Jornal Plural N.4 | 2014

Page 1

plural JORNAL CULTURAL

NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEIRO DE 2014 | BH | MG | IssN 2319-0000

CRôNICA sOBRE O INFERNO NOssO DE CADA DIA

O inferno e o capeta Por José Luiz Quadros de Magalhães Participando recentemente de um Congresso sobre o novo constitucionalismo latino-americano, em Pirenópolis, Goiás, assisti uma palestra sensacional do professor Llasag, indígena e equatoriano. Na palestra, o professor descrevia o sistema penal de origem europeia no Equador, fundado na ideia de vingança, punição e cárcere e como este se difere da forma como, em sua etnia, são tratadas as pessoas que erram. Ao contrário do sistema punitivo, vingativo ocidental, as pessoas que erram (nomeadas no nosso sistema como criminosos, infratores, bandidos, nomeações estas que comumente reduzem estas pessoas a este nome coletivo para toda a vida), naquele sistema, são tratadas como pessoas que precisam de uma atenção especial, de acolhimento, na comunidade, e não fora dela (isolados, presos), para que não voltem a errar. Não está presente a ideia de vingança, de punição e de encarceramento. O pior no sistema adotado no Brasil (e na maioria dos estados de direito modernos), é que as pessoas que adoecem, consomem drogas sem controle e se encontram em sofrimento físico e mental, são ainda criminalizadas e punidas. Este sistema punitivo e vingativo se reproduz em diversas esferas da sociedade, inclusive, é claro, na família. A triste sede de vingança e punição da cultura hegemônica moderna, ficou expressa no episódio gerado pela ação penal 470 (chamada pela mídia de “processo do mensalão”). Milhões de pessoas, observando a punição dos condenados nas redes de TV, desejando a punição, com sede de vingança. Não acredito que vingança e punição sejam práticas (e valores) que possam solucionar a violência, pois são práticas e valores violentos. Tampouco são valores que possam sustentar uma sociedade que tenha espaço para todos e cada um. Nas minhas aulas de Teoria do Estado,

quando me refiro às políticas de encarceramento em massa, que agora, em pleno século XXI repetem o século XIX, lembro que, para aquelas pessoas que não se adequavam aos estreitos padrões de legalidade e normalidade estabelecidos pelos poucos (ricos) que se encontravam (encontram-se em geral) no poder, existiam três destinos: o presídio, o manicômio ou o inferno. Sempre brinco que o inferno seria a melhor opção, uma vez que o capeta não teria tanta criatividade para fazer tanta maldade com as pessoas como as maldades diárias que acontecem nos presídios e manicômios. Outro dia, conversando com um colega, um bom cristão protestante, esse me dizia que ele achava que a bondade de Deus era tão grande que, embora o inferno exista, este lugar estaria vazio, pois Deus perdoaria e salvaria a todos. O inferno são os outros diria Camus. O inferno está na terra, experimentaram e experimentam muitos. Os campos de concentração do passado e do presente; os manicômios e presídios do passado e do presente; a violência, a tortura física e mental; a fissura da droga; a violência do estado e da empresa (do poder); a miséria, a fome, a doença e a solidão; o egoísmo; a destruição e a indiferença, a falta de solidariedade. A construção cultural da ideia de inferno está presente em várias culturas. O inferno seria o destino dos pecadores, não adaptados. Efetivamente a ideia de inferno inspirou e inspira as punições aos não adaptados, não enquadrados, e ainda, aos que recusam o enquadramento. Estes, por sua não adaptação (não normalização) devem ser punidos pois ameaçam o poder (ameaçam a sociedade e seu discurso oficial). Logo, a partir da aceitação de um mundo transcendental, dividido entre céu e o inferno (agora mais simplificado depois que o Papa acabou com o purgatório), o mundo terreno também passou a funcionar

neste regime simplificado. O céu para quem merece (quem tem poder diz quem merece) e o inferno para aqueles que ameaçam os que merecem. Nesta construção cultural do bem e do mal, as pessoas se dedicaram a construir infernos cada vez mais infernais, para aqueles que foram (são) considerados maus, pelos que se encontravam (encontram-se) no poder. Surge então um problema de lógica. Ao se esforçarem em tornar a vida dos maus, cada vez mais infernal, os responsáveis pela construção do inferno na terra viraram capetas (ou talvez demônios, os assessores do capeta). Assim, estas pessoas, ao criarem o inferno se tornaram também maus e passaram a merecer o inferno após a morte. Buscando o fundamento cultural religioso, devemos nos perguntar: quem administra o lugar (onde a maldade é instituição) onde estão os maus? Os considerados maus passaram a ser torturados em instituições infernais (os hospícios, presídios, delegacias de polícia, sanatórios, quartéis) por outros maus, funcionários deste espaço de maldade institucional. A maldade autorizada, exercida por especialistas em maldade. Assim uma contradição cíclica se instalou nesta lógica que nos acompanha até hoje: ao criarem infernos para punir os maus, tornaram-se maus, merecedores do inferno. Esta lógica passou a justificar a criação de maus para punir os maus. O problema é que esta lógica, sustentada pelas religiões majoritárias no mundo, faz com que, inclusive os bons, que têm a justiça a seu lado, quando passarem a punir os maus (torturadores de torturadores, ou assassinos de assassinos) se tornem os torturadores dos torturadores de torturados, amparados por uma justiça ainda maior pois estarão punindo severamente os que puniram aqueles que ameaçaram o poder com suas condutas inadaptadas. ConTinuação na Página 3


EDITORIAL

CONTO sOBRE A JUsTIçA

Escrever e vida Por Bernardo g.B. nogueira

Enquanto leio os textos da 4ª edição do Plural, fico imaginando as pessoas que gentilmente servem nossas ideias com seus pensamentos. Realmente o ato de escrever circunda nossa existência, chama-nos à dança, não nos devolve. É um ato de amor. Furtivamente, visitei um inferno, outro, mais um céu, uma estória de peixe, e ainda assim presenciei um excesso de vida e de flor, em meio à morte da educação, de uma língua também morta e também mirei a falência de uma canção junto da prisão de um cidadão honesto e bandido. Em meio a esse rascunho da nossa realidade, o tempo e a linguagem, afamados por nos tornarem vivos, se dispõem a um diálogo franco sobre nada. Enquanto escrevo estas palavras acabo por criar uma existência para além delas e para além dos leitores que as recebem. O Plural, cumprindo com seu mote, traz aos seus leitores mais que palavras e textos, convida-os à dança íngreme e trágica do existir. Enquanto nossos amigos escrevem suas palavras, seus sonhos transam com os anseios e mazelas da existência, o fruto disso é um humano relido e inventado a cada página que cai enquanto entornamos poesia, plural! EXPEDIENTE JORNAL CULTURAL PLURAL Editor: Bernardo G.B Nogueira APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva: Cinthia Mara da Fonseca Pacheco Projeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG

CONTATOs, sUGEsTÕEs E ANÚNCIOs: jornalplural@yahoo.com.br

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

2

Matar alguém1 Por Carlos Magalhães Conheci a Dalva em um bar do centro da cidade. Ela estava com um pessoal, tomando cerveja e conversando besteira. Ninguém da turma foi com a minha cara. Não foi difícil perceber. Tirando a Dalva. Ela me olhou sorrindo, foi com a minha cara. E teve uma hora que ela passou por mim, indo ao banheiro. Conversamos um pouco. Nem acreditei que ela gostou de conversar comigo. Alguns dias depois, por coincidência, nos encontramos no mesmo lugar. Dessa vez ela estava sozinha. Tomamos cerveja e conversamos muito. Nessa época meu dinheiro só dava pra pinga. Avisei antes de beber, mas a Dalva não se importou. Pagou a conta. Quando fomos embora, me levou ao quarto onde morava. Ficava num hotel na Rua Oiapoque. O hotel era do seu irmão. Ela fazia faxina e, além do salário, tinha direito à moradia. Conheci o lugar e logo fui embora. O irmão era bravo e não gostaria de me ver no quarto com ela. Com o tempo, engatamos um namoro. Quando ela me apresentou ao irmão, ele disse que estava precisando de um porteiro. Como eu era alto e forte... Pensou em me chamar. Na verdade, a Dalva já tinha arranjado tudo. Passei a trabalhar no hotel e morar com a Dalva, no quarto dela. Foi a melhor época da minha vida. Nos dávamos muito bem. Fiquei amigo do Josué, o irmão. Foram alguns anos tranquilos. Ainda mais depois que tivemos a nossa filha. Já parou pra pensar no que é ter alguns anos tranquilos? Não é pouca coisa. Parece com felicidade. Em um dia de folga, estava andando distraído pela rua, e de repente vi um movimento estranho. No beco que dividia duas fileiras de casas um homem fazia sexo à força com uma mulher. Ela gritava. De dor, de ódio, de tudo. Meu sangue subiu pra cabeça. Fiquei louco de raiva. Arranquei o cara de cima da mulher e enfiei a faca nele, na barriga. Morreu na hora. Podia ser a minha mulher ou

a minha filha. A moça chorava muito, mas mesmo assim me agradeceu. Não sei como, mas a polícia me achou. Alguém deve ter visto. Sei lá. Só sei que fui preso. Julgado e condenado a seis anos. Minha pena foi diminuída e ganhei regime aberto porque o juiz achou que o crime tinha motivo certo. A mulher testemunhou a meu favor. Não achei muito justo, queria ter sido absolvido – o cara tava estuprando a mulher! –, mas poderia ter sido pior. Dava para continuar no hotel e passar no Fórum pra assinar os papéis. Algum tempo depois, estava andando na rua, um cara pulou pra cima de mim com uma faca. Furou a minha barriga. Consegui tomar a faca e acertar ele. Matei. Era irmão daquele que estuprou a moça. Queria vingança. Mas eu não podia deixar ele me matar. Podia? Tinha que me defender. Fico pensando se isso é destino. Matar um. Matar dois. Nunca procurei isso. Fui preso mais uma vez. Apesar de ter matado o sujeito com a faca dele mesmo, dei o azar de pegar um juiz que achou que a culpa era minha. “Motivo fútil”, ainda por cima! Me deu doze anos de regime fechado. Por isso estou aqui tirando essa cadeia. Penso toda noite, enquanto tento dormir, se o juiz achava que o certo era eu deixar o outro me matar. A Dalva arranjou outro marido. Eles já têm dois filhos. De vez em quando ela traz a minha filha pra me ver. Até o marido dela já veio uma vez. É uma boa pessoa. Disse que quando eu sair posso ir à casa deles para ver a minha filha. Mas eu falei com a Dalva que daqui pra frente é melhor ela mandar outra pessoa trazer a menina. Não acho certo ela ficar me visitando. Ela é casada. (Endnotes) 1 Qualquer coincidência é mera semelhança com a história de tantos presos que conheci ao longo

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEREIRO DE 2014

de minhas pesquisas.


ConTinuação da CaPa

A partir da proposição de meu colega protestante, imaginei que talvez o inferno, aquele inferno que muitos irão depois da morte de seu corpo na terra, não seja parecido com os manicômios e presídios. O inferno está dentro da cabeça, o sofrimento e a dor, e para estes que sofrem só há uma solução: carinho, atenção, paciência, consideração. Os que vivem o inferno aqui na terra não deveriam ir para o inferno depois de morrerem. Então comecei a imaginar a instituição inferno para um deus bom (imaginando uma mitologia da diversidade). Como seria o inferno, como um lugar para onde iriam aqueles que se perderam, que cederam à violência e à dor; que cometeram pecados e que infernizaram a vida dos outros, transformando a vida destes em um verdadeiro inferno? Percebi que, talvez, a única maneira de encerrar este círculo infernal de punição severa dos punidores severos, seja a descoberta de que o inferno não pode existir, nem mesmo para os construtores de infernos (infernos instituídos como os presídios e os manicômios) ou o inferno dentro da cabeça (criado pela insanidade de um mundo egoísta). Pensando, novamente, na proposta de meu amigo protestante, poderíamos pensar que, a partir da noção daquele deus bom, poderíamos dizer que, o que as religiões chamam de inferno, aquele lugar destinado aos maus, são espaços de recuperação. Imaginando esta utopia transcendental, poderíamos dizer que, após a morte, os que não se perderam em meio à violência e o egoísmo irão para uma sociedade livre, igualitária, sem fome e sem opressão, sem exploração; solidária; sem doenças, sem desespero, sem consumo, sem egoísmo; com muito amor e tesão; sem patrão; sem governos; sem dinheiro e consumismo. Já, os que se perderam, deveriam ir para estes espaços de recuperação. Nestes espaços poderão se libertar da ignorância, da raiva; do egoísmo e da arrogância; da ansiedade e da perversidade. O lugar para os maus seria um lugar de tolerância, de estudo, de aprendizado, de paciência, de libertação da pobreza de espírito. Este é o inferno do deus bom? Talvez um grande gramado, ao final uma praia, um mar manso, com água clara, raso, tranqüilo, onde funcionários deste deus bom, com paciência e ciência ajudarão finalmente os “maus”, se livrarem da maldade? Também não. Afinal, esta não foi a proposta do meu amigo. Ainda estaríamos, bondosamente isolando, dividindo.

Ele disse que o inferno estaria vazio. Ora, não há outra forma de acabar com o inferno em que muitos vivem, do que realmente acabando com este estúpido simbolismo de um inferno dirigido pelos maus para os maus, ou qualquer outra forma de exclusão, mesmo de um inferno administrado por bons. Talvez, junto com o fim do inferno, acabemos de vez com o maniqueísmo simplificador, com as nomeações redutoras da percepção da complexidade humana. Precisamos perceber o ser humano como um ser multidimensional, complexo, distinto, mutável, permanentemente mutável. Mas...ainda temos um grande problema! Talvez, melhor do que acabar com a lógica simbólica do céu e o inferno é acabar com toda utopia que deixa o paraíso para depois da morte. Talvez, melhor do que chegar em um lugar onde todos os problemas estejam resolvidos, é caminhar permanen-

temente experimentando o desconhecido. Talvez, melhor do que chegar em um lugar onde não há mais nada a ser feito é ter a possibilidade de construir caminhos, e na caminhada podermos ir superando problemas e enfrentando novos desafios. O paraíso? melhor que não exista. Mas, se quisermos ressignificar a palavra “paraíso” é melhor tê-lo como um não lugar, como uma jornada. Assim, o paraíso é poder prosseguir conhecendo, construindo, desconstruindo e reconstruindo, sempre, com a liberdade consciente e toda a diversidade. Um caminho onde todos possam caminhar com diversidade e sem hegemonias seria este “paraíso” em movimento, este não lugar, que não necessitária de nenhum lugar prometido para após esta vida, ou nenhum lugar prometido para se chegar e ficar, nesta vida.

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEREIRO DE 2014

3


Filosofia da invenção

Educação/Transformação: Tristeza e Alegria Por Marcia Tiburi

manece atuando em nossa afetividade porque não soubemos esquecer e seguir vivendo Participamos atualmente de um mo- justamente em nome da alegria de viver que mento de muita tristeza e ressentimento no nos trouxe até aqui. Sim, é a alegria de vicampo da educação. O cenário político é o da ver que nos faz viver. É o sentimento da vida inibição, do medo e da impotência. Precisa- simplesmente acontecendo que nos enche de mos pensar nisso, buscar entender o que isso vontade de viver, ou seja, que nos toma como tem significado em nossas vidas enquanto alegria pura e simples. Difícil falar disso em somos professores, educadores, estudantes uma sociedade em que a depressão parece ou gestores em educação. Toda ética possível epidemia, em que as pessoas só se alegram em educação depende de nossa capacidade por meio de algum tipo de entorpecimento. Mas assim como a tristeza não é ingêde estarmos presentes como cidadãos nesse momento em que a violência física e simbó- nua, a alegria também não é. A alegria de lica vividas atingem de algum modo a todos que falamos filosoficamente não é a alegria boba, aquela alegria de plástico vendida nós dedicados à profissão de ensinar. A tristeza é o que o poder tem provo- pela publicidade; não é a alegria da indúscado nos cidadãos. Sabemos que a tristeza é tria cultural que nos ilude de uma vida sem um afeto negativo. Aquele afeto que, segun- sofrimento, sem trabalho, com abundância do Spinoza, filósofo holandês do século 17, de capital, cheia de riquezas materiais. Esta produz apatia e inibe a vontade de ser que é seria a alegria falsa, a alegria que o sistema própria a todo o ser que vive. Spinoza sabia nos promete para mascarar a sua própria poque os governos e os sacerdotes precisavam breza espiritual. A alegria de que falamos é da tristeza de seus “súditos”. Hoje, podemos filosófica, no melhor sentido do termo. Ela dizer que conhecemos a tristeza quando te- diz respeito à capacidade de esquecer, de sair mos um mau encontro com as pessoas e as do ressentimento, de buscar outras formas coisas com as quais nos deparamos na vida. de vida. A capacidade de agir na direção da Reconhecemos o mau encontro quando, em emancipação em relação à barbárie pode ser dada circunstância, temos vontade de fugir. sua tradução. O desejo de simplesmente esVontade de parar, de abandonar o barco tar no mundo também é uma forma de aleQuando algo nos acontece e queremos nos gria. A alegria é sempre uma irrupção criativa contra a oferta de tristeza de um mundo esconder debaixo do tapete Podemos dizer que o ressentimento tem de opressão e medo. A alegria de sentir que existimos, de extudo a ver com isso. O ressentimento é justamente o afeto que nasce da nossa impossi- perimentar a vida como uma forma de potênbilidade de fugir, de encontrar o tapete onde cia geradora e auto-criativa é o contrário do enfiar o nariz sangrando nos embates do dia entristecimento promovido pelo poder, pela a dia. Nietzsche, filósofo alemão do século violência, pela ordem econômica opressora 19, viu no ressentimento um afeto negati- que pretende apenas manter-se a si mesma vo, que aprisiona e não liberta. Aquele afeto como está e onde está. Desconsiderando, cernão resolvido comum a quem não consegue tamente, a existência humana que estamos esquecer alguma coisa ruim que aconteceu, aqui, neste mundo, para experimentar. A educação deve ser uma prática de de algum mau encontro que permanece em nosso sentimento como uma torneira mal promoção de um certo modo de alegria, a fechada. É o afeto típico daquele a quem alegria da emancipação. Ela é, portanto, a chamamos de “mal resolvido”. Talvez porque teoria-prática da liberdade que se baseia na não tenha conseguido fazer nenhum tipo de lucidez que está para além de toda simples acordo com aquilo que o maltrata, mas isso racionalização, pragmatismo ou utilitarismo. A educação é para o educador a vontasó significa o quanto a coisa toda lhe pesa. O que não conseguimos resolver só per- de de trazer a alegria, de partilhar a alegria,

4

de democratizar a alegria. A relação com o conhecimento é uma forma de alegria, a relação com o outro também. O conhecimento por sua vez se confunde com a educação enquanto campo de experiência: prática-teórica da vida ou teoria-prática da vida cuja razão é a alegria. Ora, a alegria é uma força revolcuionária. Por isso, precisamos urgentemente nos perguntar: o que pode a educação? O que a educação tem significado em nossa época? Como vemos a educação? Como nos relacionamos com ela? Responder a estas perguntas pode parecer fácil para quem, atuando como professor, educador, reflete diariamente sobre sua própria prática. No entanto, mesmo que o profissional da educação saiba muito bem o que faz, o que nem sempre é verdade, sabemos que no nível da cultura, a educação é uma área muito desvalorizada. Estas perguntas são importantes, portanto, para qualquer cidadão. Também para aquele que não se pergunta sobre isso por que pensa que a educação não lhe diz respeito. No entanto, sabemos que a educação é para a vida toda. Que nos educamos todos os dias até o fim de nossas vidas. A desvalorização da educação na esfera cultural, social e econômica, resulta em ignorância geral e em desconhecimento sobre o próprio sentido da educação em escala social. Essa desvalorização ajuda apenas a promover o entristecimento e o ressentimento que tem nos devorado a todos. Vivemos no círculo cínico de um sociedade antiética e antipolítica no qual a educação é vítima de todas as mentiras dos poderosos. A tarefa de cada educador é, hoje, tentar interrompê-lo. Mas como conseguiremos isso se, no âmbito social, político e econômico, a educação é rebaixada à mercadoria? Como podemos tratar aquilo de mais precioso que temos em termos de transformação social, aquilo que dá significado à nossa existência como educadores, como uma mercadoria? A infelicidade que vemos hoje no campo da educação tem a ver com esse rebaixamento à mercadoria.

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEREIRO DE 2014

Continuação na página 5


Crônica surda e muda

Continuação da página 4

E com a concomitante humilhação que professores e estudante, bem como cada escola, sofre sob as lides do sistema que produz este tipo de processo. Do mesmo modo, é como mercadoria que a família, que poderia aliar-se à educação, se serve dela. Para muitos pais, a escola é um investimento, para vários outros, nem sequer é isso. A desvalorização generalizada da educação na esfera da cultura pode vir a ser introjetada pelos próprios professores que, muitas vezes entristecidos com o rumo de sua profissão, se entregam ao “mais do mesmo”, ao conformismo e à apatia. Do mesmo modo que os estudantes que deveriam ser emancipados por meio da escola e da educação voltadas para a vida e a exuberância criativa que caracteriza o ser humano. Contra esse estado de coisas, podemos voltar ao sentido mais profundo da educação enquanto teoria-prática em que está em jogo a nossa alegria de viver enquanto esta alegria de viver implica estar em contato com o outro. Conviver e ensinar a conviver é o exercício diário dos professores. E, neste sentido, a educação é sempre uma ética. Ética, pois por meio da educação aprendemos a respeitar o outro, a reconhecê-lo. Educação é o nosso caminho social e pessoal para a transformação do todo e de cada um. Transformação que é a própria ética que pode refazer desde dentro o cenário político aviltado de nosso tempo. Certamente a educação é o único caminho para sociedades inteiras e para nosso país em especial. Falta-nos, no entanto, projeto. Ou melhor, vontade política para que a educação realize sua potência mais íntima. No entanto, esta vontade política só pode nascer no âmbito de cada um no encontro com os outros com os quais fazemos “comunidade”. Enquanto profissionais da educação, mas também enquanto cidadãos que desejam ser felizes por meio daquilo que fazem e vivem, podemos fazer das nossas práticas de educação, dentro e fora da sala de aula, o bom encontro que nos há de transformar. E não o mau encontro enganador que muitos desejam que a educação venha a ser. Uma educação contra o ressentimento, contra a tristeza, em nome do conhecimento, da liberdade de ser e estar, da arte, de nossa exuberância criativa, é isso o que desejamos e aquilo pelo que temos que lutar no cenário sombrio de nossa época.

Pai, afasta de mim este fala-se! Barroso da Costa Historicamente falando, há não muitos anos, brilhante intelectual – e músico – cantava “Pai, afasta de mim este cálice”1, insurgindo-se contra a censura, a favor da liberdade de expressão. Porém, se então de tão gorda a porca não andava, hoje, de tão magra, ela voa! Se de nada se podia falar antes, hoje de tudo se fala, mesmo que não haja o que dizer. A tão reclamada liberdade de expressão perverte-se em libertinagem, pornografia tagarela. Todos se sentem autorizados a dizer de tudo publicamente, como se quaisquer opiniões a respeito de qualquer coisa fossem dignas de se transformar em discursos. Questões privadas convertem-se em assuntos públicos, representando desperdício da luz e da oportunidade de expressão outrora tão escassas, que, por isso mesmo, deveriam ser reservadas ao que de fato interessa, mas que, contudo, permanece dissimulado. Ou será que, no Brasil, os piores crimes são aqueles supostamente cometidos pelo casal Nardoni ou pelo goleiro Bruno? Seria o caso de uma reflexão geral sobre o que realmente importa: a Justiça ou a vingança invejosa, que se regozija na queda de alguém que tinha o que não merecia, enfim desmascarado, pego na onda de denuncismo que se presta a camuflar o que realmente importa. Caça às bruxas que se presta a manter tudo como sempre foi, ou será que a presença de sarneys, calheiros ou tiriricas não são assuntos muito mais preocupantes para o público brasileiro? Mas disso e deles ninguém quer

dizer. Afinal, é assunto grave, que requer seriedade e aprofundamento de análise que remonta ao Brasil que foi – e permanece – colônia, antes de Portugal, hoje de outros... Melhor ficar na superfície. Assim, respira-se melhor. Ao invés de fomentar o debate sobre a ausência de investimentos na educação básica e na saúde pública, melhor é instigar o clamor por vingança, o protesto popular e acrítico pela redução da maioridade penal, dentre outras medidas simplórias e cosméticas que são anunciadas e vendidas na mídia como eficazes para a solução de questões complexas como violência e criminalidade. Em tempo de culto a uma transparência mentirosa, ao estilo Big Brother, melhor é espalhar câmeras que captam tudo, menos o essencial. Imagem é tudo, sede não é nada, já dizia a propaganda de refrigerante. As palavras esvaziam-se diante da imagem, que, segundo entendimento corrente, dispensa reflexão ao valer mais que mil daquelas (palavras). Nesse cenário, os espaços que deveriam destinar-se preferencialmente aos debates de interesse público2 são cada vez mais destinados a tagarelices, fofocas, cabendo questionar se a bebida amarga não terminou substituída por doce e entorpecente veneno derramado no mesmo cálice de outrora. No final das contas, se a tagarelice não é mais que silêncio loquaz, vê-se que ser filho da outra não é melhor que ser filho da santa. 1

Refere-se a Chico Buarque e à música Cálice, composta em parceria com Gilberto Gil. 2 Vide art. 221 da Constituição Federal.

Renata Fontany Clíncia de Estética Facial, Corporal e Spa

(31) 3484 5394 e 8524 5318 Rua Tabelião Ferreira de Carvalho, 960 Cidade Nova - Belo Horizonte/MG clinica@clinicarenatafontany.com.br

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEREIRO DE 2014

5


Die Rubrik

O latim nas escolas...alemãs Por Thalita Dittmaier

“UM NOVO TEMPO”; esta é a frase chave. O grande desafio de estar à frente do Centro Acadêmico Juscelino Kubitschek é combinar representatividade e coerência política. A primeira deve se orientar por um projeto plural, no qual todas as opiniões sejam colocadas em debate e, dentro de um espaço público seja buscada a construção de um consenso a respeito do melhor caminho a ser trilhado. Já a coerência política, reside no compromisso de trazer à superfície nublada do tradicionalismo uma face do Direito há muito deixada de lado: a sua função jurídico-social. NOVO TEMPO, nome que serviu à musica de Ivan Lins, reflete muito bem as intenções da nova Diretoria do DAJK. Desejamos UM NOVO TEMPO no Diretório Acadêmico Juscelino Kubistchek, romper as amarras do clichê, da mesmice e do chavão, reformulando o movimento estudantil preso a palavras de ordem e discursos prontos, para propor uma cultura de debates construtivos. Tudo isso com inovação, teatro, música, arte, extensão e pensando no amanhã, nas profissões, na qualidade do ensino jurídico. Nós da Diretoria do DAJK, viemos para reafirmar os nossos compromissos mais profundos e essenciais, para imprimir à mudança um caráter de intensidade prática. UM NOVO TEMPO pode parecer muito dificil, pode até parecer utopia, mas que seja ao menos nossa orientação, nosso Norte ou, nosso SUL. DIRETORIA EXECUTIVA GESTÃO 2014 - 2016 Túlio Cária – Presidente Vanessa Berbert – Vice-Presidente Larissa Rocha – Tesoureira

“Língua morta”. Ao latim, quando não restrito aos jargões jurídicos, parecem restar somente epítetos de morbidez, embora o português seja mais que uma língua neolatina, mas antes um latim falado por outro homem, noutro solo e noutro tempo (obrigada pelas aulas, Mestre Zágari!). Não sou especialista em latim e só fui ter contato com a língua nos tempos da faculdade (de Letras), mas, de qualquer forma, tenho achado curioso o quão respeitado é o latim...na Alemanha. Certa vez, uma amiga alemã estava aqui em casa folheando algumas revistas de culinária brasileira do meu marido (sim, as revistas são dele). Lembro-me dela sorrir e comentar que entendia muitas palavras. Um ponto de interrogação pelo ar, da minha parte. E ela: “ich hatte Latein in der Schule”, literalmente, “estudei latim na escola”. Como se latim equivalesse à matemática, ou seja, algo óbvio de ser aprendido na escola. Pelo menos em solo alemão. Passei a notar não somente a variedade de livros didáticos para o latim enquanto disciplina escolar, observando, além disso, a grande força de integração que essa língua é capaz de promover entre culturas diferentes. Minhas consultas médicas são um exemplo, já que, mesmo tendo um bom domínio do alemão, não é sempre que consigo explicar, com precisão, o que há de errado comigo. Há pouco tempo, uma médica, ao ver minha dificuldade em verbalizar certas dores e, ao constatar que eu era brasileira, solicitou, pacientemente, que eu conversasse na minha língua (que alívio!). Não, ela nunca havia estudado Camões na vida, mas aprendeu latim na escola e na faculdade. Disse que, com certeza, iria compreender alguma coisa do que eu estava falando. E compreendeu. O ensino do latim como disciplina escolar já foi obrigatório na Alemanha, assim como no Brasil, até meados dos anos 60. A diferença é que, por aqui, o latim, em muitos casos, sempre foi condição de acesso aos estudos universitários e, mesmo com as refor-

mas curriculares no país, ele nunca deixou de existir nas escolas alemãs. Tornando-se disciplina facultativa em muitas delas, observa-se um aumento de 30% no número de alunos interessados pelo idioma no ensino médio. O idioma de Ovídio corresponde à terceira língua estrangeira mais estudada no país, ficando atrás somente do inglês e do francês. Ainda que uma boa parte do léxico alemão utilize termos latinos, a língua germânica não se ramificou a partir do latim. Filologias à parte, um ledo engano é crer que somente os brasileiros tenham dificuldades na compreensão de textos mais complexos na própria língua materna, daí a grande sacada dos alemães em não descartar o latim das escolas e universidades. O latim é uma língua que exige e não é à toa que, para compreender um texto latino, é imprescindível decompor e analisar suas frases, assim como saber sintetizar suas ideias principais. Latim demanda treino, métodos de leitura analítica e contextualizada, enfim, disciplina. Ler atentamente um texto em latim e traduzi-lo para o alemão consiste num grande exercício de raciocínio no qual são desenvolvidos métodos de abordagem sistemática na compreensão e interpretação de textos e termos acadêmicos, assim como na formulação de traduções. Logo, o grande mérito da aprendizagem de uma língua injustamente “assassinada” reside nestes aspectos, sendo que sua interiorização permite a posterior transferência para estudos multidisciplinares. Não defendo aqui um estudo do latim, tampouco de quaisquer línguas, enquanto estruturas autônomas, abstratas e independentes dos seus falantes e de seus contextos de uso. Interagimos em situações sociais e culturais concretas por meio da linguagem, mas, do mesmo modo, sou a favor do latim e do patrimônio cognitivo-linguístico que ele carrega consigo. O antigo idioma é muito mais que uma base para aprender e entender novas línguas, servindo ainda como estímulo para o pensamento lógico e também como um verdadeiro acervo que nos leva de volta às nossas raízes. E os alemães já perceberam isso.

Erica Xisley – Secretária Geral Arthur Duarte – Diretor de Comunicação Daiane Lima – Diretora de Responsabilidade Social Priscila Vieira – Diretora de Cultura Lorena Moura – Diretora de Eventos Iago Cassimiro – Coordenador de Eventos Izabelle Carvalho – Coordenadora Geral

6

www.torfadvogados.com.br Avenida dos Andradas, 2.287 – 3º andar - Santa Efigênia Belo Horizonte - MG - CEP: 30.120.010 Tel (031) 3318.4534 e (031) 3241.4533

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEREIRO DE 2014


CONTO AOs TEMPOs

A mulher e o rio

Por Tânia Cristina dias Rio guarda segredos, mulheres não. O velho Chico conhece muitas histórias, mas Isabel, que já não é tão jovem, conhece mais. É do tipo que fala tanto, que conversa com objetos, porta, vaso, cadeira, ferro para passar roupas... Se o seu interlocutor é dotado de movimento, tanto mais: - Já vai, né? Costuma falar com o vento empurrando a cortina da janela. – Olha que desse jeito você me mata de susto. Para o gato espreguiçando na varanda. Foi essa corriqueira mania de falar da vida alheia, ou conversar com os seres inanimados, que permutou seu livre destino por um exílio permanente. Desde que soube da estranha transmutação de Basílio, seu vizinho solteiro, repetia a mesma história para todos que encontrava: - Diz que....Basílio cansou de ser gente. Que fosse o pensar ou a vasta extensão da forma que constituía sua existência. Compromissos, trabalho, discussões em família... o que mais lhe cansava era a convicção das pernas. Essa eterna mania de andar. Esse exagero de tantos membros e articulações. Não que fosse exímio na arte dos movimentos, não se tratava disso. Mas de algo mais interiorano. Aquele jeitão que constitui um e não a outro. Peculiaridade. Era do tipo que não gostava de quase nada, alguém ou fato. Fadar-se, era rotineiro, ideológico até. Enquanto falava era possível antever na forma como torcia a boca, elevava as sobrancelhas um gosto extremo por revelar tal história. Bastava qualquer trejeito do ouvinte ou coisa, que se submetia ouvir, ela prosseguia. - Não lhe agradava compromisso, a família era um fardo genético, não gostava de gente, como também, por tanto não se agradar do que existe fora, não agradava de si. Seu corpo era estranho. Por isso o rio São Francisco, foi subterfúgio. Esperança. De assim reverter em qualquer outro tipo de forma. Não pense que ele gostava de você. Não acredite mesmo! Continuava, mal dando tempo para refazer a saliva ou a respiração. Formava aos poucos uma babinha seca e branca na extensão da sua boca. E naquele momento onde iniciava algumas pequenas fissuras nos lábios secos, ela passava rapidamente a língua, em ponta de faca, por eles e continuava sua narração. - Acredite você ou não, mas ele mergulhou os pés na água do rio e esperou acostumar àquela temperatura. Falo isso porque vi tudinho acontecendo, com esses olhos aqui.

Apontava os olhos como se fosse possível ao ouvinte tirar qualquer tipo de prova dali. À medida que apontava, aproximava mais o rosto do interlocutor. De tal forma, que era possível sentir o seu hálito de clousep. - Pisou com cuidado as pedrinhas redondas, duras e se alongou para o fundo, aos poucos. E, quando já estava todo no interior do rio... de certa forma, por certo tempo, foi um pouco homem e um nascente bicho de rio. Porque o passar das horas nas águas amolece as pontas dos dedos. Causam aqueles pequenos enrugamentos. O que ninguém sabe, é que vencer dias e noites nesta mesma imersão, gera brânquias, guelras, limo e visgo. Parava mais uma vez para se certificar do entendimento alheio. Caso não houvesse ela se apossava das suas pequenas recordações das aulas de biologia e continuava. - Mutação. Já ouviu falar sobre isso, não é mesmo? É assim que acontece com as espécies. Bicho que perde as pernas e rasteja que perde os dentes que não usa, que fica no meio de ser ave ou mamífero e outras tantas mudanças de bichos. Eu sei porque conferi, dia após dia, a mudança dele. Para dar mais ênfase ao fato, batia uma das mãos sobre a outra. Causando certa cadência entre o movimento e o ritmo de sua fala. - Foi quando vi Basílio mais Curimbatá que homem. Nesse ponto, exatamente quando acabou a sua transformação ele ensaiou um pequeno balançar de calda. Moveu-se rápido, o corpo surpreendentemente leve, aquoso, brilhante, límpido... Ensaiou um salto, bailarinou salteando água, ar, respingos, prateando e colorindo os movimentos. Era outro. Livre de si e dos outros, dos outros, de tantos outros. Enfatizava o movimento das mãos excluindo a porta, a cadeira , ou a pessoa ou bicho ouvinte a sua frente, como a dizer: Ele se livrou de você também! - E por dias, talvez semanas, (como temporalizar tempo de peixe?) bastou ver a vida, através dos seus recentes olhos redondos. Um mundo aquoso por assim dizer. Comeu do que dispunha: Lodo, algas, insetos. Vinha até a beirinha do rio, assim perto da prainha, e olhava pra gente. Parece até

que dizia: veja, sou outro, mas ainda sou infeliz! E como não dispunha de contentamento interior, nem mesmo em forma de peixe, começou a achar o bom, quase isso. O belo, já estrangeiro. Porque você sabe que existe gente assim, né? Nada está bom, bom de fato. E se tem desse tipinho no nosso mundo de gente, tem também no mundo dos bichos. Acho que tem até pedra assim: tediosa, queixosa, descontente! Respirava. Dava uma pausazinha para aumentar a ênfase de que gente assim é chata mesmo. - Tornou-se um peixe petulante, contagioso. Abusou das iscas, aproximou das redes, fezse visto, exibido. E se não teve êxito nisso, foi por muito pouco. Propiciou a perdição de uma legião de seguidores ingênuos. Em qualquer tipo de mundo , ar, terra, água, existe aquele que simplesmente não gosta. Que ousadamente deseja ser sempre outro e outro e outro. E de tanto querer peixe-Basilio, homem-curimbatá, deixou suas guelras e brânquias, deixou de ser peixe, foi virando aguinha transparente, em meio ao rio barrento, nascenteando, riocenseando caudalosamente. Bem assim do jeitinho que eu estou lhe falando... Acabava de relatar a história e perscrutava o olhar do ouvinte, a respiração, a movimentação da testa ou nariz de surpresa. Porém, depois de tanto contar e repetir, para vizinhos, geladeira, conhecidos, desconhecidos, ventiladores,maçanetas, contou para seu próprio médico. Deitaram-na em um hospital geral, na ala destinada aos transtornos mentais ou às mulheres com muita imaginação. E eu que falo e conto essa história, não relato meu próprio nome, por medo de um mesmo destino ou porque já não lembro mais como me chamo. Mas confirmo que é verdade de fato. Porque vi e assisti cada canto dessa história. Isabel, sem querer provou a dureza do corpo. E teve que viver alienada do tempo naquele hospital. Para sempre. Já Basílio feito rio prosseguiu. O rio e o homem prosseguiram livres, como os homens sempre caminham, aquosos, soberanos, seguindo seu destino mar.

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEREIRO DE 2014

7


Filosofia do amor

A alma da vida Por Tatiana Ribeiro de Souza1 Quando li “A obra prima ignorada”2, de Balzac, detive-me durante muito tempo no trecho onde o personagem que era mestre da pintura advertia François Porbus, um dos seus discípulos, sobre a diferença entre um trabalho bem feito e uma obra de arte. Analisando um quadro admirado por Porbus, o experiente mestre explicou: Uma mulher mantém, sem dúvida, a cabeça desse jeito, segura a saia desse modo, seus olhos se enlanguescem e derretem com esse ar de doçura resignada; a sombra palpitante dos cílios flutua assim mesmo sobre a sua face. É assim e não é. O que está faltando? Um nada, mas um nada que é tudo. Vocês têm a aparência da vida, mas não expressam o seu excesso transbordante, esse não sei quê que talvez seja a alma que flutua nevoentamente pelo invólucro; essa flor de vida, enfim, que Ticiano e Rafael captaram. A fala do mestre sobre essa “flor de vida”, que eleva um trabalho bem feito à categoria de obra de arte, coloca em pauta o próprio sentido da existência. O mundo contemporâneo, ainda mergulhado nas armadilhas da modernidade, oferece todas as condições para que os seres viventes conduzam suas vidas como para constituir uma pintura perfeita, onde não falte nada, uma vez que estejam presentes a beleza, a fortuna, o sucesso e o amor. Todavia, o nada que falta pode ser, como disse o mestre, tudo, tendo em vista a pobreza do que se considera como beleza (fundada em um estereótipo), fortuna (sinônimo de dinheiro), sucesso (confundido com a fama) e amor (reduzido a um casamento). Trabalho bem feito é como podemos, por exemplo, denominar a vida do bacharel em Direito Evguêni Ivânovitch Irtênev,

personagem de Leon Tolstói no conto “O diabo”3, que, depois de salvar os negócios do falecido pai e adquirir certa idade, decidiu dar o próximo passo para a vida emoldurada que planejou para si: casar-se. Evguêni escolheu Liza Ánnenskaia, uma mulher bonita que ao longo do tempo tornou-se apaixonada, compreensiva e boa esposa. Os negócios iam bem. Tudo parecia perfeito para levar uma vida feliz, assim como perecia perfeito o quadro visto por Porbus. Da mesma maneira que se revelou presente no quadro, na estória de Tolstói faltava para Evguêni esse ‘nada’ que é tudo. Apesar de todos os esforços para manter íntegra a vida perfeita que construiu, Evguêni enlouquece por causa de uma lembrança: a de Stepanida, uma camponesa com quem manteve relações quando ainda era solteiro. A obsessão de Evguêni por Stepanida não é explicada no conto pela beleza da jovem, nem por qualquer de seus atributos, mas simplesmente pelo mistério que dela provinha e pela ruptura com a moldura para qual Evguêni havia se preparado. A pintura perfeita que se tornou a vida de Evguêni não era mais do que a projeção daquilo que ele acreditava ser uma vida boa, mas que se revelara sem alma e, portanto, sem nada. A alma que lhe faltava talvez nem fosse Stepanida, mas aquele espaço para o qual Evguêni fechou a porta e que a presença da camponesa insistia em dizer que existe. A lição do mestre pintor para o jovem bacharel Evguêni, ou para qualquer outro, está na revelação de que nenhum trabalho bem feito se torna uma obra de arte sem o excesso transbordante que é a flor de vida.

(Endnotes) 1 Professora de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP 2 BALZAC, Honoré de. A obra prima ignorada; seguido de, Um episódio durante o Terror. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012. 3 TOLSTÓI, Leon. O Diabo. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.

ítaca e áfrica de ítaca roubei helenas tantas em áfrica montei os sete mares casei-me com mulheres todas santas

as vidas são mais tantas e mais quantas em muros e desejos sacripantas castrados e vertidos pelos ares?

cobri meu corpo gasto de alamares.

poetas são delírios bem vulgares. Romério Rômulo

8

Canto de primavera Ao lembrar-me dos lábios tão amados, o medo do silêncio esquece a hora e todas as histórias e os guardados da mente explodem músicas. Lá fora, o sol recebe as lágrimas da aurora, a aluz atinge a planície, veste os prados e com o verde da página decora uma rosa de ausência. Enamorados, a terra, a água e as pétalas das flores pintam o quadro e o cântico do dia com seus pincéis de impávida poesia. O verso solidário traz sabores dos beijos e dos cálidos abraços... -Saudades, nossos lírios e estilhaços. Nathan de Castro

O poeta e o operário o que difere o poeta do operário? na maquinaria o trabalho braçal dá lugar à escolha de substantivos verbos metáforas se um carrega cimento terra areia o outro esculpe o ser talha a essência se um usa espaçador de piso espátula roldana o outro opera em silêncio na construção do poema

A Maiakóvski

Poema extraído do livro “A ETERNIDADE DOS DIAS”, Luiz Otávio Oliani, Editora Mutlifoco, RJ, 2012

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEREIRO DE 2014


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.