A Integração Sul-americana e o Brasil:o protagonismo brasileiro na implementação da IIRSA

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JOSÉ GUILHERME CARVALHO DA SILVA

A Integração Sul-americana e o Brasil: o protagonismo brasileiro na implementação da IIRSA

BELÉM – PARÁ 2004


JOSÉ GUILHERME CARVALHO DA SILVA

A Integração Sul-americana e o Brasil: o protagonismo brasileiro na implementação da IIRSA

Monografia apresentada por José Guilherme Carvalho da Silva ao Curso Internacional de Formação de Especialistas em Desenvolvimento de Áreas Amazônicas – FIPAM XVIII, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA, como requisito para obtenção do título de especialista, orientado pela Profª. Drª. Edna Castro.

BELÉM – PARÁ 2004


JOSÉ GUILHERME CARVALHO DA SILVA

A Integração Sul-americana e o Brasil: o protagonismo brasileiro na implementação da IIRSA

Banca examinadora da Monografia Profª. Drª. Edna Castro – Orientadora Prof. Dr. Thomas Hurtienne Prof. Dr. Manoel Dutra – Examinador externo

BELÉM – PARÁ 2004


Aos meus pais, Manoel e Fátima, que não tiveram a oportunidade ainda em vida de dividir comigo esse momento de grande alegria. À minha amada esposa Regina e aos meus amados filhos Alexandre e Lucas. Às minhas irmãs Leila, Lúcia, Lucilene e Lília Ao Pe. João Beuckenboon, homem digno e comprometido com a justiça social. Às minhas professoras de primário Maria e Oliveti, com quem comecei essa longa caminhada. Aos meus colegas da FASE-Pará.


AGRADECIMENTOS Este trabalho monográfico foi possível em grande parte por conta do inestimável apoio e companheirismo das seguintes pessoas: • Profª. Edna Castro que, apesar da sua agenda movimentada, aceitou com a maior boa vontade orientar-me na produção desta monografia; • Meus grandes amigos Carlinho e Letícia, pelo incentivo à especialização; • Os amigos João Batista, Selma, Raoni e Ramon pelas alegrias dos finais de semana; • Nanani, Lílian Leitão, Elen, Iane, Walena, Cléa e demais colegas do FIPAM XVIII • Os colegas da Coordenação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais; • Membros do Fórum da Amazônia Oriental – FAOR; • Colegas da FASE-Nacional; • Luciano Brito, pela ajuda com os mapas.


O ser de uma coisa finita é trazer em si o germe de sua contradição. A hora do seu nascimento é também a hora de sua morte. (Hegel)


SUMÁRIO DEDICATÓRIA AGRADECIMENTOS EPÍGRAFE LISTA DE SIGLAS 1. INTRODUÇÃO

01

2. INTEGRAÇÃO: DIFERENTES PERSPECTIVAS EM DEBATE

04

3. INTEGRAÇÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA: A GRANDE

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ESTRATÉGIA DO MOMENTO 4. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ATUAÇÃO DO BRASIL

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NO PROCESSO DE INTEGRAÇÃO REGIONAL DA AMÉRICA DO SUL 5. NOTAS CONCLUSIVAS

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LISTA DE SIGLAS ALCA - Área de Livre Comércio das Américas AMI – Acordo Multilateral de Investimentos BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD - Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial) BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CAF - Corporação Andina de Fomento CAN – Comunidade Andina das Nações CCT – Comitê de Coordenação Técnica CDE – Comitê de Direção Executiva CEPAL – Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe ENID - Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento FAOR – Fórum da Amazônia Oriental FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional FONPLATA – Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata GTE – Grupos Técnicos Temáticos IFMs - Instituições Financeiras Multilaterais IIRSA - Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura da América do Sul NAFTA - Acordo de Livre Comércio da América do Norte OCDE – Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico OEA – Organização dos Estados Americanos OLAS - Organização Latino-Americana de Solidariedade OMC - Organização Mundial do Comércio ONGs – Organizações Não Governamentais PL – Projeto de Lei PPA - Plano Plurianual PPP – Plano Puebla-Panamá


LISTA DE QUADROS E FIGURAS Quadros Quadro 1: Processos setoriais integrantes da IIRSA

p. 29

Quadro 2: Investimentos previstos para Roraima

p. 35

Quadro 3: Investimentos previstos para o setor de transporte rodoviário na

p. 52

Amazônia brasileira Quadro 4: Investimento previstos para o setor de comunicações na Pan-

p. 54

Amazônia

Figuras Figura 1: As “barreiras” territoriais sul-americanas

p. 23

Figura 2: Acesso aos recursos naturais sul-americanos

p. 31

Figura 3: Eixo Multimodal do Amazonas

p. 32

Figura 4: Eixo Peru – Brasil – Bolívia

p. 33

Figura 5: Investimentos no trecho Boa Vista (Brasil) – Georgetown (Guiana)

p. 34

Figura 6: Eixo Venezuela – Brasil – Guiana – Suriname

p. 36

Figura 7: Integração das Bacias do Prata e Amazônica

p. 51


Introdução Este trabalho tem como principal objetivo refletir sobre o significado da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura da América do Sul – IIRSA nesta parte do continente americano, destacando o papel desempenhado pelo Brasil na implementação dessa estratégia. Diferentemente do que afirmam alguns estudiosos do processo de globalização capitalista, que defendem o ponto de vista de que os Estados Nacionais encontram-se à mercê do capital financeiro, das empresas multinacionais e de organismos multilaterais, os argumentos expostos ao longo desse estudo buscarão evidenciar que os Estados não sofrem do mesmo modo ou grau de magnitude as conseqüências dessa globalização. No caso da IIRSA, em particular, o argumento principal é de que o Estado brasileiro1 através da sua política externa, da ação de instituições como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, das negociações comerciais firmadas até o momento com os países vizinhos, entre outras ações, tenta garantir sua hegemonia nesse processo. Por conseguinte, afirma-se de modo claro que tal estratégia beneficia fundamentalmente os segmentos inseridos e capazes de fazer a disputa no mercado internacional. Se no plano externo a IIRSA tem sido um dos pilares da atuação do Estado brasileiro, no plano interno a implementação dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento – ENID constituiu-se na principal diretriz do desenvolvimento econômico do país. Porém, com uma perspectiva internacional desde o seu nascedouro, conforme será mostrado no decorrer do trabalho. Durante a leitura desse trabalho notar-se-á uma ausência que merece ser explicada, pois diz respeito à falta de qualquer referência ao Mercado Comum do Cone Sul – Mercosul. Ora, como falar de integração regional sem tratar de uma experiência dessa magnitude na América do Sul? Ocorre que, enquanto há disponibilidade de uma vasta produção científica acerca desse assunto, seja na forma de publicações ou mesmo na internet, pouco ou quase 1 Neste trabalho, a expressão “Estado brasileiro” está associada à teoria ampliada de Estado elaborada pelo socialista italiano Antonio Gramsci que, ao abordar a questão do Estado num de seus escritos, afirmou: “Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política - ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um certo tipo de produção e à economia de um dado momento); e não como um equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercida através de organizações ditas privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)” (GRAMSCI apud COUTINHO, 1981, p. 91). Por conseguinte, “Estado brasileiro” busca expressar a aliança estratégica atualmente existente entre o “Estado em sentido estrito” (ibidem), grupos e organizações sociais nacionais e/ou associados ao grande capital internacional para garantir a integração sul-americana, tendo como ponto de partida a IIRSA. 1


nada há relacionando a implementação da IIRSA com seu rebatimento sobre a Amazônia brasileira – ou ainda a Pan-Amazônia2. O entendimento do significado da IIRSA e do papel desempenhado pelo Brasil nesse processo, não pode secundarizar a reflexão sobre a (Pan)Amazônia, posto que ela tem importância estratégica para esse processo de integração regional, perseguido pelo Brasil e seus vizinhos. Essa dificuldade de encontrar estudos relacionando a IIRSA com a Amazônia resultou obviamente em enormes obstáculos para a coleta e sistematização de informações. Entretanto, também representou um grande desafio intelectual para a continuidade do estudo em questão. Um alerta também deve ser feito quanto a análise da atuação dos diferentes atores sociais – os das sociedades civis nacionais, em especial -, que buscam interferir nas negociações em andamento. Mesmo considerando a relevância e a pertinência dessa reflexão, decidiu-se por desenvolvê-la em estudos posteriores, posto que não havia como realizá-la de forma satisfatória, dado os limites de tempo, principalmente. O mestrado permitirá maior aprofundamento de diversos aspectos do tema em questão nesta monografia. O motivo da escolha do tema acerca da integração regional remonta o ano de 1987, quando o Banco Interamericano de Desenvolvimento ameaçou cancelar o financiamento do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una3. Diante dessa situação, uma comissão de moradores das Sub-bacias 2 e 3 (Canais da Visconde de Inhaúma e Pirajá) - da qual o autor deste trabalho fazia parte – mais uma técnica da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE-Pará, dirigiram-se a Brasília para tratar do problema através de reuniões com os representantes do BID no Brasil, com membros da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e com parlamentares da bancada federal paraense. Essas reuniões foram intermediadas pela Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, uma Organização Não Governamental que, entre outras atividades, monitora os acordos firmados pelo governo brasileiro com os bancos multilaterais. 2

A abordagem sobre o Mercosul é bem diversa, envolvendo temas como políticas educacionais, tributárias e fiscais, as mudanças nas legislações nacionais referentes aos direitos trabalhistas e previdenciários, reforma do Estado e outros. Entre as publicações disponíveis pode-se encontrar ADVOGADRO, Enrique Guillermo. Brasil Argentina: o Processo de Integração do Mercosul. Ed. Topbooks, 1997; BAUMAM, J. C. Lerda. BrasilArgentina-Uruguai: A Integração em Debate. Ed. Marco Zero, 1987; CHIARELLI, Carlos Alberto Gomes & SIENRA, Jorge (orgs.). Educação em um Processo de Integração: o Caso Mercosul. Ed. LTR, 2001; MEIRELES, José Ricardo. Impostos Indiretos no Mercosul e Integração. Ed. LTR, 2000. 3 Belém é recortada por bacias hidrográficas, cada qual constituída por vários igarapés – nome dado aos braços de rios – que, influenciados pelas marés, alagam permanentemente uma grande faixa de terras da capital, ocupada desordenadamente por milhares de famílias há muitos anos. Nesses locais, denominados baixadas, o saneamento básico é precário. A Bacia do Una é a maior de todas, abarcando cerca de 3,664 ha, quase metade da parte continental do município. 2


A partir de então, os temas relacionados à atuação das IFMs no Brasil passaram a fazer parte da agenda de debates e de intervenção, não somente de algumas organizações comunitárias da Bacia do Una, como também, da FASE e, posteriormente, do Fórum da Amazônia Oriental (rede que articula diferentes entidades dessa parte da Amazônia). De 1988 até hoje já foram realizados seis encontros estaduais da Rede Brasil no Pará, divulgados artigos e lançadas publicações tratando das políticas das IFMs para o Brasil e para a Amazônia, em especial. Atualmente a Rede Brasil constituiu o Grupo de Trabalho Infra-estrutura que integra uma articulação de organizações não governamentais – ONGs e movimentos sociais sulamericanos, que trata especificamente da IIRSA, da qual o autor deste trabalho é membro. Esta monografia portanto, é fruto de uma experiência de vida no interior dos movimentos sociais, tratando de políticas e projetos que contam com a participação efetiva das IFMs no Brasil e em outros países; de outro, é fruto também de uma inquietação teórica quanto ao lugar da Amazônia nesse processo de integração regional. A monografia está baseada fundamentalmente em dados secundários. A multiplicidade de fontes consultadas - relatórios, documentos, textos de ativistas, sítios na internet e outras, elaborados por instituições financeiras, governo brasileiro, ongs e pesquisadores -, exigiu um enorme esforço de análise do material coletado, que resultou no produto aqui apresentado. Por fim, é necessário dizer o modo como está estruturado este trabalho: o primeiro capítulo apresenta de forma sintética alguns dos diferentes pressupostos teóricos acerca do papel do Estado, do significado da globalização e sua relação com a integração regional. O segundo, busca explicar o significado da IIRSA e a sua relação com as políticas de reformas estruturais no âmbito daquilo que instituições como o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID denominam de o novo regionalismo. O terceiro, analisa o papel desempenhado pelo Brasil no processo de implementação da IIRSA. Em seguida, são apresentadas as conclusões a que se chegou até o momento.

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I. Integração: diferentes perspectivas em debate A perspectiva integracionista no nosso continente remonta à época pós-colonial, quando surgiram as primeiras manifestações no sentido de construir a unidade entre as nações recém-independentes. A integração defendida nesse período tinha caráter eminentemente político-militar (MACHADO, [200-?]). José G. Artigas e Simón Bolivar, alguns dos líderes de vários processos independentistas no continente, estão entre os maiores defensores da integração latino-americana. Bolívar, em particular, defendia um tipo de integração denominada hispanoamericanismo, pois "tenia como objetivo la formación de uma nación única, soberana y libre" como "alternativa al proyecto estadounidense panamericanista" (MACHADO, [200-?]). O hispanoamericanismo de Bolívar defendia a construção de um sistema de cooperação entre as nações latino-americanas – fundamentalmente as de origem hispânica -, que as protegessem não somente das tentativas européias de constituir movimentos de restauração da ordem colonial no continente, como também, dos Estados Unidos e sua Doutrina Monroe4. Em 1815, Bolívar lançou a idéia da constituição de uma Confederação Americana. Porém, somente em 1826, após intensas negociações, conseguiu realizar o Congresso do Panamá5, que "tuvo como antecedente un intento de reunión en la Asamblea Nacional Constituyente de la América Central que por decreto del 6 de noviembre de 1823, acordaba convocar a una Confederación General de toda América" (MACHADO, [200-?]). Boa parte das jovens nações vivenciava problemas internos da maior gravidade para a consolidação da sua independência das metrópoles e, muitas vezes, os conflitos entre aquelas dificultavam ainda mais as tentativas de integrá-las política e militarmente. Por outro lado, os Estados Unidos se mostraram desde o início indispostos a apoiar qualquer tentativa que se 4 No início do século XIX o continente americano vivenciava intensa agitação política nas colônias por sua independência dos impérios espanhol e português. Foi nesse período que o Congresso dos Estados Unidos debateu e aprovou em 1823 um documento que definia a política daquele país em relação aos seus vizinhos e as nações de outras partes do mundo: a Doutrina Monroe (por conta de James Monroe, presidente dos EUA de 1817-1825). Criada para se contrapor às tentativas de recolonização forçada do Novo Mundo, essa doutrina serviu posteriormente para justificar toda e qualquer intervenção norte-americana nos assuntos internos das nações do continente quando considerassem que seus interesses estavam sendo prejudicados. Em linhas gerais, a Doutrina Monroe está baseada nos seguintes princípios: a) o continente americano não pode ser objeto de recolonização; b) é inadimissível a intervenção de qualquer país europeu nos negócios internos de países americanos, e; c) os Estados Unidos, em troca, se absterão de intervir nos negócios pertinentes aos países europeus. O lema que sintetiza os princípios dessa doutrina é “América para os Americanos”, mas o correto seria dizer “América para os Estados Unidos contra os interesses das nações de outros continentes”.

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aproximasse das teses de Bolívar. Ao contrário disso, os sucessivos governos estadunidenses adotaram postura agressiva de defesa dos seus interesses na região, sendo a Doutrina Monroe a expressão maior dessa política. O termo panamericanismo surgiu na imprensa estadunidense em 1889 por ocasião da Primeira Conferência Panamericana, ocorrida em Washington. A realização desta Conferência "configura un evento fundacional de una nueva etapa em las relaciones internacionales de los estados independientes de América" (MACHADO, [200-?]). Segundo Machado, esta nova etapa é marcada pelo protagonismo da política exterior dos Estados Unidos, em detrimento das teses bolivarianas, fato facilmente comprovável se tomarmos como base os resultados das diversas conferências ocorridas no século XX. A I Conferência Panamericana foi marcada por conflitos em relação à proposta dos Estados Unidos de integração do continente. É interessante abordar, mesmo que brevemente, alguns dos fatos ocorridos nesse evento posto que, de uma forma ou de outra, alguns dos conflitos ali explicitados ainda se encontram presentes atualmente nas negociações para a constituição da Área de Livre Comércio das Américas - ALCA. Em 1881, o secretário de Estado norte-americano James Gilespie Blayne apresentou a proposta da conformação de uma união aduaneira6, a fim de melhorar as comunicações e os fluxos comerciais entre as nações do continente. Com essa proposta buscava-se fundamentalmente assegurar a prevalência dos interesses dos Estados Unidos sobre os seus competidores europeus e, conseqüentemente, consolidar a hegemonia desse país na região. Todavia, o assassinato do presidente James Garfield, ainda em 1881, contribuiu para que a proposta de Blayne não tivesse seqüência (ESCUDÉ at al, 2000). 1889 é o ano do retorno de Blayne ao Departamento de Estado e é também o momento da realização da I Conferência Panamericana, demonstrando a afirmação da estratégia encabeçada por Blayne enquanto política do governo estadunidense para a América que, por sua vez, baseava-se na Doutrina Monroe. O projeto do chefe do Departamento de Estado retomou a proposta de 1881 que visava:

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Brasil e Estados Unidos foram convidados por Bolívar para participar do Congresso do Panamá, mas não se fizeram presentes (MACHADO, [200-?]). 6 Atualmente “a Zona de Livre Comércio é o estabelecimento, pela via de tratados internacionais, da livre circulação das mercadorias sem barreiras ou restrições quantitativas ou aduaneiras, conservando os Estados integrantes total liberdade nas relações com terceiros países, inclusive com matérias relacionadas com importação e exportação. A União Aduaneira é um passo além da zona de livre comércio cujo elemento característico da livre circulação de mercadorias incorpora, completando-o com a adoção de uma tarifa aduaneira comum (...)”. Ver http://www.plannersbrasil.com.br/mercosul/prof_maria2.html 5


crear una unión aduanera que facilitara el comercio entre las naciones del hemisferio y dejara a los europeos en posición de inferioridad. Para lograr este objetivo, la delegación norteamericana presentaria un conjunto de propuestas buscando establecer pesos y medidas comunes, una unidad monetaria común, un mecanismo judicial para resolver conflictos, una red de transporte y la creación de una oficina central que recolectaría e distribuiría información de interés para todos los miembros americanos (ESCUDÉ at al, 2000)

Ocorre que a proposta norte-americana encontrou feroz resistência da Argentina – dos portenhos, em particular. Isto porque o comércio exterior daquele país tinha fortes vinculações com a Europa, sem falar nas relações culturais que marcaram profundamente os referenciais de sociedade das suas elites. Portanto, a perspectiva panamericanista dos Estados Unidos passou a ser vista como uma ameaça aos interesses dos segmentos que hegemonizavam o aparelho de Estado argentino. Roque Sáenz Peña, membro da delegação argentina na Conferência e anos depois presidente do país, foi um dos mais ferrenhos opositores da união aduaneira proposta pelos Estados Unidos. Em contraposição à máxima norte-americana da Doutrina Monroe de “América para os Americanos” Sáenz Peña bradou o lema “América para a Humanidade”, afirmando que as repúblicas hispanoamericanas necessitavam dos mercados do mundo inteiro para desenvolverem-se e alcançarem o progresso comercial (ESCUDÉ at al, 2000)7. Apesar da retórica hispanoamericana, as elites argentinas não jogavam maior peso para a construção da unidade entre as nações de língua espanhola do continente. Isto porque viam nas relações econômicas com a Europa a peça-chave para o seu próprio desenvolvimento. Esse “americanismo argentino” foi expresso, com bastante clareza, nas reflexões de intelectuais como Juan Bautista Alberdi: En este sentido, el americanismo alberdiano fue, como el profesado por mucho de los hombres de gobierno de la Argentina embriónica previa a la conformación del Estado Nacional, un americanismo de orientación europeista o inspirado por um vago sentimento hispanoamercanista. Este sentimiento reflejó, por una parte, cierto grado de nostalgia por un ya irreversible pasado virreinal. Por la outra, llevó al estado argentino, tanto en su fase embriónica como en la de estado nacional consolidado, a evadir compromisos permanentes com paises americanos, que pudieran atentar contra la independencia en el margen de acción externo de dicho estado, o contra los lazos económicos, políticos y culturales existentes entre éste y las naciones europeas (ESCUDÉ at al, 2000a)

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Atualmente uma corrente de pensamento da qual faz parte Reinaldo Gonçalves, professor titular de Economia Internacional da UFRJ, defende mudanças nas diretrizes da política externa brasileira. No que diz respeito à economia, propõe que o enfoque prioritário do Brasil seja o estabelecimento de acordos bilaterais, o “desengajamento gradual” do Mercosul, a rejeição à ALCA, a limitação das relações comerciais com a Argentina, entre outras propostas (GONÇALVES, 2000, 2002). 6


Diante da não aprovação da sua proposta de união aduaneira durante a I Conferência Panamericana, em grande parte por conta da renhida resistência argentina, os delegados norteamericanos partiram para a negociação com os representantes dos demais países, a fim de que fossem firmados tratados de reciprocidade comercial bilateral ou multilateral, no intuito de que o aprofundamento desse processo redundasse mais tarde na constituição de uma área de livre comércio no continente. Os delegados do Brasil, Nicarágua, Venezuela, Colômbia, México e Estados Unidos firmaram tal proposta. Contudo, Argentina e Chile alegaram que o mandato da conferência dizia respeito tão somente à aprovação ou não da união aduaneira, o que excluía a apreciação de qualquer outro tratado (ESCUDÉ at al, 2000). Os Estados Unidos não conseguiram lograr o seu principal objetivo na conferência. Porém, isto não significou uma derrota à sua perspectiva estratégica de hegemonia sobre o continente. Tanto é verdade que em 1892, a coroa britânica temerosa do poder alcançado pelos norte-americanos e preocupada com a possibilidade de um reordenamento territorial na América do Sul que atentasse contra a sua hegemonia, fez com que Hugh Wyndhan, representante britânico no Rio de Janeiro, falasse de planos para “anexar Bolivia a la Argentina y Uruguay al Brasil” para fazer frente a essa ameaça (ESCUDÉ at al, 2000b). Infelizmente para as nações européias com forte presença na América, as conferências panamericanas posteriores refletiram a completa hegemonia dos Estados Unidos na região. Não é objetivo deste trabalho fazer uma análise exaustiva do que foram tais conferências. Entretanto, é importante ressaltar que muitas das críticas suscitadas pelas nações latino-americanas – da Argentina, em particular –, ao sentido do panamericanismo norteamericano revelaram-se corretas. Nessa perspectiva podemos citar as posições de Argentina e Brasil contra o plano de arbitragem proposto pelos Estados Unidos, considerado por ambos um perigo à soberania dos demais países8. Os posicionamentos de Sáenz Peña que considerava a proposta de união aduaneira um perigoso instrumento de intervenção dos Estados Unidos na política interna dos demais países, revelou-se em toda sua crueza nas ações militares norte-americanas no Caribe – Cuba, 8

Hoje em dia, a proposta presente na ALCA (e já implementada pela Área de Livre Comércio da América do Norte – NAFTA) de constituição de um tribunal internacional para atuar acima das legislações nacionais, a fim de dirimir os conflitos entre empresas e Estados nacionais, é foco de repúdio de inúmeros segmentos sociais do continente, que a consideram lesivas aos interesses dos países latino-americanos. Tal proposta também foi discutida no interior da Organização pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, que reúne os principais países industrializados do planeta, entre eles o Brasil - no âmbito do Acordo Multilateral de Investimentos - AMI. Esse acordo só não foi aprovado por conta da forte mobilização social internacional, da Europa, em especial, que fez com que os membros da OCDE recuassem. Todavia, essa discussão foi deslocada para o interior da Organização Mundial do Comércio – OMC, que aguarda o “momento adequado” para colocála na pauta dos debates. 7


em 1897, por exemplo. Como bem disse ele “la Doctrina Monroe se pronunció contra la intervención, pero su pronunciamento se hizo com reservas mentales (...) reservando la intervención norteamericana” (GROUSSAC, TARNASSI apud ESCUDÉ at al, 2000). A perspicácia de Sáenz Peña também pode ser constatada na crítica que desenvolveu à política tarifária dos Estados Unidos. De acordo com ele, a proposta de reciprocidade comercial apresentada pela delegação daquele país na I Conferência não assegurava a redução das tarifas, mas serviria, isto sim, como mecanismo de represália norte-americana contra os países que porventura entrassem em colisão com os interesses estadunidenses.9 A consolidação da hegemonia dos Estados Unidos e da sua perspectiva integracionista no continente caminhou lado a lado com diferentes iniciativas, que visavam romper de alguma forma com o modelo panamericanista de Washington, como as conferências promovidas pela Organização Latino-Americana de Solidariedade - OLAS, encabeçada por Cuba e diversos grupos de esquerda da Ásia, África e América Latina - que deu origem à Tricontinental. A integração buscada pela OLAS tinha como principal objetivo "unir, coordinar e impulsar la lucha contra el imperialismo norteamericano por parte de todos los pueblos explotados de América Latina" (MACHADO, [200-?]). Tal integração possuía caráter eminentemente político, pois visava a constituição de movimentos revolucionários nos diversos países contra o sistema capitalista. Entretanto, durante as décadas de 60 e 70, com o assalto ao poder por parte de regimes autoritários de direita em boa parte dos países latinoamericanos, resultaram no definhamento da OLAS e dos grupos que a integram. Os anos 70 são profundamente marcados, entre outras coisas, por dois fatos significativos: o fim do regime cambial baseado na paridade ouro-dólar e a crise econômica mundial, com a conseqüente explosão das dívidas externas dos países em desenvolvimento. Segundo Fiori (2001, p. 64), a globalização não é um “fenômeno exclusivamente econômico, nem muito menos tecnológico”, porém, mesmo no campo estritamente econômico, diz ele, sua especificidade se dá justamente com o fim do regime cambial dos anos 70. Ou seja o “carro-chefe” da globalização se deu no mundo das finanças e alcançou sua “máxima intensidade e extensão nos anos 80, quando se pode falar, efetivamente, de um mercado 9

Tal crítica poderia ser estendida aos dias de hoje, bastando para isso acompanhar as medidas protecionistas do governo dos Estados Unidos para preservar setores pouco competitivos internacionalmente, como o siderúrgico, por exemplo, do qual as sobretaxas são um dos principais mecanismos para penalizar as exportações de países como o Brasil. Por outro lado, as tarifas também são utilizadas como instrumento de barganha para garantir o apoio de vários governos às iniciativas estadunidenses, principalmente nesse momento histórico em que o 8


global e desregulado de capitais em atividade 24 horas por dia” (ibidem). Em que pese na esfera manufatureira não existirem nem um mercado, nem uma produção “verdadeiramente globais”.10 De acordo com Fiori (2001a, p. 196) os anos 70 representam um profundo corte nos planos geopolítico, geoeconômico e no cultural. É o início “dessa etapa de transformações que leva o apelido de globalização”; um novo período de afirmação do poder dos Estados Unidos em escala global: A construção daquele mercado financeiro mundial foi alvo do poder e de decisões políticas e teve conseqüências que vão muito além da própria economia. Começou com a decisão do governo americano, no início dos anos 70, de suspender a convertibilidade e desvalorizar sua moeda, rompendo as regras estabelecidas em Breton Woods, depois da 2ª Guerra Mundial. Só se consolidou como projeto global a partir das políticas de liberalização e desregulação dos mercados financeiros nacionais promovidas ativamente, durante toda a década de 80, pelos governos conservadores de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. A partir dali, o poder estrutural das finanças anglo-saxônicas impôs aos demais países desenvolvidos as mesmas políticas desregulacionistas, sob pena de assistirem a uma fuga massiva de capitais em direção a Wall Street e à City. Foi o que se chamou de “processo de desregulamentação competitiva”, movido pelo poder das “altas finanças” e por uma renovada crença, quase religiosa, nas virtudes dos mercados auto-regulados (FIORI, 2001, p. 64-65)

A redemocratização política dos países latino-americanos ocorrida de modo generalizado a partir da década de 80, esteve vinculada desde o seu início a esse processo mais amplo de reformas estruturais em vista da abertura dos mercados dos países em desenvolvimento, da flexilbilização das suas legislações trabalhista e previdenciária, da criação de mecanismos para o favorecimento da livre circulação do capital financeiro, da privatização indiscriminada de empresas públicas e da integração econômica entre diferentes países: Baseados no princípio do livre comércio, começaram a se multiplicar os acordos de cooperação e complementação econômica, inicialmente entre dois ou três países e posteriormente entre um grupo maior, fazendo surgir blocos regionais de comércio, como eram mais conhecidos. A integração natural, vinda da aproximação entre vizinhos contíguos, foi sendo aceita como um componente facilitador do processo integracionista na Europa e nos Estados Unidos quanto na América Latina, representando para esta última região

combate ao terrorismo é a mola-mestra da política externa desse país. Nesse caso, o ingresso ou não no mercado norte-americano é uma das armas utilizadas para “conquistar” os apoios necessários. 10 Fiori é um crítico do uso indiscriminado do termo “globalização” que, segundo ele, “mesmo no espaço acadêmico se propõe designar, diagnosticar e explicar, ao mesmo tempo, todas as transformações mundiais dos últimos vinte e cinco anos do século XX”. (FIORI, 2001, p. 63) 9


uma possibilidade de acesso aos cobiçados mercados dos países industrializados e também uma perspectiva de desenvolvimento (BEÇAK, 2000, p. 15)11

Diversos autores se debruçaram sobre a problemática da integração econômica para mostrar que ela contribui para a superação de obstáculos entre os mercados (TINBERGEN, HOFFMAN apud BEÇAK, 2000, p. 16), e sua capacidade de provocar a destruição de barreiras sociais (MYRDAL, KINDLEBERGER apud BEÇAK, 2000, p. 16), portanto, dentro dos marcos do sistema capitalista. Outros autores, porém, identificam o atual processo de integração como a mais nova modalidade de dominação dos países desenvolvidos e de suas empresas sobre as nações pobres. Uma das questões centrais desse debate diz respeito ao papel do Estado-Nação nesse momento histórico. Voltando um pouco no tempo nos deparamos com a interessante produção de Barnet e Müller (1974) sobre o perfil dos gerentes mundiais, os quais, segundo os autores, a lealdade empresarial está acima da lealdade nacional. De acordo com os autores, os administradores mundiais são homens que, pela primeira vez na história, podem, efetivamente, administrar o mundo como uma unidade integrada, posto que "possuem a organização, tecnologia, recursos e a ideologia" para tanto (1974, p. 13). A empresa global é considerada "a primeira instituição na história humana dedicada ao planejamento centralizado em escala mundial" (ibidem, p. 14), o que dá a ela enorme capacidade de decidir, de forma racional e eficaz, sobre investimentos, sem as amarras e limitações a que estão submetidos os Estados nacionais: A ascensão da empresa planetária está produzindo uma revolução organizacional tão profunda em suas implicações para o homem moderno como a Revolução Industrial e a ascensão da própria nação-estado (...) os estrategistas empresariais gostam de observar que, como o Papa, não possuem divisões em seu comando. As fontes de seu extraordinário poder, no entanto, são encontradas em toda parte - no poder de transformar a economia política e mundial e, ao fazê-lo, de transformar o papel histórico da nação-estado (BARNET, MÜLLER, 1974, p. 15)

Nessa perspectiva, portanto, os Estados-Nação são vistos pelos administradores globais como obstáculos à expansão das forças do mercado; as fronteiras e as legislações nacionais são consideradas como empecilho à nova etapa do sistema capitalista, cabendo às "empresas mundiais" o papel histórico de transformar radicalmente a realidade, já que o aspecto revolucionário destas não está relacionado ao tamanho das mesmas, mas à "visão 11 Em que pese o "acesso aos mercados dos países industrializados" por parte dos países em desenvolvimento enfrentar inúmeras formas de barreiras e de protecionismo - como ficou patente na recente reunião da Organização Mundial do Comércio - OMC, ocorrida em Cancun, no México, em 2003 -, a integração econômica continua sendo o carro-chefe das negociações multilaterais. 10


mundial" que possuem - elemento que, segundo os administradores globais, falta aos Estados nacionais. Um dado interessante apresentado por Barnet e Müller diz respeito às críticas que executivos de algumas das maiores empresas do planeta fazem aos Estados nacionais, como Carl A. Gerstacker, então presidente da Dow Chemical Company: Há muito sonho em comprar uma ilha que não pertença a nação alguma e nela construir o Quartel General da Dow, em terreno verdadeiramente neutro, sem obrigações para com qualquer nação ou sociedade. Se estivéssemos localizados em um terreno assim realmente neutro, poderíamos, na verdade, operar nos Estados Unidos como cidadãos americanos, no Japão como japoneses, no Brasil como brasileiros e não, como agora, sermos basicamente governados pelas leis dos Estados Unidos... poderíamos pagar bem a quaisquer nativos nela residentes para que se mudassem para outro lugar (1974, p. 16)

De acordo com o relatório de pesquisas da Adverte Business International de 1967 destinada a seus clientes, a nação-Estado caminha para a morte, posto que não há qualquer sentido significativo para ela no futuro. Da mesma forma, o referido relatório alerta que “o mesmo acontecerá às empresas que permanecerem essencialmente nacionais” (BARNET, MÜLLER, 1974, p. 19). Há, todavia, depoimentos de executivos, apresentados por Barnet e Müller, que não acreditam no definhamento do Estado-nação, como o então presidente da Unilever. Este, em função desse ponto de vista, defendeu que um "papel positivo" deveria ser encontrado para o Estado-nação, sem no entanto ter especificado qual (1974, p. 21). A perspectiva da análise de Barnet e Müller é interessante pelo fato de enfatizar o protagonismo

das

empresas

multinacionais,

ou

mais

especificamente

dos

seus

“administradores globais”, para a reestruturação da ordem político-econômica mundial; uma nova ordem capitalista que reconstrói a noção de fronteira entre os países e coloca em xeque a própria necessidade do Estado-nação. Tomando como base o ideário desses administradores, pode-se concluir que a integração projetada por eles está relacionada à ação articulada das empresas multinacionais nos diversos pontos do planeta, e não propriamente à constituição de blocos econômicos entre diferentes países. Para outros autores, o conceito de integração precisa passar por uma revisão do seu embasamento teórico tanto quando se trata de uma economia nacional, quanto de um conjunto de países (ROLIM, 1994). Segundo Rolim:

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a palavra integração aparece na análise econômica com vários sentidos. Ora referese à integração entre firmas, ora à integração dentro de uma mesma firma ou de um mesmo setor econômico, ora refere-se à integração entre países na perspectiva do comércio internacional e ainda é integração nacional. Aqui começa uma das fontes de confusão, na medida em que o adjetivo regional é utilizado para caracterizar as tentativas de liberação comercial entre países próximos ou então é utilizado no contexto da integração das diversas regiões que irão compor uma economia nacional (ROLIM, 1994, p. 55 – grifo do autor)

O uso da palavra integração para “indicar a combinação de economias separadas em grandes regiões econômicas é muito recente”, sendo que somente em 1947 o termo apareceu pela primeira vez em documentos oficiais (MACHLUP apud ROLIM, 1994, p. 56). Ocorre que, segundo Rolim, o termo guarda mais divergências do que consenso, posto que o mesmo pode se referir à noção de processo, como a um “estado final obtido em decorrência desse processo” (ibidem). Algumas formulações teóricas destacam, por exemplo, que enquanto a liberação comercial maximiza o bem-estar da sociedade na medida em que permite a livre circulação de mercadorias e estimula a competitividade, a união aduaneira (uma das formas que pode assumir a integração), tem efeito limitado sobre esse bem-estar, já que provoca distorções comerciais entre os países membros da união, e entre estes e os demais. Já a perspectiva cepalina12 evidenciada nos anos 50, entendia a integração dos países latinoamericanos como um meio de aumentar sua produtividade, ampliar mercados e se defender da concorrência diante dos países capitalistas mais poderosos. Bela Belassa, um dos principais expoentes da Teoria da Integração Econômica, participa desse debate nos anos 50 e 60 a partir de uma abordagem desenvolvimentista. Na Europa, a questão da integração do continente estava marcada pelas discussões sobre o papel do Estado nesse processo, “na medida em que o que se advogava era o supranacionalismo, enfatizado pela integração, opondo-se à força interventora das políticas nacionais” (ROLIM, 1994, p. 60). Todavia, se de um lado Belassa questiona a intervenção estatal nas economias nacionais européias; por outro, reconhece que no caso dos países subdesenvolvidos o quadro é completamente diferente, posto que considera ser relevante o papel do Estado para promover a integração e o desenvolvimento desses países: No que diz respeito aos países subdesenvolvidos, o crescimento econômico surge como consideração primordial. Os países que seguem os conselhos dos defensores 12

Para Guido Mantega, a CEPAL constituiu-se numa espécie de laboratório para a elaboração e divulgação das idéias de uma corrente de pensamento desenvolvimentista latino-americana a partir da segunda metade dos anos 40 do século passado, que defendia a intervenção do Estado na economia para impulsionar a industrialização dos países da região. A CEPAL tornou-se, então, “o grande bastião da industrialização e de seu planejamento, que iria congregar os principais pensadores dessa nova ideologia”. (MANTEGA, 1995, p.12) 12


da doutrina do crescimento equilibrado podem procurar a integração econômica a fim de assegurar um mercado suficientemente vasto para o desenvolvimento paralelo de novas indústrias. Ao levar a cabo o programa de industrialização, tornarse-á importante o aproveitamento de economias de escala, que não são possíveis nos reduzidos mercados nacionais. Alega-se também que o estabelecimento de uma união intensifica o desenvolvimento econômico por meio do aumento do poder de negociação e da redução da vulnerabilidade externa dos países-membros. Finalmente, o interesse crescente pela integração dos países subdesenvolvidos pode atribuir-se em parte ao desejo de imitar o exemplo europeu e aos esforços deliberados para compensar os possíveis efeitos de desvio de trocas comerciais resultantes do Mercado Comum Europeu (BELASSA apud ROLIM, 1994, p. 60-61)

É importante ressaltar que muitos dos argumentos de Belassa sobre o papel do Estado na integração dos países subdesenvolvidos, guardaram estreita relação com as formulações cepalinas sobre as estratégias de desenvolvimento para a América Latina, e ainda hoje estão presentes nas justificativas para a composição do Mercosul, ou mesmo da construção de um bloco regional envolvendo todos os países sul-americanos, conforme veremos mais adiante. Atualmente, diferentes autores apresentam abordagens críticas acerca dos processos de integração econômica, vista por eles enquanto uma forma de dominação dos países ricos sobre os pobres. Essa é a visão de Bourdieu (2001), que toma como exemplo o processo envolvendo as economias dos Estados Unidos e do Canadá. Segundo ele, tal integração deixou o Canadá sem qualquer capacidade de defesa diante da potência americana. Para alguns dos críticos da integração econômica, tal processo tem resultado no enfraquecimento dos Estados Nacionais diante do grande capital internacional: Por sua independência de movimento e irrestrita liberdade para perseguir seus objetivos, as finanças, comércio e indústria de informação globais dependem da fragmentação política - do morcellement (retalhamento) - do cenário mundial. Podese dizer que todos têm interesse adquiridos nos "Estados fracos" - isto é, nos Estados que são fracos mas mesmo assim continuam sendo Estados (BAUMAN, 1999, p. 75 – grifo do autor)

Esse mesmo pensamento é defendido por Bourdieu quando afirma que: (...) As políticas ditas de "ajuste estrutural" visam garantir a integração dentro da subordinação das economias dominadas; isso, reduzindo o papel de todos os mecanismos ditos "artificiais" e "arbitrários" da regulação política da economia associados ao Estado social, única instância capaz de se opor às empresas transnacionais e às instituições financeiras internacionais, em benefício do mercado dito livre, por um conjunto de medidas convergentes de desregulamentação e privatização, tais como a abolição de todas as proteções do mercado doméstico e o relaxamento dos controles impostos aos investimentos estrangeiros (em nome do postulado darwinista segundo o qual a exposição à concorrência tornará as empresas mais eficientes) (BOURDIEU, 2001, p. 107)

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Outros problemas são apontados como decorrentes do processo de integração econômica, como a perda de soberania por parte dos Estados Nacionais (BAUMAN, 1999), o deslocamento do poder de decisão para as instâncias internacionais que se tornam dessa maneira "governos invisíveis" (BOURDIEU, 2001; HELD, McGREW, 2001) e a concentração de capital, de poder e de liberdade de decisão por parte das nações do Primeiro Mundo e de suas empresas. Essa perda de soberania está relacionada à incapacidade de os Estados nacionais decidirem sobre questões centrais de interesse dos países, como a de definir suas próprias diretrizes para o desenvolvimento que se pretende alcançar: (...) As instâncias internacionais, sem exercer todas as funções geralmente atribuídas aos Estados nacionais (como as que tocam à proteção social), governam de maneira invisível os governos locais que, cada vez mais reduzidos à gestão dos negócios secundários, constituem um véu de ilusão política próprio a mascarar os verdadeiros lugares de decisão (BOURDIEU, 2001, p. 108)

Pensamento semelhante é expresso por Bauman: O tripé da soberania foi abalado nos três pés. Claro, a perna econômica foi a mais afetada. Já incapazes de se manter se guiados apenas pelos interesses politicamente articulados da população do reino soberano, as nações-estados tornam-se cada vez mais executoras e plenipotenciárias de forças que não esperam controlar politicamente. (...) Os Estados não têm recursos suficientes nem liberdade de manobra para suportar a pressão – pela simples razão de que “alguns minutos bastam para que empresas e até Estados entrem em colapso” (BAUMAN, 1999, p. 73)

De acordo com Baumam, a globalização reduz os Estados nacionais ao cumprimento de suas necessidades básicas, ou seja, seu poder de repressão. Por conta disso, estes tornam-se meros instrumentos de garantia da segurança das mega-empresas: Devido à total e inexorável disseminação das regras de livre mercado e, sobretudo, ao livre movimento do capital e das finanças, a “economia” é progressivamente isentada do controle político; com efeito, o significado primordial do termo ‘economia’ é o de ‘área não política’. O que quer que restou da política, espera-se deve ser tratado pelo Estado, como nos bons velhos tempos – mas o Estado não deve tocar em coisa alguma relacionada à vida econômica: qualquer tentativa nesse sentido enfrentaria imediata e furiosa punição dos mercados mundiais” (BAUMAN, 1999, p. 74)

Já para o norte-americano Petras (1999), a globalização é um "produto de políticas estatais ligadas a instituições econômicas internacionais". Até aí nada de diferente de outros autores que ressaltam o papel dos Estados Nacionais nesse processo. Entretanto, o que 14


diferencia sua análise da de outros é o fato de compreender a globalização como um "fenômeno cíclico", vinculado a capacidade das "forças capitalistas" de imporem derrotas às classes trabalhadoras em cada país. Ou seja, o sucesso das forças capitalistas ao impor seus interesses significa um período de ascensão da globalização. Por outro lado, o revigoramento de "movimentos revolucionários nacionais e sociais" define um período de declínio. Para Petras, a luta de classes é um elemento da mais alta importância para a perspectiva de cada período – se de ascensão ou de declínio: Em suma, a "globalização" não é um fenômeno novo, como também não é a culminação da história. Historicamente, tem seu ciclo de ascensão, consolidação e decadência. Para compreender a “globalização”, deve-se vê-la como uma conseqüência do processo sociopolítico. Isso requer uma análise de seus agentes sociais (...) (PETRAS, 1999, p. 29)

Para Held e McGrew (2001), os céticos13 destacam em suas formulações as distintas formas de relação dos Estados nacionais com as dinâmicas do mercado internacional, diferenciando-se, substancialmente, das premissas de Bourdier e Bauman sobre a submissão dos Estados às instituições internacionais: (...) Em vez de conceber os governos nacionais como simplesmente reagindo a forças econômicas externas, a visão dos céticos reconhece seu papel crucial (especialmente o dos mais poderosos) na criação das condições nacionais e internacionais necessárias à própria existência de mercados globais. Vistos por esse prisma, os Estados tanto são arquitetos quanto súditos da economia mundial. Como súditos, porém, os Estados não reagem de maneira idêntica à dinâmica dos mercados mundiais ou dos choques econômicos externos. Embora os mercados financeiros internacionais e a competição internacional possam impor tipos semelhantes de disciplina econômica a todos os governos, isso não prefigura necessariamente uma convergência das estratégias ou políticas econômicas nacionais. Essas pressões são mediadas por estruturas internas e arranjos institucionais que produzem enormes variações na capacidade de reação dos governos nacionais (HELD, McGREW, 2001, p. 58)

Não obstante o caráter diametralmente oposto, presente nas análises dos defensores e dos críticos do processo de integração econômica sobre as vantagens e os problemas

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Para Held e McGrew os céticos se caracterizam, entre outras coisas, por conceberem a globalização contemporânea “como uma construção primordialmente ideológica ou mítica de valor explicativo marginal” (HELD, McGREW, 2001, p. 9). Esses autores reconhecem a existência de diversas visões sobre o processo de globalização, e que os “globalistas” e os “céticos” representam apenas algumas dessas interpretações da realidade. Por fim, destacam que “globalistas” e “céticos” apresentados no livro são construções de um tipo ideal, que são “recursos heurísticos que ordenam um campo de investigação e identificam as áreas primárias de consenso e dissenção. Elas ajudam a esclarecer as linhas-mestras de argumentação e, com isso, a esclarecer os pontos de discordâncias fundamentais (...)” (idem. p. 9-10) 15


provocados pelo mesmo, um ponto comum parece aproximar ambos os segmentos: a constituição de blocos regionais e a globalização não devem ser vistas como antagônicas. De acordo com Held e McGrew (2001, p. 33), os globalistas não compreendem o regionalismo como uma "barreira à globalização política contemporânea", mas, ao contrário, "tem sido basicamente compatível com ela". Já para Bauman (1999, p. 77), "a integração e a divisão, a globalização e a territorialização são processos mutuamente complementares”. Pensamento semelhante é expresso por Devlin e Esteveordal (2001), membros do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, quando afirmam que "las fuerzas centrífugas de la globalización económica en los años noventa actuaban al mismo tiempo que las fuerzas centripetas de la regionalización". Há ainda autores que defendem o ponto de vista de que a constituição de blocos geoeconômicos regionais representam a estratégia dos Estados Nacionais para inserirem suas economias em melhores condições na disputa global dos mercados (MAGNOLI, 1997). Segundo Magnoli, as tendências: integradoras e globalizadoras da economia contemporânea colocam novos desafios para os Estados Nacionais. A resposta a tais desafios evidencia não uma suposta fraqueza dos Estados mas, pelo contrário, sua força e vitalidade. Exercendo a soberania, o Estado-Nação posiciona-se no interior da economia mundial e escolhe políticas capazes de moldar o próprio processo de globalização (MAGNOLI, 1997, p. 41)

Esse raciocínio é compartilhado pelos céticos (HELD, McGREW, 2001). Para estes a interdependência econômica não reduz necessariamente a autonomia ou a soberania nacionais; pelo contrário, pode até mesmo fornecer maiores "oportunidades de crescimento econômico nacional sustentado" do qual os Tigres Asiáticos são exemplos destacados. Estamos diante, portanto, de uma perspectiva teórica que aponta os Estados Nacionais enquanto sujeitos ativos do processo de globalização e reais protagonistas das iniciativas de integração econômica. Magnoli (1997) chega a afirmar que os Estados podem desfazer a globalização da mesma forma que a fazem hoje. O papel dos Estados Nacionais no delineamento da nova ordem mundial é evidenciado no enfoque dado pelos Estados Unidos à integração econômica do continente americano. De acordo com a política externa do governo Bush, além dos objetivos comerciais de interesse das mega-empresas norte-americanas, essa integração também se constitui num dos pilares da estratégia estadunidense de combate ao terror, portanto, possui um caráter militar da mais alta relevância àquele país. Ainda mais nos dias de hoje em que a administração Bush implementa 16


uma mobilização planetária dos diversos governos nacionais contra os segmentos considerados terroristas. Essa perspectiva se apresentou de forma nítida na declaração do embaixador Lino Gutierrez durante a abertura da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA. Naquela oportunidade – pouco depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas de Nova York – o embaixador norte-americano afirmou categoricamente que o comércio livre e a estabilidade econômica do continente compunham um dos eixos estratégicos da ação dos Estados Unidos na região: Em particular, quero destacar nosso firme compromisso com o comércio mais livre e o crescimento econômico. Como assinalou o representante do Comércio dos Estados Unidos, Bob Zoolick, “os inimigos de antes aprenderam que a América do Norte é o arsenal da democracia; os inimigos de hoje aprendem que a América do Norte é o motor econômico da liberdade, da oportunidade e do desenvolvimento”. (...) O presidente reconheceu que a integração econômica do hemisfério é um momento importante da futura prosperidade dos Estados Unidos e do bem-estar do hemisfério (GUTIERREZ, [200-?], p. 17 – grifo nosso).

Ou seja, a integração econômica é vista pelo governo estadunidense como boa para os negócios, mas também como essencial para manter a hegemonia política, econômica, militar e cultural daquele país no planeta e para assegurar a sua própria segurança. Nesse sentido, o comércio, as armas, a ideologia e as finanças são os meios disponibilizados pela única potência planetária para fazer valer seus interesses não somente na América, mas em escala global14. Por outro lado, há os que como Emir Sader vêem a integração entre os países latinoamericanos – e destes com outros do Cone Sul – como uma das alternativas para fazer frente aos interesses das nações capitalistas mais poderosas e de suas empresas. Tal orientação destaca a dimensão política desse processo, o que não significa que haja desconsideração à relevância da dimensão econômica. Também nessa perspectiva de análise sobre a integração, os Estados Nacionais aparecem como sujeitos ativos. Contudo, com o claro propósito de alterar estruturalmente as relações atuais entre os países:

14 A Guerra do Golfo no início dos anos 90 consolidou a nova fase da estratégia de guerra estadunidense no planeta, posto que se baseou na articulação de três fatores fundamentais: uso intensivo de tecnologia, capacidade excepcional de deslocamento e de agrupamento de tropas e utilização de soldados profissionais adequados para diferentes tipos de arena de luta num mesmo conflito. A Guerra do Golfo em 1990, assim como as recentes invasões de tropas norte-americanas no Afeganistão e no Iraque, atendem a interesses geopolíticos e geoeconômicos substanciais para os Estados Unidos, que envolvem o controle da segunda maior reserva de

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Uma nova forma de inserção internacional é indispensável para todos os países que desejam romper com o neoliberalismo e construir um outro tipo de sociedade, fundado nos direitos de todos e na justiça social. A inserção subordinada ou soberana é assim condição de uma política soberana e fundada nos direitos sociais. Os países latino-americanos deveriam, antes de estabelecer qualquer outra aliança internacional, integrar-se entre si, para dispor de força própria, baseada na identidade de seus interesses. Deveriam, ao mesmo tempo, trabalhar para a formação de uma frente dos países do sul do mundo – todos excluídos dos três mega-mercados mundiais -, antes de tudo com aqueles que têm mais peso, como a China, a Índia, a África do Sul, o Irã, para estabelecer vínculos comuns, intercâmbios e uma plataforma de reorganização da ordem econômica e política mundial (SADER, 2002, p. 41)

É inegável que as medidas adotadas pelos governos dos países capitalistas periféricos, principalmente após a década de 80, como a abertura indiscriminada de suas economias à concorrência externa, privatizações de setores estratégicos, dolarização da moeda nacional (como no caso do Equador), crescentes déficits na balança comercial e outros problemas, significaram aumento substancial da vulnerabilidade dessas nações, ainda mais porque tais medidas contribuíram para agravar o já terrível quadro de desigualdades sociais. Todavia, todos esses países sofreram as conseqüências desse processo da mesma maneira? É possível enquadrar nessa análise países tão díspares como Brasil e Haiti, por exemplo? Se, de um lado, as condições impostas pelas “instituições internacionais”, de que fala Bourdieu, aos países capitalistas periféricos reforçam a vulnerabilidade destes, por outro, não se pode desconsiderar que a materialização dessas diretrizes se dá no plano interno de cada nação; portanto, dependem da aceitação e do compromisso dos governos e de seus aliados a tais políticas. Ou seja, não se pode falar de uma relação mecânica de submissão do nacional ao externo. O recente fracasso das negociações promovidas pela Organização Mundial do Comércio – OMC, em Cancun, cujos países africanos e latino-americanos tiveram papel relevante para que tal fato ocorresse, demonstra que a submissão ou a insubmissão às condicionalidades das “instituições internacionais” depende em grande parte da orientação política hegemônica em cada país num determinado momento histórico. Como nos diz Santos: (...) as fronteiras mudaram de significação, mas nunca estiveram tão vivas, na medida em que o próprio exercício das atividades globalizadas não prescinde de uma ação governamental capaz de torná-las efetivas dentro de um território. A humanidade desterritorializada é apenas um mito (SANTOS, 2000, p. 42)

Seria correto dizer que os Estados Nacionais são meros administradores dos negócios dos “novos senhores do mundo”, no caso as mega-empresas, como nos diz Baumann? Esse petróleo do mundo (no caso do Iraque); acesso e exploração das reservas existentes em países do antigo bloco 18


tipo de afirmação não acaba reforçando as próprias teses dos grupos sociais que advogam o “Estado mínimo”, justamente as teses que autores como Baumann pretendem combater? Partindo de uma premissa completamente diferente, Fiori questiona aqueles que falam da morte da soberania dos Estados como resultado da globalização. Como fazer tal afirmação, se foi no século XX que os “Estados territoriais” se multiplicaram e se transformaram num fenômeno global? – indaga ele. Do mesmo modo que as reformas estruturais adotadas e implementadas pelos diversos países não repercutiram da mesma maneira em todos eles, posto que os contextos políticos, econômicos e sócio-culturais eram e são diferentes (nível de organização da sociedade civil, estrutura produtiva e outras), também o exercício da soberania por parte dos Estados nacionais não é algo que independa das relações de poder presentes na atualidade e que foram constituídas historicamente. Em outras palavras, a soberania não é exercida da mesma forma por todos os estados; nem todos eles precisam ser necessariamente fracos para atender aos interesses das grandes corporações. A soberania é, portanto, um dado histórico tal como nos diz Fiori: Quando se fala de soberania, quase todos pensam num poder supremo, absoluto, perpétuo, indivisível e inalienável, que se manteve igual através dos tempos, uma jurisdição política territorial reconhecida pelos demais estados e pela sua própria população. Essa visão quase “metafísica” da soberania está na cabeça das pessoas que anunciam o fim dos estados, porque eles teriam perdido seu poder frente às grandes corporações multinacionais e aos agentes dos mercados financeiros globais. O que a história ensina, entretanto, é que a soberania nunca foi um poder absoluto, e sempre foi objeto de conflitos e negociações, que redefiniram seu significado e extensão várias vezes através do tempo e dos espaços geopolíticos mundiais (FIORI, 2001, p. 66)

Desenvolver reflexão acerca da integração sul-americana, levando em consideração diferentes perspectivas teóricas como as expostas aqui, é um grande desafio intelectual. Isto porque a implementação dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento e da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura da América do Sul parece conter elementos que servem para comprovar os argumentos dos diferentes autores aqui apresentados e seus enfoques. Não é possível desconhecer, por exemplo, que a abertura indiscriminada das economias nacionais, a desregulamentação, a privatização de empresas públicas, a liberdade de movimentação do capital financeiro e o peso crescente das dívidas externa e interna, entre outras questões, limitam enormemente a capacidade de os Estados elaborarem e promoverem

soviético, e o seu transporte pelo território do Afeganistão, entre outras questões.

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políticas públicas voltadas ao desenvolvimento nacional, de combate às desigualdades, entre outras. Por outro lado, a integração econômica que se pretende alcançar na América do Sul conta com o engajamento decisivo dos diversos Estados Nacionais, com a liderança do Brasil, visando, entre outros objetivos, alcançar melhor posição nas negociações multilaterais ora em andamento, bem como ampliar o escoamento dos produtos da região para o mercado internacional. O que, sem dúvida alguma, atende aos interesses de grandes grupos econômicos exportadores, como o setor de agronegócios. Além disso, a integração econômica está associada aos processos de reformas estruturais em execução em todos os países sul-americanos; reformas estas cobradas por instituições financeiras multilaterais, empresas multinacionais e o grupo dos sete países mais ricos do mundo – o verdadeiro centro do poder para alguns autores – incluindo, evidentemente, os mais variados segmentos sociais articulados à dinâmica da globalização capitalista presentes no interior dos países sul-americanos. A integração da infra-estrutura física da América do Sul, já em pleno andamento no sub-continente, consiste num audacioso plano, cuja principal função é constituir-se num dos pilares da almejada integração econômica dos países dessa região; estratégia que conta com a participação ativa dos respectivos governos nacionais. O capítulo seguinte, portanto, estará voltado ao debate sobre a IIRSA, no intuito de tornar mais claro do que trata realmente essa iniciativa, bem como de tentar compreender o porquê de tal estratégia na atualidade, a partir dos argumentos de alguns dos principais atores envolvidos com a implementação da mesma.

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II. Integração da infra-estrutura física: a grande estratégia do momento A integração regional abarca diversas dimensões das relações entre os países que vão do econômico ao cultural, da política aos aspectos socio-ambientais. Portanto, é um tema amplo e complexo, posto que envolve as diversas faces da intervenção dos Estados Nacionais e de suas respectivas sociedades, e está impregnado dos diferentes interesses dos atores sociais em disputa no interior de cada país e no plano externo. Entretanto, há um ponto de partida comum nas declarações e nos acordos promovidos pelos governos sul-americanos, nas estratégias para alocação de recursos por parte das Instituições Financeiras Multilaterais - IFMs e na pressão exercida pelos grandes grupos empresariais: a integração física dos países é uma das condições primordiais para alcançar a integração regional nas suas diferentes dimensões. Esse é o pensamento predominante nos documentos oficiais e largamente veiculado pelos meios de comunicação da região. Durante a XLIII Reunião Anual do BID, realizada em março de 2002 na cidade de Fortaleza, o sr. Enrique V. Iglesias, presidente do banco, afirmou que "la integración física, concretada mediante obras de infraestructura para unir a países vecinos, es uma pieza clave para construir la integración de América Latina" (BID, 2002). Ainda de acordo com Iglesias, a integração física foi vista durante muito tempo como um tema acessório durante as negociações dos acordos comerciais, porém, "hoy nos damos cuenta, a medida que profundizamos estos procesos, de que el tema de la integración física es fundamental" (BID, 2002). Nesse mesmo evento, o então ministro do Planejamento do governo Fernando Henrique Cardoso, sr. Martus Tavares, afirmou que "los temas macroeconómicos son absolutamente indispensables, pero no resumen todo. El tema de la integración física igualmente importante para que nuestros pueblos concretem en los hechos la integración comercial que tanto deseamos" (BID, 2002). Já no ano passado, durante um seminário promovido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e pela Corporação Andina de Fomento – CAF, o sr. Carlos Lessa, presidente do BNDES, afirmou que infra-estrutura “é a locomotiva do desenvolvimento econômico e social”. E, num tom de lamento sobre a pouca integração sul-americana, afirmou: (...) toda vez que olho o mapa do Novo Mundo, sempre fico levemente desconfortável quando percebo o que aconteceu na parte norte do continente em relação à parte sul. Há 200 anos que a parte norte do Novo Mundo está ligada de 21


costa a costa; há 200 anos existem sinergias de imensa importância entre os lados do Novo Mundo banhados pelos dois maiores oceanos da Terra. Nós estamos chegando ao terceiro milênio e não completamos essas ligações fundamentais. Na verdade, o nosso continente ainda padece de uma histórica extroversão e, para que ninguém ponha o boné, eu acuso o Brasil disto que é olhar muito para o oceano, olhando relativamente pouco para o seu interior (BNDES, 2003)

Tal como Lessa, o sr. Henrique Garcia, presidente da CAF, posicionou-se incisivamente a favor da integração regional como meio de ampliar a competitividade dos países da América do Sul: Vemos que um obstáculo fundamental para a inserção efetiva da região é, precisamente, a baixa competitividade. Assim, a infra-estrutura e a logística se convertem nos elementos fundamentais nesse processo de transformação e de busca pela competitividade. Evidentemente que a infra-estrutura não deve ser vista como um fim em si, mas como meio – como Carlos Lessa, com toda clareza, explicou (BNDES, 2003)

De acordo com os pontos de vista expressos por Lessa e Garcia, a integração da infraestrutura contribui para a construção de sinergias e, consequentemente, para a ampliação da competitividade sul-americana no mercado internacional. Todavia, a visão predominante presente nos relatórios e documentos oficiais é a de que, se de um lado a América do Sul possui enormes potencialidades, de outro possui também enormes gargalos derivados do ambiente natural existente na região - a formação geológica e a cobertura vegetal, entre outras coisas -, da parca infra-estrutura e das grandes distâncias entre os lugares. Durante o seminário promovido pelo BNDES e a CAF, Lessa lançou uma frase de efeito que resume bem o pensamento presente entre os setores envolvidos na implementação de políticas e de projetos voltados à integração da infra-estrutura sul-americana: “A cordilheira dos Andes é certamente uma beleza, mas é um terrível problema de engenharia” (BNDES, 2003). A América do Sul é vista, portanto, como um continente fragmentado em grandes blocos, por conta dos obstáculos naturais existentes que precisam ser integrados a fim de garantir o desenvolvimento da região, conforme demonstra a figura a seguir:

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Figura 1: As “barreiras” territoriais sul-americanas

Fonte: http://www.pucp.edu.pe/invest/iee/iee/actividades/activ2003/seminsub/ponencias/Lunes2029/1_iirsa.pdf

O debate sobre a integração da infra-estrutura ganhou grande destaque nos últimos anos, principalmente após o ano 2.000 quando na reunião de presidentes de países da América do Sul, ocorrida nos dias 31 de agosto e 1º de setembro daquele ano, em Brasília, o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, a pedido do governo brasileiro, apresentou a proposta “Plano de Ação para a Integração da Infra-estrutura da América do Sul”. Segundo os autores, o referido plano baseava-se nos seguintes princípios básicos (BID, 2000): 1. Visão integral da infra-estrutura (física, social, ambiental e informacional); 2. Enquadramento dos projetos dentro de um planejamento estratégico, organizado a partir da identificação dos eixos de integração e desenvolvimentos regionais no continente sulamericano; 3. Reforma e atualização dos sistemas normativos e instituições que regulamentam o uso das infra-estruturas nacionais;

23


4. Fortalecimento da capacidade dos Estados na formulação de políticas, planos e quadros normativos; 5. Harmonização das políticas, planos e quadros normativos e institucionais entre os Estados; 6. Valorização da dimensão ambiental e social dos projetos; 7. Melhoria da qualidade de vida e das oportunidades das populações locais a partir dos projetos de integração regional; 8. Incorporação de mecanismos de participação e de consulta das comunidades envolvidas; 9. Desenvolvimento de novos mecanismos regionais para a programação, execução e gestão de projetos de integração física; 10. Otimização do uso das fontes de financiamento desenvolvendo estratégias comuns. Os princípios básicos definidos no referido plano demonstram o quanto é abrangente a estratégia de integração da infra-estrutura da América do Sul, não se resumindo à execução de projetos físicos, mas envolvendo também a realização de mudanças nas legislações, normas e regulamentos nacionais, a fim de facilitar o intercâmbio comercial entre os países; inclui ainda a desburocratização de algumas áreas, como o comércio exterior, para que sejam facilitadas a circulação de mercadorias e a reforma do Estado, entre outras coisas. Além disso, busca-se planejar e executar ações coordenadas que potencializem a utilização de recursos financeiros e humanos. Por isso, um dos preceitos básicos do acompanhamento do plano de ação é “evitar a criação de novas instituições, aproveitando os recursos humanos e financeiros de instituições nacionais, regionais e multilaterais já existentes” (BID, 2000). Em relação à integração da infra-estrutura física, o plano de ação definiu as áreas de transporte, energia e telecomunicações como prioritárias das ações do que se denominou Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura da América do Sul – IIRSA, a partir da constituição de eixos de integração regionais – questão que será abordada mais adiante. O referido plano também apresentou uma proposta de estrutura para articular as ações das diversas instituições envolvidas na elaboração e implementação da IIRSA, estrutura esta composta de: •

Um Comitê de Direção Executiva (CDE) “integrado por representantes de alto nível designados pelos governos da América do Sul, pertencentes às entidades que os respectivos governos considerem pertinentes”;

Grupos Técnicos Executivos (GTE) “integrados por funcionários e especialistas designados pelos governos da América do Sul, pertencentes às entidades que os 24


respectivos governos considerem pertinentes”. Para cada eixo de integração seria constituído um GTE de caráter temporário voltado à análise de temas específicos, “tais como harmonização de marcos normativos, métodos para a identificação integrada de projetos, etc.”; •

Um Comitê de Coordenação Técnica (CCT) integrado por representantes do BID, da CAF e do Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA), cujo objetivo principal seria o de ajudar ativamente os governos na implantação e monitoramento “do desenvolvimento do Plano de Ação em áreas como a de identificação e de avaliação integrada de projetos e a de mobilização dos recursos financeiros para o desenvolvimento dos mesmos”. Em dezembro de 2000, o Banco Interamericano de Desenvolvimento apresentou um

documento intitulado Um Nuevo Impulso a la Integración de la Infraestructura Regional en América del Sur (BID, 2000a) que, entre outros aspectos, aponta os entraves os quais, segundo a instituição, inibem o comércio entre os países da região, bem como indica alternativas para a sua dinamização. A estratégia geral do documento reproduz as análises e os termos das negociações mantidas pelos presidentes na reunião de Brasília, no sentido de garantir a competitividade da economia dos países sul-americanos na disputa comercial internacional. Segundo o documento apresentado em dezembro de 2.000, a visão estratégica de médio e longo prazos deveria, de um lado, garantir a participação cada vez maior da América do Sul no mercado internacional de bens, capital e de conhecimento; de outro, deveria ter como meta uma região “socialmente estable, com crescimiento económico social y ambientalmente sostenible, comprometida en la lucha para reducir la pobreza y para aumentar el acceso a oportunidades de educación y empléo” (BID, 2000a, p. 52). Desse modo, a constituição de um espaço econômico integrado deveria orientar-se por uma nova concepção que os documentos do BID, em especial, denominam como regionalismo aberto ou novo regionalismo (BID, 2000; BID, 2000a; BID, 2002a; BID, 2003; IGLESIAS: 1997; DEVLIN, ESTEVADEORDAL, 2002). Evidentemente, se há um novo regionalismo, é porque em algum momento houve o que se poderia chamar de antigo regionalismo. Mas, quais as características de um e de outro? Segundo Devlin e Estevadeordal (2002), no “antigo regionalismo” o objetivo central dos acordos comerciais era o de apoiar o modelo de desenvolvimento da Industrialização Substitutiva de Importações – ISI, que impunha elevados índices de proteção nacional e 25


estimulava a intervenção direta do Estado nos mercados. O modelo de desenvolvimento, portanto, era orientado para o mercado interno. Dessa forma, a adoção de medidas voltadas ao estabelecimento de vínculos comerciais com os países industrializados não se constituía em assunto central da política latino-americana. Ainda de acordo com esses autores, esse quadro muda radicalmente a partir de 1986 com a realização dos acordos comerciais entre Estados Unidos e Canadá. Isto porque os referidos acordos introduziram temas inovadores em relação ao sistema de comércio multilateral, transcendendo os assuntos referentes a acesso a mercados “hasta llegar a las áreas de politicas de soberania tradicionales que se relacionan com el modo en que las sociedades regulan sus economías nacionales” (p. 6). Por conseguinte, as novas modalidades de acordos comerciais – que mais tarde resultaram na constituição da Área de Livre Comércio da América do Norte – NAFTA, influenciaram decisivamente o panorama das negociações bilaterais e multilaterais nos quatro cantos do planeta. Além disso, os acordos firmados com o Canadá demonstraram a mudança de enfoque dos EUA em relação às negociações comerciais do período, na medida em que estes optaram pelo estabelecimento de acordos bilaterais, como a forma mais eficiente de fazer valer sua agenda e seus interesses. O novo regionalismo dos anos 90 é fruto desse processo, tendo os acordos de 1986 entre EUA e Canadá como referência básica. Esse novo regionalismo é considerado parte integrante das amplas reformas estruturais que se tem produzido na América Latina (BID, 2000;

BID,

2000a;

BID,

2002a;

BID,

2003;

IGLESIAS,

1997;

DEVLIN,

ESTEVADEORDAL, 2002), cujas características estratégicas centrais são: (a) A abertura para os mercados mundiais; (b) A promoção da iniciativa privada; (c) A retirada do Estado da atividade econômica direta. Com base nos documentos elaborados pelo BID, por Iglesias, Devlin e Estevadeordal é possível apresentar, de forma sintética, as principais diferenças destacadas por eles entre o novo e o antigo regionalismo: •

No novo regionalismo não há maiores restrições por parte dos países em desenvolvimento à entrada de investimentos estrangeiros diretos provenientes das nações industrizalizadas;

Há um maior avanço do comércio intrarregional (entre os continentes);

Do ponto de vista geopolítico, há maior exigência sobre os diversos países para que tenham participação estratégica efetiva nos foros hemisféricos e em escala mundial, bem como para que estabeleçam mecanismos de maior cooperação entre os mesmos 26


(negociação em bloco, por exemplo). Além disso, a integração e o comércio regional são considerados elementos de grande relevância para a consolidação da democracia e estabelecimento da paz nas fronteiras; •

O estabelecimento de acordos comerciais de vinculação recíproca, entre os países da América Latina com os EUA e com outras nações industrializadas, seria impensável no antigo regionalismo;

Novos temas e bens são incluídos nas negociações entre os países;

Arquitetura institucional reduzida para a articulação das ações e dos recursos necessários;

A integração regional é considerada o terceiro nível de um processo mais amplo, cujos níveis anteriores foram a liberalização unilateral (redução substancial das tarifas externas) e liberalização multilateral (Rodada do Uruguai e criação da Organização Mundial do Comércio – OMC);

O novo regionalismo é dirigido pelo e para o mercado. Tal integração baseada no novo regionalismo é compreendida, portanto, enquanto uma

nova etapa para completar e consolidar as reformas estruturais em andamento nos diversos países do continente (BID, 2000a), buscando ampliar a participação da iniciativa privada em todas as atividades econômicas, inclusive naquelas em que o Estado é o principal agente e nas quais é considerado ineficiente na provisão dos serviços. Daí que o papel do Estado é repensado no intuito de que ele fique restrito às ações de regulação, planificação e financiamento da infra-estrutura e seus serviços, cabendo a ele também a tarefa de continuar com intervenções para viabilizar iniciativas nacionais e regionais, "cuyos dividendos económicos e sociales de largo plazo no son suficientemente atractivos a inversores financieros privados" (BID, 2000a, p. 32-33). Ou seja, as áreas que não oferecem condições vantajosas para a obtenção de lucros à iniciativa privada deverão ser atendidas pelas ações do Estado até que as mesmas tornem-se atraentes: Con respecto a la planificación, su necessidad parece imprescindible en aquellos sectores donde existen notorias “fallas de mercado”, tales como externalidades, economías de escala e indivisibilidades, que dificultan las respuestas de mercado. Estas “fallas” hacen aconsejable la planificación estatal, pero en un sentido indicativo. Este nuevo escenario puede entenderse como um cambio de paradigma respecto al rol del Estado en la planificación de la infraestructura en la región BID, 2000a, p. 17)

O novo regionalismo visa, portanto, atender as demandas do mercado; ou melhor dizendo, dos segmentos com capacidade de competir no mercado internacional. Isto significa 27


que nessa estratégia não há espaço para setores produtivos destituídos de poder de investimentos financeiros vultuosos, de lobbie sobre governos, de forte representação política nos parlamentos e perfeitamente afinados com a lógica globalizadora atual. Por conseguinte, os produtos a serem comercializados são aqueles do agronegócio e os dos setores industriais que são competitivos em outros países. Ocorre que a integração regional – na perspectiva do novo regionalismo – passa pela integração da infra-estrutura física do continente, como bem demonstra o Relatório Anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento: O aumento do comércio entre os países vizinhos após a formação dos acordos regionais faz crescer a demanda por uma integração maior da infra-estrutura. Na América Latina, sérios gargalos causados pelo maior volume de comércio precisam ser eliminados. As malhas rodoviárias – a principal modalidade de transporte de cargas – necessitam de grandes melhorias, bem como de manutenção. Muitos outros meios de transporte devem ser igualmente melhorados. Entretanto, até agora, a infraestrutura que liga os países em fase de integração de um modo geral não recebeu ainda melhoramentos suficientes. No centro da questão existe o problema das externalidades. Os projetos de infra-estrutura regional têm custos e benefícios que ultrapassam as fronteiras dos países. O trecho da estrada que se constrói a um lado da fronteira traz benefícios para o país vizinho. No contexto de um processo descentralizado de tomada de decisões, essas externalidades resultarão naturalmente numa provisão deficiente de infra-estrutura regional. A questão fundamental é como fazer para que esses projetos se concretizem, estabelecer formas de tomadas de decisões coordenadas, que internalizem as externalidades e, ao mesmo tempo, superem outros riscos políticos e normativos que possam surgir devido o caráter multinacional dos projetos. Os governos enfrentarão esse desafio. As 12 nações da América do Sul, com a Iniciativa de Integração da Infra-estrutura da América do Sul (IIRSA), e o México e a América Central, por meio do Plano Puebla-Panamá (PPP), lançaram iniciativas intergovernamentais sem precedentes, com apoio de organizações regionais, para atacar o problema da coordenação da infra-estrutura regional (BID, 2002a, p. 10 - grifo nosso)

A IIRSA é um ambicioso plano baseado em sete processos setoriais e dez eixos de integração, que buscam integrar todo o sistema de transporte (fluvial, marítimo, rodoviário e ferroviário), conectando a América do Sul aos mercados de todo o planeta (BID: 2003a). A IIRSA também "contempla mejorar los sistemas regulatorios de los sectores de energía y telecomunicaciones,

los

mercados

de

servicios

logísticos

como

fletes,

seguros,

almacenamiento y los trámites de permisos y licencias" (BID, 2002). Com relação ao setor de energia, o objetivo é a formação de mercados regionais e avançar para um sistema integrado de livre mercado. Adiante está a relação dos processos setoriais que fazem parte da IIRSA, bem como as justificativas para a escolha de cada um deles. Tais justificativas demonstram de modo claro os principais objetivos que se espera alcançar com a implementação desses processos: 28


reduzir os custos de transporte;

aumentar a competitividade econômica dos países sul-americanos;

dinamizar o comércio intra e extraregional;

ampliar a participação da iniciativa privada nas economias nacionais e proteger juridicamente os seus investimentos;

redefinir o papel do Estado;

prover infra-estrutura. As justificativas apresentadas (BID, 2003a, p. 12-13) também demonstram a perfeita

sintonia entre a implementação dos processos setoriais e as reformas estruturais em andamento nos países sul-americanos, posto que correspondem a uma mesma matriz estratégica, apoiada e financiada por IFMs como o BID: Quadro 1: processos setoriais integrantes da IIRSA PROCESSOS

JUSTIFICATIVA

SETORIAIS Sistemas operativos “la mayor parte del comercio extrarregional y buena parte del transporte de transporte intrarregional va a realizarse através del transporte marítimo. La reducción de marítimo costos, la mayor frecuencia y la mayor confiabilidad serán claves para la competitividad de la región. En un mercado en el que los principales actores son privados, las normas reguladoras que adopten los países pueden facilitar esos objetivos, evitando la separación entre tráficos intra y extrarregionales que puede estar impidiendo un uso eficiente de los equipos” Sistemas operativos “este modo de transporte tendrá una incidencia creciente en el transporte intra y de transporte aéreo extrarregional de cargas, y un rol decisivo en el transporte de pasajeros por negocios y turismo. Su objetivo es lograr la mayor cobertura y frecuencias, y menores precios, para cargas y pasajeros. La mejor articulación entre los servicios extrarregionales e intrarregionales – que dependen de las regulaciones que adopten los países – puede constituir la clave para hecrlo. Al igual que com el transporte marítimo, el “impulso” que gerenran los tráficos extrarregionales puede constituir una oportunidad para mejorar los servicios intrarregionales” Sistemas operativos “el tipo de comercio que se prevé requirirá en forma creciente las operaciones de transporte integradas, que combinem modos de transporte y empresas com una alta multimodal sincronización. Ello requiere no sólo la infraestructura adecuada, sino una sólida armazón jurídica y el desarrollo de operadores regionales” Facilitação do “estas acciones son claves para la movilidad de bienes y personas en la región. tráfego de fronteira Deben tender a permitir operaciones perfectas (seamless), logrando estándares similares a los que se han obtenido en otras regiones del mundo” Tecnologias da “se deben proveer servicios de alta calidad, que constituyen una clave para la informação e das competitividad y generan numerosas externalidades al mejorar la conectitividad comunicações de áreas marginales, por lo que se va a propiciar el desarrollo de regulaciones, infraestructura y contenidos que faciliten el desarrollo económico y social, y promuevan la igualdad de oportunidades” Marcos normativos “el desarrollo de mercados energéticos regionales permiti optimizar el uso de los de mercados recursos y mejorar la calidad del suministro, favoreciendo también la protección 29


energéticos regionais

del medio ambiente. Deberian removerse los obstaculos para lograr esos mercados y aprovechar plenamente sus ventajas, ante cualquier escenario. Los beneficios de los mercados energéticos serán: optimizar el stock de capital; diminuir los custos marginales de largo plazo; mejorar la calidad y seguridad del suministro; reducir los impactos energéticos sobre el medio ambiente; e incrementar la dimensión de los mercados, atrayendo inversores privados” Instrumentos para o “la financiación de los proyectos seguramente requerirá de mecanismos financiamento de novedosos, más allá de las formas tradicionales de concessión. Ante la escassez projetos de de recursos públicos y los limites del endeudamiento, será crucial atraer capital integração física privado. La administración de los riesgos, com el apoyo de los Estados y los regional organismos mutilaterales, serán la clave para lograrlo, adquiriendo un rol singular las perspectivas crecientes de las associaciones público-privadas”

Já os eixos de integração definidos a partir das negociações envolvendo os países sulamericanos e o BID foram os seguintes: 1. Eixo Mercosul-Chile (São Paulo-Montevidéu-Buenos Aires-Santiago); 2. Eixo Andino (Caracas-Bogotá-Quito-Lima-La Paz); 3. Eixo Andino do Sul (do Norte ao Sul da Argentina); 4. Eixo da Hidrovia Paraná-Paraguai; 5. Eixo

de

Capricórnio

(Antofogasta/Chile-Jujuy/Argentina-Assunção/Paraguai-Porto

Alegre/Brasil); 6. Eixo do Escudo Guyanes (Venezuela-Brasil-Guiana-Suriname); 7. Eixo Multimodal do Amazonas (Brasil-Colômbia-Equador-Peru); 8. Eixo do Sul (Talcahuano-Concepción/Chile-Neuquen-Bahia Blanca/Argentina); 9. Eixo Peru-Brasil (Acre-Rondônia)-Bolívia; 10. Eixo Interoceânico Central (Brasil-Bolívia-Paraguai-Peru-Chile). Mas o que vem a ser os eixos de integração e desenvolvimento? Segundo o BID: El concepto de eje de integración e desarrollo intenta plasmar un enfoque de planeamiento más moderno e integral, en el cual la infraestructura no está aislada sino que forma parte de un conjunto de acciones en el territorio, vinculando la inversión física a la dimensión social y ambiental del desarrollo y propiciando el aprovechamiento de sinergia entre los diversos tipos de infraestructura (BID: 2000a)

Os eixos representam, portanto, a concentração de recursos para dotar de infraestrutura determinadas partes do território sul-americano, propiciando a sinergia entre as diversas modalidades de transporte e os sistemas de energia e de telecomunicações – a instalação de cabos de fibra ótica concomitantemente à implementação de túneis, redes de energia elétrica, ferrovia e outras, por exemplo. Como disse certa vez Eliezer Batista, homem forte da Companhia Vale do Rio Doce quando esta era estatal, e um dos maiores defensores 30


da estratégia agora materializada na IIRSA, “tudo fica mais barato quando se faz ao mesmo tempo” (DANTAS, CALDAS, 2003?). Os eixos buscam estimular o estabelecimento de cadeias produtivas e alavancar negócios nas áreas atendidas pelos diversos projetos de infra-estrutura. Por analogia pode-se dizer que a visão predominante é a da pedra lançada num lago, onde suas ondas se espalham a partir de um determinado ponto, atingindo amplos territórios no interior de cada país, interligando-os comercialmente com outras nações da América do Sul e mesmo de outros continentes. Com a implementação dos eixos de integração na América do Sul, o acesso do grande capital às imensas riquezas naturais e biológicas da região será facilitado de maneira nunca vista antes na história do continente, como se pode notar nesta figura: Figura 2: acesso aos recursos naturais sul-americanos

Fonte: Ricardo Buitrón http://www.accionecologica.org/

É evidente o esforço para acelerar a implementação dos projetos de infra-estrutura na Pan-Amazônia dada as imensas riquezas existentes nessa parte do continente e a importância estratégica da mesma para viabilizar a integração sul-americana com os mercados de outras regiões do planeta (BNDES, 2003) nos quatro sentidos (norte-sul-leste-oeste). Por conta disso, quatro dos dez eixos priorizados pela IIRSA serão implementados totalmente na Pan-

31


Amazônia. Abaixo serão apresentados alguns desses eixos, sem a pretensão de discuti-los exaustivamente, mas tão somente mostrar o redesenho que a IIRSA promoverá na região. O eixo multimodal do Amazonas, que articula projetos no Brasil, Colômbia, Equador e Peru possibilitará a integração Leste-Oeste sul-americana, conectando, dessa forma, os oceanos Atlântico e Pacífico através da Amazônia. Um dos projetos previstos nesse eixo é o Corredor Intermodal Tumaco-Puerto Asís-Belém do Pará “Un Camino Verde Hacia la Paz”, envolvendo os transportes fluvial (2.862 km no Brasil e 1.580 km na Colômbia) e 474 km de estradas e possibilitando a exploração somente no território colombiano de petróleo e gás natural, reservas auríferas e de metais básicos (como cobre e zinco), madeira, além de possibilitar a expansão do agronegócio e de outras atividades. Entre outros projetos, encontrase também o que integrará Tabatinga (Amazonas) até o porto peruano de Taipa. Figura 3: Eixo Multimodal do Amazonas

Fonte: http://www.iirsa.org/esp/ejes/amazonas.shtml

Já o eixo Peru-Brasil-Bolívia possibilitará a integração desde Porto Velho (Rondônia) até os portos peruanos de Maratani e Ilo, passando por Rio Branco (Acre), possibilitando, 32


dessa forma, mais um caminho em direção aos países da Ásia e da Oceania, bem como integrar-se-á ao eixo multimodal do Amazonas a partir da hidrovia Madeira-Amazonas, permitindo a circulação de produtos nos sentidos Leste-Oeste e em direção ao Norte através da BR-174. Além disso, tal eixo irá possibilitar, entre outras coisas, a implementação de vultuosos investimentos na Bolívia, principalmente no setor de energia elétrica. O eixo Peru-Brasil-Bolívia é de grande importância para os produtores de soja de Rondônia e do estado do Mato Grosso, principalmente. Figura 4: Peru – Brasil – Bolívia

Fonte: http://www.iirsa.org/esp/ejes/peru_brasil.shtml

Outro percurso para a integração já está se dando através da rodovia que liga Manaus (Amazonas) a Boa Vista (Roraima), a BR-174, e daí para os portos caribenhos da Venezuela, permitindo um amplo leque de opções de transações comerciais com os países das Américas Central e do Norte e do Caribe. Outra opção que está se conformando é a que liga Boa Vista, através da BR-401, até o município roraimense de Bonfim, estendendo-se ao porto marítimo de Georgetown, na Guiana, integrando transporte rodoviário e marítimo, expansão de uma linha de transmissão de energia elétrica e instalação de cabos de fibra ótica. Também estão

33


sendo realizados os estudos para interligar Georgetown até o Oiapoque (Amapá)15, que faz parte do eixo Venezuela-Brasil-Guiana-Suriname. Dessa forma, o extremo norte sulamericano estará completamente integrado não somente por via rodoviária, como também por via aérea, de Georgetown até Belém do Pará – o que vai demandar a modernização do aeroporto de Macapá (Amapá). O eixo Venezuela-Brasil-Guiana-Suriname é exemplar na concepção de integração de projetos de transporte, energia e comunicação. No que diz respeito à integração entre Brasil e Guiana, por exemplo, a estrada Bonfim–Georgetown está sendo projetada para receber tráfego pesado, assim como o porto da capital da Guiana será preparado para receber embarcações de grande calado – como navios da classe Panamax (FERREIRA, 2002)16. Já em relação as comunicações, prevê-se a instalação de cabos de fibra ótica (12 fibras) seguindo o traçado da BR-401, numa extensão aproximada de 425 km. Estes conectar-se-ão com os cabos América II e estender-se-ão até Manaus. Tal investimento está estimado em cerca de US$ 1 milhão somente os cabos. Com relação à geração de energia, prevê-se o fornecimento através da hidrelétrica de Turtubra, localizada no rio Mazurini, na Guiana. Estima-se a produção de 600 mw na primeira fase do projeto, podendo chegar até 1.500 mw no final. O investimento estimado é de US$ 1,25 bilhões. Por sua vez, a linha de transmissão Brasil-Guiana numa extensão aproximada de 680 km custará cerca de US$ 540 milhões. Com isso o Pólo Industrial de Boa Vista será abastecido pelas hidrelétricas de Turtubra (Guiana – 600 mw) e de Guri (Venezuela – 600 mw) estendendo-se as linhas de transmissão até Manaus. Figura 5: Investimentos Trecho Boa Vista (Brasil) – Georgetown (Guiana)

15

O trecho Oiapoque Macapá (Brasil) foi incorporado no Plano Plurianual do governo Lula. A estrada Bonfim-Georgetown custará cerca de US$ 300 milhões, enquanto o porto da capital guianense terá de receber investimentos na ordem de US$ 120 milhões. 34 16


Fonte: (FERREIRA, 2002) – http://www.investebrasil.org.br/

Segundo os projetistas, o portfólio de projetos de integração Brasil – Guiana irá dinamizar, no lado brasileiro, o pólo industrial de Boa Vista, onde já está sendo prevista a alocação de vultuosos empreendimentos até 2007 (FERREIRA, 2002): Quadro 2: Investimentos previstos para Roraima EMPREENDIMENTO Fábrica de celulose BrancoCel Smelter – Alumínio Frigorífico Processador de soja Torrefadora de café Curtume

INVESTIMENTO/DESTINO Investimento de US$ 300 milhões e exportação de US$ 110 milhões/ano Investimento de US$ 650 milhões, produção de 250.000 ton/ano e exportação de US$ 620 milhões/ano (mercado – EUA) Investimento de US$ 25 milhões, produção de 5.000 ton/ano (mercado – Europa e África) Investimento de US$ 85 milhões, produção de 300.000 ton/ano, numa área plantada de 100.000 há (mercado – Japão) Investimento de US$ 30 milhões, exportações no valor de US$ 12 milhões/ano (mercado – Japão e Sudeste Asiático) Investimento de US$ 85 milhões, produção de 20.000 m²/ano (mercado – Europa) 35


Os projetos previstos para o Pólo Industrial de Boa Vista dão a exata dimensão dos segmentos beneficiados pelos empreendimentos do respectivo eixo: o agronegócio e as indústrias eletrointensivas. Atividades econômicas voltadas fundamentalmente à exportação, sendo grandes consumidoras de recursos naturais, concentradoras de capital (terra, por exemplo) e que geram pouca quantidade de empregos formais. Por fim, ainda sobre o eixo Venezuela-Brasil-Guiana-Suriname, o Plano Plurianual do governo Lula prevê a pavimentação da BR-156 do Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa, até o município Ferreira Gomes, numa extensão de 453 km. O custo estimado para esta obra é de R$ 200 milhões. Porém, o objetivo é chegar até a localidade de Laranjal do Jari. Com isso, será possível ir dessa parte do Amapá até Manaus ou Boa Vista, ou atravessar a Venezuela em direção aos países andinos ou para o Norte através da América Central (Plano Puebla-Panamá) por via rodoviária.

Figura 6: Eixo Venezuela – Brasil – Guiana – Suriname

Fonte: http://www.iirsa.org/esp/ejes/v_b_g_s.shtml 36


Um dos mais ambiciosos objetivos perseguidos pela IIRSA é a integração sulamericana de Norte a Sul, principalmente através do transporte hidroviário. Para que isto ocorra, será necessário implementar diversos projetos para tornar alguns rios como o Meta (Colômbia) navegáveis. Além disso, será preciso intervir para que a região do Pantanal brasileiro possibilite a interligação das bacias Amazônica e do Prata. Ou seja, que deixe de ser considerado um problema de engenharia, como preferem dizer os defensores da IIRSA. Uma alternativa apontada pelo governo brasileiro – que a considera estratégica para a integração nacional, incorporada na carteira de projetos da CAF, é a implementação do Complexo Rio Madeira, que potencializará diversos projetos previstos pelos eixos Interoceânico Central, Multimodal do Amazonas e Peru-Brasil-Bolívia. A importância desse projeto para o governo brasileiro ficou patente no discurso proferido por Carlos Lessa, presidente do BNDES, durante o Seminário de Prospecção de Projetos promovido por esse banco em conjunto com a CAF: (...) Creio que os 22 projetos aqui apresentados se distribuem mais ou menos assim: vinte deles somam alguma coisa em torno de 5,5 bilhões de dólares; dos dois brasileiros, o do Rio Madeira tem o tamanho dos outros 20, e há um menor. O projeto Rio Madeira, sozinho, tem quase 6 bilhões de dólares. Eu insisti muito para que o projeto Rio Madeira fosse apresentado nesse seminário. Primeiro, eu estou absolutamente convencido de que um projeto dessa magnitude irá gerar muita controvérsia e, quanto mais controvérsia gerar, mais viabilização haverá para ele; em segundo lugar, esse projeto era, da carteira dos nossos projetos, o que tinha mais o sentido da conquista do Oeste, o sentido da construção no interior do continente, de um espaço de prosperidade e de um espaço articulado de expansão. Eu não sei se a energia dessas usinas será para Manaus, se irá numa ou noutra direção17, mas estou absolutamente certo de que 4,8 mil quilômetro de aquavias – 30 milhões de hectares de terras no Brasil, na Bolívia e Peru abertos à produção – representam para a história do continente um movimento em pequena escala do que foi a ocupação do velho oeste do continente norte-americano. Eu acho que é um gesto, um projeto que tem este significado de pôr a modernidade sul-americana na interlândia ainda não ocupada (...) (BNDES, 2003)

De certa forma, o discurso de Carlos Lessa sintetiza o pensamento dominante nas formulações da IIRSA: é preciso ocupar espaços, explorar as riquezas disponíveis, aumentar a competitividade e exportar o máximo possível, a fim de que os países sul-americanos possam se desenvolver. A defesa do meio ambiente e o combate à pobreza, mesmo que apareçam enquanto objetivos estratégicos da IIRSA, normalmente se encontram secundarizados diante da magnitude dos projetos de infra-estrutura em estudo, em execução ou já executados.

17

O projeto prevê a construção das usinas hidrelétricas Jirau (3.900 MW) e Santo Antônio (3.580 MW) além de um trecho binacional em estudo (aproximadamente 3.000 MW), bem como, a construção de eclusas. 37


Nesse contexto, a Pan-Amazônia continua a ser vista como um imenso vazio demográfico e atrasada economicamente, que precisa ser incorporada aos centros dinâmicos capitalistas nacionais e internacionais, reproduzindo, dessa forma, discursos e atos historicamente conhecidos na região. Outro fato relevante, que chama atenção no discurso do presidente do BNDES citado acima, diz respeito ao papel do Brasil nesse processo. Nosso país tem tido um papel ativo na definição da agenda regional para a integração sul-americana, sendo que os interesses de poderosos grupos econômicos e políticos nacionais e/ou associados ao grande capital internacional têm orientado a política externa brasileira nas negociações comerciais que mantemos com outros países de forma bilateral, ou no interior dos organismos multilaterais. Entre esses setores podemos destacar o agronegócio e os ramos industriais calçadista, siderúrgico e automobilístico, por exemplo. É justamente sobre o papel que o Brasil tem desempenhado na América do Sul, para garantir a implementação da IIRSA, o tema central do próximo capítulo.

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III. Breves considerações sobre a atuação do Brasil no processo de integração regional da América do Sul. O leque de ações desenvolvidas pelo governo brasileiro na América do Sul em relação à integração regional é bastante diversificado, posto que envolve diplomacia, estabelecimento de acordos comerciais e outros aspectos. Nesse sentido, buscaremos centrar nossa atenção em dois aspectos que consideramos relevantes para este estudo. No primeiro momento refletiremos sobre a atuação do Brasil no interior de algumas das IFMs envolvidas com a implantação da IIRSA, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e da Corporação Andina de Fomento, em particular. Em seguida, destacaremos a relação entre a IIRSA e os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento do Brasil. Finalmente, abordaremos de forma sucinta alguns dos projetos de integração pensados pelo governo brasileiro para a Amazônia. O BID e a CAF têm exercido importante papel no financiamento de políticas, programas e projetos direcionados à integração regional. Todavia, esse papel não se resume ao empréstimo dos recursos solicitados pelos países sul-americanos para que executem o que está previsto na IIRSA. A natureza da ação das IFMs vai além disso, e somente pode ser compreendida se analisada no seu conjunto. De um modo geral, podemos dizer que as IFMs – o BID e a CAF aí incluídas – possuem quatro vertentes estratégicas de atuação: a) Financiadoras de políticas, programas e projetos – Essa é a atividade mais conhecida das IFMs. Como bancos que são, atuam no sentido de obter lucros com as transações financeiras que realizam, seja através de empréstimos a países ou a empresas; b) Produtoras de conhecimento - Essa é uma das mais importantes características das IFMs e um dos principais diferenciais destas em relação às instituições financeiras privadas. As IFMs são na atualidade grandes centros produtores de conhecimento em diversas áreas das ciências humanas; conhecimento este comprometido com o fortalecimento do mercado e a reprodução da sociedade capitalista e de suas instituições (BIRD: 2001)18, e que embasa

18

Esse relatório do Banco Mundial é muito interessante pela maneira clara e sem subterfúgios com que defende o mercado, e pela reflexão que faz sobre a necessidade de instituições eficientes que promovam e fortaleçam esse mercado; a concorrência como meio de aumentar a eficiência e/ou a qualidade das instituições, bem como forma de destacar as pessoas bem sucedidas; além de estimular os países – os em desenvolvimento, em especial para que adotem as “inovações do setor privado”, entre outras coisas. O referido relatório é, segundo seus autores, uma “orientação para as políticas públicas, com uma abordagem pragmática” (BIRD: 2001, p. 2), voltado ao “entendimento de como as instituições apoiam os mercados, do que essas instituições fazem e de como construir instituições eficazes para apoiar os mercados” (idem, p. 4). 39


as estratégias dessas instituições financeiras, as denominadas diretrizes políticas aprovadas por suas direções; c) Formuladoras de políticas e prestadoras de assessoria – As IFMs influenciam decisivamente na implementação de políticas públicas dos seus países-membros, posto que os empréstimos concedidos são orientados por políticas e objetivos muito precisos: ajuste estrutural, ampliação da participação da iniciativa privada na economia e reforma do Estado, por exemplo. Uma outra ação relevante desempenhada pelas IFMs diz respeito à promoção e/ou realização de estudos, como o desenvolvido pelo Banco Mundial no Brasil sobre recursos hídricos, que serviu de base para o projeto de lei do governo Fernando Henrique Cardoso regulamentando a concessão privada da prestação dos serviços de saneamento (PL 4.147/2001); d) Formadoras das

tecnoburocracias governamentais – Um número considerável de

membros de governos, principalmente das áreas econômica e do planejamento, além de dirigentes de estatais consideradas estratégicas nos países em desenvolvimento, em especial, são oriundos das IFMs ou destas se tornaram funcionários quando da saída dos seus respectivos cargos públicos. O Brasil é um caso exemplar nesse sentido, basta relembrarmos apenas o mandato de Fernando Henrique Cardoso: Pedro Malan (exministro da Fazenda), Armínio Fraga (ex-presidente do Banco Central), Francisco Grós (ex-presidente do BNDES e da Petrobrás), Paulo Paiva (ex-ministro do Planejamento) e outros. Essas quatro vertentes estratégicas da atuação das IFMs são evidenciadas no processo de implementação da IIRSA através do financiamento de projetos, da elaboração teórica sobre o novo regionalismo que orienta as ações em curso, da prestação de assessoria e do desenvolvimento de estudos setoriais. É importante ressaltar, porém, que as IFMs são instituições públicas, cujos recursos são compostos de dinheiro público oriundo dos orçamentos de diversos países, que são seus sócios. E são esses países que elaboram e deliberam sobre as políticas dessas instituições. Portanto, não se pode pensar a relação estabelecida entre as IFMs e seus membros como sendo de mão única, de imposição externa, e sim como uma relação pactuada e, às vezes, conflituosa, dado os diferentes interesses em jogo entre os países e no interior de cada um deles. A correlação de forças no interior das IFMs é definida tendo como base o poder econômico de cada país – refletido no número de ações que o mesmo detém na composição 40


do capital do banco; pela capacidade de negociação com outros governos; pela definição clara dos objetivos e interesses a serem defendidos pelo país nessas instituições, entre outras questões. Como o Brasil é uma das nações mais industrializadas do mundo, o segundo parque industrial do continente americano, com dimensões continentais, conta com um enorme mercado interno, além de ser um grande tomador de empréstimos e um ótimo mutuário, tem peso importante dentro das IFMs – do BID, em particular. O Banco Interamericano de Desenvolvimento é uma instituição financeira multilateral regional que tem como acionistas não somente países do continente americano, com exceção de Cuba, mas também nações do Oriente Médio, da Ásia e da Europa19. O poder de voto de cada país membro no interior do banco é definido pela subscrição de capital. Nesse sentido, "a divisão aproximada das subscrições é a seguinte: América Latina e Caribe, 50%; Estados Unidos, 30%; Japão, 5%; Canadá, 4%; outros países não-mutuários, 11%” (BID, 2000b). Brasil e Argentina estão empatados em segundo lugar enquanto acionistas do BID, e estes juntamente com o México possuem quase o mesmo número de ações dos Estados Unidos. Ou seja, governos como o brasileiro, mexicano e argentino são sujeitos ativos desse processo e, juntamente com os EUA, os principais responsáveis pela orientação política do banco no nosso continente. Em relação à integração regional latino-americana, o BID tem atuado no intuito de contribuir para adaptar essa parte do continente a uma economia global, estimulando a realização de acordos comerciais regionais e sub-regionais, a fim de que os países da região consigam atrair investimentos privados e tenham acesso aos mercados internacionais. Atualmente o BID tem somado esforços com a Organização dos Estados Americanos – OEA e com a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe – CEPAL no estabelecimento da agenda continental, em função da constituição da Área de Livre Comércio das Américas - ALCA a partir de 200520. Suas diretrizes políticas, que orientam os financiamentos e o apoio técnico da instituição para o Plano Puebla-Panamá – PPP e a IIRSA, têm como objetivo principal criar as condições para a integração econômica

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Alemanha, Argentina, Áustria, Bahamas, Barbados, Bélgica, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Croácia, Dinamarca, El Salvador, Equador, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Israel, Itália, Jamaica, Japão, México, Nicarágua, Noruega, Países Baixos, Panamá, Peru, Portugal, Reino Unido, República Dominicana, Suécia, Suíça, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. 20 Recentes declarações dos ministros das Relações Exteriores do Brasil e da Argentina deixaram claro a impossibilidade de a ALCA ser viabilizada já a partir do ano que vem. 41


do continente – que passam pela redefinição do papel do Estado e a ampliação da participação da iniciativa privada na economia regional: El Banco posee instrumentos financieros y humanos idóneos para apoyar la promoción de la infraestructura regional. Sin embargo, su acción há sido limitada en ocasiones por restricciones financieras en los países miembros. Por ello, es importante incorporar al sector privado en el esfuerzo por modernización y expansión de la infraestructura regional. Com el ALCA, PPP, IIRSA y proceso de Cumbres Hemisféricas, el Banco há desarrollado outro nicho de especialización: apoyo colectivo en materia organizacional, logística, técnica y financiera en conjunto com otras organizaciones regionales. Esta colaboración para apoyar iniciativas de gran envergadura há sido una pieza clave para lanzarlas y hacerlas progresar. El Banco contribuye com el conocimiento de su personal y su neutralidad institucional que garantiza servicios calificados y homogéneos a todos los participantes (BID, 2003, p. 13)

Já a Corporação Andina de Fomento tem como sócios majoritários os países andinos (Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela). Além deles, Brasil, Chile, Jamaica, México, Paraguai, Panamá e Trinidad e Tobago encontram-se entre seus acionistas. A partir de 1992 a CAF “precisó su misión circunscribiéndola a dos pilares básicos: el desarrollo sostenible y la integración regional” (CAF, 2003). A CAF afirma estar inteiramente comprometida com a implementação da IIRSA, desenvolvendo uma série de ações em áreas de fronteiras, apoiando o setor privado, realizando encontros e outros eventos nos principais centros financeiros mundiais para promover a Comunidade Andina, financiando diversos projetos previstos pela IIRSA e participando ativamente do seu Comitê de Coordenação Técnica, entre outras iniciativas. Como dissemos anteriormente, o Brasil tem assumido uma postura de liderança regional no processo de implementação da IIRSA. Isto fica evidente nas movimentações realizadas pelo governo brasileiro para ocupar posições estratégicas no interior do BID e da CAF, que juntos têm enorme importância na consolidação da IIRSA. Recentemente o Banco Interamericano de Desenvolvimento criou uma nova área de atuação denominada Coordenação Especial para o Programa de Integração Física Sulamericana, voltada "especificamente para o financiamento de projetos de infra-estrutura na região" (Gazeta Mercantil, 06/08/03). Não por coincidência, o titular da nova coordenadoria é o brasileiro Mauro Marcondes Rodrigues, oriundo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES. Segundo Mauro Rodrigues, o foco do BID será o de "financiar projetos conjuntos de integração física entre dois ou mais países da região montando, para

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isso, diferentes engenharias financeiras de acordo com as características e necessidades dos projetos" (Gazeta Mercantil, 06/08/2003). O fato dessa nova coordenadoria ser ocupada por uma pessoa oriunda do BNDES também não deve ser considerado um mero acaso, posto que este banco tem tido importante papel na concepção e financiamento dos projetos previstos pela IIRSA no Brasil e nos demais países sul-americanos, juntamente com o BID e a CAF. O BNDES é uma instituição poderosa. Seus recursos disponíveis anualmente para investimento, em muito superam os destinados conjuntamente pelo Banco Mundial (BIRD) e BID ao nosso país para o mesmo espaço de tempo21. Efetivamente, o BNDES é um dos pilares do governo Lula para tornar a IIRSA uma realidade: Os projetos de infra-estrutura ganham relevância também devido a prioridade dada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva à consolidação e ampliação do Mercosul, bem como à integração econômica e física dos países da América Latina. Neste sentido, vários empreendimentos já foram definidos no âmbito da Integração da Infra-estrutura Sul-Americana (IIRSA), que reúne todos os países do subcontinente. Também já é decisão do governo brasileiro que o BNDES será um dos pilares de financiamento desses projetos. Os outros dois devem ser a Corporação Andina de Fomento e o Banco Interamericano de Desenvolvimento” (Gazeta Mercantil, 17/09/2003)

Atualmente o BNDES está destinando recursos para o financiamento das exportações de alguns dos países vizinhos, como a Argentina, e já mantém negociações com outros nessa mesma perspectiva. A instituição também vem adquirindo crescente poder no interior da CAF, onde elevou sua participação no capital desta de 2,5% para 5% e chegará ao final de 2004 com cerca de 10%. Esse fato é importante dado que a CAF: é a maior agencia multilateral de fomento na América do Sul, com carteira de financiamentos de US$ 6,18 bilhões. Desse total, 76,5% referem-se a projetos de infra-estrutura. O Brasil tem participação de 8% na carteira da CAF, de quem obteve recursos para, entre outros projetos, a construção da rodovia que liga Manaus a Boa Vista (Roraima); a implantação da linha de transmissão da hidrelétrica de Guri (Venezuela) a Roraima; e o gasoduto que liga Santa Cruz de La Sierra (Bolívia) a São Paulo, com ramal para Porto Alegre (Gazeta Mercantil, 08/08/2003)

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No dia 13 de abril deste ano o jornal Gazeta Mercantil publicou uma matéria intitulada “Governo Lula tem saldo negativo com BID e BIRD”. Nela consta a informação de que passados 14 meses do atual governo, o Brasil teve uma perda líquida de US$ 3,05 bilhões. Isto ocorreu porque o país contratou empréstimos no valor de US$ 2,40 bilhões, mas desembolsou cerca de US$ 5,54 bilhões no mesmo período. Entretanto, apesar da gravidade da situação relatada pela matéria, o que interessa nesse momento é destacar os valores em questão, posto que são inferiores aos recursos disponibilizados para investimentos somente pelo BNDES, um único banco público brasileiro. 43


Em dezembro de 2002, ao final do governo Fernando Henrique Cardoso, o BNDES e a CAF assinaram um Protocolo de Cooperação, do qual destacamos os seguintes pontos (BNDES, 2002): (a) As "Instituições" se comprometem a estabelecer um mecanismo apropriado para intercâmbio de informações e experiências no campo da integração, da infraestrutura física, do comércio exterior e do desenvolvimento sustentável, com a finalidade de conhecer o desenvolvimento de projetos e programas, assim como para identificar oportunidades de negócios nos setores de atuação de ambas as "Instituições". (b) As "Instituições" estruturarão operações nas quais o "BNDES" venha participar mediante o financiamento à importação de bens e serviços de procedência brasileira, e a "CAF" mediante o financiamento de gastos locais e/ou recursos complementares. (c) As "Instituições", atendidos seus procedimentos operacionais, poderão apoiar projetos na modalidade de co-financiamento, quando a finalidade de financiamento for a constituição de "joint-ventures" de empresas brasileiras e de países acionistas da "CAF". Cada instituição poderá solicitar à outra carta de intenção de financiamento conjunto para as oportunidades identificadas de apoio creditício ou cofinanciamento. (d) As "Instituições" cooperarão mutuamente na identificação de programas de comércio exterior e apoiarão, atendidos seus procedimentos operacionais, esquemas de financiamento para micro, pequenas e médias empresas nos países acionistas da "CAF" Os termos do protocolo formalizado pelo BNDES com a CAF, além de evidenciar a relevância da atuação do banco brasileiro no contexto sul-americano, ressalta um outro elemento pouco explorado até aqui que diz respeito aos interesses de grupos econômicos do Brasil e/ou associados ao capital internacional nos mercados e nos recursos naturais dos países vizinhos. Os itens do protocolo destacados acima demonstram bem isso na medida em que potencializam as exportações do Brasil para os países andinos, assim como a atuação nas nações vizinhas de empresas brasileiras e estrangeiras aqui instaladas. Daí o porquê de o Brasil buscar consolidar maior espaço dentro da CAF, ampliando sua participação no capital acionário desta. 44


Outros passos já foram dados pelo governo brasileiro para consolidar sua posição junto à Comunidade Andina. A Bolívia já se associou ao Mercosul, o Peru já sinalizou positivamente e a Venezuela já afirmou que se associará ao bloco, mesmo que os outros países da CAN não o façam. O próprio secretário-geral da Comunidade Andina das Nações, sr. Guillermo Fernández Soto, defendeu a aceleração das negociações entre esta e o Mercosul, a fim de que fosse assinado um acordo de livre comércio entre os dois blocos até o final de 200322. Guilhermo Soto avaliou também que: a proposta comunitária se enquadra na meta de criar um espaço sul-americano, que envolva valores como integração comercial, diálogo político, defesa das instituições democráticas, integração física, cooperação financeira, proteção ao meio ambiente e desenvolvimento humano (Gazeta Mercantil, 25/08/03)

No que diz respeito às relações entre o BNDES e o BID, se pode afirmar que as mesmas são consistentes. Como exemplo, basta ressaltar o fato de o primeiro ser o principal parceiro do BID na América do Sul, com 14 operações realizadas até o ano passado. Além disso, o banco brasileiro negociava, meses atrás, um empréstimo de cerca de US$ 1 bilhão junto ao Banco Interamericano, e parte desse recurso já estava comprometido com o financiamento de projetos previstos pela IIRSA (Gazeta Mercantil, 07/08/2003). A relevância do BNDES no processo de integração regional da América do Sul é inegável, dada a sua capacidade de investimento e suas profundas e sólidas relações mantidas com o BID e com a CAF; e uma das formas que o governo brasileiro tem utilizado nos últimos anos para ampliar a influência do país na região se dá justamente através do BNDES, que há tempos deixou de ser uma instituição com atuação limitada ao território nacional23. O outro aspecto da reflexão sobre a atuação do Brasil no processo de integração regional diz respeito às relações existentes entre a IIRSA e os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento. Segundo Dantas e Caldas (2003?), um estudo finalizado em 1996 por Eliezer Batista - ex-secretário de Assuntos Estratégicos no governo Fernando Collor de Mello e ex-dirigente da Companhia Vale do Rio Doce -, e patrocinado pela CAF e o Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentado, entre outras entidades, já esboçava a estratégia

de

integração

física

sul-americana

como

elemento

impulsionador

do

desenvolvimento regional, afirmando a necessidade de investimentos na ordem de US$ 600

22 23

O que efetivamente ocorreu.

Hoje, por exemplo, em seu portfólio de projetos se encontram a usina de Três Gargantas (China), o gasoduto Bolívia/Brasil, as barragens San Francisco (Equador) e Rio Blanco (Honduras). 45


bilhões/ano num prazo de 10 anos para que o objetivo fosse alcançado. Ainda de acordo com os autores: (...) na origem do estudo de Eliezer esteve um pedido de Fernando Henrique Cardoso, quando ainda era ministro da Fazenda de Itamar Franco. Ele estava interessado no potencial estratégico do “Merconorte”, um acordo regional entre o Brasil e os países andinos. A idéia era a de se chegar, posteriormente, à união dos blocos do Norte e do Sul do subcontinente, em um projeto de integração da América do Sul semelhante ao que foi deslanchado na cúpula sul-americana realizada em Brasília

A integração física defendida no estudo de Eliezer Batista ancorava-se na noção de “eixos de desenvolvimento” tal como prevista pela IIRSA na atualidade. Todavia, o fato interessante a ser ressaltado neste momento é que esses “eixos” foram incorporados pelo governo Fernando Henrique Cardoso como a sua estratégia de desenvolvimento para o Brasil, materializada, de modo especial, no Plano Plurianual 2000-2003, mais conhecido como Avança Brasil. Dantas e Caldas [200-] afirmam que o Avança Brasil “abordou de forma tímida a idéia de integrar os diferentes países sul-americanos”. Tal afirmação precisa ser relativizada. Isto porque a idéia dos “eixos de desenvolvimento” já nasce mesmo numa perspectiva que ultrapassa as fronteiras brasileiras, e isto ficou mais do que evidente nos eixos e projetos para a integração econômica nacional previstos e priorizados nos PPAs 1996-1999 e 2000-2003, elaborados durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Mesmo que se diga que de 1996 a 200024 as negociações em torno da integração física sul-americana não tenham conseguido deslanchar de modo acelerado25, a centralidade adquirida pelos eixos de desenvolvimento nos planos do governo federal, a reorientação do papel do BNDES para atuar no financiamento de projetos dos governos vizinhos – sobretudo em relação a empreendimentos que se articulavam com as hidrovias, estradas e barragens que estavam sendo implementados no Brasil, mostra que passos importantes para a integração física sul-americana estavam sendo dados mesmo antes da formalização da IIRSA, e isto se deve em grande parte ao protagonismo do governo brasileiro, representando os interesses de poderosos grupos econômicos que atuam no mercado internacional.

24 1996 foi o ano da conclusão do estudo de Eliezer Batista e 2000 o ano da reunião em Brasília dos presidentes dos países da América do Sul. 25 Ainda mais porque foi um período extremamente conturbado no plano internacional com as crises financeiras na Ásia, por exemplo, cujos efeitos repercutiram pesadamente sobre as economias do sub-continente. 46


De acordo com Bianca Nasser (2000), no PPA 1996-1999 foi introduzida a noção de “macroeixos de desenvolvimento”, expressando um conceito e uma orientação da ação governamental “para atender a objetivos como a correção de desequilíbrios regionais, a integração entre as diversas regiões e a redução do fluxo migratório para as grandes cidades e os custos de transporte” (NASSER, 2000, p. 165). Posteriormente, com base nos estudos que serviram de referência para o referido PPA, se avançou para o estabelecimento: de uma nova redivisão do território brasileiro com a utilização dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento, porém com um conceito de Eixo utilizado de forma mais ampla do que no PPA de 1996/99 e que se tornou o principal insumo para a elaboração do PPA de 2000/03 (...) (ibidem, p. 165-166)

Para realizar o estudo dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento – ENID foi constituído o Consórcio Brasiliana, formado pelas empresas de consultorias Booz Allen & Hamilton do Brasil Consultores, Bechtel International Incorporation e Banco ABN Amro, contratadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso e que ficaram sob a supervisão de equipes do BNDES e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Segundo o relatório síntese apresentado pelo referido consórcio, estas foram as principais diretrizes do estudo (NASSER, 2000, p. 167): 1. Assegurar a integração dos Eixos, nos níveis nacionais e internacional, com vistas à competitividade internacional do país, à redução das disparidades regionais e ao desenvolvimento sustentável, considerando a integração das regiões como fator de competição internacional; 2. Orientar os investimentos básicos para a geração de novos negócios e novos espaços, com o objetivo de geração de maior número de empregos; 3. Orientar os investimentos básicos para o aumento do valor agregado; 4. Destacar a dimensão informação e conhecimento (educação, capacitação científica, empreendimentos e tecnologias de acesso à informação); 5. Introduzir inovação tecnológica e gerencial em empreendimentos de desenvolvimento local; 6. Considerar o meio ambiente como área de oportunidade de implementação de investimentos; 7. Considerar a importância crescente do setor de serviços na economia; 8. Adotar o conceito de rede intermodal de infra-estrutura econômica; 9. Identificar e ressaltar oportunidades de inserção internacional em cada espaço; e 47


10. Destacar a integração do país com a América Latina e o caráter multilateral das relações internacionais do país. As diretrizes acima expressam de modo claro que os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento somente têm razão de ser quando articulados com ações similares nos países vizinhos. Por isso, o empenho do Brasil em garantir através das negociações diplomáticas e comerciais mantidas nos últimos anos, que os demais governos sul-americanos se engajem nesse processo de forma determinada. Isto porque os governantes brasileiros parecem ter chegado à conclusão de que o aumento da competitividade brasileira no mercado internacional depende, em boa parte, de que a América do Sul esteja integrada. Daí que os projetos previstos no Avança Brasil e no atual PPA do governo Lula eram e são compreendidos interligados a outros no exterior, conforme veremos mais adiante em relação aos que são pensados para a Amazônia brasileira. Com a incorporação dos ENID como pedra angular do planejamento governamental durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, houve uma mudança substancial na concepção do território nacional, posto que o recorte adotado não se prendia ao aspecto político-administrativo, já que a definição dos eixos obedeceu os seguintes critérios: as vias de transporte existentes, os focos dinâmicos identificados no país, a hierarquia funcional das cidades e a diferença dos ecossistemas das diversas regiões brasileiras (NASSER, 2000, p. 168). Um dos resultados práticos da aplicação desses critérios foi a divisão do território nacional em nove Eixos: Arco-Norte, Madeira-Amazonas, Araguaia-Tocantins, Oeste, Sudoeste, Transnordestino, São Francisco, Rede Sudeste e Sul. O Pará, por exemplo, integrava os quatro primeiros eixos26. Os reflexos disto para o planejamento estadual, por exemplo, precisariam ser melhor perscrutados em outros trabalhos.. O estudo elaborado pelo Consórcio Brasiliana definiu Eixo da seguinte maneira: Eixo é um recorte espacial composto por unidades territoriais contíguas, efetuados com objetivo de planejamento, cuja lógica está relacionada às perspectivas de integração e desenvolvimento consideradas em termos espaciais. Nesse sentido, dois critérios devem ser levados em conta na sua definição e delimitação: a existência de uma rede intermodal de transporte de carga, efetiva ou potencial, permitindo a acessibilidade aos diversos pontos situados na área de influência do eixo; e a presença de possibilidades de estruturação produtiva interna, em termos de um conjunto de atividades econômicas que definem a inserção do eixo em um espaço 26 Falamos “integrava” porque em que pese o governo Lula estar dando seqüência aos ENID do PPA anterior, há outras iniciativas que valorizam o aspecto regional. Nesse caso, a Amazônia é vista como unidade constituída de entes federados. Ou seja, as relações entre os entes federados e a União parece ter se tornado ainda mais complexa, e merece ser refletida de forma mais precisa, escapando aos objetivos deste trabalho. 48


mais amplo (nacional ou internacional) e a maximização dos efeitos multiplicadores dentro de sua área de influência” (NASSER, 2000, p. 168)

A justificativa para a definição e delimitação de um eixo é a capacidade de uma determinada área geográfica gerar economia de escala e servir como pólo irradiador de desenvolvimento para outras áreas. Nesse sentido, tanto a visão de eixo presente na IIRSA, quanto na apresentada pelo Consórcio Brasiliana traz embutida uma expectativa futura de produção, uma projeção sobre a potencialidade das regiões atendidas pelas obras de infraestrutura. Todavia, essas projeções podem servir muito mais para responder a interesses de determinados segmentos econômicos – os empreiteiros, por exemplo – do que representar uma necessidade real dessas obras. Um estudo desenvolvido por Lima et alli (2000), por exemplo, questiona algumas das projeções da produção agroindustrial no Brasil, que servem de base para a definição de um conjunto de investimentos no setor de transporte. No caso do Mato Grosso, dizem eles que há muita “disparidade nas avaliações sobre suas perspectivas de crescimento em curto, médio e longo prazos” (p. 169). Entretanto, apesar dessas disparidades, a expansão da fronteira agrícola mato-grossense tem sido utilizada para justificar um leque amplo de investimentos, tais como: Ferronorte, hidrovias do Madeira, Teles Pires-Tapajós, do Araguaia, do TietêParaná e do Paraná-Paraguai, além da rodovia Santarém-Cuiabá. Isto sem falar no inconveniente econômico da utilização de determinados percursos, mesmo sendo hidroviários, dada a distância que há entre os centros produtores do Estado e alguns dos corredores de transporte, que chegam a variar de novecentos a mais de dois mil quilômetros em certos casos. Por outro lado, os eixos estão profundamente vinculados ao objetivo de atendimento de demandas externas. Daí que a possibilidade “de estruturação de atividades produtivas internas” poderá não ocorrer do modo esperado, mas sim através do estabelecimento de relações verticais entre grandes empresas produtoras e o mercado externo, sem efetiva geração de uma cadeia produtiva horizontal27. Apesar dos riscos citados acima, a lógica da implantação dos eixos como pedra angular do desenvolvimento nacional atravessou os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso e permaneceu como elemento estruturante da política do governo Lula. Contudo, a vinculação entre os ENID e a IIRSA parece ter adquirido ainda maior importância

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Como a que se evidencia com as empresas de alumínio presentes na Amazônia.

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na estratégia do atual governo, materializada no PPA 2004-2007, também conhecido como Plano Brasil de Todos: Cada vez mais o destino das regiões depende de uma dimensão nacional e crescentemente relacionada à América do Sul e ao conjunto da dinâmica internacional. Isto muda o enfoque do planejamento e do desenvolvimento exclusivamente nacional e implica uma estratégia de fortalecimento e de integração das logísticas de infra-estrutura na América do Sul, na construção progressiva de um destino comum para o continente. É uma alteração deliberada de perspectivas do desenvolvimento que se orienta para o oeste, novamente contrabalançando o excessivo adensamento econômico do litoral (BRASIL, 2003, p. 29)

O objetivo de integrar a infra-estrutura da América do Sul aparece de forma nítida em outras partes do Plano Brasil de Todos, vinculada à idéia de modernização econômica, aumento da competitividade sistêmica nacional, redução do custo-Brasil e diversificação da pauta de exportação. Ou seja, a inserção competitiva brasileira no cenário internacional depende, em parte, segundo as diretrizes presentes no PPA 2004-2007, do êxito do país em conseguir a integração sul-americana. Isto exigirá um gigantesco esforço diplomático e comercial do Estado brasileiro para que este fim seja alcançado. O interesse do Brasil na integração da América do Sul e a importância política e econômica dessa iniciativa para o país foi enfatizada no discurso do sr. Marco Aurélio Garcia, Chefe da Assessoria Especial da Presidência da República, durante o Seminário de Prospecção de Projetos, realizado pelo BNDES em conjunto com a Corporação Andina de Fomento, em agosto de 2003: A política sul-americana do governo Luiz Inácio Lula da Silva tem como um dos elementos centrais a busca desta integração física do continente. No suposto de que esta integração física será também a premissa de uma integração política, num momento em que o mundo vive incertezas – seja do ponto de vista econômico, seja do político – em que cada vez mais uma perspectiva multilateral se afirma como necessária, é evidente que dar consistência à política da região, estreitar os laços e buscar uma interligação econômica e sobretudo uma atividade política mais articulada, é elemento essencial (BNDES, 2003)

E a Amazônia? Como ela se insere nesse esforço de integração da economia brasileira e da infra-estrutura sul-americana? Sem dúvida alguma, o fato de a Amazônia brasileira fazer fronteira com sete países sul-americanos, se converteu hoje em uma nova fonte de oportunidades para o grande capital, em especial. Aquilo que no passado era visto com apreensão e elemento de risco à segurança

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nacional, hoje é encarado como um dado favorável à afirmação do Brasil enquanto liderança regional do processo de integração: A orientação observada na política nacional é a de traçar medidas que reforcem a integração de mercados com os países que se alinham nas amplas fronteiras da região amazônica, sob a liderança pretendida do Brasil. Essa dinâmica do jogo equaciona, a nosso ver, de outra forma, o lugar da Amazônia na atual geopolítica, como estratégia nacional. É possível que se esteja inclusive em face de uma revisão da noção de fronteira, não mais somente como espaço de (re)conquista e ocupação de atores econômicos e sociais, de novos usos dados aos recursos naturais, mas como fronteira cujo papel político é redefinido pela sua capacidade de potencializar a integração de mercados para além dos limites nacionais, substituindo a noção de mercados protegidos, valorizada no discurso nacionalista (CASTRO, 2001, p. 7)

Entretanto, ao mesmo tempo em que se observa uma mudança qualitativa na atuação do Estado brasileiro em relação à Amazônia, por conta do papel desta para a integração regional, observa-se a permanência de um discurso conservador que reproduz velhos estereótipos, como os que enfatizam o atraso econômico da região, a suposta irracionalidade econômica das atividades produtivas das populações tradicionais da região, as imensas riquezas pouco exploradas, o pequeno número de habitantes, o isolamento do restante do país e outros mais. Discurso este que serve para justificar na atualidade a retomada de grandes projetos de infra-estrutura na Amazônia, principalmente nas áreas de transporte e de energia. Hoje, assim como no passado, o discurso oficial bate na tecla do fim do isolamento regional: Há pouco tive a oportunidade de afirmar que a política do meu Governo em relação à Amazônia é a mesma dos meus antecessores. Ela não se modificou. Desde o Governo Castelo Branco, que lançou um programa de ressurgimento de toda a Amazônia, programa continuado no Governo Costa e Silva e que teve um extraordinário relevo no Governo do Presidente Médici, sobretudo através da construção da Transamazônica, este programa continua em vigor e ativado. É claro que ele apresenta nuanças, variações decorrentes das mutações que se operam na própria área, das nossas condições internacionais, das dificuldades que a crise nos apresenta. A intensidade do programa, então, pode modificar-se. Os pontos de aplicação podem variar, mas o programa sobrexiste, tem o mesmo propósito e será levado ao fim, dentro do maior objetivo de integrar esta imensa região na comunidade nacional. Vamos dar a essa região um desenvolvimento compatível com os nossos recursos, acabar com o seu isolamento e fazer com que através dela a vitalidade do Brasil se torne maior do que tem sido hoje” (GEISEL, 1976, p. 44)

No que tange aos novos projetos de infra-estrutura previstos para a região amazônica, estes sofreram mudanças substanciais em termos de concepção. É o caso da construção de novas hidrelétricas, por exemplo, onde a demanda não se reduz somente à produção e distribuição de energia. Não! Agora, além disso, as hidrelétricas têm também a função de contribuir para dotar os rios amazônicos de condições de navegabilidade para embarcações de 51


grande calado, adequadas para o transporte de um volume maior de produtos direcionados ao mercado internacional. Hidrelétricas e eclusas são pensadas de forma conjunta. Daí, que energia e transporte sejam partes de uma mesma estratégia, diferentemente do que ocorria no passado em que uma não estava necessariamente acoplada a outra, como no caso das eclusas de Tucuruí em relação à barragem. O caso do Complexo do Rio Madeira, comparado por Carlos Lessa, presidente do BNDES, à construção de Brasília, é exemplar dessa visão integrada dos novos projetos: Com custo aproximado de R$ 14 bilhões, ou cerca de US$ 5 bilhões, o projeto envolve a construção de duas usinas elétricas, entre 4 mil e 4,8 mil quilômetros de aquavias e 30 milhões de hectares destinados ao plantio de soja, visando à ocupação de fronteira. Segundo Lessa, o Complexo do Rio Madeira completa um processo de ocupação do interior da América Latina, com imensa potencialidade para o agronegócio (Agência Brasil, 06/08/03)

A ampliação da monocultura da soja para o território amazônico é um bom exemplo das novas funções designadas para projetos como o Complexo do Rio Madeira que, de forma alguma, pode ser compreendido apenas como um grande empreendimento hidrelétrico. Essa obra, por exemplo, assume um componente geopolítico de triplo significado na medida em que, de um lado, busca consolidar a “ocupação do oeste” ou do “interior” brasileiro; de outro, serve como instrumento de negociação com a Bolívia para assegurar a exploração de recursos naturais daquele país, como o gás, e, por último, é componente relevante da estratégia de integrar as bacias do Prata e do Amazonas por via fluvial.

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Figura 7: Integração das Bacias do Prata e Amazônica

Fonte: http://www.cid.harvard.edu/andes/CompetitividadyDesarrollo/sosa.pdf

As obras previstas pelo governo brasileiro na Amazônia, assim como em outras regiões do país, já nascem com uma perspectiva internacional. Isto porque elas são concebidas de forma integrada às obras que estão sendo ou que serão realizadas nos países vizinhos; muitas delas com financiamento brasileiro. Ou seja, é a parte que cabe ao Brasil para a implementação dos eixos de integração previstos pela IIRSA. O quadro abaixo, demonstrativo de algumas dessas obras na Amazônia, deixa claro que somente um olhar panorâmico sobre elas é capaz de fazer compreender o real significado das mesmas, posto que elas são partes constitutivas da estratégia brasileira de viabilizar a integração sul-americana:

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Quadro 3: Investimentos no setor de transporte rodoviário na Amazônia brasileira REGIÃO Acre

OBRA PREVISTA

JUSTIFICATIVA

BR 317 – Rio Branco/divisa Interligar a cidade de Rio Branco à divisa do Acre Acre – Amazonas com o Amazonas e à cidade de Boca do Acre (AM), às margens do rio Purus BR 317 – Brasiléia - Assis Integrar o Acre ao sistema rodoviário nacional e Brasil promover a ligação do Brasil com a Bolívia e o Peru, propiciando uma saída para o Pacífico BR 364 – Sena Madureira - Integrar o Acre ao sistema rodoviário nacional; Rio Liberdade promover a integração econômica da Fronteira Norte do Brasil, com escoamento de produtos agroindustriais e favorecer o ecoturismo BR 364 – Anel Rodoviário de Facilitar o tráfego na interconexão com as BRs 317 e Rio Branco 364 nos acessos à cidade de Rio Branco Amazonas BR 317 – Boca do Acre/divisa Interligar a cidade de Boca do Acre à divisa do Acre Amazonas – Acre com o Amazonas e à cidade de Rio Branco, capital do Acre BR 220 – Humaitá – Lábrea Interligar a Região Norte no trecho compreendido entre o rio Purus e Madeira, possibilitando o estabelecimento do transporte intermodal e o escoamento dos produtos agropecuários produzidos. Além disso, permitirá melhor atendimento médicohospitalar e suprimento de gêneros de primeira necessidade às populações extremamente carentes localizadas na região Roraima BR 401 – Boa Vista – Promover a ocupação e segurança da Fronteira Norte Normandia do Brasil; facilitar o tráfego na região, em qualquer época do ano, por via pavimentada, e interligar o Brasil à Guiana e aos países do platô das Guianas Amapá BR 156 – trecho Ferreira Integrar o Amapá ao sistema rodoviário nacional e Gomes – Oiapoque interligar o Brasil aos países vizinhos da região Norte: Guiana Francesa, Suriname e Guiana. Possibilitar a utilização do Porto de Macapá pelos países vizinhos para seu intercâmbio comercial Pará BR 163 – trecho divisa Promover a fluidez do tráfego com segurança; reduzir Pará/Mato Grosso – Santarém o tempo de viagem no principal eixo de ligação da região Norte ao Centro-Oeste e escoar produtos agrícolas, destacando-se a soja através do porto de Santarém BR 230 – trecho divisa Interligar a BR 230 com as BRs 153, 158, 222 e 422; Pará/Tocantins – Marabá – melhorando o escoamento da produção agrícola e Altamira – Itaituba beneficiando a população dos municípios estabelecidos na área de influência da rodovia no estado do Pará, ampliando a ligação pavimentada com o Tocantins Mato Grosso BR 364 – trecho Diamantino Promover o escoamento da safra na fronteira agrícola – Sapezal – Comodoro do Estado do Mato Grosso até os portos de Porto Velho/RO e Itacoatiara/AM Fonte: PPA 2000-2003 – http://www.abrasil.gov.br/

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O ponto em comum entre todas as obras previstas acima é a sua perfeita sintonia com os eixos de integração previstas pela IIRSA. No caso do Acre, por exemplo, sua capital Rio Branco vai se constituir num ponto de interseção importante em direção a leste com os eixos Peru-Brasil-Bolívia e daí com o Andino no sentido do Pacífico, assim como em direção ao Norte (Escudo Guyanes e Multimodal do Amazonas) e ao Sul do continente (Andino Sul, do Sul e Interoceânico, entre outros). A mesma leitura integracionista pode ser feita tendo como referência os ENID previstos pelos estudos do Consórcio Brasiliana. Nesse caso, pode-se dizer que Rio Branco estará conectada diretamente aos eixos Madeira-Amazonas e Oeste e daí aos demais (Arco Norte, Araguaia-Tocantins, Sudoeste, Transnordestino, São Francisco, Rede Sudeste e Sul), que, por sua vez, estão todos articulados aos eixos definidos pela IIRSA. As obras rodoviárias previstas para os demais estados da Amazônia Legal reproduzem a mesma característica integracionista das do Acre. Esse é o elemento comum a todas elas. Reduzir o tempo de viagem, ocupar e integrar a Amazônia, favorecer o escoamento da safra agrícola da região e de outras partes do Brasil são alguns dos argumentos utilizados para justificar as obras rodoviárias; argumentos que não diferem substancialmente de tantos outros surgidos ao longo dos anos para defender a execução de grandes projetos de infra-estrutura nessa parte do país. Até mesmo a questão da segurança reaparece no discurso oficial, como no caso da BR 401. E é somente numa única ocasião que a questão social é apresentada como uma das justificativas para a implementação do projeto rodoviário: trata-se da BR 220. Outra questão relevante, que pode ser apreendida desse quadro de obras, diz respeito ao fato de que ele explicita as funções que são destinadas à Amazônia nessa tentativa de integração, que é torná-la um grande corredor de mercadorias tanto para dentro quanto para fora do país, e ao mesmo tempo mantê-la como exportadora de produtos primários e de energia para o exterior e para os centros econômicos mais dinâmicos do Brasil. Nessa empreitada encontramos o governo federal e seus aliados na região (governos e parlamentares, principalmente), grupos empresariais do Brasil e do exterior, além das Instituições Financeiras Multilaterais. Um outro exemplo de carteira de projetos prevista pelo governo brasileiro para a Amazônia, que já traz embutido desde o nascedouro o “gene” integracionista está vinculada ao setor de comunicações. O quadro abaixo apresenta os projetos previstos pelo Ministério das Comunicações do governo Fernando Henrique Cardoso para a Amazônia. Talvez o aspecto mais interessante do 55


mesmo seja o relacionado às referências feitas aos empreendimentos que devem ser ou que serão executados de modo integrado nos países vizinhos, todos eles vinculados aos eixos da IIRSA. Quadro 4: Investimentos no setor de comunicações na Pan-Amazônia EIXO

Venezuela-BrasilGuiana-Suriname

PROJETO/FINALIDADE

Projeto Backbone28 de Internet – prover acesso à internet para usuários domésticos como corporativos na área abrangida pelo eixo. Projeto Telefonia Celular (Roaming) – permitir ao usuário viajante utilizar o seu aparelho celular nas viagens nos países envolvidos. Projeto TV Digital – estabelecer um padrão de TV Digital para a América do Sul e dotar as populações de meios de acesso à TV Digital. Projeto Backbone de Internet

ABRANGÊNCIA

Brasil: Macapá, Porto Grande, Oiapoque, Manaus e Boa Vista. Guiana Francesa: Cayenne, Saint Laurent du Maroni. Suriname: Paramaribo, Bakhuls e Apoera. Guiana: Corriverton, Georgetown e Lindlen. Venezuela: S. Elena de Guairén, El Dorado, Ciudad Bolivar, Barcelona e Caracas

Brasil: Belém, Macapá, Santarém, Itacoatiara, Manaus e Tabatinga. Projeto Telefonia Celular Peru: Leticia, Iquitos, Nauta, Srameriza, Yurimaguas, Corral (Roaming) Quemado, Osmos, Piura e Paita. Colômbia: Arica, El Encanto, Projeto TV Digital Gueppi, Mocoa, Pasto, Tumaco e Bogotá29. Equador: Quito e Esmeraldas. Brasil: Porto Velho, Guajará Mirim, Peru-Brasil-Bolívia Projeto Backbone de Internet Sena Madureira30, Brasiléia31, Rio Projeto Telefonia Celular Branco e Assis Brasil. Bolívia: Cobija, Pto. Health, (Roaming) Guayaramerin e La Paz. Peru: Iñapari, Puerto Maldonado, Projeto TV Digital Inambari, S. Gabán, Cuzco, Urcos, Juliaca, Puno, Desaguadero32, Arequipa, Maratani, Moquega e Ilo33. Fonte: Brasil - Ministério das Comunicações Amazonas

28 Backbone - Em português, espinha dorsal. O backbone é o trecho de maior capacidade da rede e tem o objetivo de conectar várias redes locais. No Brasil, foi a RNP (Rede Nacional de Pesquisa) que criou o primeiro backbone da Internet, a princípio para atender entidades acadêmicas que queriam se conectar à rede. Em 1995, a Embratel começou a montar um backbone paralelo ao da RNP para oferecer serviços de conexão a empresas privadas. Os fornecedores de acesso costumam estar ligados direta e permanentemente ao backbone. Ver http://www.ondeir.rec.br/informatica/dicionario.asp 29 Bogotá está incluída somente no Projeto Telefonia Celular (Roaming). 30 Sena Madureira não será atendida pelo Projeto TV Digital. 31 Brasiléia não será atendida pelos Projetos Backbone de Internet e Telefonia Celular (Roaming). 32 Desaguadero não será atendida pelo Projeto TV Digital. 33 Moquega e Ilo não serão atendidas pelos Projetos Backbone de Internet e Telefonia Celular (Roaming). 56


Com base no quadro acima, pode-se observar que não somente as grandes cidades aparecem enquanto beneficiárias diretas dos projetos do setor de comunicações, como Belém, Manaus (no caso do Brasil), ou ainda Bogotá e Quito. Incluem-se nesse rol pequenas e médias cidades que, dessa forma, são incorporadas à estratégia perseguida com a implementação dos eixos de integração. Ao refletir sobre um tipo de literatura que entende a globalização como oportunidade de desenvolvimento para as grandes cidades, Ribeiro (2000, p. 13) ressalta que o nexo produtivo é entendido como um dos nexos estruturais “entre a dinâmica urbana e o desempenho macroeconômico”, posto que “a obsolescência e a deficiência da infra-estrutura urbana reduzem a produtividade das empresas e, portanto, a produtividade agregada da economia” (ibdem). Sena Madureira, Porto Grande, Oiapoque, Itacoatiara ou Santarém não são grandes cidades, mas serão atendidas por modernos serviços de comunicação. E é notório que tais serviços são importantes para o pleno desenvolvimento das atividades econômicas que a IIRSA e os ENID pretendem estimular, na medida em que a comunicação é um dos elementos vitais para garantir a competitividade das empresas participantes da dinâmica da globalização capitalista, principais beneficiárias dessas políticas. Na Amazônia esse processo não está restrito às grandes cidades e precisa, por isso mesmo, ser analisado de forma mais cuidadosa por aqueles envolvidos na reflexão sobre o urbano nessa região, a fim de compreender melhor as particularidades dessa dinâmica. Até aqui buscou-se demonstrar o papel protagonista exercido pelo Brasil para a implementação da estratégia de integração da infra-estrutura física e econômica da América do Sul. As ações do governo brasileiro nas negociações comerciais e nas discussões sobre o financiamento do desenvolvimento buscam reafirmar a cada momento a hegemonia do Brasil na região. As movimentações dos representantes brasileiros no interior da CAF e do BID, e o papel exercido pelo BNDES nos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, confirmam o interesse brasileiro na integração sul-americana, desde que sob sua coordenação. Por sua vez, a Amazônia assume importância geopolítica e geoeconômica para a materialização dessa estratégia integracionista. Todavia, tal estratégia não está voltada ao atendimento dos interesses das comunidades indígenas, ribeirinhas, extrativistas, agricultores familiares e outros segmentos, que não estão “aptos” à competição imposta pelas “forças do

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mercado�. Tudo leva a crer que esses setores serão os mais atingidos pelos efeitos negativos desse processo, profundamente excludente do ponto de vista social e ambiental.

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IV. Notas conclusivas O capitalismo neste início do século XXI parece esgarçar toda e qualquer relação social a um patamar que coloca em xeque o próprio futuro da humanidade. A diferença entre pobres e ricos se acentua cada vez mais no plano internacional, ampliando o fosso existente entre os países. Todavia, a crise social não está restrita aos países pobres, posto que ela também está presente, de forma cada vez mais aguda, no interior das nações industrializadas do centro capitalista. Se a globalização possibilita o desmoronamento das fronteiras para a livre circulação do capital especulativo, por outro lado, não é capaz, por sua própria natureza, de incorporar milhões de excluídos em busca de emprego e de uma vida digna fora de seus países de origem. Muros físicos e institucionais se erguem a cada momento para impedir a livre circulação de pessoas, principalmente as oriundas da América Latina, África e de outras regiões capitalistas periféricas. De um lado, temos os Estados Unidos e Rússia com capacidade militar de pôr em risco a continuidade da própria civilização, em que pese a disparidade existente na atualidade entre os dois países, posto que o primeiro destina somente para as suas forças armadas recursos correspondentes a todo o Produto Interno Bruto do segundo; de outro, presencia-se o definhamento de Estados Nacionais mergulhados em guerras tribais e/ou étnicas. A crise ambiental é outro grave problema deste período. A concentração populacional em um número cada vez menor de cidades do planeta tem evidenciado o caráter insustentável das mesmas. O desaparecimento acelerado de espécimes animais e vegetais, e a contínua poluição e desperdício dos estoques de água doce são algumas das formas de como se materializa essa crise para indivíduos e comunidades dos quatro cantos do planeta. Entretanto, ao lado disso, surgem grupos e organizações das sociedades civis articuladas em torno de bandeiras de lutas e de ações de caráter internacional, denunciando o caráter insustentável do modelo de desenvolvimento defendido pelos governos dos países centrais, assim como por instituições financeiras multilaterais e empresas multinacionais, entre outros. Daí os protestos que tais grupos de pressão da sociedade civil exercem contra os tratados de livre comércio, as políticas do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio, a proliferação das armas nucleares, a intervenção militar patrocinada pelos países ricos ao redor do mundo e o ataque aos direitos humanos, somente para ficar nesses exemplos de mobilização internacional. 59


Toda essa situação parece não deixar dúvidas sobre a incapacidade dos Estados Nacionais de responderem adequadamente aos desafios históricos do momento. Tal pensamento encontra correspondência nos argumentos de alguns dos autores citados neste trabalho, defensores da idéia de que os Estados-Nação encontram-se completamente subordinados aos interesses do mercado financeiro, das empresa multinacionais e das Instituições Financeiras Multilaterais, constituindo-se dessa forma em meros “gestores de negócios secundários”. O fato é que os Estados Nacionais não são atores unitários e nem representam interesses nacionais únicos, e a própria mobilização internacional da sociedade civil corrobora tal afirmação. É fato também que as condicionalidades criadas pelos países ricos para que os demais tenham acesso a recursos para o financiamento do seu desenvolvimento, estão acopladas a uma agenda das chamadas reformas estruturais que, diferentemente do que é apregoado pelos seus defensores, têm aumentado ainda mais as desigualdades entre as nações, bem como as existentes no interior de cada país. Isto sem falar no caráter ideológico que acompanha e realimenta o receituário liberal. Entretanto, não se pode negligenciar as opções políticas feitas no interior de cada país pela adoção ou não da agenda que interessa às nações mais poderosas. A não ser que se acredite firmemente na inexorabilidade das premissas políticas, econômicas e sócio-culturais da globalização capitalista. Os Estados-Nação são construções históricas. Essa afirmação parece óbvia. Não obstante, é necessária para que não se perca de vista as particularidades presentes na constituição de cada um deles. Isto posto, torna-se inconcebível falar do exercício de soberania por parte desses Estados como algo transcendente ou alheio aos condicionantes históricos. Dito de outra forma, soberania está associada à correlação de forças e à capacidade de hegemonia num dado momento, entre outras coisas. Dessa forma, torna-se irreal falar de perda de soberania colocando no mesmo patamar todos os Estados Nacionais. Evidentemente Estados Unidos não pode ser comparado ao Chile, nem o Brasil ao Haiti. Os Estados-Nação estão entre os principais protagonistas da globalização capitalista. Porém, somente alguns realmente exercem esse papel de forma a impor aos demais os interesses dos segmentos que os hegemonizam. Para isso fazem guerra, fecham acordos, vetam resoluções das Organizações das Nações Unidas, determinam os parâmetros das negociações no interior dos organismos multilaterais, espionam, pressionam, boicotam, impõem sanções e utilizam muitos outros instrumentos de “persuasão” ao seu dispor. 60


O Estado brasileiro nunca esteve entre os mais poderosos do planeta. Todavia, na América do Sul, Brasil e a Argentina sempre mantiveram pretensões hegemônicas sobre essa parte do continente americano, tendo provocado diversos conflitos entre governos das duas nações ao longo da história. No século XIX, por exemplo, Sáenz Peña identificou Brasil e Estados Unidos como perigosos às nações hispanoamericanas, argumento utilizado como uma das justificativas para combater a proposta de integração regional apresentada na I Conferência Panamericana. Hoje, porém, a gravidade da crise política, econômica e social argentina retirou deste país a condição de disputar com o Brasil a liderança sul-americana. E é essa ausência, ao menos momentânea, de um adversário de peso, que faz do Brasil o principal interlocutor do processo de integração regional. A integração econômica da região passou a ser nos últimos anos uma das principais políticas do Estado brasileiro,34 principalmente a partir do governo Collor através dos primeiros estudos coordenados por Eliezer Batista, cujos resultados se tornaram mais tarde a base da estratégia de desenvolvimento nacional, consubstanciada nos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento presentes nos Planos Plurianuais dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, e mantida na sua essência no Plano Brasil de Todos do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Não é exagero afirmar que os ENID já nasceram com uma perspectiva internacional, posto que, desde o início, guardam estreita correspondência com outros projetos previstos pela IIRSA nos demais países sul-americanos e mesmo no Brasil. Por sua vez, a IIRSA está articulada a outras iniciativas importantes de integração existentes no continente americano, como o Plano Puebla-Panamá. Tais iniciativa são elementos importantes para tornar possível a constituição da Área de Livre Comércio das Américas; um dos maiores objetivos dos Estados Unidos na região. Ocorre que, para o governo Lula, o processo de integração regional deve servir para consolidar a liderança do Brasil na América do Sul, em vista da inserção competitiva do país no mercado internacional, bem como da sua afirmação enquanto global player,35 o que em muitos momentos se choca com os interesses estadunidenses. Essa inserção internacional 34

Quando falamos de Estado brasileiro não estamos nos referindo a uma estrutura alheia às disputas presentes no interior da sociedade, como se fosse um ente autônomo. Tais políticas são a materialização dos interesses dos segmentos sociais que hegemonizam o aparelho estatal, vinculados ao processo de globalização capitalista. Pode-se destacar entre eles o agronegócio e poderosos grupos empresariais dos setores automobilístico, eletrointensivo, mineração e calçadista. 61


significa não somente atingir os mercados de outros continentes, como também ampliar o máximo possível os mercados dos países vizinhos às empresas brasileiras - associadas ou não aos grupos empresariais multinacionais que atuam no Brasil. No PPA do governo Lula, a idéia de que o desenvolvimento econômico brasileiro, ou em outras palavras, a inserção competitiva do Brasil no mercado internacional, passa pela integração sul-americana e, por conta disso, tornou-se uma das diretrizes centrais da política externa do país. Não é mero acaso, portanto, o maciço investimento da diplomacia brasileira e de outras importantes instituições governamentais, como o BNDES, além do próprio presidente da República, no sentido de estreitar as relações com os países vizinhos. A atuação dos representantes do governo brasileiro no interior de instituições como a CAF e o BID consiste em garantir a liderança do país no processo de integração sulamericana. Ou seja, que a agenda de negociação e os projetos de interesse do Brasil sejam contemplados nos acordos que estão sendo firmados pelos países da região. Por necessitar de grande quantidade de capital para ser implementada, a IIRSA traz em seu bojo toda uma rede de mecanismos para atrair a iniciativa privada, a fim de que participe de todas as fases da estratégia, desde a concepção dos projetos até a posterior gestão dos empreendimentos. Não obstante, a integração física prevista pela IIRSA será insuficiente para alavancar o comércio intra-regional, de acordo com os seus formuladores e/ou apoiadores, se os Estados Nacionais não negociarem e firmarem acordos para compatibilizar suas legislações e regras aduaneiras, resolverem problemas fronteiriços, entre outros. Além disso, é necessário que cada país tome a iniciativa de melhorar e ampliar sua própria infra-estrutura física, o que o Brasil já vem fazendo através dos ENID. Quanto à Amazônia brasileira (ou a Pan-Amazônia), por ser uma região de grande importância para a articulação dos diversos projetos previstos pela IIRSA, em vista da conexão da América do Sul com os mercados de países de todos os continentes, bem como pela riqueza da sua biodiversidade, vivenciará possivelmente outra fase de instalação de grandes projetos de infra-estrutura, tal como ocorreu há alguns anos antes da crise alastrada pela região a partir da década de 80 do século passado. A tendência, portanto, é que esses empreendimentos atinjam regiões da Amazônia ainda relativamente preservadas, fazendo com

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Um país capaz de manter relações comerciais diversificadas com várias nações, a fim de não se tornar tão dependente, como ocorre com a economia do México em relação a dos Estados Unidos. 62


que recrudesça o desmatamento, a proliferação e/ou expansão de núcleos urbanos, o êxodo rural e a degradação ambiental. Buscou-se mostrar neste trabalho que a IIRSA está fundamentalmente voltada ao atendimento das demandas dos segmentos com forte atuação no mercado internacional. Estes podem ser considerados os maiores vencedores desse processo, caso consigam implementar a IIRSA da forma como ela vem sendo negociada. Por conseguinte, faz-se necessário agora finalizar esta reflexão dedicando espaço para um breve comentário sobre os excluídos dessa política integracionista, ou seja, todos aqueles que não se adeqüem ao jogo e às regras do grande capital. No documento intitulado “Além das Fronteiras, o Novo Regionalismo na América Latina”, o BID (2002, 21) aborda sobre a necessidade de um plano de ação para “proteger os perdedores”36. Para que tal proteção seja efetivada o referido plano propõe a adoção de medidas como: •

Realização de programas de treinamento e procura de emprego que possam suavizar a transição e ajudem os trabalhadores substituídos a se reciclar, tornando-os mais produtivos rapidamente;

Implementação do seguro-desemprego e de programas de garantia de renda;

Criação de redes de segurança social;

Aperfeiçoamento da educação;

Medidas para sanar a desigualdade regional (internamente a cada país);

Conscientização pública sobre a necessidade de que à abertura dos países no Sul corresponda o desmantelamento das barreiras comerciais no Norte. Como se vê, o plano de ação prioriza as políticas de caráter compensatório como meio

de combater as conseqüências da implementação dos grandes projetos de infra-estrutura nessa parte do continente americano, assim como das perdas de direitos sociais, previdenciários e trabalhistas advindas das reformas, que são partes constitutivas da estratégia do novo regionalismo, entre outras coisas. O referido plano também reafirma a orientação política dos últimos anos para o setor educacional, colocando-o a serviço do atendimento das “necessidades do mercado”.

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O documento em questão aborda esse assunto da seguinte forma: “Dado que a a teoria e a experiência mostram que as iniciativas comerciais e de integração adequadamente planejadas podem gerar benefícios líquidos e que suas vantagens não são distribuídas eqüitativamente, a política social recomendada nesse terreno precisa concentrar-se numa maneira de proteger os perdedores e facilitar o processo de ajuste do mercado de trabalho” (p. 21) 63


Talvez o mais importante disso tudo é o reconhecimento, ainda que a contragosto, de que a integração materializada pela IIRSA provocará desigualdades. Entretanto, as medidas propostas em nada alteram a essência da estratégia em execução. Pelo contrário, reforçam e realimentam a mesma, restando aos países do Sul, depois de terem aberto suas economias, esperar que as nações do Norte se conscientizem de que é necessário rever suas tarifas alfandegárias, seus subsídios, enfim, suas barreiras comerciais. Os perdedores são identificados de forma genérica como “trabalhadores”. Todavia, estes são de carne e osso, têm sonhos e esperanças, possuem muitos rostos, pertencem a raças e etnias diversas e não são somente do sexo masculino. E, num país como o Brasil – e numa região como a Amazônia, em particular, são milhões aguardando e lutando quotidianamente por dias melhores. Isto sem falar em tantos outros milhões vivendo nos países vizinhos, cujos Estados Nacionais e os mecanismos de proteção social são mais débeis ainda.

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