitas vozes que constituem e se deslocam nas narrativas expressam uma variedade de formas, ‘visões’ e tendências/ modelos de assimilação (potencial) do objeto saúde. As narrativas descritas a seguir referem-se a um dos projetos de investigação epidemiológica do Instituto de Saúde Coletiva, denominado Projeto Bahia Azul, durante uma trajetória etnográfica, no ano de 1998, em que vários agentes (técnicos, coordenadores de campo, epidemiologitas e outros profissionais da Saúde Coletiva) foram acompanhados nos diferentes contextos de investigação. Narrativa 1 E aí... nós fomos lá no campo, elas ficam doidas pra... porque eu paro, eu converso, aí o morador... sempre tem aquelas figuras que são tipos os minis prefeitos, né, ou de esquerda ou de direita. Mas aí eu enveredo com eles e eles sempre “venha cá”, já me mostrando tudo e eu já vou olhando tudo, analisando, tirando foto. Então eu trabalho muito assim, sempre trabalhei muito assim, e tenho uma crença de que isso daí funciona muito, entendeu? funciona muito! Eu acho que eles é que vivenciam isso que

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na minha dissertação de mestrado eu coloco: quem é que vivencia a realidade? Eles é que tão ali, vivenciando. Então quando enche, são eles que tão ali, vivenciando a enchente, entendeu? Quando o esgoto entope, são eles que tão lá, entrando. A comunidade (...) trabalhando na baixa do Camarugipe e enche, é um problema sério. Fizeram uma intervenção muito grande, e tal e tal, e não resolveram o problema maior da comunidade, que é o bueiro, bueiro que atravessa a BR, então quando chove, alaga tudo. Eles... a gente já registrou e já filmou, eles entraram, eles mergulharam no bueiro, retiraram aquele material todo e é aquela festa, e tome-lhe cachaça e tome-lhe feijoada pra todo mundo, porque o pessoal tem que entrar ali pra retirar todo aquele material, todo mundo vem segurar a corda (pesquisadora responsável pela avaliação ambiental do projeto Bahia Azul).

Na narrativa 1, encontramos um agente científico viabilizando uma produção de informação para o grupo de pesquisa. A partir de uma interseção de trajetórias culturais, a pesquisadora ‘reconhece’ o cotidiano de uma comunidade e as estratégias de ação frente às diversidades do ambiente e políticas governamentais. Não restrita a uma metalinguagem científica, uma ‘experiência espontânea’ é traduzida8 por meio de signos de solidariedade/cuidado e mobilização social – “festa, cachaça, feijoada – todo mundo vem segurar a corda”. Quando enfatizamos as ações conectadas entre os vários agentes de pesquisa que se deslocam nesta rede de comunicação cultural, encontramos também diferentes trajetórias de usos e hábitos. Dessa maneira, ainda que haja uma tendencialidade interpretativa no contexto de investigação científica (repertórios argumentativos mais gerais), cada nova atualização pode significar uma possível abertura para outros sentidos a partir da ‘perspectiva de observação’ em foco. Este ‘jogo conversacional’, que inclui diferentes trajetórias de usos, hábitos e linguagens, desafia a própria efetividade de entendimento mútuo. Narrativa 2

Como esclarece Samaja (2000, p.81): “A passagem de um nível de lingüitização (linguagem natural) a outro nível (linguagem científica) está precedida, possibilitada e motivada pela passagem de certos níveis de ação e interações sociais a outros níveis. Está possibilitada pela criação na história humana de novos estratos ou níveis de socialização e, por onde, de subjetivação”.

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De repente uma funcionária do laboratório entrou na sala alardeando que havia encontrado uma amostra de fezes vinda da ilha que continha 2000 ovos de Ascaris 9

por grama. Foi o suficiente para Hesse iniciar um discurso político sobre o descaso das autoridades em relação à saúde da população: “Essas crianças foram examinadas e tratadas há oito meses e hoje se encontram num estado de saúde pior que o anterior. Isto é típico de um Governo que não faz uma política básica. Vocês pensam que é por falta de dinheiro, mas não é não, é falta de vontade (Diário de campo de um bolsista de iniciação científica).

Na narrativa 2, encontramos uma trajetória de significação do dado que tende para uma dimensão macropolítica. Aqui, em se tratando de uma trajetória de linguagem e posição do agente – coordenador técnico originário do campo da sociologia – destaca-se uma ‘potencialidade de discurso’ sobre ‘indicadores de doença’ que se traduzem por uma ‘qualidade social’. Quando assinalo que uma ‘diversidade’ de agentes está situada/ conectada no processo de produção de dados e informação científica, significa enfatizar, também, diferentes posições de interlocução. Dessa

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9 Todos os nomes dos informantes são fictícios.


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maneira, em uma trajetória de mobilização de sentidos, os agentes humanos produzem ‘signos’ interpretativos de posicionamento diante do mundo, ao mesmo tempo em que estão mediados/constrangidos por ‘normas’ de usos científicos. Levando-se em consideração diversas atividades e agentes que circulavam no projeto Bahia Azul, deve-se pontuar uma prática cotidiana em que pesquisador e ‘sujeitos de pesquisa’ encontravam-se engajados/situados na produção de textos e narrativas. Dessa maneira, delineia-se um ‘campo’ de posicionamentos mediante as ações conectadas entre os diferentes agentes e interlocutores. Ratifico, assim, mediante os vários encontros dialógicos, um ‘deslocamento possível’ de posições, sentidos e demandas na produção de números/signos. Narrativa 3 (...) Olha, Natal do ano passado, eu tô pensando, este ano Natal a gente não vai poder estar junto, tem um menino que me pede uma árvore de Natal desde o ano passado, porque eu dei pra um outro, porque eu fiquei com tanta dó daquele menino, que ele me mostrou um folheto, um encarte do Bompreço, não era nem Bompreço na época, era...aí perguntou pra mim ‘oh, que bonito, na sua casa tem árvore de Natal? árvere’ (Ailícia repete pontuando o erro). Eu disse ‘ah, tem árvore sim’; aí ele disse assim, ‘pôxa, não tenho, você me dá uma árvore?’ Aí eu tinha uma árvore lá em casa, não, era da minha (...), ela me deu, eu arranquei umas bolas, levei pra ele, ele ficou tão feliz com a árvore, virou e disse ‘não tem caixa? por que como é que eu vou guardar pro ano que vem?’ cinco anos o menino. Fiquei com tanta pena dele, aí o outro (...) perguntou ‘você me dá uma?’ ‘Agora só no ano que vem, porque já acabou o Natal’... ele ficava...porque ele ia pra casa da vizinha, ficava parado, olhando as luzinhas (...) como é aquelas luzinhas, como é o nome, luminária, eu pedi pra meu marido pra dá um jeitinho e tudo, aí ficou bastante, levei, e conseguiu colocar tudo na árvore, aí ele ficou encantado, feliz da vida, por uma árvore de Natal (...) (Entrevistadora de campo).

Na narrativa 3, encontramos uma entrevistadora de campo interagindo com duas crianças no cotidiano de investigação epidemiológica. Para além de um contexto de produção de dados e inscrições, ocorre um posicionamento diante do outro, pelo qual é possível produzir signos/sentidos de ‘felicidade’, ‘encantamento’, mediados culturalmente. Ocorre aqui uma ‘trilogia’ entre criança, natal e árvore em um deslocamento possível de signos-interpretantes para além do objeto doença. Responsáveis, de certa forma, pela manutenção e circulação dos dados referentes à incidência de diarréia em crianças de 0-3 anos, pelas visitas contínuas para o preenchimento de fichas do seguimento, as entrevistadoras colaboravam para a manutenção da própria coorte ao estabelecerem um diálogo de confiança com as informantes ou ‘abertura conversacional’ entre população (mães/crianças) e pesquisa, viabilizando, inclusive, a inserção de outros pesquisadores no campo. Conforme assinalado, nos momentos dialógicos ocorria uma interseção de trajetórias culturais; nessa perspectiva, os encontros sucessivos entre entrevistadoras de campo e informantes possibilitavam traçar uma trajetória de reconhecimento de hábitos das respectivas famílias/crianças e comunidades.

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As narrativas, histórias, casos sobre os hábitos de crianças e adultos iam se ‘misturando’ ao roteiro de investigação. Cada preenchimento de questionário significava uma atualização dialógica – cada número, ou melhor, cada sim (1), não (2), não sabe, não responde (99 NS/NR); em caso de sim, uma pergunta sobre por quê? - surgia no interior de um diálogo, em uma ‘cadeia de comunicação’ em que os interlocutores participavam ativamente da interação discursiva. Na prática concreta de investigação, de fato, os enunciados têm um endereço, antecipam uma resposta, ainda que estejam em uma ‘região fronteiriça’ de cooperação e resistência. Entretanto, na análise sobre produção de sentidos, pode-se afirmar que as estratégias disponíveis para a obtenção de respostas estendem e, ao mesmo tempo, limitam as possibilidades discursivas. Conclusão No campo da Saúde Coletiva, a teia narrativa tende a crescer e criar possibilidades de sentidos, principalmente com a circulação e demanda de novos agentes de discurso. Consolidando-se como “campo científico e âmbito de práticas aberto à incorporação de propostas inovadoras” (Paim & Almeida Filho, 2000, p.105), a Saúde Coletiva possibilita a edificação de “meta-pontos de vista” (Morin, 1994, p.433). Mais ainda, neste campo de práticas discursivas, ocorre uma mobilização contínua de meta-meta-pontos de vista sobre o objeto saúde, não apenas porque ocupamos uma posição (social e responsiva) no processo de produção de conhecimento – encontramo-nos implicados no objeto de observação - mas também porque estamos engajados em uma rede cotidiana de participação de coletivos (diversos níveis de atividade) e de muitas “vozes” que se apresentam e se constituem dialogicamente. Nesta perspectiva, somos agentes de negociação (relacionais), não restritos às fronteiras disciplinares. Quando levamos em consideração essa rede de comunicação cultural - e aqui ressalto a atualidade de Bakhtin, quando nos possibilita pensar sobre o imbricamento ou ‘encadeamento’ de vozes (textos e signos) - reconhecemos que os agentes/coletivos humanos – sujeitos sociais – em suas mais diversas trajetórias e formas de intercâmbios culturais, encontram-se engajados na mobilização de ‘modelos’ de saúde-enfermidade-cuidado. Cabe, então, destacar que nossos enunciados e inscrições são reconhecidos e objetivados por serem signos sociais. Portanto, estão investidos de historicidade, conformam hábitos, esforçam-se para traduzir uma linguagem em outra, adquirem novas formas (e qualidades), configuram e/ou alteram práticas culturais - sempre com o risco de produzir (novos) ruídos e interferências de comunicação. Quanto a nós, agentes científicos no ‘campo’ da Saúde Coletiva, podemos produzir um espaço de conversação possível (transcientífica), na medida em que, como ‘praticantes de ciência’, possamos nos reconhecer também como agentes sociais, culturais e políticos, ainda que venhamos a nos expressar por meio de uma tradição ou formação diferenciada de linguagem, com nossas manufaturas/tecnologias e usos peculiares. Por outro lado, nossos enunciados e inscrições9 (tabelas, gráficos, mapas, rabiscos etc.) também não estão alheios ao mundo em que foram produzidos, ainda que haja uma incompletude ou movimento incessante de produção sígnica.

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Para Bruno Latour, nos textos científicos há tanto uma exposição visual quanto comentários dos cientistas. Na produção de inscrições, ou síntese visual, imprescindíveis para o reconhecimento de um fato, “o efeito sobre a convicção é contundente, mas sua causa é mista, pois não conseguimos distinguir o que vem da coisa inscrita e o que vem do autor” (Latour, 2000, p.118-9).

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Esta postura crítica e reflexiva talvez seja o primeiro passo para o estabelecimento de canais de comunicação com outros sujeitos sociais, “na condição de parceiros e cidadãos”, como enfatizam Paim & Almeida Filho (2000, p.113). Reitero, assim, o movimento ou diálogo simultâneo entre realidade e construção na produção do conhecimento científico; movimento este que implica sempre possibilidade de uma nova resposta ou, de acordo com a perspectiva bakhtiniana, continuação do diálogo em direção a um entendimento criativo. Este diálogo permanente ultrapassa uma postura representativa da realidade na medida em que a produção de conhecimento potencializa a circulação de novas ações, significados e uma infinidade de deslocamentos no cotidiano - incluindo a transformação do próprio objeto de conhecimento na cadeia de comunicação cultural. Por conseguinte, as diversas relações estabelecidas entre signos em contextos de mediação indicam a amplitude das possibilidades concretas de produção de sentidos no cotidiano e, mais especificamente, de sentidos de saúde. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BAKHTIN, M. The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1998. BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999a. BAKHTIN, M. Speech genres & other late essays. Trad. Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1999b. BRAIT, B. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. p.97-104. BURKITT, I. The death and rebirth of the author: the Bakhtin circle and Bourdieu on individuality, language and revolution. In: BELL, M. M.; GARDINER, M. (Eds.). Bakhtin and the human sciences. London: SAGE publications, 1998. p.163-80. CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998. DANESI, M.; PERRON, P. Analyzing cultures: an introduction and handbook. Indiana: University Press, 1999. DEELY, J. Semiótica básica. São Paulo: Ática, 1990. ECO, U. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1999. GERGEN, K.J. La Construcción Social: Emergencia y Potencial. In: PAKMAN, M. (Org.). Construcciones de la Experiencia Humana. Barcelona: Gedisa Editorial, 1996. v.1, p.139-82. GERGEN, K.J. Realities and relationships: soundings in social construction. Cambridge: Harvard University Press, 1997. LATOUR, B. Ciência em ação. São Paulo: Ed. UNESP, 2000. LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. MACHADO, I. A. O romance e a voz: a prosaica dialógica de M. Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995. MERRELL, F. Peirce, signs, and meaning. Toronto: University of Toronto Press, 1997.

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SILVA, L. A. V. Salud y producción de sentidos en lo cotidiano: prácticas de mediación y translingüística bakhtiniana, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.135-48, 2003. Este artículo discute algunos conceptos y usos de la Semiótica en el campo de la Salud Colectiva, enfocando principalmente los textos del escritor ruso Mikhail Bakhtin. Estas consideraciones se refieren a tópicos específicos desarrollados después de mi participación en un proyecto de investigación etnográfica sobre la práctica de producción epidemiológica. En este artículo, se destaca la contribución de la Semiótica para el análisis de sentidos de salud. Se presenta una síntesis de fragmentos de narrativa como ejemplos de desplazamiento de textos de salud. Se resalta la actualidad de Bakhtin al hacernos pensar sobre la participación de los diferentes agentes como mediadores en la construcción de sentido. De esa forma, los agentes humanos – sujetos sociales – en sus diversas trayectorias culturales, se encuentran comprometidos en la producción de sentidos de salud-enfermedad-cuidado, pues comparten/ disputan/negocian puntos de vista o tendencias, en un proceso continuo de producción de sentidos. PALABRAS CLAVE: Comunicación; Semiótica; Salud Colectiva; sentidos de salud; formación de conceptos.

Recebido para publicação em 19/02/03. Aprovado para publicação em 18/05/03.

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TOMIE OHTAKE, 1970

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Inovações pedagógicas: tempos de silêncios e possibilidades de produção Teaching innovation: times of quiet and the ability to produce

PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem; Informática; tecnologia educacional. KEY WORDS: Nursing; Informatic; educational technology. PALABRAS CLAVE: Enfermería; Informática; tecnología educativa.

Maria Isabel da Cunha 1

Uma dimensão que pode afetar profundamente os saberes dos educadores está ligada ao reforço da condição de visão única, tão caro à ciência moderna e reforçada pelos dispositivos políticos da produtividade. Trata-se de um processo de padronização, como se houvesse uma única forma de conhecimento e uma só alternativa de formação. Como lembra Santos (2002), o dilema consiste em que a validação de uma só forma de conhecimento provoca a cegueira epistemológica e valorativa, destruindo as relações entre os objetos e, nessa trajetória, eliminando as demais formas alternativas de conhecimentos. “O reverso da força da visão única é a capacidade para reconhecer visões alternativas” (p.241). O autor, sabiamente, alerta que esse fenômeno pode redundar num epistemicídio, afirmando que “a destruição de formas alternativas de conhecimento não é um artefato sem conseqüências, antes implica a destruição de práticas sociais e desqualificação de agentes sociais que operam de acordo com o conhecimento em causa” (p.242).

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Professora, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, RS. <mabel@conesul.com.br>

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Ainda frágeis e minoritárias, as inovações que procuramos afirmar no campo acadêmico enfrentam toda a dificuldade decorrente da presença paradigmática dominante. Já na sua geração carregam o ônus da complexidade da iniciativa. Santos (2002) afirma que a “luta paradigmática é, no seu conjunto, altamente arriscada” (p.344), pois exige uma subjetividade emergente que envolve ruptura epistemológica e societal. Para o autor, formas alternativas de conhecimento geram práticas alternativas e viceversa, perpassando o conceito de subjetividade, que constitui o grande mediador entre conhecimento e práticas. As inovações que adivinhamos próximas se materializam pelo reconhecimento de formas alternativas de saberes e experiências, nas quais imbricam objetividade e subjetividade, senso comum e ciência, teoria e prática, cultura e natureza, anulando dicotomias e procurando gerar novos conhecimentos mediante novas práticas. Essas inovações, entendidas como ruptura paradigmática, exigem dos professores reconfiguração de saberes e favorecem o reconhecimento da necessidade de trabalhar no sentido de transformar, como refere Santos, a “inquietude” em energia emancipatória (p.346). Envolvem o reconhecimento da diferença e implicam, em grande medida, um trabalho que consiste, especialmente, em gerir relações sociais com seus alunos. Na afirmativa de Tardif (2002), é “por isso que a pedagogia é feita de dilemas e tensões, de negociações e estratégias de interação”. Para o autor, “ensinar é fazer escolhas, constantemente, em plena interação com os alunos” (p.132). Essas escolhas são dependentes da experiência dos atores, do contexto de tempo e território do ensino, das convicções e crenças que suportam o trabalho e, conseqüentemente, de situações que, sendo únicas, exigem respostas diferenciadas. Incentivar o processo de inovações é agir contra um modelo político que impõe, não raras vezes, a homogeneização como paradigma. As formas de avaliação externa, no contexto das políticas avaliativas da educação brasileira, têm sido um fator de retração da inovação, pois, em seus princípios, defendem e implementam um modelo único de qualidade sem, ao menos, discutí-lo na sua condição e contexto. A crítica a esse modelo nem sempre tem encontrado energias capazes de fazer vigorar uma perspectiva emancipatória. As preocupações decorrentes dessa dimensão imposta estimula questionamentos: Que saberes precisam ser mobilizados nos professores para que a visão crítica dos processos regulatórios redunde em movimentos de resistência, em diferentes campos e manifestações? Como tomar essa realidade como ponto de referência para uma discussão mais sistematizada no interior da escola e da universidade? Como os processos de formação de professores estão enfrentando a problemática de uma avaliação regulatória que tende a imobilizar a inovação? Há espaços para a continuidade de iniciativas emancipatórias, contra a corrente dominante? Como elas se constituem? Ainda que pareça ingênua a direção, a resposta à última questão será sempre positiva. O homem é por natureza inventivo e carrega a possibilidade da contradição. Sua capacidade inventiva é inesgotável e a possibilidade de uma energia emancipatória está sempre presente na educação que, necessariamente, numa inspiração freireana, precisa estar prenhe de esperança. Tratar a inovação como ruptura epistemológica é dar-lhe uma dimensão emancipatória. Não numa perspectiva de negação da história, mas tentando partir desta para fazer avançar o processo de mudança, assumindo a fluidez das fronteiras que se estabelecem entre os paradigmas em competição. Para Santos, esses podem se tornar líquidos e navegáveis, numa cabotagem que resignifica subjetividades e, por essa razão, altera experiências. Esta reflexão quer ser um agente analítico de compreensão das políticas educativas atuais mas, também, uma forma de concentrar energias para a resistência. Quer se alinhar a outros movimentos que reforcem a afirmativa de Santos de que a subjetividade

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emergente é uma subjetividade do sul. Ao fazer essa afirmativa o autor recupera analogicamente e se contrapõe à idéia eurocêntrica, que afirma o entendimento de que o rumo certo está no norte, de onde vem o uso corriqueiro da expressão nortear como sinônimo de colocar no prumo, dar um sentido adequado. Reconhecer o sul, no contexto do hemisfério, como energia inovadora, é estar disposto a legitimar formas alternativas de conhecimento bem como ousar andar na subjetividade da fronteira. Na transição paradigmática a subjetividade navega por cabotagem, guiando-se hora pelo paradigma dominante, ora pelo paradigma emergente. E, se é verdade que o seu objetivo último é aproximar-se tanto quanto possível do paradigma emergente, ele sabe que só ziguezagueando lá poderá chegar e que, mais do que uma vez, será o paradigma dominante a continuar a guiá-lo. Cabotando assim, ao longo da transição paradigmática, a subjetividade de fronteira sabe que navega num vazio cujo significado é preenchido, pedaço a pedaço, pelos limites que ela vai vislumbrando, ora próximos, ora longínquos. (Santos, 2002, p.335)

Nessa perspectiva é possível acreditar na condição de ruptura com a lógica dominante, inclusive dos processos de avaliação, que vem sendo aplicada ao longo do tempo e que encontrou um terreno fértil para seu revigoramento nos últimos anos, perante a reconfiguração da concepção de Estado, no mundo ocidental. Esta condição, entretanto, exige uma tessitura paciente de esforços e energias que envolvem a condição de escuta e a condição de espera, sem, entretanto, abrir mão da condição de análise crítica e reflexiva, que ajuda na compreensão dos acontecimentos e das teias que os envolvem. Anima perceber que as pessoas, em geral, e os professores, em particular, são capazes de viver nos limites, submetidos à lógica predominante nos processos sociais e educativos, mas navegando na fronteira das práticas que ficam às margens. Talvez daí possa sair uma explicação para seus silêncios. Quem sabe são eles uma possibilidade de esperança. Mencionar inovação, num contexto tão adverso, é fazer uma profissão de fé, que envolve a nossa condição de humanidade e a possibilidade de transformar os silêncios em possibilidades.

R ef er ên ci as S. A crítica SANTOS, B. dolente: in o zã ra da erdício da contra o desp o Paulo: Sã experiência. . 02 20 z, Corte beres TARDIF, M. Sa rm aç ão fo e es do ce nt trópolis: Pe . profissional Vozes, 2002.

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Inovação/tensão entre poderes e saberes... Innovation/tension between power and knowledge...

Denise Leite 1

O provocativo texto de Cunha induz-me a duas leituras. A primeira, que faço do fim para o começo, chama-se “Inovações pedagógicas em tempos de silêncio”. A segunda, da qual propositadamente retiro um tópico do título, leio como “Inovações pedagógicas e possibilidades de produção”. Na primeira alternativa, a do fim para o começo, encontro na autora um certo ceticismo sobre a condição do professor, alguém capaz “de viver nos limites, submetido à lógica predominante nos processos sociais e educativos” (e me pergunto se esta seria uma lógica única pois a palavra lógica está no singular). Este ser professor encontra possibilidades de navegação em novas fronteiras. Fronteiras essas, ao que parece, adversas. Os professores estão em silêncio, realizando práticas que estão “às margens.” Essas práticas das margens seriam as inovações pedagógicas. Na leitura que faço, parece que o docente, ao optar pela inovação, carregaria consigo um certo sofrimento provocado pela padronização dos seus saberes, afetados pelo reforço da “condição de visão única.” A visão única de ciência, como única forma do conhecer, produziria uma só alternativa de formação docente, provocando “cegueira epistemológica e valorativa”. Entre os elementos que favorecem o “problema” encontra-se a avaliação regulatória que imobilizaria as inovações. Isto provoca o silêncio docente. Ou seja, não há espaço para a contradição – a reação se daria em cadeia, causas e efeitos em circulação constante. Tenho dúvidas em aceitar esta leitura, conquanto ela seja possível. Valorizo, então, a segunda alternativa, aquela das possibilidades de produção. Nesta forma, a autora diz que as inovações “se materializam pelo reconhecimento de formas alternativas de saber e experiências” nas quais se imbricam conceitos que parecem estar em pólos opostos (teoria e prática; senso comum e ciência, natureza e cultura; objetividade e subjetividade). Ao reconhecer “a diferença”, os professores trabalhariam para transformar inquietudes em energias emancipatórias e seu trabalho consistiria em “gerir relações sociais com seus alunos”. Como o texto não contextualiza o professor a que se refere, vou supor que se trata do professor em preparação para a docência, o licenciado que se está formando em nossas universidades para atuar no sistema de ensino. Se este for o caso, todos nós ficaríamos muito contentes se ele dominasse, pelo menos, os princípios e os conceitos dessa “ciência única”. Gostaríamos que este professor, preocupando-se ou não, com rupturas paradigmáticas, ensinasse bem a seus alunos. Gostaríamos que ele tivesse a compreensão de que o conhecimento-regulação, aquele da “ciência única”, “(...) implica uma trajetória entre um estado de ignorância a que chamo caos e um estado de conhecimento a que chamo ordem”, como diz Santos (2002, p.228). Parece-me que esta compreensão não está bem delimitada em nossas universidades. Talvez nos falte provocar uma certa tensão entre a visão da ordem e a visão do rompimento com a ordem. Há um compromisso, como diz Santos, entre o pilar da regulação e o da emancipação, pois as formas de conhecer, de produzir saberes, precisam equilibrar-se, estar em tensão dinâmica. Cada forma de conhecer retira da outra as suas energias, seus movimentos, seu crescimento e acumulação. Fora disto, temos desequilíbrio.

1 Professora, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/PPGEDU-UFRGS. <dl451714@portoweb.com.br>

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Como romper com uma visão de ciência sem conhecê-la adequadamente? Meu temor reside em que ao pensar inovações como ruptura paradigmática, caminho que tenho trilhado, tenhamos rompido com a clareza de nossa comunicação. Receio que possamos estimular nos docentes, em formação, uma confusa visão da sociedade, da educação e do seu papel nela. Por outro lado, aceitar a contradição entre formas de conhecer e produzir saberes, entre pensamentos únicos e pensamentos plurais, significa trabalhar sobre uma linha de fronteira. A meu ver, para a produção do novo importa a clareza com a qual atravessamos as fronteiras e se o fazemos junto com nossos alunos. Ao final, as inovações buscadas podem não ser... assim tão novas. Inovador terá sido caminhar fazendo o caminho. É preciso clareza também para perceber que as inovações estão situadas na linha de tensão entre saberes e poderes. Na prática da sala de aula, da universidade, dentro do sistema de ensino tal qual como na sociedade, revelam-se poderes desiguais. E, a poderes desiguais correspondem saberes desiguais, perpetuando a escala da reprodução social com a qual todos nós podemos estar seriamente comprometidos. Vejo que o texto de Cunha tentou mostrar a necessidade de uma “tessitura paciente de esforços e energias” para trabalhar com inovações pedagógicas no seu sentido pleno, o sentido de “um conhecimento prudente para uma vida decente.” Com esta convicção, volto ao início do texto para reafirmar, com a autora, que as inovações estão mais próximas de nós do que imaginamos. O sinal de sua presença está em toda prática ou iniciativa pedagógica que possa reconfigurar, ou seja voltar a dar forma, feitio, ou reconformar tanto os poderes quanto os saberes que estão em circulação na sala de aula, na universidade, na sociedade. Afinal, parece elementar, mas, democracia também se constrói dessa forma, no coletivo, no confronto e nas tensões entre saberes e, principalmente, entre poderes. Possibilidade de produção para a qual o texto nos alerta.

Inovacción/esperanza... Innovation/hope... Elisa Lucarelli 1

María Isabel da Cunha termina su significativo artículo sobre innovaciones pedagógicas invitándonos a hacer una profesión de fe en las posibilidades que tiene el ser humano para transformar el statu quo vigente en las aulas, en nuevas prácticas superadoras de la inercia que muchas veces caracteriza a la vida de las instituciones educativas. Este mensaje de esperanza es síntesis de la intencionalidad que se encarna en este artículo de Cunha, y que se expresa en una articulación de conocimiento y afecto, pensamiento y acción, enfoque sólidamente basado en pilares epistemológicos, sociológicos, políticos y didácticos portadores también de un concepto contextualizado de innovación. ¿Cuál es el propósito que anima a la autora a abordar un objeto tan cuestionado, por sus connotaciones históricas recientes, como es el de innovación? ¿Cómo trasciende el estigma tecnicista que tiñe este tema para desarrollar un pensamiento propio y transgresor acerca de las innovaciones? Cunha asume el compromiso educativo y da a sus reflexiones la misión de ser un agente analítico [también un analizador, dirían los institucionalistas] para la comprensión de las políticas educativas actuales, a la vez que una forma para concentrar energías para la resistencia. Nuevamente pensamiento y acción, reflexión e intervención. ¿Y no son estos los ejes estructurantes de una ciencia pedagógica crítica?

1 Professora, Universidade de Buenos Aires, UBA. <elisalucarelli@arnet.com.ar>

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DEBATES

Desde ese lugar, los referentes teóricos que sustentan al artículo expresan también la mirada multidimensional propia de estas perspectivas: Boaventura de Sousa Santos alerta sobre el peligro de una ceguera epistemológica y valorativa, consecuencia obligada del pensamiento único, a la vez que abre las puertas, esperanzadamente, a las innovaciones en los espacios educativos como una expresión de la ruptura que supone la transición paradigmática. Tardiff aporta a la construcción de una nueva concepción educativa, cuando enfatiza que formar no es transmitir el mensaje hegemónico sino enseñar a hacer elecciones. Freire permite que la autora encuentre en la energía emancipatoria presente siempre en educación las formas para articular subjetividades y para derivar en prácticas que recuperen la naturaleza inventiva y contradictoria del hombre. En el artículo se sostienen conceptos que reivindican a la innovación desde un ángulo opuesto al enarbolado por la perspectiva tecnicista en educación. Las innovaciones que atraviesan lo didáctico y lo curricular (esto es el corazón de las instituciones educativas) se presentan como expresión de un proceso creativo y de interrupción del devenir habitual de las formas de enseñanza y evaluación; son producciones originales para su contexto de realización, gestadas y llevadas cabo por sujetos educativos a lo largo de todo el proceso. En este sentido son protagónicas: sus creadores, al igual que en el teatro griego, son los personajes principales de la acción y toman parte en los momentos significativos de esas prácticas. Protagonismo y contextualización son también, a mi criterio, los principios de los que se vale Cunha para enfatizar la intencionalidad política de sus reflexiones al denunciar la contradicción presente en los programas que atravesaron (y a atraviesan aún hoy) los sistemas educativos de nuestro sur, programas que dicen orientarse hacia la mejora de la calidad educativa y desarrollan propuestas de evaluación con patrones homogenizadores de esa calidad. La metáfora de la frontera y de las márgenes del río, presente en el planteo de la transición paradigmática, abre posibilidades para que los sujetos del aula desarrollen prácticas que les permitan navegar en la innovación transformadora.

Inovação/construção do conhecimento Innovation/building of knowledge Gaudêncio Frigotto 1

O texto de Cunha revela a acuidade de uma intelectual atenta aos dilemas e impasses de nosso tempo histórico e a compreensão de que os processos de construção do conhecimento e os processos educativos estão vinculados às práticas sociais. De imediato se situa, de forma clara, na perspectiva da não neutralidade do conhecimento e das práticas pedagógicas. Em sociedades cindidas por interesses de classe ou frações de classe, as teorias e as práticas educativas são produzidas dentro de determinadas visões de mundo e articulam ou reproduzem a manutenção da ordem estabelecida ou se afirmam na desarticulação e transformação da mesma. O foco da análise centrado na crítica à atual tendência da “visão única”, da padronização e da homogeneização abstrata da construção do conhecimento capta um dos problemas centrais da teoria social e da teoria educacional e suas conseqüências em termos de concepção pedagógica. No plano mais amplo, a visão única está vinculada à tese de Francis Fukuyama do fim da história, cuja mensagem letal é de que a única alternativa para a produção da vida humana efetiva-se sob as relações sociais capitalistas por tratar-se de uma

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Professor, Universidade Federal Fluminense, UFF, RJ. <gfrigotto@globo.com>

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sociedade de tipo “natural”. A força desta visão única, como sinaliza Jameson (1997), é querer nos convencer que as relações capitalistas têm de ser eternas. “Parece que hoje é mais fácil imaginar a deterioração total da terra e da natureza do que o colapso do capitalismo tardio; e talvez isso possa ser atribuído à debilidade de nossa imaginação” (p.10-1). No campo educacional esta visão única se explicita pelo retorno das perspectivas pragmáticas, fragmentárias, positivistas e funcionalistas de conhecimento afirmadas na pedagogia das competências, na noção de empregabilidade e, como mostra Cunha, no processo padronizado e homogeneizante de avaliação em todos os níveis de ensino. Partindo das instigações da autora e da sinalização de que as formas alternativas de saberes “imbricam objetividade com subjetividade, senso comum e ciência, teoria e prática, cultura e natureza” aponto alguns aspectos centrais para que as inovações e as mudanças paradigmáticas, epistemológicas e pedagógicas se desenvolvam no plano da historicidade aqui sinalizado. Cabe reconhecer que o embate de visões de mundo, concepções de conhecimento e perspectivas pedagógicas não é novo. No âmbito do modo de produção capitalista, a radicalização da visão única se explicita pelo retrocesso às visões dogmáticas e pragmáticas de conhecimento e de práticas educativas, retrocesso que se deve à radicalização da materialidade das relações capitalistas, cada vez mais violentas, geradoras de desigualdade e de exclusão. Trata-se de um capitalismo tardio, como o caracteriza Jameson (1996) ou de um “sistema capital” que esgotou sua capacidade civilizatória e, para manter-se, tem que ser profundamente mais destrutivo (Mészáros, 2002). Na teoria pedagógica a noção de competência vinculada à de empregabilidade explicita o deslocamento das relações de classe e de poder cada vez mais violentas deste capitalismo tardio e destrutivo para relações individuais. Esta percepção nos encaminha para uma compreensão de que a mudança paradigmática, no âmbito do conhecimento e das práticas educativas, incluem, ao mesmo tempo, mudanças no plano ontológico, campo da materialidade das relações sociais, e mudanças no plano epistemológico. A inovação, neste particular, está sendo gestada no plano da contradição e não da simples antinomia ou em perspectivas voluntaristas. Parece que o grau de radicalidade das contradições do capitalismo tardio coloca em crise todos os paradigmas. Seus conceitos e categorias já não permitem dar conta da leitura da realidade. O denominado paradigma da pósmodernidade como alternativa ao dogmatismo, com ampla penetração na teoria e práticas pedagógicas, parece um atalho que, mesmo colocando questões importantes, não permite saída no plano societário e no plano das práticas pedagógicas. Por negar ou desconsiderar o plano das contradições, o conflito de classe ou frações de classe e a perspectiva histórica, dando por superado o paradigma da modernidade, pode estar reforçando as visões fragmentárias e individualistas de conhecimento e de práticas educativas. É nesta direção que Jameson (1996), provocativamente, intitula uma das suas obras de “Pós-modernismo, a cultura do capitalismo tardio” 2. Neste horizonte de compreensão e de embate contra-hegemônico, é importante afirmar uma perspectiva de conhecimento e de práticas educativas que superem tanto a homogeneização e padronização abstratas da visão única quanto as visões que se afirmam unicamente na particularidade, na diferença e na alteridade dos sujeitos. Numa perspectiva histórica e, portanto, dialética de conhecimento e de práticas educativas, trata-se de relacionar, como aponta Cunha, objetividade/subjetividade, parte/todo, indivíduo/história ou sujeitos e estruturas sociais. O conhecimento, em todas as áreas, é entendido como um processo de construção histórica que se diferencia do conhecimento espontâneo e do senso comum e se explicita mediante categorias e conceitos. Enquanto conhecimento histórico sempre será relativo e aberto e, portanto, passível de ser reconstruído e ampliado. Para ser histórico se constrói ou é apropriado dentro da relação entre a particularidade (espaço e tempo das mediações) e um grau crescente de universalidade (historicamente construída). Esta relação historicamente construída permite superar a homogeneização abstrata que violenta as particularidades (e, portanto, a complexidade e diversidade da realidade dos sujeitos) e a atomização do real em infinitas e desconexas particularidades.

2 Vale ressaltar que várias questões trazidas pelo debate da pós-modernidade têm contribuição importante para a crítica da razão instrumental e do mecanicismo e dogmatismo dominantes na ciência moderna. Neste particular, como adverte Jameson (1996), a crítica à pós-modernidade não pode ser moralista e maniqueísta, mas uma postura de compreensão de seu sentido e de suas conseqüências. Para um aprofundamento desta questão ver Jameson (1997, 1994), Anderson (1999) e Harvey (1993).

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DEBATES

Concluindo: os sujeitos educandos (individuais e coletivos), em sua realidade complexa e diversa no plano social, cultural e geopolítico, são o ponto de partida às práticas educativas. A perspectiva não é de uma visão única e padronizada e unidimensional, mas unitária, sempre síntese do diverso. O eixo dos processos educativos e de aprendizagem será, pois, a relação entre ciência, cultura e vida, articulando e apropriando criticamente os conhecimentos socialmente construídos no patamar mais elevado do momento histórico em curso. Trata-se de reconhecer que os sujeitos educandos têm a prerrogativa de um duplo direito: de ver seus valores, conhecimentos e cultura reconhecidos e, ao mesmo tempo, de poder apropriar-se do patrimônio socialmente construído em termos de avanço científico, tecnológico e cultural. Se a escola e as práticas educativas não incorporam esse papel de transcender às realidades particulares na construção de “universalidades” históricas, relativas e sínteses do diverso, elas não têm nenhum sentido histórico e humano.

Janeiro: R ef er ên ci as dade. Rio de pós-moderni da s en ig or P. As ANDERSON, birinto 1999. ucação no la Zahar Editor, ). Teoria e ed s. rg (O . M , G.; CIAVATTA FRIGOTTO, s, 2002. , 1993. trópolis: Voze Pe l. ta Paulo, Loyola pi do ca oderna. São m spó ão 1997. iç a, A cond Paulo: Átic HARVEY, D. tempo. São do s te en mo m lis As se ral do capita JAMESON, F. a lógica cultu o: sm ni er od Pós-m JAMESON, F. s 96. ulo: Ática, 19 oderno e outro Pa o Sã . io rd ta ias do pós-m or te : em ag Espaço e im UFRJ, 1994. JAMESON, F. iro: Editora da ne Ja de o Ed. Unicamp/ Ri ensaios. tal. Campinas: pi ca do ém I. Para al MÉSZÁROS, 02. 20 , po m ite Bo

Inovação/visão única... Innovation/single view... Newton César Balzan 1

O texto de Cunha é claro, profundo e provocativo, suscitando uma série de questões bastantes pertinentes sobre a educação e os educadores, não só no Brasil como em outros países do globo. Vejamos algumas delas. Visão única (...) presença paradigmática dominante... Incentivo à inovação entendido como agir frente a um modelo político que impõe, não raras vezes, a homogeneização como paradigma. Estas expressões, extraídas do texto da Profa. Maria Isabel da Cunha – Mabel – nos remetem diretamente ao atual Modelo CAPES, formulado a partir de uma visão positiva de avaliação, com predominância absoluta de aspectos quantitativos em detrimento de abordagens qualitativas, que devem e precisam ter lugar no processo de avaliação. Modelo que amarra professores-orientadores e estudantes de pós-graduação em uma camisa de força, impingindo-lhes um formato único, provavelmente extraído das Ciências Físicas e Biológicas, que não se aplica às Ciências Humanas e nem mesmo às áreas que a ele deram origem e dão sustentação. Dissertações e teses que atingiriam níveis de excelência são sacrificadas em nome do cumprimento rígido de prazos, desprezando-se as condições regionais e locais. Se, por um lado, devem-se à CAPES valiosíssimas contribuições em prol da pós-

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Professor, Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Puccamp, SP. <nbalzan@uol.com.br>

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DEBATES

graduação – e, portanto, da produção de conhecimentos – no Brasil, ao longo das três últimas décadas, por outro, o modelo atual de avaliação há muito tempo se encontra praticamente esgotado. Se é inadmissível o fato de consumir dez, quinze, ou mesmo vinte anos na elaboração de uma tese que não tem prazo para terminar, também é inadmissível exigir que se complete uma dissertação de mestrado em 24 meses. Às vezes penso que gostaria de receber uma incumbência por parte da CAPES, com tempo suficiente para terminá-la: algo como analisar e avaliar cerca de cinqüenta dissertações e teses, desenvolvidas em instituições diferenciadas quanto à natureza – públicas, particulares, confessionais etc. – e quando às origens – por regiões e Estados. Estou certo de que bem poucas seriam aprovadas. Isto se deve ao fato de muito desta produção trazer erros graves não apenas de redação, como de abordagens nas pesquisas propriamente ditas. Em síntese, o atual modelo de avaliação da CAPES é incompatível com a inovação, a criatividade e o respeito às diferenças. Inovações (que) exigem dos professores uma reconfiguração de saberes e favorecem o reconhecimento da prática de trabalhar no sentido de transformar a inquietude em energia emancipatória (...) Inovações que implicam um trabalho que consiste, especialmente, em gerir relações sociais com seus alunos (...) Ensinar é fazer escolhas, constantemente, em plena interação com os alunos. A quem é endereçado este discurso? São raros os professores, do ensino fundamental ao superior, que estão inquietos, isto é, indignados com o quadro atual da educação brasileira, entusiasmados com o processos reconhecidamente inovadores e que geram bons resultados, preocupados com os rumos da escola publica, da universidade etc. Penso que há poucos saberes para serem reconfigurados, que grande parte dos docentes se aproxima mais do modelo ameba do que de um retrato vivo e colorido de pessoas preocupadas em gerir relações sociais com seus alunos, conscientes da necessidade de fazer escolhas. Há espaços para a continuidade de iniciativas emancipatóriais, contra a corrente dominante? (...) O homem é por natureza inventivo e carrega a possibilidade da contradição. Penso que os espaços vêm sendo retirados em vez de ampliados. Milhares de professores universitários estão deixando suas atividades para se aposentarem às pressas. Estão deixando um espaço que, de fato, amam e que se tornou parte integrante se suas vidas, exclusivamente devido a uma lei que, assim que for sancionada, lhes trarão perdas salariais enormes, caso optem por continuar trabalhando. São enormes as perdas para o CNPq, para as universidades públicas e para o os institutos de pesquisa. Se a necessidade de reformas nas leis que regulam as aposentadorias é um fato indiscutível, isto não significa que alternativas capazes de assegurar a permanência desse pessoal nas instituições públicas não pudessem ser buscadas. Palavras da autora: “a lógica dominante (...) encontrou um terreno fértil para seu revigoramento nos últimos anos, perante a reconfiguração da concepção de Estado no mundo ocidental”. Sim, o homem provavelmente seja inventivo. Convém não nos esquecermos, porém, que esta inventividade em grande parte já terá sido neutralizada, inclusive pela própria escola, local onde não se exerce a criatividade e a invenção, onde geralmente o estudo no sentido exato do termo não ocorre, desde que não se entenda por estudo o ato de devorar matérias para passar nas provas ou decorar conteúdos para obter notas altas no provão. De fato, as pessoas em geral, e os professores, em particular, são capazes de viver nos limites, submetidos à lógica predominante nos processos sociais e educativos. No entanto, são poucos aqueles que têm coragem, força e visão de mundo suficientemente ampla para navegar na fronteira das práticas que ficam às margens. Acrescente-se a isto, no caso dos professores a necessidade de uma cultura geral que lhes permita ir além do pequeno mundo de suas disciplinas, de forma a trabalhar na interdisciplinaridade e mais, na transdisciplinaridade. De modo geral o texto, embora profundo, padece de certa ingenuidade. É como se a autora, alguém de nível excepcional, soubesse da existência de um grande incêndio mas quisesse correr para apagá-lo antes de olhar o fogo de frente. Ou como um cirurgião que, diante de um paciente sabidamente incurável dissesse: é... está mal, tem problema. Com uma dose maciça de vitaminas tudo se resolve. Não seria este erro básico da maioria de nós, educadores?

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DEBATES

Inovações em tempos de debate

RÉPLICA

Innovation in challenging times

Maria Isabel da Cunha

Sinto-me privilegiada ao ter o ensaio denominado Inovações pedagógicas: tempos de silêncios e possibilidades de produção analisado por professores e intelectuais do porte de Denise Leite, Elisa Lucarelli, Gaudêncio Frigotto e Newton César Balzan. Reconheço neles uma excepcional condição acadêmica que legitima as suas proposições nesse contexto. Ainda mais, debito a eles boa parte da minha formação, pela inspiração em seus textos e contribuições teóricas. Mas, o que mais me é caro, é ter encontrado neles a inspiração ética e humana com as quais procuro pautar minha ação na pesquisa e na docência. Dialogar com esses professores sobre o tema das inovações na perspectiva da ruptura paradigmática é, acima de tudo, acolher contribuições que, de forma efetiva, ampliam a temática e a tornam mais atrativa e fascinante. Tomando a contradição como eixo da possibilidade do processo inovativo, é possível encontrar sua presença nos escritos de meus interlocutores. Acompanha o diálogo a perspectiva dual que caracteriza a contradição, pontuada na relação otimismo e pessimismo, realidade e utopia, ciência e cultura, avaliação somativa e avaliação formativa, teoria e prática, regulação e emancipação, modernidade e pós-modernidade, por exemplo. Esta constatação reafirma que vivemos em tempos de transição e que a possibilidade histórica se apresenta como um desafio intenso para esta e para as próximas gerações. Foi importante entender nossa fragilidade, saber que não podemos tudo, que somos parte de um todo a navegar em territórios minados de amarras culturais e estruturas de poder. É crucial compreender criticamente nossa condição de educadores num contexto muitas vezes tão adverso. Mesmo assim, é preciso reafirmar a condição da possibilidade do novo. Quanto tempo precisamos para poder afirmar que a esperança venceu o medo? E o que fazer dessa esperança senão tomá-la como apenas mais uma possibilidade? Viver a possibilidade é o nosso desafio. Inovações que incorporam as contradições, mas não navegam sem rumo. Na provisoriedade enxergam seu lume, acreditam na sua utopia. São exigentes enquanto esforço humano, pois se alicerçam em pilares da complexidade. Não abdicam do sonho, como argumenta Freire (Freire & Shor, 1986, p.220), “que é a possibilidade de ir além do amanhã sem ser ingenuamente idealista, numa relação dialética entre denunciar o presente e anunciar o futuro”.

R ef er ên ci a OR, I. Medo e sor. FREIRE, P.; SH iano do profes tid ousadia: o co . 86 19 , rra z e Te São Paulo: Pa

Recebido para publicação em 30/04/03. Aprovado para publicação em 14/07/03.

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teses

Tecnologia educacional: produção e avaliação do site Escala de Pessoal de Enfermagem Educational technology: production and appraisal of the site Nursing Personnel Scale

O trabalho trata do desenvolvimento de software educativo para o ensino do tema Escala de Pessoal de Enfermagem. O desenvolvimento do hipertexto, implementado via Internet, teve como objetivo oferecer subsídios para o aluno de graduação e para o enfermeiro gerente de recursos humanos. Aborda aspectos trabalhistas, legais e humanos fundamentais para o profissional enfermeiro. Etapas metodológicas: revisão bibliográfica; organização da rede semântica; organização do hipertexto a partir dos nós de conteúdo; definição do design das telas e imagens; elaboração da simulação; planejamento do banco de dados. Coleta de dados: por meio de formulário eletrônico no próprio site, preenchido por docentes de Administração em Enfermagem e alunos de graduação das escolas públicas de Enfermagem do Estado de São Paulo convidados. Principais resultados: o site recebeu aprovação da maioria dos participantes. A média de aprovação, somando os critérios excelente e satisfatório, foi de 70% das respostas. Algumas vantagens do recurso tecnológico: disponibilidade de conteúdo aos graduandos e profissionais, possibilidade de o aluno realizar simulação; possibilidade de os alunos estudarem nos momentos oportunos; o programa informa ao professor os registros dos exercícios simulados. Carmen Maria Casquel Monti Juliani Tese de Doutorado, 2003. Departamento de Enfermagem, Faculdade de Medicina de Botucatu <cjuliani@fmb.unesp.br>

PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem; Informática; tecnologia educacional. KEY WORDS: Nursing; Informatic; educational technology. PALABRAS CLAVE: Enfermería; Informática; tecnología educativa.

Recebido para publicação em 15/05/03. Aprovado para publicação em 27/05/03.

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TESES

Aprendizagem Baseada em Problemas na Faculdade de Medicina de Marília: sensibilizando o olhar para o idoso Problem based learning at the Marília Faculty of Medicine: making people aware of the elderly O objeto deste estudo foi a formação do médico e a sua sensibilização para lidar com a pessoa idosa. Envolveu a análise dos olhares de estudantes de Medicina e pacientes idosos dentro da proposta de Aprendizagem Baseada em Problemas e do currículo da Faculdade de Medicina de Marília- Famema. Objetivos: Analisar a percepção de estudantes de Medicina da Famema, formados a partir de currículo apoiado na Aprendizagem Baseada em Problemas - ABP, com ênfase na formação de médicos sensibilizados para a atenção das pessoas idosas; analisar as representações de estudantes e idosos acerca do que é ser um médico sensibilizado para a questão do envelhecimento. Métodos: Foram coletados dados por meio de um questionário aplicado aos estudantes de Medicina ao final da 4ª. série, e entrevistas realizadas com pacientes idosos e estudantes ao final da 6ª. série. Empregou-se a análise temática para a inferência dos dados com a utilização de duas categorias de análise: “o estudante e a aprendizagem sobre o idoso”, e “o idoso e o médico para a pessoa idosa”. Resultados e discussão: Os olhares dos estudantes sobre sua aprendizagem ao final da 4ª. e da 6ª. séries são complementares e coincidentes. Entre as temáticas, encontramse: a abrangência e adequação da ‘Unidade 17, sobre Envelhecimento’, e sua contribuição no desenvolvimento pessoal, desempenhos e competências para aprender a aprender, saber pensar, resgatar a perda do humano em nossas vidas, e saber cuidar; a doença é mais representada no currículo do Curso de Medicina do que o doente, existindo ‘ilhas curriculares’ com uma atuação mais condizente com a atenção às necessidades dos pacientes; a ‘disease’ prepondera em muito sobre a ‘illness’; teoria e prática permanecem pouco integradas; nada substitui a prática e o

contato direto com a realidade, os problemas de papel, por melhor que sejam construídos e utilizados nas sessões de tutoria, não superam a vivência real, especialmente para o desenvolvimento de competências para saber cuidar; o reconhecimento da importância do resgate do humano na práxis médica nem sempre se manifesta na ação concreta de uma atenção integral à saúde do idoso; há ainda o preconceito em relação ao idoso, ao envelhecimento, à velhice, manifesto na forma da discriminação dessas pessoas nas unidades de saúde: um desafio a ser superado. A expectativa dos pacientes idosos é a de encontrar um médico que compreenda a representação de sua doença, a sua ‘illness’ na sua condição de vida e que, assim, desenvolva uma relação de esperança e confiança, bases da terapêutica bem sucedida, e do melhor gerenciamento de seus problemas de saúde. O olhar do idoso para o idoso e do médico para a pessoa idosa tem um componente do olhar especular, com seus reflexos que avivaram novas reflexões sobre o próprio idoso, e também o do olhar o outro, um olhar humano de quem busca auxílio, alívio e compreensão, carinho e cuidado, esperança e cura. Ricardo Shoiti Komatsu Tese de Doutorado, 2003 Faculdade de Filosofia e Ciências Universidade Estadual Paulista, Marília <komatsu@famema.br>

PALAVRAS-CHAVE: Aprendizagem Baseada em Problemas; Educação médica; Geriatria; formação. KEY WORDS: Problem Based Learning; Health Education; Geriatry; training professionals. PALABRAS CLAVE: Aprendizaje Basada en Problemas; Educación Medica; Geriatria; formación.

Recebido para publicação em 10/04/03. Aprovado para publicação em 17/04/03.

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espaço aberto

Graduação em Saúde Coletiva: antecipando a formação do Sanitarista Graduating in Public Health: anticipating the graduation of Healthcare Professionals

Carmen Fontes Teixeira 1

Introdução O Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), desde sua criação, na primeira metade dos anos 1990, colocou como parte de sua Imagem-Objetivo a criação de um curso de graduação na área, buscando antecipar a formação do sanitarista, tradicionalmente realizada por meio de cursos de pósgraduação. Os fundadores do ISC colocavam explicitamente: “Ousamos pensar que em um futuro não muito distante poder-se-á propor um curso de graduação em Saúde Coletiva, sem prejuízo dos cursos profissionalizantes em outras áreas da prática de Saúde, que também contemplam em seus currículos o ensino da Saúde Coletiva” (UFBA/ISC, 1994, p.16). Nessa perspectiva, em setembro de 2002 foi organizada uma Oficina de Trabalho, reunindo dirigentes da UFBA, representantes de Universidades, Ministério da Saúde, OPAS (Organização Panamericana de Saúde) e ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), com o objetivo de analisar a pertinência e viabilidade de criação do curso na atual conjuntura, levando-se em conta o desenvolvimento teórico-conceitual da área de Saúde Coletiva e a experiência acumulada no processo de reforma do Sistema de Serviços de Saúde brasileiro, especialmente as tendências de mudança do modelo de atenção à saúde e as demandas do mercado de trabalho no setor (UFBA/ISC, 2002). Os debates travados durante a Oficina conduziram à conclusão de que é oportuno avançar na elaboração do projeto político-pedagógico do curso, bem como ampliar a reflexão em torno da pertinência de sua implantação, não só na UFBA, mas em outras instituições de ensino superior no país. Desse modo, o ISC tratou de elaborar um desenho preliminar do projeto do curso, que vem sendo apresentado em eventos da área, a exemplo do recente Congresso da Rede UNIDA, em Londrina, e do Congresso da ABRASCO, visando ampliar o debate e colher subsídios para o aperfeiçoamento da proposta. Justificativa para a criação do curso de graduação em Saúde Coletiva A Saúde Coletiva, campo de saberes e práticas de caráter transdisciplinar, toma por objeto de conhecimento e intervenção a Saúde, entendida tanto como estado de saúde em sua dimensão populacional, coletiva, quanto como política e práticas voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde de indivíduos e grupos da população (UFBA/ISC, 1994). A reconceitualização do objeto das práticas de Saúde

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Professora, Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, ISC/UFBA. <carment@terra.com.br>

TRAJANO SARDENBERG

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ESPAÇO ABERTO

Coletiva e a reflexão epistemológica sobre o conceito de saúde impõem a redefinição dos processos de trabalho, a reconfiguração do agente-sujeito e, por conseguinte, demandam transformações no âmbito da formação dos profissionais que atuam neste campo (Paim, 2002). A formação em Saúde Coletiva tem ocorrido basicamente sob duas modalidades: por meio de disciplinas inseridas nos currículos de diversos cursos da área de Saúde (Medicina, Odontologia, Enfermagem, Nutrição, Psicologia, Serviço Social, entre outras) e, em um sentido mais pleno, pelo ensino no âmbito da pós-graduação: latu senso e strictu senso. No ensino das disciplinas de Saúde Coletiva no contexto da graduação na área de Saúde, as competências adquiridas são limitadas, além de subalternas ao modelo médico hegemônico que estrutura as práticas educativas nessas instituições de ensino (Paim, 2002). Observa-se, portanto, a carência de uma formação interdisciplinar no nível de graduação orientada para a Saúde (e não pela doença), capacitando profissionais para atuar na Promoção da Saúde (e não na prevenção e tratamento de doenças). No que tange à pós-graduação, verifica-se a existência de uma formação demasiado longa e socialmente custosa. Na maioria das vezes, os cursos oferecidos desviam-se do perfil esperado para este nível de formação, convertendo-se em um curso básico que prepara profissionais para atuar em Saúde Coletiva, tentando corrigir as deficiências acumuladas na graduação, na qual se gastou um tempo extraordinário com o ensino de disciplinas/conteúdos que não trazem qualquer contribuição para a formação do profissional que atuará neste campo (Paim, 2002). Um curso de graduação em Saúde Coletiva teria a vantagem de reduzir o tempo de formação deste profissional, sem prejuízo da formação pós-graduada. Ao contrário, o ensino da Saúde Coletiva na pós-graduação seria beneficiado ao constituir efetivamente uma modalidade de qualificação avançada e mais específica, sem prejuízo para o ensino da Saúde Coletiva nas demais áreas da Saúde, uma vez que não haveria superposição competitiva deste profissional com as atribuições específicas das demais profissões da área. A inserção dos profissionais formados em Saúde Coletiva no processo de trabalho no âmbito das instituições de saúde evidencia a constituição de relações de complementariedade com as demais profissões do setor Saúde, sem prejuízo da especificidade e identidade do campo de atuação de cada profissional. Perfil do egresso e desenho curricular do curso de graduação em Saúde Coletiva A graduação em Saúde Coletiva implica a antecipação da formação do “sanitarista”, cujo perfil, segundo o projeto pedagógico em construção, contemplará um conjunto de competências gerais e específicas: análise e monitoramento da situação de saúde; planificação, programação, gestão e avaliação de sistemas e serviços de saúde; promoção da saúde e prevenção de riscos e agravos à saúde; gerenciamento de processos de trabalho coletivo em saúde; ética em Saúde Coletiva. Para cada uma dessas áreas temáticas foi construída uma matriz de competências que se desdobra na identificação dos conteúdos e das atividades teóricas e práticas a serem desenvolvidas pelos alunos e docentes (Aquino & Medina, 2002). O curso terá a duração de quatro anos, sendo os três primeiros dedicados ao aprendizado dos conteúdos básicos do campo estruturados pedagogicamente em torno das atividades práticas, que terão como eixo o processo de Análise da Situação de Saúde - ASIS – Planejamento e Gestão de intervenções em saúde – Avaliação de Políticas, Programas e Sistemas de Serviços de Saúde. Desse modo, o desenvolvimento das atividades práticas, em

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ESPAÇO ABERTO

“cenários” previamente definidos em conjunto com a Residência em Saúde da Família, seguirá a lógica do processo de produção de conhecimentos (ASIS) sobre a problemática de saúde da população e do processo de planejamento, intervenção e avaliação das ações de promoção da saúde (controle de determinantes), proteção e vigilância (controle de riscos e danos), e reorganização da assistência médicohospitalar, principalmente no âmbito da “atenção básica” à saúde em nível local (Distritos-Sanitários e Sistemas Municipais de Saúde). O último ano será dedicado à habilitação em áreas específicas do campo da Saúde Coletiva, oferecidas de acordo com a disponibilidade existente no ISC, em função de suas linhas de pesquisa e intervenção, quais sejam: Análise da Situação de Saúde, Planejamento e Gestão em Saúde, Avaliação de Sistemas e Serviços de Saúde, Avaliação de Tecnologias em Saúde, Doenças Transmissíveis e Nutrição, Saúde da Mulher, Saúde do Trabalhador, Saúde Mental e Saúde da Família. A estratégia de implantação do curso prevê o oferecimento de duas turmas de trinta alunos (uma diurna e outra noturna), o que deverá implicar a ampliação do corpo docente do ISC envolvido diretamente com esta modalidade de formação. Seguindo a estratégia adotada em vários outros cursos desenvolvidos pelo ISC, está prevista a organização de “Oficinas Pedagógicas” no início e durante a implantação dos diversos períodos do curso, com a finalidade de desenvolver a programação operativa, de modo flexível e adaptado às condições institucionais, tanto no âmbito acadêmico quanto no dos serviços que se constituirão em campo de prática dos alunos. Problematizando a criação do curso de Graduação em Saúde Coletiva: debate atual A análise de viabilidade de implantação deste curso indica a existência de aspectos favoráveis relativos ao contexto sócio-sanitário e político institucional em nível nacional, em função das tendências da política de Saúde e do processo de reforma do Sistema Público de Serviços de Saúde em todo o país, e também em nível local, tendo em vista a conjuntura favorável no âmbito da UFBA. No momento evidenciase uma enorme demanda por profissionais de nível superior capacitados para consolidar a Reforma Sanitária Brasileira, integrando equipes para a administração do SUS, em diversas modalidades de atuação (gestão de sistemas locais de saúde, gestão de unidades de saúde, administração de custos e auditoria, gestão de informação, gestão de recursos humanos em saúde). Soma-se a isto o fato de que o fortalecimento dos processos de reorientação do modelo de atenção, com ênfase na proposta de Promoção e Vigilância da Saúde, precisa ser respaldado pela formação de profissionais de Saúde Coletiva capazes de assumir os desafios dessa transformação (Teixeira & Paim, 2002). Sobre o mercado de trabalho para o profissional graduado em Saúde Coletiva, o cenário descrito permite antever uma demanda no setor público (demanda em expansão a curto, médio e longo prazo), no setor privado (na administração de sistemas e serviços de Saúde) e no “terceiro setor”, na medida em que avance a mobilização das Organizações Não Governamentais na defesa e proteção da saúde. Especialmente no âmbito do SUS, cabe destacar a possibilidade de inserção dos egressos no âmbito político-gerencial e no técnico-assistencial, na medida em que os profissionais de Saúde Coletiva podem se responsabilizar pelas práticas de formulação de políticas, planejamento, programação, coordenação, controle e avaliação de sistemas e serviços de saúde, bem como contribuir para o fortalecimento das ações de promoção da saúde e das ações de vigilância ambiental, sanitária e epidemiológica, além de participarem de outras ações estratégicas para a consolidação do processo de mudança do modelo de atenção.

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ESPAÇO ABERTO

Semeando, hoje, as sementes do amanhã Em que pesem esses fatores favoráveis, percebe-se a preocupação por parte de alguns quadros dirigentes do setor quanto à possibilidade da criação do curso “esvaziar” de certo modo, o esforço de expansão e consolidação do ensino da Saúde Coletiva nos diversos cursos da área de Saúde, perspectiva que se encontra reforçada pela implementação das Novas Diretrizes Curriculares. Pelo exposto, pensamos que, ao contrário, a criação do curso de graduação em Saúde Coletiva significará um reforço ao movimento de mudança no ensino das profissões de Saúde, contribuindo para a acumulação de experiências pedagógicas inovadoras, “nós” da rede de cursos, núcleos e instituições que apostam na formação de sujeitos capazes de contribuir para que o futuro da política e do sistema de Saúde contemple a superação dos problemas atuais e a efetivação de princípios e valores consentâneos com a promoção da saúde e do bem-estar coletivos.

Referências bibliográficas AQUINO, R.; MEDINA, M. G. Perfil e competências do profissional de Saúde Coletiva. Salvador: ISC/UFBA, 2002. PAIM, J. S. O objeto e a prática da Saúde Coletiva: o campo demanda um novo profissional? Salvador: ISC/ UFBA, 2002. TEIXEIRA, C, F.; PAIM, J. S. Conjuntura atual e perspectivas da formação de recursos humanos para o SUS. In: SEMINÁRIO NACIONAL DA REDE UNIDA, 2002, Londrina. Relatório ... Londrina, 2002. s/p. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA . UFBA/ISC. Documentos básicos. Salvador: ISC/UFBA, 1994. UFBA/ISC. Graduação em Saúde Coletiva: pertinência e possibilidades. In: SEMINÁRIO E OFICINA DE TRABALHO, 1., 2002, Salvador. Relatório final... Salvador, 2002. s/p.

The work presents in general terms the political and teaching project for the implementation of a graduate course in Public Health at the Bahia Federal University, presided over by the Public Health Institute. It contains the main arguments justifying the setting up of the course and describes the expected profile of the graduates and the suggested design of the curriculum, ending with a feasibility study for implementation of the course, taking account of the present circumstances and political tendencies in healthcare and the qualification of healthcare professionals in Brazil. KEY WORDS: Public Health; graduate course; teaching project. O trabalho apresenta, em linhas gerais, o projeto político-pedagógico para a implantação de um curso de graduação em Saúde Coletiva na Universidade Federal da Bahia, sob responsabilidade do Instituto de Saúde Coletiva. Contém os principais argumentos que justificam a criação do curso e descreve o perfil esperado dos egressos e o desenho curricular proposto, concluindo com uma análise da viabilidade de implantação do curso, levando em conta a conjuntura atual e as tendências da política de Saúde e da formação de pessoal em Saúde no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Pública; graduação; projeto pedagógico. El trabajo presenta, en líneas generales, el proyecto político-pedagógico para la implantación de un curso de graduación en Salud Colectiva en la Universidade Federal da Bahia, bajo responsabilidad del Instituto de Salud Colectiva. Contiene los principales argumentos que justifican la creación del curso y describe el perfil esperado de los egresados y el modelo curricular propuesto, concluye con un análisis de la viabilidad de implantación del curso, tomando en cuenta la coyuntura actual y las tendencias de la política de salud y de la formación de personal para la salud en Brasil. PALABRAS CLAVE: Salud Colectiva; graduación; proyecto pedagógico. Recebido para publicação em 02/07/03. Aprovado para publicação em10/07/03.

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Graduação em Saúde Coletiva: notas para reflexões* Graduating in Public Health: notes for reflection

Paulo Eduardo Elias 1

A idéia destas anotações decorreu das discussões ensejadas pelo I Seminário/ Oficina de Trabalho Graduação em Saúde Coletiva: pertinência e possibilidades , realizado pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia no final de 2002. Posteriormente, o convite para participar em mesa redonda do V Congresso Nacional da Rede Unida praticamente me impôs a sistematização de algumas questões como subsídio ao debate sobre a conveniência de criação de um curso de graduação na área de Saúde Coletiva. O termo graduação é relativamente geral e impreciso. Derivado do latim gradus, graduação se refere a grau, substantivo masculino que significa passo, medida, hierarquia e intensidade (e devemos reter estes dois últimos significados), disseminado na língua portuguesa no século XVI (Cunha, 1994). Segundo Houssais (2001), graduação comporta seis significados, dentre eles: curso de nível universitário; faculdade; bacharelato; terceiro grau; conclusão de curso de terceiro grau; formatura. Portanto, é lícito supor que o núcleo do termo graduação diz respeito à profissionalização ou à formação de profissionais, neste caso em Saúde Coletiva. Já a profissão envolve a necessidade de um campo de conhecimentos e/ou de práticas socialmente requeridos nos quais os indivíduos preparam-se para exercê-los ou não. A Saúde Coletiva se conforma como campo de conhecimentos e de práticas e, portanto, preenche os requisitos formais para a formação em graduação e a correspondente profissionalização. No entanto, é necessário verificar com mais atenção a suficiência de tais requisitos. Segundo autores como Minayo (2002), Paim & Almeida Filho (2000), Cohn & Nunes (1988), Luiz (1997), Mendes-Gonçalves (1994), Laurell (1983), Nunes (1983), uma das particularidades da Saúde Coletiva reside em seu caráter interdisciplinar. A Saúde Coletiva pode ser considerada como um campo de conhecimento de natureza interdisciplinar cujas disciplinas básicas são a Epidemiologia, o Planejamento/Administração de Saúde e as Ciências Sociais em Saúde (Paim & Almeida Filho, 2000, p.63). A elas, mais contemporaneamente, pode-se contemplar a desagregação das Ciências Sociais em Ciência Política, Sociologia e Antropologia ao lado das Ciências Ambientais e da Genética. Como afirma Garcia (apud Paim & Almeida Filha, 2000, p.70) o objeto da Saúde Coletiva é constituído nos limites do biológico e do social e compreende a investigação dos determinantes de produção social das doenças e da organização dos serviços de saúde e o estudo da historicidade do saber e das práticas sobre os mesmos . *

Apresentado no V Congresso Nacional da Rede Unida, Londrina, maio de 2003.

Professor, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, FMUSP; Pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). <pemelias@usp.br>

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ESPAÇO ABERTO

Como campo de conhecimentos, a Saúde Coletiva requer a contribuição específica das disciplinas biológicas e sociais e a participação dos profissionais destas áreas. Aí reside uma peculiaridade epistemológica desse campo de saber, que confere a ele riqueza intelectual no sentido da universalidade do conhecimento, na melhor tradição iluminista. A par disto, o desenvolvimento científico e tecnológico impõe desafios para a Saúde Coletiva, de modo a promover a ampliação das suas tarefas (Minayo, 2002), requerendo-se graus de especialização diversos nas suas práticas para fazer frente a temas como os da prevenção de doenças infecciosas e não infecciosas, promoção da saúde, melhoria da assistência à saúde e readaptação funcional, restringindo-me, apenas, à parte dos temas apontados em documentos recentes da Organização Panamericana de Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPS/OMS, 2000). Para fazer frente ao objeto da Saúde Coletiva e aos desafios sociais colocados para a Saúde Pública, o campo de práticas também se configura interdisciplinar e, por extensão, interprofissional, abrangendo graduados de diversas formações profissionais, das áreas Biológicas, Exatas e Humanidades, tais como médicos, enfermeiros, odontólogos, engenheiros, sociólogos, antropólogos, assistentes sociais, entre outros. Segundo Donnangelo (apud Paim & Almeida Filho, 2000, p.70), a Saúde Coletiva se configura como conjunto de saberes que dá suporte às práticas de distintas categorias e atores sociais face às questões de saúde/doença e da organização da assistência . Contudo, a Saúde Coletiva encontra seus limites e possibilidades nas inflexões da distribuição do poder no setor saúde, numa dada formação social (Paim & Almeida Filho, 2000). Neste sentido, a despeito das possibilidades abertas pelas recentes mudanças no poder político do país, a prática em saúde segue o modelo tradicional condicionado ao Biologismo e à submissão à Clínica, numa situação em que se intenta estruturar um sistema de saúde que garanta acesso universal à assistência médica como necessidade social amplamente sentida e, também, às ações de promoção e proteção à saúde que, ao lado das de gerenciamento, compõem o cuidado à saúde. O mercado de trabalho vigente passa ao largo dos novos desafios e práticas colocados ao Campo da Saúde Coletiva. E mais: tende a desqualificar os profissionais formados nesta área, tal como ocorre com os egressos dos Programas de Residência em Medicina Preventiva e Social (os poucos que ainda subsistem) e dos Programas de Aprimoramento e Especialização em Saúde Coletiva. Isto ocorre, sobretudo, na medida em que grande parte dos concursos públicos realizados por Estados e Municípios para as áreas/atividades relacionadas à Saúde Coletiva não exige a habilitação específica como em outras áreas. Pelo contrário, muitas vezes servem para aprovar candidatos, em grande parte médicos, sem nenhuma formação no campo e que, na melhor das hipóteses, se (in)capacitam em serviço, a partir da reprodução de práticas e procedimentos que tradicionalmente mostram-se insuficientes e/ou inadequados para enfrentar as inúmeras iniqüidades do sistema de saúde. Considerando a especificidade da relação Estado/Saúde Pública por referência às demais áreas profissionais, vale atentar que a implementação de um programa de Graduação em Saúde Coletiva não deve ser apenas de iniciativa do Aparelho Formador, como se apresenta até o momento. Antes, para se tornar uma iniciativa socialmente virtuosa, exige o diálogo com os gestores de saúde, principalmente do âmbito municipal, no sentido de verificar a possibilidade de alterar as lógicas e práticas de saúde vigentes para o delineamento de um perfil de profissional condizente com a efetivação da assistência em saúde contemporânea aos desafios

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ESPAÇO ABERTO

políticos e sociais deste tempo. Nunca é demasiado recuperar lições exitosas do passado, como a apresentada pelo Professor Walter Sidney Pereira Leser, nos idos de 1970. Então Secretário de Estado da Saúde de São Paulo, ele implementou uma grandiosa reforma no setor Saúde (já não sem tempo), promoveu a incorporação da assistência médica à rede estadual de Centros de Saúde e a correspondente criação da carreira de Médico Sanitarista liderando, com inequívoco sucesso, esse processo de reformulação. Esta cara lembrança, entre outras da Saúde Pública que poderiam ser citadas em diversos locais do país, sublinham que o primeiro compromisso de um novo curso com os jovens alunos deve ser o de possibilitar trabalho ao final da graduação, pois o Brasil não pode continuar se dando ao luxo de formar profissionais para que o mercado de trabalho os desqualifique num círculo de ferro de enorme desperdício de recursos sociais e, porque não dizer, de talentos individuais e das melhores esperanças de uma juventude socialmente generosa e engajada na construção de uma sociedade menos desigual.

Referências COHN, A.; NUNES, E. D. A pós-graduação em Saúde Coletiva: mestrado e doutorado. Est. Saúde Col., n.5, p.15-26, 1988. CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. OPS/OMS. Desafíos para la Educación en Salud Pública: la reforma sectorial y las funciones essenciales de Salud Pública. Washington (D.C.): OPS, 2000. LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social. In: NUNES, E. D. (Org.). Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global Ed., 1983. p.133-158. MENDES-GONÇALVES, R. Tecnologia e organização social das práticas de Saúde. São Paulo: Hucitec/Abrasco, 1994. MINAYO, M.C.S. Editorial. Cienc. Saúde Col., v.7., n.1, p.4, 2002. NUNES, E. D. (Org.). Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global Ed., 1983.

FAJARDO, Construção

PAIM, J.; ALMEIDA FILHO, N. A crise da Saúde Pública e a utopia da Saúde Coletiva. Salvador: Casa da Qualidade Editora, 2000.

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ESPAÇO ABERTO

The work summarizes the author’s participation in the round table of the 5th United Network Congress. The subject that the emerges is graduating in Public Health, submitting interdisciplinarity in the field as an assumption and emphasizing the need for initiatives in this context not to be confined to the source but to associate with the possibilities opened up by the labor market through dialogue with service managers, in particular in the municipal field. KEY WORDS: O trabalho sintetiza a participação do autor em mesa redonda do V Congresso da Rede Unida. Trata do tema emergente sobre graduação em Saúde Coletiva, apresentando como pressuposto sua interdisciplinaridade como área e ressaltando a necessidade de que iniciativas nesse sentido não se restrinjam ao aparelho formador, mas vinculem-se às possibilidades abertas pelo mercado de trabalho por meio do diálogo com gestores de serviços, principalmente do âmbito municipal. PALAVRAS-CHAVE: El trabajo sintetiza la participación del autor en la mesa redonda del V Congreso de la Red Unida. Trata del tema emergente sobre graduación en Salud Colectiva, presentando como presupuesto su interdisciplinaridad como área y resaltando la necesidad de que iniciativas en ese sentido no se restrinjan al aparato formador, sino que se vinculen a las posibilidades abiertas por el mercado de trabajo por medio del diálogo con gestores de servicios, principalmente del ámbito municipal. PALABRAS CLAVE:

Recebido para publicação em 07/07/03. Aprovado para publicação em14/07/03.

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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v7, n13, p.167-70, ago 2003


criação

Sensibilizando nossos olhares

*

Ricardo Shoiti Komatsu 1

As diferentes representações formuladas, interpretadas, advindas do imaginário, de imagens percebidas por olhares diversos que buscam um sentido, são construídas segundo ópticas particulares de vida e do mundo de indivíduos, grupos, comunidade, ou classes. Os feixes de luz que atravessam o prisma do imaginário e representação refratam, então, a alteridade e o multiculturalismo.

Uma lente não é igual a outra. As lentes variam entre si: côncavas, convexas, planas, assim como variam também as pessoas que as utilizam. Em muitas situações podemos querer ver sem enxergar (tudo), ou enxergar sem ver... depende da distância, da luminosidade, do foco, da abertura da lente, da velocidade da exposição, do enquadramento, e da sensibilidade de cada olhar.

VIK MUNIZ, Paparazzi ,1998

O desvelar e o entrecruzar de olhares impõem-se como desafio para a compreensão do homem e do humano...

As lentes do olhar filtram, de acordo com os paradigmas culturais, as luzes, cores, matizes, tons... e nós, quase sempre, instigados pela curiosidade, buscamos sentidos e significados: uma interpretação, que se harmoniza, ou não, com outra interpretação...

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Texto produzido a partir de KOMATSU, 2003.

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Professor e diretor de Graduação da Faculdade de Medicina de Marília. <komatsu@famema.com.br>

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CRIAÇÃO

Olhar artístico... De quem compreende na arte não somente uma pura e fiel representação da realidade, mas do olhar que cria e recria: estiliza e reconstrói, e com novas formas e luzes, projeta uma imagem irreal a ser alcançada pelo nosso olhar.

Tarsila

TARSILA DO AMARAL, Auto-retratos

Toda gente é interessante se a gente souber ver toda a gente. Que obra-prima para um pintor possível em cada cara que existe! Que expressões em todas, em tudo! Que maravilhosos perfis todos os perfis! Vista de frente, que cara qualquer cara! Os gestos humanos de cada qual, que humanos os gestos! Fernando Pessoa (2002, p.232)

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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v7, n13, p.171-6, ago 2003


CRIAÇÃO

Depus a máscara e vi-me ao espelho... Era a criança de há quantos anos... Não tinha mudado nada É essa a vantagem de saber tirar a máscara. É-se sempre a criança. O passado que fica, A criança. Depus a máscara, e tornei a pô-la. Assim é melhor. Assim sou a máscara. E volto à normalidade como a términus de linha. Álvaro de Campos (Pessoa, 2002, p.467)

REMBRANDT HARMENSZ VAN RIJN, Auto-retrato, 1660

Rembrandt

Dos mais de cem auto-retratos... neste, Rembrandt parece descrever-se envelhecendo... em declínio... desacreditado, oito ou nove anos antes de sua morte. (Ricoeur, 1996)

Tornar-se idoso é como uma travessia de um rio de margens imprecisas. Um processo que toma parte considerável da vida. Não se fica idoso de um dia para outro. Ser idoso não se resume a algo convencionado, como completar os sessenta anos num país em desenvolvimento, ou 65 anos num país desenvolvido, pois a idade cronológica não traz uma correspondência obrigatória com as fases do envelhecimento biológico ou social. No imaginário e na representação individual do idoso, ele observa, constata e reflete sobre o seu próprio envelhecer, o seu “ser idoso”, e manifesta este sentimento em simples gesto, atitude ou palavra, ou de formas complexas, com manifestações mais elaboradas envolvendo, por exemplo, mente-corpo, saúde-doença...

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CRIAÇÃO

GERRIT DOU, Old woman reading a lectionary (Rembrandt’s mother), 1630, Rijksmuseum, Amsterdam

Olhar o idoso Na representação do pupilo Gerrit Dou, a mãe de Rembrandt teria seus cinqüenta e poucos anos... Nos idos 1600 já seria considerada idosa? Depende do exercício do olhar, do imaginário e da representação, num exame da vida e da pintura. Olhar de perto. Com detalhes...

SIR LUKE FILDES, The doctor, 1891, Tate Britain, London

O olhar médico...

dirige-se ao que há de visível na doença, mas a partir do doente, que oculta este visível, mostrando-o; conseqüentemente, para conhecer, ele deve reconhecer. E este olhar, progredindo, recua, visto que só atinge a verdade da doença, deixandoa vencê-lo, esquivando-se e permitindo ao próprio mal realizar, em seus fenômenos, sua natureza. (Foucault, 1998, p.6)

Olhar a doença, ou o “mal”, e cegar-se à pessoa de cada paciente. Este distanciamento do humano em cada enfermo seria um vício de refração do olhar médico?

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CRIAÇÃO

Olhar do paciente... Olhar de súplica de quem busca auxílio para superar a dor, a angústia, o sofrimento. Olhar de quem busca alívio e compreensão, carinho e cuidado, esperança e cura. Olhar impaciente. De quem não suporta mais aguardar. Para quem a espera inquieta, remonta fatos atuais e pregressos: fracassos, perdas, crises, doenças.

Olhar do cuidador... Olhar sereno de quem cuida, reconhece e respeita as potencialidades e os limites do cuidado com o outro. Olhar desesperado de quem não alcança esta dimensão “limite” do cuidado. Relação assimétrica de doar-se a quem necessita de cuidados, de superar o sentimento de compaixão, transformando-o numa ação concreta, em benefício de alguém. Vícios deste olhar limitam a potencial atuação do cuidador.

JAN STEEN, The lovesick maiden, 1660, Metropolitam Museum of Art, New York

Olhar do estudante... De quem busca ativamente, instigado pela curiosidade epistêmica, novos saberes, desempenhos, atitudes, competências.

Olhar do educador Olhar de mudança, transformação. Olhar de quem re-conhece o educando. Humaniza suas relações, promove, facilita, orienta a aprendizagem de cada partícipe do processo educativo. JAN STEEN, The drawing lesson, 1665, J.P. Getty Museum, Los Angeles

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CRIAÇÃO

Os olhares são um movimento de ir e vir. Uma via de dupla mão. Quando cruzam, e encontram-se, interagem. Vagam na imaginação, voltam à realidade, representam. E, mudando a visão, dão movimento ao interior (imaginário) e exterior (representação). Mundos interno e externo que conversam e, ao travar este diálogo, impulsionam mente e corpo, integrados numa nova práxis... Não há olhar definitivo. Os olhares são sempre provisórios: apreendem a realidade num momento, filtramna com as lentes de agora e, quando alteram uma trajetória de conduta importante na vida, promovem uma aprendizagem significativa...

De todo lo que he visto y vivido han salido las imágenes que atraviesan mi pintura. De tantos dolores de una época turbulenta prefiero pensar en las luces que surgen de los gestos generosos, de los actos solidarios de tantos que buscan y se baten por la verdad. Creo que los artistas que serán recordados son aquellos que dejen como testimonio de nuestro tiempo no sólo el grito de la parturienta sino el brillo de la mirada del niño. José Venturelli, 1978

JOSÉ VENTURELLI, Mujer y Nino, 1988

Quando sensibilizam-se para novas leituras e resignificações re-estabelece-se a dinâmica da vida...

Referências FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. KOMATSU, R. S. Aprendizagem baseada em problemas na Faculdade de Medicina de Marília: sensibilizando o olhar para o idoso. 2003. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília. PESSOA, F. Poesia: Álvaro de Campos. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. RICOEUR, P. Sobre um auto-retrato de Rembrandt. In: RICOEUR, P. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996. p.13-5. VENTURELLI, J. Museo virtual José Venturelli. Disponível em: <http://www.joseventurelli.cl>. Acesso em 05 abr. 2003.

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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v7, n13, p.171-6, ago 2003

KOMATSU, R. Making our approach one of awareness, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.7, n.13, p.171-6, 2003. PALAVRAS-CHAVE: Educação Médica; formação profissional; Geriatria. KEY WORDS: Health Education; training professionals; Geriatry. PALABRAS CLAVE: Educación Medica; Geriatria; formación profesional.

Recebido para publicação em 10/04/03. Aprovado para publicação em 27/06/03.






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