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Interface 10 Comunicação, Saúde, Educação v.6, n.10, 2002 APRESENTAÇÃO

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DEBATES 75 O agente comunitário de saúde e suas atribuições:

DOSSIÊ sobre ensino da profissão

os desafios para os processos de formação de recursos humanos em Saúde Joana Azevedo da Silva; Ana Sílvia Whitaker Dalmaso

Por uma ética em profissão: rumo a uma nova paideia

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debatedores 84 José Batista Cisne Tomáz 88 Mário Roberto Dal Poz 91 Roberto Nogueira

Carlota Boto

A introdução das Artes nos currículos médicos

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Ricardo Tapajós

Contribuição ao movimento de mudança na formação profissional em Saúde: uma avaliação das experiências UNI

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ENTREVISTA 97 com Roberto Romano

Ética, Ciência, Universidade

Laura Feuerwerker; Roseni Sena

111 LIVROS

ARTIGOS Professores de ensino superior da área de Saúde e sua prática pedagógica

réplica 94 Joana Azevedo da Silva; Ana Sílvia Whitaker Dalmaso

115 TESES 51

ESPAÇO ABERTO

Maria Eugênia Castanho

117 Educação e Universidade: conhecimento e

Antropologia nos serviços de Saúde: integralidade, cultura e comunicação Francisco Arsego de Oliveira

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construção da cidadania Antonio Joaquim Severino 125 Pequeno guia/vocabulário para a utilização da

história arqueológica como instrumento para a análise do discurso Everardo Duarte Nunes

135 Relações com experiências limites no processo

comunicacional: uma pequena incongruência no palco do Oficina Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima

139 CRIAÇÃO


Interface Communication, Health, Education v.6, n.10, 2002 PRESENTATION

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DEBATES 75 Community health agent and his attributions:

challenges facint the training process of human health resources

DOSSIER on professional education

Joana Azevedo da Silva; Ana Sílvia Whitaker Dalmaso

In favor of professional ethics: in search of a new paideia

9

Carlota Boto

Introducing the arts into medical curricula

27

Ricardo Tapajós

A contribution to the movement for change in professional healthcare education: an assessment of the UNI experiences

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reply 94 Joana Azevedo da Silva; Ana Sílvia Whitaker Dalmaso

INTERVIEW 97 with Roberto Romano

Ethics, Science, University

Laura Feuerwerker; Roseni Sena

111 BOOKS

ARTICLES University level professors and their pedagogical practice in the healthcare area

debaters 84 José Batista Cisne Tomáz 88 Mário Roberto Dal Poz 91 Roberto Nogueira

115 THESES 51

OPEN SPACE

Maria Eugênia Castanho

117 Education and universities: knowledge and the

Anthropology in healthcare services: integrality, culture and communication Francisco Arsego de Oliveira

63

construction of citizenship Antonio Joaquim Severino 125 A small guide/glossary for the use of archeological

history as a qualitative research instrument Everardo Duarte Nunes 135 Relations with borderline experiences in the process

of communication: a smal incongruence on the stage of the Oficina Theatre Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima

139 CREATION


APRESENT AÇÃO APRESENTAÇÃO

Desde a publicação do primeiro número, Interface - Comunicação, Saúde, Educação pretende ocupar um espaço temático comprometido com a discussão e reflexão sobre os problemas da formação da profissão e das práticas que envolvem o campo da Saúde, procurando inovar ao mesmo tempo por seu tema multidisciplinar e por sua forma hipertextual. Com uma significativa incursão nos espaços acadêmicos, marcados por critérios avaliativos e padrões de indexação definidos, a revista, com uma percepção crítica de sua trajetória, tem revisto constantemente seu projeto inicial, orientando-se por critérios de qualidade referenciados pela comunidade científica, sem abrir mão de sua identidade. Em sua décima edição e como nas anteriores, Interface traz, na imagem de abertura, uma metáfora que orienta a leitura, sinalizando caminhos sobre as múltiplas dimensões da formação e do ensino da profissão: ética, estética, antropológica e técnico-política. O tema da formação perpassa quase todas as seções da revista que traz, ainda, sinalizações para o campo da pesquisa e das práticas em Saúde. Está presente na entrevista com Roberto Romano nas reflexões instigantes sobre ética, moral, universidade... Atravessa a seção Livros nas idéias de Chauí. Permeia o debate sobre agentes comunitários e expressa-se na sensibilidade do ensaio fotográfico de um grupo de profissionais ao construir um novo olhar sobre seus espaços de vida, agora espaços de trabalho. Comparece no Espaço Aberto que nos brinda também com uma curiosa reflexão sobre comunicação em situações complexas, problematizando os limites de nossas proposições de diálogo, abertas à construção com o outro. Editores

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PRESENT ATION PRESENTA

Since its first issue was published, Interface’s objective has been to occupy a thematic space committed to discussion of and reflection on the problems of professional training and the practices that involve the field of Healthcare, as it attempts to innovate both through its multidisciplinary approach and through its hypertextual format. With its significant incursions into academic areas, marked by evaluative criteria and defined standards of indexation, the magazine, thanks to a critical perception of its evolution, has revised its original project on an ongoing basis, being guided by quality criteria supported by the scientific community, but without giving up its own identity. In its 10th edition, as in the preceding ones, Interface’s opening image is a metaphor that can guide its reading, signaling paths across the multiple dimensions of professional training and teaching: ethical, esthetic, anthropological and technical-political. The theme of education and training permeates almost all the sections of the magazine, which carries, furthermore, indications concerning the field of Healthcare research and practices. This is present in the interview with Roberto Romano, in the instigating thoughts on ethics, moral and universities... It pervades the Books section in Chauí’s ideas. It can be found in the debate on community agents and also expresses itself in the sensibility of the photography of a group of professionals constructing a new look on their lifespaces, now their workspaces. It is present in the Open Space, which also provides us with interesting thoughts on communication in complex situations, discussing the problems of the limits of our dialogue propositions, open to construction with others. The Editors

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Por uma ética em profissão: rumo a uma nova paideia

Carlota Boto

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BOTO, C. In favor of professional ethics: in search of a new paideia, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.9-26, 2002.

This article discusses the current nature of the concept of paideia, in the light of the interweaving between the original Greek frame of reference and the operative category of what we will call, in this article, “professional ethics”. It is a study that intends to formulate guidelines for thinking about the themes of teaching and learning, methodologically, starting from the idea of interdisciplinary studies. This will allow us to recompose the art of pedagogical thinking, avoiding the fragmented specializations of this field, but including in it its chief ethical aspects. We believe that, in this way, it will be possible to establish a new and modern paideia, for contemporary teachers and students in the third millenium. KEY WORDS: paideia (a Greek work, not translated); education; professional ethics; learning; teaching.

O presente artigo procura discutir a atualidade do conceito de paideia, à luz do entrelaçamento entre o original referente grego e a categoria operatória do que aqui nomeamos uma “ética em profissão”. Trata-se de um estudo que busca formular algumas diretrizes para se pensar o tema do ensino e do aprendizado, metodologicamente partindo da acepção de interdisciplinaridade. Assim, poder-se-á, fugindo das fragmentárias especializações do campo, recompor a arte do pensamento pedagógico, incluindo nela seus essenciais aspectos éticos. Desse modo, supomos possível estabelecer para professores e estudantes contemporâneos desse terceiro milênio uma nova e moderna paideia. PALAVRAS-CHAVE: Paideia; educação; ética profissional; aprendizagem; ensino.

Professora do Departamento de Ciências da Educação, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista/Unesp/Campus de Araraquara. <carlotaboto@uol.com.br>

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CARLOTA BOTO

“Não serei o poeta de um mundo caduco Também não cantarei o mundo futuro Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças Entre eles considero a enorme realidade O presente é tão grande, não nos afastemos Não nos afastemos muito .... .....O tempo é minha matéria O tempo presente, Os homens presentes, A vida presente.” (Carlos Drummond de Andrade, Mãos dadas)

O termo paideia, carregado como é da perspectiva de unidade cultural, procura traduzir práticas pedagógicas que, na Grécia Clássica, vinham pela confluência. A paideia era, então, essencialmente o entrelaçamento da formação humana, da idéia do florescimento de uma cultura ampla e tida por geral, dos sentidos da civilização e do referente educativo. Paideia consistia, para o mundo grego, um dado ideal do cultivo e da conduta: instrução, educação, capacidade para aprender, talento para repartir o aprendizado e multiplicá-lo, curiosidade intelectual, desejo de saber e de comungar do saber com o outro. Nada mais próximo da profissão professor (Nóvoa,1991); nada mais condizente com a vocação do educador. Buscar a paideia era, para os antigos gregos, procurar algo do homem em sua pretendida essência; era construir um discurso que engendrasse a utopia da aretai: conceito grego relativo às virtudes da polis clássica: “bravura, ponderação, justiça e piedade” – quando se tratasse da alma; “saúde, força e beleza”, quando se compreendia o físico (Jaeger, 1995, p.534). Da idéia da aretai derivaria o conceito de paideia, que, nos termos de Jaeger, coincidia com uma dada propensão da alma, um certo desenvolvimento do espírito, a ser atingido mediante ideal de formação humana posto no entrecruzamento da “capacidade de assimilação, na boa memória e na ânsia de saber dos homens” (Jaeger, 1995, p. 558). Aretê e paideia eram noções voltadas, ambas, para a mais plena revelação da utopia. Uma utopia construída, sobretudo, com vistas à criação e ao fortalecimento dos laços entre os homens; uma utopia voltada essencialmente para o desenvolvimento de lastros de formação, capazes de conferir a máxima dignidade à condição de homens livres, e por isso homens de ação para a esfera pública. Como se sabe, Sócrates, em sua procura incessante de um verdadeiro mestre que jamais encontraria, recusa o conceito tradicional da virtude da polis. Andarilho da incerteza, descobre sempre bons especialistas em campos distintos do conhecimento especializado. Nas palavras de Jaeger (1995, p.557), o filósofo conferia as grandes pretensões dos outros por um conceito novo de paideia, que o faz[ia] duvidar da legitimidade daqueles, mas que leva[va] em

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consideração que nem sequer este conceito novo correspond[ia] ao seu ideal. E através dessa ironia socrática descobre-se a consciência da missão da verdadeira educação e da magnitude de sua dificuldade, da qual o resto do mundo não tem a menor idéia.

Ora, se entendermos com Mannheim (1986, p.229) que “são utópicas todas as idéias situcionalmente transcendentes (não apenas projeções de desejos) que, de alguma forma possuam um efeito de transformação sobre a ordem histórico-social existente”, poderíamos situar a perspectiva de uma nova paideia como uma necessária utopia da ação educativa; o ensino como uma marca. Para tal ofício, é preciso o discernimento, a prudência e a humildade que nos oferece o preparo teórico. Para tal ofício, é preciso também uma dada inteligência prática, só com o hábito, com a experiência e com o amadurecimento adquirida: inteligência prática que nos deve possibilitar viver, com a mesma serenidade e firmeza, tanto a glória quanto a adversidade; inteligência prática que nos conduz a aprender com as nossas conquistas, mas também com os erros que invariavelmente cometemos; revelando-nos um percurso reflexivo e sempre em curso, enquanto em curso for a vida em profissão... Prática essencialmente humana, a educação tende a refletir os paradigmas e o imaginário coletivo da sociedade de onde fala, reproduzindo valores, saberes, práticas, crenças, tradições; mas também vicissitudes, incertezas, perplexidades e contradições que permeiam o tecido social. Ao tornar-se pedagogia, a educação passa a constituir objeto específico de um estudo sobre o ser humano por vir. Compreender a prática educacional supõe, portanto, contemplar um dado vir a ser, admirar-se com ele, tentar compreendê-lo e, finalmente, desvendá-lo. Na utopia da posteridade sempre em construção, o educador projeta sonhos, demarca utopias, aposta desígnios, mesclando desejo de permanência com propostas de transformação. Se compreendermos a Didática Magna de Comenius como o primeiro grande tratado moderno que, no século XVII, sublinhava o tema da educação, colocando a preocupação educativa no próprio cerne da referência do método, poderemos ler como uma das causas do atraso da instrução o seguinte: as disciplinas, que, por natureza, são conexas, eram ensinadas sem atender às suas relações mútuas, mas mantendo-as separadas. Por exemplo: àqueles que principiavam a estudar os primeiros elementos das línguas, ensinava-se apenas a ler, deixando-se para alguns meses depois o ensino da escrita (...) Embora todas essas coisas (ler e escrever, palavras e coisas, aprender e ensinar) devam ser feitas tão simultaneamente como, quando se anda, se levantam e se abaixam os pés, quando se conversa, se ouve e se responde, quando se joga a bola, se atira e se recebe, como vimos já atrás, nos seus devidos lugares. (Comênio,1957, p.274-5)

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CARLOTA BOTO

A idéia da interdisciplinaridade, se tomarmos o excerto aqui recordado estaria já, também, posta como uma tentativa moderna de substituição do perdido rumo da paideia grega. Já não podendo, entretanto, compreender o antigo termo que explicava a antiga Grécia, irrompe a Modernidade educativa, mediante a acepção de uma não nomeada interdisciplinaridade em sua Didática - inventada esta como parâmetro, referência e método, com o fito de ensinar melhor a mais gente. É de se notar que o próprio subtítulo da magna obra de Comenius revela, talvez, a utopia da paideia dos modernos: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos ou processo seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de qualquer reino cristão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a juventude de um e outro sexo, sem excetuar ninguém em parte alguma, possa ser formada nos estudos, educada nos bons costumes, impregnada de piedade, e, dessa maneira, possa ser, nos anos da puberdade, instruída em tudo que diz respeito à vida presente e à vida futura, com economia de tempo e de fadiga, com agrado e solidez (Comênio, 1957, p.43):

mais uma vez, procurar-se-ia a conjunção entre o bem, o belo e o bom... Com o paulatino fortalecimento de um moderno sentimento de infância e de família, a escola ganharia, desde o século XVII, novo lugar institucional. Havendo um aumento da procura por parte de populações urbanas e mercantis, organizam-se redes escolares, ainda que, muitas vezes, sob a égide clerical: a família delegara à escola a parcela de sua responsabilidade educativa concernente a uma dada cultura letrada – o ler, o escrever, e o contar. O território da escola é o primeiro espaço seu que a criança tem. A escola é o tempo da juventude. Na escola, as famílias deixam de ter o protagonismo, e a criança passará a lidar com um outro repertório, com outros códigos e signos de saber e de poder. A escola, em certa medida, retrata e recompõe a vida social. Por outro lado, a escola cria e produz essa mesma vida social mediante o descortinar de símbolos e de valores que são, a cada nova geração, recompostos e reatualizados. Se a escola, efetivamente, reflete a vida coletiva, essa mesma sociabilidade poderá ser sempre alterada por decisão do conjunto de seus atores sociais. A escola exerce, pois, no ser humano, o papel de adesão a valores que ele mesmo se impõe. A sociedade escolhe seu repertório e seu script; a escola talvez ensaie a peça... A sociedade e a escola são, portanto, ambas feitas por opções; por escolhas.

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POR UMA ÉTICA EM PROFISSÃO...

Desde o século XIV, a escola foi progressivamente compreendida como uma instituição para a qual a família delega parte de sua competência educativa. Portanto, espera-se que a escolarização prepare para a vida. Mas o que vem a ser, ao fim e ao cabo, essa preparação para a vida, que tanto se espera da escola? O espírito do Iluminismo aprofundaria o conceito de ensino e de aprendizado humanista, agora procurando alguma matriz de especialização. No Discurso Preliminar da grande Enciclopédia francesa do século XVIII, os editores Diderot e D’Alembert consagravam as metáforas do labirinto e da árvore para referirem-se ao sistema do entendimento humano. Nesta oscilação, quando a idéia era a da árvore, as ramificações tornavam necessárias as passagens por infinitas encruzilhadas do conhecimento. Quando, por seu turno, o saber era comparado a um labirinto, fazia-se necessário ao espírito proceder a escolhas por trajetos excludentes. O século XVIII convive, nesse pêndulo, entre duas aproximações que se enfrentavam uma à outra: o conhecimento como uma árvore complexa e o conhecimento como um labirinto intrincado. Optar pela metáfora significava, no caso, escolher uma direção, um rumo, um determinado tipo de relação com o conhecimento. Para retomarmos o texto da Enciclopédia, o sistema de nossos conhecimentos é composto de diferentes ramos, vários dos quais têm um mesmo ponto de reunião; e, como partindo do mesmo ponto, não é possível embrenhar-se ao mesmo tempo em todas as estradas, é a natureza dos diferentes espíritos quem determina a escolha. Por isso, é bastante raro que um mesmo espírito percorra ao mesmo tempo um grande número delas. No estudo da natureza, os homens esforçaram-se, a princípio, como de comum acordo, por satisfazer as necessidades mais prementes, mas quando chegaram aos conhecimentos menos absolutamente necessários, tiveram de partilhá-los e avançar cada um por seu lado com passos mais ou menos iguais. Assim, várias ciências foram, por assim dizer, contemporâneas; mas a ordem histórica dos progressos do espírito, somente podemos abarcá-las sucessivamente. (Enciclopédia, 1989, p.49)

Para o Iluminismo, as idéias da instrução, da virtude e da felicidade vinham irremediavelmente atadas. O ato pedagógico era, conseqüentemente, uma necessária ruptura. A palavra Enciclopédia continha em si a etimologia da paideia, enquanto “círculo de cultura”. Há nisso uma dimensão prospectiva de formação humana, de herança, bagagem de conhecimento adquiridos pelos antigos e de que o indivíduo poderia usar à sua vontade: (...) das disposições a cultivar, dos hábitos a desenvolver, da formação mental... O ser educado aspira a, projeta tornar-se aquilo que é, realizar a sua pessoa enquanto homem. Se, enquanto ser em transformação, pode considerar-se perfeito em cada estádio do seu desenvolvimento,

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continua imperfeito relativamente ao ser perfeitamente desenvolvido que pode realizar-se na idade madura. O enkyklopaideia é o meio de se tornar plenamente humano, de atualizar o seu prospectivo dever ser humano. (Morin, 1976, p.120)

O pacto de secularização provocado pela Revolução Francesa, os anseios pela fundação de um contrato radicalmente novo, postulado a partir de projetos de igualdade e de liberdade, vislumbrado a partir da primeira derrocada de privilégios nobiliárquicos, referenciariam as grandes bandeiras que passavam a se apresentar como emblemas da educação democrática dos tempos contemporâneos: escola única, universal, leiga, obrigatória e gratuita. A formação da escola de Estado, como política nacional privilegiada entre os séculos XIX e XX, daria substrato histórico a tal ideário. A escola se veria defendida como templo da república, artefato privilegiado para formação de almas em um novo tempo, para um novo homem, de pátrias regeneradas... A escola do século XIX postula o primado da cidadania, da ciência e da modernidade, como substratos alternativos ao princípio da religiosidade. Contudo, o mesmo século XIX é, também, o tempo das especializações. Consagra-se nele a idéia de que a ordem do saber só pode penetrar sucessivamente no espírito. Firmavam-se e vincavam-se domínios pretensamente autônomos de um conhecimento que se repartia e se separava em espaços de segregação. A separação, cada vez mais evidente, entre distintos e múltiplos territórios do saber, por um lado, estreitava a consciência; por outro, dirigia o olhar. O Foucault de Vigiar e Punir dirá que “a disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros, fechado em si mesmo” (Foucault, 1991, p.131); embora, freqüentemente os aparelhos disciplinares se valessem de outros princípios, para além da acepção de clausura: cada indivíduo no seu lugar; em cada lugar um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quantos corpos inteiros há a repartir (...) Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico. (Foucault, 1991, p.131)

No campo da pedagogia, a própria estruturação da cientificidade do objeto contribuiu para compor o quadro básico do que posteriormente passariam a se chamar “Ciências da Educação”. No campo da Medicina, a especialização dos saberes foi uma tendência progressivamente contraposta aos preceitos primeiros da sua origem hipocrática; do médico que, antes da doença, observa por inteiro o ser humano que a contraiu. O século XX percorreu o caminho progressivo e regressivo da especialização. Junto com seu apogeu, percebeu o declínio da unilateralidade dos saberes científicos e dos campos do conhecimento fracionados. Hoje, retoma-se, com bastante nitidez, o projeto multifacetado, transdiciplinar,

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que era dominante no espírito renascentista e no século XVII; o projeto enciclopédico, tão caro à cultura geral requerida pelos ilustrados do século XVIII. Em movimento cíclico, dinâmico, e até mesmo dialético, atualmente compreende-se como necessário e urgente o entretecer de saberes. Campos do conhecimento ultra-contemporâneos não podem, sequer, ser contemplados por uma única especificidade científica – qualquer que seja ela. As ciências cognitivas; o projeto genoma; as ciências da computação; os estudos ecológicos – pertencem a qual área particular do saber humano? Será, possivelmente, um novo modelo de interlocução transdisciplinar capaz de fazer dialogar inúmeros cenários do conhecimento humano pesquisado e produzido em diferentes domínios da ciência - que conquistará a curiosidade intelectual, o desejo de saber dos cientistas e da universidade de maneira geral. Academicamente, cabe propugnar, nos dias que correm, um novo encontro humanístico com o conhecimento para a descoberta de novo paradigma. Há, contudo, para tanto, cercas a serem transpostas. A primeira delas é o restrito e unilateral território das especialidades. O conhecimento de uma única área do saber torna duvidoso o próprio domínio daquela área particular que se pretende saber. Compete ao profissional do futuro uma agenda exposta justamente perante o neologismo recém-criado: “interface”... Tomando a liberdade de nos valermos da apresentação do número 1 desta revista Interface de matriz transdisciplinar, retomaríamos o seguinte texto; recompondo, obviamente seu contexto de produção e de circulação: No atual momento de transição e crise, em que o pensamento científico liberta-se das certezas, Interface nasce comprometida com o diálogo, propondo um espaço plural que assegure a comunicação entre o que é diverso, sem perder a perspectiva de um projeto de organização, construção e difusão do conhecimento. Surge como um objeto-fronteira, socializando estudos, debates e experiências concretas de diferentes perspectivas.... do conhecimento como construção de relações e apreensão de significados, numa rede heterogênea, acêntrica...propondo-nos a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência, como valores universais a desafiar as formas de comunicação do próximo milênio, ao mesmo tempo em que reforça a idéia de rede e do conhecimento como enciclopédia aberta e acena para a necessidade de uma outra forma de conhecimento, esta marcada por uma racionalidade mais plural, por um discurso mais literário e, sobretudo, pela certeza de que não estamos pessoalmente separados daquilo que estudamos. (Interface, v.1, n.1, p.5)

Os tempos deslocaram e recriaram as fronteiras: fronteiras históricas, que indagam o repertório dos processos de colonização; fronteiras geo-políticas em tempos de crise das clássicas demarcações herdadas do Estado Nacional; fronteiras de um tempo no qual as anteriores convicções e os paradigmas universalizantes que marcaram a Modernidade já não atendem às inquietações intelectuais que nos são contemporâneas. Além disso, a própria

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relação do homem com o conhecimento tem sinalizado para tecnologias intelectuais inovadoras, que - se, em alguma medida, ampliam o potencial de uma cultura global - deverão alterar substancialmente os padrões educativos e, sem dúvida alguma, as práticas de leitura da sociedade futura. Trazer para o debate educacional a intersecção transdisciplinar do conhecimento supõe a procura daquilo que Jorge Nagle (1976) chamava há algum tempo de pluridimensionalidade. As fronteiras epistemológicas entre o território da história da cultura, as formas de educação contemporâneas e os processos de compreensão do mundo deslocam-se, repartindo, talvez, sob novos parâmetros, os modos de conhecer, de produzir e de reproduzir as relações culturais. As ciências cognitivas - entre a herança da Antropologia, o legado da Sociologia e os avanços da Biologia - certamente têm algo novo a dizer para psicólogos e educadores. A escolarização – na era da informática, da cultura digital e midiática – passa a disputar, com os antigos, os novos, e os ultra-novos instrumentos, o lugar de multiplicadora e transformadora da cultura do impresso. A educação da atualidade, na interlocução com sua época, debruça-se sobre impasses do presente e expectativas de uma escola do futuro. Por sua vez, o campo da cultura abandona alguma pretensão totalizadora da Modernidade, sem, contudo, necessariamente abrir mão de postulados, ainda, tidos por universalmente humanos. Há sentido, sob tal enfoque, a preservação de conteúdos clássicos, ou de um fundo de cultura comum. Há sentido, também, no ato de se recolocar o tema da igualdade na sinalização das diferenças. Trabalhar a educação é ter por objeto as gerações mais jovens; é palmilhar por elas o futuro; é falar de perto ao coração da utopia. Referenciada pelo futuro, a prospecção da utopia situa-se na tênue fronteira entre o sonho e o projeto. Aceitar como compromisso o desafio de ser metodologicamente utópico requer do profissional, por vezes, ousadia no enfrentamento das próprias organizações, com o objetivo de despertar novas consciências e recriar, no dia-a-dia, as mesmas organizações, com alicerces recriados; mais amplos, mais integradores. Ameaça ao presente e antecipação do inédito, a utopia emerge nos sonhos de liberdade, nos anseios por igualdade, na luta por uma sociedade, enfim, mais fraterna (e, por tal razão, talvez, mais terna). Pela atmosfera da possibilidade da utopia, o futuro surge-nos sempre em aberto, em suas indeterminações e interrogações, mas em aberto; portanto, o futuro poderá sempre ser diferente. Haverá utopia onde e quando houver história; onde e quando em algum futuro, sempre impreciso, pudermos escutar os brejeiros ruídos do acaso; haverá utopia onde houver sonho de mudança – onde a capacidade de se admirar se fizer acompanhar da inconsolável coragem de se indignar perante a injustiça e, contra ela, propor transformações; haverá utopia onde existir juventude – se as gerações mais jovens se dispuserem a acreditar que o direito à diferença só ganha legitimidade quando acoplado ao requisito da igualdade. Se, no diálogo sempre inquieto entre mestre e discípulo, a verdade se constrói necessariamente por um “encontro a dois”, que terá como território o mundo da cultura (Gusdorf, 1970), existe uma condição essencial para a existência do ato educativo: a decisão de ensinar. Não nos

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convencendo jamais da veracidade de nossas palavras, não podemos, por tal razão, deixar de dizê-las. Isso conduz a que a aula seja, todos os dias, um enlace entre a mais atrevida invenção e a mais cômoda repetição: representação do inédito e reedição do antigo. A dúvida que angustia, todos os dias, o educador compromissado com a busca de sua própria paideia expressa-se na aparente banalidade de uma questão recorrente: o que vou dizer hoje a meus alunos? A força própria ao mestre é, acima de todas, responsabilidade assumida. Primeiro, responsabilidade para com os outros, pois o mestre descobre que tem cura de almas. Vivera até então da confiança que nos outros tinha, agora são os outros que devem confiar nele. As primeiras impressões nada têm de triunfal; mais se sente o fardo de um peso a vencer do que dum peso vencido. Até agora, contentara-me com uma verdade de empréstimo; agora terei que dar aos outros, que de mim esperam que lhes diga a verdade, que a indique .... Mas o mestre não se torna um mestre apenas porque os outros aguardam dele a verdade. ... Para lá da esfera do ensino, a ordem da irradiação do mestre supõe ... que se ponha de novo em causa os valores humanos ... Por outras palavras, o aluno não pode interrogar o mestre sobre o que é ser mestre, sem que este, antes, tenha interrogado a si próprio ... O consentimento mútuo que impõe o mestre aos seus discípulos tem, pois, por condição inicial, um consentimento consigo próprio, esse novo nascimento por si próprio dum homem que se descobre só e responsável; duma responsabilidade não apenas material, mas espiritual. (Gusdorf, 1970, p.132-3)

Produzindo e reproduzindo, a cada instante, o jogo social de que ela mesma faz parte, a escola é, muitas vezes, resistente a mudanças. Para o educador, porém, está ali o território da utopia; a matéria-prima da construção de sua paideia – uma sala de aula que se torna classe quando é povoada por crianças e por jovens. São gestos, expressões, trocas de olhares, duas palavras. A aula, no esquadro do educador, é, sobretudo, o registro de sua identidade. Mais do que isso, sendo cada aula a primeira e cada turma a única, uma aula é construída pelos mesmos critérios que validariam a obra de arte: intenção estética, reconhecimento público, resistência ao tempo. Ser profissional, na plena acepção da palavra, requer de nós a firmeza de princípios, o entusiasmo das estréias e a serenidade que apenas o tempo e o

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hábito estão aptos a conferir. Há de se buscar, na vida em magistério, habilidade para lidar com o outro e com o diferente; ser professor sugere, ainda, que sejamos capazes de confrontar cada etapa de nossa vida profissional com o transcurso já efetuado e optar por caminhos que nem sempre serão os mais fáceis; mas se colocam, dentre todos os que, em cada situação, se apresentam, como os mais éticos, os mais corretos, os mais valorosos. Ser profissional convida-nos, finalmente, a tomar a metáfora da colegialidade como nosso campo e nosso projeto. Segundo António Nóvoa (1991), somente a prática do convívio profissional, da partilha, da troca e da sensibilidade para com os colegas possibilita o sucesso . Eu recebo o que meu colega me acrescenta; eu ofereço aquilo de que meu colega pode ser acrescido. Ao agir assim, ambos crescemos, ambos nos empenhamos em uma prática salutar e cidadã de convívio público, ambos transformamos o quotidiano da escola em um exercício de formação continuada. Para viver a colegialidade como proposta profissional coletiva, deve-se, contudo, favorecer o diálogo – e muito particularmente o diálogo entre professor e alunos. Esse diálogo atravessa as rotinas, as práticas, os usos e costumes da ação educativa. Os adultos têm o que ensinar aos jovens, como ordenar seus sonhos, dominar seus sonhos (o que não significa, de modo algum, renunciar a eles), ir além de sua história pessoal e das tentações do narcisismo, esforçando-se para ser objetivos. Existe como que uma efervescência na juventude, que pode se perder e cair no ceticismo. A influência adulta pode contribuir para transformá-la em impulso autoconsciente, em tarefas possíveis e mesmo necessárias, consideradas certas condições históricas. Mas é com a juventude que se conta para insuflar como que uma febre criadora. É a capacidade de amar o mundo, de animá-lo, contra tudo e contra todos, que os jovens têm a transmitir aos adultos. ‘Quando a juventude esfria, o resto do mundo treme’. É pela influência, pela ação dos jovens que os mais velhos têm uma chance de escapar a um dos mais graves riscos que os ameaça: a indiferença. Os adultos ‘têm necessidade de provar a si mesmos, admirando de novo o que eles admiravam outrora, que não estão decadentes. ... Encontrar enfim a solução do problema que a infância lançou: ‘o que é uma grande vida senão um pensamento de juventude executado pela idade madura?’ A juventude sonha e muitas vezes sonha certo, mas na falta de meios e instrumentos eficazes, permanece em estado de sonho. A vida adulta, para que o imaginado assuma formas efetivas, torna-se criação, construção, cultura, conservando-se os gostos da criança que brinca, do jovem que deseja. (Snyders, 1996, p.62-3)

Acreditando ser possível ajudar a juventude a se conhecer para, com ela, reaprender o dom de amar, Snyders ressalta como alicerce da ação pedagógica a recuperação da capacidade de se admirar; tão presente entre

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as novas gerações. O entusiasmo de um particular modo de olhar, de observar e de mirar pode traduzir-se, no ato da instrução, em uma oportunidade de fascínio e encanto propiciado pelo contato com o saber clássico. Aprender a conhecer seria, assim, um ato de emancipação intelectual, sem dúvida; mas também um ato de alegria – de entusiasmo pela descoberta e o desejo de mergulhar na descoberta... Metaforicamente, poderíamos dizer, tomando de empréstimo as palavras de Jorge Larrosa (1998, p.175): O professor, quando dá a lição, começa a ler. E seu ler é um falar escutando. O professor lê escutando o texto, escutando-se a si mesmo enquanto lê, e escutando o silêncio daqueles com os quais se encontra lendo. A qualidade da sua leitura dependerá da qualidade dessas três escutas. Porque o professor empresta sua voz ao texto, e essa voz que ele empresta é também sua própria voz, e essa voz, agora definitivamente dupla, ressoa como uma voz comum nos silêncios que a devolvem, ao mesmo tempo comunicada, multiplicada e transformada.

O bom professor pode ser, portanto, compreendido como aquele que se revela a seus alunos por transmitir conhecimentos: chaves culturais herdadas e preservadas como saberes socialmente cultivados. Mas o bom professor, que revela o conhecimento, e o transforma em sabedoria, faz isso por palavras e pelo hábito; pela coerência entre aquilo que diz e as maneiras de atuar em público. O bom professor conjuga habilidades e competências técnicas, acadêmicas, interpessoais, institucionais, com o requisito imprescindível da busca sempre presente de uma vida digna, pautada por procedimentos de justiça para com o semelhante e de cuidado para quem está próximo. A vida justa é sempre e invariavelmente a vida com os outros; mas é também uma arte, a ser quotidianamente palmilhada: o domínio progressivo dos códigos éticos da conduta pública; dos modos cotidianos de se revelar para os outros. Para tanto, é preciso lisura; mas é fundamental também o sentido de auto-preservação. Dizia Aristóteles que, em geral, o bem está no justo meio entre dois extremos: fazer o bem é tomar por pressuposto a igualdade, sem deixar, contudo, naufragar a tolerância para com as outras pessoas, quando, tantas vezes, desejamos encontrar em quem está ao nosso lado um nosso idêntico; e, ao fazer isso, perdemos o que há de rico e de singular nas diversas identidades. Seguir o justo-meio da ética é ter na liberdade um caro emblema, mas é também agregar nessa liberdade o valor da responsabilidade, que, por definição, precisa acompanhar o território dos direitos. De qualquer modo, a ação ética é uma prática, um hábito, que ninguém tem no ponto de partida, mas que deve ser percorrido todos os dias, quando pretendemos tornar nossa existência profissional uma narração dotada de sentido (Camps, 1995); quando projetamos nossa vida recolhendo do passado significados e procurando pistas para projetar adiante nossas utopias. A capacidade para elaborar utopias viáveis é requisito para o acontecer das transformações. É

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pela ética que poderemos fazer isso – e ética só é para valer no exercício continuado e refletido de nossa alma em direção ao bem comum. Bem comum, por sua vez, é valor compartilhado. De acordo com Victoria Camps, o ser humano reconhece a si próprio como um “ser intersubjetivo, que se sabe comunitário, dialógico, submetido a regras, incapaz de conhecer ou de justificar qualquer coisa por si só. E que, na intersubjetividade, o diálogo e o submeter-se a regras contam, todavia, com um ideal de liberdade” (Camps, 1995, p.60). Assim sendo, a liberdade da vontade humana seria diretriz maior da ação ética, a qual, por sua vez, pauta-se pela perfeita identidade entre meios e fins da ação. Toda e qualquer ação interpessoal é pública; revelando-se, enquanto tal, expressivo e propício cenário para o exercício de um justo agir cotidiano. Tal disposição de espírito e prática consciente proporciona enriquecimento espiritual e favorece a criação/re-criação do homem enquanto ser para si. Sentimo-nos educadores quando nossos alunos nos contam que algo do que fizemos foi para eles importante; eles que são, no limite, o sinal de nossa voz, ampliada e ressoada; que nos darão continuidade e que irão além de nós. É aqui que eu gostaria de apresentar uma categoria operatória para a reflexão a propósito de uma nova paideia em profissão: proponho uma ética da amizade. Eu explico: meu desejo, ao formar futuros profissionais da educação, deriva de um sonho que, nesta arte, me acompanha: a possibilidade de nós, educadores, aprendermos a nos disponibilizar afetiva e emocionalmente para encontrar, subitamente, no colega e em nosso aluno, um amigo; o encontro desse amigo acontecendo pela força do acaso consentido, da abertura para receber e para doar, mediante uma atitude desprendida de companheirismo, de troca e de intercâmbio: coleguismo. Na vida em profissão, temos colegas. Se exercitarmos, contudo, nossa habilidade para a colegialidade, adquiriremos, em nosso universo de trabalho, amigos; e teremos a felicidade de obter, no território da escolha profissional, um convívio semelhante ao que experimentamos com o amigo que, espontaneamente, tivemos a oportunidade de escolher. Francesco Alberoni - em belíssimo ensaio sobre o tema - define a amizade, não pelo tempo corrido ou pela convivência cotidiana. A amizade ocorre quando nos reconhecemos no outro; pela intensidade dos momentos que vivemos juntos –sejam estes freqüentes ou não. Assim, o código da relação de amizade constituiria exatamente “uma filigrana de encontros” (Alberoni, 1993, p.14); nos quais despertam sentidos, firmam-se identidades, marcamse gestos de mútua admiração. A amizade, regida pelo signo da liberdade, costuma, ainda, no parecer do autor, aproximar-nos da felicidade. O companheirismo proporcionado pelo encontro do amigo traz, invariavelmente, situações privilegiadas de fruição; de prazer. Há critérios morais que envolvem a escolha do amigo. Por isso, em geral, amigo é quem está ao seu lado – como se houvesse um pacto de estar ao lado; um pacto de se fazer justiça; um pacto até de

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se mostrar para o outro possíveis equívocos e desvios de rota; um pacto, porém, receptivo para relevar pequenas faltas; equacionar situações malresolvidas, e até – por que não? - perdoar. Diferente do amor, nesse sentido, o sentimento da amizade “escolhe seus objetivos com critérios morais e se comporta moralmente em relação a eles” (Alberoni, 1993, p.29). Evidentemente, quando tratamos de profissionalismo, não estamos na mesma órbita que seguimos quando se trata de amigos. Ainda recorrendo a Alberoni, o dever ético pode ser entendido na perspectiva de um “como se” do amor (Alberoni, 1992, p.53). Na ausência do sentimento, poder-se-ia sugerir uma ética profissional (parafraseando o referido autor) em termos de um “como se” da amizade. É possível viver em profissão, por atos, por gestos e por intenções com uma disposição interior, uma atitude que, por decisão própria, converge com a ação que se tem para com os amigos. No caso, tal profissionalismo seria dever: mas um dever, “como se fosse” amizade (Alberoni, 1992). Tal propósito supõe agir institucionalmente ‘como se’ nossos colegas fossem todos nossos amigos. Isto posto, será possível organizar a vida coletiva, da profissão que escolhemos, mediante modos de agir análogos à experiência da amizade. Para tanto, seria necessário o estabelecimento de uma pré-confiança básica: para que se possa reconhecer no outro a convergência; e para que se possa trabalhar este outro suas possíveis dissonâncias – exatamente como costumamos fazer com aquele amigo que não queremos perder. Embora sempre solicite uma atenção específica para si, o verdadeiro amigo é – segundo Alberoni – alguém que raramente pede favores; porque sabe que, pedindo, receberá; e, paradoxalmente, ao receber certos favores, podemos romper com os próprios preceitos éticos que nortearam essa sempre “arte do encontro”, situada em mares de “desencontros pela vida” – de que falava Vinícius. O grande risco da amizade – companheirismo, alegria partilhada, cumplicidade – reside na tentação de tal energia poder se transformar em particularismo excludente. Assim, ainda vale, como parâmetro e norma, mesmo amigos, o ponto regulador da universalidade – e, portanto, imparcialidade, da ação ética. Assim, recomenda-se a cautela, justiça e eqüidade no trato interpessoal: Ao meu verdadeiro amigo não posso pedir que aja comigo violando a regra da imparcialidade. Se for médico, que se descuide dos demais doentes, se é juiz, que me favoreça. Se ele o fizesse, seria imoral e, portanto, merecedor de desestima geral. Assim, sendo meu amigo, não posso desejar seu mal...Hoje, quando a sociedade está estabelecida sobre regras universalistas, a amizade deve, em primeiro lugar, respeitar o universalismo e a imparcialidade. A amizade aceita as virtudes assim como a sociedade as dá e as respeita rigorosamente. Não as cria, mas é delas a mais respeitosa cumpridora e a mais ciosa guardiã. (Alberoni, 1993, p.40)

Sob tal enfoque, a vida profissional não garantirá, pela ética, o êxito ou o bem-estar - sucesso e fracasso são companheiros tão provisórios quanto impostores. Mas estaria, talvez, engendrado o ponto de partida para um profissionalismo refletido; ou seja, um ato de vontade a ser trabalhado e

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ajuizado pelo intelecto. Quantos de nós meditamos sobre o profissionalismo antes de entrar na profissão escolhida? Como pensar os dilemas éticos da ação colegiada – interpares? Quais os deveres e dilemas éticos em relações hierárquicas? Não estariam grande parte de nossos problemas de convivência institucional em tais dificuldades? Há um (em alguma medida) confortável silêncio ou esquecimento quando se trata de refletir - de maneira organizada, metódica e planejada - acerca da ética em nossa formação. Reiteramos, por vezes, tal lacuna na formação de nossos discípulos/alunos. Contudo, todos sabemos que ética é hábito; e, como tal, deve ser praticada na vida cotidiana; deve ser tema corrente e indagação verdadeira. Há prática de ensino e de aprendizado de ética? Nas universidades, por vezes, professores que não convivem bem entre si talvez prefiram não discutir, com a necessária constância, projetos coletivos pensados para formar o cidadão ético – que todos desejamos para o futuro de nossos alunos. Mas, como não sabemos fazer, talvez não consigamos ensinar. Preferimos - quem sabe - não conversar sobre isso; para não escancararmos nossas dificuldades interpessoais. Agindo desse modo, mutilamos, à partida, não apenas a formação dos profissionais do futuro, mas os nossos próprios projetos de futuro. Não sabemos viver juntos, sem nos separarmos sistematicamente. Os currículos sofrem essa fratura. Os profissionais que formamos atendem ao mercado; atendem, alguns deles, às exigências acadêmicas. Mas estarão à altura de sonhar com um mundo transformado? Um mundo mais justo, mais bem distribuído, mais companheiro e mais fraterno? Para além do sonho sabem verificar a tênue, mas fundamental, interface entre utopias e realizações? Formar as gerações mais jovens, em alguma medida, tem por suposto o firmamento social de novas estréias profissionais. Os inícios são habitualmente caracterizados pelo signo do desafio, da ansiedade, da criativa insegurança, da utopia... e do glamour. Mas os inícios são indiscutivelmente provisórios. Posteriormente, compete ao profissional – como já destacava Victoria Camps (1995) – conferir um sentido, dotado necessariamente de valor, à própria vida. Estaremos, nós, docentes da universidade pública, neste ano um do terceiro milênio, de fato, atentando para que nossos alunos se preparem para dotar de sentidos uma posterior narração de suas vidas profissionais? Tais significados devem ser antecipados no pensamento cuidadoso sobre a vida em profissão: significados meticulosa e laboriosamente construídos, com observação de realidades e com prospeções de utopias (por que não?); com continuidades, permanências, transições e rupturas – todas elas essenciais para o amadurecimento de uma vida; com coragem e ousadia amparadas por humildade e cautela; com a necessária prudência e o imprescindível entusiasmo de quem não abdica de se indignar

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e de sonhar; com o distanciamento científico em uma mão e o engajamento militante na outra – para sempre burilar os modos de ver; as decisões e rotas; os modos de agir. O bem compartilhado em educação reside, essencialmente, na interação coletiva e colegiada das práticas; das experiências; dos projetos. E o melhor paradigma para se falar em repartir das pequenas felicidades cotidianas ainda é – a meu ver - a experiência do mais livre, mais autônomo e mais sereno dos sentimentos: a experiência da amizade. Para o amigo, eu confesso os códigos, reparto as ‘dicas’, entrego os ‘segredos’ do êxito obtido – na boa aula que dei, na pesquisa que efetuei, no texto que produzi, nos autores que li. Ele faz o mesmo comigo. Em tal interação, ambos crescemos. Para meu colega: eu conto aquela aula que deu certo? Eu digo quais os modos de trabalho que proporcionaram resultado positivo? Ou guardo apenas para mim; com o objetivo de que meus segredos docentes não sejam copiados? Na segunda hipótese, eu perco – junto com colegas, alunos e universidade. A esperança de maior qualidade no ensino convida-nos, talvez, para a experiência da generosidade recíproca – porque são recíprocas as relações interpessoais. Tal operação metodológica no agir profissional não elimina, de modo algum, a competitividade. Continuarei a atuar pelo coletivo, com a manutenção das esferas de ação íntimas. Ao depositar no colega a confiança que eu entregaria a um amigo, estou à espera de que ele aja comigo pela mesma tecla. A reciprocidade, assim, torna-se esperança - mútua e universal - de aprimoramento; daquilo que os iluministas do século XVIII nomeavam ‘perfectibilidade’... Estarei, acima de tudo, construindo a possibilidade de uma ética em profissão referenciada pelo código comum e universal do sentido da amizade: agir, perante o mundo, como se tivéssemos diante de nós um verdadeiro e leal amigo. E a amizade, como se viu, contempla a noção de pertença espontânea: foi porque assim eu quis que eu escolhi este (e não qualquer outro) círculo profissional. Há de se estabelecer, pois, no circuito do ensino e da pesquisa acadêmica, compromissos e pactos de respeito e de tolerância para com o pensamento divergente – o que, no limite, nada mais é do que dever e garantia da vida democrática. Nesse sentido, podemos acrescentar, à justiça e à solidariedade (Camps, 1996), o valor da esperança. A esperança no ato educativo é, por sua vez, sobretudo, uma aposta. Na constelação social, podemos atuar ingenuamente na educação, convictos de que é justa a estrutura que rege o campo da política e da economia; podemos, na outra margem, recusar a ação educativa, acusando-a de conduzir necessariamente à reprodução da mesma ordem estabelecida, aqui considerada injusta, ilegítima; e podemos, como uma terceira via, naquele lugar intermediário que alguém já chamou de ação sensata (Hameline, 1991), ultrapassar, com moderação, equilíbrio e cálculo, esses dois caminhos anteriores. Trata-se, na escolha, de uma aposta pedagógica e ética, fundada sobre a crença e a esperança na igualdade do gênero humano. Educar é apostar: no futuro, no gênero humano, nas gerações mais jovens. Educar é apostar também no compromisso com a edificação de uma sociedade mais justa, mais generosa e mais fraterna. Educar é apostar na

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capacidade de o homem transformar-se; e transformando a si, transformar a sua prática. Só essa aposta pode vivificar no educador a utopia e o contraponto do tempo, que leva muito mais do que parece trazer. E assim, chegamos ao final de um novo começo, mediante o qual se pode conceber –entre apostas e certezas – o educador como um navegador que estuda sua rota por todos os meios científicos de que dispõe, mas que, antes da partida, escolheu livremente a direção por tomar e nela apostou. Navegar implica obediência à escolha apostada: obediência ao peso dos meios para realizar o percurso e escolha pessoal da rota. Do mesmo modo, o educador deve apreender com lucidez os meios de sua ação e apostar livremente no rosto que deseja ver no homem futuro. (...) Educo, tanto porque acredito ter razão para fazê-lo quanto porque tenho vontade de fazê-lo em nome dos valores em que aposto. Só posso educar porque acredito nisso. (Hannoun, 1998, p.163)

Pensar a política educativa mundial nestes sinuosos tempos de globalização requer, invariavelmente, o entrelaçamento de variados aspectos, para abarcar tangentes entre o domínio tido por global, o plano local e o território nacional. Mas a história não nos entrega desafios que não sejamos capazes de enfrentar; como já dizia Marx. Para tanto, é preciso que haja temas e perspectivas a serem pensados, a serem debatidos e a serem, fundamentalmente, compartilhados. Daí advém o convite para tornar da educação nossa aposta e nossa paideia: fluir e partilhar o saber investigado; por uma ética da ‘amizade em profissão’. Finalmente, à luz de tal projeto, pelo coletivo, pelo diálogo, pela ressonância e, por vezes, até, pela dissonância, supomos a ocorrência da produção e da ampliação do conhecimento desejado. São pequenos, fugazes, e, tantas vezes, fugidios, os instantes de felicidade nos quais nos reconhecemos mestres. Tais oportunidades de encontro poderiam se tornar o mais elevado sentido da palavra aula: roteiro, bússola, sempre indeterminada e incerta, sempre sujeita a se deparar com o inesperado, com o imprevisto com o súbito improviso. A aula é - ainda e antes de tudo - o maior registro da existência do mestre, a prova de suas pegadas intelectuais; o legado do que deixaremos para os que vierem depois de nós – como profissionais e como seres humanos. A nova paideia - necessariamente transdisciplinar - partirá, sob tal enfoque, da partilhada curiosidade intelectual: o desejo de saber e o desafio de aprender – com os que vieram antes, com as outras matérias e com os que estão ao lado... E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, tomarei de empréstimo a sugestão de um amigo, que citava Italo Calvino que, por sua vez, citava alguém que citava Sócrates: Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’. (Calvino, 1998, p.16)

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BOTO, C. Por una ética en la profesión: rumbo a una nueva paideia, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.9-26, 2002. El presente artículo intenta discutir la actualidad del concepto de paideia, a la luz del entrelazamiento entre el original referente griego y la categoría operatoria de lo que aquí denominamos una “ética en la profesión”. Se trata de un estudio que busca formular algunas directrices para pensar el tema de la enseñanza y del aprendizaje, partiendo metodológicamente de la acepción de interdisciplinaridad. Así, se podrá, huyendo de las especializaciones fragmentarias del campo, recomponer el arte del pensamiento pedagógico, incluyendo en él sus aspectos éticos esenciales. De este modo, creemos posible establecer, para los profesores y estudiantes de este tercer milenio, una nueva y moderna paideia. PALABRAS CLAVE: Paideia; Educación; ética profesional; aprendizaje; enseñanza.

Recebido para publicação em: 06/08/01. Aprovado para publicação em: 15/10/01.

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ELISETE ALVARENGA, Marcas, 2000


A introdução das artes nos currículos médicos *

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Leonilson

Ricardo Tapajós

TAPAJÓS, R. Introducing the arts into medical curricula, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.27-36, 2002.

Appropriate professional training in the field of infection by HIV (Aids) assumes that treatment and care will be provided in a suitable, ethical and humane manner. Concern with such training has heightened the discussion on how medical training can integrate the acquisition of technical excellence with humanistic traits. Thus, Medical Education starts to incorporate the challenge of adapting itself in such a way as to provide physicians (the end product of its curricula) with both a humanistic and humane education. The Humanities, and specifically the Arts, are disciplines that classically accomplish this function. We postulate and argue that they should be introduced into medical curricula, whether due to their intrinsic value, as a source of aesthetic experience and knowledge, or whether because they can facilitate the achievement of broader objectives within these curricula. KEY WORDS: Medical education; humanism; art; HIV/AIDS.

A capacitação profissional apropriada no campo da infecção pelo HIV/Aids prevê que tratamento e cuidados sejam oferecidos de maneira adequada, ética e humanizada. A preocupação com esta capacitação tem acentuado a discussão sobre como a formação médica pode integrar a aquisição de excelência técnica e traços humanistas. Assim, a Educação Médica passa a incorporar o desafio de adequar-se, para providenciar aos médicos, produtos finais de seus currículos, uma formação humanista e humanizadora. As Humanidades, em específico as Artes, são disciplinas que classicamente cumprem esta função. Postula-se e discute-se que elas sejam introduzidas nos currículos médicos, seja pelo seu valor intrínseco, fonte de experiência estética e conhecimento, seja para facilitar a execução de objetivos mais amplos dentro desses currículos. PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; humanismo; arte; HIV; Síndrome de imunodeficiência adquirida.

* Texto produzido a partir de: TAPAJÓS, R. Teaching and learning in medical Humanities: design and elective course on HIV/ AIDS in the Visual Arts. Chicago, 2000. Dissertação (Mestrado) University of Illinois. 1 Médico, Supervisor da Divisão de Clínica de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/USP. <ritapajos@zipmail.com.br>

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RICARDO TAPAJÓS

Introdução Educadores médicos têm estado preocupados com a capacitação profissional apropriada e efetiva no campo da infecção pelo HIV/Aids, de forma que tratamento e cuidados possam ser oferecidos de maneira adequada, ética e humanizada. Esta preocupação advém do fato de que alguns estudantes de Medicina, médicos e outros profissionais da saúde têm-se mostrado relutantes em cuidar desses pacientes (Marshall e O’Keefe, 1995). A necessidade de implementação, em escolas médicas, de uma educação ampla e inclusiva sobre Aids é proeminente. Entretanto, os esforços de ensino em currículos médicos tradicionais parecem devotar-se unicamente à Biologia e à Epidemiologia da infecção. Cursos curriculares que carreguem a potencialidade de evidenciar, abordar e corrigir atitudes negativas e preconceituosas em relação ao paciente com HIV/Aids se fazem necessários (Marshall e O’Keefe, 1995). Com essas preocupações, a partir do ano letivo de 2000, o Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias (DMIP) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, campus São Paulo (FMUSP), tem oferecido regularmente dois cursos inusitados a seus alunos. São propostas que pretendem ensinar aspectos da Medicina por meio do ensino de Artes. Originalmente com dois créditos cada um (um crédito é igual a quinze horas-aula), os cursos MIP-518 e MIP-519 são integrantes do elenco de cursos opcionais e podem ser cursados por alunos que os escolham a partir do segundo ano curricular. Ambos tratam das representações da infecção pelo HIV/Aids nas Artes. O primeiro abrange as representações nas Artes Visuais (Artes Plásticas, Gráficas e Fotografia), enquanto o segundo focaliza exclusivamente as Artes Cinemáticas. Dado o sucesso de sua implementação, as disciplinas foram ampliadas em carga horária e conteúdo, passando a ser oferecidas, a partir de 2002, com os códigos MIP-526 (três créditos), abordando as Artes Cinemáticas e MIP-525 (cinco créditos), ampliada para abordar as representações da infecção pelo HIV/Aids não só nas Artes Visuais, como também nas Literárias (Prosa, Poesia e Drama). Há incontáveis doenças e condições patológicas representadas nas Artes. Tuberculose, transtornos psiquiátricos, aborto, peste, sífilis, condições dermatológicas, mal de Hansen, neoplasias, trauma e doenças degenerativas são alguns exemplos de representações bastante prevalentes, que se qualificariam como tema e conteúdo de cursos médicos centrados nas Artes. As representações da infecção pelo HIV/Aids nas Artes não são exceção. Ao contrário, a intersecção entre Aids e Artes é bastante rica. Há muitos artistas cujas vidas foram sensivelmente tocadas de alguma maneira pela epidemia. Podem-se citar David Wojnarowicz, Keith Haring, Derek Jarman, Masami Teraoka, Frank Moore, Leonilson (Artes Plásticas), Robert Mapplethorpe, Nicholas Nixon, Rosalind Solomon, Nan Goldin (Fotografia), John Greyson e Cyril Collard (Cinema), entre outros tantos, e Paul Monette, Hervé Guibert, Larry Kramer, Tony Kushner, Sarah Schulman, Susan Sontag e Edmund White, também entre muitos outros, nas Artes Narrativas. Há, ainda, inumeráveis trabalhos artísticos que abordam a doença e seu impacto na humanidade, nos mais variados meios e técnicas, incluindo as pertinentes às

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A INTRODUÇÃO DAS ARTES NOS CURRÍCULOS...

Artes Visuais, Cinemáticas e Literárias. Reproduções desses trabalhos de arte são comercialmente disponíveis em formato de vídeo, em livros de Arte e livros de literatura, portanto acessíveis a professores e alunos. Sobre essas obras, sua iconografia, seu simbolismo, seu contexto histórico-social e seus autores há um corpo acadêmico de conhecimento e crítica em constante crescimento. Este corpo de conhecimento é, per si, relevante a alunos de Medicina e torna-se ainda mais relevante para eles na medida em que toca também em outros campos de conhecimento que têm seus próprios arcabouços intelectuais e teóricos, como História da Arte, Crítica da Arte, Estética, História da Medicina, Sociologia, Antropologia e Crítica Literária. Nessas obras de Arte, as representações da infecção pelo HIV/Aids são extremamente pertinentes às questões quotidianas do médico. Em ambas prevalecem pacientes, familiares e médicos, assim como procedimentos médicos, profissionais de saúde e ambientes hospitalares. O estudante de Medicina pode ter, assim, acesso a vários modelos (positivos e negativos) de relação médico-paciente e a valiosas narrativas em primeira pessoa de experiências com a doença e percepções sobre a mesma, seu manejo e suas repercussões. Mais do que impregnadas de quotidiano médico, essas representações são permeadas por aspectos cruciais do fenômeno humano, como morte, destino, sofrimento, transcendência, ritos, luto, preconceito, religiosidade, sexualidade, respostas sociais, políticas de Saúde, entre tantas outras. A infecção pelo HIV/Aids evoca tantas respostas em termos de comportamento humano que sua história, sozinha, tem elencado os mais variados aspectos da natureza humana. É este conhecimento da natureza humana que as disciplinas propostas procuram instilar nos alunos. Este tipo de conhecimento, produzido pelas Humanidades, é singular e não científico em essência. É diverso daqueles conhecimentos científicos com que educadores e alunos estão acostumados a trabalhar nos currículos médicos. Sendo diverso, requer abordagens curriculares diferenciadas.

TERAOKA, Série Aids

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As Humanidades nos currículos médicos No geral, as Humanidades são disciplinas que assistem os alunos na articulação de sentimentos e crenças, no seu processo de autopercepção, na percepção da alteridade do mundo, na percepção de diferentes comportamentos e potencialidades humanas e no entendimento dos valores que fazem de pessoas juntas uma comunidade. As Humanidades instilam sabedoria. Lidam com o que significa ser humano e viver uma vida humana. Apontam para o que as pessoas experimentam, para como elas interpretam o mundo e respondem a ele, para o sentido que elas fazem dele e para qual seja a experiência universal de humanidade e raça humana (Wilson, 1974; Hardison, 1977; Bruderle e Valiga, 1994; Darbyshire, 1994). As Humanidades Médicas são disciplinas aplicadas a questões gerais ou particulares da práxis médica (Portugal-Alvarez, 1991). Entre elas figuram todas as Artes, a História Médica, Religião, Língua e Comunicação e Filosofia Médica (com os campos da Ética, Bioética, Epistemologia e Estética) (Portugal-Alvarez, 1991; Bruderle, 1994; Darbyshire, 1994; Taylor, 1995; Hook, 1996; Malacrida et al., 1998). A Medicina ocupa-se de aplicar conhecimentos, inclusive científicos, a pacientes e grupos populacionais específicos, que, por serem fenômenos humanos, não são passíveis de incondicional generalização. A práxis médica incorpora, portanto, a visão científica (a biologia do estar vivo e da máquina humana Cartesiana) e visões mais abrangentes que reconheçam construtos biopsicossociais e estéticos. A Educação Médica passa, então, a ter de se preocupar em formar médicos detentores não somente de técnica impecável, como também cuidadores humanizados, sensíveis, preparados para lidar consigo e com seus pacientes, tarefa que exige trabalhar com os mais diversos valores inseridos em complexos contextos históricos, culturais e sociais. A inserção das Humanidades em currículos de Profissionais de Saúde responde a esta necessidade de humanização do produto final desses currículos. Esta inserção tem sido uma preocupação constante na literatura mundial (e, particularmente, na norte-americana) nos últimos quarenta anos, abrangendo experiências em Terapia Ocupacional, Odontologia, Enfermagem e Medicina (nesta última em áreas tão diversas quanto Medicina de Família, Cirurgia Plástica e Neurocirurgia). No Brasil, esta preocupação apenas começa a aparecer de maneira sistemática. No caso específico das Artes, a literatura de Educação em Profissões de Saúde é também prolífica em comunicar tentativas de inserção de experiências artísticas nos seus currículos. Muitos cursos são descritos, alguns dedicados às Artes Visuais (Bergman et al., 1982; Biggerstaff et al., 1984; Hoshiko, 1985; Bresnahan & Hunter, 1989; Hogg, 1989; Loden, 1989; Davis, 1992; Darbyshire, 1994), outros, às Artes Cinemáticas (Bresnahan & Hunter, 1989; Dichi, 1994; Crellin & Briones, 1995). Há, ainda, cursos multi-arte que

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incluem as Artes Visuais e Cinemáticas (Moore, 1976; 1977; Bertman & Marks, 1985; Middleton et al., 1993; Peden & Staten, 1994; Vande-Zande, 1995). Na maioria dos casos, o estudante é observador da Arte. Em alguns casos, é também chamado a produzir obras. As Artes Narrativas, como Drama, Prosa e Poesia, tendem a predominar, mas o papel das Artes Visuais e Cinemáticas é também relevante, como se verá a seguir. As Artes nos currículos médicos Tem havido um interesse crescente na interação entre a Medicina e as Artes, que se reflete na existência de considerável literatura sobre o assunto e na descrição de várias tentativas de inserção de poemas, peças, contos, novelas e pinturas como base para o ensino de alunos de Medicina (Sweeney, 1998). Estas muitas interações entre disciplinas da Medicina e das Artes derivam de pelo menos quatro aspectos fundamentais, quais sejam: o médico enquanto artista, o paciente enquanto artista, as questões de interesse médico direto e, por fim, o “entendimento mais profundo” das motivações, atitudes e emoções humanas que um conhecimento das e nas Artes pode produzir (Downie, 1998; Evans, 1998; Sweeney, 1998). Os dois primeiros aspectos podem ser tratados conjuntamente, já que tanto médicos quanto pacientes têm coisas a dizer sobre assuntos pertinentes à Medicina e podem preferir expressar-se pelas Artes. Muitos autores mostram claras influências de suas patologias reais na sua obra, tanto nas Artes Plásticas (Frida Kahlo e suas seqüelas corporais, Paul Klee e sua condição dermatológica, Keith Haring e Aids), como no Cinema (Derek Jarman e Cyril Collard, em termos de Aids) e na Fotografia (Robert Mapplethorpe e Aids). O terceiro aspecto compreende áreas de interesse médico direto, como representações artísticas de doenças e experiências de vida relacionadas às doenças, como sofrimento, exclusão social e morte. O artista plástico Masami Teraoka dedica parte de sua obra à representação da Aids e sua profilaxia. O fotógrafo Nicholas Nixon retrata o morrer de Aids mesmo em vida, enquanto os retratos de Carolyn Jones mostram pessoas vivendo com o vírus. Por milhares de anos, os seres humanos têm pintado, desenhado e esculpido seus medos mais obscuros, na tentativa de controlar ou atenuar perigos (Pechansky et al., 1989). Expor estudantes de Medicina às Artes significa expô-los a uma gama enorme de medos, sentimentos e emoções que alguma vez habitaram o mundo de um artista (Noll et al., 1989; Pechansky et al., 1989) ou a vida interna de um paciente (Hardison, 1977). Os alunos podem, ainda, partilhar dessas experiências de uma maneira bastante protegida e não ameaçadora (Bruderle, 1994). Por representarem a condição humana, as Artes Visuais expõem os alunos a uma variedade de experiências humanas que são de relevância central para a prática médica, entre as quais citam-se doença, limitação, vulnerabilidade, tristeza, luto, a natureza da sociedade humana, a capacidade curativa de rituais e lembranças, morte e corporalidade. O quarto aspecto mencionado diz respeito a um “entendimento mais

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profundo”. Formas distintas de conhecimento existem. Conhecimentos no campo empírico ou científico são generalizáveis e reprodutíveis, enquanto conhecimentos no campo estético são singulares (Phenix, 1964). A Medicina baseia-se em pelo menos dois tipos de conhecimento bastante distintos entre si, quais sejam: um conhecimento “conceitual” que pode ser passado de pessoa a pessoa por meio das palavras, e um “conhecimento não conceitual ou sensual” (conhecimento experiencial ou estético) que só pode ser adquirido pela interação física com o objeto a ser conhecido (Arnold et al., 1984). O conhecimento experiencial é aquele entendimento que não é possuído por aqueles cujas experiências tenham sido outras (Beckingham, 1982). Experiência em uma situação traz expertise (Lafferty, 1997). Uma pessoa descobre o que pensa sobre um dilema parcialmente por perceber aquilo que sente. Esta resposta emocional não é um meio para o conhecimento experiencial, mas constitui parte do próprio conhecimento (Hawkins, 1994). Quando quer que tome decisões, morais ou não, um clínico deve envolver todas as faculdades mentais, ou seja, razão, intuição, emoção e imaginação (Hawkins, 1994). No ensino médico, à medida que os alunos caminham da Filosofia para a Religião, para a Literatura, a Poesia, o Drama, as Artes Plásticas e a Música, tornam-se mais sensíveis à sensualidade e sensorialidade (Arnold et al., 1984), mais susceptíveis ao conhecimento experiencial ou estético. As experiências de cunho estético dão-se de maneira epifânica, como pequenas revelações no quotidiano (Hawkins, 1994), mas também são facilitadas por situações vividas vicariantemente pelos alunos e/ou por respostas empáticas que desenvolvem. No primeiro caso, sabe-se que a experiência de ter uma doença é estranha à maioria dos estudantes de Medicina. As Artes são veículos que equipam os alunos com familiaridade a respeito desta e de outras questões não menos dolorosas, sem que eles tenham de vivenciá-las diretamente (Wilson, 1974; Bruderle, 1994). Por meio das Artes, profissionais de saúde podem alcançar, de maneira vicária, um entendimento sobre as condições humanas que não poderiam vivenciar de outra maneira (Pellegrino, 1984; Bartol, 1986; Mohr, 1995; Sweeney, 1998). No segundo caso, as Artes são úteis em colocar problemas particulares numa perspectiva que encoraja respostas empáticas (Blizek & Finkler, 1977). Esta assunção repousa em três aspectos comuns tanto às Artes quanto à noção de empatia, ou seja, resposta, emoção e conexão. A Arte evoca uma resposta que é profunda e pessoal, e esta resposta é freqüentemente emocional e conduz a conexões significativas (Peloquin, 1996). Em ambos os casos, portanto, as Artes favorecem ao aluno a aquisição de conhecimentos singulares. Este “entendimento mais profundo” gerado pelas Artes não é mediado exclusivamente por experiências puramente estéticas, mas também por habilidades interpretativas. Teóricos na interface da Medicina e das Artes têm sugerido que a interpretação, como atividade literária, tem analogia com a prática clínica da Medicina (Gogel & Terry, 1987) - o médico agindo como o leitor e o paciente como o texto a ser interpretado. O paciente é portador de narrativas verbais, mas também carrega formas não verbais de narrativa, como expressões, posturas, temperamentos, gestos e achados

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LEONILSON, 34 com scars, 1991, MoMA, Nova York

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físicos. Assim, além de texto a ser interpretado, o paciente é também quadro, pintura, fotografia, escultura a ser apreendido. Interpretar significa construir, a partir de um sistema de signos (texto/obra), alguma coisa maior do que a presença física deste mesmo sistema. Avaliar pacientes requer habilidades que o bom interpretador possui, como a capacidade de integrar fenômenos isolados (sejam achados físicos do paciente, sejam símbolos e metáforas no texto/obra), para produzir um sentido maior e organizá-lo numa narrativa conclusiva que permita o entendimento de uma história no contexto de outras histórias do mesmo narrador (Taylor, 1995). Construir significado clínico a partir de narrativas e achados físicos é tarefa interpretativa (Gogel & Terry, 1987), chamada pela Medicina de diagnóstico (Brieger, 1994), ou seja, a “leitura” do texto/obra que o paciente e sua doença perfazem juntos (Evans, 1998). Se a Medicina pode ser assim concebida como um campo interpretativo ou hermenêutico (Gogel & Terry, 1987), as Artes e a disciplina correlata de Crítica de Arte podem oferecer contribuições valiosas aos estudantes de Medicina. A inclusão das Artes Visuais nos currículos médicos parece, portanto, desejável (Downie, 1998). Elas incentivam e oferecem oportunidades para reflexão crítica, pensamento não-científico, pensamento simbólico, reações estéticas, liberação de sentimentos, consciência de valores pessoais e sentimentos, observação, análise e outras habilidades hermenêuticas. Acresça-se que elas incentivam habilidades intelectuais e psicomotoras específicas úteis para a profissão, como visão espacial e a capacidade de pensar em terceira dimensão. Por fim, as Artes Visuais são recreativas, na medida em que produzem prazer e um contra-ponto relaxante ao stress diário (Siegel & Siegel, 1977; Parkin, 1987; Morani, 1992; Pásztor, 1993; Vogel, 1993; Bruderle & Valiga, 1994; Darbyshire, 1994; Taylor, 1995; Hook, 1996; Bertman, 1998; Malacrida et al., 1998). Discutidas algumas razões que justificam a presença das Artes nos currículos médicos, cabe ressaltar que educadores de Arte advogam a presença das Artes em currículos gerais por meio de duas classes não mutuamente exclusivas de argumentos (Dobbs, 1998). A perspectiva Essencialista prega a noção de que as Artes devem existir nos currículos pelo seu valor intrínseco e por aquilo que elas provêem, ou seja, uma fonte de experiências estéticas, de conhecimento e entendimento de si mesmo, dos trabalhos de Arte e do mundo onde eles foram criados (Dobbs, 1998), além

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de desenvolvimento de cultura estética e apreensão de metáforas visuais (Smith, 1989). A perspectiva Instrumentalista valoriza a Arte pela sua contribuição para o cumprimento de objetivos mais gerais em outras áreas e disciplinas não artísticas. Exemplos seriam o desenvolvimento de percepção de uma sociedade multicultural, competência em comunicação, desenvolvimento cognitivo, imaginação, julgamento, capacidade de resolução de problemas e pensamentos de complexidade intelectual superior (Dobbs, 1998). A Educação pelas Artes carrega, então, um valor intrínseco e um valor extrínseco utilitário, ambos contribuindo para uma educação generalista e liberal. A finalidade com a qual as Artes são introduzidas nos currículos médicos pode obedecer potencialmente a uma, a outra ou a ambas as perspectivas (Essencialista e Instrumentalista). Atendo-se à perspectiva Instrumentalista, educadores médicos podem argumentar que o ensino/aprendizagem das e nas Artes em currículos médicos carrega a função de facilitar a execução de outros objetivos mais amplos dentro desses currículos, contribuindo para a formação de um médico detentor não só de excelência técnica, mas também dos traços humanistas instilados por uma Educação Geral e requeridos pelo paradigma Humanista da Medicina. Poder-se-ia, então, dizer que o ensino/aprendizagem das Artes pode mediar o ensino/aprendizagem da própria Medicina, ou seja, pode-se ensinar Medicina por meio das Artes. É esta hipótese que alimenta e sustenta o trabalho educacional de planejamento e implementação dos cursos citados no começo deste texto. Referências ARNOLD, L., MEISELAS, L., ORGEL, G., PEMBERTON, L.B. Cross-disciplinary perspectives on a liberal education for physicians. Pharos, v.47, n.1, p.24-8, 1984. BARTOL, G.M. Using the Humanities in nursing education. Nurse Educ., v.11, n.1, p.21-3, 1986. BECKINGHAM, C.R. Science, the humanities, nursing research and nursing. Int. Nurs. Rev., v.29, n.2, p.41-5, 1982. BERGMAN, G.E., SORENSON, J.H., GABRIELSON, I.W. An adjunct Humanities faculty in Medical School. J. Med. Educ., v.57, n.5, p.413-15, 1982. BERTMAN, S.L., MARKS, S.C. Humanities in medical education. Med. Educ., v.19, n.5, p.374-81, 1985. BERTMAN, S. Ars Moriendi: illuminations on the good death from the arts and humanities. Hosp. J., v.13, n.1, p.5-28, 1998. BIGGERSTAFF, D.E., SCHNITZ, G.W., WINGROVE, M.S. Enhanced communication skills for medical students through drawing. J. Biocommun., v.11, n.1, p.2-4, 1984. BLIZEK, W.L., FINKLER, D. Teaching human values in Medicine. J. Med. Educ., v.52, n.10, p.85859, 1977. BRESNAHAN, J.F., HUNTER, K.M. Ethics education at Northwestern University Medical School. Acad. Med., v.64, n.12, p.740-43, 1989. BRIEGER, G.H. Do the humanities make for humane physicians? (editorial) Pharos, v.57, n.3, p.42, 1994. BRUDERLE, E.R. The arts and humanities: a creative approach to developing nurse leaders. Holist. Nurs. Pract., v.9, n.1, p.68-74, 1994.

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LEONILSON, JLBD, 1993, Coleção Família Bezerra Dias, SP

TAPAJÓS, R. La introducción del arte en los currículos médicos, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.27-36, 2002. La capacitación profesional apropiada en el campo de la infección por HIV/ Sida asume que el tratamiento y los cuidados sean ofrecidos de forma adecuada, ética y humanizada. La preocupación con esta capacitación ha acentuado la discusión sobre cómo la formación médica puede integrar la adquisición de la excelencia técnica y rasgos humanistas. Así, la educación medica pasa a incorporar el desafío de adecuarse para providenciar a los médicos, productos finales de sus currículos, una formación humanista y humanizadora. Las humanidades, especificamente las Artes, son disciplinas que clásicamente cumplen esta función. Su introducción en los currículos médicos se postula y se discute, sea por su valor intrínseco, sea para facilitar la ejecución de objetivos más amplios dentro de esos currículos. PALABRAS-CLAVE: Educación médica; Humanismo, Artes; HIV/SIDA. Recebido para publicação em: 03/12/01. Aprovado para publicação em: 23/01/02.

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Contribuição ao movimento de mudança na formação profissional em saúde: uma avaliação das experiências UNI Laura C. M. Feuerwerker Roseni R. Sena

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FEUERWERKER, L.C.M., SENA, R.R. A contribution to the movement for change in professional healthcare education: an assessment of the UNI experiences, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.37-50, 2002.

This article analyzes strategies for change and the partial results of the experiences on change in the training of healthcare professionals, based on the UNI projects in Latin America. What stands out is the organic articulation between university, healthcare services and community organizations as the fundamental strategy guiding the processes of change toward social relevance. The essential characteristics of the innovative training proposals are: integrated curricula organized into thematic modules based on relevant real problems; active teaching-learning methodologies, that regard the students as subjects; practice within healthcare services and the community from the very beginning of the course; and educational and overall evaluation during the course of the whole process. KEY WORDS: Organizational innovation; health manpower; professional education. O artigo analisa estratégias de mudança e resultados parciais das experiências de mudança da formação de profissionais de saúde desencadeadas a partir dos projetos UNI na América Latina. Destaca-se a articulação orgânica entre universidade, serviços de saúde e organizações comunitárias como estratégia fundamental para orientar os processos de mudança na direção da relevância social. Características essenciais das propostas inovadoras de formação: currículos integrados, organizados em módulos temáticos baseados em problemas relevantes da realidade; metodologias ativas de ensino-aprendizagem que tomam estudantes como sujeitos; prática nos cenários dos serviços e da comunidade desde o início da carreira; avaliação formativa e somativa ao longo de todo o processo. PALAVRAS-CHAVE: Inovação organizacional; recursos humanos em Saúde; educação profissionalizante.

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Médica, coordenadora do Programa de Apoio aos Projetos Uni, Fundação Kellogg (São Paulo). <laura.feuerwerker@wkkf.org> Enfermeira, diretora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. <roseni@enf.ufmg.br>

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LAURA FEUERWERKER E ROSENI SENA

Introdução Desde 1992, universidades, serviços de saúde e organizações comunitárias de 11 países da América Latina participam de um programa inovador conhecido pela sigla: UNI (Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde: União com a Comunidade). O propósito do UNI era produzir mudanças sincrônicas nas universidades, serviços de saúde e comunidades participantes, bem como nas relações entre eles. Partiu-se do pressuposto que na América Latina, de profundas desigualdades sociais e democracia incipiente, somente se poderia construir a relevância social das universidades e dos serviços de saúde por meio de sua abertura a relações democráticas com a população e suas organizações. Pretendeu-se mudar o processo de formação profissional na área da saúde, incorporando conhecimentos e tecnologia para educação de adultos, o que implicou na introdução de metodologias que favorecessem a aprendizagem ativa, centrada no estudante e a adoção de currículos flexíveis, o desenvolvimento de capacidade de crítica e de investigação (Bordenave & Pereira, 1993). Buscou-se também desenvolver currículos integrados, baseados na interdisciplinaridade para o enfrentamento de problemas presentes numa realidade complexa (Morin, s.d.), visando possibilitar ao estudante conhecer desde o início de sua formação essa realidade, o funcionamento e as necessidades dos serviços de saúde, estabelecendo relações mais humanas e responsáveis com a população. Na organização dos conteúdos de ensino, em lugar de esquematizá-los previamente, a proposta foi trabalhar com uma lógica de flexibilização, respeitando as diferentes maneiras e os ritmos de cada aluno na construção do conhecimento. Currículos construídos a partir desta concepção contribuem para o desenvolvimento de um enfoque interdisciplinar e para a ampliação de espaços que podem ser aproveitados pelos estudantes para o estudo independente (Lück, 1994). Pretendeu-se também mudar os serviços de saúde, contribuindo para que se tornassem mais efetivos, integrados, sensíveis à realidade local; mais abertos às necessidades da população e comprometidos com a resolução de seus problemas; com capacidade de participarem ativamente do processo de formação profissional. Pretendeu-se, também, contribuir para o fortalecimento da cidadania e da participação popular em saúde, ampliando o acesso da comunidade aos conhecimentos em saúde, às tecnologias fundamentais para seu desenvolvimento mais autônomo, fortalecendo suas organizações próprias e sua capacidade de intervenção local. Dez anos depois que a Fundação Kellogg lançou os convites às universidades latino-americanas para sua participação no programa UNI, cabe lançar um olhar analítico às experiências desenvolvidas e resultados alcançados (Feuerwerker & Sena, 1999). Seminários de sistematização, processos de autoavaliação, estudos especiais contratados com avaliadores externos e outras iniciativas vêm sendo realizadas com esse objetivo. Este artigo é um dos resultados desse processo de sistematização e avaliação das experiências desenvolvidas pelo Programa UNI. As autoras

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CONTRIBUIÇÃO AO MOVIMENTO DE MUDANÇA...

integram a equipe técnica que, há seis anos, acompanha e dá apoio ao desenvolvimento dos projetos, mediante visitas periódicas (semestrais ou anuais), comunicação à distância, oficinas e reuniões, assistência técnica específica e análise do material produzido pelos projetos. A síntese aqui apresentada foi realizada com base em material documental do programa (Feuerwerker, 1998; Feuerwerker & Sena, 1999; Sena-Chompré & Egry, 1998) e dados levantados pelas autoras nas visitas aos projetos. As estratégias e os processos de mudança As categorias de mudança Para analisar os processos e de algum modo qualificar os resultados obtidos pelos projetos UNI, foi necessário definir algumas categorias analíticas em relação às mudanças, as quais adaptamos de estudo desenvolvido por Almeida (1999). Diferenciamos um primeiro plano, que concentra as intervenções pontuais, localizadas, parciais, centradas nas atividades, nos meios, nas relações técnicas entre os atores no processo de ensino, no processo de prestação de serviços de saúde e de participação da população. É o plano do reconhecimento da realidade, do reconhecimento da existência do outro, da descoberta da possibilidade de ação. Os resultados produzidos por essas atividades em geral são alterações isoladas de processos. Há um segundo plano de intervenção que é o dos atores sociais e das relações de força. Corresponde ao processo da constituição de sujeitos pela construção de espaços coletivos de reflexão, democratização do conhecimento, percepção de que os sujeitos têm possibilidade de ação real (quer dizer, a percepção de que há espaço e recursos de poder para levar as propostas à prática). Aqui as mudanças incidem sobre dimensões mais abrangentes do processo de formação profissional, da prestação de serviços e da participação popular, quais sejam, as relações sociais, estabelecendo novos critérios de convivência entre os sujeitos envolvidos. No terceiro plano existem mudanças na correlação de forças entre os diversos sujeitos e grupos dentro das instituições e entre elas. As mudanças envolvem a essência do próprio processo de produção do conhecimento e da construção de novos paradigmas. São as mudanças mais amplas, que têm como alvo as relações políticas entre os sujeitos sociais e os atores institucionais. Alguns projetos, desde o princípio, desenvolveram proposições globais que revelavam propósitos e ações de mudança nos três planos, especialmente no que diz respeito ao processo de formação profissional. Outros foram construindo essas estratégias ao longo de seu processo de implementação. Muitos não se deram conta do processo e não conseguiram intervir de maneira mais organizada ou planejada. Como conseqüência, em todas as esferas predominaram os processos do primeiro e segundo planos. Apesar disso, estão em curso algumas transformações mais profundas no campo da formação profissional, nos serviços de saúde e no campo da participação popular. No entanto, em um

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número significativo de projetos, somente em período mais recente houve a percepção de que as inovações e mudanças nos processos e nas relações são importantes, mas não bastam para chegar onde se pretendia. As principais estratégias para a construção de cenários favoráveis A proposta UNI, desde sua fase de planejamento, buscou a construção de cenários favoráveis à implantação e implementação dos projetos, com algumas orientações gerais essenciais: 1 A proposta de parceria entre universidades, serviços de saúde e organizações comunitárias, que é a principal idéia da iniciativa UNI. Não se trata de qualquer parceria: trata-se de uma modalidade de cogestão do processo de trabalho colaborativo, em que os sócios compartilham poderes, saberes e recursos. A importância dessa proposta de co-gestão se verificou em vários âmbitos: paradigmático: A universidade e o mundo do trabalho têm que se abrir para o mundo da vida. Portanto, as mudanças que se pretendem não podem ser alcançados pelas instituições isoladamente. O mundo real, com sua complexidade, tem que estar ativamente presente na construção das novas maneiras de trabalhar e produzir conhecimento. político: a construção de relevância social nas universidades e nos serviços passa, necessariamente, por sua abertura à participação da população, não somente como usuários, mas como cidadãos, especialmente em contextos onde predominam a desigualdade e a democracia é incipiente. estratégico: a parceria possibilita que se somem as forças favoráveis à mudança que existem na academia, nos serviços e na comunidade, aumentando a governabilidade dos processos de mudança. Ao mesmo tempo, a própria interação produz um impulso em direção à mudança porque se evidenciam as limitações do modo tradicional de dar conta dos problemas da realidade agora percebidos sem tantos filtros. técnico: traz desafios que exigem aumentar capacidades no terreno da comunicação, negociação, planificação e em tantas outras áreas, de acordo com a natureza complexa dos problemas reais que as equipes se propõem a enfrentar. 2 Porta de entrada: a inserção dos projetos nas instituições de saúde, de educação e nas organizações comunitárias Os projetos entraram na universidade a partir de um compromisso institucional, da direção das instituições, com as propostas apresentadas pelo programa. Muito embora isso não tenha sido garantia de permeabilidade às inovações, na maior parte dos projetos foi suficiente para que elas não ficassem restritas a um departamento ou a pequenos grupos no interior das faculdades. O mesmo em relação aos serviços de saúde. Com a aprovação da direção regional de saúde, pelo menos distritos inteiros, quando não todo o município, foram envolvidos no compromisso inicial de trabalho. Os parceiros comunitários foram buscados nas organizações mais

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representativas, com maior capacidade de mobilização e reconhecimento da população das áreas de intervenção. Procurou-se, assim, fortalecer a governabilidade dos processos de mudança que se pretendia desencadear. 3 Desenvolvimento de estratégias para participação ativa dos atores nos projetos Como na maior parte dos processos inovadores, os UNI também foram iniciados pela ação efetiva de um núcleo de pessoas mais mobilizadas da universidade, dos serviços e da comunidade. No entanto, sempre houve a preocupação de ampliar quanti e qualitativamente a participação: foram incorporadas pessoas dos mais variados departamentos, de diferentes posições políticas, de diferentes organizações e serviços que faziam parte da área de abrangência dos projetos. Este também foi um processo de construção contínua, implicando em negociações e conflitos permanentes entre e no interior de cada segmento. Interesses divergentes estiveram sempre presentes chegando, em alguns casos, a levar à conformação de grupos de oposição organizada aos processos de mudança. Na maioria das vezes, no entanto, este processo levou à construção de amplos consensos, com a definição de agendas comuns que viabilizaram o trabalho conjunto. O que aconteceu na prática A estratégia organizativa para a construção de um novo modelo pedagógico foi diferente em cada projeto, tanto nos aspectos conceituais, quanto metodológicos. Em algumas universidades, a proposição do UNI reforçou movimentos de mudança curricular já existentes. Nesse caso, o projeto foi utilizado como insumo estratégico para potencializar/enriquecer/ direcionar as mudanças em curso. Em outros, a capacidade de utilização do UNI foi mais limitada. Há várias explicações para esta diferença: por exemplo, o tipo de inserção do projeto na instituição e sua relação com a direção das faculdades/cursos. Apesar da preocupação inicial de garantir compromisso institucional com o projeto, havia diferenças importantes nas relações com o poder. Quanto mais distante, menor a capacidade de utilizar plenamente o potencial do UNI. Outro elemento fundamental foram as concepções predominantes em cada projeto a respeito de como se deveriam construir os processos de mudança. Mais uma vez, apesar de a teoria geral do programa prever e valorizar processos participativos, foi variável a compreensão e a capacidade de construir alianças e espaços democráticos para apropriação das propostas do projeto por um grande número de professores. Também foi diferente, entre os projetos, o grau de acúmulo de experiências prévias de articulação ensino-serviço e de reflexão crítica sobre os processos tradicionais ensino-aprendizagem. Isso certamente interferiu na capacidade de criar estratégias de articulação entre os processos de reflexão e a construção de alternativas (metodologias, organização de conteúdos, cenários de aprendizagem). Num segundo grupo de projetos, apesar de haver questionamentos em

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torno do modelo tradicional de ensino-aprendizagem, não existia efetivamente um movimento de mudança em curso. Nessas situações, o UNI representou um estímulo e aportou recursos técnico-financeiros para que se discutissem idéias e buscassem caminhos para a adoção de um novo referencial teórico–metodológico. Alguns projetos utilizaram o UNI como uma oportunidade para organizar as forças e introduzir mudanças de forma planejada. Em outros, por limitações da capacidade de convocatória, da adesão e da força institucional da proposta, houve apenas iniciativas pontuais e isoladas. E outros, ainda, não chegaram a compreender os mais profundos significados (conceituais) contidos na proposta. Ou seja, o fato de não haver, por parte do programa, um convite explícito a uma mudança radical do processo de formação, permitiu que alguns processos ficassem restritos aos aspectos mais pontuais das proposições. Num terceiro grupo, o projeto chegou a instituições que enfrentavam uma situação de crise e foi convertido em uma alternativa concreta de solução. Nestes casos o ideário UNI influenciou positivamente na definição dos marcos de referência e foi útil na construção das estratégias para colocar em marcha as propostas inovadoras. Um aspecto comum a todos foi o reconhecimento de que as transformações deveriam ocorrer no cotidiano da prática pedagógica. Esperava-se, assim, que a prática reconstruída fosse capaz de orientar as relações entre os atores - educando e educador - e levasse à aplicação do conhecimento gerado para transformar a realidade e contribuir para a construção de novos paradigmas. Assim, foram oferecidas oportunidades para que muitos professores se envolvessem/ propusessem/ construíssem múltiplas experiências inovadoras. A capacidade de produzir transformação, portanto, dependeu da possibilidade de criar “massa crítica” e do grau de “governabilidade” dos sujeitos envolvidos nas relações de ensino-aprendizagem. O foco foi centrado no desenvolvimento das pessoas, sua capacidade de intervenção e proposição enquanto potencialidade para um novo processo de formação dos profissionais de saúde. A categorização das mudanças e das estratégias Retomando a proposta de examinar as mudanças da prática pedagógica por meio de planos de desenvolvimento dos processos, podemos dizer que no primeiro plano situaram-se as iniciativas dirigidas a fortalecer as mudanças em cada uma das carreiras. Para este fim, foram promovidas atividades (seminários, reuniões, consultorias, cursos) para discussão conceitual e reflexão sobre as práticas pedagógicas. Inicialmente, essas atividades foram dirigidas aos docentes diretamente envolvidos com a execução do projeto. Posteriormente, como um instrumento concreto de ampliar a adesão ao processo de mudança, passaram a ser oferecidas ao conjunto dos docentes, aos profissionais do serviço e atores da comunidade. Foram também realizados investimentos para a incorporação de tecnologias de ensino. Dentre estas destacam-se as novas metodologias de ensino, equipamento audiovisual, bibliotecas, salas de multimeios,

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laboratórios de simulação, de habilidades e de informática. Nos UNI, de modo geral, a incorporação tecnológica foi concebida como um meio de favorecer as mudanças pedagógicas (e não como um fim em si mesma). Reconheceu-se que a tecnologia poderia funcionar como um estímulo às inovações, já que permitia democratizar e agilizar o acesso à informação, favorecia o estudo independente e conferia outra dinâmica ao trabalho docente. Por outro lado, os projetos de inovação pedagógica implicaram o uso de tecnologia que, até então, não estava disponível. Em alguns casos, o acesso a novas tecnologias atraiu grupos de docentes resistentes a quaisquer propostas inovadoras. No segundo plano, os processos para a transformação da formação dos profissionais de saúde foram conseqüência de estratégias definidas com o propósito de articular os docentes para uma nova ação pedagógica. No contexto UNI a possibilidade de construção da parceria com os serviços de saúde e com a comunidade constituiu-se em terreno fértil para tanto. O processo de formação dos profissionais ultrapassou os muros da universidade e adquiriu novas dimensões e passou a considerar as diferentes realidades nas quais se produz e reproduz o processo saúde-doença. Foi possível, assim, diversificar os atores sociais responsáveis pela ação pedagógica, que, em conseqüência, adquiriu maior amplitude conceitual e metodológica. Para a construção dos novos processos a universidade passou a considerar temas relacionados à produção social da saúde, à organização e ao funcionamento dos serviços de saúde, à mobilização e organização da comunidade e ao controle social do processo saúde-doença. Neste novo modo de pensar e agir na formação dos profissionais de saúde os atores do serviço e da comunidade passaram a interagir em um espaço plural de interesses, potencialidades e capacidades. Nesses novos espaços de interação definiram-se as novas responsabilidades conjuntas em relação ao processo ensino-aprendizagem e as específicas de cada instituição e de cada ator social. No campo das práticas pedagógicas as novas interações ampliaram os espaços de ação dos docentes e dos estudantes em realidades concretas. A parceria passou a exigir um respeito mútuo das diferenças e a construção de uma agenda comum em todos os terrenos, o que facilitou a mudança do processo ensino-aprendizagem. Para a definição desta agenda muitos projetos tomaram o planejamento como ferramenta indispensável. Os melhores resultados foram alcançados pelos projetos que adotaram o planejamento estratégico para a definição e operação de sua proposta de intervenção, articulando e integrando a universidade, os serviços e a comunidade. A vivência de novas relações entre as instituições e os atores sociais contribuiu para criar condições favoráveis para as transformações na formação. A maior parte dos projetos iniciou o processo de produção de inovações e de interação entre universidade - serviços - comunidade pela diversificação dos cenários de ensino-aprendizagem em distintos momentos das carreiras. Para isso, foi necessário um trabalho de mobilização dos professores em relação às possibilidades de um ensino de qualidade em outros cenários que não os universitários (ou sob controle da lógica universitária). Foi também

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preciso trabalhar com os profissionais dos serviços de saúde e com a população para que estivessem receptivos a essa presença. Diferentemente de outras experiências como as de integração docenteassistencial, existiu o propósito de não transformar o espaço dos serviços de saúde e da comunidade em prolongamentos do hospital universitário e dos centros de saúde-escola. Ou seja, não se pretendeu descaracterizá-los como cenários de produção de serviços, nem transformá-los em locais privilegiados de práticas educacionais. Então, a construção dos espaços de aprendizagem se deu pela incorporação de estudantes e docentes ao processo de produção de serviços. Sem dúvida, a interação produziu mudanças recíprocas, sem, no entanto, descaracterizar a natureza do processo de produção de serviços. Em muitos casos as inovações foram construídas a partir de problemas e necessidades identificadas pelos três parceiros, havendo progressivo compromisso com a continuidade das ações instituídas, com as demandas geradas e com os resultados e impactos obtidos. Essas mudanças nas práticas acadêmicas e assistenciais foram revelando novos objetos de estudo e de trabalho, que exigiram, principalmente da universidade, uma reflexão sobre sua prática, envolvendo diferentes setores acadêmicos. Produziram-se, assim, alternativas pedagógicas que favoreceram a articulação teoria e prática, ensino – trabalho e a adoção de enfoques interdisciplinares. Os resultados obtidos na esfera acadêmica não podem ser tomados como efeito de uma única estratégia. De fato, as mudanças ocorreram no UNI como resultado do sinergismo de muitas ações realizadas simultaneamente, por muitos atores e com diferentes intencionalidades. O componente acadêmico transformou-se em um espaço privilegiado para a proposição de mudanças, discutidas e consensuadas entre sujeitos dos três componentes. Outro processo que favoreceu a criação das condições básicas e indispensáveis às mudanças foi a sistematização das experiências a partir de uma reflexão coletiva e participativa: esta foi a matéria-prima para os passos seguintes e para as novas proposições. As mudanças radicais Particularmente nas carreiras de Medicina e Enfermagem estão ocorrendo processos de mudança radical em Londrina, Marília, Barranquilla, Colima (em todos esses casos, envolvendo as duas carreiras), e em Salvador, Mérida e Natal na carreira de Enfermagem. Chamamos de mudanças radicais os processos de mudança em que se adotam currículos integrados, organizados em módulos interdisciplinares, utilizando-se predominantemente metodologias ativas de ensinoaprendizagem. São currículos em processo de construção permanente,

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orientados pela avaliação sistemática do programa. Práticas multiprofissionais dos estudantes nos cenários de serviços e comunidade ocorrem ao longo de todos os anos de toda a carreira, trabalhando sobre problemas relevantes identificados em conjunto com os serviços e a população. Adota-se a avaliação formativa do estudante, cobrindo todos os aspectos: conhecimento, habilidades e atitudes. Também ocorrem mudanças importantes nas relações entre os vários atores, pois a definição dos conteúdos abordados durante o curso é um processo coletivo e coordenado, que não está sob o controle de disciplinas ou departamentos isolados. Os docentes agora são facilitadores do processo de aprendizagem, do qual o estudante é o sujeito. Finalmente, introduzem-se mudanças na estrutura organizativa da universidade para dar cabida aos processos de transformação; há abertura de espaços para o desenvolvimento de investigações sobre temas relevantes identificados pela comunidade e pelos serviços e os profissionais dos serviços e comunidade participam ativamente do processo de formação. A interação comunitária Um dos aspectos mais estratégicos das experiências UNI são as unidades de interação comunitária, longitudinais, desenvolvidas nos serviços e na comunidade ao longo de todo o ano e de todo o curso. Muitas expectativas estão colocadas sobre este trabalho, que pretende ser um instrumento para superar a dicotomia entre teoria e prática, criando as condições para a ação-reflexão-ação. Como são desenvolvidas nos cenários reais, essas unidades possibilitam aproximar os espaços de aprender e trabalhar, preparando o estudante para enfrentar os problemas reais e as mudanças do mundo do trabalho. Nesses espaços de práticas, vários projetos encontraram nas metodologias baseadas na concepção pedagógica crítico-reflexiva, especialmente a problematização, um instrumental adequado para articular a ação dos diferentes atores sobre os problemas da realidade. Essas metodologias permitem leitura e intervenção rápidas sobre a realidade; favorecem a interação entre os diversos atores pois pressupõem a participação e vivência coletiva; favorecem a construção coletiva do conhecimento e a valorização de todos os saberes porque o conhecimento da realidade não é de domínio exclusivo de nenhum dos participantes; estimulam a criatividade na construção de soluções; propiciam a liberdade no processo de pensar e de agir (Bordenave & Pereira, 1993; Freire, 1997). Um outro grupo de tecnologias utilizadas pelos projetos são as metodologias de ensino baseado em problemas, especialmente na carreira de Medicina (Venturelli, 1997). Nos UNI há pelo menos uma distinção importante em relação a currículos PBL de outras partes do mundo: a presença desde o primeiro ano de um módulo/unidade transcurricular, multiprofissional, desenvolvido na comunidade e na rede de serviços. Essa provavelmente foi uma das marcas que a experiência de parceria deixou

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nesses processos. E essa parece ser uma distinção importante. Em primeiro lugar, porque representa o reconhecimento de que os “problemas de papel”, a base dos outros módulos, não dão conta de propiciar aos estudantes todas as experiências necessárias ao seu processo de formação nos primeiros anos da graduação. Ou seja, reconhece-se a importância de haver “problemas de verdade”, pois não há o que substitua o contato humano, a vivência e o compartilhar dos problemas, a solidariedade, a construção de vínculos pessoais, a apropriação da realidade que essas experiências propiciam. Representam também o reconhecimento de que essas oportunidades têm que estar presentes ao longo de todo o curso, pois são fundamentais para a formação humanística e ética dos futuros profissionais (Oficina, 1998). Em segundo lugar, porque materializam uma mudança fundamental no processo de formação profissional e nas relações universidade-serviçoscomunidade. As relações entre estudantes de diferentes carreiras, entre estudantes e profissionais dos serviços, estudantes e comunidade, os trabalhos práticos e as intervenções desenvolvidos através desses módulos são fundamentais para que se construam novas posturas e novas práticas profissionais (relação promoção/prevenção/cura mais equilibrada, maior compromisso e respeito com os parceiros e seus problemas, capacidade de comunicação, de escuta, relações mais democráticas etc.). São também o terreno em que se concretiza a contribuição/participação direta dos profissionais dos serviços e da comunidade no processo de formação profissional pelo compartilhar de objetivos e ações. Também podem contribuir para as transformações das práticas de saúde na direção de assegurar a qualidade, a integralidade do cuidado e a eqüidade, buscando desenvolver competências e habilidades para integrar as dimensões do individual e do coletivo no cuidado à saúde. integrando conteúdos, atitudes, valores e habilidades no exercício das práticas de saúde (Venturelli, 1997). Mediante este trabalho também se pretende preparar os estudantes para o trabalho em equipe multiprofissional, já que as práticas são desenvolvidas multiprofissionalmente desde o início dos cursos. Ou seja, mesmo nos currículos inteiramente organizados com a lógica do PBL, a existência desses módulos parece ser fundamental para que uma parte dos objetivos da transformação no processo de formação se concretize. Por que foram possíveis as mudanças radicais Os processos mais amplos de reforma curricular tiveram histórias distintas não somente de projeto a projeto, mas também de carreira a carreira. Em relação aos projetos, as mudanças mais amplas ocorreram em locais em que havia uma longa história de acúmulo de reflexão e de tentativas de inovação na área acadêmica ou então em lugares em que existia uma crise tão grave que a mudança radical surgiu como alternativa de sobrevivência. Em relação às carreiras, o UNI teve desde logo a capacidade de atrair e mobilizar muitas outras carreiras, além da Medicina e da Enfermagem. Cursos como Bacteriologia e Bioquímica, por exemplo, que nunca haviam

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desenvolvido atividades fora dos cenários tradicionais, tiveram a oportunidade de descobrir o que podiam fazer no espaço comunitário e dos serviços e também suas possibilidades de interação com outras profissões. No entanto, apesar do grande entusiasmo e da intensa participação em muitas das iniciativas inovadoras, a falta de reflexão acumulada acerca dos problemas do processo de ensino-aprendizagem e de experiências anteriores de construção de alternativas pareceu dificultar que essas outras carreiras mergulhassem em processos amplos de mudança. Mais comumente, Medicina e Enfermagem foram os cursos que chegaram até processos de mudanças mais radicais (embora haja exceções – Odontologia em dois casos, Fisioterapia em outros dois, Psicologia e Nutrição em um caso cada etc.). Na Enfermagem havia uma história latino-americana de relações extensas da universidade com os serviços de saúde, portanto as resistências a atividades inovadoras dessa natureza eram baixas. Ao contrário, essa ligação mais forte com os serviços de saúde funcionou como forte impulso e subsídio à problematização do processo de formação, seus objetivos e princípios (Sena-Chompré & Egry, 1998). Houve casos em que o processo de debate em torno do currículo foi considerado um instrumento fundamental para a construção do modelo pedagógico. O primeiro passo, então, foi caracterizar os perfis profissionais, considerando os contextos e as tendências da prática sanitária em cada país. O enfoque e a definição dos conteúdos foram submetidos a uma nova lógica de organização, com base na interdisciplinaridade, na concepção de trabalho multiprofissional e na especificidade da prática de cada profissão. Na Medicina, existiam anos de acúmulo em relação à discussão conceitual em torno do perfil profissional, dos problemas e insuficiências do modelo pedagógico tradicional contrastando com uma capacidade muito limitada de produzir mudanças efetivas. Havia, no entanto, resistência muito maior à participação nas iniciativas inovadoras como a diversificação de cenários de ensino-aprendizagem. Um elemento essencial para a produção de mudanças foi a capacidade de envolver amplos segmentos do corpo docente na criação e experimentação de alternativas na prática pedagógica concreta: novos conteúdos, novas metodologias, novas articulações, novos cenários. Dizer que foram incorporados amplos segmentos significa dizer que foram incorporados professores das áreas clínicas, das áreas básicas, numa mobilização que ultrapassou de longe os limites das áreas que tradicionalmente propunham mudanças (Medicina Social/Saúde Coletiva). Ou seja, foi essencial para a construção da possibilidade de mudar, que existisse uma ampla massa crítica, agora com poderes para experimentar, propor, construir. A análise/avaliação permanente dessas inovações foi também um instrumento muito importante para evidenciar a necessidade e propiciar a construção de mudanças mais amplas. As amplas reformas curriculares estão produzindo movimentos relacionados ao terceiro plano de intervenção: as relações entre os sujeitos e os atores institucionais. Está se iniciando toda uma reorganização dos modos de operar da universidade para contemplar as novas necessidades dos cursos inovados. Está sendo proposta uma nova maneira de considerar e

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avaliar a prática pedagógica e de investigação (reconhecendo novos papéis e funções para professores e estudantes). Está havendo a abertura de espaços institucionais que contemplem a participação de sujeitos e atores não universitários no processo de definição e operacionalização do processo ensinoaprendizagem (desde a participação oficial de representantes dos serviços de saúde e da comunidade em comitês curriculares, em comitês de análise de propostas de pesquisa até o reconhecimento oficial por parte da universidade do trabalho pedagógico realizado pelos profissionais dos serviços). Núcleos de apoio pedagógico, novas diretrizes que favorecem a investigação interdisciplinar, são outros exemplos de iniciativas institucionais inovadas. Desafios Especialmente na Medicina, ainda falta muito para avançar na articulação dos aspectos bio-psico-sociais na construção e abordagem dos problemas, tanto na prática, como nos módulos trabalhados nos tutoriais, apesar da determinação em fazê-la. Conforme avançam as mudanças, está se tornando necessário repensar o processo de formação profissional como um todo, articulando coerentemente a graduação, as várias modalidades de pós-graduação e a educação permanente. Este desafio se coloca, pois agora que as mudanças estão chegando ao internato (tanto na Medicina como na Enfermagem), tornou-se indispensável repensar e reorganizar o espaço da atenção clínica, rompendo com a fragmentação das especialidades, colocando, em primeiro lugar, como lógica estruturante, as necessidades dos usuários. No entanto, esta não foi uma linha de trabalho na qual se tenha acumulado muita prática ou reflexão no projetos. Como fator facilitador há as mudanças de contexto, que também pressionam por mudanças do modelo e das relações entre profissionais de saúde e população. Também é preciso investir de maneira muito mais clara e intensa para transformar as relações profissionais de saúde – paciente dentro do âmbito hospitalar, recuperando o status de sujeito do doente e desenvolvendo sua autonomia também nesse ambiente. Se no âmbito da atenção básica já foram dados alguns passos no desenvolvimento do trabalho multiprofissional, há tudo para fazer na esfera da clínica. Considerações finais Essas ainda são mudanças em construção: as lutas entre o novo e o velho estão em plena vigência. Assim como na construção das novas práticas de saúde, essas novas maneiras de produzir conhecimento e formação em saúde demandam o enfrentamento de problemas ainda sem resposta. Não sabemos o final da história, mas sem dúvida podemos afirmar que os projetos que conseguiram construir processos coletivos de mudança e propiciar a constituição de uma massa crítica de sujeitos deram alguns passos seguros em direção à utopia que buscamos na Saúde.

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Referências ALMEIDA M.J. Educação Médica e Saúde: possibilidades de mudança. Londrina: Ed. UEL; Rio de Janeiro: ABEM, 1999. BORDENAVE, J.D., PEREIRA, A.M. Estratégias de ensino-aprendizagem. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 1993. FEUERWERKER, L.C.M., SENA, R. A construção de novos modelos acadêmicos, de atenção à Saúde e de participação social. In: ALMEIDA, M.J., FEUERWERKER, L.C.M., LLANOS, M. A Educação dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: HUCITEC, 1999. p.47-83. FEUERWERKER L.C.M. Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil. São Paulo: Hucitec/ Rede UNIDA, 1998. FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. LÜCK, H. Pedagogia Interdisciplinar: fundamentos teórico-metodológicos. Petrópolis: Vozes, 1994. OFICINA PIN/INTERAÇÃO COMUNITÁRIA. Relatório de oficina conjunta entre os cursos de Medicina e Enfermagem da UEL e da FAMEMA. Londrina, 1998. (mimeogr.) MORIN, E. O problema epistemológico da complexidade. Portugal: Publicações EuropaAmérica (s.d.). SENA-CHOMPRÉ, R., EGRY, E.Y. A Enfermagem nos projetos UNI: contribuição para um novo projeto político para a Enfermagem brasileira. São Paulo: Hucitec/Rede UNIDA, 1998. VENTURELLI, J. Educacion medica: nuevos enfoques, metas y métodos. Washington DC: Organizacion Panamericana de la Salud, 1997.

FEUERWERKER, L.C.M., SENA, R.R. Contribución al movimiento de cambio en la formación profesional en el área de salud: una evaluación de las experiencias UNI, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.37-50, 2002. El artículo analiza estrategias de cambio y resultados parciales de las experiencias de cambio en la formación de los profesionales de salud, desencadenadas a partir de los proyectos UNI en América Latina. Se destaca la articulación orgánica entre universidad, servicios de salud y organizaciones comunitarias como estrategia fundamental para orientar los procesos de cambio hacia la relevancia social. Características esenciales de las propuestas innovadoras de formación: currículos integrados, organizados en módulos temáticos basados en problemas relevantes de la realidad; metodologías activas de enseñanza-aprendizaje que hacen de los estudiantes sujetos; práctica en los escenarios de los servicios y de la comunidad desde el inicio de la carrera; evaluación formativa y sumativa a lo largo de todo el proceso. PALABRAS CLAVE: Inovación organizacional; recursos humanos en salud; educación profesional. Recebido para publicação em: 16/06/01. Aprovado para publicação em: 18/01/02.

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TRAJANO SARDENBERG, 2001

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artigos

Professores de Ensino Superior da área da Saúde e sua prática pedagógica

Maria Eugênia Castanho

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CASTANHO, M.E. University level professors and their pedagogical practice in the healthcare area, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.51-62, 2002.

For this study, we heard university level professors on the subject of their daily pedagogical practices, with a view to finding possible distinctive features in their teaching. Relying of the thematic oral history methodology, we interviewed eleven professors, coordinators and directors. The interviews were taped and later transcribed, checked, converted into running text and re-written. The results were split into three blocks: on becoming a teacher and on remarkable teachers; on teaching strategies; and on coordinators and directors’ duties. The conclusions, also grouped into the three blocks, from which we drew some final inferences, proved to be promising in relation to thinking about initial training and the continued education of professionals from the healthcare area, in connection with the field of university level teaching. KEY WORDS: Higher education; healthcare education; professional practice. A pesquisa ouviu professores do ensino superior da área de Saúde sobre sua prática pedagógica cotidiana, visando encontrar eventuais marcas distintivas de sua docência. Usando a metodologia da história oral temática, foram entrevistados onze professores/coordenadores/diretores. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas, conferidas, textualizadas e transcriadas. Os resultados foram divididos em três blocos: sobre tornar-se professor e sobre professores marcantes; sobre técnicas de ensino; e sobre a função de coordenador/diretor. As conclusões, também agrupadas nos três blocos de categorias dos quais foram inferidas algumas considerações finais, revelaram-se promissoras para que se pense a formação inicial e continuada dos profissionais da área da Saúde com relação à docência universitária. PALAVRAS-CHAVE: Ensino superior; Educação em Saúde; prática profissional.

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Professora da Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica de Campinas/PUCCAMP. <meu@correionet.com.br>

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MARIA EUGÊNIA CASTANHO

Introdução O presente estudo procura resgatar princípios relevantes para pensar o atual ensino na Área de Saúde e para pensar a formação de professores, trabalhando com a história oral temática de vida de professores da área da Saúde. Esses exercem a docência em uma institução de ensino superior de São Paulo e também atuam como coordenadores de curso e/ou diretores de unidade acadêmica. A história oral temática ainda é um campo metodológico bastante incipiente na investigação educacional entre nós, diferentemente do que ocorre em outros países, especialmente europeus, que apresentam ampla produção investigativa em torno do tema nas áreas de Psicologia, Sociologia e Ciências da Educação (Montenegro, 1994; Nóvoa, 1995; Kramer et al., 1996). A introdução dessa metodologia no Brasil deu-se na década de setenta, mas só nos anos noventa experimentou expansão significativa. A multiplicação de encontros e a inclusão em programas de pós-graduação de cursos sobre história oral mostram a vitalidade e o dinamismo da área (Ferreira & Amado, 1996). Além disso, a bibliografia atual mostra as possibilidades de incorporação da história oral nas investigações sobre educação (Bogdan & Biklen, 1997). As histórias orais temáticas têm cruzado várias disciplinas e recorrido a vários enquadramentos conceituais e metodológicos. Como apontou Nóvoa (1995, p.19) esse tipo de estudo deve “enriquecer-se em termos da ação, caminhando no sentido de uma integração teórica que traduza toda a complexidade das práticas”. As vidas de professores podem revelar muito sobre os percursos profissionais, sobre a ligação entre o pessoal e o profissional, os meandros do ato de ensinar (Nóvoa, 1995). A finalidade da pesquisa assim orientada não é detectar particularismos, mas representações dotadas de generalidade: Estaremos percorrendo representações de caráter universal, onde o ser próprio encontra-se em movimento e em relação com determinações específicas; onde a própria razão de ser se define por algo particular e próprio de aspectos específicos da formação social sem, no entanto, perder seu elo, sua relação com planos gerais/universais (....) O tempo histórico não é o tempo vivido. A história escrita, documentada, distingue-se do acontecido; é uma representação. E nesse hiato entre o vivido e o narrado localiza-se o fazer próprio do historiador. (Montenegro, 1994, p.10)

A identidade do professor não é um dado adquirido, mas um lugar de lutas e conflitos, um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão. A maneira como cada um de nós ensina está dependente daquilo que somos como indivíduos quando exercemos o ensino (Kramer & Souza, 1996).

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A inovação pedagógica como contexto Talvez a palavra mais usada hoje no cenário educacional seja inovação. Palavra polissêmica, usada em discursos conservadores e progressistas, inovação pode referir-se tanto a mudanças periféricas quanto a mudanças profundas nas estruturas do ensino. Inovação pode ser entendida como processo planejado de desenvolver uma mudança no sistema, cujas possibilidades de ocorrer com freqüência são poucas, mas cujos efeitos representam um real aperfeiçoamento (Goldberg, 1995). Isso implica rejeitar a idéia de que o conceito possa ser identificado apenas com mudança (qualquer mudança). Mudança inovadora (introduzir alguma novidade), mudança progressiva (mudança que implica progresso e aperfeiçoamento: relações entre renovação e aperfeiçoamento), mudança planejada (não ser esporádica) e processo de mudança (seqüência de etapas de novas práticas). Goldberg (1995) considera que a renovação do sistema deve ser um processo (contínuo e duradouro), mas que precisa ser mais que isso. Distingue entre mudança e inovação, esta última sendo algo mais deliberado, intencional e planificado e não algo que ocorre espontaneamente. Analisa várias conceituações mostrando que, enfim, há diferentes possibilidades de alterar práticas dentro (e apesar) do sistema sócio-econômico e político vigente. O que interessa é discutir a possibilidade de inovação em ambientes acadêmicos específicos. Cunha (1998), numa pesquisa sobre inovação em Educação, analisou as práticas dos professores e evidenciou que esta aparece em novas formas de conceber as relações entre professor-aluno; teoria-prática; ensino-pesquisa; organização do trabalho em sala de aula; concepção de conhecimento; formas de avaliação; inserção no plano político-social mais amplo; interdisciplinaridade. Veiga et al. (2000) encontraram características inovadoras nas atividades de ensino, pesquisa e aprendizagem, assim sintetizadas: estão em movimento constante, desenvolvimento histórico e ininterrupto; instigam e propiciam o descobrimento; trabalham com múltiplas tensões presentes na auto-atividade do aluno; favorecem a relação horizontal professor-aluno, permitindo atendimento à singularidade de cada aluno, evitando a homogeneização; asseguram a relação ensino-pesquisa com o trabalho como princípio educativo; são atividades coletivas permeadas por intencionalidade; atribuem à pesquisa importante espaço de mediação entre ensinar e aprender. Tanto as características apontadas por Cunha (1998) quanto as descritas por Veiga et al. (2000) revelam concepções diferentes das tradicionais, apontando para uma nova forma de ver o conhecimento, a formação profissional e o ensino na universidade. A pesquisa Tendo como contexto a discussão sobre inovação, qualidade e reformulação do ensino, foram realizadas onze entrevistas com professores das áreas de

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CHEVALLIER, Amarelinhas (detalhes).

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Saúde, sendo sete professores/coordenadores de curso e quatro professores/ diretores de unidade acadêmica: Diretor da Faculdade de Odontologia; Diretor da Faculdade de Ciências Médicas; Diretora da Faculdade de Enfermagem; Diretor do Instituto de Ciências Biológicas e Química; Coordenador do Curso de Odontologia; Coordenadora do Curso de Medicina; Coordenadora do Curso de Nutrição; Coordenadora do Curso de Ciências Farmacêuticas; Coordenador do Curso de Fisioterapia; Coordenadora do Curso de Terapia Ocupacional; Coordenadora do Curso de Ciências Biológicas. Do total de onze entrevistados, oito são nascidos na década de cinqüenta e três na década de quarenta. Nove estudaram em escolas públicas nos estudos anteriores à universidade, cinco exclusivamente em escola pública e quatro em instituição pública e particular. Dois cursaram só escolas particulares. Quatro são de Campinas, dois da cidade de São Paulo, dois de outras cidades do interior do Estado de São Paulo, dois de outros Estados (Rio de Janeiro e Minas Gerais) e um de outro país (Panamá). Do total, cinco estudaram na Pontifícia Universidade Católica de Campinas/PUCCAMP, quatro na Universidade de São Paulo/USP, um na Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP e um na Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Quanto à titulação há um pós-doutor, dois doutores, três mestres, dois mestrandos, dois especialistas e um com apenas graduação. Os colaboradores receberam previamente uma folha contendo questões sobre seu ensino a fim de que refletissem sobre o foco que seria desenvolvido na entrevista. Em seguida, foram entrevistados pela autora, com a presença de uma bolsista PIBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica). As perguntas foram centradas em torno de algumas categorias básicas, ressaltando que, por categoria entende-se um conceitochave na estrutura significativa de um texto, um conceito do qual dependem ou ao qual se subordinam outros conceitos. O que significa ser professor no ensino superior na área da Saúde? Como os sujeitos se tornam professores, já que em sua graduação não há, geralmente, disciplinas pedagógicas? Qual a influência de professores marcantes na trajetória profissional? O que estão fazendo como professores e como coordenadores e/ou diretores? O que se usa em termos de técnicas para ensinar? Como pensar a formação de profissionais para o mundo de hoje? As histórias, textualizadas e transcriadas (Bom Meihy, 1998) revelaram toda a complexidade do que é ser professor na área de Saúde e, ao mesmo tempo, apontaram o que se faz no interior das respectivas aulas, especialmente quanto a técnicas de ensino. Encontramos na vida dos entrevistados diferenças e semelhanças. Essas diferenças e semelhanças referem-se tanto à entrada para o campo da educação e ao percurso profissional quanto às opiniões que emitiram com relação ao ensino e à aprendizagem.

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As questões apresentadas nas entrevistas foram agrupadas em três grandes blocos, que passam a ser analisados. Sobre tornar-se professor e sobre professores marcantes Para a maior parte dos entrevistados, tornar-se professor não foi a opção inicial. Alguns, no entanto, exerceram a monitoria com vistas à carreira acadêmica. Vários relatam que iniciaram a docência por necessidade financeira, por estar desempregado etc. Alguns deram aulas em cursinhos preparatórios ao vestibular, como início de carreira. Há uma colaboradora que afirma ter sido monitora, mas que o fato não foi determinante para o ingresso na docência. Também aparece com freqüência a afirmação de que “virou professor de uma hora para outra”, embora uma colaboradora tivesse se dedicado pacientemente a descrever que as coisas não se passam assim, envolvendo uma lenta e progressiva construção. A monitoria aparece geralmente como um degrau (o primeiro) para a docência; inclusive um entrevistado afirmou que não fez monitoria porque não pretendia ser professor e que hoje, como coordenador, orienta seus alunos para esta atividade quando o interesse é por docência. Aparece também uma causa interessante para explicar o tornar-se professor na área da Saúde: a influência familiar. Houve um entrevistado que apontou de início esse fator, falou de professores marcantes e voltou para a família como a grande variável e maior influência para sua docência. Houve também o caso de um diretor que afirmou várias vezes não ter tido qualquer preparo para dar aulas. Mas acabou por deixar claro, com minúcias, o quanto a avó professora o influenciou e também as freiras em cujas escolas trabalhou lecionando, ainda estudante. O que fica evidente é que não houve preparo sistemático, intencional, mas assistemático, como elemento da cultura que formou o contexto no qual se inseriu. Vários entrevistados fazem questão de realçar os cursos de formação continuada e outros eventos na área, oferecidos pela instituição, inclusive o mestrado em Educação, que representa contribuição significativa para a práxis pedagógica. Dignas de registro são as considerações sobre professores marcantes. Há uma lista bastante grande de características nos professores apontados como marcantes. Um colaborador, por exemplo, fala de um professor que marcou como “o bom professor” e outro como o “mau professor”. E o que esteve sempre muito claro foi que procuraria seguir o exemplo do bom professor e jamais incorrer no comportamento do mau professor. Uma colaboradora recorda-se da professora que esteve atenta a questões fora da alçada da sala de aula, referentes à formação emocional dos alunos, e que, apesar de “humana” era enérgica no ensino. A entrevistada procura repetir o modelo com seus alunos. São considerados marcantes: professores que “passavam” o conhecimento mas também davam “dicas” ao aluno que iam além da questão técnica, formando “profissionais inteiros” e não apenas técnicos; professor com experiência e disponibilidade, ensinando o verdadeiro sentido do aprendizado médico-paciente; professor que desenvolveu o hábito de estudar, de procurar, mostrando a responsabilidade pela educação

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continuada; professor com postura “perfeita” sobre a relação médicopaciente - “sob seus conselhos”, os grandes princípios foram aprendidos a partir da análise de casuísticas, muito mais do que o currículo oficial exigia. Professora que marcou pelo modo de dar aula, de fazer a parte prática, o conhecimento que tinha e que transmitia; professor que era um “espelho de bom profissional”, bom professor, pessoa competente; professor marcante pela atitude de educador, não ensinando apenas a matéria. Marcou por ensinar a postura necessária dentro da vida a qualquer momento. Também a postura física influencia: professora muito elegante, com amor pela matéria que ensinava, “explicava o assunto como se fosse a única coisa bonita que existia no mundo”. Apesar da grande diversidade de características, podem ser ressaltados dois pontos que permeiam todas as lembranças: os professores que marcaram a trajetória de nossos colaboradores eram competentes no domínio da matéria a ser ensinada e aqueles que apresentavam uma postura que extrapolava o próprio domínio específico do conhecimento. Em resumo, no professor marcante, o profissional e o humano estiveram irremediavelmente entrelaçados. O bom professor é entendido como o educador atento à personalidade complexa do educando, dados que confirmam estudo anterior desenvolvido por Cunha (1989). Sobre técnicas de ensino Podemos dizer que as técnicas utilizadas na área da Saúde baseiam-se, de modo geral, em dois grandes modelos: o das aulas teóricas, em sala de aula, com grande número de alunos presentes, e o das aulas práticas, nos laboratórios, nos ambulatórios, nos mais variados ambientes onde se desenvolvem os estágios e atividades práticas em geral. Esta parte prática exige uma grande carga horária e, segundo uma entrevistada, corresponde à parcela maior de seu curso. Nas aulas teóricas são usadas aulas expositivas, em vários casos com o apoio de retroprojeção, projeção de slides, apresentação de esquemas e afins. Também a lousa (para fazer desenhos ilustrativos do que está sendo ensinado) é utilizada. Dificilmente são empregadas técnicas de trabalhos em grupo nas classes com número grande de alunos. Diz um outro entrevistado, que a aula é “o lugar onde o aluno faz correlações” e que “a atitude docente deve ser no sentido de permitir que tais correlações sejam feitas”. Também é afirmado que o professor deve ser “um agente para despertar curiosidade”. Considera-se que faz diferença usar uma técnica ou outra, mas que o emprego diferencial depende mais do número de alunos do que da estratégia docente. Nas falas dos entrevistados, “a aula expositiva é usada para turmas grandes”, “se os alunos provêm de um bom colegial, a maioria das aulas é expositiva e se provêm de um colegial mais deficitário, se o perfil do aluno é diferente, se o aluno trabalha, a leitura é feita em sala de aula e é indicado um livro texto básico”. Um entrevistado mostrou a relação íntima que vê entre técnicas de ensino, processo educativo e avaliação, enfatizando que quer mudar seus mecanismos de verificação da aprendizagem. Poucos entrevistados falaram da importância do ensino com pesquisa (proposta discutida por Paoli, 1991;

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Cunha, 1992 e 1995). Também foi apontado que a prática deve estar presente desde o primeiro ano dos estudos superiores. A aula expositiva com retroprojeção para “apoiar o professor” é usada com relativa freqüência. Vários entrevistados usavam apostilas próprias para seu ensino e aboliram-nas por considerarem importante que o aluno vá aos livros. Alguns disseram que “a recente avaliação institucional que ouviu os alunos” apontou que há pouca indicação de leituras extra-classe. Estão “corrigindo isso”, segundo seu depoimento. Foi possível notar muita abertura e sinceridade de parte dos entrevistados. Um deles chegou a afirmar que “sofre-se por não ter didática, estar diante do aluno e não ter didática”. Também preocupam-se com o simplismo da avaliação que é feita, mas declaram ter dificuldades teóricas e práticas para alterá-la. Uma entrevistada declarou que chega a corrigir novecentas provas por bimestre! A técnica do seminário recebe opiniões opostas: há quem afirme que não a usa porque nela “não vê qualquer utilidade”, “qualquer ponto positivo”, e há quem a utilize. Há, outrossim, formas diferentes de empregá-la. Um colaborador, por exemplo, afirma que faz o seminário em duplas, que os dois responsáveis devem vir preparados pois “nunca sabem qual irá falar”. Assim, ambos estudam. Não houve maiores explicações sobre o valor intelectual e pedagógico da técnica. Também foi apontado que é importante o docente preocupar-se com a integração vertical e horizontal de sua disciplina na estrutura curricular. A questão da integração no ensino na área de saúde entre a parte básica e a profissionalizante apareceu em vários depoimentos. As observações a esse respeito são bastante variadas: alguns consideram “muito difícil” promover tal integração, outros enxergam várias alternativas para a implementar, enquanto um colaborador considera “extremamente simples a solução”. Reporta-se ao Hospital Sara Kubitschek, em Brasília, onde o estudante, “examinando o paciente na companhia de seu professor, desce para o subsolo para ver um coração, por exemplo, no laboratório de Anatomia, se apresentar dúvidas”. Avalia que isso pode ser feito sem maiores problemas, sem necessidade de mudanças curriculares. Sobre a função de Coordenador/Diretor Variadas são as ações desenvolvidas ou em implantação em cada unidade e em cada curso estudado com relação à ação de seus dirigentes. Há um movimento de revisão ampla do currículo com maior ou menor intensidade, aqui e ali, com resistências explícitas ou veladas. Há coordenador interessado em que “os docentes se atualizem”, estimulando a educação continuada, incentivando cursarem mestrado “para formarem-se, não só no aspecto técnico”. Há os preocupados em usar o espaço das reuniões do departamento para discussões pedagógicas, “para crescimento”; ou, ainda, para rever os planos e ementas, exigindo “pontualidade na entrega” e pondo o representante de classe para “cobrar” do professor, conclamando-o para ser o vínculo com a coordenação. Outras questões apontadas: “elaboração e entrega dos planos de curso”, “horário dos professores”, “acerto da situação de alunos do diurno e do noturno”. Há também reuniões setoriais para

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articular programas afins. Há coordenador interessado em dar ao curso uma “cara nova”, considerando que os alunos devam ser “nivelados por cima” e que os professores tenham “compromisso efetivo com seus discípulos”. Insiste-se na busca de maior correlação entre teoria e prática e em aliar o ensino com a pesquisa. Este aspecto, embora presente, apareceu pouco no conjunto das entrevistas. Também há interesse em “conscientizar o corpo docente a respeito do papel da educação”. Há preocupação em “mudar muita coisa no estágio”, “que é onde está a carga maior”. Com relação ao planejamento, fala-se “em sair do papel para ser efetivado na realidade”. Há posições teóricas mais elaboradas como a do entrevistado que considera o projeto pedagógico como um empreendimento coletivo, baseado na perspectiva “do profissional que se quer formar”. A preocupação é dar uma boa formação técnica “e sobretudo formar um bom profissional, com conhecimento, capacidade de reflexão, de propor coisas, transformar”. Há também o entrevistado que declara ter como preocupação “levar ao departamento e socializar com os colegas o enfoque ser professor”. Procurar mecanismos para “melhorar a didática dos docentes”. Outros apontam, ainda, que é necessário ao docente ficar no mínimo vinte horas na instituição, ainda que sejam dez horas assistenciais e dez horas de docência. E, por fim, que é importante o docente ser titulado e estar sempre envolvido com educação continuada. Observam-se mudanças “intuitivas”, sem fundamentação teórica para melhorar o ensino, procurando levar o aluno à participação, aos trabalhos em grupo, “quando possível”. Nessa “busca intuitiva” por mudanças, percebe-se hesitação dos sujeitos. Um deles declarou: “não sei se estou orientando corretamente”. Há também, embora tímida, uma certa preocupação interdisciplinar por parte de um ou outro docente, com o planejamento de atividades conjuntas da sua disciplina com outra. Discussão e desafios O conjunto de questões que o material oferece é amplo e permite uma série de considerações de interesse acadêmico e prático. Com relação ao primeiro bloco de categorias - Sobre tornar-se professor e sobre professores marcantes - a contribuição mais completa veio de uma entrevistada que fez questão de frisar que não se “vira” professor de uma hora para outra e que, na verdade, se constrói o ser professor. Baseando-se nos estudos de Psicologia Social de Moreno, argumenta que essa construção dá-se basicamente em três fases: role taking (tomar o papel de um modelo de professor), role playing (brinca-se com o modelo, pela desenvoltura em dominá-lo) e role creative (cria-se a partir das fases anteriores). São etapas com duração variada, cada uma delas dependendo de diversas variáveis como maturidade, conhecimento e aprendizagem, efetivação da ação. De fato, ser professor é um processo complexo que necessita de tempo. “Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças” (Nóvoa, 1995, p.16). No tocante a professores marcantes, pode-se notar que a postura, a

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atitude de educador, não ensinando apenas o conteúdo específico, mas, também, atitudes diante da vida, é o que se destaca como mais forte nos depoimentos. É bem verdade que também aparecem testemunhos apontando professores muito bons pelo grau de competência e exigência com que ensinavam suas disciplinas. Mas o que chama a atenção é que os depoimentos mais fortes referem-se àqueles que, além de terem um domínio muito grande do específico, têm reservas humanas admiráveis. O que nos remete aos estudos de Nóvoa (1995, p.15) quando afirma que “o professor é a pessoa e uma parte importante da pessoa é o professor”. Com relação ao segundo bloco de categorias - Sobre técnicas de ensino podemos perceber que várias técnicas são usadas, mas que este não é o ponto realmente importante, se discutido isoladamente. Não foi rara, quando se discutiu o tema das técnicas, a menção a questões ligadas ao currículo. E apareceu, com freqüência, a discussão sobre (des)integração básico/profissionalizante. Ainda se trata de um ponto não resolvido, embora tenham sido detectadas várias ações no sentido de encaminhar soluções. Alguns entrevistados parecem tender a uma formação mais especializada, outros para uma mais generalista. A referência aos parâmetros curriculares do MEC é freqüente e a sinalização é para a formação generalista exigida pelos tempos neoliberais. O que certamente revela uma inversão no que até pouco tempo era indicado: em uma sociedade em processo de mudança acelerada, a formação generalista parece ser mais conveniente, pois, teoricamente, leva a uma maior flexibilidade na escala das ocupações. Alguns equívocos pedagógicos podem ser notados. Um exemplo é considerar que o conhecimento é somatória e, sendo assim, os alunos devem ler “muitos livros para memorizar, para guardar”, quando a memorização deve ser compreendida como subproduto de um trabalho de construção intelectual. Vários entrevistados falam da importância de ler obras reputadas na área e vêm substituindo as apostilas por livros. Também notase incidência na idéia de que o aluno deva exibir ao professor a memorização e a reprodução de informações. Inclusive foi dito que “cobrar é entre aspas, querer saber o retorno”. Também foi observada preocupação com o conceito estreito de mercado, pensando que “é preciso olhar sempre o que o mercado está pedindo”. Uma das questões mais sérias de caráter macroestrutural é a reflexão sobre o que o mercado está pedindo à universidade. É comum afirmar que o ensino de graduação deve profissionalizar para o mercado. Não é raro exemplificar-se com o modelo americano. Mas convém lembrar que o sistema universitário americano tem três grandes modalidades: universidades de pesquisa, universidades de ensino e colleges ou pós-secundários profissionalizantes - espaço acadêmico espremido entre o terceiro ano do segundo grau e o mundo universitário. A função primordial dos colleges é formar mão-de-obra para atender às exigências operacionais imediatas do mercado, em especial do setor técnico e produtivo (Ristoff, 1999). Em nosso caso, ao defender a profissionalização, poder-se-ia falar num reducionismo perigoso de todo o ensino superior, preparando para o mercado.

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Ademais, é sombrio pensar que a educação esteja em função, não da sociedade ou do interesse público, mas do “mercado”, lugar onde se vendem competências e se compram aptidões. No terceiro bloco de categorias - Sobre a função de coordenador/diretor apesar da diversidade de opiniões e de aspectos considerados, chama a atenção que alguns têm preocupações mais amplas, reportando-se ao projeto do curso e outros pontos de caráter macro, enquanto outros vêm se dedicando a questões mais pontuais e ligadas a aspectos técnicos do processo, de natureza microestrutural, sem conseguir perceber que ambas as dimensões estivessem articuladas em todos os cursos. Muitos se reportam aos cursos esporádicos oferecidos pela instituição como importantes momentos de reflexão e formação pedagógica e também à avaliação institucional ora em curso como importante momento para dar indicações e sinalizações sobre o processo de ensino e aprendizagem. Referemse especialmente à indicação de bibliografia complementar, que os alunos dizem ser deficiente e que procuram corrigir. Oferecer educação continuada parece ser um dos pontos mais valorizados pelos entrevistados, tendo os cursos funcionado “como um alento, como se fosse uma luz que se abria”. Nas entrevistas de nossos colaboradores, a inovação aparece de maneira tênue, não constituindo marca definidora da prática pedagógica desses docentes. Trata-se de um desafio a ser vencido no ensino na área de Saúde, ao menos na realidade investigada. Podemos afirmar que, mesmo em tempos de racionalização, de uniformização, de globalização e mercantilização, cada docente continua a produzir no mais íntimo de si mesmo a sua própria maneira de ser professor. Produção cada vez mais exigente apontando para a necessária atualização dos saberes ensinados em educação continuada. Não podemos prescindir de formação pedagógica para o exercício do magistério superior. Pelo contrário, é indispensável e urgente a necessidade da discussão de como introduzir, na formação inicial e continuada dos profissionais da área da Saúde em nível superior, a competência pedagógica requerida para aulas de qualidade junto a jovens que buscam o ensino superior, introduzindo inovações que atinjam as estruturas profundas do ensino. Referências BOGDAN, R., BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora, 1997. BOM MEIHY, J.C.S. Manual de história oral. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1998. CASTANHO, S., CASTANHO, M.E. (Orgs.) O que há de novo na educação superior. Campinas: Papirus, 2000. CUNHA, M.I. O professor universitário na transição de paradigmas. Araraquara: JM, 1998. CUNHA, M.I. O bom professor e sua prática. Campinas: Papirus, 1999. FERREIRA, M.M., AMADO, J. (Orgs.) Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. GOLDBERG, M.A.A. Inovação educacional: a saga de sua definição. In: GARCIA, W.E. (Org.) Inovação educacional no Brasil: problemas e perspectivas. 3.ed. Campinas: Autores

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Associados, 1995. p.197-209. KRAMER, S., JOBIM, S., SAUZA, S. (Orgs.) Histórias de professores. São Paulo: Ática, 1996. MONTENEGRO, A.T. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3.ed. São Paulo: Contexto, 1994. NÓVOA, A. (Org.). Vidas de professores. 2.ed. Porto: Porto Editora, 1995. PAOLI, N.J. Para repensar a universidade e a pós-graduação. Campinas: Ed. da Unicamp, 1985. RISTOFF, D. Boyer Comission: o modelo americano em debate. In: TRINDADE, H. (Org.) Universidade em ruínas na república dos professores. Petrópolis: Vozes, 1999. p.7586. TRINDADE, H. (Org.) Universidade em ruínas na república dos professores. Petrópolis: Vozes, 1999. VEIGA, I.P.A., RESENDE, L.M.G., FONSECA, M. Aula universitária e inovação. In: VEIGA, I.P.A., CASTANHO, M.E. (Orgs.) Pedagogia universitária: a aula em foco. Campinas: Papirus, 2000. p.161-191.

CASTANHO, M. E. L. M. Profesores de enseñanza superior del área de salud y su práctica pedagógica, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.51-62, 2002. La pesquisa escuchó profesores de enseñanza superior del área de salud sobre su práctica pedagógica, con el objetivo de encontrar eventuales marcas distintivas de su docencia. Usando la metodología de la historia oral temática, fueron entrevistados once profesores/ coordinadores/directores a través de grabaciones, posteriormente transcritas, conferidas, textualizadas y transcreadas. Los resultados fueron divididos en tres bloques, a saber: sobre hacerse profesor y sobre profesores sobresalientes; sobre técnicas de enseñanza y sobre la función de coordinador/director. Las conclusiones, también agrupadas en los tres bloques de categorías de los cuales fueron inferidas algunas consideraciones finales, se revelaron promisorias para que se piense la formación inicial y continuada de los profesionales del área de salud con relación a la docencia universitaria. PALABRAS CLAVE: Enseñanza superior, educación en área de salud; práctica pedagógica.

Recebido para publicação em: 22/05/00. Aprovado para publicação em: 07/01/02.

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ELISETE ALVARENGA, Marcas, 2000

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Antropologia nos serviços de saúde: integralidade, cultura e comunicação

Francisco Arsego de Oliveira

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OLIVEIRA, F. A. Anthropology in healthcare services: integrality, culture and communication, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.63-74, 2002.

The use of other fields of knowledge in the healthcare area has intensified over the last few years. Social Sciences in general and specifically Medical Anthropology have contributed decisively to the understanding of phenomena related to the health/disease process, both individually and collectively. In this paper, the author discusses a number of considerations, in order to reach a better understanding of the issue of providing healthcare, focusing on clearly revealing the forms of interaction and communication between these healthcare services and their users. The article concludes by showing how centering medical practice on users and their culture ends up being beneficial to both patients and professionals, in that it recovers the humane aspects and the holistic focus of healthcare. KEY WORDS: Medical anthropology; healthcare services; health assistance.

A utilização de outras áreas do conhecimento no campo da saúde tem sido intensificada nos últimos anos. As Ciências Sociais de modo geral e a Antropologia Médica, especificamente, têm contribuído de maneira decisiva para a compreensão dos fenômenos relacionados ao processo saúde/doença, tanto individual como coletivamente. Neste artigo, o autor tece uma série de considerações buscando um melhor entendimento para a questão do atendimento de saúde, com ênfase na explicitação das formas de interação e comunicação entre esses serviços de saúde e seus usuários. O artigo conclui mostrando como o fato de centrar a prática médica no usuário e na sua cultura acaba trazendo benefícios para pacientes e profissionais, no sentido do resgate da humanização do cuidado e da integralidade da atenção à saúde. PALAVRAS-CHAVE: Antropologia médica; serviços de saúde; assistência à saúde.

Professor do Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS; Médico do Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, Porto Alegre, RS. <arsego@via-rs.net> 1

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FRANCISCO ARSEGO DE OLIVEIRA

Introdução Muito tem sido falado e escrito sobre o cuidado à saúde no Brasil e no mundo nos últimos tempos. Além da literatura especializada sobre o tema, praticamente todos os dias deparamo-nos com matérias em jornais, revistas, rádio, televisão e mesmo em conversas informais, sobre casos de pessoas que não foram atendidas, pessoas que morreram, tiveram seqüelas pela falta de atendimento médico ou mesmo pessoas que foram mal atendidas e até as que foram atendidas e não tiveram seus problemas resolvidos. Restringindonos ao caso brasileiro, é bem verdade que nem sempre se fala só do caos do sistema de saúde e dos absurdos que ocorrem em função dele. Há novas descobertas sendo feitas, novos medicamentos sendo desenvolvidos, mecanismos de doenças sendo elucidados, cirurgias revolucionárias, aparelhos fantásticos, “dicas” para uma “vida saudável” que nos inundam de informações. O que não deixa de ser um quadro paradoxal: grandes e incontestáveis avanços tecnológicos em benefício do ser humano, por um lado, e, por outro, uma sensação de crise permanente, com atendimento inadequado, insuficiente e, pior, oferecido sem eqüidade. A preocupação com a saúde definitivamente incorporou-se ao nosso cotidiano. Só que, ainda hoje, para perplexidade de alguns, nem sempre todos os problemas de saúde são vistos dentro do sistema formal de cuidado à saúde. Pelo contrário: calcula-se que 70 a 90% dos episódios de doença são manejados fora desse sistema, por autocuidado ou busca de formas alternativas de cura (Kleinman et al., 1978; Kleinman, 1980; Knauth, 1991). Ou seja, o modelo biomédico é apenas um entre tantos sistemas disponíveis no “mercado” da saúde. O que há de comum entre esses diversos sistemas e que gostaríamos de explorar um pouco mais neste artigo é o encontro que se estabelece entre o paciente e o agente de cura2 . Tal encontro possui elementos peculiares referentes à comunicação, freqüentemente negligenciados na prática médica e de saúde em geral (Helman, 1994; Pedersen & Baruffati, 1989). Mais do que isso, essas peculiaridades são moldadas de maneira marcante pelas características culturais de cada grupo social envolvido. Interações entre serviços de saúde e usuários Mesmo sob o ponto de vista formal, a relação entre serviços de saúde e usuários envolve muitos outros aspectos além do encontro físico entre médico e paciente num consultório, por exemplo. Há, entre outros fatores, as políticas de saúde em cada local e as concepções dos indivíduos sobre o que é estar doente. A doença é uma experiência que não se limita à alteração biológica pura, mas esta lhe serve como substrato para uma construção cultural, num processo que lhe é concomitante. Não queremos dizer com isso que exista uma seqüência de “primeiro biologia e depois cultura”, mas sim que existem percepções culturais acerca de um fenômeno que também abarca o biológico, mas que o supera. Ou seja, uma determinada pneumonia bacteriana pode ser causada pelo mesmo agente infeccioso em todo o mundo, com alterações fisiopatológicas equivalentes

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Na falta de uma tradução melhor, “agente de cura” é utilizado no sentido do termo healer, em inglês, e que pode ser o médico, o curandeiro, o erveiro, o pai-de-santo ou outro profissional da saúde que desempenhe essa função.


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em diversos indivíduos. Mas a forma de tratamento, o sistema de saúde disponível e, sobretudo, a percepção que a pessoa acometida terá sobre a sua doença variarão enormemente. Isso fica mais claro quando conseguimos estabelecer a diferença agora já clássica entre illness e disease (Kleinman et al., 1978; Kleinman, 1980; Kleinman, 1986). E aqui nos permitimos o uso dos termos em inglês por terem um sentido mais acurado, uma vez que, em português, a palavra “doença” contempla os dois significados. Podemos dizer que illness, o equivalente a “perturbação”, é a forma como os indivíduos e os membros de sua rede social percebem os sintomas, categorizam e dão atributos a esses sintomas, experenciando-os, articulando esse sentimento por meio de formas próprias de comportamento e percorrendo caminhos específicos em busca da cura. Além da experiência pessoal, o indivíduo atribui significado à doença. Enfim, illness é a resposta subjetiva do indivíduo à situação de doença, uma resposta que engloba aspectos individuais, sociais e culturais à experiência de estar doente. Por outro lado, disease é a forma como a experiência da doença (illness) é reinterpretada pelos profissionais de saúde à luz de seus modelos teóricos e que os orienta em seu trabalho clínico. É portanto, uma definição de disfunção, assentada num substrato essencialmente biomédico. E aqui, por biomedicina, referimo-nos à teoria e prática médica predominante no ocidente e amplamente disseminada em todo o mundo. Tem como sinônimo expressões que, em geral, definem a Medicina como “ocidental”, “científica” e “alopática” e apresenta entre suas principais características o foco sobre o ser humano enquanto entidade essencialmente biológica (Hahn & Kleinman 1983; Williams & Calnan, 1996). Uma das atribuições principais do médico é, então, “traduzir” o discurso, os sinais e os sintomas do paciente para chegar ao diagnóstico da doença, ou seja, decodificar illness em disease. Assim, como nos referimos a uma relação que se estabelece entre serviços e usuários, isso pressupõe uma comunicação com duas vias de fluxo, permitindo, no momento em que o indivíduo busca atendimento de saúde, o encontro de duas visões de mundo diferentes, entre illness, por um lado, e disease, por outro. Restringindo-nos aos serviços formais, é importante que se diga que esse encontro, como já foi frisado acima, não se resume apenas à consulta médica, mas se dá também na realização de exames, na administração de um medicamento, no momento em que um indivíduo freqüenta uma atividade em grupo no posto de saúde etc. Quando uma pessoa procura um determinado serviço de saúde, ela lança mão de uma série de mecanismos que orientam tal procura e que são acionados muito antes do encontro propriamente dito: quais os sintomas que a forçam ao encontro, qual o momento adequado de fazê-lo, qual o profissional buscado, qual o linguajar a ser utilizado para descrever ao médico o que sente, que roupa vestir na consulta, e assim por diante. Em última análise, como é que o indivíduo se prepara para esse momento, como se comporta nele e qual a “bagagem” que carrega consigo? Portanto, quando mencionamos “comunicação”, também queremos dizer que há produção de significados de ambos os lados e que a cultura de cada grupo social estará igualmente sempre presente.

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características dos sinais e sintomas iniciais; 3) fisiopatologia do problema; 4) evolução natural e prognóstico; e 5) tratamento indicado para o problema. Ou seja, utilizando o exemplo da pneumonia citado anteriormente, poderíamos dizer que, quando ficamos doentes, procuramos identificar a causa do que nos aflige (“isso é gripe mal curada”, “foi praga de alguém” ou ainda “peguei uma friagem”); analisamos o que estamos sentindo (“febre, calafrios, tosse”); buscamos compreender quais os mecanismos fisiológicos (“o pulmão está ruim, cheio de catarro”, “meu pulmão está fraco por causa do cigarro”); fazemos uma análise da sua gravidade (“posso morrer disso?”); e, por fim, buscamos estabelecer um plano para que possamos retornar à situação anterior, sem a doença (“bom para curar isso é uma injeção”, “vou tomar um passe”). Este modelo e estes elementos nem sempre são pensados nessa seqüência ou estão completamente articulados entre si e podem apresentar inconsistências, erros e, até mesmo, contradições internas. Mas é a base a que o paciente recorre para tentar dar coerência ao que está ocorrendo com ele na situação de uma doença específica. O que deve ficar claro é que esse pensamento segue uma lógica diferente daquela do modelo utilizado pelo médico. Quando, então, esses diferentes modelos se encontram no momento da consulta ou do contato com o serviço de saúde, a saída possível para que o processo clínico tenha sucesso é uma “negociação entre as partes”, nem sempre totalmente consciente, cada uma usando os seus argumentos para que se chegue a um consenso possível para aquele momento. Ou seja, deve haver uma concordância, mesmo que temporária, entre o agente de cura (o médico, por exemplo) e o paciente em cada um dos itens acima. E para que o sucesso desejado seja atingido, além dos modelos explanatórios tornarem-se ao menos parcialmente manifestos, também deve haver uma postura receptiva à negociação, de parte a parte. É interessante perceber que, apesar de a perspectiva antropológica vir auxiliando no entendimento desses fenômenos cada vez com mais clareza e veemência, o modelo biomédico é ainda brutalmente hegemônico, o que tem levado a uma visão reducionista da doença, vista como processo exclusivamente biológico. Mas a contribuição dos antropólogos médicos às questões da saúde não se limita apenas à noção do modelo explanatório. Ela avança no sentido de explicitar que todas as atividades relacionadas com o cuidado à saúde estão interrelacionadas, tendendo a constituir uma forma socialmente organizada para enfrentar a doença, e formam, a exemplo da religião e da linguagem, um sistema cultural próprio, que é o sistema de atenção à saúde (Kleinman, 1980; Rhodes, 1996). Em cada cultura, a doença, a resposta a ela, os indivíduos que a experienciam, os que se ocupam em tratá-la e as instituições envolvidas estão interconectados mediante esse sistema, que também contempla, entre outros elementos, as crenças sobre a origem das doenças, as formas de busca e avaliação do tratamento, os papéis desempenhados e as relações de poder entre todos os envolvidos (Calnan, 1988; Foucault, 1979; Boltanski, 1984). Os pacientes e os agentes de cura são componentes básicos do sistema, estando imersos num contexto de

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significados culturais e de relações, não podendo ser entendidos fora dele (Bodstein, 1995). Tanto as crenças quanto os padrões de comportamento dos indivíduos fazem parte desse sistema de atenção à saúde e são, em grande parte, derivados de regras culturais. Neste sentido, a inclusão do pensamento de Geertz (1978) torna-se pertinente nesta discussão, pois esse autor defende a idéia da cultura como uma “teia de significados” e da importância de a analisarmos enquanto ação e como sistema simbólico. Como ação, a forma de expressão da cultura é pública, pressupondo, no discurso social, a existência de “protagonistas” e “assistentes” que se comunicam entre si a partir de interpretações de códigos socialmente estabelecidos de modo prévio. Ou seja, como diz o autor, “a cultura é pública porque o significado o é”. Isso é importante especialmente em relação ao tema deste artigo, uma vez que parece ser evidente que os aspectos relacionados à saúde/doença envolvem ações dos indivíduos, expressos na forma como percebem a doença, estabelecem um “diagnóstico” e buscam um tratamento. A outra contribuição importante de Geertz é quanto ao próprio método para desvendar a cultura e seus significados, que é, segundo o autor, essencialmente interpretativo. O trabalho etnográfico presta-se muito bem para isso, ao tentar “ler” o que ocorre à sua frente, decifrando não apenas o que está explícito, à superfície, mas também os comportamentos aparentemente “incoerentes” e “deslocados”, que, em última análise, têm respaldo na realidade simbólica de nossos pacientes. Em outras palavras, é a realidade simbólica que permitiria ao paciente atribuir significados a partir de sua experiência individual e segundo as normas sociais e culturais do seu grupo. E é por essa razão que, como qualquer outro sistema cultural, precisa ser entendido em termos de sua atividade instrumental e simbólica. Como afirma Kleinman (1980), estudos de nossa própria sociedade e investigações comparativas devem iniciar contemplando a atenção à saúde como um sistema que é social e cultural na sua origem, estrutura, função e significado. E por isso é também importante a discussão sobre a construção social da realidade, abordada por Berger & Luckman (1995), no sentido de tornar claras as relações humanas estabelecidas pelo indivíduo com os outros e com o mundo que o rodeia. São relações governadas por regras culturais específicas, incorporadas pelos indivíduos, que as provêem de significado e as legitimam perante o grupo social. Esta realidade social não é única no tempo e no espaço, monolítica a ponto de não permitir variações individuais e coletivas. Mas o fundamental é perceber que ela exerce uma influência decisiva na maneira como cada um de nós pensa e age diante de uma situação de doença, optando por um determinado tipo de atendimento e avaliando seu resultado (Atkinson, 1993). Baseado nisso, Kleinman (1980, p.38) sustenta que (...) a prática clínica (tradicional e moderna) ocorre em e cria mundos sociais particulares. Crenças sobre doenças, os comportamentos exibidos pelas pessoas doentes – inclusive as suas

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expectativas frente ao tratamento – e o modo como as pessoas doentes reagem em relação à família e aos profissionais de saúde são todos aspectos da realidade social. Elas, como o próprio sistema de saúde, são construções culturais, moldadas distintamente em diferentes sociedades e nos diferentes contextos sociais dentro dessas mesmas sociedades. (nossa tradução)

O mesmo autor avança na sua análise ao denominar os aspectos da realidade social relacionados à saúde de realidade clínica. Esta noção refere-se ao contexto social que influencia o desenvolvimento da doença e o cuidado clínico estabelecendo, assim, uma interseção entre as realidades clínica e simbólica, de um lado, e a realidade física e psicobiológica de outro. Esse conceito é útil sobretudo para evidenciar ainda mais como o fenômeno clínico é também socialmente constituído e, de modo recíproco, como o mundo social pode ser clinicamente construído. Analogamente ao conceito de realidade social, a realidade clínica também está em constante mudança, variando conforme o grupo social. Permite igualmente uma análise em diversos níveis, tanto macro como microssocial, da sociedade como um todo até pequenas “comunidades” isoladas. O que ocorre, então, é uma relação de cumplicidade entre quem presta e quem recebe o serviço, isto é, o serviço de saúde deve ser aceito socialmente, no sentido de poder ser procurado em caso de doença. Isso não implica, contudo, uma forma homogeneizada de busca de atendimento. O que queremos dizer é que, apesar de o sistema de atenção à saúde ser uma construção coletiva, o padrão de uso do mesmo difere de acordo com o grupo social, com as famílias e mesmo com os indivíduos, dependendo, entre outros fatores, do grau de instrução da pessoa, de sua religião, de sua ocupação, da rede social a que pertence e, concretamente, das doenças existentes. Esta argumentação de certa forma elucida a questão da uniformidade que supostamente as comunidades teriam nesse aspecto. Assim, apesar de possuírem uma série de elementos em comum, os membros dessas comunidades podem apresentar comportamentos diferentes em relação ao cuidado de saúde. Quem não se lembra na sua prática profissional dos “consultadores freqüentes”, dos pacientes que permanecem mais afastados e que consultam exclusivamente nas situações de doença grave, dos que trazem somente os filhos para acompanhamento médico, dos que trazem apenas os idosos, e assim por diante? Como pode ser observado, a relação que as comunidades estabelecem com os seus serviços de saúde é complexa, pois envolve aspectos culturais de ambos os lados. Ou seja, é uma questão da própria dinâmica da interação, em que está em jogo a legitimação do serviço frente à comunidade, que de certa maneira outorga poder a esse grupo de profissionais para lidar com alguns de seus problemas de saúde. Mas, como vimos no início deste artigo, o sistema de atenção à saúde não se limita ao setor formal. Kleinman (1980) sustenta que esse sistema é composto, de modo genérico, por três partes que por vezes se sobrepõem: o setor popular, o setor profissional e o setor folk, que pode ser traduzido

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setores de atenção à saúde, que na verdade possuem limites não tão estritos, ocorrendo apenas uma mudança de linguagem e postura frente a eles nesse “trânsito” de um setor para o outro. Este artigo insere-se então nesse esforço da Antropologia, mais especificamente da Antropologia Médica, de compreender a influência da cultura na maneira como os indivíduos percebem a doença e estabelecem relações com os diversos sistemas de saúde. As reflexões aqui contidas nada mais são do que uma tentativa de repensar nossa postura como profissionais de saúde. Fazendo isso, inevitavelmente estaremos, mesmo que de forma indireta, questionando uma série de outros assuntos bem atuais: o sistema formal de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS), o trabalho médico, a cidadania, a alteridade, a democratização dos serviços de saúde e a forma de interação desses com os seus usuários e vice-versa. Mas o que há de concreto nisso tudo? Nossa primeira convicção refere-se à necessidade de ampliarmos nossos conceitos sobre saúde/doença em nossa atividade clínica, e isso vale para todas as especialidades médicas e de saúde em geral. Apesar do discurso ser fácil, quando chega o momento de sua aplicação na realidade, deparamo-nos com uma prática que, com muita facilidade, expurga os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais do processo saúde/doença. É hora, portanto, de reconduzirmos o “paciente” ao centro da relação com os serviços de saúde, superando a visão de uma relação médico-paciente tradicional e partindo para uma relação efetiva entre sujeitos, que são diferentes, é claro, mas ainda assim sujeitos. Sem nos anularmos como profissionais da saúde – isso seremos sempre –, somos nós que temos que conhecê-lo melhor, respeitá-lo e permitir adaptações da nossa prática a ele, e não o contrário, como vem acontecendo até agora. Não nos esqueçamos que o objetivo final dos serviços de saúde ainda é o paciente/usuário. Resgatar a cultura para o centro da relação estabelecida entre indivíduos e os serviços de saúde é um esforço que desencadeia uma série de implicações na forma como esse relacionamento será concretizado. Kleinman (1980) afirma que, no contexto atual, a simples introdução da tecnologia biomédica sem realizar modificações sociais, econômicas e culturais acarreta efeitos apenas mínimos, se tanto, nos principais problemas de saúde enfrentados pela população. Ou seja, há fatores externos à Medicina, especialmente quando se trata de populações maiores, que devem ser considerados. Grandes migrações populacionais nas últimas décadas têm forçado análises mais profundas das questões relativas à cultura. Isso tem sido especialmente verdadeiro nos Estados Unidos e na Europa, onde significativos contingentes de imigrantes já instalados começaram a procurar atenção médica e nem sempre obtiveram sucesso com os “procedimentos padrão” e guidelines empregados. Nesses casos, os confrontos entre culturas muito diversas chamam mais a atenção, ocorrendo em todas as dimensões do convívio social, sobretudo na área do cuidado à saúde, na qual a percepção das diferenças nas concepções de saúde/doença são cruciais para o resultado favorável do cuidado médico.

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Na esteira desse fenômeno, vem ganhando notoriedade a proposta de serviços de saúde que sejam culturalmente sensíveis, no sentido de qualificar profissionais de saúde e instituições para entender e satisfazer as necessidades próprias de saúde dos pacientes em locais em que essa diversidade cultural é mais pronunciada. Isto é, os serviços preparam-se para melhor acolher os pacientes que apresentam demandas de saúde bem específicas (Johnson & Baboila, 1996; Hamilton, 1996; Shapiro & Lenahan, 1996). Contudo, acreditamos que não precisamos ir tão longe e esperar que venhamos a ter um grande volume de imigrantes estrangeiros para adequar os nossos serviços de saúde. A diversidade cultural no nosso país existe por todos os lados: há culturas brasileiras e mesmo culturas regionais bem estabelecidas (Oliven, 1992). Esse fato deve ser contemplado por nós, no dia-a-dia dos serviços de saúde. Isso exige uma postura que, em primeiro lugar, reconheça essas diferenças e, em segundo lugar, as aceite como parte indissociável do indivíduo, sem preconceitos e hierarquizações (Fonseca, 1995). Ao fazermos isso, inevitavelmente estaremos resgatando a tão falada e desejada cidadania e a democracia nos serviços de saúde, o que é um passo enorme na direção da consolidação efetiva do Sistema Único de Saúde em nosso país. Precisamos definitivamente entender que fatores culturais desempenham um papel crítico na prática de saúde em todos os âmbitos, inclusive no sistema formal de prestação de serviços médicos, entre nós fortemente assentado no modelo biomédico, o qual é apenas um entre tantos outros modelos. Sem perder a perspectiva da contribuição que podemos dar à sociedade no sentido de oferecer atenção à saúde de alta qualidade, devemos estar capacitados para ouvir o paciente, perceber essas diferenças culturais e adaptar nossa prática, dando margem a negociações com ele. Isso também significa qualidade! Esta busca não é nova, mas a atualidade oferece desafios ainda maiores, tanto pela diversidade cultural como pela complexificação crescente da nossa prática clínica. Assim, além de garantir competência na sua área técnica, os profissionais de saúde devem ser igualmente competentes para reconhecer as diferenças internas em cada subgrupo que compõe a nossa sociedade. E essa competência vai além da simples “sensibilidade” (Lavizzo-Mourey & Mackenzie, 1995). Ou seja, o reconhecimento das diferenças culturais existentes em relação ao indivíduo que se encontra no nosso consultório deve servir de instrumento para que nós o auxiliemos a resolver seus problemas de saúde da melhor maneira possível. E esse tipo de postura deve ser estendida a todos os campos da atenção médica. Isso tem a ver com a própria integralidade e humanização do cuidado de saúde, princípios dos mais caros à Medicina. E nessa abordagem integral e humana, a cultura é elemento essencial. É ela que influencia a forma como o indivíduo se percebe doente, leva-o a agir segundo alguns parâmetros bem definidos, a procurar tratamento e a avaliar o que recebe (Lewis e Williamson, 1995). Se não levarmos isso em conta, nossa abordagem será apenas parcial e, portanto, terá menor chance de alcançar o sucesso

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esperado. Ouve-se com facilidade na área da saúde que “cada paciente é diferente”. E nos darmos conta dessa diferença é que faz a prática médica tão fascinante. Os pacientes que nos chegam estão envolvidos por sua cultura como se esta fosse um manto e permanecem conectados a ela. Isso ocorre de modo semelhante à forma como estamos ligados ao conhecimento médico, pois no final das contas, nosso modelo biomédico também constitui um sistema cultural bem interessante de ser observado, mas que infelizmente é pouco questionado durante a formação dos nossos técnicos. Seria muito bom ver os serviços de saúde e seus profissionais comunicando-se com seus usuários e perceber que por trás de cada paciente há uma cultura que dá sustentação à percepção que ele tem de sua doença e do sistema de saúde. O objetivo não é sufocar as outras formas de tratamento e de cura, mas justamente o contrário: entendê-las e valorizá-las no contexto em que se desenvolvem. Tudo em benefício dos pacientes e a partir deles. O importante é deixar claro que o encontro de culturas está presente sempre quando um indivíduo procura alívio para os seus problemas de saúde. E que esse encontro é contínuo e dinâmico. Não começa e nem termina no encontro físico no consultório médico, por exemplo. Referências ATKINSON, S. Anthropology in research on the quality of health services. Cad. Saúde Públ., v.9, n.3, p.283-99, 1993. BERGER, P., LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 12 ed. Petrópolis: Vozes, 1995. BODSTEIN, R. Assistência médica na agenda pública. In: BODSTEIN, R (org.) Serviços locais de saúde: construção de atores e políticas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p.15-39. BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1984. CALNAN, M. Towards a conceptual framework of lay evaluation of health care. Soc. Sci. Med., v.27, n.9, p. 927-33, 1988. CAMARGO JR, K. Medicina, medicalização e produção simbólica. In: PITTA, A.M. Saúde & Comunicação: visibilidades e silêncios. São Paulo: Hucitec/ABRASCO, 1995, p.13-24. FONSECA, C. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. HAHN, R., KLEINMAN, A. Biomedical practice and anthropological theory: frameworks and directions. Ann. Rev. Anthropol., v.12, p. 305-33, 1983. HAMILTON, J. Multicultural health care requires adjustments by doctors and patients. Can. Med. Assoc. J., v.155, n.5, p. 585-7, 1996. HELMAN, C. G. Culture, health and illness: introduction for health professionals. 3. ed. Oxford: Butterworth-Heinemann, 1994. JOHNSON, A., BABOILA, G. Integrating culture and healing: meeting the health care needs of a multicultural community. Minnesota Med., v.79, n.5, p.41-5, 1996. KLEINMAN, A., EISENBERG, L., GOOD, B. Culture, illness and care: clinical lessons from anthropologic and cross-cultural research. Ann. Int. Med., v.88, n.2, p.251-8, 1978. KLEINMAN, A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California

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OLIVEIRA, F. A. Antropología en los servicios de salud: integralidad, cultura y comunicación, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.63-74, 2002. La utilización de otras áreas del conocimiento en el campo de la salud ha sido intensificada en los últimos años. Las ciencias sociales de modo general y la antropología médica, específicamente, han contribuido, de manera decisiva, para la comprensión de los fenómenos relacionados con el proceso salud/enfermedad, tanto individual como colectivamente. En este artículo, el autor expone una serie de consideraciones buscando un mejor entendimiento para el tema de la atención a la salud, con énfasis en la aclaración de las formas de interacción y comunicación entre esos servicios de salud y sus usuarios. El artículo termina demostrando como el hecho de centrar la práctica médica en el usuario y en su cultura, acaba beneficiando a pacientes y profesionales, en el sentido de recobrar la humanización del cuidado y de la integralidad de la asistencia a la salud. PALABRAS CLAVE: Antropología médica; servicios de salud; asistencia a la salud. Recebido para publicação em: 11/11/01 Aprovado para publicação em: 27/01/02.

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CHEVALLIER, Amarelinhas (detalhes).

WILLIAMS, S.J., CALNAN, M. Modern medicine and the lay populace: theoretical perspectives and


debates

O agente comunitário de saúde e suas atribuições: os desafios para os processos de formação de recursos humanos em saúde Community health agent and his attributions: challenges facing the training process of human health resources PALAVRAS-CHAVE: Assistência social; recursos humanos em saúde; Saúde da família. KEY WORDS: Social assistance; health manpower; family health. PALABRAS CLAVE: Asistencia social; recursos humanos en salud; salud de la familia.

Joana Azevedo da Silva

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Ana Sílvia Whitaker Dalmaso

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Acredita-se que por serem (os agentes) pessoas do povo, não só se assemelham nas características e anseios deste povo, como também preenchem lacunas, justamente por conhecerem as necessidades desta população. Acredito que os agentes são a mola propulsora para a consolidação do Sistema Único de Saúde, a organização das comunidades e a prática regionalizada e hierarquizada de assistência, na estruturação dos distritos sanitários. Ser agente de saúde é ser povo, é ser comunidade, é viver dia a dia a vida daquela comunidade.(...) É ser o elo de ligação entre as necessidades de saúde da população e o que pode ser feito para melhorar suas condições de vida. É ser a ponte entre a população e os profissionais e serviços de saúde. O agente comunitário é o mensageiro de saúde de sua comunidade. (Dirigente da Fundação Nacional de Saúde, Brasil, 1991, p.5)

1 Enfermeira; Coordenadora Geral da Política de Recursos Humanos da Secretaria de Políticas do Ministério da Saúde. <joana.silva@saude.gov.br> 2 Médica sanitarista, Centro de Saúde-Escola Samuel B. Pessoa – Universidade de São Paulo; coordenadora do Projeto São Remo. <csebp@usp.br>

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DEBATES

Ser agente comunitário de saúde é, antes de tudo, ser alguém que se identifica, em todos os sentidos, com a sua própria comunidade, principalmente na cultura, linguagem, costumes; precisa gostar do trabalho. Gostar, principalmente, de aprender e repassar as informações, entender que ninguém nasce com destino de morrer ainda criança ou de ser burro. Nós vivemos conforme o ambiente. É obrigação dos agentes comunitários de saúde lutar e aglomerar forças em sua comunidade, município, estado e país, em defesa dos serviços públicos de saúde, pensar na recuperação e democratização desses serviços, entendendo que é o serviço público que atende à população pobre; é preciso torná-lo de boa qualidade. Precisamos lutar por outros fatores que são determinantes para a saúde como: trabalho, salário justo, moradia, saneamento básico, terra para trabalhar e participação nas esferas de decisão dos serviços públicos. (Agente Comunitária de Saúde – Recife, Brasil, 1991, p.6)

Introdução No Brasil, o Programa de Saúde da Família (PSF) pode ser visto como uma retomada de proposições contidas nas políticas públicas federais que estiveram em evidência, desde meados dos anos setenta, até início dos anos oitenta. Nesse sentido, destacam-se o Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) - 1976 - e o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (7ª Conferência Nacional de Saúde, 1982), que visavam à extensão da cobertura e ampliação do acesso a serviços de saúde para grupos sociais ainda marginalizados (Donnangelo & Pereira, 1976), moradores em regiões de baixa densidade populacional, ou pequenos centros urbanos da Região Nordeste, com condições de saúde muito precárias. Pode-se considerar, de certa forma, que essas políticas tiveram alguma continuidade em diversas iniciativas de âmbito regional ou local, e que se traduziram em programas de tipo agentes comunitários de saúde, encampados pelo Ministério da Saúde como programa nacional, o PNACS, em 1991 (Jatene et al., 2000). Documentos do Ministério da Saúde, de 1997 e 1999, reforçam o entendimento do PSF como uma estratégia para organização da atenção básica à saúde no país (Brasil, 1997 e 1999a) e, a partir de 1998, para a realização dos princípios do SUS — a integralidade, a universalidade, a eqüidade. Atualmente, esse tipo de Programa encontra-se em fase de expansão, tanto em áreas rurais como em centros urbanos. Além disso, esses modelos vêm sendo, cada vez mais, implantados em grandes cidades e áreas metropolitanas, mantendo, entre seus pressupostos e estratégias de intervenção básicos, as perspectivas de ampliação do acesso e de extensão de cobertura por serviços de saúde para parcelas específicas da população brasileira, de racionalidade técnica e econômica, de integralidade e humanização do atendimento, de participação popular em saúde, o estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de coresponsabilidade entre os profissionais de saúde e a população.

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Agente comunitário de saúde: a expectativa de atuação, as competências Historicamente, a idéia que apoia a inserção do agente comunitário de saúde envolve um conceito que, sob as mais diferentes formas, nomenclaturas e racionalidades, aparece em várias partes do mundo, ou seja, a idéia essencial de elo entre a comunidade e o sistema de saúde. Mais recentemente, no PSF, eles foram incluídos em equipes de trabalho que contam com um médico, um enfermeiro, um a dois auxiliares de enfermagem, com proposta de atuação para a unidade básica, o domicílio e a comunidade. Entretanto, se por um lado, a definição das atribuições tem sido um dos resultados mais efetivos das negociações locais, segundo as suas realidades, os seus contextos, os seus agentes, por outro lado, a partir de uma recuperação histórica analítica desse sujeito, de sua inserção, do seu trabalho - ações e interações - consegue-se apreender as principais idéias e conceitos subjacentes à proposição de agentes de saúde em cada um dos momentos e contextos históricos (Silva, 2001). Assim, desde a proposição do Auxiliar de Saúde, no PIASS, em 1976, até o Programa de Saúde da Família, com as especificidades de uma metrópole, em 2001, como agente comunitário de saúde, embora com graus variados da ênfase colocada, consegue-se identificar dois componentes ou dimensões principais da sua proposta de atuação: um mais estritamente técnico, relacionado ao atendimento aos indivíduos e famílias, a intervenção para prevenção de agravos ou para o monitoramento de grupos ou problemas específicos, e outro mais político, porém não apenas de solidariedade à população, da inserção da saúde no contexto geral de vida mas, também, no sentido de organização da comunidade, de transformação dessas condições. Este componente político expressa, na dependência da proposta considerada, duas expectativas diversas ou complementares: o agente como um elemento de reorientação da concepção e do modelo de atenção à saúde, de discussão com a comunidade dos problemas de saúde, de apoio ao auto-cuidado – dimensão mais ético-comunitária - e o agente como fomentador da organização da comunidade para a cidadania e a inclusão, numa dimensão de transformação social. Um outro aspecto bastante encontrado na prática, mas não relacionado nas atribuições dos agentes de nenhuma das propostas, é a dimensão de assistência social. Assim, o agente aparece, nos diferentes programas oficiais, como um personagem fruto de uma tentativa de juntar as perspectivas da atenção primária e da saúde comunitária, buscando resolver questões, como o acesso aos serviços, no que lhe corresponde de racionalidade técnica, mas também integrando as dimensões de exclusão e cidadania, ou seja, o desafio de juntar o pólo técnico ao pólo político das propostas. Nogueira e Ramos (2000) identificam, no trabalho do agente, a dimensão tecnológica e a dimensão solidária e social, as quais consideram que têm, sempre, potenciais de conflitos. Essas dimensões expressam, possivelmente, os pólos político e técnico do Programa, acima referidos. Este é o dilema permanente do agente: a dimensão social convivendo com a dimensão técnica assistencial. Ao incorporar essas duas facetas em suas formulações, o conflito aparece principalmente na dinâmica da prática cotidiana.

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Determinados programas acabam dando mais espaço para um ou para o outro pólo; nenhum dos programas de saúde da família fez a síntese. No diaa-dia, os agentes são colocados diante de contradições sociais, o que é “muito pesado” e, por isso, eles fazem determinadas opções, segundo as exigências, as recompensas e suas referências. Em estudo desenvolvido sobre o agente comunitário de saúde do Projeto QUALIS/PSF, no município de São Paulo, Silva (2001) identificou que o agente comunitário não dispõe de instrumentos, de tecnologia, aqui incluídos os saberes para as diferentes dimensões esperadas do seu trabalho. Essa insuficiência faz com que ele acabe trabalhando com o senso comum, com a Religião e, mais raramente, com os saberes e os recursos das famílias e da comunidade. Há saberes de empréstimo para o pólo técnico, não os há para a dimensão considerada como mais política, nem há propostas ou trabalho consistente do “agir comunicativo”. Documento do Ministério da Saúde (Brasil, 1999b) enfatiza a necessidade de que, face o novo perfil de atuação para o agente comunitário de saúde, sejam adotadas formas mais abrangentes e organizadas de aprendizagem, o que implica que os programas de capacitação desses trabalhadores devam adotar uma ação educativa crítica capaz de referenciar-se na realidade das práticas e nas transformações políticas, tecnológicas e científicas relacionadas à saúde e de assegurar o domínio de conhecimentos e habilidades específicas para o desempenho de suas funções. A busca de alternativas que propiciem a construção de programas de ensino com tais características, leva à incorporação do conceito de competência , cuja compreensão passa, necessariamente, pela vinculação entre educação e trabalho. (Brasil, 1999b, p.4)

O conceito de competência é expresso como “a capacidade pessoal de articular conhecimentos, habilidades e atitudes inerentes a situações concretas de trabalho” (Brasil, 1999b, p.4). Ainda o citado documento, propondo-se a subsidiar os Pólos de Capacitação do PSF, as Escolas Técnicas de Saúde do SUS e outras instituições participantes do esforço de preparação de recursos humanos para a estratégia de saúde da família, define, para o agente comunitário de saúde, sete competências: trabalho em equipe; visita domiciliar; planejamento das ações de saúde; promoção da saúde; prevenção e monitoramento de situações de risco e do meio ambiente; prevenção e monitoramento de grupos específicos; prevenção e monitoramento das doenças prevalentes; acompanhamento e avaliação das ações de saúde. A complexidade e a dimensão dos desafios colocados podem ser ilustradas quando se toma a caracterização, por exemplo, da competência Promoção da Saúde: capacidade para participar da promoção da saúde, na sua área de abrangência, através do desenvolvimento de trabalho educativo, do estímulo à participação comunitária e do trabalho intersetorial, com o objetivo da qualidade de vida. (Brasil, 1999b, p.16)

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Algumas questões logo aparecem: que saber é necessário para esse saber fazer? Como garantir esse saber que não é apenas o da saúde? Outras dimensões importantes a considerar quando se discutem as expectativas de atuação do agente comunitário de saúde e os desafios para os processos de preparação desse “novo” perfil, referem-se aos mecanismos de seleção, aos processos de capacitação, aí incluídos os treinamentos introdutórios e a educação continuada e a sistemática de supervisão adotada. O saber científico que orienta a Medicina e as áreas correlatas, ao ser aplicado a situações concretas desdobra-se em saber operante, uma vez que deve dar conta de outras necessidades não recobertas pela ciência, como os valores, as condições de vida, as relações afetivas (Mendes-Gonçalves, 1994). No trabalho do agente, no realizar ações e interações, há uma série de situações para as quais a área da saúde ainda não desenvolveu nem um saber sistematizado nem instrumentos adequados de trabalho e gerência, que compreendam desde a abordagem da família, o contato com situações de vida precária que determinam as condições de saúde, até o posicionamento frente à desigualdade social e a busca da cidadania. Para dar conta da elaboração do saber a partir do trabalho (Abbott, 1990), os espaços de supervisão e a gerência são fundamentais. No entanto, a supervisão individual tende a priorizar a resolutividade, “não deixar o problema aumentar”; a reunião da equipe privilegia o caso individual e a doença; a gerência da unidade costuma ter uma atuação muito pequena na conformação do trabalho da equipe e do agente. Quando se considera o plano objetivo do Programa, o agente se vê como educador para a saúde, organizador de acesso (cadastrador e orientador do uso de serviços) e “olheiro” da equipe na captação de necessidade, identificação de prioridades e detecção de casos de risco para intervenção da equipe (Silva, 2001). Se a identidade do agente pende mais freqüentemente para o pólo técnico, aquele das ações da instituição e da assistência ao indivíduo, como evidenciado em vários estudos, a equipe, na sua função de gerência da proposta, envolvendo a supervisão do médico e do enfermeiro, e mesmo o trabalho formal do gerente da unidade, parece pouco ver as atribuições desses dois pólos ou orientar mais um ou outro. A variedade de concepções e entendimentos sobre o agente comunitário de saúde e sobre a sua função, de que são portadores os demais membros da equipe do PSF, os diretores de unidades, enfim, os demais sujeitos dos Programas, evidencia a dimensão das expectativas a que ele teria que atender no seu dia-a-dia e, por conseqüência, algumas condições concretas de conformação de uma identidade. Os desafios para o saber fazer e o saber ser As considerações anteriores apontam alguns desafios para a atuação do ACS, sistematizados aqui em seis pontos, sem preocupação com a ordem de relevância: o contexto, a finalidade, a tecnologia, o trabalho em equipe, a identidade e a formação. Em primeiro lugar, há que se considerar a enorme variedade de contexto

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possível contar com objetivos gerais estabelecidos, para implantar uma oferta organizada de ações (Paim, 1995), há que se fazer desdobramentos dos princípios para a atividade cotidiana, conformando o saber, os instrumentos e as formas de atuar (Mendes-Gonçalves, 1994), e preparando os sujeitos da prática. Daí emerge o quarto ponto, no caso a constituição de uma equipe integradora (Peduzzi, 1998), que elabore um projeto de trabalho voltado para a promoção da saúde e para a articulação da unidade básica com outros equipamentos e movimentos sociais. Quando o PSF é implantado em uma região com falta de estrutura de retaguarda para atenção médica especializada, grande parte dos esforços para integração se dá em torno do acesso à assistência individual. Um quinto aspecto, muito importante para o agente, é o da sua identidade. Silva (2001) constatou que, em situações concretas de ação e interação, o agente comunitário compõe dimensões técnicas e políticas do trabalho, pendendo mais para um dos pólos, institucional ou comunitário. Se uma parte significativa dos agentes considera o seu trabalho gratificante, quer pela possibilidade de ser útil, quer pelo apoio a uma população carente, sua atuação implica envolvimento pessoal e desgaste emocional. Espera-se do agente uma atuação no contexto social, tanto na participação popular, como na abordagem de problemas que escapam à dimensão estrita da saúde biológica, como a violência. O agente muitas vezes refere ansiedade tanto na sua relação com a comunidade como com a equipe, especialmente quando se sente pressionado entre ambos. Cabe lembrar que a não definição de uma tecnologia adequada às necessidades e finalidades do trabalho contribui para esse permanente foco de tensão entre as dimensões da prática, e para a alternativa de se hipertrofiar aquela mais técnica, de localização institucional. Como um sexto ponto, destaca-se a formação dos profissionais para a saúde da família, quando o maior investimento tem sido feito na preparação dos profissionais universitários, médicos e enfermeiros. Se, habitualmente, a qualificação do auxiliar de enfermagem privilegia as funções mais comuns em hospital, como os procedimentos de coleta de exame, aplicação de injetáveis, curativos etc, na atenção primária existe um campo extenso de atividades educativas e de aconselhamento que demandam uma habilitação adequada. O agente comunitário, por sua vez, além do treinamento introdutório, um pouco mais abrangente, participa (quando elas acontecem) de discussões temáticas conduzidas por médicos e enfermeiros no nível local ou regional. Nos espaços de educação continuada, encontram-se com freqüência os conteúdos tradicionais de conhecimento e prática na área da saúde, havendo dificuldade de se dar conta da totalidade das finalidades colocadas para o PSF. Uma última contribuição ao debate: quais seriam as estratégias para o desenvolvimento do trabalho do agente comunitário? Elencam-se algumas que aparecem, hoje, como mais produtivas: 1 o desenvolvimento de planos integrados para a área social comprometidos com a eqüidade; 2 o envolvimento maior dos agentes e de parte da carga horária da equipe com atividades coletivas e comunitárias; 3 um investimento maior em atividades de supervisão dos trabalhos, pois se a formação

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JATENE, AD., NOVAES, H.M.D., MALIK, A., GOLDBAUM, M., MARSIGLIA, R.G., SILVA, J.A, SEIXAS, P. Primeiro Relatório Técnico-Científico: novos modelos de Assistência à Saúde Avaliação do Programa de Saúde da Família no Município de São Paulo. São Paulo: FAPESP, 2000. MANN, J., TARANTOLA, D.J.M., NETTER, T.W. Como avaliar a vulnerabilidade à infecção pelo HIV e AIDS. In: __________ A AIDS no mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumará: ABIA: IMS, UERJ, 1993, p.275-300. MENDES-GONÇALVES, R.B. Tecnologia e organização social das práticas de Saúde: características tecnológicas do processo de trabalho na rede estadual de Centros de Saúde de São Paulo. São Paulo: Editora HUCITEC/ABRASCO, 1994. NOGUEIRA, R., RAMOS, Z.V.O. A vinculação institucional de um trabalhador sui generis – o agente comunitário de saúde. [Texto para discussão 735]. 2000. 33p. Disponível em <URL: http:// www.ipea.gov.br >. Acesso em: jun 2000. PAIM, J.S. A reorganização das práticas em distritos sanitários. In: Mendes (Org.) Distrito sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo- Rio de Janeiro: HUCITEC-ABRASCO, 1995. p.187-220. PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional de saúde: a interface entre trabalho e interação. Campinas, 1998. Tese (Doutorado) Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. ROBERTSON, A., MINKLER, M. New Health promotion movement: a critical examination. Health Education Quarterly, v.21, n.3, p. 295-312, 1994. ROSE, G. Individuos enfermos y poblaciones enfermas.In: BUCK, C. (Org.) El desafio de la epidemiologia: problemas y lecturas seleccionadas. Washington: OPS, 1988. p.900-9. (Publicacion cientifica 505) SCHRAIBER, L., NEMES, M.I.B., MENDES-GONÇALVES R.B. (orgs). Necessidades de saúde e atenção primária. In: ________ Saúde do Adulto: programas e ações na Unidade Básica. São Paulo: HUCITEC, 1996. p.29-47. SILVA, J.A. Assistência Primária de Saúde: o agente de Saúde do Vale do Ribeira. São Paulo, 1984. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. SILVA, J.A O agente comunitário de saúde do Projeto QUALIS: agente institucional ou agente de comunidade? São Paulo, 2001. Tese (Doutorado) Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. TEIXEIRA, C.F., PAIM, J.S. Planejamento e programação de ações intersetoriais para a promoção da saúde e da qualidade de vida. Rev. Adm. Pública, v.34, n.6, p.63-80, 2000.

Recebido para publicação em: 09/11/01. Aprovado para publicação em: 19/12/01.

TRAJANO SARDENBERG, 2001

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O agente comunitário de saúde não deve ser um “super-herói” The community healthcare agent should not be a “super-hero”

José Batista Cisne Tomaz

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A primeira experiência de agentes comunitários de saúde, ACS, como uma estratégia abrangente de saúde pública estruturada, ocorreu no Ceará em 1987, com o objetivo duplo de criar oportunidade de emprego para as mulheres na área da seca e, ao mesmo tempo, contribuir para a queda da mortalidade infantil, priorizando a realização de ações de saúde da mulher e da criança. Esta estratégia expandiu-se rapidamente no Estado, atingindo praticamente todos os municípios em três anos, sendo encampada pelo Ministério da Saúde (MS) mais ou menos nos mesmos moldes, em 1991. As primeiras experiências do Programa de Saúde da Família, PSF, nos moldes atuais, também surgiram no Ceará em janeiro de 1994, sendo encampadas pelo MS em março do mesmo ano, como estratégia de reorganização da atenção básica no país. A partir daí o Programa de Agentes Comunitários de Saúde, PACS, passou a ser incorporado pelo PSF. O PACS e o PSF, apesar do “p”, não devem ser vistos como programas, e sim como estratégias estruturantes, já que se propõem a reorganizar a atenção básica e não apenas aumentar a extensão de cobertura para as populações marginalizadas. O próprio artigo esclarece que os princípios e pressupostos do PSF contidos em documentos do MS vão muito além da extensão da cobertura da atenção básica para a população pobre. O PACS e o PSF, embora no início tenham sido implantados prioritariamente em áreas marginalizadas, devem ser vistos como uma estratégia que, a médio e a

1 Médico, Coordenador do Curso de Especialização em Saúde da Família da Escola de Saúde Pública do Ceará/ESP-Ce. <batista@esp.ce.gov.br>

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longo prazo, irá prover atenção básica em saúde para toda a população, de acordo com os princípios da integralidade, universalidade e eqüidade do SUS. A reorganização da atenção básica deve também pressionar os outros níveis de atenção no sentido de que se reestruturem para atender com qualidade a demanda advinda da atenção básica. Se a concepção não for essa, sou obrigado a concordar com os críticos que dizem tratar-se de uma “cesta básica da saúde” utilizando uma “medicina pobre para os pobres” mediante ações de baixa tecnologia. Infelizmente, na prática, o trabalho de muitas equipes do PSF ainda está limitado ao aumento da extensão de cobertura, conseqüência de várias questões operacionais, mas também da falta de uma adequada qualificação dos profissionais, inclusive dos gestores. O perfil, as atribuições, e as competências do ACS A discussão do perfil, atribuições e competências dos ACS é um pouco polêmica. Ainda não se conseguiu determiná-los de maneira clara e efetiva. O artigo aborda muito bem as atribuições e as competências, mas trata muito pouco sobre o perfil. Fala de um “novo” perfil profissional – um novo saber, um novo fazer, um novo ser -, mas não especifica qual seria esse novo perfil. É consenso que o ACS seja da própria comunidade, seja “alguém que se identifica, em todos os sentidos, com a sua própria comunidade, principalmente na cultura, linguagem, costumes”, como afirma um ACS de Recife. O que temos de refletir é sobre o grau de escolaridade. Após a implantação do PSF o papel do ACS foi ampliado, saiu do foco maternoinfantil para a família e a comunidade, além de exigir novas competências no campo político e social. Desse modo, é necessário que o ACS tenha um grau de escolaridade mais elevado, para dar conta desse novo papel, bem mais complexo e abrangente. Concordo plenamente com as autoras que, historicamente, uma atribuição fundamental do ACS é servir de elo entre a comunidade e o sistema de saúde. No documento do MS: Diretrizes para elaboração de programas de qualificação e requalificação dos agentes comunitários de saúde (1999), de cuja elaboração participei, é proposto um conjunto de atribuições que podem ser resumidas no tripé: identificar sinais e situações de risco, orientar as famílias e comunidade e encaminhar/ comunicar à equipe os casos e situações identificadas. Esse conjunto de atribuições deve ter como pano de fundo as questões de cunho político e social, principalmente as ligadas à competência de promoção da saúde. Achei interessante a análise das dimensões do papel do ACS em termos técnicoassistencial e político-social. No entanto, nesta discussão, estou começando a perceber duas tendências que se têm mostrado constantes nos escritos e nas falas sobre o papel do ACS, (permitam-me usar dois neologismos): a “superheroização” e a “romantização” do ACS, que está bem expresso nos depoimentos que abrem o texto de Silva e Dalmaso. Ora, não se pode colocar nas costas do ACS o árduo e complexo papel de ser a “mola propulsora da consolidação do SUS”. Na prática, a consolidação do SUS depende de um conjunto de fatores técnicos, políticos, sociais e o envolvimento de diferentes atores, incluindo os próprios ACS, que, sem

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dúvida, têm um papel fundamental. Na realidade, o ACS precisa incorporarse de fato ao sistema de saúde, fazer parte efetivamente das equipes de saúde da família, deve participar das diferentes ações, na dimensão técnicoassistencial ou político-social. Por falta de uma clara delimitação de suas atribuições, seu papel tem sido distorcido sobrecarregando, muitas vezes, seu trabalho. Qualquer ação que deva ser desenvolvida nas famílias e na comunidade é atribuída ao ACS. Assim, a identificação de crianças fora da escola, a limpeza das caixas d’água para combater o mosquito da Dengue, a reclamação ao proprietário de uma pocilga instalada numa área urbana, tudo isso e muito mais é de responsabilidade do ACS. Isso tem implicação direta no processo inadequado de qualificação, pois passa a receber diversos micro-treinamentos, fragmentados, dados por diferentes programas, fora do contexto e sem uma seqüência lógica. Não há a menor dúvida de que o ACS deve contribuir para o processo de transformação social. No entanto, é preciso ter em mente que a transformação social é um processo lento, requer esforços conjuntos e permanentes e é papel de todos os cidadãos. O setor saúde no Brasil tem, historicamente, um papel de vanguarda nessa transformação. Por isso considero que esse processo deve envolver todos os profissionais de saúde (técnicos e gestores) e de outros setores da sociedade. Assim, a dimensão política deve ser exercida pelo ACS, não só como profissional, mas como cidadão. O que quero dizer é que esse dilema permanente no qual a dimensão social e política convive com a dimensão técnico-assistencial não é privilégio do agente, mas de todos os outros profissionais da Saúde. A dimensão técnica é necessária, deve ser exercida com qualidade, sem perder de vista a dimensão social e política. Isso vale para todos os profissionais. Considero, ainda, que as diferentes formas de atuação do ACS e da equipe de saúde não devem ser necessariamente antagônicas, mas sim complementares. A vertente de vigilância a situações de risco e assistência a doenças mais freqüentes deve ser realizada conjuntamente e em consonância com a da promoção da saúde e da qualidade de vida. Em suma, o ACS não é e não deve ser um super-herói! Suas atribuições devem ser claramente estabelecidas, como profissional, como parte de uma equipe de saúde. Seu papel deve ser menos “romântico” e mais claro e específico. O desafio: processo de formação e qualificação Quando se pretende discutir processo de formação ou qualificação de recursos humanos é fundamental termos clareza de três aspectos: o perfil do profissional a ser capacitado, suas necessidades de formação e qualificação e que competências devem ser desenvolvidas ou adquiridas no processo educacional. Desse modo, a complexidade e a dimensão dos desafios colocados para o processo de formação e qualificação do ACS estão intrinsecamente ligados aos aspectos discutidos anteriormente. Concordo plenamente com as autoras que “os desafios para os processos de preparação do “novo” perfil, referem-se aos mecanismos de seleção, aos

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processos de capacitação, aí incluídos os treinamentos introdutórios, a educação continuada e a sistemática de supervisão adotada”. No entanto, acho que urge a implantação de formas mais abrangentes e organizadas de formação e capacitação dos profissionais de saúde, incluindo os ACS, mediante um projeto nacional, estimulado pelo MS, incorporando-se e utilizando experiências existentes, como os Polos de Capacitação de Formação e Educação Permanente dos Profissionais de Saúde da Família e a série de vídeos educativos produzidos numa parceria entre o MS e a Escola de Saúde Pública do Ceará - Agentes em Ação, entre outras. O processo de qualificação do ACS ainda é desestruturado, fragmentado, e, na maioria das vezes, insuficiente para desenvolver as novas competências necessárias para o adequado desempenho de seu papel. Os programas educacionais devem ser elaborados e baseados no desenvolvimento de competências, utilizando métodos de ensino-aprendizagem inovadores, reflexivos e críticos, centrados no estudante, e, quando possível, incluindo novas tecnologias, como a educação à distância. Além disso, dentro desse contexto, o desenvolvimento de algumas competências transversais, como a capacidade em trabalhar em equipe e a comunicação, devem fazer parte de qualquer programa educacional do ACS e dos outros profissionais de saúde. Em suma, o tema tratado no artigo é complexo, relevante e carece mais discussão. A formação e a qualificação de recursos humanos têm sido grandes entraves para a efetiva consolidação do SUS.

Enfermeira visitadora, 1895

Recebido para publicação em: 15/01/02. Aprovado para publicação em: 23/01/02.

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O agente comunitário de saúde: algumas reflexões The community healthcare agent: a few thoughts

Mário Roberto Dal Poz

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O texto de Silva & Dalmaso, ao examinar aspectos da competência e das atividades do cotidiano dos agentes comunitários de saúde, alimenta e estimula o debate sobre certos desafios para sua formação. Tradicionalmente, agentes comunitários de saúde têm assumido importantes tarefas no cuidado de saúde, em diferentes sistemas e contextos. A atenção ao parto tem sido uma função tradicional e importante de parteiras tradicionais (comunitárias ou empíricas). Diferentes países utilizam membros da comunidade para o desenvolvimento de outras funções de atenção à saúde, como primeiros socorros e vigilância à saúde. Em países em desenvolvimento, há muitos anos utiliza-se o treinamento de membros da comunidade como estratégia para aumentar a qualidade da atenção (Nair et al., 2001). Um dos desafios e tendências atuais é a introdução de novos papéis e responsabilidades para esse grupo junto ao sistema de saúde. A expansão do papel das parteiras tradicionais em Zimbabwe e o treinamento de agentes comunitários de saúde no Brasil para desenvolver cuidado clínico são exemplos dessa tendência. Sparks (1990), num estudo com parteiras tradicionais (TBAs) em Zimbabwe, mostrou que seu papel vem mudando gradualmente, a partir da

1 Médico, Coordenador de Recursos Humanos para a Saúde, Departamento de Provisão de Serviço de Saúde, Organização Mundial de Saúde. <dalpozm@who.int>

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decisão das mulheres de usarem clínicas para dar à luz seus bebês. Parteiras tradicionais representam um recurso importante no cuidado básico de saúde em muitos países em desenvolvimento. Cursos de formação ou capacitação para atualizar ou aumentar as habilidades das parteiras são comuns e encorajadas por diferentes agências. O foco da formação é a realização de um parto seguro e o reconhecimento de que a gravidez de alto-risco necessita ser referenciada para uma unidade de saúde mais especializada. Atualmente, os programas de formação introduzem outras habilidades para aumentar a participação desses agentes de saúde em atividades primárias de cuidado de saúde, mais na linha de promoção de saúde e prevenção de problemas específicos nos grupos populacionais das mães e das crianças. A experiência do Brasil também ilustra este ponto. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde, PACS, foi formulado tendo como objetivo central contribuir para a redução da mortalidade infantil e mortalidade materna, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, por meio de uma extensão de cobertura dos serviços de saúde para as áreas mais pobres e desvalidas. Porém, a partir da experiência acumulada pelo estado do Ceará com o programa de agentes comunitários, ali implantado, houve a percepção, pelo próprio Ministério da Saúde, de que os agentes poderiam também ser peça importante para a organização do Serviço Básico de Saúde no município. A partir de uma formação básica inicial para ações baseadas em vigilância de saúde, os agentes comunitários visitam as famílias das comunidades e proporcionam cuidado a doenças comuns, imunização, medicação e educação de saúde. Esta iniciativa, que se tornou o modelo seguido pelo Ministério da Saúde, operado em diversos níveis, pelos Estados e municípios brasileiros, tem apresentado resultados que o fazem um dos esforços mais eficientes de saúde no mundo. Desde sua implementação tem havido um declínio significativo em mortalidade infantil, um aumento de níveis de imunização, avaliação de necessidades e recursos e uma intervenção profissional mais rápida quando necessária (Svitone et al., 2000). Em geral, em áreas rurais do sul da África, o papel do pessoal de enfermagem e outros trabalhadores de saúde é crucial para estender a cobertura dos cuidados de saúde. Reconhece-se que este pessoal, em muitos casos, tem o âmbito de seu trabalho severamente limitado pela falta de formação adequada e reconhecimento social. A enfermeira é normalmente a única profissional disponível na área reduzindo, assim, as alternativas para diagnosticar e tratar pacientes. No Brasil, duas questões tomaram relevância no processo de implantação do PACS: a escolha do agente (envolvendo questões como processo seletivo, capacitação, avaliação etc.) e as condições institucionais da gestão da saúde no nível local (grau de participação dos usuários – formação dos Conselhos de Saúde; grau de autonomia da gestão financeira; recursos humanos disponíveis; capacidade instalada disponível etc.). Pelo fato de o programa de agentes comunitários ter tomado essa forma, ele não constituiu apenas mais um programa vertical do Ministério da Saúde (uma ação paralela ao sistema de saúde) tendo sido, também, um braço

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auxiliar do sistema de saúde na organização dos sistemas locais de saúde (Dal Poz & Viana, 1999). Isto porque, no momento em que a adesão do município ao PACS exigiu e exige certos requisitos, como o funcionamento dos Conselhos Municipais de Saúde, a existência de uma unidade básica de referência do programa, a disponibilidade de um profissional de nível superior na supervisão e no auxílio às ações de saúde, a existência de Fundo Municipal de Saúde para receber os recursos do programa, este se tornou, sobretudo, um instrumento de (re)organização dos modelos locais de saúde. Ressalte-se, entretanto, que não foi apenas por ter definido essa estratégia de implantação que fez do programa um instrumento de (re)organização do sistema de saúde, mas também pelo grau de articulação que este desenvolveu com os diferentes níveis (estadual e municipal), além do papel desempenhado pelos atores participantes do processo de implementação do programa (agentes e comunidade) (Dal Poz & Viana, 1999). Referências DAL POZ, M.R., VIANA, A.L. Estudo sobre o processo de reforma em saúde no Brasil. In: MARTINIC, S., AEDO, C., CORVALAN, J. (org.) Reformas en Educacion y Salud en America Latina y el Caribe. Santiago do Chile: Centro de Investigación y Desarrollo de la Educación - CIDE, 1999. p.187-217. NAIR, V.M., THANKAPPAN, K.R., SARMA, P.S., VASAN, R.S. Changing roles of grass-root level workers in Kerala, India. Health Policy Plan., v.16, n.2, p.171. SPARKS, B. T. A descriptive study of the changing roles and practices of traditional birth attendants in Zimbabwe. J. Nurse-Midwifery, v. 35, n.3, May/June, 1990. SVITONE, E. C., GARFIELD, R., VASCONCELOS, M. I., CRAVEIRO, V. A. Primary health care lessons from the Northeast of Brazil: the Agentes de Saúde Program. Pan. Am. J. Public Heath, v.7, n.5, p.293-302, 2000.

TRAJANO SARDENBERG, 2001

Recebido para publicação em: 18/01/02. Aprovado para publicação em: 23/01/02.

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O trabalho do agente comunitário de saúde: entre a dimensão técnica “universalista” e a dimensão social “comunitarista” The work of the community healthcare agent: between the technical “universalist” dimension and the social “communitarian” dimension

Roberto Passos Nogueira

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O agente comunitário de saúde, ACS, continua a ser o fulcro de inúmeras controvérsias que põem em discussão se suas características de recurso humano de origem comunitária marcam a continuidade do formato das políticas de saúde do passado recente ou constituem sinais de uma tendência efetiva de renovação. Representaria o ACS nada mais que uma versão atualizada do agente de saúde pública dos anos setenta, participando de um novo processo de “extensão de cobertura” à população carente por meio dos serviços básicos do SUS? Ou será ele uma figura nova e destacada no processo que podemos chamar de “extensão da solidariedade”, conforme propagado pela linha de política social do Comunidade Solidária nos anos noventa? Seu trabalho deve ter objetivos estratégicos e padrões de desempenho válidos para todos os lugares, como parte de um programa nacional que visa a aumentar o alcance e a eficácia dos serviços proporcionados pelo SUS? Ou deve ser visto como a expressão ampliada da ação comunitária, com base nas capacidades de liderança e de auto-ajuda sistemática, dentro de um modelo de desenvolvimento autônomo local e cujos problemas não sejam predefinidos segundo o setorialismo típico dos programas de Estado?

Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, e do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília. <nogueira@ipea.gov.br>

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Essas são as principais questões que o artigo de Silva & Dalmaso suscita e deixa sem resposta. A falta de resposta deve-se, a nosso ver, ao fato de que essa contradição entre a dimensão técnica “universalista” do trabalho do ACS e a dimensão social “comunitarista” é cultivada pelo próprio Estado e faz parte das diretrizes ditadas pelas políticas de saúde (do PACS, inicialmente, e do PSF, mais recentemente) e também da propaganda política feita pelo governo a esse respeito. A tensão entre dois paradigmas opostos de políticas de Estado acaba recaindo sobre o próprio ACS, quando este tentar cumprir o melhor possível seu papel amplamente reconhecido de servir de elo entre o sistema de saúde e a comunidade. As autoras têm razão ao dizer que o ACS suporta um “peso” excessivo de tarefas e responsabilidades, cada vez mais ampliadas, trazendo consigo múltiplas e contrapostas expectativas depositadas pelos gestores do SUS, expectativas que não podem ser correspondidas na prática e diante das quais os profissionais de desenvolvimento de recursos humanos também não sabem o que fazer. Aqui a dificuldade não decorre do fato de haver descrições discrepantes sobre essa função de ligação entre Estado e comunidade exercida pelo ACS, mas de haver visões ético-políticas muito distintas sobre como a saúde pode ser promovida nessa interface entre auto-organização comunitária e sistemas de Estado. Determinada visão tende a acentuar o potencial emancipatório das ações de solidariedade, associadas ao princípio da autonomia (no nível social local); outro tipo de visão dá ênfase à eficácia obtida pela aplicação do princípio da beneficência assistencial do Estado (no nível nacional, com ganhos de escala inegáveis). Para a visão comunitarista, o ACS jamais poderia ser definido segundo um perfil ocupacional como ocorre com outros trabalhadores de saúde: o que ele faz depende dos problemas vividos e referidos pelas famílias, como prioridades que não emanam dos programas de Estado. Suas tarefas responderiam a essas necessidades, que podem não decorrer de metas assistenciais de governo, definidas pelo SUS, bem como, por outro lado, podem não se assemelhar às tarefas peculiares ao grupo de Enfermagem (ao qual costuma ser associado). Este comunitarismo só tem sentido quando o sistema de organização do Estado promove e defende uma descentralização radical. Idéias outras, tais como as de que o ACS precisa de um perfil técnico bem estruturado, de um preparo técnico uniforme e de um cargo nas estruturas organizacionais do Estado, reflete as exigências de um modelo oposto, que é universalista e estatista. O artigo de Silva & Dalmaso deixa claro, no entanto, que tanto para a visão comunitarista quanto para a visão estatista têm faltado abordagens e instrumentos adequados de preparação do ACS – o que parece indicar que o Estado ainda não aprendeu a lidar com essa figura de um ponto de vista educacional, da mesma maneira como ainda não sabe que estatuto lhe conferir de um ponto de vista trabalhista. Pode-se afirmar que, no primeiro mandato do governo FHC, a visão comunitarista obteve bastante reforço na medida em que o PACS cultivou um relacionamento estreito com o Comunidade Solidária, que se encarregava de divulgar essa interpretação dentro do governo como um todo. Mas, no segundo mandato, a ação dos ACS foi mais diretamente vinculada às iniciativas e programas de Estado e a suas prioridades

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Enfermeira visitadora, 1908

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nacionais, no caso, à política de reorganização dos serviços básicos de saúde do SUS e ao PSF como eixo estratégico desta organização. Não só por parte do governo federal, como também por parte de todas as correntes políticas que assumem o nível municipal de gestão, tem faltado muito empenho em destacar o caráter comunitário do envolvimento do ACS no SUS, distinguindo-o daquilo que é a missão mais ampla cumprida pelo PSF, enquanto um sub-sistema de prestação de serviços criado pelo Estado. Portanto, não poucas vezes os governantes apresentam o trabalho dos ACS como mais uma “obra de governo”... Se analisarmos objetivamente a proposta universalmente aceita de que o ACS é um elo de ligação entre o Estado e a comunidade, resulta evidente que, de um ponto de vista filosófico e administrativo, ele não deveria ser considerado como membro da equipe do PSF – primeiro porque não é um profissional, segundo, porque deveria manter um vínculo permanente de pertinência com a comunidade e suas organizações. Mas esta proposta está longe de receber uma expressão organizacional e política adequada de tal modo que o ACS se mistura e se confunde, na prática, com tudo o que é feito pelo PSF, pelo SUS e pelo Estado, de um modo geral. Assim, as ambigüidades e a polêmica que cercam a figura do ACS continuam e, provavelmente, ainda vão continuar por muito tempo. Com um preço que, infelizmente, é pago pelo próprio ACS.

Recebido para publicação em: 08/01/02. Aprovado para publicação em: 23/01/02.

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réplica

O debate continua... The debate continues... Joana Azevedo da Silva Ana Sílvia Whitaker Dalmaso

Mais do que uma réplica, aproveitamos a nova oportunidade para comentar alguns pontos que julgamos relevantes e para dialogar com algumas das importantes questões levantadas pelos debatedores. Tomemos, como ponto de partida, as falas de sujeitos do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde que abrem o texto: elas são exemplares da amplitude da estratégia e indicadoras da complexidade da expectativa em relação ao trabalho do agente comunitário de saúde. A partir de inserções bastante diferentes no Programa, um mais na formulação e outro mais na realização, no dia-a-dia, naquele momento (1991), já apontavam para os desafios de um projeto em nascimento. Assinalavam a utopia da transformação social, transcendendo o campo específico da saúde. Se, de um lado, o PSF é, hoje, uma estratégia do Estado para a consolidação do SUS, de outro, ele exige conteúdos de programa. Desdobrar princípios e diretrizes em modos de fazer é uma exigência colocada para as áreas sociais. O planejamento, o desenvolvimento de tecnologias, a gerência e a avaliação são instrumentos básicos de atuação. Além disso, na área de formação de recursos humanos, mais do que a escolaridade formal, o perfil e as competências dos agentes comunitários são definidos conforme o leque de finalidades e de expectativas em relação ao seu trabalho. Como em outros campos novos, muitas vezes começamos mais pela negação — não fazer isto, não ser aquilo — e menos pela afirmação; a diferenciação é construída no processo. Se o PSF se instala pelo plano da atenção primária, a reformulação do sistema de saúde não se dá por contigüidade, mas exige uma política de transformação. Mais do que um projeto nacional, a dimensão local é capaz de apreender melhor as necessidades, organizar trabalhos e articular ações. Temos acompanhado um processo de descentralização da formação de recursos humanos, mas também a permanência de uma relativa centralização do modelo assistencial. Se, no plano dos saberes, há uma diferenciação básica na concepção de doença e de saúde, entre o conhecimento clínico e o da saúde pública, no plano das práticas trabalhase com finalidades e instrumentos específicos. O PSF toma de um e de outro os recursos necessários para a sua atuação. Em vez da funcionalidade complementar, há, como aponta Nogueira, tensão entre dois paradigmas opostos. De um lado, podemos somar esforços para desenvolver tecnologias mais adequadas, de outro, há a dinâmica social, os valores e os modos de andar a vida, os quais não são passíveis de instrumentalização. Investir na capacitação e, especialmente, na supervisão e sistematizar resultados são formas de acumular experiências e de produzir conhecimentos e, ao mesmo tempo, de visualizar limites e construir possibilidades, o que, sem dúvida, os programas implantados estão empenhados em fazer.

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TRAJAN

O SARE D

ENBER G, 200 1

Papeleta em xerox, de Jailtรฃo, 1999. Utilizando a tรกtica dos pedintes de vale transporte. 94



PALAVRAS-CHAVE: Ética; universidade; moral. KEY WORDS: Ethics; university; moral. PALABRAS-CLAVE: Etica; universidad; moral.

ENTREVISTA

ÉTICA, CIÊNCIA, UNIVERSIDADE... entrevista com Roberto Romano

Esta entrevista aconteceu numa terça-feira do mês de novembro. O cenário: uma tarde pós-chuva, iluminada pelo sol que tomava conta do céu paulistano... uma casa cercada por um jardim com bromélias, trepadeiras, gerânios... cheiro de jasmim e canto de passarinhos invadindo o escritório... café e biscoitos caseiros... O tema: ética, moral, ciência, universidade... O entrevistado: Roberto Romano. Filósofo, com doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, Roberto Romano é professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde exerce o cargo de vicediretor. Com inúmeras publicações na área de Ciências Sociais, é figura incontestável no cenário intelectual brasileiro, por expressar posicionamentos críticos sobre temas extremamente complexos e de grande relevância atual. A seriedade necessária a quem é autoridade no assunto, aliada à maneira informal com que transcorreu nossa conversa, resultou num texto ao mesmo tempo profundo e de uma leitura intensamente prazeirosa. O público-alvo: você, leitor.

Entrevista realizada pela professora Maria Lúcia Toralles-Pereira (Instituto de Biociências de Botucatu, Universidade Estadual Paulista/ UNESP), com colaboração de Adriana Ribeiro (assistente editorial da Revista Interface, Fundação Uni). <intface@fmb.unesp.br>

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ENTREVISTA

sobre Ética e Moral Procuro sempre, no interior da vida intelectual brasileira, discutir criticamente o conceito imperante de ética porque vejo nele um grande perigo. No Brasil de hoje, quando se fala no assunto, o termo recebe quase imediatamente a conotação de algo positivo, desejável e bom. A ética definiria as regras de ação recomendáveis para o coletivo e os indivíduos. Semelhante identificação do ético com o bom é problemática. O conceito de ética é mais abrangente do que as noções de bem e de mal, pois significa o conjunto de hábitos introduzidos e reiterados num determinado tempo e sociedade, tornando-se quase automáticos nas consciências humanas, como se fossem uma segunda natureza. Qualquer ato nosso, reflexivo ou ativo, pode ter conotação boa ou má. Muitos hábitos coletivos, introduzidos no transcurso da história, sobretudo no Ocidente, na Europa e Américas, são nocivos à vida espiritual. Há o campo enorme de representações coletivas que a Filosofia do século XVII ou XVIII definia como “preconceitos”. Que um valor seja aceito por sociedades nacionais ou transnacionais como inquestionável é um ponto. Que ele seja inquestionável é algo muito diferente. Por exemplo, temos o anti-semitismo. Trata-se de uma forma de comportamento presa ao conjunto de valores surgidos na Idade Média, a partir de equívocos doutrinários, históricos e religiosos. Ao longo da Idade Média e no início do Estado Moderno, ele foi ampliado por problemas de ordem econômica e política, sendo reiterado por juízos equivocados, emitidos por grandes homens e líderes religiosos, como é o caso de Lutero. Na História Moderna ele foi repetido pelos seguidores de Lutero e também do catolicismo. No século XIX o anti-semitismo uniu-se às doutrinas supostamente científicas, de cunho racista. Tais doutrinas foram espalhadas por meio da imprensa, das cátedras universitárias, dos livros, e tornaram-se uma forma ”espontânea” de pensar entre largas camadas da população. Na Alemanha, quando surgiu o nazismo, ele já encontrou um solo fértil de atitudes diante do judeu, do árabe etc... O nazismo vem coroar um costume plenamente ético, mas hediondo e imoral, já que sapa a consciência moral que exige a unidade do ser humano: judeus, árabes ou negros, todos integram o ser humano. O ético, assim entendido, tem um atrativo muito grande, porque nele se descreve o “concreto”, a vida do povo. O moral é mais abstrato, porque apela para a consciência invisível. Mas o moral é importante para verificarmos a veracidade, a bondade do ético. Este último é necessariamente coletivo: não existe ética individual. Já o moral apresenta-se coletivamente mas tem sua vigência na individualidade. O juízo moral exige que se suspenda temporariamente o juízo ético, pois ele é mais exigente que o ético. Quem defende uma linha puramente ética da cultura, critica o chamado “moralismo”- o moralismo abstrato - porque ele seria uma afirmação de valores que não se corporifica imediatamente, enquanto o contrário ocorre com o ético. O ético, pois, é muito mais atraente. A “opinião pública” quase sempre é ética (o que não quer dizer que é exata!).

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Há casos horrendos de costumes éticos, como, por exemplo, no caso brasileiro, a falta de respeito pelas leis de trânsito. Esta atitude coletiva entre nós pode ser vista, pelos estudiosos do fato ético, como um costume sancionado. Mas trata-se de algo plenamente imoral, porque nele tem-se em mente a prioridade do material sobre o espiritual. Se alguém possui condições econômicas para adquirir um veículo importado da marca Audi, consegue o direito de matar. Na consciência dos atores sociais existe esse direito, o que é profundamente imoral e anti-ético, no sentido correto da palavra. Não há dono de carro Audi (a não ser que ele seja um sujeito moral extremamente elevado), que não acredite: sua posse de um Audi goza do privilégio de andar a 170 quilômetros por hora numa estrada pública. A própria propaganda da Audi incentiva isso: “quando você enxergar esse logotipo, passe para a direita”. Atribui-se aos donos de veículos o estatuto de semideuses, acima do bem e do mal. Por tudo isso eu me preocupo muito com a veiculação sem prudência da “ética” como se ela fosse um corretivo para a sociedade brasileira. Acho que a nossa vida social, inclusive a universidade e a pesquisa brasileiras, estão profundamente marcadas por traços éticos indesejáveis. Um outro exemplo ... Tomemos as relações de favor. Elas imperam nas políticas municipais e nacionais, na vida aquisitiva e mesmo na captação de recursos para a pesquisa. No Brasil o costume é esse: você tem um projeto objetivamente bom - do ponto de vista científico, acadêmico, metodológico e, no entanto, sempre precisa ter alguém que dê a “mãozinha”, interceda, esteja presente nos Conselhos, para que o seu projeto saia do anonimato. Mas o preceito democrático é justamente o anonimato, o valor da coisa e não da pessoa. As fórmulas conhecidas, como o “sabe com quem está falando” e o QI (quem indica?), infelizmente modelam boa parte das relações científicas, acadêmicas. Esse ponto ético da cultura brasileira merece ser reformulado, para que não exista mais a guerra de todos contra todos, a formação de pequenos grupos de influências para troca de favores... Só quem desconhece a realidade social brasileira e a realidade social das universidades e das próprias Fundações de Pesquisa ousa dizer que nelas não existem esses nexos de influência pessoal. Outro ponto gravíssimo do ponto de vista ético: temos Fundações que operam segundo o pressuposto do anonimato do parecerista. Mas este último raramente assume todas as dimensões da ética e da moral. Muitas vezes - e cada vez mais - o parecerista utiliza o anonimato para combater inimigos ou adversários do ponto de vista metodológico, ideológico e, até mesmo, doutrinário. Muitos não têm dúvidas em cortar recursos para a pesquisa dos que pensam de forma diferente. Esta é uma fonte de tensão enorme na comunidade acadêmica. E dizem tratar-se de uma prática com preceitos éticos. Para mim, trata-se de algo profundamente imoral. Defendo, como uma parte da democratização da pesquisa brasileira, o fim do anonimato do parecerista. Esta é uma atitude de responsabilidade social, porque numa Fundação de direito público, com recursos públicos, não há direito ao anonimato. A alocação - ou não - de dinheiro deve ser examinada pelo público, porque é ele que paga. O anonimato é profundamente antiético, é imoral e viceja sob a capa da ética.

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ENTREVISTA

sobre os códigos de ética, especialmente no campo da Saúde... Em primeiro lugar, precisamos verificar como um código de ética foi enunciado. Se o foi por uma instituição que tem em vista apenas os interesses de política imediata ele é, logo de início, inválido, porque traduz o desejo de uma parte - embora hegemônica - a definir o campo inteiro. Penso que um código de ética deve resultar de debates que incluam o que há de mais avançado e de mais responsável em cada setor científico. Não basta que a pessoa tenha valores. É preciso que esses valores sofram a prova do conhecimento, caso contrário estaremos reiterando o velho veto das instituições religiosas à própria pesquisa científica ou artística. Gosto de lembrar um exemplo clássico na história de nossos costumes. Quando saiu o filme “O padre e a moça”, o arcebispo de São Paulo proibiu os católicos de assistirem ao filme. Perguntaram-lhe: “o senhor assistiu?”. E ele disse: “como posso ver algo que eu proibi para os outros?”. Na Ciência isto não é permitido. Se for feito um código de ética desprovido de conhecimentos científicos, ele já surge de modo anacrônico e contraproducente. Além disso, no código de ética é necessário levar em conta o traço mais antigo da sabedoria humana: a prudência. E prudência não é sempre medo. Nela são pesados todos os elementos em jogo. Nessa medida, um código de ética só pode ser o resultado temporário de um diálogo da comunidade inteira (a comunidade dos médicos, dos psiquiatras, dos matemáticos etc...) em discussão tensa e conflituosa com a sociedade envolvente. Veja que uma série de procedimentos podem ser perfeitamente lícitos e justificáveis para um conjunto de profissionais e, ao mesmo tempo, constituírem uma agressão permanente à sociedade. Muitas vezes a comunidade médica aceita ou absolve procedimentos que são verdadeiros escândalos para o comum dos mortais. Sempre se diz que há uma espécie de corporativismo nas comunidades científicas . No caso dos erros médicos, existem alguns que clamam aos céus, que são um flagrante desrespeito e que exigem ação da Justiça, do Estado. Diante deles, a comunidade médica faz vistas grossas ou absolve erros. Quando se esquecem bandagens dentro do estômago de alguém, isso é gravíssimo. E por que é grave? Porque faltou prudência e perícia por parte dos operadores: faltou conhecimento científico. Aí entramos numa série de outros debates, como a proliferação das Faculdades de Medicina. Formar médicos quase como se faz pão, sem rigor, é um fator genocida que agride a integridade ética da sociedade.

sobre os limites da vida e discussão ética Na verdade, os limites da vida e da morte são enfrentados pela humanidade desde seu primeiro vagido no interior da natureza. A partir do momento em que houve certa quebra no interior da natureza e surgiu um animal capaz de pensamento e reflexão surgiram os problemas da ética. Todo e qualquer

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ato técnico humano exige prudência. Por mais sofisticada que seja uma técnica ou um conjunto de saberes, a pergunta sempre é: tais conhecimentos, método ou procedimentos servem para ampliar a vida de um maior número possível de pessoas ou não? Isso é básico. Os cientistas que não conseguirem responder essa questão brincam com a vida humana. Se, ao considerarmos os nexos do indivíduo humano e da natureza que o envolve, aquele conhecimento, técnica, procedimento, serve para ampliar o tempo de vida individual e coletiva, então é inquestionável que eles são eticamente recomendáveis. Agora, se isto não tem uma resposta positiva, deve-se colocar em questão. Não para rejeitar (você não vai recusar procedimentos porque não podem responder positivamente a essa pergunta), mas deve-se questionar sempre. Caso contrário, estaremos reiterando procedimentos como os dos médicos nazistas, que achavam muito interessante fazer certas pesquisas, só que isso não colaborava para o aumento da vida humana. Pelo contrário.

sobre universidade Não existem universidades e sociedades ideais. Nós temos a sociedade e a universidade brasileiras, com seus valores e contra-valores produzidos histórica e socialmente. No caso da nossa universidade, creio que ela tem muitos valores. Se pensarmos que a comunidade acadêmica (sobretudo a que vai de Belo Horizonte a Porto Alegre, passando por Rio de Janeiro e São Paulo, incluindo centros de excelência em todo o Brasil) tem padrão de conhecimento e de produção técnica equivalente a muitos países europeus (como é o caso da Itália e da Áustria), vemos o potencial enorme, produzido por uma comunidade científica que merece respeito e deve ser ampliada. Mas se pensarmos que essa comunidade vive num país de 160 milhões de pessoas que não têm acesso à vida, à educação, ao espírito, à ciência... vemos um problema grave e pensamos que algo precisa ser modificado. Esse tesouro acumulado deve ser comunicado. E aí eu vejo um problema muito sério de ordem social e política. A universidade pública brasileira, a mais importante do país do ponto de vista científico, tecnológico ou da pesquisa, convive com um problema gravíssimo: ela é refém da classe média, não tem abertura para as grandes camadas da população pobre do país. Embora a classe média mereça respeito, porque ela paga impostos também, a política da universidade é ligada ao sucesso grupal e individual de seus integrantes. Ela se preocupa muito em como vai fazer o estudante entrar no mercado de trabalho quando sair da universidade, mas os grandes temas sociais, por enquanto, continuam passando ao largo das decisões coletivas. Não digo que na universidade não tenhamos grupos de professores e pesquisadores com interesse na expansão social do conhecimento, mas infelizmente nosso grande alvo coletivo, enquanto universidade, ainda é o sucesso dos nossos alunos no mundo do trabalho.

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Isso faz com que esqueçamos que somos mantidos pelo imposto do cidadão comum e que não temos compromisso exclusivo com os egressos da classe média. Este ponto, eu não sei como a universidade pública resolverá. Na política dos vestibulares, no trabalho com o ensino fundamental e médio, com programas sociais de expansão da Ciência e Tecnologia... que tipo de envolvimento devemos ter com isso? A nossa Extensão, por exemplo: antigamente era quase que só benevolência e as Pró-Reitorias de Extensão eram as menos privilegiadas na universidade. Hoje elas são as mais procuradas. Mas quando vamos investigar o conteúdo dessa extensão, notamos que se trata de convênios, os quais permitem aos professores auferirem um pouco mais de recursos - às vezes para sua própria pesquisa e não para seu salário, mas, mesmo assim, sem passar pela extensão social do conhecimento, mantendo as mesmas relações assimétricas: uma elite e uma massa discriminada. Com isso, não saímos do patamar do começo do século XX. Entramos no século XXI em que as sociedades sem conhecimento coletivo em Ciência e Tecnologia estão fadadas a desaparecer. Esse é um problema de responsabilidade enorme da universidade.

sobre formação na área da Saúde É preciso não ser maniqueísta. Temos iniciativas de trabalho, até do ponto de vista do Estado, do Governo - o SUS , por exemplo - que merecem ser pensadas como um valor, e não combatidas. No entanto, ainda convivemos com uma grande insegurança na área da Saúde. Voltando à classe média, ela é refém de grupos de saúde. Nos três ramos fundamentais da política pública, o da segurança física, da segurança de saúde e de instrução, o Estado Brasileiro ainda não disse a que veio. Ele aceita uma Saúde Pública que não é estatal nem privada. Se fosse privada, num país um pouco mais rigoroso do ponto de vista do controle do Estado, ela não teria a liberdade de lucro que todos nós constatamos. Temos problemas gravíssimos, mas o principal é o fato de que não somos ainda um Estado. A nossa instituição estatal é permeada por interesses grupais. Entre nós o Estado ainda não tem vigência plena. Veja, o Estado tem três monopólios fundamentais, sem os quais não é Estado: o monopólio da força física - só ele pode prender, fazer a guerra... mas no Brasil vemos grupos privados exercendo a violência física; a norma jurídica e, desse ponto de vista a lei tem que ser universal, o que é quase uma piada no Brasil; e a taxação de excedente econômico, que pressupõe que o Estado cobre impostos da atividade econômica - ora, quando olhamos os dados da Receita Federal vemos que cinqüenta por cento dos empresários não pagam seus impostos. Logo, o Estado não se exerce em plenitude entre nós, o que leva à carência de recursos econômicos para as políticas públicas, à falta de efetividade das leis que garantem essas políticas públicas, e à perda do controle dos corpos pela autoridade pública, fazendo com que a sociedade regrida ao nível da selva. O número de chacinas que testemunhamos no cotidiano mostra que não existe autoridade pública, ou melhor, que a autoridade pública se rebaixou ao nível do particular. Esse é

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um problema não apenas de ordem doutrinária, mas de existência. Temos garantia coletiva de que a sociedade brasileira vai sobreviver por mais cem anos? Eu não teria uma resposta positiva para essa questão. E não se trata de pessimismo, mas de verificar os dados. Voltando ao trânsito. As estatísticas brasileiras sobre o assunto são mais catastróficas do que muitas guerras. A ONU se recusa a aceitar nossos dados de trânsito como acidentes, ela considera assassinatos. Temos milhares e milhares de mortes nas ruas e ou estradas por desobediência à lei, isto é, falta de obediência ao monopólio do Estado. Isso é um ponto. Outro: quantas mulheres morrem nas mãos de curiosos por praticarem o aborto sem assistência médica legal? São milhares. Se houvesse uma lei definitiva, vamos supor, uma lei de cunho integrista católico... mas hoje as mulheres não sabem se podem fazer aborto ou não. O aborto é crime e não é crime. É crime do ponto de vista oficial, mas não é crime quando se trata de resolver um problema e, portanto, o Estado se torna irresponsável. E não se trata de pessimismo, mas de uma percepção real do que está acontecendo: milhares de mulheres, de jovens que morrem numa lógica ambígua, que vai da existência e da não existência do Estado entre nós.

sobre o conflito entre as universidades federais e o Ministério Na história do Estado brasileiro há uma tradição de hegemonia do Poder Executivo em todas as instituições. No caso das universidades não foi diferente: 99% das universidades Federais, Estaduais e Municipais do país surgiram por iniciativa do Poder Público Executivo. São presidentes, governadores, ministros de Estado, prefeitos... que instauram essas universidades as quais já nascem sob a proteção (muitas vezes abafante) do Poder Executivo, afastadas do Legislativo, do Judiciário e da sociedade. Então, o diálogo permanente das universidades, ao longo do século XX, foi com o Executivo. Este, por sua vez, quando instaura essas universidades federais, e mesmo as estaduais, as instaura tendo em vista seu próprio diálogo com as oligarquias dominantes nas regiões, porque o poder público federal é uma abstração para as regiões. Ninguém vive no Brasil, todo mundo vive na Bahia, no Maranhão, em Porto Alegre, ou seja, no município, na região. Entre o poder público e as universidades devemos levar em conta as oligarquias. E boa parte das políticas encaminhadas nas universidades federais, até em termos de pessoal, passa pelas oligarquias. E nós estamos enfrentando um fenômeno muito interessante, que o professor Francisco de Oliveira descreve muito bem, que é o do fim das oligarquias enquanto mediadoras dos recursos materiais da sociedade brasileira. Até hoje, as oligarquias foram sempre filtros que serviram para captar recursos federais e distribuí-los pelas regiões, enriquecendo, evidentemente, seus donos. Com a globalização da economia e a perda do poder de captar recursos, vemos uma atenuação do poder oligárquico, o que faz com que também as universidades

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federais fiquem desprotegidas, porque não têm mais o padrinho poderoso que vai intermediar recursos junto aos ministros do Executivo. Neste caso, estamos verificando o fim de um modelo universitário que eu chamaria de federal-oligárquico. Este modelo está esgotado e as universidades precisam reinventar, urgentemente, seu papel de Estado. É preciso que elas redescubram que, enquanto universidades, são ligadas ao Estado e não ao Executivo. Estado compreendendo: Executivo, Judiciário e o Legislativo. É necessário que o diálogo e a ação, junto ao poder Legislativo e ao Judiciário, sejam muito mais ampliados e planificados do que tem sido feito até agora. Até agora o Poder Legislativo está sendo chamado para mediar crises e isso me parece muito pobre em termos de relacionamento dos campi com os poderes de Estado. É necessário que a atividade seja cotidiana. Há 15 anos eu venho propondo que as entidades que congregam os administradores da universidade não se limitem a contatos tipo lobby no Parlamento Nacional, mas que estabeleçam sobretudo uma parceria constante também com o Poder Judiciário. Não raro as nossas universidades não têm dimensão do poder legal. Elas estão de tal modo presas ao Executivo e a sua arrogância que esquecem que existe um ordenamento jurídico para o país. O trato com o poder Judiciário é o menor possível, o que faz com que quase sempre o relacionamento das reitorias com o Poder Judiciário seja num momento em que o professor ou um funcionário entra com um processo na justiça contra a universidade. Mas esse também é um relacionamento muito pobre. Está na hora de a universidade refazer seu trato comunitário, isto é, que ela pense sua inserção na sociedade, e que amplie sua dimensão de Estado, diminuindo o peso do Executivo em suas considerações. Até hoje, supostamente, o caminho mais fácil qual é? faltam verbas ao reitor, ele pede uma audiência com o ministro da Educação, faz um lobby, toma chá de cadeira, até que consegue um pouco de verba. Ora, é preciso que esta seja uma das estratégias, mas não a estratégia de um reitor. É preciso que ele saiba dialogar, explicar, por exemplo, para os representantes do povo, o que significa o programa dessa universidade, que tipo de projetos científicos têm interesse político para a sociedade. Então é necessário que ele saiba expor o que está ocorrendo dentro da universidade, a importância das pesquisas que são feitas lá não apenas para o ministro, mas para os deputados, senadores, vereadores... que haja um diálogo nessa linha. Outra coisa muito complicada: a universidade se desliga da sociedade até o momento em que irrompe uma greve. O movimento docente, por exemplo, é mestre em fazer isso. Surge uma greve e aí vamos para praça pública dar aulas para explicar à população o que é uma aula de Biologia. Isso é complicado, porque deveria ser assim no cotidiano. É preciso inventar estratégias... E uma que parece das mais importantes é a preocupação das universidades com o ensino público fundamental e médio. Atualmente não há uma política coletiva da universidade em relação a isso. Existem alguns programas, mas não assumidos pelas direções das universidades como obra coletiva. Se a sociedade acompanhasse um pouco mais o cotidiano das universidades, inclusive se beneficiando dos resultados das pesquisas, ela defenderia essa universidade com muito mais força e seria mais difícil para inimigos da universidade retirarem dela os recursos.

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Veja, nós temos a Fapesp, uma Fundação profundamente respeitada. Mas boa parte dos projetos ali financiados permanece nas gavetas; a sociedade não sabe o que eles significam, por que foram feitos etc... Uma política de divulgação e de apropriação desse conhecimento por parte das coletividades precisa ser feita. Uma abertura, e não apenas em termos de publicação dos trabalhos. Acho inconcebível que uma Fundação de Pesquisa pague por três, quatro anos para que se faça uma tese de doutorado e esse trabalho não seja publicado, fique na gaveta e no currículo do pesquisador individual - sobretudo se são pesquisas que abarcam problemas de ordem ideológica, social, de saúde... Nós temos um enorme tesouro acumulado de conhecimentos - sobretudo no centro-sul - que nos equipara a grandes centros de produção de conhecimento, mas estamos paralisados pela impossibilidade de comunicar isso à sociedade pelo ensino ou pela própria fraqueza de exposição, comunicação mesmo. Não há um canal para isso, e semelhante tarefa não pode ser obra de grupos. Tem que ser uma invenção coletiva. Se a universidade coletivamente não se dedicar a ser o motor dessa invenção, não haverá solução. Eu não acredito em nenhuma direção de universidade iluminada, em nenhuma direção da Fapesp iluminada, nem de nenhum ministério iluminado, porque não existe isso. O processo de comunicação do conhecimento é tão ou mais complexo que o processo de invenção do conhecimento. E como se tem uma comunidade com um padrão internacional do nível da Áustria, da Itália, num país que ainda tem analfabetos ou que tem analfabetos tecnológicos...

caminhos... Modificar isso é um desafio para a universidade coletivamente, não é para grupos. É um problema dificílimo. Como vamos enfrentá-lo? Não sei. Sei que temos que pensar, decidir e assumir compromisso: ou com a população brasileira ou conosco mesmos e se este último for nosso compromisso, a primeira coisa que nós devemos é devolver todas as verbas que a população brasileira paga por nós.

sobre a avaliação universitária É um atentado à produção do conhecimento. A avaliação universitária foi muito incentivada e deturpada, sobretudo após o advento do programa neoliberal, propagado pelo governo da sra. Margareth Tatcher, que tinha como função domar centros quase milenares de produção do conhecimento (Cambridge e Oxford). Por procedimentos de ordem econômica inventou-se a avaliação da produtividade, padrões de mercado. Então, nessas universidades que tinham enorme latitude de pesquisas e, ponderemos, poderiam até mesmo estar abusando de recursos de forma anti-social, o remédio veio para matar o doente. Você mediu o saber com régua curta, o saber não é um fato de mercado, mas um fato social e histórico, tem

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complexidade muito maior que a lucratividade ou a produtividade, e nele o tempo é de medida imanente. Explico o termo ”medida imanente”. Se você tem um tempo exterior ao tempo da própria pesquisa, você a deturpa. Uma pesquisa na Biologia, por exemplo, precisa passar pela busca das deteminações trazidas pelo material, o vivente. Um bom biólogo deve ter o tempo e o lazer suficientes para verificar como um tecido funciona e você não vai dizer como ele “deve funcionar”. É preciso que o pesquisador tenha toda a latitude para verificar as possibilidades múltiplas do organismo vivo. E se você apressa o seu processo de pesquisa tendo em vista o tempo burocrático que foi dado pela Capes, você mutila o objeto da pesquisa. Pesquisa é procura e você não pode definir a priori os problemas da procura. Ela pode esgotar-se em tempo rápido, demorar um tempo médio ou definir-se em tempo longo. Uma universidade e uma comunidade científica dignas desse nome suportam o tempo rápido, o médio e o longo. No processo de avaliação é preciso discriminar, saber com qual tempo você está trabalhando. Se alguém propõe uma tese que pode ser resolvida em tempo rápido, que se cobre dele um tempo rápido. Se coloca uma complexidade maior, um tempo médio. Se uma complexidade muito maior, um tempo mais longo. Isto é: os processos de pesquisa têm de supor o direito de errar. Se você não tem direito de errar você não tem Ciência. Sempre que você tem um processo de infalibilidade de resultados ou de pressupostos você tem uma seita religiosa, política ou ideológica. É o nazismo, que tinha receitas a serem estabelecidas pelos seus cientistas. Fora disso, numa pesquisa real e numa sociedade democrática você tem que pensar de forma imanente; quer dizer: qual é o tempo suficiente para se fazer uma tese de Biologia? Certamente será diferente do da Física, ou da Matemática ou da Química e mais ainda das Ciências mais complexas, como as chamadas Ciências Humanas. Quando se estabelece um padrão único está-se ferindo a todos os padrões internos das áreas. A medida tem que ser interna, imanente, adequada ao objeto pesquisado, ao método consagrado ou em superação, porque tem isso também, você não tem sempre métodos que são aplicados. No momento em que você vê um objeto diferente você precisa engendrar um outro método; e no momento em que modifica o método você modifica a própria percepção do objeto. A avaliação que não leva em conta isso é inepta. Eu posso dizer aí um dado pessoal. Eu fiz parte da comissão de avaliação da Unicamp durante quatro anos. Nesse tempo trazia para a minha casa processos que incluíam artigos publicados, livros publicados... eu lia capítulos desses livros, procurava me inteirar, de forma imanente, da pesquisa da pessoa a quem eu estava avaliando. Agora fui informado que é proibido anexar nos relatórios a produção - o material publicado. Então eu me pergunto: sobre o que se está trabalhando? A quantidade de artigos publicados? Eu não sou contra a quantidade. Julgo que ela é um dos fatores a serem ponderados. Uma pessoa que recebe recursos públicos para fazer pesquisa e não publica nenhum artigo em vinte anos é um problema sério, que deve ser identificado. Agora, se ele publicou cento e cinqüenta artigos em cinco anos também é algo que deve ser investigado, porque é muito improvável que uma pesquisa profunda se faça de modo tão célere. A avaliação deve acompanhar, necessariamente, a

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produção e a complexidade do campo epistêmico, senão é inepta. Como alguém que foi biólogo há vinte anos e nunca mais se dedicou ao trabalho produtivo na área de Biologia pode avaliar um trabalho de agora? O que nos resta? Nós que somos um elo importante na cadeia de produção de conhecimentos detemos um certo poder. Não absoluto, mas um poder relativo. Nossa atitude deve ser de atacar. Nós temos que denunciar fortemente esses mecanismos não imanentes, exteriores ao processo de conhecimento científico, e dizer que as pessoas que nos submetem a esses procedimentos extra-científicos não são cientistas. São burocratas a serviço de determinadas idéias e práticas políticas. A partir do momento em que se diz que uma tese de mestrado tem que ser feita em dois ou três anos, aceitar essa regra já significa colaborar para destruir a ciência. Houve um período, que foi de muita astúcia dos instauradores desse tipo de avaliação extra-científica, em que se desvinculou a representação da comunidade científica, sobretudo em níveis de pós-graduação, dos departamentos e da parte cotidiana dos laboratórios e dos setores da universidade. Foi quando o Governo Federal privilegiou seu relacionamento com as associações de Pós-Graduação, que diziam representar a comunidade científica. Então, uma série de medidas de ordem econômica, como a redução no tempo para as teses, foram aceitas por essas associações, que tinham um poder muito grande de barganha. Quando o Poder Federal (Capes, CNPq) não precisou mais dessas associações, instaurou seu procedimento e as colocou para fora dos processos avaliadores. Quer dizer que houve um equívoco grave por parte da comunidade acadêmica no seu todo: desvinculou-se o processo cotidiano da pesquisa e da docência do processo de representação e essas associações, que no início representavam a comunidade acadêmica, deixaram de representá-la. Passaram a representar seres em luta pela sua direção. Este equívoco é grave e, infelizmente, não podemos culpar o governo por ele; foi um equívoco da comunidade acadêmica. Quando se imaginava que ser membro de uma direção, de uma associação nacional de Pós-Graduação dava assento no CNPq, na Capes etc...foram aceitas a desvinculação do pesquisador de base e essas direções, estabeleceu-se uma quebra dentro das universidades, que favoreceu o jogo dos que defendem a privatização. Quando hoje integrantes dessas associações reclamam do fato de a “comunidade científica”, acadêmica, não estar mais sendo ouvida pelos ministérios, esquecem que eles deixaram de ouvir as bases. Um caso é a Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica, a SBPC. No início das SBPCs você tinha uma representação que vinha da base: eram os departamentos, os laboratórios, os institutos que indicavam os integrantes da reunião e os trabalhos. A partir de certo momento, nessa lógica (exatamente a mesma seguida pela Capes e pelo CNPq), a SBPC passou a só aceitar trabalhos vindos de Associações Nacionais de Pós-Graduação, de laboratórios reconhecidos etc... a comunidade científica desdobrou-se. Nós tínhamos duas comunidades científicas: a do pesquisador de base e a dos dirigentes políticos que dirigiam as Associações de Pós-graduação ou Associações simplesmente. É claro que se ocorre esse tipo de delegação, se não existir cobrança da base, as instituições que não a respeitam, a base se reduz à insignificância. Foi o que aconteceu e a comunidade perdeu muito. Entidades como a SBPC começaram a perceber e a corrigir esse desvio. Hoje, por exemplo, já se pode apresentar um trabalho que não saia diretamente da Associação Nacional de Pós-Graduação disso ou

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daquilo, mas houve perda substancial nesse período. No caso das Humanidades, Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação, Anped, Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Anpocs, Associação Nacional de Profissionais de Ciências Sociais, Anpof, foram as grandes monopolizadoras da comunicação e da intermediação de recursos e políticas para a Pós-Graduação no seu todo e acho que elas vão ter que responder por muitos erros ocorridos neste processo.

sobre o compromisso ético da universidade O compromisso ético da universidade (digo ético porque é coletivo, não é moral, é um compromisso social) é com a população dentro da qual ela se insere. Não tem sentido uma universidade “para si”. Uma universidade sempre é relacional. Sempre é um serviço ao social. Você pode pesquisar o mais livremente possível - não existe nenhuma pesquisa, por mais especulativa que seja, por mais que seja de ponta em termos tecnológicos, que não possa se traduzir em informações para o social. Quando digo informação, penso o seguinte: temos o homem, ser social, imerso na natureza, natureza que lhe oferece oportunidades e riscos. Qualquer ato coletivo que seja feito no sentido de diminuir os riscos da vida humana dentro da natureza é positivo do ponto de vista ético. Todos os que aumentam o risco desta existência são negativos. A natureza e o espírito não se contradizem nessa perspectiva. Quando se tem uma série de procedimentos que dificultam ou tornam a existência do homem perigosa, enfrentamos um alarme do ponto de vista ético. Assim, de consenso, por exemplo, o protocolo de Kyoto. Para nós, seres pensantes, é uma condição básica da existência da humanidade no planeta Terra, portanto, eticamente defensável. Não que todos os itens do protocolo sejam defensáveis, mas os princípios que levaram à reunião de Kyoto o são, o que torna condenáveis todos os que, como o governo dos Estados Unidos, se recusam a aceitar essas medidas. Do ponto de vista da Ecologia, temos um terreno enorme, quase que infindável, de investigação e de verificação do que é ou não eticamente recomendável para a humanidade. Mas, seguir esse procedimento exige mais disciplina do que se costuma dizer. É fácil proclamar princípios, difícil é modificar efetivamente a vida. Por exemplo, muitas universidades que têm uma concepção altamente elogiosa de si não tem cuidados ecológicos mínimos. Muitos lagos situados em campus universitários estão poluídos pelas próprias faculdades. Experimentos em animais é outro problema seriíssimo que precisa ser investigado. Por enquanto estamos apenas no nível do protesto humanitário, ou da justificativa puramente sensível, mas há toda uma zona intermediária que deve ser pensada. Como diz Levi Strauss: se agimos de forma inumana com os animais é porque já demos o passo de agir de forma inumana com o ser humano. Então, não é um problema apenas de bondade, caridade, piedade ou alma fraca, que não pode suportar a dor dos outros. Trata-se de uma definição de o que você quer para o ser humano e para você mesmo. São problemas extremamente complexos, mas de enunciação simples. O passo deste enunciado que eu faço quase como que uma espécie de

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refrão: “aquilo que possibilita aumentar as oportunidades de sobrevivência, de ampliação do tempo do ser humano individual e coletivo na Terra é eticamente recomendável. Aquilo que apressa o fim é negativo”. O que expande o ser humano, a vida, os valores, a consciência, o espírito, em última instância (música, poesia etc...), deve ser incentivado e cultivado. O que retrai, traz ódio, tristeza, isolamento, deve ser evitado e administrado. Não podemos decretar o fim da dor ou da maldade humana. Mas podemos administrar. Administrar é uma arte, muito difícil, mas tem que ser feita. A ética ajuda, traz elementos para esta reflexão. Mas não traz soluções. Engana-se profundamente quem acha que estudando a Ética vai encontrar soluções. Aliás, isso é antiético. Quem propõe soluções éticas sem estudar toda a complexidade do relacionamento entre homem e natureza, homem e homem exerce ilegitimamente a tarefa de pensar. Sou refratário, por exemplo, a dizer qual “o papel” da universidade. Para isso é preciso sair da universidade e da sociedade e, de um ponto de vista divino, verificar todo o contexto para dizer: “este é o papel!”. Nós somos atores e cabe-nos tentar reinventar nossa fala, não decretar o que ela deve ser; dar respostas provisórias, sempre provisórias, e capazes de ser corrigidas, ampliadas e superadas pelo nosso próximo. Este exercício da morte da individualidade é muito sério. Não existe processo de humanização sem expansão da individualidade. Mas essa expansão tem que passar pelo processo da sua morte. Ela precisa se negar. Se você sempre está expandindo seu próprio ponto de vista, sua própria consciência, chega um ponto em que você está destruindo outras. Na experiência democrática é necessário que você cale um pouco o seu desejo de expansão e permita que o outro se expanda um pouco, para que haja troca. Eu gosto muito das imagens utilizadas por Leroi-Gourhan, um grande etnólogo. Ele diz que, no processo da cultura, e no processo da cultura tecnológica sobretudo, são possíveis duas imagens que podem definir o que o processo tecnológico e científico não podem ser. Não podem ser, por exemplo, descritos pela imagem da ameba, que é a permanente repetição do mesmo. A outra imagem que não pode ser usada para descrever a invenção técnica ou de conceitos é a do som: um som é sempre diferente do outro, é permanente diferença. Ora, a música se faz com o mesmo e com o diferente. A música me parece uma imagem mais próxima de o que deve ser a cultura humana do que a figura puramente biológica da ameba ou tecnológica do som. Para trabalhar a cultura são necessários o mesmo e o outro, caso contrário não há invenção, nem comunicação. É fácil proclamar o diálogo. Mas fazer com que o outro exista significa matar um pouco de nós e ninguém gosta de fazer esse harakiri doloroso. Mas é esta dor que faz com que existam culturas refinadas. A disciplina, o trabalho, a escuta alheia, a correção do erro... tudo isso faz com que brote a diferença e obriga a perceber de modo crítico o diferente. Isso se chama Ciência, saber, que define um caminho difícil. Gosto muito do aforismo latino posto por Spinoza no final de sua Ética: “tudo o que é belo, é difícil e raro”.

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ELISETE ALVARENGA, Marcas, 2000


livros Fragmentos...

Escritos sobre a universidade CHAUÍ, M.S. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

PÓS-MODERNIDADE CIÊNCIA E CRISE DE RACIONALIDADE A ciência antiga definia-se como teoria... a ciência moderna, ao contrário, afirmou que a teoria tinha como finalidade abrir o caminho para que os humanos se tornassem senhores da realidade natural e social. Todavia, a ciência moderna ainda acreditava que a realidade existia em si mesma, separada do sujeito do conhecimento e que este apenas podia descrevê-la por meio de leis e agir sobre ela por meio das técnicas. A ciência contemporânea, porém, acredita que não contempla nem descreve realidades, mas a constrói intelectual e experimentalmente nos laboratórios. Essa visão pós-moderna da ciência como engenharia e não como conhecimento, desprezando a capacidade do real e as difíceis condições para instituir as relações entre o subjetivo e o objetivo, leva à ilusão de que os humanos realizariam, hoje, o sonho dos magos da Renascença, isto é, serem deuses porque capazes de criar a própria realidade e, agora, a própria vida. (p.23-4) Categorias gerais como universalidade, necessidade, objetividade, finalidade, contradição, ideologia, verdade são consideradas mitos de uma razão etnocêntrica, repressiva e totalitária. Em seu lugar, aparecem: o espaço-tempo fragmentado, reunificado tecnicamente pelas telecomunicações e informações; a diferença,... ; os micropoderes disciplinadores; a subjetividade narcísica; a contingência,...; a descontinuidade...; o mercado da moda, do efêmero e do descartável. ... A universidade, como instituição de docência e pesquisa, não pode passar ao largo dessa crise da racionalidade, pois a vocação científica da universidade depende da posição que ela tome ante o novo paradigma da razão ou da não razão. (p.130-1)

Creio que a universidade tem hoje um papel que alguns não querem desempenhar, mas que é determinante para a existência da própria universidade: criar incompetentes sociais e políticos, realizar com a cultura o que a empresa realiza com o trabalho, isto é, parcelar, fragmentar, limitar o conhecimento e impedir o pensamento, de modo a bloquear toda tentativa concreta de decisão, controle e participação, tanto no plano da produção material quanto no da produção intelectual. Se a universidade brasileira está em crise é simplesmente porque a reforma do ensino inverteu seu sentido e finalidade - em lugar de criar elites dirigentes, está destinada a adestrar mão-de-obra dócil para um mercado sempre incerto. E ela própria ainda não se sente bem treinada para isto, donde sua “crise”. (p.46) A universidade brasileira está encarregada dessa última forma de instrumentalização da cultura. Reduz toda a esfera do saber à do conhecimento, ignorando o trabalho do pensamento. Limitando seu campo ao do saber instituído, nada mais fácil do que dividi-lo, dosá-lo, distribuí-lo e quantificá-lo. Em uma palavra: administrá-lo. (p.59-60)

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UNIVERSIDADE EUROPÉIA

UNIVERSIDADE BRASILEIRA

A ideologia pós-moderna corresponde a uma forma de vida determinada pela incerteza e violência institucionalizadas pelo mercado. Essa forma de vida possui quatro traços principais: 1 a insegurança, que leva a aplicar recursos no mercado de futuros e de seguros; 2 a dispersão, que leva a procurar uma autoridade política forte, com perfil despótico; 3 o medo, que leva ao reforço de antigas instituições, sobretudo a família, e ao retorno das formas místicas e autoritárias ou fundamentalistas da religião; 4 o sentimento do efêmero e da destruição da memória objetiva dos espaços, levando ao reforço de suportes subjetivos da memória (diários, biografias, fotografias, objetos). A peculiaridade pós-moderna, isto é, a paixão pelo efêmero, pelas imagens velozes, pela moda e pelo descartável, depende de uma mudança sofrida no setor da circulação das mercadorias e do consumo. ... Por ser a ideologia da nova forma de acumulação do capital, o pós-modernismo relega à condição de mitos eurocêntricos totalitários os conceitos que fundaram e orientaram a modernidade: ... Realiza três grandes inversões ideológicas: substitui a lógica da produção pela da circulação; substitui a lógica do trabalho pela da comunicação; e substitui a luta de classes pela lógica da satisfação-insatisfação imediata dos indivíduos no consumo. (p.22-3)

Certamente a atual universidade européia não reproduz exatamente o pré-68 (as autoridades competentes aprenderam a lição), mas nem por isso a universidade acabou. Se não terminou e se, ao contrário, se transformou é porque algum papel lhe foi ainda atribuído pelo capitalismo, cuja lógica de bronze só conserva o que lhe serve. A que serve a universidade européia pós-68, não saberíamos dizer, mas é certo que lhe foi dado um novo papel a desempenhar. (p.45)

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DIVISÃO DO TRABALHO

Ignorar que adestramento e treinamento, só porque nem sempre equilibram oferta e procura no mercado de empregos, são procedimentos econômicos e políticos destinados à exploração e à dominação é ignorar o novo papel que foi destinado ao trabalho universitário. (p.56)

UNIVERSIDADE E CULTURA

Ora, se o ensino for praticado por professores que apenas conhecem os rudimentos de seu campo de estudo, conhecem apenas alguns aspectos dos problemas de sua área, conhecem o mínimo indispensável para transmitir técnicas e garantir pacotes de automatismos físicos e psíquicos aos alunos, não caberia indagar se esse tipo de professor não seria guiado pela perspectiva altamente normativa e conformista, se não alimentaria nos estudantes o gosto ou a tendência pela autoridade e se não faria isso até mesmo com os estudantes de humanidades? (p.102)

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Apêndice do Ministério do Planejamento, a universidade está estruturada segundo o modelo organizacional da grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição. Isso significa que nos equivocamos quando reduzimos a articulação universidade-empresa ao pólo do financiamento de pesquisas e do fornecimento de mão-de-obra, pois a universidade encontra-se internamente organizada conforme o modelo da grande empresa capitalista. Assim sendo, além de participar da divisão social do trabalho, que separa trabalho intelectual e manual, a universidade ainda realiza em seu próprio interior uma divisão do trabalho intelectual, isto é, dos serviços administrativos, das atividades docentes e da produção de pesquisas. (p.56)

AUTOMATISMOS

TREINAMENTO

Desvinculando educação e saber, a reforma da universidade revela que sua tarefa não é produzir e transmitir a cultura (dominante ou não, pouco importa), mas treinar os indivíduos a fim de que sejam produtivos para quem for contratá-los. A universidade adestra mão-de-obra e fornece forçade-trabalho. (p.52)

... ousaria dizer que não somos produtores de cultura somente porque somos economicamente “dependentes”, ou porque a tecnocracia devorou o humanismo, ou porque não dispomos de verbas suficientes para transmitir conhecimentos, mas sim porque a universidade está estruturada de tal forma que sua função seja: dar a conhecer para que não se possa pensar. Adquirir e reproduzir para não criar. Consumir, em lugar de realizar o trabalho da reflexão. (p.62)

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A fragmentação da universidade ocorre em todos os níveis, tanto nos graus do ensino quanto nos da carreira, tanto nos cargos administrativos e docentes quanto nos de direção. O taylorismo é a regra. Isso significa, em primeiro lugar, que a fragmentação não é casual ou irracional, mas deliberada, pois obedece ao princípio da empresa capitalista moderna: separar para controlar. (p.56)

FRAGMENTAÇÃO

EDUCAÇÃO E SABER

Está em curso, no Brasil, a chamada Reforma do Estado. Seu Plano (desenhado em organogramas e fluxogramas) e sua implantação (justificada em dezenas de “exposições de motivos”) pretendem ser uma “engenharia política” que visa adaptar o Estado brasileiro às exigências impostas pela nova forma do capital, que não carece mais, como careceu nos anos 19401970, do Estado como parceiro e regulador da economia. (p.175) ...O Plano distingue o setor de atividades exclusivas do Estado e o de serviços não-exclusivos do Estado fazendo distinção entre “agências autônomas” e “organizações sociais”. São agências autônomas as instituições de direito público, que realizam as atividades exclusivas do Estado. São organizações sociais as instituições públicas não-estatais, que operam no setor de serviços. As universidades, as escolas técnicas, os museus e os centros de pesquisa estão nesse grupo. (p.176)

REFORMA DO ESTADO / PLANO

LIVROS

Conhecer é apropriar-se intelectualmente de um campo dado de fatos ou de idéias que constituem o saber estabelecido. Pensar é enfrentar pela reflexão a opacidade de uma experiência nova cujo sentido ainda precisa ser formulado e que não está dado em parte alguma, mas precisa ser produzido pelo trabalho reflexivo, sem outra garantia senão o contato com a própria experiência. O conhecimento se move na região do instituído; o pensamento, na do instituinte. (p.59)

- Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.111-4, fev 2002

CONHECIMENTO/PENSAMENTO


IMEDIATIDADE

... opor de maneira muito imediata humanismo e tecnicismo não leva muito longe, pois são resultados diversos da mesma origem. Para que a oposição humanidade/ tecnocracia adquirisse um novo sentido seria preciso, talvez, um pensamento novo para o qual a subjetividade, a objetividade, a teoria e a prática fossem questões abertas e não soluções já dadas. Um pensamento que, abandonando o ponto de vista da consciência soberana, pensasse na fabricação das consciências e das relações sociais e estivesse sempre atento para o problema da dominação do homem sobre o homem e que se chama: luta de classes. (p.62)

O sentimento comunitário, construído sobre a “imediatidade” dos afetos, sem elaboração e sem reflexão, se transforma em sentimento gregário, numa passividade agressiva, pronta a investir contra tudo quanto surja como outro, pois quem estiver fora do agregado só pode ser seu inimigo. Som e fúria, dependência e agressão, medo e apego à autoridade esse costuma ser o saldo de uma realidade constituída apenas por manipuladores e manipulados. (p.64)

AVALIAÇÃO/CRITÉRIO

Ora, no mundo contemporâneo há apenas dois tipos de segredo: o segredo empresarial, para fins competitivos, e o segredo militar, para fins bélicos. Não sendo a universidade uma empresa nem um complexo militar, mas uma instituição pública destinada à criação de conhecimentos e à sua transmissão, por que razão suas direções mantêm secretos critérios de avaliação que deveriam ser duplamente públicos; públicos, enquanto do conhecimento dos avaliados; e públicos, enquanto informação oferecida à sociedade? Se são secretos é porque têm finalidade competitiva distribuição de recursos para ensino e pesquisa - e finalidade “bélica” - destruição dos oponentes que desconhecerem as regras do jogo. (p.80)

A articulação das duas vocações da universidade, quando feita a partir dela mesma e por iniciativa dela, tende a nos oferecer a fase luminosa das duas vocações, pois a universidade assume explícita e publicamente tal articulação como algo que a define internamente. (p.118) ... Isso não quer dizer, porém, que a relação entre ambas seja simples, direta, imediata e sem conflitos. (p.120)

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VOCAÇÃO CIENTÍFICO/POLÍTICO

HUMANISMO/TECNICISMO

Quando examinamos a relação pedagógica na universidade, não encontramos razões para regozijo. Não se trata, aqui, do autoritarismo próprio dos regulamentos universitários, pois já sabemos o que são e para que são. Trata-se do uso do saber para exercício de poder, reduzindo os estudantes à condição de coisas, roubando-lhes o direito de serem sujeitos de seu próprio discurso. Longe de aceitarmos que a relação professor-aluno é assimétrica, tendemos a ocultá-la de duas maneiras: ou tentamos o “diálogo” e a “participação em classe”, fingindo não haver uma diferença real entre nós e os alunos, exatamente no momento em que estamos teleguiando a relação, ou, então, admitimos a diferença, mas não para encará-la como assimetria e sim como desigualdade justificadora do exercício de nossa autoridade. O que seria a admissão da assimetria como diferença a ser trabalhada? Seria considerar que o diálogo dos estudantes não é conosco, mas com o pensamento, que somos mediadores desse diálogo e não seu obstáculo. (p.71)

RELAÇÃO PEDAGÓGICA

LIVROS

- Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.111-4, fev 2002

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LIVROS

MODERNIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE

AUTONOMIA

QUALIDADE

... autonomia possuía sentido socio-político e era vista como a marca própria de uma instituição social que possuía na sociedade seu princípio de ação e de regulação. Ao ser, porém, transformada numa organização administrada, a universidade pública perde a idéia e a prática da autonomia, pois esta, agora, se reduz à gestão de receitas e despesas, de acordo com o contrato de gestão pelo qual o Estado estabelece metas e indicadores de desempenho, que determinam a renovação ou não renovação do contrato. ... significa, portanto, gerenciamento empresarial da instituição e prevê que, para cumprir as metas e alcançar os indicadores impostos pelo contrato de gestão, a universidade tem “autonomia” para “captar recursos” de outras fontes, fazendo parcerias com as empresas privadas. (p.183)

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A “qualidade”, por sua vez, é definida como competência e excelência cujo critério é o “atendimento às necessidades de modernização da economia e desenvolvimento social”; e é medida pela produtividade, orientada por três critérios: quanto uma universidade produz, em quanto tempo produz e qual o custo do que produz. Em outras palavras, os critérios de produtividade são quantidade, tempo e custo, que definirão os contratos de gestão. Observa-se que a pergunta pela produtividade não indaga: o que produz, como se produz, para que ou para quem se produzz, mas opera uma inversão tipicamente ideológica da qualidade em quantidade. Observa-se também que a docência não entra na medida da produtividade e, portanto, não faz parte da qualidade universitária, o que, aliás, justifica a prática dos “contratos flexíveis”. (p.184)

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... um princípio comum às propostas de modernização é a clara separação entre ensino e pesquisa. As propostas mais sofisticadas vão além: afirmam que a inseparabilidade entre ensino e pesquisa é um mito... a separação não é justificada por necsesidades intrínsecas ao ensino e à pesquisa, mas pela diversidade de pessoas que os praticam. Ora, isso posto, compreende-se o corolário retirado da regra da separação: aqueles que vão apenas ensinar não são obrigados a conhecer todo o campo de estudo em que trabalham, mas apenas o que é necessário para a transmissão de rudimentos e técnicas aos estudantes. Que significa tão singela e tão factual afirmação?... O argumento, em sua simplicidade, pretende apenas respeitar a psicologia de cada professor e estimular cada um a fazer aquilo em que é mais eficiente e competente, no que beneficiará muito mais aos estudantes. Essa simplicidade e essa obviedade escondem, porém, um projeto fortemente hierarquizado de cargos e funções. Compreende-se por que a proposta de democratização, que não faz as diferenças passarem por aí, seja tida como perigosa e desordenadora. (p.99-100)

FLEXIBILIZAÇÃO A “flexibilização”, por seu turno, é o corolário da “autonomia”. Na linguagem do Ministério da Educação, “flexibilizar” significa: 1 eliminar o regime único de trabalho, o concurso público e a dedicação exclusiva, substituindo-os por “contratos flexíveis”, isto é, temporários e precários; 2 simplificar os processos de compras (as licitações), a gestão financeira e a prestação de contas (sobretudo para proteção das chamadas “outras fontes de financiamento”, que não pretendem se ver publicamente expostas e controladas); 3 adaptar os currículos de graduação e pósgraduação às necessidades profissionais das diferentes regiões do país, isto é, às demandas das empresas locais (aliás, é sistemática nos textos da Reforma referentes aos serviços a identificação entre “social” e “empresarial”; 4 separar docência e pesquisa, deixando a primeira na universidade e deslocando a segunda para centros autônomos de pesquisa. (p.183-4)

- Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.111-4, fev 2002

Maria Lúcia Toralles-Pereira Departamento de Educação, Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista/UNESP, Botucatu. <toralles@ibb.unesp.br>


teses

Enfermeiro com qualidade formal e política: em busca de um novo perfil Nurses with formal qualities and policies: the quest for a new profile

A qualidade política se traduz na intervenção crítica e criativa das pessoas em cenários históricos, amparada pelo conhecimento inovador e pela participação dos sujeitos, podendo alargar chances e conquistas. Este estudo investiga a fragilidade política do enfermeiro em contextos sóciohistóricos específicos, desenvolvendo a hipótese de que “a qualidade política e a qualidade formal são importantes para o desenvolvimento profissional do enfermeiro, potencializando um agir (ou cuidado) comprometido com a emancipação”. Como objetivos, têm-se: conceituar qualidade formal, qualidade política, cuidado e emancipação; investigar a qualidade formal e política do enfermeiro, detectando conflitos e fragilidades presentes no discurso e prática deste profissional; e apontar perfil para o profissional enfermeiro capaz de potencializar a emancipação de pessoas, baseados na qualidade formal e política. O referencial teórico baseia-se na teoria da pobreza política de Pedro Demo, na idéia de desenvolvimento humano introduzida pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/ONU) e nos conceitos de qualidade política, emancipação e cuidado emancipatório. O conceito de qualidade é trabalhado dentro de uma abordagem dialética, visto como construção contínua no cotidiano, que se nega a si mesmo como exigência de superação. Para tal abordagem, investiga-se a qualidade no profissional enfermeiro, desvelando-lhe a superficialidade dos fenômenos, buscando conflitos, contrários e

ideologias presentes, principalmente, no depoimento desse profissional. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, enfoque interpretativo dinâmico e processual que prima pela compreensão discutível dos fenômenos estudados, não negando a quantidade, mas estabelecendo com ela relação dialética. Pensar qualitativamente uma realidade pressupõe concebê-la sempre mais complexa e profunda que a pretensa análise ou descrição que dela se faz. Destaque-se também que, em estudos das relações e estruturas sociais, sujeito e objeto confundem-se e intercompletam-se na totalidade. Adota-se como critério de verdade a discutibilidade, já que para a dialética as decisões para as verdades dependem da incompletude histórica da realidade. Enquanto pesquisa qualitativa, sob enfoque dialético, respalda-se mais pelo poder de suscitar discussões, argumentações e contraargumentações, que pela pretensão de cristalizar-se como dogma. A coleta de dados partiu de incursão introdutória com foco quantitativo, com aplicação direta de cem questionários (delineamento da amostra), para chegar a técnica de estudo de casos, utilizando entrevistas de profundidade com 12 enfermeiros, distribuídos em dois grupos: Enfermeiros que se aproximam da qualidade política e Enfermeiros que se distanciam da qualidade política. A partir do referencial metodológico da hermenêutica de profundidade proposto por Thompson (2000), e análise do discurso defendido por Orlandi (2001), interpretou-se as formas simbólicas expressas nas declarações do

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TESES

enfermeiro, estruturando a análise dos depoimentos em três momentos complementares: contextualização sóciohistórica do entrevistado; análise estrutural do depoimento (códigos e termos freqüentes, posicionamentos e argumentações); dinâmica interpretativa (standpoint epistemology, crítica, reinterpretação). Utilizando as categorias qualidade política, emancipação e cuidado, a pesquisa detectou algumas fragilidades políticas típicas nos enfermeiros e propôs indicações mais aproximadas da qualidade política. O estudo aponta a perspectiva de fortalecimento da concepção de cuidado emancipatório na enfermagem, potencializando-a enquanto prática social reordenadora de desigualdades sociais. Indica que um perfil aproximativo e indicativo de

enfermeiro com qualidade formal e política, sempre reconstrutivo, envolve: compreensão e crítica de contextos sócio-histórico apurados; entendimento da unidade dialética autonomia e poder enquanto correlação de forças superáveis e conquistáveis, principalmente, pelo conhecimento reconstrutivo e pela participação; e intervenções críticas, reflexivas e criativas de sujeitos em contextos sócio-históricos específicos, pelo cuidado emancipatório que se refaz na dispensa da ajuda e na politização dos espaços em que se insere, potencializando a desconstrução de assimetrias de poder.

Maria Raquel Gomes Maia Pires Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília/UnB <maiap@uol.com.br; raquel.pires@saude.gov.br>

PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem; desenvolvimento de recursos humanos; qualidade. KEYWORDS: Nursing; staff development; quality. PALABRAS-CLAVE: Enfermeria; desarrollo de personal; qualidad.

Recebido para publicação em: 15/01/02. Aprovado para publicação em: 29/01/02.

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espaço aberto

Educação e universidade: conhecimento e construção da cidadania Education and universities: knowledge and the construction of citizenship

Antônio Joaquim Severino 1

Ciente das limitações da perspectiva filosófica, desenvolvo considerações tentando sistematizar um olhar sobre aquela universidade que todos buscamos, em condições de contribuir para a construção de uma outra sociedade brasileira, marcada pela cidadania e pela democracia. Uma universidade que, funcionária do conhecimento, possa colocá-lo a serviço da sociedade. Comprometida com o conhecimento, ela o será, também, com a extensão e a pesquisa, tanto quanto com o ensino. A universidade num novo tempo Nos dias de hoje, o próprio sentido da existência da universidade já não parece tão claro, podendo-se perceber que, além das críticas oriundas de setores especializados, uma espécie de questionamento generalizado, difuso em todo o corpo social, se faz cada vez mais presente e explícito. O sentimento geral de frustração em relação às expectativas não realizadas e às promessas não cumpridas de desenvolvimento e progresso das sociedades, a desvalorização da cultura elaborada e a banalização das referências em todos os setores da vida humana, são causas abrangentes que levam igualmente à desvalorização da universidade. No que concerne à sociedade brasileira, a crise profunda que se abate sobre ela, de modo especial no que se refere à restrição de empregos e à perda de prestígio das carreiras profissionais de nível universitário, é certamente outro fator que pesa na desconsideração da relevância desse tipo de instituição. Por outro lado, a universidade, como instituição da esfera educacional, sofre de processo crônico de corrosão interna, deteriorando-se continuamente e comprometendo sua própria eficácia, tornando-se pouco fecunda no atingimento de seus objetivos, consagrados pela tradição e reiterados pela retórica dominante. As universidades públicas, o mais das vezes vitimadas pelos vícios esclerosantes do regime burocrático, mal domesticado pelos profissionais do setor, acabam se fechando sobre si mesmas, passando a um estado quase que vegetativo, sem força nem vitalidade. As poucas exceções de instituições ou de setores no seu interior, sucumbem sob o peso de pressões espúrias e de muitas opressões, oriundas tanto do aparelho estatal como de grupos internos, que se apropriam de seus instrumentos como se fossem bens particulares e que

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Professor da Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo/FEUSP. <ajseverino@uol.com.br>

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ANTONIO JOAQUIM SEVERINO

são incapazes de se articularem em torno de projetos de pensamento ou ação alguns passos além de seus interesses imediatos e egocentrados. Já as universidades particulares, salvo raras e precárias exceções, incapazes de pensar algum projeto cultural mais amplo e de entender o alcance dos serviços educacionais que administram, contentam-se em empacotar, com papel brilhoso, produtos mal acabados, vendendo-os, sempre a bom preço, a clientes, carentes, incautos ou mesmo cúmplices na esperteza ou na mediocridade, tudo sob a propaganda marcada pela ideologia da qualidade total e de outros mitos que andam povoando o imaginário nacional em tempos de globalização econômica e cultural. A realidade do processo de internacionalização da economia, com todos os seus corolários, bons e ruins, é transfigurado numa espécie de fenômeno místico e redentor, passando a constituir-se como contexto e justificativa para tudo o que ocorre ou que deveria ocorrer. A alardeada globalização serve de desculpa para todo tipo de omissão ou de decisão, tornando-se o biombo de tantas políticas excusas atualmente implementadas pelo governo brasileiro, em todos os campos da vida nacional. Nesse contexto de ambigüidades e ambivalências, os conceitos perdem sua força e o discurso vira ruído. A fala dos supostos responsáveis pelo bem público indica numa direção, mas a realidade das coisas caminha na direção inversa. Por isso mesmo, os espíritos ficam confusos, perdendo a lucidez na visão das coisas humanas. A significação da universidade se dilui nesse emaranhado de idéias e proposições que vêm sendo formuladas, no momento atual, como indicação de que a humanidade teria entrado numa nova era, que superaria tudo que havia construído e acumulado. Tornou-se discurso corrente e recorrente a afirmação incisiva de que estaríamos vivendo hoje, no limiar do terceiro milênio, um mundo totalmente diferente daquele projetado pela visão iluminista da modernidade e destinado à realização de uma sociedade utópica. Chega-se a afirmar que a história teria terminado, uma vez que a civilização humana teria alcançado o patamar mais alto do progresso possível para a humanidade. Já se encontrariam realizadas todas as possibilidades de aperfeiçoamento, de aprimoramento de nossas condições de vida individual e social. O modelo de existência humana não é mais um ponto no horizonte futuro, mas já está disponível no presente, faltando apenas que cada pessoa ou cada grupo a ele se ajustasse. Estaríamos vivendo um momento de plena revolução tecnológica, capaz de lidar com a produção e transmissão de informações em extraordinária velocidade, num processo de planetarização não só da cultura mas também da economia e da política. Tratar-se-ia de um momento marcado pelo privilegiamento da iniciativa privada, pela minimalização da ingerência do Estado nos negócios humanos, pela maximalização das leis do mercado, pela ruptura de todas as fronteiras e barreiras entre estados e mercados. No plano mais especificamente filosófico, estaria em pauta uma crítica cerrada às formas de expressão da razão teórica da modernidade, propondo-se a desconstrução de todos os discursos por ela produzidos, todos colocados sob suspeita, inclusive aqueles da própria ciência. Esse mundo novo dispensa a universidade tradicional, forjada à luz das referências da modernidade, uma de suas expressões mais arrematadas. No entanto, este vagalhão neo-liberal, com suas decorrências e expressões

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no plano cultural, com sua exacerbação do individualismo, do produtivismo, do consumismo, da indústria cultural, da mercadorização até mesmo dos bens simbólicos, não instaura nenhuma pós-modernidade. O que está acontecendo é a plena maturação das premissas e promessas da própria modernidade. Nada mais moderno do que esta expansão e consolidação do capitalismo, envolvido numa aura ideológica de liberalismo extremado; nada mais moderno do que esta tecnicização, viabilizada pela revolução informacional. Finalmente, a modernidade está podendo cumprir as promessas embutidas em seu projeto civilizatório. No fundo, é a mesma racionalidade, com suas qualidades e com seus equívocos, que continua dirigindo os rumos da história humana, em que pesem as críticas que são feitas a sua forma de expressão até o século XIX. É a mesma razão instrumental da modernidade, já tão criticada pelos pensadores frankfurtianos, especialmente por Adorno e Horkheimer, que continua dando as cartas. Só que agora ela se camufla, na hora de fazer sua autojustificativa, sob um discurso cujos argumentos soam anti-iluministas, enquanto a condição da realidade humana, em todos os planos da vida individual ou coletiva, continua sendo feita de acordo com parâmetros racionais eminentemente tecnocráticos. Denuncia-se a racionalidade iluminista, de uma perspectiva crítica aliás muito pertinente, sem que se assuma, de fato, a superação de suas determinações. E mais incapaz ainda de denunciar os comprometimentos dessa instrumentalidade com a irracionalidade da “mão invisível do mercado” e de tantas outras forças que atuam efetivamente no social. Esta “desrazão”, intimamente articulada à barbárie é muito mais instrumentalizadora e manipuladora de nossos destinos do que a razão iluminista. Não é o caso de desconhecer os resultados nefastos do racionalismo iluminista mas também não é o caso de achar que todos os males da humanidade lhe devam ser debitados. Esse discurso da globalização não passa de uma nova versão ideologizada do capitalismo e sua função continua sendo aquela de justificar o atual estado de coisas. A globalização econômico-cultural não é um processo de universalização mediante o encontro e a fusão das diferentes regiões, países e modelos culturais. Ao contrário, a planetarização ocorre como homogeneização forçada e induzida das condições capitalistas de produção, de feitio fundamentalmente norte-americano, não levando em conta as possíveis contribuições dos outros. É a pax romana, imposta urbi et orbi. Esta planetarização do capitalismo continua dentro das previsões de Marx. De autenticamente liberal ou neo-liberal, tem muito pouco, é de perfil francamente tecnocrático no que concerne ao usufruto dos bens e direitos por parte dos segmentos fragilizados e excluídos, em termos de pessoas e sociedades. O que não dizer da transformação da economia em mero mercado financeiro, como o vêm demonstrando sobejamente as constantes crises impostas, sobretudo aos países emergentes do terceiro mundo, pelo capitalismo especulativo? Afinal, o que de racional e de eqüitativo existe numa economia onde o capital disponível para a humanidade se distribui em 88% de capital financeiro especulativo contra apenas 12% de capital produtivo? Que tal situação configure um contexto novo, não há como negar nem recusar. E que obviamente exige reequacionamentos por parte de todos nós,

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quaisquer que sejam os lugares que ocupemos na dinâmica socio-cultural. Isso não está em questão. Mas o que cabe aqui é uma rigorosa atenção a essa especificidade do momento histórico, não se deixando levar nem por uma atitude de mera anatematização moralizante ou saudosista, nem por um deslumbramento alienante. Análise detida e vigilância crítica, é o que nos cabe neste quadrante histórico... Igualmente é preciso não perder de vista a historicidade da existência humana, não se deixando iludir pela idéia de que o fim das utopias do progresso humano possa significar igualmente o fim da história. Portanto, ter bem presente que a atual situação tem também uma configuração histórica que, como tal, terá seus desdobramentos, cuja orientação dependerá em muito da própria ação e decisão dos homens. Do mesmo modo, é bom ter presente que crise da razão não é crise do processo de conhecimento. A alegada crise dos paradigmas da razão moderna não atinge o conhecimento em si, o poder do homem em produzir e dispor do conhecimento, mas suas formas históricas (a ciência positiva, a filosofia idealista, as metanarrativas); a própria crítica que a elas são feitas, o são pelo exercício e aplicação do próprio conhecimento. Mas, antes de tudo, não se pode perder de vista a dura realidade do contexto histórico latino-americano, onde as marcas da exclusão humana continuam com presença muito forte. O processo de modernização pelo qual passou e continua passando o continente está acontecendo a um preço muito alto. A organização econômica, de lastro capitalista, sob um clima político de mandonismo interno das elites nacionais e da dominação externa dos grupos internacionais, impõe uma configuração socio-econômica na qual as condições de vida da imensa maioria da população continuam extremamente precárias. Na verdade, o aclamado processo de globalização da economia parece universalizar as vantagens do capital produtivo e as desvantagens do trabalho assalariado. Dada essa situação, o lugar e o papel da educação precisam ser contínua e expressamente retomados e redimensionados. O compromisso ético e político da educação se acirra nas coordenadas histórico-sociais em que nos encontramos. Isto porque as forças de dominação, de degradação, de opressão e de alienação, se consolidaram nas estruturas sociais, econômicas e culturais. As condições de trabalho são ainda muito degradantes, as relações de poder muito opressivas e a vivência cultural precária e alienante. A distribuição dos bens naturais, dos bens políticos e dos bens simbólicos, muito desigual. As condições atuais de existência da humanidade, traduzidas pela efetivação de suas mediações objetivas, são extremamente injustas e desumanizadoras. Tais condições mostram-se muito agravadas no contexto historico-social do terceiro mundo, assumindo características particularmente críticas na América Latina. É também por exigência ética que a educação deve se conceber e se realizar como investimento intencional sistematizado na consolidação das forças construtivas das mediações existenciais dos homens. É isto que lhe dá, aliás, a sua qualificação ética. É por isso também que o investimento na formação e na atuação profissional do educador não pode reduzir-se a uma suposta qualificação puramente técnica. Precisa ser também política, expressar sensibilidade às condições historico-sociais da existência dos sujeitos envolvidos na educação. E é sendo política que a educação e a

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cultura se tornarão intrinsecamente éticas. O futuro da sociedade brasileira está na dependência da sua transformação em uma sociedade menos excludente. E nesse processo, a educação, diretamente vinculada à produção econômica e à dinâmica política, terá papel relevante no compromisso de responder aos desafios da alta modernidade. Construir o futuro implica investir na educação, na perspectiva de uma política educacional intrinsecamente voltada para os interesses humanos da sociedade, visando à superação intencional e planejada de suas forças de exclusão social. Mas, o desenvolvimento da educação numa sociedade historicamente determinada como a nossa, não é questão apenas do domínio e da aplicação de novos saberes e de tecnologias sofisticadas. É verdade que não se pode ignorar toda a potencialidade das novas tecnologias para o desenvolvimento da educação, de outro, é também necessário que essa tecnologia seja vista como ferramenta, como o foram historicamente todos os demais instrumentos técnicos. Meios potencializadores são necessários, mas continuam sendo meios, sempre à espera da adequada exploração pelos homens. Assim, toda educação e toda política cultural têm compromisso especial com a preparação de cidadãos para a vida, função esta que decorre de sua natureza intrínseca como processo construtor do conhecimento, única ferramenta de que o homem dispõe para a realização de sua existência histórica. Do compromisso da universidade com a produção do conhecimento As mudanças no plano cultural são significativas exatamente na medida em que decorrem e se articulam em torno de intencionalidades, de sentidos que os próprios agentes lhes dão, procedendo a uma escolha entre múltiplas possibilidades, com todos os riscos que tal opção pode ensejar, como nos mostra a nossa própria experiência acumulada. O conhecimento é o diferenciador do agir humano em relação ao agir de outras espécies, é a grande estratégia da espécie. Mesmo as suas formas enviesadas, como ocorre nos casos do senso comum, da ideologia, o conhecimento já se revela como o instrumento estratégico dos homens, testemunhando sua imprescindibilidade e sua irreversibilidade em nossa história. Por isso, quando falamos das transformações na esfera da humanidade, estamos necessariamente falando de história e não mais de evolução. História porque as mudanças vão se suceder, não mais por conseqüência de determinismos transitivos, mecânicos, que supostamente governam os fenômenos do mundo, mas em decorrência de significações intencionalizadoras postas pelos próprios sujeitos humanos na implementação de suas ações. Desse modo, a temporalidade da vida humana é profundamente diferente da temporalidade presente no mundo físico ou no mundo biológico. Aqui o tempo não é mais apenas uma sucessão acumulativa de novas etapas, mas uma sucessão criativa de novos estágios não necessariamente contidos nos anteriores. Daí a idéia de construção mediante a qual vem se designando a especificidade das atividades humanas em sua historicidade. E quando se fala de construção, fala-se igualmente de projeto, de planejamento, da capacidade de se prever o que se pretende realizar.

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O conhecimento é elemento específico fundamental na construção do destino da humanidade. Daí sua relevância e a importância da educação, processo mediante o qual o conhecimento se produz, se reproduz, se conserva, se sistematiza, se organiza, se transmite e se universaliza. E esse tipo de situação se caracteriza de modo radicalizado na educação universitária. No entanto, a tradição cultural brasileira privilegia a condição da universidade como lugar de ensino, entendido e, sobretudo, praticado como transmissão de conhecimentos. Apesar da importância dessa função, em nenhuma circunstância pode-se deixar de entender a universidade igualmente como lugar priorizado da produção do conhecimento. A distinção entre as funções de ensino, de pesquisa e de extensão, no trabalho universitário, é apenas uma estratégia operacional, não sendo aceitável conceber os processos de transmissão da ciência e da socialização de seus produtos, desvinculados de seu processo de geração. Na universidade, a indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão tem como referência a pesquisa; aprende-se e ensina-se pesquisando; presta-se serviços à comunidade, quando tais serviços nascem e se nutrem da pesquisa. Cabe ressaltar que a produção do conhecimento precisa ser crítica, criativa e competente; e será consistente se fundada num processo de competência simultaneamente técnica, criativa e crítica. A competência técnica impõe algumas condições lógicas, epistemológicas e metodológicas para a ciência: a exigência de aplicação do método científico, da precisão técnica e do rigor filosófico. A exigência da autonomia e liberdade de criação tem a ver com a atitude, as condições de pesquisador; referindo-se à criatividade e ao impulso criador. A criticidade é qualidade da postura cognoscitiva que permite entender o conhecimento como situado num contexto mais amplo e envolvente, que vai além da simples relação sujeito/ objeto. É a capacidade de entender que, para além de sua transparência epistemológica, o conhecimento é sempre uma resultante da trama das relações sócio-culturais. Capacidade de descontar as interferências ideológicas, as impregnações do senso comum. É a criticidade que nos livra tanto do absolutismo dogmático como do ceticismo vulgar. Desse modo, a pesquisa acaba assumindo uma tríplice dimensão. De um lado, tem uma dimensão epistemológica: a perspectiva do conhecimento. Conhece-se construindo o saber, praticando a significação dos objetos. De outro lado, assume uma dimensão pedagógica: a perspectiva decorrente de sua relação com a aprendizagem. Tem ainda uma dimensão social: a perspectiva da extensão. O conhecimento se legitima pela mediação da intencionalidade da existência histórico-social dos homens. É a única ferramenta de que o homem dispõe para melhorar sua existência. ...e como é que a extensão se torna uma atividade, uma função equiparada às duas outras? Na medida em que ela se articula com as demais e na medida em que o próprio ensino seja visto, também, como prestação de serviços à sociedade em seu conjunto, na medida em que a própria pesquisa seja vista como uma prestação de serviços à própria sociedade. Então, que pesquisas a universidade vai desenvolver? Ela vai desenvolver exatamente aquelas pesquisas que a sociedade está requerendo,

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EDUCAÇÃO E UNIVERSIDADE: O CONHECIMENTO E...

vai se preocupar em explorar aqueles problemas que são candentes à sociedade em que ela está inserida. (Saviani, 1984, p.64-5)

Para finalizar... A pesquisa é fundamental, uma vez que é por meio dela que podemos gerar o conhecimento, a ser necessariamente entendido como construção dos objetos de que se precisa apropriar humanamente. Construir o objeto que se necessita conhecer é processo condicionante para que se possa exercer a função do ensino, eis que os processos de ensino/aprendizagem pressupõem que tanto o ensinante como o aprendiz compartilhem do processo de produção do objeto. Do mesmo modo, a pesquisa é fundamental no processo de extensão dos produtos do conhecimento à sociedade, pois a prestação de qualquer tipo de serviços à comunidade social, que não decorre do conhecimento da objetividade dessa comunidade, é mero assistencialismo saindo da esfera da competência da universidade. Por outro lado, o conhecimento produzido, para se tornar ferramenta apropriada de intencionalização das práticas mediadoras da existência humana, precisa ser disseminado e repassado, colocado em condições de universalização. Ele não pode ficar arquivado. Precisa então transformar-se em conteúdo de ensino, de modo a assegurar a universalização de seus produtos e a reposição de seus produtores. Mas os produtos do conhecimento, instrumentos mediadores do existir humano, são bens simbólicos que precisam ser usufruidos por todos os integrantes da comunidade, à qual se vinculam as instituições produtoras e disseminadoras do conhecimento. É a dimensão da extensão, devolução direta à mesma dos bens que se tornaram possíveis pela pesquisa. Devolvendo à comunidade esses bens, a universidade o faz inserindo o processo extensionista num processo pedagógico, mediante o qual está investindo, simultaneamente, na formação do aprendiz e do pesquisador. A extensão tem que ser intrínseca ao exercício pedagógico do trabalho universitário. Não se trata de uma concessão, de um diletantismo, mas de uma exigência do processo formativo. Toda instituição de ensino superior tem que ser extensionista, pois só assim ela estará dando conta da formação integral do jovem universitário, investindo-o pedagogicamente na construção de uma nova consciência social. Deve expressar a gênese de propostas de reconstrução social, buscando e sugerindo caminhos de transformação para a sociedade. Pensar um novo modelo de sociedade, nos três eixos das práticas humanas: do fazer, do poder e do saber, ou seja, levando a participação formativa dos universitários no mundo da produção, no mundo da política e no mundo da cultura. Dado o caráter contraditório da universidade, como toda entidade sóciocultural criada por homens, não há mesmo como desconhecer as limitações da extensão a ser por ela praticada. a extensão universitária em uma dimensão de mudança social na direção de uma sociedade mais justa e igualitária tem obrigatoriamente de ter uma função de comunicação da universidade com seu meio, possibilitando, assim, a sua realimentação face à problemática da sociedade, propiciando uma

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reflexão crítica e uma revisão permanente de suas funções de ensino e pesquisa. Deve representar, igualmente, um serviço às populações, com as quais os segmentos mais conscientes da universidade estabelecem uma relação de troca ou confronto de saberes. (Gurgel, 1986, p.170)

Referências GURGEL, R. M. Extensão Universitária: comunicação ou domesticação. São Paulo: Cortez/ Autores Associados/EUFC, 1986. SAVIANI, D. Extensão universitária: uma abordagem não-extensionista. In: Ensino público e algumas falas sobre Universidade. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984. (Col. Polêmicas de Nosso Tempo, v.10).

This article discusses, from a philosophical and educational point of view, reflections on the commitments of education within the scope of a higher education project focused on building a new society, marked by the universalization of citizenship, to be constructed through the use of knowledge. It is an effort to present, by means of a theoretical argument, a philosophical justification of the necessary articulation between teaching, research and coverage, in this desired university, designed to face the historical challenges of a new century. KEY WORDS: University; Education; knowledge; citizenship; higher education. Desenvolve-se, sob uma perspectiva filosófico-educacional, algumas reflexões sobre os compromissos da educação no âmbito de um projeto de universidade empenhada na construção de uma nova sociedade, que seja marcada pela universalização da cidadania, a ser construída pela utilização do conhecimento. Trata-se de um esforço no sentido de apresentar, mediante argumentação teórica, uma justificativa filosófica da necessária articulação entre ensino, pesquisa e extensão, nessa desejada universidade, destinada a enfrentar os desafios históricos do novo século. PALAVRAS-CHAVE: Universidade; Educação; conhecimento; cidadania; ensino superior. Se desarrollan, bajo una perspectiva filosófico-educacional, algunas reflexiones sobre los compromisos de la educación en el ámbito de un proyecto de universidad empeñada en la construcción de una nueva sociedad, que se caracterice por la universalización de la ciudadanía, a ser construida con la utilización del conocimiento. Se trata de un esfuerzo en el sentido de presentar, mediante argumentación teórica, una justificativa filosófica de la articulación necesaria entre enseñanza, pesquisa y extensión, en esa deseada universidad, destinada a enfrentar los desafíos históricos del nuevo siglo. PALABRAS CLAVE: Universidad; Educación; conocimiento; ciudadanía; enseñanza superior.

Recebido para publicação em: 30/05/01. Aprovado para publicação em: 20/01/02.

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Pequeno guia/vocabulário para a utilização da história arqueológica como instrumento de pesquisa qualitativa A small guide/glossary for the use of archeological history as a qualitative research instrument

Everardo Duarte Nunes

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A abreviatura Arq. será usada para referência à Arqueologia do Saber, tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes, Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972, acrescida do número da página a que se refere.

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Introdução Sob muitos aspectos pode ser analisada a obra de Michel Foucault. A riqueza da temática de seus trabalhos e a forma original sob a qual foi abordada constituem uma enorme fonte de contribuições, comentários e críticas. Avaliar os instrumentos conceituais, teóricos e metodológicos também tem sido a proposta de alguns estudiosos, como Machado (1981), sobre a Arqueologia, Almeida (1994), ao se voltar para a questão do problema da genealogia, Rabinow & Dreyfuss (1995) sobre a trajetória filosófica de Foucault. De outro lado, a história arqueológica, desde o momento em que Foucault terminou seu terceiro trabalho nesta linha, Les Mots et les Choses (1966), antecedido pela História da Loucura (1961) e o Nascimento da Clínica (1963), foi alvo de muitos ensaios. Em 1969, Foucault publicaria L’archeologie du Savoir e o próprio autor, antecipando-se aos críticos e depois de assinalar que o livro “não é a retomada e a descrição exata do que se pode ler na Histoire de la Folie, na Naissance de la Clinique ou em Les Mots et les Choses. Em muitos pontos é diferente” (Arq., p.25)2 , faz uma série de questionamentos sobre o fato de que os críticos iriam perguntar se ele estaria seguro ou não do que disse, se não iria deslocar-se em relação às questões que lhe eram feitas, que estaria arranjando saídas etc. A isso tudo, Foucault irá responder de uma maneira que se tornou clássica para situar a relação autor/obra: “Mais de um, como eu sem dúvida, escreveu para não ter mais fisionomia. Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever” (Arq., p.27). Não pretendemos neste texto trabalhar as obras de Foucault, ou mesmo

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas/UNICAMP. <evernunes@uol.com.br>

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estabelecer uma análise crítica sobre as suas contribuições, em especial aquelas que se dedicaram ao campo da Medicina, mas destacar aqueles aspectos que dizem respeito a sua Arqueologia e como ele procurou encaminhar a exposição dessa metodologia. Aspectos gerais do livro Em 1969, Foucault, que estava com 43 anos e “Aureolado pela glória que lhe valeu Les Mots et les Choses”, como diz seu biógrafo Didier Eribon (1990, p.175), escreve e publica Archéologie du Savoir. Ainda segundo Eribon (1990, p.178), “Ele escreve com ardor e se debate como um demônio em meio a noções de enunciado, formação discursiva, regularidade e estratégia. Todo um vocabulário que tenta estabelecer e fixar; todo um jogo de conceitos que se esforça para definir e articular”. É interessante e oportuno que se transcreva o próprio texto no qual Foucault, dono de uma linguagem inigualável, registra porque escreveu esse livro: Explicar o que eu quis fazer nos livros onde tantas coisas ainda ficaram obscuras? Não só, não exatamente, mas, indo um pouco além, retornar, como em outra volta da espiral, aquém do que compreendi; mostrar de onde eu falava; delimitar o espaço que possibilita essas pesquisas e outras, talvez, que nunca realizarei; em suma, dar significado a essa palavra Arqueologia que eu tinha deixado vazia. ... E onde a história das idéias, decifrando os textos, procura revelar os movimentos secretos do pensamento (sua lenta progressão, suas lutas e recaídas, os obstáculos contornados), eu queria evidenciar em sua especificidade o nível das coisas ditas: as condições de seu surgimento, as formas de sua cumulação e de seu encadeamento, as regras de suas transformações, as descontinuidades que as escandem. O terreno das coisas ditas é o que se chama arquivo: a Arqueologia destina-se a analisá-lo. (Citado por Eribon, 1990, p.175) (grifos do autor)

Não se trata de um trabalho estritamente metodológico, no sentido restrito de fornecimento de uma instrumentalização para as pesquisas das formações discursivas, mas encerra a proposta de explicar a conformação teórica do próprio projeto arqueológico. Ao introduzir o leitor nesse caminho, nas páginas iniciais do livro estabelece de que história ele irá tratar. A preocupação não será com “as vastas unidades que se descreviam como épocas ou séculos (mas) para fenômenos de ruptura” (Arq., p.10). Para isso, busca em estudos precedentes de Bachelard e de Canguilhem, respectivamente, as noções de atos e limiares epistemológicos e deslocamentos e transformações dos conceitos. Em seguida, lembra-nos que há redistribuições recorrentes - a ciência sendo reescrita não mediante um

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único passado, mas numa composição de encadeamentos, multiplicando-se em suas transformações; unidades arquitetônicas - em que o que se busca é a construção de sistemas nos quais são pertinentes os axiomas, as cadeias dedutivas, as compatibilidades; escansões - cortes que marcam quando se funda uma ciência destacando-a da ideologia. Estas idéias aparecem na Introdução, na qual o autor irá enfatizar pontos teóricos importantes do projeto. Acrescenta que na base da proposta está a crítica do documento e, no momento em que a história mudou sua maneira de enfrentá-lo, sua tarefa não será de interpretá-lo, “mas sim trabalhá-lo no interior e elaborálo: ela o organiza, recorta-o, distribui-o, ordena-o, reparte-o em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, delimita elementos, define unidades, descreve relações” (Arq., p.13). Se a história, em sua forma tradicional, pretendia memorizar os monumentos do passado, transformando-os em documentos, a história arqueológica transforma os documentos em monumentos. Três outros pontos não podem deixar de ser citados, pois, quando a história se volta para a descrição intrínseca do documento, três conseqüências aparecem: a multiplicação das rupturas e não mais o problema de constituir longos períodos, mas de séries, séries de séries (a dúvida da totalização), a individualização de séries, a não linearidade; a noção de descontinuidade, não como o estigma da dispersão, mas como um instrumento e objeto de pesquisa; o esboço de uma história geral e não de uma história global, que particulariza e redefine o espaço da historicidade e rompe com o princípio da coesão. No plano do livro, suas unidades discursivas se distribuem, após a Introdução, em três partes: As regularidades discursivas; O enunciado e o arquivo; A descrição arqueológica e Conclusão. No plano desta tentativa de sintetizar o vocabulário e os elementos constitutivos de uma prática de investigação que utilize a análise de discurso, como parte integrante e central do campo da história arqueológica, apresentaremos, inicialmente, algumas definições. Estas são precedidas por quatro pressupostos que marcam e resumem o exposto acima. Para a história arqueológica, e isto se aplica a qualquer objeto de discurso, os pressupostos são os seguintes: libertar-se do tema da continuidade histórica, da noção de tradição, de influência, de desenvolvimento e evolução, de mentalidade ou espírito de uma época; inquietar-se diante de certos recortes ou grupamentos que distinguem tipos, formas e gêneros de discursos, tais como os da ciência, da literatura, da filosofia, das artes etc.; pôr em suspenso as unidades que se definem como livro e obra. Conceitos A quantidade de expressões e conceitos utilizados por Foucault é enorme e, muitas vezes, com diferentes significados. Isto dificulta organizar um vocabulário detalhado sobre a história arqueológica. Tentamos situar

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aqueles que são fundamentais e que não podem ser marginalizados em pesquisas que pretendam utilizar o enfoque arqueológico da análise do discurso.

ENUNCIADO A unidade do discurso é o enunciado. Foucault distingue o enunciado da proposição dos lógicos, da frase dos gramáticos, do speech act dos analistas. Tece extensos argumentos para diferenciá-lo dessas categorias e conclui: ele não é em si mesmo uma unidade, mas uma função que cruza um domínio de estrutura de unidades possíveis e que as faz aparecer, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. Apresenta-o como ... uma função de existência que pertence, em particular, aos signos, e a partir dos quais pode-se decidir em seguida, pela análise ou pela intuição, se fazem sentido ou não, segundo que regras se sucedem ou se justapõem, de que são signo, e que espécie de ato se encontra efetivado por sua formulação (oral ou escrita). (Arq., p.108)

FUNÇÃO ENUNCIATIVA Foucault não apresenta uma definição da função enunciativa, mas uma série de características (Arq., p.110-32). Sinteticamente: O nível enunciativo de uma formulação “não se pode fazer nem por uma análise formal, nem por uma investigação semântica, nem por uma verificação, mas pela análise das relações entre o enunciado e os espaços de diferenciação, em que ele mesmo faz aparecer as diferenças”(Arq., p.115). Como o sujeito do enunciado não necessita ser concebido como idêntico ao autor da formulação, “Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele diz (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição que pode ou deve ocupar todo indivíduo para ser o seu sujeito” (Arq., p.119-20). A função enunciativa não pode se exercer sem a existência de um domínio associado. É este campo associado que torna uma frase ou uma série de signos um enunciado. Assim, o enunciado se inscreve no interior de uma série de outras formulações e se torna um elemento; repetindo, modificando ou adaptando formulações; possibilitando sua seqüência ou sua réplica, seu desaparecimento ou sua valorização para um discurso futuro. O enunciado deve ter existência material. “O enunciado é sempre dado através de uma espessura material, mesmo se ela está dissimulada, mesmo se, apenas surgida, está condenada a desvanecer” (Arq., p.125).

ARQUIVO Sendo a proposta foucaultiana a de estudar a existência dos acontecimentos discursivos (sistemas de enunciados) de uma cultura, propõe que a esses sistemas se denominem de arquivo (Arq., p.160). “O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares (Arq., p.161). É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados” (Arq., p.162).

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DISCURSO Conjunto de enunciados que provêm de um mesmo sistema de formação, ou seja, que provêm da mesma formação discursiva.

FORMAÇÃO DISCURSIVA Conjunto formado por um certo número de enunciados, conceitos, escolhas temáticas, que descreve sistemas de dispersões e busca verificar como o discurso se organiza em uma ordem, quais as correlações, as posições, os funcionamentos, as transformações (Arq., p.51).

ANÁLISE DA FORMAÇÃO DISCURSIVA Para a análise da formação discursiva, Foucault introduz quatro categorias descritivas: os objetos, os sujeitos, a formação das modalidades discursivas, as estratégias. É a forma de descrever sistematicamente os acontecimentos discursivos procurando encontrar as unidades existentes.

FORMAÇÃO DOS OBJETOS A formação dos objetos é atravessada por quatro momentos que levam o pesquisador a interrogar: Quais são as superfícies primeiras de emergência desses objetos? Elas precisam ser demarcadas a fim de mostrar onde podem surgir, para que possam em seguida ser designadas e analisadas, segundo determinadas teorias, códigos etc. Trazer à tona aquilo de que se fala, dar-lhe o estatuto de objeto, torná-lo nomeável (Arq., p.55). Quais são as instâncias institucionais que delimitam o objeto? (Arq., p.56) Quais são os sistemas que separam, reagrupam, classificam, aproximam, derivam o objeto, estabelecendo grades de especificação? (Arq., p.56) Para o autor, as condições que permitem que apareça um objeto de discurso e dele se fale é produto de um “feixe completo de relações”. Estas se apresentam sob três modalidades: relações primárias: são reais, não estão presentes no objeto; são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas de normas, técnicas, topos de classificação, modos de caracterização (Arq., p.59-60). relações secundárias: são reflexivas, formadas no interior do próprio discurso (Arq., p.60). relações discursivas: não são nem internas nem externas ao discurso; estão no limite do discurso, determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar dos objetos, tratá-los, nomeá-los, analisá-los, classificá-los, explicá-los. É “o próprio discurso enquanto prática” (Arq., p.61).

FORMAÇÃO DAS MODALIDADES ENUNCIATIVAS Este nível comporta a descrição das formas dos enunciados, ou seja, estabelecer as relações do sujeito que enuncia. Para tal, é necessário que se respondam às seguintes questões: Quem fala? Quem, no conjunto de todos os indivíduos-que-falam, está

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autorizado a ter esta espécie de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dele esta singularidade, seus encantos, e de quem, em troca, recebe, senão sua garantia, pelo menos a presunção de que é verdadeira? Qual o estatuto dos indivíduos que têm - e apenas eles - o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso? (Arq., p.65). De que lugares institucionais procedem os discursos? De onde o sujeito obtém seu discurso? (Arq., p.66). Quais as posições do sujeito frente aos diversos domínios ou objetos? É sujeito-que-questiona? É sujeito que observa? O sujeito utiliza intermediários instrumentais? Que posições o sujeito ocupa na rede de informações, no campo dos domínios teóricos e institucionais? (Arq., p.67-8)

A FORMAÇÃO DOS CONCEITOS Considerando que os conceitos aparecem numa dispersão, aparentemente em desordem, é necessário que sejam descritos e organizados no campo dos enunciados, a fim de estabelecer como sucedem e como coexistem. Formas de sucessão

Ordem das séries enunciativas: incluem as ordens das inferências, das implicações sucessivas, dos raciocínios demonstrativos, das ordens das descrições, dos esquemas de generalização, de especificação progressiva, da ordem da narrativa etc. Tipos de dependência dos enunciados: dependência hipótese-verificação, asserção-crítica, lei geral-aplicação particular. Esquemas retóricos: segundo os quais pode-se combinar grupos de enunciados: como se encadeiam as descrições, deduções, definições, cuja seqüência caracteriza a arquitetura do texto. Formas de coexistência

Campo de presença: pela análise dos enunciados já formulados e que são retomados a título de verdade admitida, descrição exata, raciocínio fundado, pressuposto necessário, crítica, discussão e julgamento. Campo de concomitância: trata-se dos enunciados que concernem a domínios de objetos inteiramente diferentes e que pertencem a tipos de discursos totalmente diversos, mas que atuam entre os enunciados estudados (Arq., p.73). Podem ser: aqueles que servem de confirmação analógica, de princípio geral e de premissas aceitas para um raciocínio, de modelos que podemos transferir para outros conteúdos, que funcionam como instância superior, que não são mais nem admitidos nem discutidos, mas em relação aos quais se estabelecem relações de filiação, gênese, transformação, continuidade, descontinuidade histórica (domínio da memória). Procedimentos de intervenção Não são os mesmos para todas as formações e podem aparecer nas técnicas de reescritura, nos métodos de transcrição; nos modos de tradução dos enunciados quantitativos para qualitativos e vice-versa; nos meios

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utilizados para aproximação dos enunciados, para refinar sua exatidão; na delimitação; na transferência; na sistematização; na redistribuição dos enunciados (Arq., p.73-4). Neste momento é possível, segundo Foucault, descrever “... a dispersão anônima (dos enunciados) através de textos, livros e obras”, segundo “... um anonimato uniforme. a todos os indivíduos que tentam falar neste campo discursivo” (Arq., p.75-7).

A FORMAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS Para o autor, os discursos se organizam em conceitos, objetos, enunciações, segundo determinadas “estratégias”, difíceis de serem detalhadas. Depreende-se que para formação discursiva há diferentes possibilidades estratégicas. Foucault indicou as seguintes direções da pesquisa (Arq., p.82-4): determinar os pontos de difração possíveis do discurso: pontos de incompatibilidade, de equivalência, de junção de uma sistematização; estudar a economia da constelação discursiva: a relação do discurso com aqueles que lhe são contemporâneos ou vizinhos, a fim de estabelecer analogias, oposições, complementaridades, singularidades. estabelecer a função que deve exercer o discurso em um campo de práticas não discursivas quanto a: relações sociais (nas práticas, nas decisões políticas, nas práticas cotidianas); regimes e processos de apropriação do discurso (grupos sociais), posições possíveis do desejo em relação ao discurso (elemento de simbolização).

SABER “A este conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prática discursiva e que são indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar, pode-se chamar saber” (Arq., p.222).

LIMIARES Uma formação discursiva pode apresentar emergências distintas: Limiar de positividade: “O momento a partir do qual uma prática discursiva se individualiza e assume sua autonomia, o momento, por conseguinte, em que se encontra um único e mesmo sistema de formação dos enunciados, ou, ainda, o momento em que esse sistema se transforma” (Arq., p.225). Limiar de epistemologização: “Quando no jogo de uma formação discursiva, um conjunto de enunciados se recorta, pretende fazer valer (mesmo sem consegui-lo) normas de verificação e de coerência e exerce, face ao saber, uma função dominante (de modelo, de crítica ou de verificação)” (Arq., p.226). Limiar de cientificidade: “Quando a figura, epistemologicamente assim delineada, obedece a um certo número de critérios formais, quando seus enunciados não obedecem somente a regras arqueológicas de formação, mas, além disso, obedecem a certas leis de construção das proposições” (Arq., p.226). Limiar de formalização: “Quando esse discurso científico, por sua vez,

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puder definir os axiomas que lhe são necessários, os elementos que usa, as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as transformações que aceita, quando puder, assim, desenvolver, a partir de si, o edifício formal em que se constitui” (Arq., p.226). Para Foucault, a repartição desses limiares constitui para a Arqueologia um dos seus domínios maiores de exploração. Considerações finais Certamente, o corpo conceitual da Arqueologia é maior do que o aqui exposto, e o pesquisador, necessariamente, deverá não somente ir ao original completo do texto de onde foram retirados, mas ler as obras que o utilizaram. As pesquisas empíricas empreendidas por Foucault são os documentos básicos que fornecem ao leitor a possibilidade de visualizar como o autor tenta medir as mutações que se operam em geral no domínio da história, empresa onde são postos em questão os métodos, os limites, os temas próprios à história das idéias, empresa pela qual se tenta aí desfazer as últimas sujeições antropológicas; empresa que quer em troca mostrar como essas sujeições puderam se formar. (Arq., p.24)

Ao relacionarmos os conceitos que fundamentam a metodologia da Arqueologia, a intenção foi a de fornecer, como o título do trabalho enuncia, um guia/vocabulário, assumindo que esta metodologia oferece enormes possibilidades para a pesquisa que se volte para a análise das formações discursivas. Mesmo aqueles que foram extremamente críticos em relação a Foucault, como é o caso de Rabinow & Dreyfuss (1995, p.114), reconhecem que “Ele tentou tornar a história das ciências humanas inteligível em termos de regras que, desconhecidas pelos atores envolvidos, regularam e governaram todos os atos discursivos sérios”. Essa tentativa de “revelação” é que leva o arqueólogo a descrever, em termos teóricos, as regras que regem as práticas discursivas. Como também inferem esses autores (1995, p.114), “Colocando a verdade e a seriedade entre parênteses, o arqueólogo opera num nível que é livre das influências das teorias e das práticas que estuda”. Rabinow & Dreyfuss lembram-nos que, nos trabalhos que se seguem à Arqueologia do Saber, “a prática é considerada mais fundamental que a teoria”. Também assinalam que “O investigador não é mais o espectador desligado dos monumentos discursivos mudos. Foucault compreende e tematiza o fato de que ele mesmo, como qualquer outro investigador, está envolvido nas práticas sociais que analisa e é, em parte, por elas produzido” (1995, p.115). Nesse momento, e após sua aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 1970, que ele denominou L’ordre du discours (1971), abre-se uma nova fase nas pesquisas de Foucault – a da história genealógica. Agora, trata-se de introduzir a genealogia como “um método de diagnosticar e compreender o significado das práticas sociais a partir de seu próprio interior” (Rabinow & Dreyfuss, 1995, p.115). Inegavelmente, a metodologia da história arqueológica viria a constituir

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poderoso instrumento para inúmeras pesquisas. Sem pretender ser exaustivo, lembraríamos, no Brasil, a tese de doutorado de Arouca (1975), estudando a formação discursiva que se elabora sobre a Medicina Preventiva, trabalho no qual associa à perspectiva metodológica foucaultiana a formulação teórica materialista na vertente althusseriana; Machado e colaboradores (1978), sobre a emergência da Medicina Social e a constituição da psiquiatria no Brasil; Ferreira (1992), sobre o discurso da participação em saúde; Lacaz (1996) sobre a formação discursiva da Saúde do Trabalhador, associando à história aqueológica a história genealógica; Botazzo (1998) sobre a emergência da clínica odontológica; Ayres (1993), sobre a constituição histórica do objeto da Epidemiologia. Consideramos, como aponta Ternes (1995), que a volta aos textos da primeira fase de Foucault “significa vencer um certo modismo que a difusão da genealogia do poder suscitou no universo acadêmico”. Quanto ao potencial metodológico derivado da perspectiva da análise do discurso, a filósofa Vera Portocarrero diz que a Arqueologia responde à questão “como”?, os saberes emergem e se transformam, e a genealogia. Completando esta análise, tenta responder à questão do “porque” dos saberes. Se, no primeiro momento, procura-se articular as interrelações discursivas com as práticas institucionais, no segundo, a “origem” dos saberes é situada no plano das relações de poder (Portocarrero, 1994, p.53). Mas, deixemos a palavra final ao próprio Foucault, quando não somente retoma sua preocupação com os motivos que o levaram a escrever, mas fornece ao investigador um alento frente àquela formação discursiva que ele quer conhecer. Escreve o filósofo: um tanto cegamente, e por meio de fragmentos sucessivos e diferentes, eu me conduzi nessa empreitada de uma história da verdade: analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não as sociedades, nem suas “ideologias”, mas as problematizações das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam”. A dimensão arqueológica da análise permite analisar as próprias formas da problematização; a dimensão genealógica, sua formação a partir das práticas e suas modificações. (Foucault, 1984, p.15) (grifos do autor)

Referências ALMEIDA, A. J. A proposta de “pensar diferente” em Foucault. Escritos, n.1, p.97-106, 1994. AROUCA, A. S. S. O dilema preventivista: contribuição para a comprensão e crítica da Medicina Preventiva. Campinas, 1975. Tese (Doutorado) Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. AYRES, J. R. C. M. Objeto da Epidemiologia e nós. Physis, v.3, n.1, p.55-76, 1993. BOTAZZO, C. Da arte dentária: um estudo arqueológico sobre a prática dos dentistas. Campinas, 1998. Tese (Doutorado). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. ERIBON, D. Michel Foucault: 1926-1984. Trad. H. Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FERREIRA, M. A . F. Entre a norma institucional e a ação coletiva: uma Arqueologia da participação

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popular em saúde. Campinas, 1992. Tese (Doutorado). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. FOUCAULT, M. Folie e déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1961. Edição Brasileira. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978. FOUCAULT, M. Naissance de la clinique. Une archéologie du regard médical. Paris: Puf, 1963. Edição Brasileira. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966. Edição Brasileira. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1990. FOUCAULT, M. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969. Edição Brasileira. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972. FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Trad. M.T.C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984. LACAZ, F. A . C. Saúde dos Trabalhadores: um estudo sobre as formações discursivas daa academia, dos serviços e do movimento sindical. Campinas, 1996. Tese (Doutorado) Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. MACHADO, R. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1981. MACHADO, R., LOUREIRO, A ., LUZ, R., MURICY, K. Danação da norma: Medicina Social e constituição da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. PORTOCARRERO, V. História dos saberes e das práticas. In: _________(org.) Filosofia, História e Sociologia das Ciências: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. RABINOW, P., DREYFUSS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. V. Portocarrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. TERNES, J. M. Michel Foucault e o nascimento da modernidade. Tempo Social. Rev. Sociol. USP, v.7, n.1-2, p.45-52, 1995.

O artigo procura sistematizar os principais termos utilizados por Michel Foucault em sua A Arqueologia do Saber. O objetivo é fornecer os conceitos da história arqueológica para a sua aplicação em pesquisas que utilizam a análise do discurso como forma principal de trabalhar os documentos. No texto são feitas considerações sobre a importância desta metodologia, relacionando alguns trabalhos que a utilizam em pesquisas na área da Saúde. PALAVRAS-CHAVE: Guias informativos; Arqueologia;modelo teórico. The article systematizes the main terms used by Michel Foucalt in “The Archeology of Knowledge”. The purpose is to supply archeological history concepts for use in research, relying on the analysis of discourse as a key method for working with documents. The text presents considerations on the importance of this methodology, listing projects in the Healthcare field that have used it. KEY WORDS: Resource guides; Archaeology; theoretical model. El artículo intenta sistematizar los principales términos utilizados por Michel Foucault en su Arqueología del Saber. El objetivo es suministrar los conceptos de la historia arqueológica para su aplicación en pesquisas que utilizan el análisis del discurso como forma principal de trabajar los documentos. En el texto se hacen consideraciones sobre la importancia de esta metodología, relacionando algunos trabajos que la utilizan en pesquisas en el área de salud. PALABRAS CLAVE: Guia de recursos; Arqueologia; modelo teorico.

Recebido para publicação em: 10/09/01. Aprovado para publicação em: 10/11/01.

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Relações com experiências limites no processo comunicacional: uma pequena incongruência no Palco do Oficina Relations with borderline experiences in the process of communication: a small incongruence on the stage of the Oficina Theatre

Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima

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EVENTO: 40 anos de Teatro Oficina: abraço ao quarteirão; brinde com vinho tinto; ensaio aberto de alguns episódios de A Luta de “Os Sertões”, festa. São Paulo, Teatro Oficina e imediações, 16 de agosto de 2001.

MESSERSCHMIDT, Um pretensioso consumido pela volúpia, século XVIII, Österreichische Galerie, Viena.

Estávamos todos numa festa, uma grande comemoração, um ato político, um encontro de resistência. Para marcar e comemorar seus quarenta anos, o Teatro Oficina promoveu um evento que era também uma forma corajosa de enfrentamento do avanço do Grupo Silvio Santos no centro da cidade. Seu esforço vinha somar-se ao conjunto de movimentos que buscam resistir ao atropelamento das potências da cultura e das artes pelas forças financeiras e da mass midia. Tomados por essas potências caminhávamos pelas ruas do Bexiga em volta do teatro, convidando a todos a participar da festa. Entre nós, Zé Celso, sua vitalidade, sua alegria, seu excesso, sua desmesura ... Caminhamos para o teatro. Zé Celso fez-nos ver o espaço no qual íamos entrar. A entrada, aberta a qualquer um, possibilitava que crianças das imediações, mendigos, transeuntes pegos de surpresa, e que tinham sido arrastados pela passagem do “Bloco Oficina” pelas ruas do Bexiga, estivessem presentes na comemoração. Juntos brindamos, cantamos juntos, bebemos juntos. Atores históricos do Oficina estavam presentes. Uma grande emoção atravessava a todos. Presente também estava ele. Ele que não estava no script. Ele, que se metia no meio dos “históricos” do teatro e que se apossava, como eles, de uma garrafa de vinho, colocada ali para ser compartilhada com o público. Ele aplaudia entusiasticamente, tentava se “enturmar” com o povo do teatro, mas sua presença ali denotava uma pequena incongruência. Todos se

Docente do Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/FMUSP; Coordenadora do Curso de Especialização “Interfaces da Arte e da Saúde”, FMUSP & Museu de Arte Contemporânea/MAC-USP. <elizabeth.lima@uol.com.br>

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perguntavam, “quem é aquele ali?” A certa altura Marcelo Drummond se exaltou e quis tirá-lo a força. Zé Celso interferiu: - “Deixa.... deixa.... é o Exu da hora”. Ele estava bêbado? Ele era louco? Ele estava absolutamente tomado pelo espaço do teatro. Era uma pequena incongruência instalada no acontecimento. Pequena mesmo, bem menor que um tocador de tuba numa apresentação de quarteto de cordas, como nos propôs imaginar certa vez Luís Fernando Veríssimo2 . Tão pequena que alguns se perguntavam: “Fará parte do grupo de atores? Será amigo de alguém?” Ele aplaudia quando não 2 Veríssimo, L. F. Reciera para aplaudir, e expressava em alto e bom tom, quando solicitado a tal. In: _____ O analista silenciar, “Mas eu adorei demais! Foi maravilhoso!” de Bagé. Porto Alegre: L&PM Editores, 1981. Ele estava tomado pelo vinho, por Baco, pela alegria, pelos deuses do p.58-61. teatro, por Exu. Estávamos assistindo ao ensaio aberto de trechos de Os Sertões. O Oficina tematizava o cerco sofrido pelos seguidores de Antônio Conselheiro no sertão da Bahia. Tematizava também o cerco que sofre o Oficina no centro de São Paulo. Ele encarnava um outro cerco, um cerco sem lugar, sem centro e por toda parte. Ele incomodava. Por que incomodava tanto? Por que mobilizava tanto os atores, que tentavam tirar-lhe a garrafa de vinho e tirá-lo dali? Ele interferia na programação do dia, quebrando o ritmo do espetáculo, deixando os atores sem saber o que esperar, sem poder se programar. E pior, não sabia o seu lugar. Falava quando era a vez dos atores e falava também quando era a vez do público. Não respeitava as regras de interação no teatro. Era, com certeza, um elemento de desestabilização. Ele era perturbador. Em cena, a prefeita Marta conversava com os representantes do Oficina sobre a construção do Shopping Silvio Santos no Bexiga. A atriz que representava a prefeita, encontrou uma saída bem ao gosto dos trabalhos do Oficina: passou por ele e beijou-o na boca. Ele ficou extasiado, com muito tesão e quando o beijo terminou e ela o soltou podíamos ver-lhe ainda a língua em busca da boca da atriz. A partir daí, ele se sentiu convidado a participar da cena como protagonista e aceitou o convite, instalando-se na cena e instaurando um verdadeiro acontecimento. Postou-se ao lado da “Marta da hora”, um pouco atrás; cruzou os braços, como um segurança, um companheiro, um amante? Estava em cena; no centro da cena; deste lugar seria retirado do teatro numa solução, para muitos, absolutamente cênica, que parecia resolver toda a contradição trazida por sua intervenção. O acontecimento ficava, assim, reduzido a uma questão técnica. Há alguns anos eu presenciei, neste mesmo teatro, uma atriz sentar-se ao lado de um “espectador”, enfiar a mão dentro da sua calça, enquanto ele teso, rijo, não de tesão, era a mais pura expressão do constrangimento. Situações em que, no encontro entre elenco e público, este último fica em extrema desvantagem em relação ao primeiro, pelo incômodo com a situação de exposição em que é colocado, sem ferramentas para manejá-la, sem a possibilidade de criar a partir da proposição que vem da parte daqueles que estão autorizados a criar. TRAJANO SARDENBERG Ele aqui, neste dia, não ficou nada constrangido; gostou, queria mais. Aceitou a proposição e quis jogar. Mas estava sozinho. Sua falta de cerimônia para com os atores (a mesma que eles oferecem ao público) talvez tenha deixado a todos no teatro bastante

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constrangidos e ansiosos para encontrar uma solução que eliminasse aquele incômodo, que ia crescendo pouco a pouco, para que a apresentação pudesse continuar. A “Marta da hora” encontrou a solução tão esperada: chamou os “seguranças” e pediu, pediu não, ordenou que retirassem o “elemento” por “desacato à autoridade”. Ele foi agarrado pelo pescoço por dois atoresseguranças, mas não se entregou facilmente. Debateu-se, chutou, estrebuchou até passar pelos portões vermelhos do teatro, quando não pudemos mais vê-lo. Toda a cena era acompanhada pelo coro da platéia que gritava “Tira, tira”, numa unanimidade que dava arrepios. (Como se não houvesse nenhuma contradição naquilo que estávamos vivendo ali.) Mas, ao tentar travestir de cênica a expulsão de uma pessoa do público, os atores não conseguiram encobrir a violência da atitude, deixando claro, no cruzamento entre ficção e realidade, que o que estavam fazendo ali tinha um paralelo óbvio com a posição tomada pela prefeita no embate entre Oficina e Silvio Santos e, na cadeia das analogias então propostas, com a ação do governo federal em relação a Canudos. A solução mais fácil para uma situação extremamente complexa: excluir, varrer, apagar o elemento disruptivo, incongruente, desestabilizador, incômodo. Atônita, eu não conseguia mais acompanhar o que se passava ao meu redor, o desenrolar das cenas diante dos meus olhos. Meu corpo tinha sido tomado por um estado de torpor. Uma grande tristeza, enfim, de o Oficina não ter conseguido levar até o fim, radicalizar, sua proposta de teatro. Não ter aceito o desafio do acontecimento, não ter navegado, um pouco que fosse, na linha sutil que o acontecimento propunha, não ter aceito o convite de embarcar na viagem de um teatro no qual não se sabe mais quem é ator e quem é público, quem, no final das contas, está autorizado a criar. Talvez se, ao invés de terem agarrado o espectador pelo pescoço, tivessem se deixado agarrar pelo pescoço por essa impossibilidade que se fazia ali .... Em cena uma quadrilha. Os atores convidavam o público a dançar, mas agora este era quase um convite à infantilização. Será só este estreito espaço que somos convidados a ocupar neste teatro que parecia tão grande, tão generoso? Não ousaríamos mais ousar ou ir mais longe. Talvez os atores, alguns muito novos, não tenham sabido jogar com um espectador sui generis. Um outrem que, levando ao limite o questionamento dos lugares no teatro, colocou em questão a própria proposta de trabalho do Oficina, pautada na desmesura, no arrebatamento, no tesão. Esse encontro não foi qualquer coisa. Criou um acontecimento, instalou um grande mal-estar e instaurou uma ruptura no evento. Alguém tinha sido expulso pelo pescoço para fora do Teatro Oficina. Algo do brilho radical do teatro de Zé Celso esvanecia-se ali. Mas, se ao invés de negado, esse mal-estar tivesse sido acolhido, um processo de produção de alteridade no próprio seio deste teatro, provocado pelo encontro com esse outrem, poderia ainda estar em curso. Talvez este acontecimento tenha produzido efeitos insuspeitos, levando essa forma de fazer teatro, tão viva e criativa, a se perguntar pelos limites de sua própria proposição e pelo que está para além desses limites. Qual é o lugar do público neste teatro e até onde ele pode ir? Quanto do encontro com o público este teatro pode suportar e como fazer desse encontro um disparador de diferenciação, seja no público, seja nos artistas, seja no

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próprio teatro. Como a potência criadora que está nas mãos dos artistas pode ser compartilhada, provocando nos espectadores um estado-de-arte? Rubens Corrêa disse certa vez que se ele tivesse que elencar três dos grandes momentos de sua vida, um deles seria a apresentação do espetáculo Artaud para os internos do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. Ele nos conta que, a certa altura, os espectadores começaram a se aproximar, subiram ao palco e construíram o que ele chamou de “um espetáculo realmente artaudiano”3. Esses momentos são únicos, raros, quase sublimes. São momentos de contaminação em que experimentamos a força de um processo de criação em ato. Antônio Conselheiro, fanático, louco, visionário, foi morto, seu

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sonho sepultado, seus seguidores dizimados .... Ele, bêbado, louco, chato, foi arrancado à força da platéia e do palco do Teatro Oficina. (Haveria uma solução melhor?) Zé Celso, visionário, louco, criador genial, continua com sua trupe em seu teatro no Bexiga. Até quando? Esperamos que por muito tempo e de forma viva, aceitando e habitando as contradições e os paradoxos que qualquer proposta radical abriga; enfrentando as

CORRÊA, R. In: PASSETTI, E. (roteiro, edição e direção). Encontro com pessoas notáveis n.º 1: Nise da Silveira. São Paulo: Fundação Cultural São Paulo/PUC-Cogeae, 1992. (vídeo)

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impossibilidades que se apresentam em experiências como esta, que apontam para os limites de uma configuração e que são elementos constitutivos do ato criador. Afinal, como aprendemos com Deleuze, “se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades, não é um criador. (...) sem um conjunto de impossibilidades não se terá essa linha de fuga, essa saída que constitui a criação”.4

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DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p.167.

This paper presents reflections on an event that took place at the Oficina Theatre. These thoughts concern contemporary theatre, the relation between the actors and the public, the stage and the audience, and, finally, creation, understood as a vanishing line and its relations with edge experiences in which otherness and impossibility manifest themselves. KEY WORDS: Contemporary theatre, creation, otherness, edge experience. Este texto apresenta reflexões, produzidas a partir de um acontecimento ocorrido no Teatro Oficina, acerca do teatro contemporâneo, as relações que se estabelecem aí entre atores e público, palco e platéia e, por fim, a criação, entendida como linha de fuga e suas relações com experiências limites onde alteridade e impossibilidade se fazem presentes. PALAVRAS-CHAVE: Teatro contemporâneo, criação, alteridade, experiência limite. Este texto presenta algunas reflexiones sobre el teatro contemporáneo, producto de un acontecimiento que tuvo lugar en el Teatro Oficina. Se analizan en él las relaciones que se establecen entre los actores y el público, entre el escenario y la platea y, por último, la creación entendida como línea de fuga y sus relaciones con las experiencias límites, en las cuales la alteridad y la imposibilidad se hacen presentes. PALABRAS CLAVE: Teatro contemporáneo; creación; alteridad; experiencias límite Recebido para publicação em: 19/09/01. Aprovado para publicação em: 10/01/02.

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criação

Olhares sobre a São Remo

São Remo que cresci Olha a menina na, que nada tem a pensar! Olha o moço da venda, gritando pro pão vir buscar! Olha as ruas de barro, que agora quase não há! Olha aqueles montes de matos que hoje mais não há! Olha as mulheres com latas d’águas que longe iam buscar! As casas que antes eram poucas, hoje não dá pra contar! Olha as crianças soltas nas ruas livres e felizes a brincar! Olha o tempo que passa que antes não se via passar! Kátia Soraia


Quando cheguei aqui na cidade grande, porque vim do interior, eu não sabia que existia rio poluído. Pra mim a palavra rio, riacho, era tudo saudável, como era no interior. As crianças de hoje já sabem a diferença, porque na cidade não tem muitos rios, e sim grandes esgotos correndo a céu aberto... quando eu cheguei aqui, uma caipira como todos diziam, nem me importei em perguntar se era ou não poluído, talvez eu nem me importasse, porque nem sabia o que significava a palavra poluição. Eu sabia, sim, que os “banhos” tinham que ser escondidos dos nossos pais.

Um grupo de rapazes percebeu a falta de uma área de divertimento para as crianças e aí surgiu a idéia de suprir essas necessidades. Até que um rapaz conseguiu esses brinquedos através da doação feita por uma médica, que entendeu uma das necessidades da favela.

O bom de se ver é quando as crianças vêm de seus barracos no beco para jogar lixo: primeiro elas passam pelo escorregador, escorregam com o lixo, e depois jogam na caçamba.


O fato de diferenciar-se fisicamente do restante das moradias ... de ser esteticamente diferente, ajuda e reforça o preconceito dos indivíduos no que diz respeito às favelas.

Apesar da comunidade ser considerada como periferia, há pessoas que ainda acreditam e procuram soluções para problemas como o racismo e as drogas... não é o lugar que dita o ser humano e seus pensamentos. Independente de viverem onde vivem, (favela) acreditam e torcem pela paz.


Andrea Aparecida dos Santos Elisangela Silva do Nascimento Evermando dos Santos Santana (Vevé) Gislene Tenório Machado Ivanilda Maria Monteiro da Silva (Nilda) Kátia Soraia dos Santos Silva Luciana Eduardo de Rezende Maria Aparecida dos Santos Rodrigues Ricardo Pereira de Souza (Léri) Rita de Cássia Batista dos Santos Silva Ruth Maria Tenório Valério Verônica Loyola do Nascimento

Agentes Comunitários de Saúde contratados pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo para atuarem junto às equipes do Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). São todos jovens e quase todos vivem desde crianças na comunidade Jardim São Remo, onde estão iniciando a atuação junto a cerca de 1800 famílias (aproximadamente 9000 indivíduos). Durante a fase de treinamento, realizaram um levantamento dos principais recursos e problemas existentes na comunidade, produzindo um riquíssimo acervo de entrevistas, fotos e textos, do qual alguns fragmentos foram apresentados. Um poema e algumas fotos comentadas: produtos das primeiras observações e reflexões de um grupo de jovens sobre a comunidade em que vivem, sobre suas condições de vida e saúde.






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