JOAO AGUIAR, "Verba Volent, Scripta Manent", in O Prazer da Leitura

Page 1

JOテグ AGUIAR (1943-2010)

Imagem ~ aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ツェ eli


VERBA VOLANT, SCRIPTA MANENT

Não sei que mais coisas importantes irão acontecer na minha vida. Afinal de contas, só tenho dezasseis anos e se não houver azar vão aparecer-me outras coisas daquelas que um tipo diz: sim senhor, isto é mesmo importante. No meu caso, por exemplo, será: perder a virgindade. Esteve mesmo para acontecer, mas falhou no último minuto, a Vanessa não quis. Claro que isto é uma confissão só para o papel... Seja como for: faz agora um ano, aconteceu-me a coisa mais importante na minha vida – a segunda coisa, porque a primeira, está claro, foi ter nascido. Mas dessa não me lembro. No entanto, acho que o que aconteceu há um ano foi tão importante como ter nascido; e podem rir-se de mim se quiserem, que não me importo e fico na minha. E tudo começou com um grande azar: as notas que trouxe da escola no fim do ano lectivo. Não vou aqui contar misérias, basta dizer que chumbei o ano. O resultado foi uma tempestade do camandro, lá em casa. Quero dizer: uma tempestade tipo tufão de grau oito, como diria o primo Jeremias, que viveu uns tempos em Macau. Não foi só os meus pais atirarem-me à cara com o exemplo da Paula, a minha irmã: com vinte e dois anos e já a preparar tese, sempre boas notas desde o ano zero, a vergonha da minha cara, e tal, e tal. Eu estava mesmo a ver que o meu pai perdia a cabeça e me batia – seria a primeira vez desde que, aos seis anos, eu chamei «preto de merda» ao Isaías, que por acaso é hoje um dos meus melhores amigos. Julgo que só escapei porque a minha mãe disse: «Vai já para o teu quarto e fica lá, que depois falamos».


Eu fui e liguei o computador e comecei a jogar, após ter enfiado nos ouvidos os auscultadores do iPod, onde na véspera metera o último CD dos «Fuckin' Foes», que no ano passado estiveram em todos os «tops». E enquanto jogava e ouvia música, ia remordendo a minha revolta. Pensava: 'Tá bem, pronto, chumbei o ano, pronto. Foi a primeira vez. Não fui o único. Pode acontecer a qualquer um. Houve injustiça. Tive azar nos testes. Não tenho jeito para o estudo, é o que é. Há coisas piores. (Enfim, tudo aquilo que a gente diz ou pensa em ocasiões dessas para arranjar desculpas que são mais para nós do que para os outros: detergentes para o ego, mais uma frase do primo Jeremias.) Joguei e ouvi música durante mais de uma hora, tanto quanto me lembro, a tentar esquecer a cena anterior enquanto continuava a remorder a revolta. Com ela, crescia a zanga, uma zanga sulfúrica: por que é que os meus velhos não compreendiam? Por que passavam eles o tempo a atirarme com a Paula à cara? A Paula é uma miúda, não é a mesma coisa. E além disso ... Não pude completar o pensamento porque os auscultadores me saltaram das orelhas e a voz da minha mãe soou: - Importas-te, Gonçalo? Precisamos de ter uma conversa antes que esse barulho te ponha completamente surdo. Claro que, para ela, os «Fuckin' Foes» eram barulho. Em todo o caso, tinha quebrado uma regra importante que eu conseguira fazer aprovar lá em casa: a de ninguém entrar no meu quarto sem bater primeiro. Foi isto o que eu pensei e a minha revolta aumentou. Só que ela deve ter adivinhado (é uma das coisas chatas que as mães costumam ter) e disse, logo a seguir: - Eu bati à porta, mas tu nem respondeste, claro. Repito que vais ficar surdo, se não te acontecer coisa pior.


Sentou-se na minha cama e olhou-me. De repente, os seus olhos... não sei explicar bem: foi como se um véu os cobrisse, um véu triste. E ela murmurou: - Onde estará o meu Gonçalo? Aquele rapazinho que tinha um sorriso tão lindo, que era tão terno? Que chegava a casa, vindo da escola, e mal acabava de lanchar pegava nos livros e nos cadernos para estudar? E que ainda tinha tempo para a brincadeira? Ao ouvir isto, fiquei pior. Chantagem psicológica, e da mais barata. Mas, em voz alta, só disse: - Eu tenho quinze anos. A expressão da minha mãe mudou tão rapidamente que me espantou. Soltou uma gargalhada, depois respondeu: - Evidentemente, isso diz tudo. A crise da adolescência. A idade do armário e da acne... (Por acaso, eu até nem tenho muita acne. Uma borbulhita, aqui ou ali.) - Mas, meu filho, se é verdade que nós, mães e pais, temos de aceitar essa transição e essa crise, é igualmente verdade que não podemos aceitála

passivamente,

entendes?

Não

podemos

deixar

que

vocês,

os

adolescentes, andem ao sabor da crise. Porque é nesta idade que se decide o género de pessoa que vocês vão ser. É nesta idade que vocês são mais vulneráveis, entendes? Eu repliquei que não, não entendia muito bem. E acrescentei (agora, confesso, já com alguma agressividade) que o assunto não era a minha idade, mas sim dar-me mais uma descompostura por eu ter chumbado o ano; era para fazer isso que ela estava ali, de modo que o melhor era resolvermos o assunto. De caminho, podia fazer o favor de dizer qual seria o meu castigo. E assim ficávamos despachados e eu ficava em paz.


A primeira reacção da minha mãe foi fechar os olhos. Não sei se com desgosto, se com fúria. Fosse o que fosse, quando me respondeu estava perfeitamente calma: - Muito bem. Talvez tenhas razão. Vamos dispensar a descompostura, porque já a ouviste, e passamos ao castigo. Estás em férias de Verão; pois vais passar um mês com o nosso primo Jeremias. Antes de mais, eu disse: «Haaaan?!», porque esperava tudo menos aquilo. A seguir, para responder qualquer coisa mais do que um som sem palavras, articulei, (parvamente, admito): - O primo é teu! - Não digas asneiras. Se é meu primo, também é teu primo, só que em segundo grau. Adiante: já lhe telefonei, ele disse que tem muito prazer em receber-te durante um mês, que até lhe fazes companhia, o que é verdade, porque vive sozinho, como sabes. O pai e eu levamos-te no carro. No próximo sábado. E antes que eu tivesse tempo de abrir a boca, levantou-se e saiu do meu quarto, fechando a porta. Deixou-me ali, especado, atordoado com a notícia. Um mês inteiro em casa do primo Jeremias. Não posso escrever aqui o que pensei naquela altura, porque alguém pode vir a ler isto, nunca se sabe. O primo Jeremias tem (ou tinha, há um ano atrás) sessenta anos bem puxados. Um mês inteiro com ele era um desastre pior que um tsunami (palavra que o primo me proibira de pronunciar, porque, dizia, o português tem o vocábulo «maremoto» e portanto tsunami é uma estrangeirice saloia; ainda por cima, tem manias deste género). Não que fosse, propriamente, um chato; era até um cota divertido, tinha umas piadas que faziam rir. Mas um mês, um mês inteiro, na sua companhia! Solteirão, a viver sozinho em Cabeções do Vouga, no meio de uma quinta meio abandonada, onde ele só conservava a horta e a vinha em bom estado. Uma quinta no meio de nada,


tanto quanto eu me recordava da única vez que lá fora com os meus pais; a aldeia de Cabeções estava a uns quinze quilómetros e a cidade mais próxima a trinta e cinco. Um mês inteiro. Tsunami. Quero dizer, maremoto. * O castigo era ainda mais pesado do que eu pensava. Naquele dia e nos dias seguintes, toda a gente, lá em casa, me tratou muito bem e não se falou, sequer, no chumbo; fui autorizado a sair para ir ao cinema e para ir ter com a minha malta. Cheguei apensar, pobre parvo, que a coisa estava a modos que esquecida e que aquela ideia de chutar-me para Cabeções do Vouga fora uma fantasia ou uma simples ameaça. Mas, na sexta-feira, a minha mãe começou a preparar a minha bagagem e foi nessa altura que me disse: - Ouve lá, Gonçalo: escusas de meter na mochila a Playstation e o iPod e essas coisas todas. Não vais levar nada disso. Fitei-a, sem pinga de sangue e sem palavras que me saíssem da boca. Ela sorriu (devia ser com carinho, mas a mim pareceu-me sadismo). - Meu filho, estas férias com o primo Jeremias são um castigo, não te esqueças. Consegui arranjar fôlego para ripostar: - E não basta mandar-me um mês inteiro para Cabeções? Ainda por cima querem que eu morra lá?! - Que tontice, respondeu a minha mãe a rir. Bem se via como eu estava condicionado, estragado pela tecnologia. Em vez de jogos, passeios ao ar livre, bem mais saudáveis.


Sinceramente: pela primeira vez, nessa noite, considerei duas hipóteses: uma, fugir de casa; outra, telefonar para um daqueles números SOS, que dão apoio a pessoas maltratadas. Só não segui nenhuma dessas duas ideias porque, antes disso, adormeci. Na manhã seguinte, a minha mãe acordou-me às seis, o que era uma indecência em tempo de férias. Mas, como ela explicou, «o pai e eu temos de voltar ainda hoje para casa; são muitas horas ao volante, temos de partir bem cedinho». Não protestei; já estava a habituar-me ao sofrimento. Ou, pelo menos, era o que eu pensava. Ainda não sabia o que estava à minha espera, à chegada. Ou, até, durante a própria viagem porque, por alturas de Santarém, lembrei-me de telefonar ao Isaías; meti a mão na bolsa da mochila onde costumo guardar o telemóvel – vazia. Ansioso, comecei a procurar na mochila, até que a minha mãe se virou para trás e perguntou o que estava eu a fazer. - À procura do móvel! Tenho a certeza de que o guardei aqui

na

mochila. Mas não o encontro! Ela fez um sorriso desinteressado e observou: - Se não o encontras é porque te esqueceste de o trazer. Talvez tenhas pensado nisso e te tenhas esquecido de o fazer, depois. Acontece, às vezes. Continuei a minha busca furiosa, mas tive de render-me. - Ficou em casa! O meu móvel ficou em casa! Não pode ser! Com um breve sorriso, que eu vi pelo espelho retrovisor, o meu pai comentou: - Paciência. Não é morte de homem. Se precisares de telefonar, pedes ao Jeremias. Desde que não abuses, está claro.


«Não é morte de homem», disse ele. Tsunami. Maremoto. E erupção vulcânica, ainda por cima. * Só umas palavrinhas sobre a casa do primo Jeremias. Segundo dizem os meus pais, é uma «casa de brasileiro» e já me explicaram porquê: é uma daquelas casas construídas nos finais do século XIX ou princípios do século XX por tipos que emigraram para o Brasil, arranjaram umas massas e depois voltaram. Nessa altura, as pessoas da alta achavam que tais casas eram todas de muito mau gosto. Mas isto mudou com o tempo: porque no século XX foram construídas casas muito mais feias e porque as «casas de brasileiros» começaram a ser demolidas (e substituídas ou pelas outras, as que são muito mais feias, ou por torres de apartamentos ainda piores), de modo que agora são uma raridade. Por mim, acho piada à casa do primo Jeremias. Telhado coberto com ardósia, muitas torrezinhas redondas. Por dentro, é uma confusão: três pisos, contando o sótão, montes de quartos e salas, escadas e escadinhas, recantos, corredores, enfim, a gente perde-se lá dentro. No Inverno, claro, deve ser fria, mas estava-se no Verão. E foi nesta casa que os meus pais me deixaram, aí pelas três da tarde, depois de a D. Pureza, a governanta do primo (pelo menos, ele chama-lhe assim), me ter levado ao quarto onde eu ia dormir e me ter ajudado a arrumar a roupa. Quando chegou o momento de eles partirem, senti um nó na garganta. O primo Jeremias insistiu em acompanhá-los até à porta da rua e eu fui com ele, talvez na esperança de que pelo menos a minha mãe se arrependesse à última hora; mas não. E quando o carro se afastou, rolando ao longo da álea franjada de plátanos, o primo deu-me uma palmada nas costas (bem podia tê-la dado com menos força) e disse: - Anda, vamos para a sala. Vamos conversar um pouco, enquanto não chega a hora do teu lanche.


Repliquei-lhe que já não era meu costume lanchar e segui-o até à sala, que era grande, sombria, com uma enorme lareira, grandes poltronas onde uma pessoa se afundava, móveis pesados, porcelanas e essas coisas todas. Foi então que aprendi a verdade verdadeira, em todo o seu horror: - Primo Jeremias, em que sala é que está a televisão? - Televisão, Gonçalo? Eu não tenho televisão. Fiquei gelado, de repente. - Não tem... glp. 'Tou a ver. Eu... eu queria pedir-lhe que me deixasse usar o seu computador, de vez em quando... se não lhe fizer diferença... - Nenhuma diferença, meu filho. O que acontece é que o meu computador está avariado. Já chamei o técnico, mas sabes como são os técnicos. E ainda por cima, num sítio isolado como este. Emiti, involuntariamente, um «gargl». A custo, num supremo esforço soprei: - E rádio? Há rádio? - Não. Mas não te preocupes, tenho duas instalações estereofónicas e muitos CD's. Olha, abre esse armário; encontras lá um terço dos CD' s que eu tenho espalhados pela casa. Só para lhe fazer a vontade abri o armário – e já não me admirei com o que vi no interior: várias centenas de CD's, muito bem arrumados e classificados. Havia etiquetas: «Óperas», «Missas», «Concertos para piano», «Canto Gregoriano»... Rangi os dentes e contive as lágrimas de fúria, que podiam ser mal interpretadas. Atrás de mim, ouvi a voz do primo Jeremias, em cuja toada havia uma subtil, mas muito clara, nota de sarcasmo:


- Eu compreendo, meu filho. Enfim, pelo menos temos electricidade e telefone, já não é mau. Telefone. Sim, esse podia servir, para telefonar aos meus pais, dizer-lhes que trocava aquele castigo por uma grande sova ou por um Verão inteiro a trabalhar na estiva. Mas seria inútil, claro. Nem sequer poderia ligar para o SOS Voz Amiga, eles rir-se-iam na minha cara. Já não me lembro bem, mas julgo que cheguei a contemplar o suicídio. * Não me detenho sobre o jantar – muito bom, admito – que a D. Pureza nos serviu. Nem sobre o serão, passado na sala, a conversar com o primo Jeremias. Aliás, foi um serão curto, porque eu precisava de estar só para sofrer. E para remoer à minha vontade. Portanto, aí pelas dez e meia disse que estava cansado da viagem e dei-lhe as boas noites. Quase em frente do meu quarto, havia uma casa de banho, para onde eu já tinha levado a escova de dentes e a máquina de barbear e essas coisas todas; de modo que despachei-me bem depressa. Dez minutos depois já estava no quarto, a enfiar o pijama e a perguntar-me o que poderia eu fazer para chamar o sono. Foi então que reparei: numa das mesas-de-cabeceira (havia duas, uma de cada lado da cama) estava um livro, que ali fora deixado, com certeza, por um anterior hóspede do primo Jeremias. Aproximei-me para ler o título: era «O Nome da Rosa», do Umberto Eco. E era uma coincidência engraçada: três dias antes, em casa, eu tinha visto o filme, na TV. Aliás, lembrava-me de a minha mãe ter dito: «É bom, mas não vale o livro!». Eu perguntara-lhe porquê e ela dissera: - Ora, o livro tem mais graça, tem mais «suspense», a gente compreende melhor as personagens... é melhor, pronto!


Evidentemente, eu não acreditara. Um filme vale sempre mais que um livro, sobretudo quando se trata de «suspense». De modo que, levado pela zanga que sentia e também, confesso, por uma certa curiosidade, resolvi lançar uma vista de olhos àquilo, para poder provar a mim próprio que a razão estava do meu lado e que a minha mãe, além de alinhar num castigo injusto e sádico, também era um bocado tapada. O que me daria o consolo amargo de que eu precisava. Deitei-me, ajeitei a almofada, peguei no livro, abri-o, comecei a ler. Quando interrompi a leitura, porque as pálpebras me pesavam e as letras dançavam na página diante dos meus olhos, vi as horas e senti um choque: eram quatro da manhã. O livro tinha um marcador, que eu aproveitei. E reparei então que já só me faltava um terço para chegar ao fim. Coisa estranha, pensei ao apagar a luz e enquanto me ajeitava para dormir: ainda por cima, já conheço a história. Mas era verdade que sentira mais o «suspense», a tensão - e, sim, também a piada e o interesse daquelas discussões entre os franciscanos e os outros. Para encurtar: na manhã seguinte, até à hora do almoço, enquanto o primo Jeremias se mantinha invisível, saí para dar um passeio a pé, explorando a quinta – mas levava «O Nome da Rosa» comigo e passei a maior parte do tempo à sombra de um carvalho, a ler, tão ansioso por chegar ao fim como se não soubesse já quem era o assassino fanático que andava a matar frades. Ao almoço, o primo disse-me que a minha mãe tinha telefonado para saber como eu estava e «se estava a portar-me bem». - Eu disse-lhe que sim – acrescentou ele. - Embora não soubesse o que andavas a fazer, não acreditei que estivesses a pegar fogo à casa. Respondi-lhe que estivera a ler «O Nome da Rosa», que encontrara no meu quarto. - Ah, sim? A Pureza deve ter-se esquecido de o arrumar na biblioteca, Estás a gostar?


Discutimos o livro durante o resto do almoço. Depois, o primo disse que ia fazer uma sesta. Lá fora, o calor apertava, portanto fui para a sala de estar, que era fresca, e, claro está, levei o livro comigo. Acabei-o em hora e meia. Só quando o fechei é que me dei conta de que a casa parecia deserta, de tão tranquila, mas eu estava a ouvir música. Não sabia de onde ela vinha, pareceu-me que era do piso superior. E também não sabia que música era, naturalmente: qualquer peça clássica ou então música de igreja. Não vou dizer se gostava ou não de ouvir; o que digo é que aquela música, escutada assim, um pouco ao longe, numa casa que parecia deserta, deu-me como que um arrepio. Portanto, decidi descobrir de onde vinha. Comecei a procurar, guiado pelo som. Como eu já disse, a casa era grande, cheia de recantos, salinhas, escadinhas. Mas enfim, eu tinha o som a orientar-me. Vinha, sem dúvida, do andar de cima e encontrei uma escada em caracol, apertada e curta, e enquanto a subia o som tornava-se mais forte. No topo, dei com um patamar pequeno sobre o qual se abria uma porta e a música vinha de lá. Entrei – e quase caí de espanto. Era uma biblioteca grande e a condizer com a casa: cheia de recantos. E cheia de livros, claro: tantos que eu nunca vira uma coisa assim. As estantes tapavam todas as paredes e estavam cheias. Havia também duas estantes de madeira escura, com a forma de hexágono, plantadas a meio da sala, também carregadas de livros. E entre essas duas «torres», vi uma mesa enorme, pesada, e sentado a essa mesa estava o primo Jeremias, com três calhamaços abertos à sua volta e escrevendo notas à mão, com uma caneta de tinta permanente, um objecto em que nunca peguei. Ele olhou-me e sorriu. - Olá! Então, encontraste a biblioteca. Não me digas que já acabaste «O Nome da Rosa»? Isso é que foi uma maratona...


Respondi-lhe, com veneno, que não tinha mais nada para fazer. Ele, aparentemente, não ouviu. Se eu queria outro livro, disse, podia talvez recomendar-me um, bem escrito e bem divertido. Enquanto dizia isto, levantou-se, chegou-se a uma estante e tirou de lá um volume pequeno, encadernado a couro, e veio entregar-mo. «O Mandarim», do Eça de Queirós. - Eu já vou ter de ler o Eça para o ano! - protestei. - «Os Maias», que é um cartapácio... Pela primeira vez, o primo Jeremias fez um ar severo. - Não tenho nada que ver com as asneiras do Ministério da Educação. Em minha casa, um rapaz da tua idade não lê nem «Os Maias», nem «A Relíquia», nem vários outros títulos. Por causa das dúvidas, tenho-os além, fechados à chave. E apontou para uma secção da estante de onde tirara «O Mandarim», onde havia uma porta de vidro, com fechadura. - Mas porquê? - Porque são livros imorais. E também porque, na tua idade, não os compreenderias. Em minha casa, as regras são as minhas. Já «O Mandarim» é uma concessão... mas enfim, seja. Se o quiseres ler, bem entendido. Se não, tens aí livros para a juventude: toda a obra da condessa de Ségur, por exemplo... Eu não sabia quem era essa condessa, mas agarrei-me ao «Mandarim», à falta de coisa melhor para fazer. Li-o todo, durante o resto da tarde e à noite, na cama. Tenho de confessar que gostei – e até ri, sozinho, ao ler certas cenas e certas frases. Mas, cá dentro, tinha a roer-me, como vinagre, as palavras do primo Jeremias: aquele reaccionário era pior que os professores! Em casa dele, eu


não podia ler certas coisas do Eça - nem «Os Maias», que teria de ler daí a um ano! Era imoral, vejam só! De manhã, cedo, logo depois do pequeno-almoço, subi à biblioteca. Para arrumar «O Mandarim» na estante e também porque, pela janela, vi o primo Jeremias lá fora, de cachimbo na boca, a afastar-se de casa na direcção da vinha. Arrumei o livro. E não seria humano nem teria a minha idade se não fosse olhar para a secção fechada da estante, o pequeno armário onde repousavam, fechados à chave, «A Relíquia», «Os Maias», «O Crime do Padre Amaro» e vários outros livros: um que se chamava «Quo Vadis?», de um gajo com um nome que eu não sei ler, mais uns dois ou três de um outro chamado José Marmelo e Silva e... mas que interessa dizer os outros títulos? O que importa contar é isto: com uma certa irritação, eu mexi nas portas de vidro com ripinhas de madeira que me impediam o acesso aos livros proibidos do primo Jeremias. E descobri que, dando um empurrão, com um certo jeito, era possível abrir (e fechar) a porta. Eu não sou nenhum malcriado. Sei muito bem que não devia fazer o que fiz. A culpa foi do primo Jeremias, ao proibir-me aqueles livros, ao dizer que eram imorais e que não eram para a minha idade. Comecei com «A Relíquia», que, aliás, achei sensacional. E corri-os a todos, até «Os Maias», que não percebi completamente, é verdade, mas tem partes muito boas. Enfim: foi tudo. Li-os na biblioteca, de manhã, quando o primo estava fora de casa, mas sempre com um ouvido alerta, não fosse ele voltar. O meu medo era chegar ao fim daquele mês sem os ter acabado. Mas consegui, ainda tive mesmo tempo para ler outros. * Estou agora a meio do ano lectivo. Tudo a correr bem, sobretudo a Português, mas a Matemática também não vai mal.


Só que alguma coisa mudou em mim, não sei se para melhor, logo se verá. Por exemplo, não acho muita graça aos jogos de computador. E já duas ou três vezes a minha mãe veio chatear-me, porque estou a ler o Eça, e o Camilo, e mais uns quantos, quando devia estar a estudar. Uma coisa me intrigou ultimamente: uma coisa que o meu pai disse à minha mãe quando ambos julgavam que eu não estava a ouvir. - Filha, tenho a vaga impressão de que o teu plano, com o Jeremias, correu bem de mais! Coisas de adultos. Não vale a pena ligar. João Aguiar, in O prazer da Leitura


 João Aguiar

 Autobiografia

 Wikipédia


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.