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Reavivar o dom

Agradecendo o convite que me foi feito, sinto-me honrada com a oportunidade de partilhar com simplicidade algumas intuições e experiências.

Sintonizada com a realidade que nos desafia

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a sermos pessoas integradas e portadoras de esperança, reflito, neste artigo, como a

espiritualidade, presente em cada um de nós, nos auxilia e fortalece neste momento em que o

mundo vive um estado de pandemia.

Pensar a espiritualidade é sentir a “Ruah”, a força interior que habita em nós. É importante compreender

que a espiritualidade é uma dimensão constitutiva do ser humano enquanto obra da criação. Na arte criadora de Deus, recebemos o sopro da vida, que é o sopro do Espírito: “Então Javé Deus soprou-lhe

nas narinas um sopro de vida...” (Gn. 2,7). Sendo assim, no mais profundo do nosso ser, encontramos o pulsar do divino, o que nos coloca na condição de pertença ao Criador e partícipes de sua divindade. Ativo ou adormecido, em cada ser, humano, lá está o sopro do Espírito, mesmo naqueles que não professam sua fé por meio de uma religião. Da minha parte, contudo, estou convicta de que a religião ajuda a

cultivar e a manter ativa e acesa a chama do dom, do sopro de Deus em nós. “Por este motivo, convido-o a reavivar o dom de Deus que está em você...”

(2Tm 1, 6)

Arrisco dizer que a esse sopro, que cria em nós

o vínculo com o Criador, podemos dar o nome de espiritualidade, aquela energia que nos move e impulsiona interiormente, dinamizando a

transformação de nós mesmos e da realidade.

Segundo a Ir. Mary Milligan, RSCM, há “tantas espiritualidades quantas são as pessoas;” para Santo Tomás de Aquino, “não existe corpo sem

espírito, nem espírito sem corpo.” A primeira destaca a multiplicidade de formas de as pessoas se relacionarem com o Transcendente; o segundo afirma que somos pessoas dotadas de uma

identidade em que espírito e corpo estão juntos, sem dicotomia. E é na relação de reciprocidade com os outros, com a natureza e com Deus que

vamos nutrindo, fortalecendo e partilhando essa espiritualidade, essa força interior que, como um fio, conduz a nossa vida e a ela dá sentido.

REAVIVAR O DOM

Acredito que essa energia que move e reaviva a chama do dom de Deus em nós fortalece e capacita para o enfrentamento das adversidades e surpresas ocorridas no percurso, com resiliência e coragem. Afinal, como diz o Padre Gailhac,

fundador do Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria, “na vida, há dias de paz e dias

de combate” (GS/17/X/72/A). E diz mais: “Se Deus nos envia provações, não nos abandonará” (GS/15/III/80/A). Por fim, nos dá esperança e nos

impele à ação: “Sem a graça, não podemos nada, mas também a graça, sem a nossa colaboração, nada pode” (GS/11/X/74/A). Portanto, movidos

pelo Espírito de Deus, nEle confiemos, mas façamos

a nossa parte!

A pandemia do novo coronavírus não conhece fronteiras. O vírus pode atingir a todos, indistintamente, e põe em inequívoca evidência a interconexão de toda a

criação, fazendo-nos experimentar com muita clareza

que um só é o Senhor, que não há outro além dele em quem colocar a nossa segurança. Isso nos ajuda a discernir e optar pelo essencial, aproximando-nos uns

dos outros com compaixão, cuidado e solidariedade,

mesmo que no distanciamento físico, no lockdown.

REAVIVAR O DOM

No contexto da Covid-19, percebemos como a

espiritualidade, essa energia que nos faz sair de

nós mesmos, manifesta e incentiva a criatividade nas diversas e novas maneiras de encontro, de oração, de convívio e de trabalho, ressignificando

nossa maneira de estar no mundo.

Uma imagem que comoveu o mundo e ainda continua viva em nosso coração foi a do

Papa Francisco, na Praça de São Pedro, em Roma, no dia 27 de março de 2020.

Debaixo de chuva,

aparentemente sozinho, ao entardecer. Que

testemunho extraordinário de uma espiritualidade

encarnada, enraizada na confiança em Deus, diante

de Jesus crucificado, implorando por saúde, por

vida... por um milagre. Momento intenso, de uma

fé profunda e de comunhão com a humanidade sofrida. No seu gesto e com suas palavras de esperança, disse o Papa:

“O Senhor interpela-nos, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas que tudo parece naufragar”.

REAVIVAR O DOM

Ainda segundo Francisco:

“abraçar o Senhor para

abraçar a esperança.” Aqui está a Fonte da vida, que nos anima e faz caminhar, mesmo que pareça cair a noite. O convite a despertar e a ativar a solidariedade e a esperança outra coisa não é senão o despertar e o ativar da nossa força interior, do sopro da vida que habita em nós, com um olhar especial para os pobres, os mais vulneráveis, aqueles que estão “à beira do caminho” (Mt 20,30).

Graças à tecnologia, temos tido a oportunidade de acompanhar nossas comunidades religiosas, a dinâmica dos Colégios Sagrado Coração de Maria, dos Projetos Socioassistenciais e da Rede Global das Escolas SCM espalhados pelo mundo. Tem sido encorajador e motivo de grande alegria perceber que a vida, a missão, os dons circulam de maneira criativa, solidária e envolvente, ultrapassando a fronteira do isolamento, do desânimo e do medo. Transformam a condição de confinamento em oportunidade de encontro, de partilha, de troca de saberes e aprendizagens na convivência familiar, na reciprocidade, na dinâmica do aprender juntos, do dar e receber. Essas são atitudes que contribuem para o cultivo e o exercício da espiritualidade no dia a dia, nesse tempo de pandemia.

Ao lado esquerdo do Papa Francisco, a Conselheira-Geral do IRSCM, Irmã Paré, participando do Sínodo da Amazônia. O evento aconteceu no Vaticano, em outubro de 2019, como uma oportunidade de refletir sobre as necessidades da maior floresta do mundo e dos povos que nela vivem, especialmente os indígenas.

REAVIVAR O DOM

Sabemos dos desafios que tudo isso implica, mas uma nova cultura, novos hábitos estão, com certeza, sendo construídos e gerados a partir do “estar em casa”.

Todos nós perguntamos, não sem uma certa ansiedade: qual e como será o pós-pandemia do novo coronavírus? Uma pergunta que provoca em nós outras interrogações, ao mesmo tempo um forte desejo de

que sejamos pessoas renovadas pela força do bem que habita em nós, pessoas mais próximas e solidárias, mais simples e responsáveis

umas pelas outras e pela nossa Casa Comum. A isso o Prof. Celso Pinto Carias, da PUC/RJ, chama de sabedoria do Bem Viver:

“Por incrível que pareça, nao se trata de criar algo absolutamente

novo, mas de resgatar uma sabedoria que pode ser chamada, em linhas gerais, de Bem Viver... Anciãos, adultos, jovens, homens e mulheres, deveremos constituir um novo padrão de vida, não um novo normal.” Uma sabedoria que nos interpela a novas posturas no cotidiano, que significa a construção de relações humanizadoras

e ecológicas, que supõe inclusão de todos, sem nenhuma pessoa

“à margem”. “A interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projeto comum”. (Laudato Si #164)

REAVIVAR O DOM

Concluindo, conclamo todas e todos para que, recriados pelo sopro novo da vida e gestados a partir do confinamento fecundo, prossigamos

comprometidos em escutar ‘o pulsar do coração de Cristo’ onde quer que nos encontremos e a proclamar que ‘todos têm lugar na nossa Casa Comum’. Com nosso coração abrasado pelo zelo

ardente, trabalhemos para que “um novo céu e uma nova terra” (Apoc 21,1) sejam oportunidade e experiência para todos e todas.

Na alegria e comunhão no Coração de Maria, concluo com as palavras do Padre Jean Gailhac,

homem de uma forte espiritualidade centrada em Jesus, o Bom Pastor, que nos abençoa:

“Que Deus, o Pai da luz, esteja sempre consigo, dirija os seus passos e derrame as suas bênçãos sobre toda a sua vida. Amém!”.

PASTORAL CSCMBH REVISITANDO VIVÊNCIAS, FORTALECENDO A CAMINHADA HOJE