RUI ZINK, "Silvina"

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RUI ZINK (1961 -)

Rui Zink: aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli


Silvina

Quando a minha avó morreu, fiquei triste, mas era natural. O meu avô, de quem gostava mais, tinha morrido havia seis anos. A minha avó estava já com 82 anos quando morreu, e a cabeça dela, que nunca fora muito forte, estava a dar de si. Minto quando digo que nunca foi muito forte. Há uma data precisa para a altura em que a sua cabeça deixou de ser forte. Exactamente há cinquenta e seis anos, quando a PIDE (na altura era PIDE ou PVDE?; não sei) prendeu o meu avô com a acusação de ser comunista, e o manteve incomunicável, pelo menos, durante ano e meio. Ano e meio. A acusação ainda por cima era idiota, já que o meu avô não era, nunca tinha sido comunista. Era anarco-sindicalista, sem actividade política outra que não uma aguda consciência cívica e esperantista. O esperanto era uma das bandeiras que acompanhavam o anarcosindicalismo, entre outros movimentos que acreditavam na paz no mundo e na amizade entre os povos. Era bonita, embora um pouco ingénua, esta ideia de uma língua franca, cruzamento de todas as línguas indo-europeias, através da qual todos se entendessem e, não digo esquecerem as diferenças, mas respeitarem as diferenças. Na primeira metade deste século, cidadãos de todo o mundo comunicaram-se através do esperanto, e o meu avô foi, para meu orgulho e seu deleite, um deles. Estaline matou o esperanto na Rússia e, ao que consta, também muitos esperantistas. O meu avô sabia isso. Não podia, pois, ser comunista. Por isso quando a minha mãe e eu fomos pela primeira vez a Londres, numa viagem Abreu, em 1975, trouxemos-lhe de


presente um postal com a estátua de Churchill, que ficou em casa do meu avô, por cima da telefonia, muito depois da sua morte. Ainda assim, a PIDE levou o meu avô sob denúncia falsa (e mesmo que fosse verdadeira!), sem razão compreensível, nem para ele nem para a sua família. Mas o meu avô era forte e sabia que um regime ditatorial tem razões que a razão desconhece; a minha avó não o era. E a principal vítima da prisão acabou por ser ela – e os seus filhos, mas estes resistiram melhor. A minha avó não tinha marcas visíveis de repressão violenta. Não tinha sofrido qualquer tortura, física ou psicológica. Não tinha sido espancada, não a tinham impedido de dormir dias a fio. Não serviria, pois, como testemunha para qualquer Amnistia Internacional. Em boa verdade, a sua ausência de sinais exteriores de violência serviria, quando muito, como prova mesma de quanto o regime de Salazar era brando e não era tão mau como se diz agora. Que só os que «se metiam em política» eram violentados. Ora bem. A minha avó não se metia em política e foi torturada barbaramente. Mas como vou eu explicar isto? A família da minha mãe era, ainda é, pequena. Quero dizer, a família é grande, mas como são todos de Malpica do Tejo (Beira Baixa), estão todos emigrados. Na Alemanha, como praticamente toda a aldeia, numa fábrica de toalhas perto de Dortmund, acho, mas não ponho as mãos no fogo. No Verão, um pouco por todo o país, há a festa da Nossa Senhora. Nunca esquecerei o dia em que vi a minha tia, Ti Isabel Xereza, pôr uma nota de cinco mil na imagem da Senhora, que quando o andor passou à sua porta já ia quase toda coberta de notas. A nota lá ficou, segura, suspeito que por a imagem estar besuntada de cola, mas aceito outras explicações por parte de quem tenha fé. A minha avó teve falta de pontaria e não morreu em Agosto. Talvez então os meus primos se tivessem deslocado à capital para lhe


prestar as últimas homenagens. Como tal não aconteceu, o seu funeral foi discreto e pouco assistido, pois a minha avó não tinha já quaisquer amigos vivos, e os que mais se aproximavam disso eram duas irmãs que nunca saiam de casa, pois já não tinham pernas para descer as escadas. Duas simpatiquíssimas viúvas, de idade mais infinita que indefinida (cem? duzentos anos?), que me davam doces em miúdo sempre que eu subia ao andar delas a dar-lhes a única parte do Diário de Notícias que lhes interessava: a necrologia, única forma de obter informações acerca dos amigos de quem há muito tempo deixou de ter vida mundana. O funeral foi discreto e austero. Sê-lo-ia de qualquer modo. Mas foi mais do que de outro modo qualquer. Apenas quatro pessoas – nós, a sua família. Eu tinha nesse mesmo ano começado a dar aulas, na escola de Belém-Algés. E lembro-me bem que um dos desportos favoritos dos funcionários

de

secretaria

era,

aparentemente,

torturar

os

professores maçaricos com exigências burocráticas aterradoras e incompreensíveis. Não tão aterradoras como a prisão súbita de um marido, não devemos confundir as escalas, mas similarmente incompreensíveis – o absurdo é uma questão de princípio, mais do que de escala, e o horror burocrático é amoral, esbatem-se-lhe as diferenças entre fazer esperar meia hora numa fila inexistente, para exercer o poderzinho, ou carimbar o envio de carga humana para a ignomínia, porque se estão apenas a cumprir ordens. Na secretaria lembraram-se de me pedir um papel da agência funerária a confirmar que tinha de facto ido ao funeral, para justificar a tarde em que faltara. Dias depois disseram-me que afinal não era preciso, mas o mal já estava feito, eu já tinha andado à pancada com o dono da agência.


Tinha simplesmente chegado lá e pedido o papel, e dito para o que era, e o homem decidiu brincar comigo, provavelmente porque era um brincalhão ou por outro motivo qualquer. A profissão de escritor implica tentar compreender os motivos dos outros, mas como é uma profissão de fé mais do que uma profissão remunerada, podemo-nos por vezes dar ao luxo de não tentar compreender os motivos de toda a gente. Os daquele indivíduo, embora isto tenha sido já há mais de dez anos, prefiro que me fiquem para sempre obscuros. «Você quer um papel a confirmar que esteve no funeral? E como é que eu sei que lá esteve? Eu não o vi lá…» «Não me viu lá? Mas como?…» «Não, não o vi lá.» Eu também não tinha reparado nele, é certo, mas é natural que os familiares do ente querido não reparem em muito mais do que na razão

que

naquele

momento

os

move.

E

respondi

que

não

compreendia como é que ele não me podia ter visto, se éramos só quatro pessoas no funeral. «Bom, eu não tenho de o ter visto. Eu não vou a todos os funerais…» Foi aqui que o insultei e ele me quis pôr fora da agência, e eu não saí, e ele me tentou bater, juro que foi ele que me tentou bater primeiro, e eu dei-lhe um soco, dois socos, e quando o deixei levantar-se ele foi buscar uma pistola e eu tive de me refugiar na pastelaria em frente. Já estava mais aliviado depois de lhe ter dado o par de estalos, logo mais lúcido. Faz bem, às vezes. A minha avó não era a pessoa mais forte do mundo, em termos de cabeça, mas nem sempre são os melhores que dão os melhores presentes. Esta história entendo-a eu como seu presente de


despedida. Escrevê-la é simplesmente devolver a dívida. Feliz aniversário, avó. Rui Zink, “Silvina”, Linhas cruzadas – Uma antologia de Contos PT

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