Jornal Plural N.8 | 2015

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“E AGORA MARIA?”

Sexo animal Por Tatiana Ribeiro de Souza Libélulas em bambus fazem Centopeias sem tabus fazem...

Chico Buarque

Desde 2013, quando passei a trabalhar mais diretamente com a questão de identidade de gênero, tenho observado que as duas questões mais impactantes para o público que assiste às minhas palestras são a dissociação entre as categorias de sexo, gênero e desejo e a descoberta sobre a pluralidade sexual no mundo animal. A ideia do sujeito unificado fica estremecida quando percebemos que o gênero é uma invenção cultural, uma estilização repetida do corpo sexuado que nos faz pensar que já nascemos para aquela identidade. “Estilização repetida do corpo sexuado” pode ser uma expressão que faça pouco sentido para algum leitor, por isso, antes de ir ao ponto central deste artigo, preciso explica-la. O corpo sexuado é aquele identificado a partir da genitália, de modo que, atendendo aos apelos da lógica moderna de oposições binárias, as pessoas passaram a ser divididas entre machos e fêmeas. A noção de sexo aparece na linguagem como substância e condiciona a subjetivação ao estabelecer compulsoriamente que os portadores de genitália masculina se tornem homens e os portadores de genitália feminina se tornem mulheres. A questão de gênero é, portanto, tratada como uma categoria pré-discursiva, naturalizada e sacralizada. Como se não bastasse a ordem compulsória entre o sexo e o gênero, a cultura moderna, ocidental, de base judaico-cristã, impõe ainda que os homens desejem as mulheres e vice-versa. Dentre os argumentos que advogam essa tese está a ideia de que a relação homossexual subverte o projeto da natureza (ou de Deus) para que as espécies procriem. Pois bem, neste ponto vem a segunda surpresa: os seres vivos desenvolvem as formas mais inimagináveis e diversas de se relacionarem com a genitália, a identidade de gênero e os desejos sexuais. Quem tiver a curiosidade de pesquisar na internet o comportamento homossexual entre os animais encontrará referências a parceiros gays, lésbicas, travestis e até à adoção de filhotes por casais gays da mesma espécie. Toda vez que trato desse assunto em

alguma conferência, percebo que a maior comoção no auditório vem da notícia de que aqueles inocentes carneirinhos, que nossos pais (muitos deles conservadores) nos ensinaram a contar para dormir, são gays. Sim, a proporção de carneiros machos que formam pares de machos e nunca mais têm contato com fêmeas chega a 8%, conforme indicam algumas pesquisas. Talvez os 8% dos carneiros gays sejam um dado insignificante perto das 100% lésbicas lagartas da espécie cnemidophorus uniparens, que só possui exemplares fêmeas. Você pode se perguntar: então como elas se reproduzem? Basta lembrar daquela aula de biologia em que a gente estuda sobre a partenogênese, fenômeno que ocorre entre as fêmeas que procriam sem precisar de macho para fecundar. Ainda assim, as cnemidophorus uniparens se reproduzem melhor quando possuem parceiras. Segundo os relatos sobre o comportamento sexual desta espécie, uma sobe na outra, morde seu pescoço, arranha e se enrosca nela, fazendo com que produza mais ovos do que sozinha. Ao que tudo indica, elas fazem sexo por puro prazer e isso as deixam mais felizes e férteis. Ressalte-se que o comportamento sexual diverso dos animais nem sempre está associado a interesses volúveis, isto é, a uma simples “ficada”. Casais homossexuais de carneiros, albatrozes de laysan, golfinhos, pinguins, dentre tantas outras espécies, formam pares que, embora não se reproduzam, mantêm vida social conjunta que pode durar até que realmente a morte os separe. Eu falei em pares, mas em algumas espécies é comum que se formem trios, como é o caso dos cisnes negros australianos, geralmente formados por uma fêmea e dois machos. Como se vê, ainda que a monogamia seja comum em algumas espécies, o poliamor e os novos arranjos familiares também têm seu lugar entre os animais. Em matéria de casais homossexuais estáveis não se pode deixar de dar especial atenção aos solidários pinguins, que além de viverem juntos nutrem o desejo de criar filhotes e muitas vezes o fazem. Em diversas ocasiões casais de pinguins gays se tornaram manchete por roubarem ovos de outros casais de pinguins, a fim de cria-los. Um dos casos mais notáveis foi o do zoológico em Harbin, no norte da China, onde chegou a se promover a segregação do casal de pin-

guins gays que foi capturado roubando ovos de outros pinguins e colocando pedras no lugar. Felizmente, como noticiou o jornal inglês Daily Mail, o problema parece ter sido resolvido ao se oferecer para o casal dois ovos de um casal hetero com dificuldades de choca-los. Também tiveram um final feliz os pinguins gays Jumbs e Kermit, que vivem no parque no condado de Kent, no Reino Unido, que, depois de abandonarem suas respectivas fêmeas e viverem juntos como um casal, conseguiram adotar o filhote rejeitado por um outro pinguim, que se recusou a chocar a sua cria. Tanto os casos dos pinguins, como o dos carneiros e outras espécies de animais gays e lésbicas, remetem à ideia do desejo e, portanto, à questão da homossexualidade. Todavia, no diverso reino animal também existe o problema da identidade de gênero, isto é, da inconformidade com a ordem compulsória de papeis sociais em decorrência do corpo sexuado. Em estudo publicado pela revista britânica Biology Letters, pesquisadores tentam explicar os motivos que levam alguns machos da espécie circus aeruginosus de falcão, conhecida como águias-sapeiras, a se travestirem de fêmeas, fenômeno também observado no philomachus pugnax, conhecido como pavão do mar. Seja qual for o motivo, o fato é que algumas aves machos preferem se passar por fêmeas. Nem mesmo o papel reprodutivo do corpo obedece a um padrão na natureza. Os cavalos marinhos, por exemplo, se reproduzem por viviparidade, que se caracteriza pela incubação dos embriões em desenvolvimento dentro do corpo do macho. Isso mesmo, é o macho quem fica grávido! Na natureza é assim: tem espécie que não está dividida entre machos e fêmeas; tem espécie na qual essa divisão não faz qualquer diferença para fins sexuais; tem espécie em que macho vira fêmea; tem espécie que pratica a adoção por casais gays; tem espécies monogâmicas, bígamas, poligâmicas e até promíscuas. Portanto, respeitar a ordem da natureza significa reconhecer a pluralidade que advém das categorias sexo-gênero-desejo, em suas múltiplas combinações, o que equivale a descategorizar, colocar em xeque esse sistema ontológico/epistemológico. Natural é reconhecer a liberdade para inventar o amor. Amar é inventar. “Façamos, vamos amar!”

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 8 | DEZEMBRO DE 2014 A FEVEREIRO DE 2015

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