Diário de um Pregador Itinerante

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‐ Sociedade Internacional para a Consciência de Krsna ‐

Diário de um Pregador Itinerante Volume 8

Sua Santidade Indradyumna Svami


Diário de um Pregador Itinerante Volume 8 Autoria de

Sua Santidade Indradyumna Svami (ACBSP) Tradução de

Bhagavan dasa (DvS) Revisão de

Bhaktin Flávia Reis (DvS) Visite‐nos na internet: www.harekrishna.com.br e‐mail: ajuda@harekrishna.com.br.


Dedicado à Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Svami Prabhupada, Fundador‐Acarya da ISKCON e da BBT.


Sumário

I

Prefácio

1

Um Herói Não Glorificado

5

2

Um Velho Amigo

12

3

O Dever de um Mendicante

17

4

Uma Segunda Chance

21

5

Sua Misericórdia Resplandecente como o Sol

28

6

Uma Inundação de Bem‐aventurança

34

7

One Love

38

8

Verdades Auto‐evidentes

45

9

Dispostos para a Paz, Prontos para a Guerra

49

10 Oferenda de Vyasa‐puja

54

11 Adeus

56

12 Sentimentos de Saudade

58

13 Vamos Apenas Andar por Aí

62

14 Sem Problema, Gente Boa

70

Refúgio Além das Dualidades

76


‐ Diário de um Pregador Itinerante ‐

Prefácio S. S. Indradyumna Svami apareceu neste mundo em 20 de maio de 1949 em Palo‐Alto (Califórnia, EUA). Deixando seus estudos ainda bastante jovem, Indradyumna Svami devotou‐se a buscar pelo conhecimento espiritual. Ele finalmente alcançou sua meta em 1970, quando descobriu a Sociedade Internacional para a Consciência de Krsna em Detroit, Michigan. Após muitos meses de associação com os devotos, ele juntou‐se ao templo em East Jefferson, próximo ao centro da cidade. Após a primeira semana no templo, ele começou a participar, e mesmo a liderar, grupos de hari‐nama (canto congregacional dos Santos Nomes do Senhor) e de distribuição de livros. Nesse mesmo ano, Indradyumna Svami encontrou‐se com seu eterno mestre espiritual, Sua Divina Graça A. C. Bhaktivedanta Svami Prabhupada, o Fundador‐Acarya da Sociedade Internacional para a Consciência de Krsna, e recebeu tanto a iniciação hari‐nama quanto a iniciação bramânica. Seguindo a instrução de seu mestre espiritual de “pregar destemidamente com fé nos santos nomes”, Indradyumna Svami partiu dos EUA em 1971 (apenas um ano após sua adesão ao movimento) e colocou‐se em direção à Europa, onde assistiria aos devotos na abertura de novos centros. O desejo de Srila Prabhupada era que homens honrados e bem‐instruídos dedicassem suas vidas na propagação da Consciência de Krsna por todo o mundo. Com o intento de satisfazer esse desejo de seu mestre espiritual, Indradyumna Svami aceitou sannyasa (a ordem renunciada de vida) em 1979, com a idade de 29 anos. Em 1983, ele serviu como presidente de templo por alguns anos no projeto New Mayapur da França. Desde 1986, Indradyumna Svami viaja e distribui a mensagem da Consciência de Krsna por todo o mundo em locais como os EUA, a Polônia, a África do Sul, a Austrália, a Nova Zelândia, a Hungria, a Ucrânia, a Rússia e a América do Sul. Ele é famoso como um dos mais ativos pregadores da ISKCON. Um exemplo proeminente de sua pregação em grande escala é a turnê itinerante Festival da Índia, a qual ele organiza anualmente na Polônia. Tais festivais atraem milhares de pessoas, que aprendem sobre a Consciência de Krsna e desfrutam de seu néctar através de música, dança, teatro, discussões espirituais e prasadam (alimento primeiramente oferecido ao Senhor). Desde 1995, Indradyumna Svami escreve o seu Diário de um Pregador Itinerante, que descreve muitas de suas aventuras e realizações durante suas contínuas viagens ‐ e é a leitura deste que estamos certos de que será muito proveitosa para o amigo leitor. Hare Krsna.

Os Editores I


‐ Capítulo Primeiro ‐

Um Herói Não Glorificado Nairóbi, Quênia De 16 de janeiro de 2007 a 16 de fevereiro de 2007

Quando entreguei meu tíquete e passaporte para a mulher no balcão de controle de embarque do aeroporto Johannesburg, ela me olhou e perguntou para onde eu ia. “Nairóbi, Quênia”, respondi com um sorriso. “A negócios ou a passeio?”, perguntou curiosa. “Em missão”, disse eu com entusiasmo. Por reflexo, ela disse: “O senhor gosta mesmo do seu trabalho, não?”; “Sim, eu gosto ‐ gosto muito”. “Quantas malas o senhor vai deixar no bagageiro?”, ela continuou. “Nenhuma”, eu respondi. “Nenhuma?”, ela disse surpresa. “Então, quantas bagagens de mão o senhor tem?”. “Apenas esta bolsa de Buddha”, eu disse mostrando a ela a pequena bolsa vermelha que eu carregava em meu ombro. “Isso é mesmo tudo?”, ela perguntou. “Sim”, respondi orgulhoso. Desapegar‐me de minhas posses e viajar apenas com o essencial era meu “voto de ano novo”. Não seria fácil, mas eu estava determinado. Uma vez Tamal Krsna Gosvami encontrou com Prabhupada no aeroporto Kennedy, em Nova Iorque, para um vôo até Londres. Maharaja estava começando a atuar como secretário de Prabhupada. Quando Prabhupada viu que Maharaja tinha apenas uma pequena bolsa vermelha, ele disse “Muito obrigado”, indicando que ficara satisfeito com a renúncia do Maharaja. Durante o vôo, eu li sobre o Quênia na série Lonely Planet. Um país de trinta milhões, que foi chamado pela British de “A jóia do leste da África” graças a sua beleza e recursos naturais abundantes. Mas como muitos outros países africanos, teve seus dias de desesperança, especialmente no tempo do comércio de escravos no fim do século XIX e durante a árdua luta por independência dos ingleses no começo dos anos 50. Mas li também que, desde a independência, o sistema político do Quênia não tem sido muito melhor para o povo. Corrupção, prisão de dissidentes, censura e problemas políticos têm impedido a consolidação da democracia no Quênia. Claro que, para os devotos do Senhor Krsna, a parte mais significativa da história do Quênia começa em 1971, quando Brahmananda Svami introduz a consciência de Krsna no país. Como todos -5-


os missionários anteriores, Brahmananda deparou‐se com difíceis tarefas, comuns a um pioneiro na propagação do Movimento no continente africano. Em apreciação a este serviço, Prabhupada certa vez derramou lágrimas lendo os esforços empreendidos por Brahmananda na pregação ao povo da África. E, reconhecendo as austeridades de seus discípulos, Srila Prabhupada, por duas vezes, visitou pessoalmente o Quênia. Eu estava visitando o país para ver um grupo de jovens garotos do templo da ISKCON de Kisumu. Eu estava pensando na possibilidade de levá‐los para nosso festival itinerante na Polônia este ano. Little Go Kool é um grupo de garotos de dez anos que cantam músicas devocionais em rap e com dança coreografada. Eles fazem parte de um orfanato conduzido pelos devotos de Kisumu. O grupo estava se apresentando em um festival em Nairobi, organizado por Mahavisnu Svami e Giridhari Dasa da Inglaterra. Quando cheguei a Nairobi, Govinda Prema Dasa, um jovem em seus vinte anos, recebeu‐me. “Bem vindo a Kirata‐suddhi”, ele disse. “Esse foi o nome que Srila Prabhupada deu ao nosso templo. Significa o local onde os kiratas ‐ as pessoas desta terra ‐ se purificam”. “Julgando pelo comportamento amigável do serviço de imigração”, eu disse, “parece que eles gostam de nossa presença aqui”. “Ah, sim!”, ele respondeu. “Nós estamos cantando, dançando e distribuindo Prasadam por mais de trinta e cinco anos em Nairóbi”. “De maneira geral, o povo do Quênia é amoldável”, Govinda Prema continuou enquanto dirigia para a cidade. “Há mais de setenta tribos no país, mas raramente há violência entre eles. A maior parte das tribos nos aceitam de forma igualmente pacífica”. “Ali estão alguns guerreiros Maasai”, disse ele apontando para um grupo de dez homens que atravessava a rua em tradicionais vestimentas tribais. “Esta é uma tribo que se manteve alheia à modernização do Quênia”, ele disse. Mais de perto, enquanto passávamos de carro por eles, vi que usavam grandes colares de pérolas, uma manta vermelha e carregavam uma clava. Alguns tinham seus cabelos tingidos de laranja. “Eles são nômades”, Govinda Prema disse. “Eles bebem sangue de suas vacas fazendo uma pequena incisão em uma das veias do animal”. Eu envesei as sobrancelhas imaginando. “Mas eles nunca matam a vaca”, ele disse rápido. “Estes guerreiros devem ter vindo até a cidade provavelmente para venderem suas ervas medicinais, que são mais ou menos efetivas”. “Vou tentar me lembrar disso se eu ficar doente”, eu disse tentando dar um ar jocoso. “Falando nisso”, Govinda Prema perguntou, “você se vacinou contra febre amarela antes de vir?”. “Sim”, respondi mostrando meu certificado de vacinação. “Eles não me deixariam voltar à África sem um destes. Isto me custou $100 e doeu MUITO”. Govinda Prema riu. “Não há febre amarela nas cidades grandes”, ele disse, “apenas na região rural. Em Nairóbi você pode conseguir um cartão falso como esse por $2 com qualquer agente de viagem. Aqui, porém, você tem que se preocupar com a malária. Use uma rede contra mosquitos à noite”. -6-


“Você já pegou malária?”, perguntei. “Várias vezes”, ele respondeu rindo. “Agora os mosquitos estão procurando por pessoas novas para morderem”. Dei um meio‐sorriso e depois cochilei, exausto pela viagem. Uma hora depois, eu acordei enquanto entrávamos na garagem do templo. Eu estava pasmado de ver uma grande estrutura de templo, repleta de motivos védicos. “Eu não sabia que o templo era tão grande”, eu disse. “Ele foi construído em 1994 – e aí vem o devoto que foi responsável pela sua construção”, Govinda Prema disse olhando para um devoto que caminhava em direção ao nosso carro. “Este é Umapati Dasa, o presidente do templo”. “É um prazer conhecê‐lo”, eu disse a Umapati. “Ele coletou alguns milhões de dólares para construir o templo”, Govinda Prema disse com orgulho. “Ele canta diariamente trinta e duas voltas e nunca faltou a um mangala‐aratik em dezesseis anos”. Umapati abaixou a cabeça tímido. “Já está bom...” ele disse. “Este templo foi desejado por Prabhupada, por isso ele existe. Ele pessoalmente trouxe nossas deidades de Radha‐Krsna para Nairóbi e As instalou”. Umapati me mostrava a estrutura até chegarmos à sala de prasadam. “Esta foi nossa primeira sala do templo”, ele disse. “Nós a usamos até a sala principal do templo ter ficado concluída no andar de cima”. “Um dia, trinta e cinco homens, todos armados com AKs 47, invadiram aqui estrondosamente enquanto realizávamos a aula do Srimad‐Bhagavatam. Eles tinham vindo para roubar, e mandaram que todos se deitassem no chão. Quando eles viram a murti de Srila Prabhupada na Vyasasana, eles gritaram: ‘Deite‐se no chão você também! Como os outros!ʹ.”. “Naturalmente, a murti não se mexeu. Por três ou quatro vezes eles gritaram com Srila Prabhupada, cada vez em um tom mais agressivo. ‘No chão ou vamos atirar!’. Um deles atirou com seu rifle enquanto apontava para a murti. Os ladrões, então, ficaram muito assustados vendo que Srila Prabhupada permanecia totalmente intrépido, e, de repente, fugiram. Srila Prabhupada nos salvou!”. “Essa é uma ótima história”, comentei. “Nem sempre somos tão afortunados”, Umapati continuou. “As pessoas próximas costumam nos roubar. Mas este problema diminuiu desde que começamos a distribuir centenas de pratos de Prasadam diariamente ao longo de toda a cidade. Nós temos multidões de indianos e africanos nos nossos Festivais de Domingo. Amanhã você vai conhecer os visitantes da redondeza no festival. Os devotos estão divulgando isso agora mesmo em bairros da periferia”. Na manhã seguinte, na sala do templo, conheci Giridhari Dasa, um humilde devoto de aproximadamente quarenta anos. Ele e Mahavisnu Svami são os pilares do festival do leste africano. Tribhuvanath Dasa, meu irmão espiritual, começou o festival em 1995 e continuou até sua morte em 2002. “Tribhuvanath foi um grande pioneiro na pregação da consciência de Krsna ao longo de Uganda, Tanzânia, Rwanda, o Congo e Quênia”. Giridhari disse tomado de emoção: “Poucos sabem -7-


quão duro ele trabalhou e quantos riscos assumiu enquanto pregava nesta parte do mundo. Ele encarou muita opressão disseminando o movimento do Senhor Caitanya. Ele é um herói não glorificado”. Movi minha cabeça demonstrando concordar. Eu conheci Tribhuvanath em Londres nos anos 70. Às vezes eu desejava levar meu grupo de Sankirtana da França para a Inglaterra para associar‐me com os devotos ingleses. Nós costumávamos sair em Harinama com Tribhuvanath, que podia conduzir o cantar pelas ruas por horas com um sorriso enorme no rosto. As pessoas se sentiam naturalmente atraídas por ele. “Ele imediatamente estabeleceu o Festival de Domingo no leste da África com um pequeno grupo de devotos da Inglaterra”, continuou Giridhari. “Ele era muito dedicado, e trabalhava sem nenhuma expectativa de reconhecimento. Você não pode imaginar quão difícil foram aqueles dias: tivemos que lidar com governos repressivos, guerras civis, péssimos transportes, pouco aparato, pouco dinheiro, poucos devotos e doenças e moléstias”. “Uma vez fomos capturados na floresta do Congo e colocados em uma prisão de madeira por dias, cercados por guardas armados. Pensamos que iríamos morrer. Um dia, sem explicação, eles nos soltaram”. “Uma vez Tribhuvanath contraiu malária cerebral e quase morreu. Mas isso não o fez diminuir seu ritmo. Por sete anos ele fez trinta festivais por ano, de novembro a janeiro. Ele tinha muita energia e um desejo intenso de dar os Santos Nomes às pessoas. Quando não estava realizando festivais, ele estava arrecadando fundos para realizá‐los. Apenas a morte pôde detê‐lo”. Giridhari estava um pouco emocionado. Ele disse: “Você terá uma idéia do que ele fez todos esses anos quando visitarmos o festival hoje”. Quando me sentei para dar a aula, pensei: “Da mesma forma que Prabhupada apreciou muito o serviço de Brahmananda, certamente ele aprecia o de Tribhuvanath. Ser pioneiro da Consciência de Krsna em lugares como este requer muita fé no mestre espiritual e em Krsna”. Naquela tarde, os devotos me levaram de carro até o bairro onde nosso festival aconteceria. Eu estava nervoso enquanto passávamos por uma área onde se amontoavam carneiros e cabanas. “Eles pagam dois dólares por mês de aluguel”, disse um devoto. “Alguns deles caminham vinte e cinco quilômetro todos os dias para trabalhar, e novamente vinte e cinco quilômetros de volta”. Eu estava sentado no banco da frente quando um grupo grande de crianças me notou. Elas pulavam e corriam em direção à van gritando algo que parecia ser “Comida! Comida!”. “Parece que eles querem Prasadam”, eu disse ao devoto que dirigia. “Não”, ele disse rindo. “Eles estão dizendo ‘Muzungu! Muzungu!’, que significa ‘homem branco!’.”. Enquanto dirigíamos ao longo da estrada empoeirada, fiquei chocado ao ver pessoas vendendo, ao longo da estrada, sapatos usados, roupas rasgadas, papel higiênico e legumes visivelmente estragados. Quando estávamos próximos do local do festival, comecei a ficar curioso de como seria esse local. Imaginei que seria como meus festivais na Polônia, com um grande palco, um restaurante vegetariano e lojinhas e tendas apresentando a cultura védica... Eu estava prestes a ser surpreendido. Após fazer uma curva e cruzar um bueiro aberto, vi o espaço do festival. Consistia basicamente -8-


de um pequeno palco. “É isso?”, perguntei ao motorista. “Você esperava mais alguma coisa?”, ele perguntou‐me. “Bem, sim. É que...”. Ele riu e disse: “Se tivesse mais, eles roubariam bem de baixo do nosso nariz. Isso aconteceu antes. Em um festival, eles roubaram tudo. Eles são pessoas pobres e desesperadas. Essa é a fórmula de Tribhuvanath. Seja paciente. Você verá que funciona. Lembre‐se: Você está no coração da África, não na Europa ou na América”. Eu desci da van e comecei a caminhar em direção à multidão. “Quantas pessoas você acha que estão aqui?”, perguntei ao devoto que me acompanhava. “Essa é nossa regular multidão de alguns milhares”, ele respondeu. Quando finalmente cheguei ao local, sentei‐me em uma cadeira. Ao me verem, um pequeno número de crianças africanas na primeira fileira acenou e gritou: “Muzungu! Muzungu!”. “Você tem certeza que eles não vieram apenas para ver algumas pessoas brancas?”, perguntei a Giridhari. Sorrindo, ele respondeu “Isso também faz parte, mas a maior parte destas pessoas veio sabendo que se trata de um programa espiritual. Eles estão interessados porque a vida material não tem absolutamente nada para lhes oferecer”. Olhando a multidão, percebi que grande parte dos visitantes não tinha sapatos. Também vi muitas pessoas carregando copos, tigelas, pratos e até panelas. Percebendo que eu observava, Giridhari disse: “Eles ouviram dizer que Hare Krsna significa distribuição de alimentos, mas eles farão boas perguntas ao fim. Você vai ver”. Enquanto eu esperava pelo show que começaria no palco, eu olhei ao redor. Parecia que estávamos localizados em um local imundo. Nós estávamos cercados, por todos os lados, por construções quebradas ou inacabadas com roupas esfarrapadas penduradas por toda parte. No final do lote, havia um bar, New Joes, que não tinha nenhuma janela. Na multidão, havia pessoas de todas as idades, e estavam tão aglomerados que nem sequer podiam se mexer. Finalmente, um Kirtana começou no palco. A princípio, as pessoas fixaram os seus olhos sobre os devotos, muitos ouvindo os Santos Nomes pela primeira vez. Alguns, então, começaram a se mover no compasso do Kirtana. Alguns cantavam. Depois os devotos fizeram uma brincadeira. A multidão gostou e, então, Little Go Koll entrou. O grupo de oito garotos olhou para mim, todos muito nervosos. Eles sabiam que aquilo era mais ou menos um teste que dava a eles a chance de irem para a Polônia. Se fossem qualificados, poderiam ter a viagem de suas vidas. Quando começaram a cantar, a multidão pareceu ganhar vida. Era rap de qualidade, mas o mais importante: os garotos cantavam com realização. Todos eles tinham crescido nas ruas, lutando para sobreviver como podiam. Os devotos de Kisumu os retiraram, literalmente, das ruas e os levaram para o orfanato do templo. Enquanto eles se apresentavam, percebi que muitos jovens na platéia concordavam com a canção. Os garotos cantavam: -9-


E ra u ma vez nas ruas das Áf ricas, Mui tas cr ian ças s e m casas , O s gar otos d el i ran d o c o m dr ogas e c ri mes, As ga rotas se vendendo c o mo pr o s ti tu tas , F u ma nd o e r vas más , A s pira n do c ol a , Os policiais s e mpre a n o s caça r. E ra assi m que c o s tu má va m o s s er. Ma s agora temos vi da no va , fora das ruas da Áf ri ca. Es ta é a hi s tó ria de alguns afortu nados: a hi s tó ria d e sua vi tór ia.

Quando os garotos cantaram sobre os horrores da AIDS, muitos pais empurraram seus filhos para frente para ouvirem melhor. Quando o grupo cantou Hare Krsna, as mesmas crianças dançavam e repetiam o mantra depois. Quando os garotos desceram do palco, eu levantei o polegar para eles, indicando que eu havia gostado do show deles. Eles sorriram de orelha a orelha, mas lembraram de se recomporem até entrarem no ônibus; só então começaram a cantar e pular com muita alegria: com toda a disposição de seus pulmões. De repente, o mestre de cerimônias voltou‐se para mim e disse: “Agora é contigo”. “Já?”, eu disse surpreso. Comecei minha aula explicando o propósito da vida humana e, então, comecei a falar sobre as misérias da existência material. Mas enquanto eu discursava, comecei a atentar para algo: minha audiência tinha muito mais realização no tema do que eu. Depois de alguns minutos comecei a me sentir desconfortável. “Quem sou eu para lhes dizer que a vida material é miserável?”, pensei comigo mesmo. “Melhor apenas falar sobre as alternativas positivas”. Então comecei a explicar os benefícios de se cantar os Santos Nomes – como este cantar purifica o coração e redesperta o amor por Deus. Comecei um Kirtana. Alguns responderam ao cantar, outros não. Então tive uma idéia. Eu peguei a passada do Kirtana e parei de cantar enquanto indicava aos devotos tocando mrdanga para solarem. Quando um deles começou a solar, toda a multidão, de repente, começou a dançar em seu estilo africano. Eu deixei isso continuar por algum tempo. Em um momento, alguns devotos olharam para mim como que dizendo: “O que você está fazendo?”. Naquele momento comecei a cantar novamente, mas apenas duas palavras do mantra de cada vez. Dessa vez todos responderam. Nós ficamos assim por cinqüenta e cinco minutos – eu cantava duas palavras do mantra, e toda a multidão conseguia responder. Quando eu, finalmente, deixei o palco, alguns homens da multidão vieram até mim e deram‐me apertos de mão entusiasmados. Mas tão logo me sentei, o mestre de cerimônias veio até mim e disse: “Maharaja, o senhor precisa voltar lá. Agora é aberto para perguntas e respostas”. “Pensei que iriam tomar Prasadam agora”, eu disse. “Eles vão”, ele respondeu. “Mas você pode responder as perguntas ao mesmo tempo”. Eu cedi, embora imaginasse como seria uma sessão de perguntas e respostas acontecendo durante a distribuição de Prasadam. Imaginei que, talvez, após terem recebido Prasadam, eles se sentariam para ouvir. Minhas apreensões desapareceram quando subi ao palco e vi uma longa fila de pessoas – não esperando por Prasadam, mas esperando para fazerem perguntas. Havia mais de cem pessoas enfileiradas em direção a um devoto que segurava um microfone. Assim que fiquei de pé no palco, o devoto estendeu o microfone para a primeira pessoa. - 10 -


“Por favor”, disse um homem com grande respeito, “o senhor explicava o princípio de reencarnação. Qual a prova de que mudamos de corpo após a morte?”. E assim se sucedeu por mais ou menos uma hora: todos tomavam Prasadam mui calmamente enquanto eu respondia a suas perguntas. Ao fim do programa, tivemos outro Kirtana extático, depois deixei o palco. Enquanto me dirigia de volta para a van, fiquei impressionado pelo aglomerado de pessoas em volta da mesa de livros comprando os livros de Prabhupada. Então, na aparelhagem de som, começou a tocar uma gravação de um Kirtana de Tribhuvanath. Eu parei e observei todos aqueles visitantes indo embora – muitos continuavam cantando Hare Krsna. Como Giridhari de manhã, fiquei muito emocionado. “Centenas de milhares de africanos devem ter visitado este programa no tempo de Tribhuvanath”, pensei. “Muitos devotos da ISKCON provavelmente não sabem da grande contribuição que ele fez aqui na África”. Nesse momento, um devoto que passava perguntou se eu não queria escrever o capítulo de um diário sobre minha visita ao Quênia. “Sim, claro!”, respondi. “Sobre nosso templo?”, ele perguntou. “Sim”, eu respondi. “Mas mais sobre Tribhuvanath Dasa. Graças a seus esforços, essas pessoas, e muitos outros africanos, têm a oportunidade de provar o néctar do cantar dos Santos Nomes de Krsna. Tal herói Vaisnava deve receber o reconhecimento merecido”. Srila Prabhupada escreve: Mi nha querida V isakh a, P or fa vor, a cei te mi nh as bê n çãos . Eu es tou e n di vida do c o m você p o r causa d e sua car ta de Bo mbai m da ta da de 24 de ma io de 1972, q u e trazia s eu e xc el en t e a r t i g o P ra bhup ad a: India’s N at ion al H er o. Es to u mui to gra to por suas carinhosas pala vra s sobre mi m, ma s eu nã o a ch o ter f ei to al guma c oi s a : es tou apenas e n t re ga n do a s ub l i me mensa gem c o m o ela é. D e fa to, qualq uer um que seja u m d e vo t o s i nc e ro de Krs na, e q u e e s te ja O servi ndo pre ga nd o Sua me nsa gem, d e ve ser con si de rad o u m he ró i. P or ta n t o, sã o todos vo c ês he r óis d e seu pa ís e d e sua humanida de. H e rói si gnifi ca al guém c u j os p a s s o s ou tro s d es ej a m s egui r te nd o‐ o c o m o e x empl o d e u ma g ra nd e pessoa. Entã o, to r ne m‐ se to d os g ra nde s pessoa s, e xemp l o s perfeito s de he r óis e heroínas da Co n sci ê ncia d e K r s na e pre gu em a me nsa ge m co m toda a s eri eda de c o m q u e eu l h es e ns i n ei . S e vocês esti ver em plen ame n te c on v e nci d os [ da i m p or tâ ncia d es s a mensagem], o u tr os , natu ral me n te, i rão s e aproxi mar e se uni rão a n ós . N ós todos d e ve ría mos ser um g ra n de e x ér ci t o de heróis pelo S en ho r Cai ta nya Ma ha pra bhu.

‐ Carta a Visakha Dasi, 6 de junho de 1972

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‐ Capítulo Segundo ‐

Um Velho Amigo Udupi, Índia De 16 de janeiro de 2007 a 16 de fevereiro de 2007

Eu voltei à Índia pela segunda vez em um período de vários meses, esperando encontrar novos artistas para a turnê de nosso festival anual na Polônia. Neste próximo verão será nosso décimo oitavo ano de festivais ao longo da costa marítima Báltica; porque várias pessoas vão novamente, temos que manter um alto nível de entretenimento. Primeiro eu acompanhei os ensaios do Festival Indiano Anual de Dança Tradicional em Delhi, no qual quarenta e cinco grupos bem coloridos de toda a parte do país estavam se preparando para se apresentar para o presidente da Índia. Fui, em seguida, para o sul de Mumbai, onde Suradas, o responsável pelos assuntos culturais em nosso templo da praia de Juhu, trouxera vários cantores clássicos, dançarinos e artesãos para se encontrarem comigo. Agora eu tinha uma longa lista de possíveis artistas para nossa turnê de verão. Telefonei para Jayatam e Nandini. “Acho que as apresentações de palco deste verão serão as melhores de todos os anos”, eu disse a eles. “Isso é bom”, Nandini disse, “porque já estamos sendo bombardeados com telefonemas perguntando sobre os programas de verão”. “Os tempos mudaram”, eu pensei. “Lembro‐me de quando tínhamos de lutar com unhas e dentes para conseguir permissão para nossos eventos”. Pensei em como os festivais haviam virado a maré a nosso favor. Srila Prabhupada havia mesmo dito que poderíamos conquistar o mundo com cultura: “As pessoas estão desejando intensamente esta cultura, a cultura de Krsna. Então vocês devem se preparar para apresentar o Bhagavad‐gita Como Ele É. Assim, a Índia irá conquistar todo o mundo através desta cultura de Krsna. Não tenham dúvidas”. ‐ Palestra em um Programa pandal em Mumbai, 31 de março de 1971 Depois peguei um vôo para Mangalore, Sul da Índia, para o casamento de Drhda‐vrata das, o filho de meu irmão espiritual Dharmatma das e de irmã espiritual Dvijapriya dasi. A cerimônia seria realizada no dia seguinte em um resort a algumas horas de distância. Um devoto da ISKCON local, Sujal, iria me levar. “O senhor já esteve nesta parte da Índia, Maharaja?”, ele me perguntou enquanto começávamos nossa viagem em direção à costa.

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Eu olhei ao redor. “Bom”, eu disse, “eu acho que sim. Parece‐me familiar. Esta região é chamada de Parasurama‐ksetra, não é?”. “Correto”, Sujal respondeu. “Milhões de anos atrás, após matar vinte e uma gerações de guerreiros desviados, o Senhor Parasurama pediu a Varuna para que desse um pedaço de terra à beira do rio para os brahmanas. Ele anexou a terra a estas montanhas que contornam o litoral e convidou os brahmanas a viverem aqui. Ele os abençoou a gozarem da vida em harmonia entre si neste belo cenário”. “A temperatura aqui é agradável o ano todo. Ela varia apenas oito graus entre o verão e o inverno. A terra é fértil, e nela abundam todos os tipos de ervas e especiarias. As pessoas da região dizem que, uma vez ao ano, todas as ervas medicinais entram em uma árvore especial perto daqui. Se alguém prova a seiva dessa árvore nesse dia auspicioso, ele terá saúde perfeita para todo o ano”. Nós entramos com o carro em uma grande vila. “Esta cidade é chamada Mulki”, Sujal disse. “Ela é um bom exemplo da benção de Parasurama: as pessoas nessa área vivem juntas de forma harmoniosa. Em Mulki, Muçulmanos e Hindus são melhores amigos”. “Verdade?”, eu perguntei. “Sim”, respondeu Sujal. “Algumas décadas atrás, um comerciante Muçulmano estava navegando seu barco com suas mercadorias em um rio próximo daqui. De repente, a embarcação ficou presa em um bloco de areia. Dias se passavam e o comerciante ficava cada vez mais desesperado. De repente, Mãe Durga apareceu perante ele e disse que ela estava enterrada sob o bloco de areia em sua forma de deidade. Se o comerciante pudesse resgatá‐la, ela disse, ela deixaria seu barco livre. Ele rapidamente cavou e retirou a deidade do bloco de areia e seu barco foi misteriosamente liberado”. “Após vender suas mercadorias, ele voltou para Mulki e construiu um grande templo para a deidade de Durga, a qual ele ofereceu aos cuidados dos Hindus locais. Desde então, Hindus e Muçulmanos têm coexistido pacificamente aqui. Algumas vezes eles até mesmo vão às cerimônias religiosas uns dos outros”. Eu olhei pela janela do carro e vi garotas Muçulmanas vestidas com burkas negras, apenas com seus olhos à mostra, descendo a rua de mãos dadas com garotas Hindus vestidas de saris. “Aí está algo que eu nunca tinha visto antes”, eu disse. Enquanto dirigíamos, eu observei a zona rural e as pequenas vilas pelas quais passávamos. “É limpo aqui”, eu disse. “Você não vê lixo e bueiros abertos como freqüentemente vemos nas vilas do norte da Índia. Esta é uma parte da Índia que poucos devotos da ISKCON conhecem”. “E esta área é rica em passatempos e em erudição relativa aos Puranas”, Sujal disse. “Próximo daqui está a caverna onde Sita devi, enquanto era carregada por Ravana, deixou um de seus anéis esperando que o Senhor Ramacandra A encontrasse. Também, a encarnação Mohini‐murti deixou o planeta nesta região. O lugar exato do evento é onde hoje se encontra uma extensão de pedras multicoloridas”. “Além desses passatempos, seu irmão espiritual, Tattva‐darsana, tem uma comunidade rural próxima daqui. No topo de uma colina dessa propriedade, o grande Sankaracarya praticou austeridades por vários anos e obteve poderes místicos plenos. O Senhor Rsabhadeva deixou este mundo em um vale na base dessa fazenda. E a cidade sagrada de Udupi, onde Madhvacarya viveu, é também próxima daqui”. - 13 -


“Udupi?” eu pensei. Levantei minha cabeça enquanto milhares de memórias vinham à minha mente. “Udupi?” eu disse. “Estamos próximos de Udupi? Agora me lembro, Sujal. Eu vim para esta região há 27 anos atrás em peregrinação”. “27 anos atrás!”, Sujal exclamou. “Eu nem sequer era nascido”. “Foi no ano de 1979”, eu disse. “Eu havia acabado de aceitar sannyasa no festival Mayapura da Bengala. Eu queria viajar por locais sagrados ao longo da Índia para me inspirar para o serviço que teria pela frente. Eu não sabia muito sobre a Índia naquele tempo, então eu perguntei a vários devotos para onde eu deveria ir. Um devoto me sugeriu o sul da Índia. Ele me contou que vários grandes acaryas como Madhvacarya e Ramanujacarya vieram do sul. Ele sugeriu que eu começasse visitando Udupi porque este é o local onde Madhvacarya viveu e pregou destemidamente a Consciência de Krsna, liberando várias almas condicionadas da ilusão e da ignorância. No dia seguinte eu estava em um trem para Udupi. Nós vamos passar por Udupi?”. “Sim, vamos”, Sujal disse. Eu olhei pela janela. “Então temos que dar uma parada lá”, eu disse. “Tenho de visitar um velho amigo”. “Claro”, disse Sujal. Alguns instantes depois, Sujal se virou para mim. “Se o senhor perdoa minha pergunta, Maharaja”, ele disse, “quem é o velho amigo que o senhor quer visitar?”. “O Krsna de Udupi”, eu disse de forma tenra. “A deidade de Madhvacarya?”, disse Sujal. “Perdoe‐me mais uma vez, mas não é um pouco familiar se referir à Deidade como um amigo? Normalmente nos aproximamos da Deidade em um humor de contemplação e reverência”. “Isto é verdade”, eu disse, “mas, no Néctar da Devoção, Rupa Goswami diz que um devoto também deve pensar na Deidade como um amigo. Isto está listado como um dos 64 itens do serviço devocional”. Eu estava cansado devido à longa viagem. Eu me encostei e fechei os olhos, tentando lembrar minha primeira visita a Udupi. Eu lembrava de mim chegando ali após uma viagem de vários dias de trem, indo diretamente para o templo, caminhando pelo seu salão, e silenciosamente oferecendo minhas reverências. A Deidade estava no altar com um cajado de arrebanhar vacas em uma de suas mãos e uma bola de manteiga na outra. Lembrei‐me de um idoso pujari que havia se aproximado de mim e carinhosamente me contado como a Deidade havia sido esculpida por Visvakarma, o arquiteto dos semideuses, há cinco mil anos atrás, para Rukmini, a primeira rainha de Krsna em Dvaraka. Com o tempo, a deidade foi escondida em um lago formado pelas lágrimas de saudade de Krsna derramadas pelas Gopis. O pujari me contou como, milhares de anos depois, um navegante pegou um grande bloco de argila naquele lago para usar como balastro no barco. A Deidade estava escondida dentro da argila. Um dia, enquanto o navio seguia sua rotineira rota pelas águas próximas de Udupi, deu‐se início a uma tempestade e a embarcação começou a ter dificuldades. Madhvacarya, que por acaso estava na praia, balançou com a mão seu manto açafrão como se fosse um farol para o barco.

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Em gratidão, o capitão ofereceu a Madhvacarya qualquer mercadoria do barco que ele quisesse. Madhvacarya pediu o sagrado bloco de argila que estava sendo usado como balastro. Quando o capitão do barco tentou erguê‐lo, ele se quebrou revelando a bela deidade de Krsna. Embora a Deidade fosse pesada, Madhvacarya, que era uma encarnação de Vayu, o deus dos ventos, carregou‐ O para Udupi, onde ele O instalou no templo. Ouvir do pujari o passatempo do Krsna de Udupi fez com que minha apreciação pela Deidade aumentasse, e me lembro de ter orado fervorosamente para que Ele me desse o privilégio de sempre estar ocupado na missão de Sankirtana do Senhor Caitanya Mahaprabhu. Lembro‐me também de ter orado para que Ele me protegesse no cumprimento de meus deveres como um novo sannyasi. Eu tinha 29 anos de idade e era devoto há apenas oito anos. Eu sabia que muitas pessoas determinadas no cominho da devoção haviam caído devido à atração por mulheres, riqueza e falso prestígio. De repente eu ouvi a voz de Sujal. “Maharaja”, ele disse, “estamos entrando agora em Udupi”. “Oh, ótimo!” Eu disse e me recompus no assento. Enquanto dirigíamos, eu saquei de caneta e papel e comecei a escrever. “O senhor está escrevendo para o seu diário?”, Sujal perguntou. “Não”, eu disse, “estou escrevendo um depoimento para o Krsna de Udupi”. “Um depoimento para a Deidade?”, ele perguntou. Quando finalmente chegamos ao templo, meu coração estava disparado. Eu saí do carro e cortei a densa multidão de pessoas até o exato local em que fiquei em frente ao Senhor há 27 anos. Eu me curvei rapidamente, sabendo que eu não teria muito tempo em frente à Deidade. Fiquei de pé e olhei cuidadosamente através de uma espécie de janelinha pela qual os peregrinos vêem a Deidade. “Ele é tão bonito!”, eu falei em voz alta. Recompondo‐me, arrumei minha postura e comecei a ler meu depoimento. “Meu querido amigo”, eu comecei. “Milhões de peregrinos vêm diante do Senhor todos os anos, então não espero que Se lembre de mim. Eu era um jovem devoto na primeira vez que O conheci. Eu era um novo sannyasi com uma vida inteira de serviço devocional ao Senhor pela frente. Agora estou no outono de minha vida, apenas com mais alguns poucos anos para servi‐lO neste mundo”. “Eu me apresento perante o Senhor hoje um tanto quanto envergonhado. Não sinto ter feito muito progresso na minha vida espiritual desde a primeira vez que Lhe conheci. Mas tenho orgulho de dizer que continuo Seu devoto, e espero o ser até os últimos dias de minha vida”. “Sou muito grato pelo Senhor ter‐me protegido em meus deveres ao longo dos anos, e agradeço ao Senhor repetidas vezes por me abençoar com tantas oportunidades maravilhosas de servir à missão do Senhor Caitanya Mahaprabhu. Eu me consideraria ainda mais afortunado se o Senhor me permitisse permanecer ocupado em tal serviço até meu último suspiro”. Neste momento, os peregrinos em fila atrás de mim começaram a ficar impacientes e me mandaram andar logo. “Eu não quero tomar muito de Seu tempo, meu Senhor”, eu continuei. “Há outros peregrinos esperando. Mas momentos como este, quando um devoto pode revelar seu coração ao Senhor em circunstância tão auspiciosa, são muito raros”. - 15 -


”Pela eternidade eu me esqueci do Senhor, mas o Senhor nunca me esqueceu, nem mesmo por um instante. Seu ato mais glorioso de amor foi conduzir‐me até meu mestre espiritual, meu salvador, que está carinhosamente me ensinando a arte de amá‐lO. Por favor, ajude‐me a agir de forma que ele possa ter orgulho de mim. Agora os peregrinos já estavam me empurrando, mas eu não abandonei meu pedaço de chão. “Finalmente, meu Senhor”, eu disse, “eu oro para que meu serviço ao Senhor gradualmente me purifique de todos os desejos egoístas. É meu maior desejo que eu possa algum dia retornar à Sua morada no mundo espiritual e servi‐lO em amor extático, na associação de Seus mais queridos servos. Ofereço minhas mais humildes reverências a Seus pés de lótus. Todas as glórias a Seu amado Madhavacarya! Todas as glórias a meu amado mestre espiritual, Srila Prabhupada! Unicamente por Sua misericórdia eu pude encontrá‐lO novamente neste lugar tão distante”. Eu coloquei o papel no bolso de minha curta e prestei reverências. Alguns peregrinos tropeçaram em mim, mas eu tomei isso como misericórdia do Senhor. Enquanto Sujal e eu caminhávamos de volta para o carro, eu disse a ele que a visita acabara de assinalar um importante marco em minha vida. “Eu havia me esquecido desta parte especial da Índia”, eu disse. “E eu quase esqueço um velho amigo. Mas, como sempre, o Senhor faz arranjos para termos o darshana de Seus pés de lótus vezes e mais vezes”. Srila Bhaktivinoda Thakur escreve: “Sakhyam, fazer amizade com o Senhor, é o oitavo ramo de bhakti. Como amigo do Senhor, o devoto está sempre atento para satisfazer os desejos do Senhor. Sakhyam se refere ao apego e amizade que um devoto desenvolve para com o Senhor enquanto adora a Deidade”. – Jaiva Dharma, de Srila Bhaktivinoda Thakura, Capítulo 9, Parte 7

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‐ Capítulo Terceiro ‐

O Dever de um Mendicante África do Sul & Estados Unidos De 17 de fevereiro de 2007 a 17 de março de 2007

Deixando a Índia, retornei à África do Sul para descansar por alguns dias no templo de Durban. Então chegara a hora de ir para Nova Iorque e iniciar minha anual turnê de pregação pelos Estados Unidos. Eu estava ansioso por começar, e pedi para os devotos me deixarem no aeroporto Johannesburg três horas mais cedo. “O que o senhor fará com o tempo extra?”, um devoto me perguntou enquanto caminhávamos para o terminal. “Memorizar um verso, telefonar para alguns amigos, talvez ler um pouco e cantar”, eu disse. “Oh?”, ele exclamou. “O senhor não podia ter feito isso no templo?”. Eu ri. “Na verdade, não”, eu disse. “Acredite ou não, o único tempo que tenho para mim mesmo é no aeroporto. Por isso gosto de chegar um pouco mais cedo e aproveitar esse tempo”. Quando me dirigi ao controle de passaporte, a agente me lançou um olhar desconfiado. Entendi por aquele olhar que ela nunca havia visto um devoto Hare Krsna. “Qual foi a razão de sua visita?”, ela perguntou friamente. “Visitar nossos centros”, eu respondi com um sorriso. Ela, então, começou a falar ao telefone. Embora eu não pudesse ouvir a conversa, era óbvio que ela estava falando sobre mim. Quando ela terminou o telefonema, ela carimbou meu passaporte e o devolveu para mim sem me olhar ou dizer qualquer palavra. Eu ignorei o incidente e fui para a área de embarque. Ainda faltavam duas horas para o meu vôo, então caminhei pelo corredor vazio e me sentei sozinho em um banco no último portão. Estava frio, então vesti meu suéter e coloquei um chaddar por cima do meu dhoti. Peguei, então, meu livro de versos e o coloquei no assento do meu lado e arrumei alguns sanduíches e frutas no assento do meu outro lado. Peguei por fim meu celular e me absorvi em enviar mensagens de texto. Devo ter ficado escrevendo por cerca de meia hora quando ouvi uma gargalhada e olhei para frente, ao que vi cinco homens brancos – um pouco mais velhos do que adolescentes – se aproximando de mim. Antes que eu tivesse a chance de me levantar, eles estavam bem na minha frente. Um deles, vestindo jeans e uma camisa, e parecendo um pouco drogado, começou a falar. “Sabe”, ele disse, “eu sempre quis encontrar um Hare Krsna sozinho e acabar com a cara dele!”.

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A princípio eu pensei que era uma piada de mau gosto, mas quando ele começou a estalar os dedos eu pude entender que ele estava falando sério. Ele deu um passo à frente. “Primeiro vou arrebentar esses dente da sua boca”, ele disse. Um dos outros garotos olhou apreensivo ao redor. “Ande logo com isso, antes que alguém chegue, Tony”, ele disse. “Cala a boca, David”, outro garoto zombou. “Deixe ele fazer no tempo dele”. Eu pensei que eu poderia escapar e comecei a me levantar, mas um dos garotos me sentou novamente. “Cê num vai a lugar ninhum”, disse Tony. “Depois de seus dentes, vou colocar seu nariz pra dentro e acabar com a sua cara. Seus malditos Hare Krsnas, vocês me deixam puto!”. Seus amigos o encorajavam. Eu tentei aparentar estar calmo. “Você não vai conseguir fugir depois”, eu disse. “Você está em um aeroporto, em uma área cheia de seguranças. Vocês serão pegos e acabarão indo para a prisão”. “Veremos”, disse Tony ao me puxar para perto de si segurando com uma das mãos meu suéter. Ele levou a outra mão para trás preparando seu soco. Quando tentei resistir, vi pelo canto de minha visão um policial a cerca de cinqüenta metros, caminhando lentamente em nossa direção sem ter‐se dado conta de que algo estava errado. “Policial!”, eu gritava. “Policial! Policial!”. “Tony, vão bora!”, disse um dos garotos. Tony olhou para trás de si. Quando ele viu o policial, ele me soltou e se afastou. “Obrigado pela informação, senhor”, ele disse alto. “Acho que pegamos o portão errado. Melhor não demorarmos aqui ou podemos perder nosso vôo”. Então, ele e seus amigos desceram apressadamente o corredor, fazendo graça ao passarem pelo policial. “Qual o problema?”, o policial falou chegando a mim após alguns segundos. “Aqueles caras iam me espancar”, eu disse. Ele pegou seu walkie‐talkie e reportou o incidente. Eu olhei ao longo do corredor, mas eu não podia mais vê‐los. “Eles serão pegos?”, eu perguntei. “Com certeza”, disse o policial. “Mas eles provavelmente não serão retidos, a não ser que você queira prestar queixa. Isso significa que você terá de vir comigo e preencher alguns papeis, e provavelmente perderá seu vôo”. Pensei por um momento. “Deixe isso para lá, policial”, eu disse. “Prefiro pegar meu vôo”. Ele deve ter percebido que eu estava tremendo. “Vou me sentar com você por um instante”, ele disse. Ele fez um novo telefonema para a central de segurança. Então ele se sentou e conversamos por mais de meia hora. Ele me contou que já havia encontrado com os devotos em Johannesburg antes, quando estava em serviço. - 18 -


“Uma vez vocês estavam cantando na cidade e alguns tumultuadores chegaram”, ele contou. “Meus homens os afastaram dali. Eu respeito o seu grupo como pessoas temerosas a Deus, embora eu, particularmente, seja Anglicano”. Enquanto conversávamos, passageiros começaram a se sentar nos bancos ao redor. “O embarque começará em uma hora”, ele disse. “Agora tenho que ir”. “Obrigado por sua ajuda, policial”, eu disse. “Você chegou bem na hora”. “Alguém lá em cima estava tomando conta de você”, ele disse apontando para cima com os olhos. “E mais uma coisa. Você mencionou que costuma viajar sozinho. Eu acho que seria melhor se viajasse com mais alguém. Ou ao menos não viaje com seus trajes. Eles podem atrair as pessoas erradas”. “Obrigado pelo conselho”, eu disse. Eu me sentei e refleti sobre o incidente por algum tempo. Ao anúncio de que o embargue estava começando, eu peguei minha bagagem de mão e entrei na fila. “Viajar sozinho tem seus perigos”, eu pensei. “Mas isso é parte do dharma de um sannyasi”. Eu me lembrei de um dos significados de Srila Prabhupada que mais gosto: “É o dever de um mendicante experimentar toda a variedade da criação de Deus viajando por todas as florestas, colinas, cidades, vilas, etc., para, assim, fortalecer sua mente e sua fé em Deus, bem como para iluminar os habitantes desses lugares com a mensagem de Deus. Um sannyasi tem por dever aceitar todos esses riscos sem nenhum medo”. ‐ Srimad‐Bhagavatam 1.6.13, Significado Mas eu também considerei a sugestão do policial de não vestir roupa devocional quando estivesse viajando sozinho internacionalmente. No avião, eu me sentei ao lado de um bem vestido homem de negócios. Eu cochilei por cerca de uma hora e meia até ser acordado quando o jantar começou a ser servido nas cabines. Eu educadamente recusei. Enquanto começava a comer sua refeição, o homem de negócios ao meu lado começou a me fazer algumas perguntas sobre a Consciência de Krsna, dizendo eventualmente o quanto ele gostava de nosso Movimento. Percebi que o homem sentado na fileira de cadeiras do outro lado também ouvia nossa conversa. “Que bom”, eu pensei. “Duas pessoas provarão o néctar hoje”. Mais tarde eu comecei a ler, mas as palavras do policial não saiam da minha cabeça. “Ao menos não viaje com seus trajes. Eles podem atrair as pessoas erradas”. “Acho que seu ponto tem fundamento”, eu pensei lembrando da agente que havia carimbado meu passaporte enquanto eu deixava a África do Sul. “Pelo menos isso facilitaria na alfândega e no controle de imigração”. Minha mente recordou algumas experiências desconfortáveis que eu havia passado enquanto entrava nos Estados Unidos. Então lembrei de algumas roupas não‐devocionais que eu tinha comigo. Elas eram um pouco antigas e gastas, mas eu decidi vesti‐las antes do avião aterrissar. Algumas horas depois, quando começamos a nos aproximar do aeroporto John F. Kennedy, eu fui até o banheiro e me troquei. Eu nunca vou me esquecer do rosto de surpresa do homem de negócios quando me viu voltando para o meu assento. “Por que diabos você fez isso?”, ele perguntou. Eu lhe contei o incidente com os garotos em Johannesburg. - 19 -


“Não importa”, ele disse. “Você deve usar suas vestes”. O homem da fileira do outro lado riu discretamente. “Se você não vai usar suas vestes”, ele disse, “então se vista com um pouco mais de estilo”. Eu me sentei e ri para mim mesmo. “Parece que eu não posso agradar a todos”, eu pensei. Eu me lembrei de uma história que Srila Prabhupada contou uma vez: Um homem idoso e um jovem estavam viajando juntos em um cavalo. No caminho da viagem eles passaram por uma vila. “Olhe como são cruéis aqueles dois”, um homem que passava comentou. “Ambos estão viajando montados naquele pobre cavalo”. O homem idoso, após ouvir o comentário, desceu e começou a andar ao lado do cavalo. Chegaram, então, à vila seguinte. “Veja só”, disse um homem que passava. “O garoto jovem e saudável está a cavalo, e o pobre homem idoso tem de andar a pé”. Então, o garoto desceu, e o homem idoso subiu para viajar sozinho no dorso do animal, e foram assim para a próxima vila. “Olhe só isso!”, exclamou um homem que passava. “Aquele velho egoísta está cavalgando sozinho, e o pobre garoto tem que andar”. Então, o idoso desceu, e tanto ele quanto o garoto caminharam ao lado do cavalo. Chegaram, assim, à próxima vila. “Olhe só aqueles dois tolos!”, disse uma mulher. “Ao invés de estarem montados no cavalo, estão ambos caminhando”. Quando pousamos em Nova Iorque, passei pela alfândega e pelo controle de imigração sem nenhuma dificuldade, e logo peguei um vôo de conexão para Los Angeles. Após uma semana repleta de programas de pregação na Costa Oeste, peguei um vôo para a Cidade do México para visitar um templo. Mantendo minha nova política, vesti‐me com roupas não‐ devocionais e não tive nenhum problema para entrar no México. Mas também não despertei interesse em ninguém, e por isso não tive a oportunidade de compartilhar minha boa fortuna com ninguém como eu tinha feito com o homem de negócios no vôo para Nova Iorque. “Por um incidente ruim”, eu pensei, “eu sacrifiquei o néctar de pregar a Consciência de Krsna em minhas viagens. Já chega. Voltando para Los Angeles eu vou usar minhas vestes novamente”. Uma semana depois, eu embarquei em um vôo para Los Angeles. Krsna imediatamente reciprocou minha decisão. Tão logo eu tomei meu assento, o homem ao meu lado começou a conversar comigo. “Você é budista?”, ele perguntou. “Não, senhor”, eu respondi. “Eu sou Hare Krsna”. “Um Hare Krsna”, ele disse. “Eu pensei que vocês estavam extintos”. Eu ri. “Não”, eu disse. “Nós não entramos em extinção. É que nós nem sempre usamos nossas vestes”. “Você se importa se eu fizer algumas perguntas sobre sua religião?”, ele perguntou. Eu não pude evitar de dar um grande sorriso. “Não”, eu respondi, “muito pelo contrário. Pode mandar”. - 20 -


Com grande prazer eu respondi suas perguntas durante todo o vôo. Eu estava feliz por estar de volta à ativa. Mas a confirmação decisiva de que eu havia tomado a decisão correta veio quando aterrissamos em Los Angeles. Eu passei pela alfândega e pelo controle de imigração e, quando estava caminhado em direção à saída, fui surpreendido por mais um ponto de controle no aeroporto. Eu supus ser algo para aumentar ainda mais a segurança; entrei em uma das duas filas. Eu esperei pacientemente enquanto uma agente checava os passaportes do meu lado, e um agente checava os passaportes na outra fila, a alguns metros de distância. De repente, o agente da outra fila olhou para frente e me viu. Ele abriu um enorme sorriso. “Hei!”, ele disse alto, “É um Hare Krsna!”. As pessoas de ambas as filas olharam para mim. “Um Hare Krsna!”, ele continuou. “Que surpresa maravilhosa!”. Eu sorri timidamente enquanto a multidão olhava para mim. “Vou falar para vocês”, ele continuou dizendo alto, “esses Hare Krsnas são pessoas paz e amor”. Ele pegou o passaporte de alguém para conferir, mas continuou falando bem alto. “Esses são aqueles caras que cantam nas ruas com seus tambores e pratinhos”. Ele olhou para a agente que estava com ele. “Ele não faria mal a uma mosca”, ele disse. “Eu lhe garanto. Um dos meus melhores amigos foi CBG do movimento [acho que ele queria dizer GBC] e era um cara fantástico”. A mulher parecia tão surpresa com o comportamento de seu colega quanto o resto de nós, mas ela sorriu e me trouxe para frente. Ela conferiu meu passaporte rapidamente. “Tudo certo, senhor”, ela disse, “você pode ir”. Todos os olhares estavam sobre mim. Continuei caminhando e virei à direita passando próximo do agente. “Vem cá”, ele disse bem baixo. “Você é mesmo um Hare Krsna, não é?”. “Sou sim”, eu respondi. “Sou um genuíno Hare Krsna”. “Então canta o mantra”, ele disse. “Com prazer”, eu disse. “Hare Krsna, Hare Krsna, Krsna Krsna, Hare Hare; Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare”. “É isso aí”, ele disse com outro grande sorriso. “Pode entrar. Bem vindo de volta aos Estados Unidos da América”. Srila Prabhupada escreve:

Algumas vezes o movimento da consciência de Krsna envia seus representantes sannyasis para países estrangeiros onde a danda e o kamandalu não são muito apreciados. Nós enviamos nossos pregadores com roupas comuns para apresentarem nossos livros e nossa filosofia. Nosso único interesse é atrair as pessoas para a Consciência de Krsna. Nós podemos fazer isso com vestes de sannyasi ou com as vestes de um cavalheiro comum. Nosso único interesse é que as pessoas tirem proveito da Consciência de Krsna.

‐ Srimad‐Bhagavatam 7.13.9, Significado - 21 -


‐ Capítulo Quarto ‐

Uma Segunda Chance De 16 de março de 2007 a 16 de abril de 2007

À medida que um devoto começa a envelhecer, ele fica cada vez mais ciente, pela misericórdia do Senhor, que sua vida está para se encerrar e que seu tempo para atingir a perfeição da Consciência de Krsna está se esgotando. Algumas vezes os sinais vêem de forma embaraçosa. Há alguns meses atrás, alguns de meus discípulos se aproximaram de mim e me perguntaram se eu poderia lhes contar a história de cada uma das salagram silas do meu altar. “Talvez outro dia”, eu respondi. “Mas Guru Maharaja”, disse uma discípula, “o senhor é o único que conhece cada história por trás de cada sila. E o senhor está envelhecendo...”. Ela não terminou sua frase. Não havia necessidade. Velhice implica que as coisas estão decaindo aos poucos e chegando a um fim. Outro sinal é a partida de amigos e entes queridos depois que cruzamos a faixa dos 50 anos, o começo da velhice de acordo com a cultura Védica. Com o passar do tempo, o falecimento dessas pessoas próximas se torna mais freqüente e menos surpreendente. Jayadvaita Maharaja escreveu: “É assim que as coisas são. Você vê seus amigos partirem, um por um. Então, aqueles que ficam vêem você partir”. É claro que, como devotos, estudamos e discutimos esses fatos da vida desde o dia em que entramos para o Movimento. Mas, de alguma forma, o tema toma outra perspectiva quando é o nosso corpo que está envelhecendo. Krsna nos assegura no Bhagavad‐gita: dehi nityam avadhyo yam dehe sarvasya bharata tasmat sarvani bhutani na tvam socitum arhasi “Ó descendente de Bharata, aquele que mora no corpo nunca pode ser morto. Portanto, você não precisa afligir‐se por nenhum ser vivo”. ‐ Bhagavad‐gita 2.30 Se estamos preparados para partir, como devemos estar, não temos nada a temer.

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Mas a diferença entre conhecimento teórico e realização é muito grande. Para transformar conhecimento teórico em realização, o Senhor, às vezes, acelera o processo do devoto colocando‐o em alguma situação ruim, fazendo com que o devoto leve sua vida espiritual mais a sério. Pela misericórdia do Senhor, eu passei por tal situação desagradável enquanto voltava para Durban, África do Sul, no começo de abril. Eu estava me queixando de dores nas costas já há algum tempo, então um médico e devoto amigo meu, Sunil Mohan das, marcou uma consulta para mim com um osteopata. Eu me sentei pacientemente na mesa de exames e o médico correu sua mão por minha espinha pelas costas. De repente ele parou e suspirou. “Sunil”, ele disse tentando disfarçar sua preocupação com uma voz calma, “por favor, venha aqui”. Sunil deu a volta na mesa, e os dois conversaram quase em silêncio, mas a conversa abafada deles só me deu a certeza de que havia algum problema. “Você encontrou alguma coisa?”, eu finalmente perguntei. “Talvez”, Sunil respondeu. Eles, então, dirigiram‐se para a sala ao lado. Esforçando‐me ao máximo para ouvir a conversa dos dois, eu de repente ouvi a palavra “melanoma”. Eu suei frio. Eu sabia que melanoma é uma das mais perigosas e agressivas formas de câncer de pele. Ano passado, meu irmão espiritual, Sua Santidade Bhakti Tirtha Maharaja, faleceu devido a um melanoma. Se detectado nos estágios iniciais, ele pode ser curado; mas, se permanece muito tempo sem ser detectado, há poucas chances de se sobreviver. “Desculpe, doutores”, eu disse alto, “eu ouvi vocês dizerem melanoma?”. Fez‐se silêncio por um instante, e então Sunil voltou para a sala. “Sim, Maharaja”, ele disse. “Encontramos uma verruga escura e em relevo com bordas irregulares. Isto não é um bom sinal. Mas não se preocupe. Não podemos concluir nada até enviarmos ela para um laboratório de testes”. Na sala ao lado, eu pude ouvir o osteopata falando ao telefone com um dermatologista. “Venha depressa”, ele disse. “Parece ser algo sério”. Em cinco minutos, o especialista havia chegado. “Aqui”, disse o osteopata mostrando a verruga ao dermatologista. “Sim”, disse o dermatologista em uma voz grave. Ele então me deu uma anestesia local e removeu a verruga. Ele terminou seu serviço com quatro pontos de costura e, então, ergueu a verruga para que os outros vissem. Os três permaneceram em silêncio. Minha apreensão cresceu. “Não tiremos nenhuma conclusão até termos os resultados do laboratório”, Sunil disse. “Pode ser que seja benigno”. “E se não for?”, eu perguntei. Ele parou completamente à minha pergunta. “Neste caso, nós teríamos de começar rádio ou quimioterapia imediatamente”, ele disse sobriamente. “Mas teremos de esperar dois dias pelo resultado. O laboratório está fechado agora e não abrirá até segunda”.

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Voltando para o templo, eu estava imerso em vários pensamentos. De repente, tudo em minha vida se tornara pálido perante a dura realidade que se apresentava diante de mim. “Seria esse o começo do fim?”, eu me perguntei. Eu fiquei aturdido por um instante. Então eu me restabeleci. “É para isso todo o treinamento que tive”, eu disse para mim mesmo. “Isso não deveria ser uma surpresa”. Mas era, sim, uma grande surpresa, apesar de todas as aulas que eu havia ouvido sobre deixar este mundo, e apesar, também, de todas as aulas que eu havia dado sobre o assunto. Continuei refletindo por um longo tempo. “Temos ainda, é claro, que esperar pelo resultado do laboratório, como disse Sunil”, eu pensei, “mas como todos eles se mostraram muito preocupados, eu deveria me preparar para o pior”. Quando eu cheguei ao templo, alguns devotos estavam me esperando do lado de fora do meu quarto para me verem. Eu não estava bem disposto para me encontrar com ninguém, então lhes cumprimentei socialmente, entrei em meu quarto, e tranquei a porta. “Eu queria ter feito mais pelo meu mestre espiritual”, eu deixei escapar quando sentei em minha cama. “Houve dias em que desperdicei meu tempo. E por que não me aprofundei em meu sadhana, como vários de meus irmãos espirituais?”. Eu peguei minha japa e comecei a cantar com determinação. Então eu parei. “Bom”, eu disse para mim mesmo, “você irá, finalmente, começar a cantar de forma resoluta?”. Eu abaixei a cabeça. “E se...?”, eu disse baixo. “Para onde eu irei se eu morrer? De volta ao Supremo?”. Eu olhei de relance para as minhas deidades de Radha e Krsna no altar. Eu me levantei da cama e me sentei em frente a Elas. “Meu Senhor”, eu orei, “se for constatado que tenho uma doença terminal, e se eu tiver de nascer novamente, por favor, permita que eu nasça na casa de Seu devoto. E me abençoe de forma que eu possa continuar no caminho da renúncia estrita enquanto me ocupo constantemente em Seu serviço amoroso”. De repente, alguém bateu à porta. Era Svarup Damodar, o presidente do templo de Durban. Ele perguntou se eu queria alguma coisa para comer, mas eu estava sem apetite. Aquela noite, eu não conseguia encontrar uma posição na cama. Em um momento, eu acordei pensando ter sonhado os acontecimentos do dia anterior. Mas depois percebi que não havia sido um sonho. Eu não conseguia voltar a dormir, então me levantei e decidi que iria escrever uma carta aos meus discípulos e amigos. Mas, primeiro, eu queria escrever uma carta para o GBC pedindo autorização para aceitar iniciação de babaji e me retirar para Vrndavana para abandonar meu corpo. Isso não seria algo sem precedente. Em 1975, Srila Prabhupada dera iniciação de babaji a meu irmão espiritual Audolomi das, que havia sido diagnosticado com uma doença terminal. Eu também gostaria de deixar este mundo sem nenhuma designação ou posse material. Nesta era, a posição de sannyasa requer muito envolvimento com a energia material para se pregar. A posição de sannyasa também traz consigo prestígio e honra. Embora possa ser útil para se servir, tal status sempre representa perigo para um transcendentalista. Quando eu morrer, quero ter vivido os

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últimos meses com nada além do santo nome. Um babaji tem consigo apenas o mínimo necessário, e seu serviço final é cantar os santos nomes. Como disse Srila Prabhupada na iniciação de babaji de Audomoli: “Sannyasa tem quatro fases: kuticaka, bahudaka, parivrajakacarya e paramahamsa. O parivrajakacarya viaja por todo o mundo. E, após isso, quando ele está plenamente maduro, ele pode cantar Hare Krsna em algum lugar. Ele não tem mais deveres institucionais. Essa é a fase madura da posição de sannyasa. Mas, como você acredita que não terá mais muitos anos de vida, apenas se sente, vá para Mayapur. Você não tem outro dever. Apenas continue cantando o mantra Hare Krsna, e qualquer prasada que se torne disponível, aceite. E pelo resto de sua vida, apenas se ocupe em cantar. [Seu nome é] Audolomi das Babaji... então, esta é a primeira vez em nossa instituição: um babaji”. ‐ Aula em Chicago, 11 de julho de 1975 Depois de alguns parágrafos, eu decidi parar de escrever até segunda‐feira, quando eu teria a confirmação de se eu tinha melanoma ou não. Continuar com a carta pareceria uma confirmação da doença. No dia seguinte, eu me mantive ocupado. Eu pensei que se eu ficasse ocioso, mesmo que por um único instante, minha mente ficaria inquieta especulando acerca dos resultados do laboratório. Naquela noite, mais uma vez, eu não encontrava posição na cama. A uma hora da madrugada, eu levantei e comecei a cantar japa. “Foi isso que me trouxe para a Consciência de Krsna”, eu pensei. “É isso que me manteve todos esses anos, e é isso que vai me libertar”. Eu pensei em uma instrução que havia dado à minha discípula Vraja Lila dasi em Vrndavana quando ela estava gradualmente sucumbindo à leucemia. “Pegue a auto‐estrada”, eu disse a ela. Aquelas palavras ecoavam agora em minha cabeça. Domingo de manhã, eu me mantive ocupado novamente, mas, ao meio dia, eu liguei para Sunil Mohan. “Sunil”, eu disse, “eu sei que o laboratório não abrirá até amanhã, mas há alguma maneira de pegarmos o resultado mais cedo? É muito difícil esperar por algo assim”. Ele parou por um instante. “Vou ver, Maharaja”, ele disse. “Eu ligo de volta para o senhor”. Dez minutos depois, ele me retornou. “Ok, Maharaja”, ele disse. “Eu pedi a uma das garotas do laboratório para trabalhar no seu exame agora. Nós teremos o resultado hoje à tarde”. “Obrigado”, eu disse. À tarde, eu saí para caminhar em uma praça, mais uma vez pensando na possibilidade da morte. “Mas e se o resultado mostrar que eu não tenho a doença?”, eu pensei de repente, permitindo‐ me, pela primeira vez, ter alguma esperança. Eu parei de caminhar. “E se fosse esse o caso”, eu disse a mim mesmo, “eu acordaria todos os dias grato por mais uma chance de servir meu mestre espiritual, Srila Prabhupada. E eu dobraria meus esforços em ajudá‐lo a distribuir as glórias dos santos nomes ao redor do mundo”. “Eu aproveitaria cada momento para me aprofundar no cantar dos santos nomes. E eu leria mais. Todos os dias, eu beberia o néctar do Bhagavatam e de todos os livros deixados por nossos Acaryas anteriores”. - 25 -


Eu parei novamente. “E eu tentaria amar Krsna antes de morrer”, eu disse. Lembrei, então, a reação dos médicos ao descobrirem a verruga. “Melhor não ter tantas esperanças”, eu concluí com um toque de desesperança. Eu continuei caminhando. Quinze minutos depois, meu celular tocou. Pelo número na tela, eu pude ver que era Sunil Mohan. Eu hesitei em atender. Qualquer que fosse a notícia, eu sabia que minha vida nunca mais seria a mesma. Eu deixei o celular tocar mais algumas vezes e então atendi. “Alô, Maharaja, aqui é o Sunil Mohan”. ”Hare Krsna, Sunil”. “Maharaja, já tenho o resultado do teste da verruga”, ele disse. Fez‐se então um longo silêncio. Preparando‐me para o pior, eu respirei profundamente a aguardei. “Desculpe, Maharaja”, ele disse, “o papel caiu e eu tive de pegá‐lo. Maharaja, está tudo bem. Não era um melanoma. Era apenas uma verruga comum que de alguma forma cresceu. Mas não há nenhum problema”. Eu estava sem palavras. “Alô?”, disse Sunil me procurando na linha. “Maharaja, o senhor ouviu o que eu disse?”. “Sim, eu ouvi”, eu disse. “Obrigado”. “Desculpe se nós o deixamos preocupado”, ele continuou, “mas não podíamos arriscar não fazer os testes”. “Claro”, eu disse, “eu entendo. Vocês fizeram a coisa certa”. “Tudo bem, Maharaja. Até amanhã”. ʺHare Krsna,ʺ eu disse me despedindo. Eu guardei meu celular no bolso e me sentei em baixo de uma árvore. Eu uni minhas mãos e comecei a orar. “Obrigado, Senhor”, eu disse. “Obrigado por me dar uma segunda chance”. Eu balancei minha cabeça. “Que incrível”, eu continuei. “Não havia nenhum perigo real. E, mesmo assim, eu sinto que Você está me dando uma segunda chance”. Eu olhei para cima. “Às vezes é difícil entender Seus planos”, eu disse. Eu refleti por um momento. “Meu Senhor”, eu disse, “eu sei que, algum dia, um laboratório trará notícias de que eu irei falecer, ou algum acidente fatal acontecerá comigo. Portanto, eu Lhe imploro, ajude‐me a lembrar todas essas valiosas lições que aprendi durante os últimos dois dias”. Quando cheguei de volta ao templo, os devotos estavam juntos, esperando para me verem. “Que bom vê‐lo feliz, Maharaja”, um devoto disse ao me ver. “O senhor parecia um pouco para baixo nos últimos dois dias”. “Parecia?”, eu perguntei. “Bom, agora estou bem”. “O que aconteceu?”, ele perguntou. “Eu recebi uma segunda chance”, eu respondi com um sorriso. - 26 -


Srila Prabhupada disse: Então, aqueles que se apegaram à consciência de Krsna têm uma chance. Vocês já tiveram benefícios anteriormente por executarem essa Consciência de Krsna. De uma maneira ou de outra, vocês não alcançaram a perfeição. Então Krsna lhes deu uma nova chance. Não desperdicem essa chance. Façam completamente o que vocês devem fazer. Façam com perfeição e vão para Vaikuntha ou para Krsnaloka. Nós devemos orar a Krsna desta forma: “Krsna, o Senhor deu‐me esta chance. Por favor, seja misericordioso comigo para que eu não desperdice essa oportunidade. Que eu não perca essa chance devido à influência de maya. O Senhor deu‐ me uma grande chance”. É o que devemos fazer.

– Palestra em Tóquio, 27 de abril de 1972

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‐ Capítulo Quinto ‐

Sua Misericórdia Resplandecente como o Sol De 17 de abril de 2007 a 17 de julho de 2007

Eu preguei nos Estados Unidos durante a primeira semana de junho. Em seguida, fui para a Califórnia para ficar com Giriraja Svami, descansar um pouco e me preparar para os festivais de verão da Polônia. Todos os dias, eu lia e cantava e também me exercitava. Após meses viajando intensamente ao redor do mundo, eu tinha que ficar em forma para os quarenta e oito rigorosos festivais que estavam por vir. Durante minha seqüência de exercícios, eu meditaria na turnê por vir, visualizando mentalmente a trupe de dançarinos da ISKCON Manipur que havíamos convidado da Índia dançando em nosso palco. Eu também visualizei nossa nova produção teatral, que conta com dois animais que lutam contra Krsna e Balarama: um gorila de dois metros chamado Dvivida e um elefante de três metros chamado Kuvalayapida. Eu podia praticamente ver o rosto surpreso de nossos visitantes. Mas, um dia, eu recebi um telefone de Nandini dasi e pude perceber que eu não era o único meditando em nosso festival de verão. Lá vinham nossos costumeiros inimigos. “Ontem”, ela disse, “eu recebi um telefonema do diretor da escola que alugamos todos os verões para ser nossa base, no litoral. Ele disse que um oficial do governo lhe havia telefonado dias atrás e oferecido uma grande soma de dinheiro para renovações na escola – com a condição de que o diretor não alugasse a escola para nós neste verão. Ele recusou a oferta dizendo que já havia dado sua palavra para nós e que não poderia voltar atrás em sua promessa”. Eu pensei em como, todo ano, tão logo nós entramos em ação, os problemas também entra em cena. Lembrei de um verso do Niti Sastra de Canyaka Pandita: “A serpente, o rei, o tigre, a vespa de ferrão afiado, a criança pequena, o cachorro de outrem e o tolo: todos esses sete jamais devem ser acordados”. – capítulo 9, verso 7 Dois dias depois, a coisa desandou de novo. Jayatam me ligou dizendo que tinha acabado de receber um telefonema do diretor da escola de Kostrzyn, que alugamos para os devotos todos os anos para o festival de Woodstock em agosto. “O governo também lhe ofereceu uma substancial quantidade de dinheiro para fazer reparos na escola”, Jayatam disse, “e insistiram que as obras fossem feitas durante o mês de agosto. Por isso, ele disse que não poderia alugar a escola para nós durante o festival de Woodstock. Isso é certamente parte de uma estratégia maior”. “Em tempos de guerra”, eu disse junto de meu suspiro, “a primeira vítima é a verdade”. – - 28 -


Boake Carter Alguns dias depois, eu peguei um vôo de volta para Warsaw, onde nos encontramos e preparamos uma estratégia. Nandini começou a reunião contando que também estava encontrando sérias dificuldades para conseguir permissão para o nosso festival em Kolobrzeg. Esta é a maior e mais prestigiada cidade de toda a costa, e, no ano passado, o embaixador da Índia foi nosso convidado especial no festival de lá. Na reunião, eu sugeri a Nandini e a Jayatam que falassem pessoalmente com quem estava envolvido. Nandini imediatamente telefonou para o prefeito de Kostrzyn. Após marcarem uma reunião, ela e Jayatam dirigiram 400 quilômetros para se encontrarem com ele. Mais tarde, ela me ligou. “Assim que entramos em sua sala, ele nos disse para não nos preocuparmos com a locação da escola”, ela me contou. “Ele disse que se encarregaria de tudo. Ele, então, começou a perguntar sobre nossa filosofia e estilo de vida. Ele visitou nosso site do festival de Woodstock do ano passado e se demonstrou muito interessado. Nós conversamos por três horas”. Pela primeira vez em dez dias, nós pudemos relaxar quanto a alguma coisa. Mas o problema em relação à permissão para o festival em Kolobrzeg continuava. Nós descobrimos pelo secretário da cidade que o conselho municipal havia recentemente se reunido e decidido que iria impor uma elevada taxa a ser paga se quiséssemos continuar com o evento. Decidimos, mais uma vez, empreender uma abordagem pessoal, com Nandini telefonando para o prefeito recém eleito para discutir a situação. “Não se preocupe”, ela disse logo após o telefonema. “Estou certa de que ele estará inclinado a nos ajudar. Eu o conhecia antes dele ser prefeito”. “Nós não somos uma empresa comercial”, ela disse no começo da conversa. “Nós estamos trazendo entretenimento cultural gratuito. Nós estamos trazendo uma atmosfera colorida e festiva para sua cidade. Não é justo o senhor nos cobrar alguma taxa. Todos nós somos voluntários. Nós não pagamos ninguém. Todos sacrificam suas férias de verão simplesmente para compartilharem a beleza espiritual da cultura indiana com as pessoas de sua cidade e com os diversos turistas que vêm”. Após quinze minutos, ele aceitou seus argumentos e disse que iria falar novamente com o conselho municipal. Ele parou por um instante. “Sua voz me parece familiar”, ele disse. “Nós nos conhecemos?”. “Sim”, Nandini respondeu. O prefeito pensou por um instante. “É verdade”, ele disse. “Agora me lembro. Você visitou minha casa há três anos, quando eu era o diretor da escola da cidade”. “É isso mesmo”, Nandini disse. “Eu fui ao seu festival uma noite”, o prefeito continuou, “eu queria ver o médico Aiurvédico de vocês. Eu estava interessado em saber como ter uma vida mais saudável”. “Mas já era bem tarde, e vocês estavam prestes a encerrar o festival. Eu encontrei você e perguntei se você poderia ir até minha casa com o médico Aiurvédico. Você concordou e, no seu caminho para casa, você e o médico passaram em minha casa à meia noite. Vocês passaram três horas me explicando como ter uma vida saudável e feliz”. “Eu sou muito grato por tudo oque vocês me ensinaram. Eu retorno seu telefone amanhã para - 29 -


lhe dizer sobre sua proposta”. Na manhã seguinte, ele telefonou às nove horas. “Vocês têm permissão para a realização do festival”, ele disse. “Vocês não precisam pagar nada, e nós vamos ceder a vocês a principal praça da cidade”. Quando Nandini trouxe‐me a notícia, eu disse: “tudo parece auspicioso agora”. Mas havia mais desafios pela frente. Naquela noite, a primeira noite em nossa escola alugada no litoral, Nandini recebeu um telefonema urgente às duas horas da madrugada de Ajit das, o devoto encarregado dos dezoito dançarinos de Manipuri que estávamos trazendo da Índia. A Turkish Airlines de Nova Delhi estava se negando a permitir que os dançarinos embarcassem porque o pessoal do aeroporto não sabia polonês e por isso não podiam ler o convite que os devotos traziam consigo. “Mas vocês têm vistos poloneses”, Nandini disse. “Eles não parecem se importar com isso”, Ajit respondeu. “Eles querem uma cópia do convite em inglês em dez minutos pelo fax. O avião já começou a embarcar”. Sem a trupe de Manipur, nós perderíamos metade de nossas apresentações de palco, então Nandini traduziu tudo rapidamente para o inglês e saiu procurando freneticamente pela escola por um aparelho de fax. No último minuto, ela encontrou um aparelho e enviou o convite. Ele chegou instantes antes do embarque ser encerrado. Dez horas depois, ela recebeu um telefonema de um agente de imigração do aeroporto Warsaw. “É só porque conhecemos o festival de vocês”, ele disse, “que vamos deixar esse pessoal de Manipur entrar no país”. Assim, com a misericórdia de alguém lá de cima e com algumas habilidades gerenciais de emergência, estávamos, finalmente, prontos para dar início aos festivais. Duzentos e oito devotos de dezoito países se reuniram na escola por uma semana e trabalharam duramente nos preparativos para o primeiro festival de Dzwirzyno. Mas nem mesmo todas as nossas habilidades combinadas poderiam nos salvar do que a Mãe Natureza estava reservando para nós. Enquanto nosso grupo de Sankirtana embarcava no ônibus para o primeiro Harinama de Dzwirzyno, negras nuvens de chuva começavam a aparecer no horizonte. Quando chegamos à cidade, nuvens gigantescas e assustadoras cobriam o céu, mas, afortunadamente, não teve nenhuma chuva. No dia seguinte, realizamos o festival e, como sempre, milhares de pessoas compareceram. As nuvens continuavam apenas nos olhando, mas todos nós sabíamos que era apenas uma questão de tempo até o aguaceiro cair. No primeiro dia do festival seguinte, em Niechorze, a chuva caiu com toda a força. O dilúvio durou cinco horas, e alagou quase todo o espaço destinado ao festival. O sol só apareceu quando faltava uma hora para o começo da nossa programação. Nós ligamos rapidamente para o corpo de bombeiros e eles drenaram a água bem a tempo do começo normal do festival. O comandante do corpo de bombeiros se aproximou de mim. “Pode ter certeza que vai chover durante todo o mês de julho”, ele disse. - 30 -


“O mês inteiro?”, eu perguntei espantado. “Dificilmente algum dia vai passar sem chuva”, ele respondeu. “Eu vivo aqui desde que nasci, e conheço bem o tempo da cidade”. Quando eu me sentei, um pouco desanimado com a notícia, Jayatam se aproximou de mim e apontou para a casa mais próxima do espaço do festival. “O senhor se lembra do homem que vive ali?”, ele perguntou. “Sim, eu lembro”, eu respondi, “há muitos anos ele é averso a nós devotos”. “Sim, ele mesmo”, disse Jayatam. “Por várias vezes ele tentou cancelar nossos festivais. Até que um dia ele passou por uma mudança interior. Bom, eu acabei de estar com ele. Ele nos parabenizou por termos voltado à cidade. E, então, ele me pediu algo que realmente me surpreendeu”. “O que?”, eu perguntei. “Ele disse que sua filha de quatorze anos tornara‐se vegetariana recentemente”, Jayatam respondeu. “Ele está preocupado quanto à sua alimentação, e por isso perguntou se Nandini e eu poderíamos ir à sua casa e ensinar à sua filha a arte da cozinha vegetariana”. Choveu de forma descontínua durante o festival, mas, refugiando‐se em seus guarda‐chuvas, as pessoas continuaram no programa. Quando eu acordei na manhã do segundo dia do festival, eu vi que a chuva estava ainda mais forte. Durante a aula do Bhagavatam, Jayatam recebeu um telefonema da secretária da cidade. “As pessoas têm ligado desde as sete horas da manhã perguntando se o festival de hoje está de pé”, ela disse. “O que eu devo responder?”. Jayatam ficou olhando para mim esperando por minha decisão. “Vamos para o local do festival ver o que está acontecendo”, eu disse. Assim que chegamos ao local do festival, vimos que era impossível sua realização. A chuva caía incessantemente e, mais uma vez, o espaço do festival estava alagado. Apenas pela terceira vez em dezenove anos nós cancelamos um festival por causa de chuva. No dia seguinte, nós saímos em Harinama para anunciar o próximo festival em Kolobrzeg. O sol era apenas timidamente visível por detrás das nuvens, mas milhares de pessoas, determinadas a não deixar o tempo ruim arruinar suas férias, estavam deitadas ao longo da praia. Sri Prahlada dasa, que nos acompanhava pela turnê, liderou seu primeiro kirtana do verão. Nosso populoso grupo de kirtana cantou por horas e distribuiu milhares de convites. Quando paramos para descansar um instante, a maior parte dos devotos se sentou na areia e silenciosamente eles cantaram o mantra Gayatri do meio dia, enquanto contemplavam serenamente o mar. Uma multidão de pessoas rapidamente se formou ao nosso redor. Era algo exótico para eles. Em um momento, nós estávamos cantando e dançando ao longo da praia com grande entusiasmo, e, no outro, estávamos sentados em silêncio e olhando o mar, quase que imóveis. Muitas pessoas se aproximaram de forma educada, até mesmo reverencial, dos devotos que acabavam o Gayatri, e pediam para que eles voltassem a cantar. Quando nos levantávamos e nos preparávamos para voltar a cantar, Amrtananda dasa apontou para o jornal que uma pessoa estava segurando. “O jornal diz que está nevando nas montanhas ao sul da Polônia”, ele disse. - 31 -


“Nevando em julho?”, eu estranhei. “É estranho, mas sim”, ele respondeu. Aquela noite em Kolobrzeg, choveu durante o festival, mas mesmo assim milhares de pessoas vieram. As pessoas sob seus guarda‐chuvas assistiam estupefatas aos dançarinos de Manipur encenando a dança da Rasa‐lila, fazendo apresentações de artes marciais e tocando tambores em suas vestes especiais. À noite, enquanto vários de nós voltávamos de carro para o local onde estávamos hospedados, os policiais mandaram nossa van parar. Quando um dos policiais checou os papéis do veículo, ele descobriu que a taxa anual de registro não havia sido paga. “Vocês terão de ligar para alguém vir buscá‐los”, ele disse asperamente. “Nós vamos apreender este veículo”. “Apreender a van?”, Amrtananda disse agitado. “Por favor, não faça isso! Nós precisamos dela para os nossos festivais. Nós temos um festival por dia ao longo da costa durante o verão. Milhares de pessoas comparecem”. “Que festival?”, o policial perguntou. “O Festival da Índia”, Amrtananda respondeu. “Somos membros do movimento Hare Krsna”. “Ó, o Festival da Índia!” o policial disse empolgado. “Eu fui ao seu festival em Dzwirzyno há alguns dias atrás com minha família. Foi maravilhoso. Minha filha ficou vestida com um sari da barraca de moda o festival inteiro. Nós gostamos muito do teatro, especialmente daquele gorila enorme, e comemos duas vezes no restaurante”. Ele parou por um instante. “Tudo bem”, ele disse, “eu vou deixar vocês irem. O festival de vocês é mesmo muito importante. Mas vocês têm de me prometer que irão pagar a taxa de registro antes do final da semana”. “Sim, policial”, Amrtananda respondeu. “Hare Krsna!”. “Hare Krsna”, disse o policial se despedindo. Tão logo chegamos de volta à nossa base local, começou mais uma tempestade. “Parece que a previsão do comandante está se concretizando”, eu disse para Amrtananda. “Este deve ser o verão mais chuvoso de vários anos”. “Contudo”, eu continuei, “nós temos de perseverar. Nós tivemos suficientes vislumbres da misericórdia do Senhor Caitanya para não ficarmos desencorajados”. Amrtananda olhou para o céu. “De alguma forma”, ele disse, “essas nuvens parecem ser um inimigo até mesmo mais formidável do que aquele que estava tentando nos impedir de conseguir a escola como nossa base local”. “É verdade”, eu disse. “Nós apenas temos de mostrar ao Senhor Supremo que nosso desejo de distribuir Sua misericórdia é mais forte do que os empreendimentos ímpios daqueles que fizeram a chuva excessiva cair. Se todos nós devotos orarmos juntos, Sua misericórdia resplandecente como o sol certamente prevalecerá”. Locan das Thakur escreveu: Um belo pôr do sol se fazia no horizonte e o dia chegava ao fim quando nuvens de chuva

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repentinamente cobriram os céus. Quando as nuvens gritaram ruidosos trovões, os Vaisnavas ficaram ansiosos. Percebendo que alguma desordem estava por vir, eles ficaram infelizes. “Como podemos escapar dessa perturbação?”, eles pensavam. Naquele momento, o Senhor Caitanya começou a tocar Seus karatalas e a cantar bem alto os Santos Nomes. Em seus corações, os semideuses sentiram que suas vidas haviam se tornado bem‐sucedidas. Agitados, os semideuses se esforçavam para contemplar do céu o Senhor Gauranga. Então, as nuvens de chuva se dispersaram rapidamente, o céu se tornou límpido, e todos os Vaisnavas ficaram radiantes.

– Sri Caitanya Mangala, de Locan das Thakur, 2.198‐204

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‐ Capítulo Sexto ‐

Uma Inundação de Bem‐aventurança De 18 de julho de 2007 a 28 de julho de 2007

Como o comandante do corpo de bombeiros havia previsto, não parou de chover nos dias seguintes. A mídia polonesa atribuiu o mau tempo, sem precedentes, ao aquecimento global. Os religiosos fazendeiros locais concluíram que isto estava acontecendo porque Deus não estava satisfeito com o acordo entre o governo Polonês e a União Européia quanto aos preços de mercado. Um devoto novo (exausto após vários dias de longos Harinamas) chegou a sugerir que estávamos fazendo Harinamas‐yajñas de mais, e que os excessivos yajñas traziam a chuva excessiva. Independente da razão das chuvas, elas não roubavam o público de nossos eventos. Quando o principal canal de TV polonês enviou uma equipe para a costa para que reportassem o incomum verão chuvoso, eles visitaram nosso festival em Pobierowo no dia de abertura. Eles haviam planejado ficar por apenas vinte minutos, mas, intrigados por tudo o que viram, acabaram ficando por quase quatro horas. “Todos os demais eventos ao longo da costa ficam pequenos se comparados ao de vocês”, disse a repórter. “O evento de vocês é tão grandioso, tão bem‐organizado e tão interessante, que estamos pensando em, ao invés de incluí‐lo em nossa reportagem, fazermos um documentário exclusivamente sobre o festival de vocês”. Após entrevistar vários devotos, a equipe de jornalistas entrou no meio da multidão e começou a entrevistar as pessoas que estavam acompanhando o festival. Eu fiquei um tanto preocupado com a possibilidade de eles pegarem uma pessoa que não representasse a maioria e falasse algo ruim do Movimento ou do festival, mas Krsna selecionou um casal bem legal para a entrevista principal. “Nós visitamos o festival há alguns dias em Kolobrzeg”, disse a esposa com um sorriso. “E nós nos divertimos tanto”, disse o esposo, “que nós ligamos para o nosso patrão em Warsaw e pedimos permissão para estendermos nossas férias por mais quatro dias; assim poderíamos vir até aqui para mais uma edição do festival”. Quando a equipe do canal televisivo se preparava para ir embora, o produtor falou para o Jayatam das: “Não se preocupe com a chuva. Há mais pessoas no seu festival do que há em todos os outros festivais que visitamos neste verão juntos”. Na cidade de Miedzyzdroje, apresentamos nosso festival em um anfiteatro próximo da praia. Devido ao espaço limitado, só pudemos armar algumas tendas e barracas, e, ao longo do festival, de forma nada surpreendente, chovia, parava de chover, e depois chovia novamente. Durante nossos festivais, em sua estrutura padrão, os participantes podem se abrigar nas várias tendas dispostas por - 34 -


toda a parte, mas, em Miedzyzdroje, as pessoas às vezes tinham de deixar o anfiteatro para encontrarem abrigo da chuva. Determinados a acompanharem as apresentações, todavia, eles voltavam a seus assentos tão logo a chuva parava. Uma família se dirigiu a mim enquanto voltava para o anfiteatro após uma pancada de chuva. “Nós ouvimos falar deste festival por alguns amigos que voltavam de férias semana passada”, disse o pai. “Dirigimos ontem por 400 quilômetros para podermos ver o festival, por isso fazemos questão de acompanhar todo o programa”. Enquanto nossa equipe se preparava pela manhã para seguir viagem até Mrzezyno, a cidade do festival seguinte, Nandini dasi recebeu um telefonema do capitão do porto. “Sinto muito, mas vocês não são bem‐vindos este ano”, ele disse. “Mas nós fizemos um contrato com a secretaria da cidade seis meses atrás”, disse Nandini. Enquanto discava para a prefeitura, Nandini me disse: “O capitão deve estar interessado em alguma espécie de propina”. Por arranjo de Krsna, ela conseguiu entrar em contato com o major do porto da costa polonesa. “Eu conheço esse festival”, ele disse, “eu participei há duas semanas atrás com minha família. Eu avisarei aos meus subordinados que vocês têm minha permissão para realizarem o festival sem nenhuma restrição”. Com as bênçãos do major, nossos homens começaram a deixar a cidade, mas logo foram confrontados por nosso maior oponente: a chuva. Mas, dessa vez, não era apenas uma simples chuva: era uma tempestade. De alguma forma conseguimos concluir a viagem e nos acomodarmos na cidade, mas, quando cheguei ao centro da cidade, com um ônibus cheio de devotos para fazer nosso Harinama, algumas das ruas estavam completamente inundadas. Quando a tempestade parou por um instante, descemos rapidamente do ônibus e fizemos um pouco de Harinama na calçada. Nós conseguimos distribuir apenas poucos milhares de convites, até que começou a chover de novo. Corremos para dentro do ônibus e sentamos esperando que a chuva desse alguma brecha novamente. “Como as pessoas vão ficar sabendo do festival se não conseguirmos fazer Harinama?”, eu disse muito agitado. “Não se preocupe, Guru‐maharaja”, disse um devoto sentado perto de mim. “Eu distribuí livros aqui semana passada, e todo mundo com quem eu falava estava planejando ir ao festival de hoje. Eu fiquei impressionado. Alguns disseram ter planejado suas férias de forma que coincidissem com a data do evento. Muitos ficaram sabendo pelo rádio e pela internet. Mesmo se não pudermos fazer o Harinama, uma multidão comparecerá”. Enquanto esperávamos dentro do ônibus, um devoto telefonou para o serviço de meteorologia. A notícia foi mais do que desapontadora: “A chuva continuará ao longo de todo o dia se estendendo pela noite; possível estiagem durante a tarde de amanhã”. Como ficou claro que a chuva não iria parar, nós fomos para o local do festival. Meu coração murchou quando vi o local do evento de baixo de toda aquela chuva que caía. “Parece que teremos que cancelar outro festival”, disse Nandini, que chegou no mesmo instante que nós. “Não cancele ainda”, eu lhe disse. “Vamos esperar até o último momento”. “Mas Guru‐maharaja”, ela disse, “está caindo uma tempestade, está tudo inundado, e vários - 35 -


devotos estão encharcados. O festival está marcado para começar em uma hora. Que esperança pode haver?”. “Eu tenho uma idéia”, eu disse enquanto ainda a formulava na cabeça. “Vamos enviar em nossos ônibus os devotos de volta à nossa base para que eles vistam roupas secas. Enquanto isso, se a chuva parar, nós ligamos para o corpo de bombeiros pedindo que eles drenem a água como fizeram no festival de Niechorze. Então, os dançarinos de Manipur podem ir se apresentando até que os devotos estejam de volta”. “Levará, pelo menos, uma hora e meia para os ônibus irem e voltarem”, Nandini replicou. “E demoraria para os bombeiros drenarem toda a água. E isso se parar de chover”. “É uma aposta incerta”, eu concordei. “Mas não temos nada a perder”. Nós rapidamente colocamos os devotos no ônibus, e eles foram vestir roupas secas. Sentamos na van eu e os outros poucos devotos que ficaram e ficamos olhando a chuva que não parava de cair, acompanhada de seus raios e trovões. Foi quando, de repente, quarenta e cinco minutos depois, um raio de luz cortou algumas nuvens distantes. Há meses não víamos um raio solar. Aconteceu tão de repente que Amrtananda das se levantou da cadeira e gritou: “Olha! O sol!”. No minuto seguinte, o sol sumiu completamente, mas, para nós, aquilo foi um sinal dos céus, e nos trouxe esperança de que o festival iria, sim, acontecer. Para nosso espanto, uma forte ventania começou vinte minutos depois, e logo não havia nenhuma nuvem no céu. Tão logo a ventania passou, os bombeiros chegaram com seis caminhões e começaram a bombear a água. Depois de uma hora, o espaço do evento estava seco. Enquanto os bombeiros trabalhavam, nós permanecemos sentados na van ainda não acreditando que não havia mais chuva. Quando os bombeiros começaram a se organizar para irem embora, eu olhei para a entrada do porto. Eu fiquei impressionado ao ver centenas de pessoas caminhando em nossa direção. “Pessoas estão chegando para o festival!”, Amrtananda exclamou empolgado. “Ligue os geradores!”, eu gritei para o técnico de som. “Acenda as luzes e coloque música para tocar! O show vai começar!”. Eu disse para o diretor de palco, Vraja Kishore dasa: “Diga aos dançarinos de Manipur para se vestirem rápido! Eles têm dez minutos”. Enquanto eu andava de um lado para o outro ajudando a organizar os vários setores do festival, eu olhei para o meu relógio. O festival estava começando com duas horas de atraso, mas, ao menos, ele ia acontecer. Em poucos minutos, centenas de pessoas estavam sentadas nas cadeiras dispostas em frente ao palco, e a trupe de Manipur começou seu show com uma incrível apresentação de tambores seguida pela dança da rasa‐lila. Logo, então, os devotos voltaram nos ônibus. Eu nunca vou me esquecer de suas expressões ao verem tudo aquilo. Tudo estava brilhando sob a luz do sol. Milhares de pessoas estavam chegando para o festival. Todas as tendas e barracas estavam em seus limites. O restaurante tinha uma fila de vinte metros, isso porque tinha capacidade para duzentas pessoas. A tenda de ioga tinha trinta pessoas sentadas na posição de lótus enquanto ouviam, de olhos fechados, um devoto lhes dando instruções. Enquanto eu caminhava em direção aos ônibus, várias pessoas que passavam perto de - 36 -


mim carregavam livros de Srila Prabhupada que haviam acabado de comprar de um de nossos estandes. Uma senhora idosa se aproximou de mim. “Minha netinha está na Alemanha e por isso não pôde vir ao festival hoje”, ela disse. “Mas, três anos atrás, ela ganhou um sari na competição de dança no fim do festival. Ela veste seu sari todas as manhãs e dança por toda a casa antes de ir para escola cantando Hare Krsna”. Ela me entregou um pedaço de papel. “Minha neta gostaria de dar um oi”, ela disse, “especialmente para Gokularani, Rajesvari‐seva e Mathuresvari. Você pode entregar essa mensagem para elas?”. “Claro que sim”, eu respondi. “Eu vou, agora, tirar algumas fotos do show para depois enviar para ela”, ela disse indo embora. Eu continuei andando e encontrei Nandini conversando com um homem bem vestido. “Este é o major dos portos costeiros”, ela disse. “Ele decidiu vir ver pessoalmente se está tudo bem”. “E para prestigiar o festival”, ele adicionou com um sorriso. “Seu melhor amigo está na Índia atualmente”, Nandini disse, “e esse amigo está lhe incentivando a ir para lá também. Mas o major escreveu para ele uma mensagem de texto dizendo ʹa Índia, com toda a sua glória, está aqui em Mrzezyno. Não há necessidade de ir a lugar algumʹ.”. Nossa companhia de segurança estimou a presença de mais de 5000 pessoas, e a maior parte das pessoas ficou até o final. “Quem vai acreditar nessa história quando eu a escrever em meu diário?”, eu disse a Amrtananda enquanto eu dirigia de volta para nossa base sob a luz de uma bela lua cheia rodeada de estrelas. “Uma chuva torrencial que de repente se torna uma inundação de bem‐aventurança”. “Eu acredito porque eu vi”, ele disse e sorriu. “Mas se alguém duvidar, nós temos 5000 testemunhas”. akasmad evaitad bhuvanam abhitah plavitam abhun maha premambhodheh kim api rasa vanyabhir akhilam akasmac cadrstasruta cara vikarair alam abhuc camatkarah krsne kanaka rucirange vatarati “O mundo inteiro está agora, de repente, inundado com as águas nectáreas do oceano de amor puro por Krsna. Agora, de repente, vêem‐se maravilhosos e estonteantes sintomas de amor extático jamais vistos ou ouvidos antes. Tudo isso apareceu, assim de repente, agora que o Senhor Krsna desceu em uma forma esplêndida como o ouro derretido”. ‐ Srila Prabodhananda Sarasvati, Sri Caitanya‐candramrta, capítulo 10, verso 115

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‐ Capítulo Sétimo ‐

One Love De 29 de julho de 2007 a 8 de agosto de 2007

Eu cresci nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70. Assim como diversos outros jovens americanos de minha geração, minha visão de mundo foi significativamente influenciada pela música de Bob Marley. Suas canções sobre revolução, mudança social, paz mundial e igualdade racial me inspiravam. Em certo momento, eu e alguns amigos pensamos em nos tornar Rastafáris, mas, logo depois, eu conheci a Consciência de Krsna, onde encontrei iluminação maior e um estilo de vida que considerei mais condutivo à obtenção da meta da vida. Uma pessoa nunca se esquece dos passos que lhe conduziram até o caminho escolhido. Ao longo dos anos, eu algumas vezes me deparava comigo mesmo citando frases das canções de Bob Marley em minhas aulas sobre a Consciência de Krsna. Uma vez, enquanto distribuía os livros de Srila Prabhupada em Durban, África do Sul, eu tentava convencer um jovem de dreadlocks quanto à futilidade da existência material. Eu citava o Bhagavad‐gita, mas sem nenhum sucesso. Todavia, quando eu citei um verso da canção Exodus de Bob Marley, ele sorriu e entendeu de imediato o meu ponto. No domingo seguinte, eu me surpreendi ao vê‐lo dançando no kirtana do Festival de Domingo. Open your eyes and look within Are you satisfied with the life youʹre living? We know where weʹre going, We know where weʹre from. Weʹre leaving Babylon, Weʹre going to our Father land. Abra seus olhos e olhe dentre de si Você está satisfeito com a vida que está vivendo? Sabemos para onde estamos indo Sabemos de onde viemos Estamos deixando a Babilônia Estamos indo para a terra de nosso Pai ‐ Exodus, Bob Marley Março passado, minha conexão com a música de Bob Marley foi revivida. Eu visitei o templo da praia Laguna, na Califórnia, e encontrei meu irmão espiritual Devananda das em um festival. Ele - 38 -


mencionou que havia gravado recentemente um CD de Reggae com dois músicos que costumavam tocar com o Bob Marley: Earl “Chinna” Smith e Inna “Kiddus I” Deyard. Ambos são ícones da indústria musical jamaicana. Só Chinna tocou em quase cinqüenta porcento das músicas que ganharam o prêmio Grammy de melhor música de Reggae. Eu imediatamente tive uma idéia. “Você acha que eles teriam interesse em tocar em nosso palco do Festival de Woodstock da Polônia em agosto?”, eu perguntei a Devananda. “Cada noite, milhares de jovens vão aos nossos shows”. Minha pergunta o pegou de surpresa. Ele parou e, então, sorriu. “Por que não?” ele disse. “Eu vou ligar para eles em Kingston para ver”. “Pronto”, Devananda disse com um sorriso ainda maior encerrando seu telefonema. Duas semanas mais tarde, ele entrou em contato comigo confirmando que Chinna e Kiddus estavam interessados. Nós enviamos para eles convites oficiais para que eles pudessem tirar seus vistos, mas, três dias antes do Woodstock, Devananda me ligou em pânico e disse que eles não haviam nem tirado seus vistos e nem mesmo haviam reservado um vôo para a Polônia. “Eles ficavam me dizendo que estava tudo certo”, ele disse, “mas quando eu disse a eles que faltavam poucos dias para o festival, eles perceberam que não estava tudo certo”. Nandini dasi telefonou para o consulado polonês de Kingston e pediu ajuda. A consulesa demonstrou interesse. “Nós recebemos um telefonema de Chinna e Kiddus há alguns meses pedindo por vistos”, ela disse. “Nós dissemos a eles o que tinham que fazer, mas eles nunca mais entraram em contato. Eu não estou surpresa. A vida acontece de vagar por aqui. Jamaicanos são pessoas muito tranqüilas”. Depois de saber que os dois músicos iriam tocar no Woodstock, ela concordou em expedir seus vistos. De alguma forma, conseguimos arranjar dois assentos para eles em um vôo para a Europa no dia seguinte. Eles chegaram no dia do festival, com as guitarras nas mãos, na Vila da Paz de Krsna [Krsna’s Village of Peace], nosso espaço em Woodstock, quando estávamos começando a distribuir prasadam para os jovens. Quando Chinna viu centenas de jovens em quatro filas esperando pela prasadam, ele ficou impressionado. Mas, quando os jovens o viram com seus longos dreadlocks, que iam até sua cintura, eles ficaram ainda mais impressionados. “Jurek está os divulgando como o grupo principal”, eu ouvi um garoto dizer. “Eles vão tocar no sábado às 10 da noite”. Eu fui até onde Chinna e Kiddus estavam tomando prasadam e me apresentei a eles. “Eu costumava comer no templo de vocês em Los Angeles no começo dos anos 60”, Kiddus disse. “Foram umas das melhores refeições que já comi. Nós Rastas também somos vegetarianos”. “Eu sei”, eu disse. “Eu costumava ouvir Bob Marley e sei que ele era vegetariano”. “Temos mais alguma coisa em comum?”, Chinna perguntou. “One Love”, eu disse sorrindo, citando um dos maiores sucessos de Bob Marley. Chinna abriu um enorme sorriso. “Isso porque somos todos almas espirituais, parte da família de Jah, ou Krsna”, eu disse. - 39 -


“Isso é verdade”, Chinna disse. “Mas o que realmente temos em comum é que ambos nos expressamos através da música”, eu continuei. “Em nossa tradição, cantamos os nomes de Deus e tocamos instrumentos musicais assim como vocês. Nossa principal canção é o mantra Hare Krsna”. “Nós vimos a sua turma cantando na multidão quando chegamos”, Chinna disse. “Todos pareciam muito felizes. Você pode nos ensinar a canção?”. “Claro”, eu disse. Chinna pegou um livro de sua bolsa e abriu em uma folha em branco. Eu olhei mais perto e vi que eram partituras de John Coltrane. “Esta é minha bíblia Rasta”, ele disse. “Eu a tenho há anos, e a levo para todo lugar que vou. Escreva o mantra com letras grandes aqui”. Depois que eu escrevi o mantra no livro, eu, Chinna e Kiddus cantamos juntos por alguns minutos. “Muito bom”, Chinna disse ao terminarmos. “Por que você não vem com a gente para a Jamaica e ensina esse mantra para os nossos amigos? A gente canta, come essa comida, e você pode compartilhar sua filosofia com todos os Rastas”. “Claro”, eu respondi. “Que tal em fevereiro?”. “Temos um trato”, disse Chinna. Eu lembrei das palavras da consulesa da Jamaica: “são pessoas muito tranqüilas”. Eu pedi licença e voltei para onde os devotos estavam servindo prasadam. Naquela tarde, eu falei novamente com Chinna sobre o cantar de Hare Krsna e como ele eleva a pessoa espiritualmente. “Ele nos ajuda a ver que somos todos iguais na plataforma espiritual”, eu disse. “Porque fomos todos criados por Deus, somos todos, essencialmente, irmãos e irmãs. Se nos identificamos com o corpo, todavia, vemos apenas diferenças e nos desentendemos e, às vezes, até mesmo lutamos por causa de tais diferenças. O kirtana que você ouviu mais cedo não é apenas boa música – é a fórmula da paz para esta era”. “Será ótimo se você puder falar dessa forma em Kingston”, Chinna disse. “Desde que Bob Marley partiu, tem havido muito desentendimento e disputa dentro da comunidade Rasta, mesmo entre seus amigos”. “Chinna”, eu disse, “por que você não vem e canta conosco mais tarde? Nós vamos desfilar com nosso enorme carro de Ratha‐yatra e teremos kirtana por muitas horas”. Ele pegou o livro do Coltrane e abriu na página em que eu havia escrito o mantra. Ele o observou por alguns instantes. “Nós temos que passar o som no palco daqui a pouco”, ele disse. “Se terminarmos a tempo, eu me junto a vocês”. Duas horas depois, estávamos puxando o carro de Ratha‐yatra por uma rua que cortava o terreno reservado para o Woodstock. Havia milhares de jovens andando pela rua enquanto centenas de devotos cantavam e dançavam com grande entusiasmo no desfile. Quando paramos por um momento para jogar frutas do carro para a multidão, vi Chinna no banco do carona de um carro que passava. “Chinna!”, eu gritei. “Venha cantar conosco!”. - 40 -


Chinna disse alguma coisa para o motorista, que parou o carro bruscamente cantando pneu. Todos os jovens o olharam descendo do carro com seus longos dreadlocks cobrindo seu peito. “É o Chinna Smith”, disse um garoto perto de mim. “Ele está com os Hare Krsnas”. Quando Chinna se aproximou de mim, eu estendi o microfone para ele. “Você lidera”, eu disse com um sorriso. Chinna pensou por um momento, lembrando as palavras do mantra e, então, começou a cantar e dançar. Imediatamente, ele estava rodeado de jovens e crianças cantando e dançando com ele. Ele liderou o cantar por mais de uma hora e, então, devolveu‐me o microfone. “É como você disse”, ele falou comigo. “Muita diversão”. No dia seguinte, quando abrimos nossa Vila, centenas de jovens chegaram e rapidamente encheram as tendas, que traziam temas da cultura Védica. Muitos eram visitantes regulares de anos anteriores. “Quando o kirtana vai começar na tenda do Templo?”, um garoto perguntou. “Quem vai dar as aulas de yoga este ano?”, um outro perguntou. Um garoto tirou um Bhagavad‐gita de folhas amareladas de sua bolsa. “Eu li o Bhagavad‐gita o ano inteiro”, ele disse. “Agora, tenho muitas perguntas”. Eu o indiquei à tenda de Perguntas e Respostas. Em dado momento, havia tantas pessoas em nosso espaço que percebi que os seguranças começavam a ficar ansiosos. “Deve ter 3.000 jovens aqui neste momento”, disse um dos guardas, “incluindo os que estão dentro de sua tenda principal”. “Tudo bem”, eu disse. “Não se preocupe. Afinal, é a Vila da Paz de Krsna”. Falei cedo de mais. Cinco minutos depois, um grupo de musculosos skinheads, com seus peitos de fora, entraram no nosso espaço com seu violento jeito de andar. Eles pegaram uma de nossas mulheres, puxaram seu vestido e começaram a empurrá‐la uns para os outros. Por causa da densa multidão, a segurança demorou alguns instantes para perceber o que estava acontecendo. Quando se deram conta, os skinheads haviam deixado a devota e corriam em direção à tenda do Templo a 40 metros de distância. Quando três deles entraram gritando “quebra o altar!”, um de nossos devotos foi para cima deles. Embora fossem maiores do que ele, ele logo derrubou o primeiro intruso com um chute na cabeça. Os outros dois pularam em cima dele e logo estavam os quatro rolando no chão aos socos e chutes. Alguns instantes depois, seis enormes e musculosos seguranças de Woodstock chegaram, mas, mesmo para eles, os skinheads eram um páreo duro. Quando viu que outra briga começava a acontecer na multidão, um dos seguranças fez um movimento para inconscientizar um dos skinheads; os outros fugiram. O ferido foi rapidamente algemado e levado embora pela polícia. Quando eu passei pelo guarda com o qual eu havia feito meu comentário, ele limpou com a mão o sangue que escorria de seu nariz e sorriu de forma sarcástica. “Vila da Paz de Krsna?”, ele pediu confirmação. Esse foi o primeiro ato de violência que tivemos em nossa vila em anos, mas tudo se acalmou e - 41 -


as pessoas se absorveram novamente em nossas atividades. Quando o búzio foi soprado anunciando o Ratha‐yatra do dia, vários devotos se reuniram e, em alguns minutos, o carro estava desfilando por entre a multidão de fora da nossa Vila. Seis horas depois, quando retornamos, Nandini falou comigo. “Jurek autorizou Chinna e Kiddus a tocarem no nosso palco hoje à noite”, ela disse. “Eles queriam uma banda completa para acompanhá‐los; nossos garotos, então, estão praticando com eles neste momento. Tribhuvanesvara nos teclados, Bhakti Priya no baixo, Tirtha‐kirti na guitarra, Bhakta Colin no saxofone e Bhakta André na bateria. Vai ficar muito bom”. “Vamos pregar a palavra”, eu disse. Aquela noite, enquanto o grupo tocava, nossa tenda estava repleta de jovens. A música deles era muito melodiosa, e as palavras de amor e paz na voz doce de Kiddus derretiam o coração de todos. Então, quando a banda terminou sua apresentação e saiu do palco, Chinna voltou carregando um violão. “Eu gostaria de cantar uma canção sobre a minha melhor amiga”, ele disse sorrindo e puxou uma cadeira para se sentar. Muitos dos jovens que estavam saindo ficaram. Após dedilhar alguns acordes, ele começou: “Mari Juana, eu te amo Mari Juana. Você é tudo o que tenho”. A primeira vez eu não juntei as palavras, mas, quando ele cantou uma segunda vez, caiu a ficha: marijuana. Eu fiquei paralisado. Bem ali, na Vila da Paz de Krsna, onde estávamos pregando a favor de uma sociedade livre de drogas, Chinna estava cantando sobre marijuana. “O que fazemos?”, perguntou‐me o devoto responsável pelas atrações no palco. “Não podemos fazer nada”, eu disse. “Temos que deixá‐lo acabar”. Quando ele acabou, os jovens o aplaudiram enquanto ele deixava o palco. Em seguida, um devoto se aproximou de mim e disse: “Maharaja, acho que o senhor está dando destaque demais para Chinna e Kiddus em nossa Vila. Muitos desses jovens talvez achem que seguimos o mesmo estilo de vida deles”. “Talvez alguns entendam errado”, eu respondi. “Mas a maioria sabe a diferença”. “O que pode vir de bom disso?”, ele disse balançando sua cabeça enquanto se afastava de mim. “Algo de bom virá”, eu disse. “Chinna e Kiddus estão demonstrando interesse pela Consciência de Krsna”. No dia seguinte, o último do festival, nossa Vila continuou sendo o melhor lugar para se passear. Enquanto que outras partes de Woodstock começaram a ficar cheias de lixo, nossa parte estava impecável. Muitos jovens passavam o dia todo conosco, fazendo aula de yoga, folheando os livros de Srila Prabhupada, participando dos bhajans na tenda do templo ou assistindo parte dos programas no palco, que totalizavam 11 horas diárias. As filas para prasadam ficavam cada vez maiores. “Nós vamos tranqüilamente distribuir mais de 100.000 pratos”, disse sorridente Rasikendra dasa quando passei pela tenda. Enquanto eu caminhava aquela noite, eu caí em um pouco de lamentação. Tudo logo acabaria. Era um grande programa de pregação. Literalmente, centenas de milhares de jovens haviam passado por nossa vila. Era muita satisfação para o coração. O último momento de grande empolgação seria assistir Chinna, Kiddus e nossos garotos no palco maior como a atração principal, não apenas de nossa vila, mas de todo o evento. - 42 -


“Nós temos uma surpresa para você e para todo mundo”, Chinna disse com um grande sorriso às nove horas da noite, quando o show de encerramento estava prestes a começar. “Dê o seu melhor, Chinna”, eu disse. “Há 200.000 jovens esperando pelo seu som”. “Jah!”, ele respondeu. Eu não podia esperar pela grandeza da surpresa que Chinna nos proporcionaria naquela noite. Enquanto ele tocava seus riffs na guitarra e Kiddus cantava, a multidão se movia na melodia do reggae de raiz. Aqueles eram dois dos músicos criadores do reggae, e você podia perceber isso pela música deles. Os jovens adoraram. Eles tocaram por 45 minutos e, quando eles terminaram sua última música, todos pediram por mais. O tumulto foi tão grande que Jurek sinalizou para Chinna tocar um bis. Gigantescos telões foram colocados de ambos os lados do palco, permitindo que a audiência acompanhasse cada movimento dos artistas. Depois que Chinna recebeu o sinal, virou‐se para Tribuvanesvara e balançou a cabeça como que dizendo “sim”. Tribhuvanesvara começou a tocar seu teclado. Então, de repente, ele começou a cantar o mantra Hare Krsna em uma belíssima melodia de reggae. Sua melodiosa voz saiu dos enormes amplificadores para toda a multidão. Chinna entrou com um belíssimo riff em sua guitarra e Bhakti Priya, Tirtha‐kirti, Colin e André também entraram com seus instrumentos. Algum tempo depois, Kiddus começou a cantar junto com Tribuvanesvara. Foi algo mágico. Quando o kirtana começou a esquentar, toda a platéia, e até os técnicos de som, começaram a dançar com suas mãos para cima. Membros da mídia também começaram a balançar a cabeça de um lado para o outro, e até mesmo Jurek estava dançando. A multidão adorou o mantra. Milhares de jovens dançaram com a música e muitos cantaram. Não há dúvidas, aquele foi o maior kirtana da história moderna, e durou um considerável tempo. Quando o kirtana finalmente parou, a maior parte da audiência ficou parada atônita, tendo experimentado o néctar dos santos nomes. Mais tarde, naquela noite, enquanto colocávamos nossas coisas em nossos ônibus, eu passei pelo devoto que havia questionado nosso envolvimento com Chinna e Kiddus. “Bom”, eu disse, “valeu ou não valeu a pena?”. “É, Maharaja”, ele respondeu. “O senhor estava certo. Eu estava no meio da multidão. Aqueles jovens estavam em êxtase cantando com os santos nomes. Muitos deram as mãos e dançaram em círculo. Foi uma visão que eu nunca irei esquecer”. One Love! One Heart! Letʹs get together and feel all right Hear the children crying (One Love!) Hear the children crying (One Heart!) Saying, give thanks and praise to the Lord and I will feel all right Um Amor! Um Coração! Vamos nos unir e ficar bem - 43 -


Escute as crianças chorando (Um Amor) Escute as crianças chorando (Um Coração) Em voz alta, agradeça e louve o Senhor e eu me sentirei bem ‐ One Love ‐ Bob Marley

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‐ Capítulo Oitavo ‐

Verdades Auto‐evidentes De 8 de agosto de 2007 a 20 de agosto de 2007

Depois de Woodstock, nosso grupo retornou para a nossa base no mar Báltico para continuarmos nossos programas pelas cidades costeiras. Ainda havia duas semanas de verão, e planejamos fazer 14 festivais praticamente seguidos. Depois de seis semanas de chuva, o sol finalmente havia chegado, e dezenas de milhares de pessoas estavam chagando à costa para aproveitarem o tempo ensolarado. Tudo parecia favorável à pregação. Não recebemos nenhuma notícia de pessoas tentando cancelar nossos eventos ou tentando nos despojar de nossa base como no começo do verão. Eu brinquei com os devotos que, com o bom tempo, até nossa oposição tinha saído de férias. Tiramos o máximo de proveito da situação, e, pela misericórdia do Senhor, seguimos navegando tranqüilamente até o fim. Enquanto cantávamos ao longo da abarrotada praia de Neichorze fazendo propaganda do festival dali, um devoto que distribuía convites encontrou‐se com uma garotinha de nove anos. “Eu conheço Krsna”, disse a garotinha. “Ele é a Suprema Personalidade de Deus”. “Como você conhece Krsna?”, o devoto perguntou. “Minha mamãe lê para mim o livro de Krsna todas as noites antes deu dormir”, ela respondeu. “Vocês já visitaram algum de nossos templos?”, o devoto perguntou. “Templos?”, intrigou‐se a menina. “Onde sua mãe conseguiu o livro?”, o devoto perguntou. “Ela comprou ano passado na praia, de um moço como você”, respondeu a garotinha. Então seu rostinho tornou‐se radiante. “Ontem de noite, a gente leu como Aghasura engoliu todos os amigos de Krsna”, ela disse. “Então, Krsna matou o monstro pulando dentro do estômago dele”. Enquanto cantávamos ao longo da praia, as pessoas sorriam e acenavam. Eu pensei em como isso era diferente há dez anos, quando tínhamos muita propaganda negativa na mídia. A campanha anti‐cultura havia morrido, ao menos em parte, eu concluí pela maneira favorável com que as pessoas recebiam nossos festivais. “Cada verdade passa por três estágios antes de ser reconhecida. No primeiro, ela é ridicularizada; no segundo, ela encontra oposição; no terceiro, ela é respeitada como auto‐evidente”. – Arthur Schopenhauer Como já havíamos experimentado por várias vezes, milhares de pessoas apareceram para o festival naquela tarde como resultado de um único Harinama. Embora os devotos estivessem - 45 -


exaustos por causa do Woodstock, eles continuaram fazendo um grande show. Quando o festival acabou, eu ouvi um homem de meia idade falando ao celular. “Mãe!”, ele falava alto, “há anos eu venho tentando te convencer a assistir a um destes festivais. Não interessa se você tem que viajar por cinco horas para chegar aqui. Hoje, você perdeu o melhor de todos os festivais que eles já fizeram”. No dia seguinte, quando 150 de nós cantávamos e distribuíamos convites pela praia de Rewel, ficamos surpresos ao rever nossa velha amiga foca, que nos visita pela menos duas ou três vezes todo verão. Enquanto cantávamos ao longo da orla, ela nos acompanhou a cerca de apenas dois metros de distância, chamando muita atenção. De repente, dois salva‐vidas, aparentemente desconhecedores da natureza inofensiva do animal, pularam dentro d’água e começaram a bater na foca com seus remos. A foca rapidamente nadou para longe. Naquela noite, no festival de Rewel, eu visitei a tenda do Prahlada Nrsimha das, o astrólogo do nosso festival. Ele é especialista em leitura de mapas e convence praticamente todos que lhe consultam a comprarem um Bhagavad‐gita e uma japa como a melhor maneira de lidar com todos os revezes da vida. “Duas crianças vieram à minha tenda assim que o festival abriu”, ele disse. “Elas pediram para que eu visse a mãe delas. Elas disseram que ela ficou na fila dos dois últimos festivais, mas que nunca conseguiu a oportunidade de falar comigo”. “Eu disse para elas correrem até suas casas e a trazerem”, ele continuou me contando. “Quando ela chegou, eu comecei a ler seu mapa, mas ela riu e disse que não estava interessada. Ela disse que todo o tempo que ela passou na fila, ela apenas observava como os devotos que cantavam Hare Krsna estavam felizes. Ela só queria saber como cantar igual a eles para voltar ao mundo espiritual. Ela foi embora cantando o maha‐mantra em sua japa nova”. Depois de sair da tenda de Astrologia, eu visitei a barraca de Moda, onde mulheres podiam escolher um sari para vestirem durante a noite e havia uma de nossas devotas para ajudá‐las a se vestirem. Quase todos os 300 saris disponíveis foram pegos. Uma garotinha de sete anos estava na frente da barraca vestida em um belo sari vermelho e verde. Ela havia acabado de voltar da loja de artigos devocionais com uma japa e um saquinho de japa. “Ela insistiu em levar a japa”, a mãe dela me disse. “Ela disse que é parte do uniforme”. Ela, então, virou‐se para a garotinha. “As contas não são simplesmente para vestir, querida”, ela disse. “Elas são para se orar. Se você quer ficar com elas, você vai ter que aprender a oração de Krsna e cantá‐la nas contas. Está bem?”. A menina concordou seriamente com a cabeça. “Sim, mamãe”, ela disse. “Eu vou aprender a oração”. Alguns instantes depois, uma mulher veio em minha direção puxando seu filho pelo braço. “Meu filho é muito preocupado com a verruga da sua bochecha”, ela disse. “Discutimos por causa dela constantemente. Por favor, convença meu filho que ele não deve se preocupar com isso”. Pego de surpresa, eu fiquei sem saber o que falar por um instante. Então, eu olhei para o garoto. “Nossa compreensão”, eu disse, “é que não somos estes corpos. Nós somos a alma espiritual dentro do corpo. Comparado com a alma, que é verdadeiramente bela, qualquer corpo é imperfeito. Por isso, não se preocupe muito com sua aparência externa”. A mãe sacudiu o garoto pelo braço. “Viu?”, ela disse. “O moço disse que você não é o corpo. - 46 -


Você é uma alma. Então pare de se preocupar com uma verruga idiota”. Ela, então, foi embora com o garoto. Quando eu fui à tenda de Livros, onde Gandharvika‐Giridhari, nossas Deidades presidentes, estavam majestosamente instaladas sobre um altar, eu vi alguns homens da nossa equipe de manutenção montando uma pequena cerca em frente ao altar. “Por que eles estão fazendo isso”, eu perguntei a Rasamayi dasi. Ela começou rindo. “Guru Maharaja”, ela disse, “todos querem tirar uma foto na frente de Radha e Krsna. Às vezes, há tantas pessoas para tirar foto que eles começam a brigar para ver quem vai tirar primeiro. A cerca é para proteger o Senhor”. No dia seguinte, quando divulgávamos o festival pela praia da cidade de Pobierowo, para o nosso grande deleite, a foca apareceu de novo. Todas as cidades ao longo da costa são próximas e, aparentemente, ela nada de uma para a outra. Quando vimos a foca, movemos nosso Harinama para mais perto da água. Como sempre, a foca nadou nos acompanhando, parando quando parávamos e nos acompanhando quando prosseguíamos. Logo, as pessoas na praia perceberam que a foca nos acompanhava, e mais de 100 banhistas começaram a nos acompanhar. À frente, várias pessoas contemplavam a multidão. Sem saberem da foca, eles pensavam que a multidão nos acompanhava unicamente por causa do canto e da dança. Eu falei com Sri Prahlada: “Essa foca é um animal”, eu disse, “mas está praticando serviço devocional. Por ela estar nos seguindo, essas pessoas estão tendo a oportunidade de ouvir os santos nomes”. Sri Prahlada riu e citou Srila Prabhupada: “Este maha‐mantra nasce diretamente da plataforma espiritual, portanto, qualquer um pode participar da vibração sonora transcendental sem precisar de nenhuma qualificação prévia e dançar em êxtase. Nós vemos isso na prática – mesmo uma criança pode participar do cantar, ou até mesmo um cachorro pode participar”. Na noite do último festival, em Ustronie Morskie, eu andei pelo evento uma última vez. Eu senti um frio na barriga. Eu não podia imaginar a vida após os festivais. Meu sentimento de separação se intensificou quando eu caminhei pelo seminário do Sri Prahlada “A Arte da Felicidade”, e o ouvi perguntar à platéia: “Quais foram os cinco momentos mais felizes de sua vida?”. Uma senhora de idade levantou sua mão. “Meu jovem”, ela disse, “os cinco momentos mais felizes da minha vida foram as cinco vezes em que vim a este festival”. Outra mulher levantou a mão. “Esta é minha primeira vez no festival”, ela disse. “Mas eu sei o que ela está dizendo. A felicidade é evidente em seus rostos”. Eu segui, então, para o palco para o kirtana final. Eram dez horas da noite, e mais de mil pessoas ainda estavam presentes. Enquanto eu subia os degraus do palco, eu pensei em como demorariam os nove meses antes de estarmos de volta às praias cantando, dançando e oferecendo nossos festivais para milhares de pessoas diariamente. Quando me sentei em frente ao meu harmônio para começar a cantar, eu olhei a multidão de pessoas que se estendia por 100 metros. Fechando meus olhos, parei um instante e orei pedindo para o Senhor que me desse a misericórdia de compartilhar o néctar de Seus santos nomes com aquelas pessoas por tantos anos, ou mesmo vidas, quanto Ele achasse que eu deveria. Eu não podia pensar em nenhuma fortuna maior, pois eu tinha certeza de que esses festivais davam grande satisfação ao meu mestre espiritual. - 47 -


Srila prabhupada escreve: Quanto à sua sugestão de realizar festivais, é, sim, uma boa idéia. Por favor, faça isso de forma muito bem feita. Esses festivais públicos provaram ser muito efetivos na propagação do conhecimento da Consciência de Krsna para todos os cidadãos. De fato, eu instruo o GBC a organizar tais festivais e Sankirtanas viajeiros dentro de suas áreas de responsabilidade. O festival que estamos realizando atualmente em Delhi vem se demonstrando um grande sucesso e, pela graça de Krsna, todos estão apreciando este movimento por verem a adoração às belas Deidades, por ouvirem o melodioso kirtana e por verem o rosto reluzente de meus estudantes.

– Carta para Sri Galim dasa, 20 de novembro de 1971

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‐ Capítulo Nono ‐

Dispostos para a Paz, Prontos para a Guerra De 21 de agosto de 2007 a 7 de setembro de 2007

Após uma série de programas na República da Irlanda, dirigi para o norte com alguns outros devotos para Belfast. No caminho, parabenizei Praghosa das, o representante local do GBC, pelo Ratha‐yatra que realizamos no dia anterior em Dublin. “Eu fiquei impressionado em como a multidão se alinhava na rua para ver o carro passar”, eu disse. “E muitas pessoas foram ao festival realizado na praça em seguida”. “Os Irlandeses são piedosos”, Praghosa respondeu, “e tivemos sorte de não ter chovido. Encontramos Dublin nas melhores condições. Há um ditado aqui”: Leprechauns, castles, good luck and laughter, Lullabies, dreams and love ever after, Poems and songs with pipes and drums. A thousand welcomes in Ireland. Leprechaus, castelos, boa sorte e risos, Canções de ninar, sonhos e amor eterno, Poemas e canções com cachimbos e tambores Mil boas‐vindas na Irlanda “Mas nós veremos o oposto no nordeste irlandês”, ele prosseguiu. “São apenas duas horas de carro, mas a diferença entre o norte e o sul é como o dia e a noite”. “Eu ouvi falar um pouco sobre isso”, eu disse, “mas sou ignorante na maior parte”. “É um problema político‐social complexo”, ele disse. “Ele remonta há mais de 700 anos, quando os ingleses invadiram a Irlanda pela primeira vez. Eles tiveram o controle por anos, mas, em 1921, eles concederam soberania a 26 condados ao sul da ilha enquanto mantiveram para si 16 condados ao norte”. “Oficialmente, a Irlanda do Norte é parte do Reino Unido, mas, embora os ingleses governem ali há centenas de anos, os irlandeses continuam considerando propriedade irlandesa”. “A diferença é ainda mais agravada pelo fato dos ingleses serem basicamente Protestantes e os irlandeses, Católicos. Uma disputa amarga se perdura por séculos. Desde o começo dos anos 70, - 49 -


milhares de vidas foram perdidas”. “Todavia, seis meses atrás, Sinn Fein, a ala política do Exército Republicano Irlandês, e o Partido Unionista Democrático, o principal grupo Protestante, fizeram um acordo estabelecendo a divisão do poder administrativo”. “O mais incrível é que, ao longo dos últimos 25 anos, mantemos um templo em Belfast, e a pregação é muito boa, porque todos são afetados pelo conflito”. “Como as pessoas nos vêem?”, eu perguntei. “Nós não tomamos partido, por isso eles são basicamente neutros em relação a nós”, Praghosa respondeu. “Em uma ocasião, quando eu estava saindo do nosso restaurante Govinda, eu fui confrontado por um grupo de homens. Quando eles perguntaram sobre minha afiliação religiosa, eu expliquei que eu era um monge Hare Krsna. Eles ficaram confusos. Eles ficaram se entreolhando até que um dos homens perguntou: ‘Você é um Hare Krsna Protestante ou um Hare Krsna Católico?’.” “A resposta errada poderia resultar em uma surra, então eu pensei cuidadosamente até que respondi que eu era um Hare Krsna Hare Krsna. Eles apenas estalaram seus pescoços e foram embora”. “Mas nem sempre é fácil assim. Nos templos, os devotos são avisados a não ficar nas janelas, porque elas são freqüentemente quebradas por pessoas atirando pedras e gritando bordões políticos. Uma vez, alguém atirou uma flecha pela janela que fincou contra a parede. Naquela época, um dos nossos devotos tinha conexão com o IRA e se reuniu com os líderes locais. Por algum tempo a violência parou, mas depois começou de novo”. “O IRA?”, eu perguntei. “O que você quer dizer por ‘conexão com o IRA’?”. “Ele fazia parte do grupo antes de se juntar a nós”, Praghosa explicou. “Ele foi preso uma vez pelo exército inglês e passou dois anos na prisão”. Enquanto conversávamos, chegamos a Belfast. A primeira coisa que roubou minha atenção foram as diversas pinturas nos muros. Passando perto, eu li um que dizia: “Cuidado ingleses. Zona de perigo. Matadores da RUC [Royal Ulster Constabulary, Polícia Real da Ulster] a solta”. “Esta é claramente uma área Católica”, Praghosa disse. “Você pode ver a bandeira da Irlanda dançando por toda a parte”. Ao que continuamos dirigindo, eu vi um imenso muro que começava de uma área pobre e se estendia por uma longa distância. Praghosa explicou que muitas dessas estruturas, conhecida como Peace Lines, que podem se estender por um quilômetro e têm cerca de seis metros de altura, foram erigidas durante os últimos trinta anos para manter separadas as facções em guerrilha. “Os Protestantes ficam de um lado e os Católicos do outro”, ele disse. “Sem os muros separando os dois, eles matariam uns aos outros. A trégua não diminuiu o ódio de longa data”. Quando viramos em uma esquina, um novo muro pichado apareceu: “Nossa vingança será a risada de nossos filhos”, e outro trazia: “Dispostos para a Paz – Prontos para a Guerra”. “É incrível que os devotos consigam pregar a tanto tempo neste ambiente”, eu disse. “Eles se adéquam”, disse Praghosa. “Eles adotam o sotaque do local onde estão distribuindo livros: sotaque britânico nas áreas Protestantes, sotaque irlandês nas áreas Católicas. E eles são protegidos pelo Senhor. Janananda das chegou aqui em 1975 com um pequeno grupo de devotos. Eles armaram uma mesa de livros em uma praça e se sentaram para fazer um kirtana. Dez minutos - 50 -


depois, uma multidão se formou e começou a atirar pedras neles. Eles se levantaram e saíram correndo, deixando tudo para trás”. “Quando Janananda voltou a Belfast no ano seguinte, eles fizeram um kirtana em frente a uma Woolworth’s [empresa de supermercados com produtos a preço popular]. Porque muitas pessoas pararam para ouvir, eles decidiram que voltariam ali no dia seguinte. Mas, quando chegaram, a Woolworth’s não estava mais lá. Ela havia sido destruída por uma bomba durante a noite, um acontecimento quase diário naquela época”. Enquanto dirigíamos para dentro da cidade, mais muros com mensagens apareciam. “Estamos entrando em uma área Protestante agora”, Praghosa disse. À frente, eu vi vários homens caídos perto de um muro, obviamente mortos em confronto. “Para que não sejamos esquecidos”, trazia o muro. Cerca de 20 metros à frente, outro muro trazia: “Comando Vermelho. Não é por glória ou riqueza que lutamos, mas por nossa gente”. Quando paramos em um sinal vermelho, um enorme mural trazia os dizeres: “Bem vindo à central da RUC. Nada nos deterá”. “O que realmente determina os devotos a pregarem em Belfast é que eles sentem terem a solução para os problemas”, Praghosa disse. “E qual é a solução?”, perguntei. “Que somos todos, essencialmente, partes de uma família espiritual, a família de Deus”, ele respondeu. “O conceito de amigo e inimigo é uma ilusão. A violência sectária é devido ao conceito corpóreo de vida: eu posso ser irlandês ou inglês, mas nós não somos estes corpos temporários, nem nenhuma designação que talvez tenhamos dado a eles”. “Para que a paz venha para esta terra, as pessoas têm de parar de ver diferenças e entender o que têm em comum. No mundo espiritual, não há Católicos, Protestantes, Hindus, Muçulmanos ou Judeus. Todos apenas se identificam como devotos do Senhor”. Nós viramos uma esquina e paramos em frente a uma velha construção. Eu notei a inscrição no prédio ao lado: Orange Hall – 1690. “O Orange Hall é onde os Protestantes se encontram há séculos”, Praghosa disse. “Alguns anos atrás, nós não poderíamos dirigir sequer próximos a este lugar. Este era o campo mortal de Belfast. Muito sangue foi derramado nesta rua. Mas, recentemente, a comunidade indiana comprou este prédio ao lado do Orange Hall”. “Os indianos?”, eu perguntei. “Eles se mudaram para cá?”. “Nos últimos anos”, disse Praghosh, “muitos estrangeiros chegaram à Grã‐bretanha. Ironicamente, isso ajudou muito a situação aqui”. “Como?”, eu perguntei. “Muitos dos estrangeiros acham que as diferenças que separam as duas comunidades não são problemas de vida ou morte”, ele disse. “Essa mentalidade está contagiando um pouco a população local. Por muitos anos, eles foram completamente isolados. Então, como os tempos estão mudando, os devotos estão aproveitando para pregarem a mensagem do Senhor Caitanya com ainda mais entusiasmo do que antes. Nosso carro de Ratha‐yatra será puxado pelas ruas hoje e, em seguida, teremos um grande festival em frente ao Orange Hall”. - 51 -


Dez minutos depois, chegamos ao ponto de partida da parada. Eu fiquei surpreso ao ver apenas 10 ou 15 devotos presentes fazendo os últimos preparativos. “Tem apenas uma dúzia de devotos aqui”, eu disse a Praghosa. “Apesar da relativa receptividade das pessoas”, ele disse, “não são muitos os devotos que querem viver em um local que parece uma zona de guerra”. Mais dez devotos chegaram em seguida e logo começamos a descer a rua puxando o carro; chegando à rua principal, começou a chover. Eu fiquei chocado ao ver apenas poucas pessoas na rua. “Onde estão todos?”, eu perguntei a Praghosa. “Hoje é domingo”, ele disse, “o único dia que a prefeitura iria nos dar. E está chovendo. Mas haverá lojas que abrem aos domingos quando chegarmos ao centro da cidade”. 400 metros à frente, vinte minutos depois, chegamos a uma rua com um pouco mais de pessoas. “Aqui é o centro”, disse Praghosa. Eu fiquei surpreso. Parecia mais uma cidadezinha, e parecia ambientada nos anos 60 ou 70. Eu percebi várias placas de “vende‐se” em lojas, escritórios e apartamentos. “Por causa da História, a cidade não se desenvolveu como as outras cidades européias”, disse Praghosa, “mas isso pode mudar se a partilha administrativa continuar”. Mas não eram apenas as construções que pareciam estranhas, as pessoas também. Diferente de Dublin, onde multidões se juntavam nos passeios para sorrirem e acenarem enquanto passávamos, as pessoas eram quase que indiferentes a nossa presença. Alguns apareceriam prudentes e desconfiados. Alguns nos olhavam sem nenhuma emoção no rosto. Praghosa se virou para mim. “Eles passaram por muita coisa”, ele disse. Eu voltei minha atenção para o canto e a dança, esperando, como todos os devotos presentes, que o desfile de Ratha‐yatra roubasse a atenção do coração de alguém. Enquanto nossa colorida procissão desfilava pela deprimente atmosfera, algumas poucas pessoas começaram a responder. Alguns paravam para conversar com os devotos que estavam distribuindo convites para o programa no Orange Hall. Em dado momento, eu saí do centro do desfile e caminhei pelo passeio distribuindo convites pessoalmente. Depois de cinco minutos, um jovem de vinte e poucos anos se aproximou de mim. “O que significa isso?”, ele perguntou curioso. “Este é um dos mais antigos festivais espirituais do mundo”, eu respondi. “A maior parte das guerras deste mundo foram por causa de religião”, ele disse. “Um bom exemplo é a própria cidade de Belfast”. “Isso é verdade”, eu respondi. “Mas o mau uso de algo não quer dizer que tal coisa seja originalmente errada. A religião fala, na verdade, sobre Deus, não em política e violência sectarista”. Ele pensou por um momento e, então, concordou com a cabeça. “Há alguma verdade nisso”, ele disse. “Venha para o nosso programa no final do desfile”, eu disse. “Será perto do Orange Hall na...”. “Todos em Belfast sabem onde fica o Orange Hall”, ele disse me interrompendo. “Começa às 5 da tarde”, eu adicionei enquanto ele ia embora. - 52 -


Eu não pensei que veria aquele jovem novamente, mas, à tarde, enquanto eu me acomodava no assento do palestrante, eu me surpreendi ao vê‐lo entrando na sala e se sentando. Ele era literalmente o único convidado, pois todos os demais na audiência eram ou devotos ou membros da congregação. Quando comecei a palestrar, foquei minha atenção em nosso convidado. É uma técnica que às vezes uso em palestras públicas. Como a audiência costuma ser diversificada com aqueles que têm pouco interesse, aqueles que são meramente curiosos, e genuínos buscadores da verdade, eu tendo a direcionar a palestra para um único buscador. “É apenas uma pessoa”, eu pensei, “mas talvez eu possa plantar em seu coração a semente da Consciência de Krsna que mais tarde crescerá como devoção pura”. Enquanto eu apresentava o conhecimento que eu havia repetido em inúmeros programas ao longo dos anos, eu pude notar que o jovem estava interessado. Ele se sentava com o tronco voltado para frente, lembrando como eu fiquei a primeira vez que ouvi a filosofia da Consciência de Krsna. Eu continuei com a palestra básica. Eu percebi que alguns devotos e membros da congregação ficaram agitados pela simplicidade da palestra. Assim como eu havia falado aquilo mil vezes, eles estavam ouvindo aquilo pela milésima vez, mas, naquela ocasião, eu senti que a pessoa mais importante de todas era o nosso convidado. Eu apresentei todos os princípios básicos da filosofia e falei alguma coisa sobre o Senhor Jagannatha e sobre a adoração à Deidade, tudo observando com grande cuidado suas reações. Após uma hora, quando comecei a concluir os pontos que apresentei na palestra, pude vê‐lo concordando com a cabeça com meus pontos finais. Quando terminei, levantei enquanto a platéia aplaudia. O jovem também aplaudiu por alguns instantes e, então, olhando para o seu relógio, começou a passar pelos devotos em direção à saída. Eu queria falar com ele, mas ele estava visivelmente com pressa. Mas, quando ele chegou à porta de saída, ele se virou, sorriu e fez positivo para mim, erguendo seu polegar. Não foi grande coisa – um simples sorriso e um gesto – mas foi o suficiente para me fazer acreditar que, se a nova administração for bem sucedida e os devotos continuarem determinados a compartilhar a mensagem da Consciência de Krsna com o povo de Belfast, nós podemos ajudar a trazer paz e felicidade para a Irlanda do Norte. svasty astu visvasya khalah prasidatam dhyayantu bhutani sivam mitho dhiya manas ca bhadram bhajatad adhoksaje avesyatam no matir apy ahaituki “Que haja boa fortuna em todo o universo, e que todas as pessoas invejosas se tornem pacíficas. Que todas as entidades vivas se tranqüilizem pela prática de bhakti‐yoga. Por aceitarem o serviço devocional, elas irão pensar no bem estar umas das outras. Que todos nós, portanto, ocupemo‐nos no serviço à transcendência suprema, o Senhor Sri Krsna, e fiquemos eternamente absortos em pensar unicamente nEle”. ‐ Srimad Bhagavatam 5.18.9

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‐ Capítulo Décimo ‐

Oferenda de Vyasa‐puja 5 de setembro de 2007

Meu queridíssimo Srila Prabhupada, Por favor, aceite minhas mais humildes reverências à poeira de seus pés de lótus. Todas as glórias ao senhor. Hoje, sento‐me para compor minha oferenda de Vyasa‐puja para o senhor, a poucos minutos de ser chamado para palestrar. É comum que um discípulo escreve sua oferenda dias, semanas ou mesmo meses antes do dia do aparecimento do mestre espiritual, mas, este ano, o serviço a seus pés de lótus foi incessante, dia após dia e noite após noite. É sua misericórdia que me mantém tão prestativo. Por favor, aceite tal serviço prestado vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana e nos doze meses do ano como minha verdadeira oferenda ao senhor. Tenho muito a compartilhar com o senhor desde a última vez que me dirigi ao senhor em seu Vyasa‐puja. O que está mais proeminente em minha mente agora é o desfile de Ratha‐yatra que organizamos ontem em Belfast. Naquele lugar desafortunado, onde impera a violência sectária, eu entendi suas palavras no Srimad‐Bhagavatam de que, neste planeta, pode‐se ver tanto o céu quanto o inferno bem diante dos próprios olhos. Ontem, vi uma cidade inteira coberta com a mentalidade infernal de ódio e vingança, pessoas com o desejo de matar. Embora um processo político esteja em andamento há anos e um frágil acordo tenha sido estabelecido recentemente, a atmosfera ainda é densa, repleta de medos e incertezas – tudo devido a um conceito de vida corpórea. O senhor escreveu um verso sobre esse fenômeno em uma oferenda de Vyasa‐puja ao seu mestre espiritual alguns anos atrás: “Lutando pela existência, a raça humana; Sua Divina Graça, a única esperança”. Quão verdadeiras também são estas palavras em relação ao senhor, meu glorioso mestre! Assim como seu próprio Guru‐maharaja, o senhor tem o elixir para todos os problemas do mundo. Enquanto as pessoas se debatem na escuridão da ignorância em lugares como Belfast, o senhor traz a luz do conhecimento transcendental, liberando‐os da identificação corpórea. E, mais ainda, revela‐ lhes a herança que carregam como bem‐aventurados servos do Senhor Supremo. Por sua graça, as pessoas de Belfast puderam contemplar a verdadeira felicidade quando o carro do Senhor Jagannatha desfilou pelas ruas daquela cidade sem cores. Eu pude ver isso em algumas de suas faces. Essa é a glória do Senhor Supremo, Srila Prabhupada, e também a sua, porque o senhor é Seu representante e instrumento em Sua missão neste mundo material. Mesmo os prazeres celestiais aos quais o senhor se referiu são infernais sem o néctar do serviço devocional, que tão bondosamente nos deu. - 54 -


Cada movimento que o senhor conduz nesta missão do Senhor Caitanya, meu querido mestre, são grandes momentos históricos. São, em essência, os passatempos modernos de Mahaprabhu. Quão afortunado me sinto em poder servi‐lo de alguma forma. Quem sou eu para fazer parte de tão sagrado movimento, repleto de santos e sábios vivendo vidas puras e proclamando as mais elevadas verdades? Há não muito tempo, eu também estava pelas ruas, repleto de tristeza e desespero, sofrendo os resultados de meus erros que, de tão numerosos, não me havia esperança de libertação por milhares de nascimentos. Então, de repente, sem avisar, o senhor entrou em minha vida. Eu não sabia que o senhor estava vindo. Eu não sabia quem o senhor era – mas, com o tempo, pude entender sua exaltadíssima posição como um devoto puro do Senhor, um servo íntimo de Radha e Krsna. Por inconcebível misericórdia, sou um de seus servos. Se alguém estivesse para perguntar quem eu sou, “Com licença, por favor, diga‐me quem é você”, eu diria com grande orgulho: “Eu sou o humilde servo de Sua Divina Graça Srila A. C. Bhaktivedanta Svami Prabhupada”. É claro que sei que não se pode ter o título de “seu servo” sem agir e se comportar apropriadamente. Mantendo meus sagrados votos de cantar dezesseis voltas diárias e seguindo os princípios reguladores, espero poder demonstrar sempre meu respeito e amor por tudo o que o senhor me deu. Srila Prabhupada, por favor, permita‐me servir o senhor da mesma forma que o senhor serve seu Guru‐maharaja – pregando as glórias dos santos nomes em todas as direções, por todo o mundo e por todo o universo. Embora seja freqüentemente um serviço árduo – pregar em locais afastados, muitas vezes sem as condições apropriadas, muitas vezes com oposições deliberadas –, tal serviço é minha vida e alma. Através desse serviço, eu posso demonstrar meu amor pelo senhor. Oro para que depois de uma vida de tal serviço, eu volte para o senhor e o senhor diga: “Muito bem, meu filho!”. Só então considerarei minha vida perfeita. Ó Srila Prabhupada, são dias felizes estes que uso minha energia e força em seu serviço. No começo, dei‐lhe minha juventude. Na meia‐idade, trabalhei duramente para seu prazer. Agora, nos poucos anos que me restam de vida, dedicarei tudo o que me resta ao senhor. Eu faria tudo de novo e de novo, nascimento após nascimento; tal é o prazer e satisfação de que um discípulo desfruta por se render à missão do mestre espiritual. Mas tenho de admitir, Srila Prabhupada, eu temo a velhice que esta lentamente tomando meu corpo – não pelo fato dele se tornar inútil e feio, mas porque isso significa que logo me tornarei inativo, estacionário, apenas ficarei esperando a morte. Talvez eu seja afortunado o suficiente para sair deste mundo antes desse momento, plenamente ocupado em seu serviço no campo de batalha da pregação, como se diz. Eu consideraria esse um final apropriado para uma vida de serviço ativo. O senhor estabeleceu tal glorioso exemplo, e é meu dever seguir eternamente seus passos. Seu servo, Indradyumna Svami

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‐ Capítulo Décimo Primeiro ‐

Adeus 15 de outubro de 2007

Caro Nirguna prabhu, Por favor, aceite minhas mais humildes reverências. Todas as glórias a Srila Prabhupada. Acompanho as novidades acerca de sua partida deste mundo em decorrência de câncer por meio do website Dandavats, bem como por meio dos devotos que estão vindo para Vrndavana de Mayapura Dhama. O site disponibiliza um número telefônico e um convite para lhe telefonar e lhe dar adeus. Todavia, é excessivamente doloroso para mim despedir‐me dessa maneira. Desta forma, é mais fácil para mim revelar meus pensamentos e expressar como me sinto. Como todos os devotos, estou entristecido pela sua iminente partida. Embora você e eu tenhamos nos conhecido há apenas poucos anos, sinto que desenvolvemos um forte laço afetivo. Lembro‐me de que quando visitei há poucos anos atrás a Prabhupada Village, na Carolina do Norte, você me deu muitos milhares de dólares de presente. Isso foi uma doação muito significativa uma vez que partiu de um simples chefe de família como você, e eu fui muito tocado por esse ato. Você engrandeceu imensamente meu serviço, e eu me senti muito humilde. Lembro‐me de quando lhe convidei para visitar nossos festivais na Polônia. Como muitos, você expressou grande vontade de aceitar o convite; minha experiência, contudo, é que poucos realmente concretizam essa aceitação. Assim, fiquei alegremente surpreso quando, alguns meses depois, você me escreveu dizendo que de fato participaria da turnê naquele verão. Curioso, coloquei‐me a indagar mais sobre você a vários devotos. Sinto‐me feliz em lhe dizer que todo e cada devoto que contatei na América tinha apenas elogios referentes aos seus muitos anos de serviço a seu amado mestre espiritual, Srila Prabhupada. Repetidas vezes, ouvi você ser glorificado como um resoluto distribuidor de livros, um devoto humilde, um fiel seguidor da ISKCON e, o mais importante, um Homem de Prabhupada. Enchi‐me de alegria ao saber que você se juntaria a nós em nossa turnê. E você realmente se juntou a nós! Tão logo você estava conosco, você estava dando aulas, saindo em Harinama, pregando na tenda de Perguntas e Respostas, e ajudando de todas as maneiras requisitadas a você. Muitos dos devotos da turnê comentaram sobre o quão entusiasta você era. Foi‐nos uma grande fortuna você ter nos visitado tantas vezes ao longo dos anos. Em nome dos devotos do Festival da Polônia, eu lhe agradeço imensamente. Enquanto escuto sobre como você está lidando com esse desafio final, só me resta admirar o exemplo que você está deixando. Sua coragem e sua fé em Krsna nessa hora derradeira são excepcionais. Notei essa mesma postura em nosso irmão espiritual Sridhar Maharaja antes de sua partida. Isto me inspira a confiança de que eu também poderei seguir os passos desses irmãos espirituais e ser destemido no momento da morte. Acredito que tal destemor é produto do desapego de todas as coisas temporárias deste mundo e do amor genuíno pelo mestre espiritual e por Krsna. Tais realizações vêem unicamente após uma vida de serviço sincero e dedicado. - 56 -


Lembro‐me de também ter visto essas mesmas coragem e fé em minha discípula Vraja Lila dasi quando ela preparava‐se para deixar seu corpo há alguns anos. Suas palavras a mim, poucos dias antes dela partir, permanecem em meu coração como um farol a iluminar o caminho deste mundo para o próximo. Ofereço essas palavras a você como uma meditação para suas horas finais: Meu amabilíssimo Mestre Espiritual, Curvo‐me ante seus pés de lótus. Todas as glórias a você. Tudo está fugindo de minhas mãos; toda esperança material que eu possuía. Mas eu continuo uma criança na vida espiritual. Eu gostaria de ter um pouco de amor ou bhava espiritual dentro de meu coração. Eu, entretanto, tenho fé firme e profunda em você. Estou feliz por essa fé, e irei mantê‐la comigo como um grande tesouro, pois ela me traz outra espécie de fé, a fé de voltar para o mundo espiritual e obter o serviço aos pés de lótus de Sri Sri Radha‐Syamasundara. E essa fé e fé em coisas reais, que estou certa que existem e estão me aguardando bem do outro lado da porta. Sou imensamente endividada com você por me guiar em minha vida espiritual, embora eu sinta muita saudade sua. Sua serva, Vraja Lila dasi Meu querido Nirguna prabhu, tudo o que nos resta é agradecer ao nosso Guru‐maharaja, Srila Prabhupada, por ter guiado todos nós seguramente de volta para o mundo espiritual. E pelo serviço que você prestou nesta vida, você pode estar certo da obtenção do serviço eterno aos seus pés de lótus na morada transcendental. Você, portanto, não tem nenhuma razão para se lamentar enquanto se prepara para abandonar seu corpo doente e repleto de dores. Lamentação é para nós que iremos seguir com nossa prolongada existência neste mundo miserável. No entanto, enquanto estivermos aqui, que tentemos seguir seu maravilhoso exemplo de pregar as glórias do Senhor até o fim. Por favor, tolere todos os inconvenientes e dores com os quais terá de lidar nesses dias finais. Isto é algo que todos temos de experimentar, sem exceção. Saiba com toda a certeza que Srila Prabhupada está esperando por você. Ele escreveu para mim certa vez: “Sim, eu também sinto falta do meu Guru‐maharaja, mas sempre sinto que ele está tomando conta de mim e me protegendo”. Obrigado por sua breve associação nesta vida. Meu único desejo seria ter tido a honra de tê‐lo conhecido mais cedo. Espero ser abençoado com a boa fortuna de poder servir com você em uma vida futura. Ou talvez, pela misericórdia sem causa de Srila Prabhupada, encontremo‐nos novamente em breve no céu espiritual . . . onde todo caminhar é dança, todo falar é canção, e onde todos os dias há um festival. Eu te amo e irei sentir sua falta imensamente. Seu servo, Indradyumna Svami - 57 -


‐ Capítulo Décimo Segundo ‐

Sentimentos de Saudade 14 de novembro de 2007

Querido Srila Prabhupada, Aceite, por favor, minhas mais humildes reverências à poeira de seus pés de lótus. Meu querido Senhor e mestre, hoje é o dia de seu desaparecimento deste mundo e de nossa visão externa. Enquanto olho pelo espaço ao redor de seu amado Mayapura Candrodaya Mandir, vejo que muitas preparações estão sendo feitas a fim de honrar este mais sagrado dos dias. Grinaldas e bandeiras tremulam com o vento, o altar central está suntuosamente decorado, e os cozinheiros, todos ocupados preparando um opulento banquete. Há um sentimento de empolgação no ar enquanto os devotos se reúnem para lhe oferecer seus mais sinceros sentimentos de gratidão e amor. Eu às vezes tento imaginar como os residentes do mundo espiritual devem ter celebrado o dia em que você se juntou novamente a eles. Que festividades eles realizaram para dar as boas‐vindas a você, o filho escolhido do Senhor, de volta à morada transcendental? Nos olhos de minha mente, vejo os vaqueiros sobre seus carros de boi com toda a família ansiosos por chegar ao ponto de encontro e recebê‐lo de volta de sua vitoriosa missão de liberar centenas e milhares de almas condicionadas deste miserável mundo de nascimentos e mortes. O peito dos vaqueirinhos deve ter se enchido de orgulho enquanto os gopas mais velhos descreviam como você havia cumprido com sucesso o pedido do Senhor Krsna de aliviar o fardo deste mundo distribuindo conhecimento transcendental na forma de seus gloriosos livros. E quem pode imaginar como as vaqueirinhas, vestidas em seus melhores, alegremente lhe receberam de volta em seu grupo e como com você compartilharam em segredo os passatempos desfrutados por Syamasundara em sua ausência? Certamente elas não deixaram de mencionar as lágrimas que Ele pessoalmente derramou com saudades de você durante os muitos longos anos que você passou no mundo material entregando a mensagem do Supremo. Alguém tomou conhecimento de seus discípulos que partiram deste mundo nos primeiros anos de seu movimento e que, unicamente por sua graça, retornaram para o mundo espiritual a tempo de também recebê‐lo? Oh, Srila Prabhupada, deve de ter sido o mais glorioso evento este no qual os residentes de Goloka o receberam de volta ao lar. Assim, hoje, seguindo os passos dessas ilustres personalidades, também celebramos seu retorno aos braços de seu amado Senhor no bosque de Sri Vrndavana Dhama. Mas meu muitíssimo querido Senhor e Mestre, de alguma forma sinto‐me distante de toda a celebração de hoje. Ao invés de feliz e jubilante, provo um sentimento de melancolia e desespero. Aplaudo os palestrantes que exaltam suas glórias, e canto e danço nos extáticos kirtanas que se dão, mas isso é mais uma exibição de convenções sociais do que qualquer outra coisa, pois minha ânsia é de me recolher para algum lugar isolado do dhama e lamentar‐me por estar separado de você, meu - 58 -


amado mestre espiritual e guia eterno. Na vida material, quando um ente querido parte, o tempo cicatriza as feridas à medida que a memória se apega e novos relacionamentos ganham destaque. Mas, com a vida espiritual, o oposto parece acontecer, pois minhas saudades de você crescem mais e mais a cada ano que se passa. Meu amabilíssimo mestre, nunca me esquecerei daquele dia fatídico, 14 de novembro de 1977, quando o Senhor lhe levou de volta ao mundo espiritual e efetivou a nós, seus amados discípulos, como órfãos espirituais. Ao que a nova de sua partida se espalhou aos quatro ventos, sentamo‐nos descrentes nos preparando para sofrer por um tempo que nos parecia a eternidade. A profunda saudade que experimentávamos parecia maior do que o que qualquer um de nós poderia suportar, pois todos nós o amávamos mais do que alguém jamais sonhou ser amado. Como poderia ter sido diferente? Você foi nosso salvador. Convencidos da autenticidade do conhecimento atemporal das escrituras sobre as quais tão eloqüentemente você falou, aderimos ao processo da Consciência de Krsna com toda a seriedade, renunciando os assim‐chamados prazeres deste mundo no mesmo instante. Para a grande surpresa dos familiares e amigos, sinceramente aceitamos uma vida do que parecia ser penitências e austeridades, mas que, em mistura com a doçura do serviço a seus pés de lótus, rapidamente se tornou uma vida de felicidade e amor extático. Olhando para trás e refletindo sobre sua partida, realizo agora que nada poderia ter nos preparado para o mais catastrófico evento da vida de qualquer discípulo, nem mesmo as incontáveis aulas e instruções que você pessoalmente apresentou sobre a natureza efêmera da vida material e sobre a inevitabilidade da cruel morte. Assim nos lamentamos, assim como você mesmo fez no dia da partida de seu próprio mestre espiritual. Você escreveu: ʺNaquele dia, Ó meu Mestre, chorei aflição; eu não era capaz de suportar sua ausência, meu guruʺ. ‐ Oferenda de Vyasa‐puja de 1961, Vaisistyastakam, Primeiro Vaisistya, Número 1 Mas você não deseja que permaneçamos perpetuamente nesse estado de lamentação, Ó imensamente misericordioso mestre, pois você nos iniciou na vida eterna, onde não há conceito de nascimento e morte, mas somente serviço eterno a guru e Gauranga, neste mundo ou no próximo. Começamos, dessa maneira, a buscar por você de outras maneiras senão em sua presença física. Voltando‐nos para seus livros, lembramo‐nos de que servindo sua vani, ou instruções, continuaríamos a ter sua misericordiosa associação. Isso você escreveu na dedicatória de sua tradução do Srimad‐Bhagavatam: ʺEle vive eternamente por meio de suas divinas instruções, e o seguidor vive com eleʺ. Ficou claro que, seguindo suas instruções, sempre teríamos sua associação. Também realizamos que, seguindo perfeitamente suas ordens, poderíamos, um dia, talvez obter o privilégio de nos associarmos pessoalmente com você mais uma vez. Eu me sinto imensamente privilegiado por ter tido sua associação pessoal durante seus passatempos terrestres. Eu sei que esse tesouro é raro e impagável. Às vezes eu me perguntava como nós almas condicionadas e caídas pudemos obter mesmo um instante de sua associação; sua associação, afinal, é buscada pelos maiores sábios e semideuses. Não há dúvida alguma quanto a até mesmo o próprio Senhor Supremo Se aprazer com sua companhia, pois você Lhe oferece o mais puro e imotivado serviço devocional. Assim, como - 59 -


muitos de meus Irmãos e Irmãs Espirituais, decidi servir à instrução ‐ ao serviço ‐ que é mais querido a você: a ampla distribuição dos ensinamentos do Senhor Caitanya, o Yuga Avatara. yare dekha tare kaha krsna upadesa amara ajnaya guru hana tara ei desa ʺInstrua todos a seguirem as ordens do Senhor Sri Krsna como elas são apresentadas no Bhagavad‐Gita e no Srimad‐Bhagavatam. Dessa forma, torne‐se mestre espiritual e tente liberar todos nesta terraʺ. ‐ Caitanya Caritamrta, Madhya Lila 7.128 Como todo devoto sabe, tal pregação é um grande desafio no mundo material. As entidades vivas caem do Reino de Deus para o mundo material com o propósito expresso de se esquecerem de Deus e de desfrutarem de uma vida fútil de gratificação dos sentidos materiais. Não é uma tarefa fácil lembrá‐las de sua identidade verdadeira no mundo espiritual. Mas é exatamente isso que temos que fazer a fim de receber sua graça e, por fim, novamente sua associação no céu espiritual. Na proporção em que cumprirmos sua ordem de liberar tantas almas condicionadas quanto possamos na duração de nossa vida, maior será a chance de nos associarmos com você novamente. Se ficamos aquém da expectativa de compartilharmos com as almas condicionadas deste mundo a boa‐fortuna que você conferiu a nós, não podemos contar com sua associação pessoal em um futuro muito próximo. O próprio Senhor diz a Narada Muni: hantasmin janmani bhavan ma mam drastum iharhati avipakva kasayanam durdarso ʹham kuyoginam ʺÓ Narada, lamento que durante esta vida você não poderá Me ver mais. Aqueles que são incompletos em serviço e que não são completamente livres de toda mácula material dificilmente podem Me verʺ. ‐ Srimad Bhagavatam 1.6.21 Ó meu mestre, senhor de minha vida, abençoe‐me, por favor, com a pureza, a força, a sabedoria e a determinação em continuar pregando sua mensagem até o fim de minha vida. Você me deu a vida verdadeira, esta vida de Consciência de Krsna, dessa forma, para todos os fins, sou seu ‐ faça comigo o que lhe apraza. Minha oração é que você continue usando meu corpo a envelhecer para a distribuição de sua mensagem às almas condicionadas, minha mente para sempre meditar em como executar tais atos nobres, e minhas palavras para levar centenas de milhares de almas perdidas a seus pés de lótus. Srila Prabhupada, minha grande esperança, meu acalentado desejo, é que eu possa me qualificar através do serviço para estar novamente com você um dia em um futuro não muito distante. A possibilidade virá em breve, porque estou, afinal, nos últimos capítulos de minha vida. Oro que, chegado o momento final, eu possa estar puro em meu coração e qualificado para servir seus desejos no mundo espiritual, muito além deste mundo de nascimentos e mortes. Lá, nessa - 60 -


morada transcendental, jamais experimentarei novamente a angústia de estar separado de você; senão que o ajudarei eternamente em seu serviço ao Senhor, até o fim e na eternidade que segue. Meu amado senhor e mestre, neste dia sagrado, sinto sua falta. Seu servo, Indradyumna Svami

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‐ Capítulo Décimo Terceiro ‐

Vamos Apenas Andar por Aí Jagannatha Puri, Orissa, Índia De 15 de novembro de 2007 a 1 de dezembro de 2007

Quando nosso grupo de parikrama de 250 devotos chegou a Jagannatha Puri, restava apenas uma semana até o auspicioso mês de Kartika. Havíamos passado as três primeiras semanas visitando lugares sagrados de Vrndavana e de Mayapura. Era algo muito intenso viajar pela Índia com tantos devotos. As acomodações nem sempre eram as melhores, e as grandes multidões presentes nos lugares sagrados dificultavam nossa movimentação. Entretanto, desfrutamos imensamente dos dias que passamos ouvindo os passatempos do Senhor e participando de longos bhajanas em todo e cada lugar sagrado que visitamos. Todos nós estávamos ansiosos por visitar Jagannatha Puri uma vez que se trata de um dos locais mais sagrados de toda a Índia, e, localizando‐se à beira do Oceano Índigo, é um lugar muito relaxante. Ao chegarmos, um devoto perguntou timidamente se ele podia nadar no mar. “Ah, sim”, eu respondi. “Banhar‐se neste mar é uma experiência transcendental. Antes de colocar o grande santo Haridasa Thakura em Samadhi, o Senhor Caitanya o banhou nessas águas”. haridase samudra jale snana karaila prabhu kahe, “samudra ei ‘maha tirtha’ ha‐ila” “Sri Caitanya Mahaprabhu banhou o corpo de Haridasa Thakura no mar e então declarou: ‘Deste dia em diante, o mar tornou‐se um grande lugar de peregrinação’.”. ‐ CC Antya 11.64 No dia seguinte à nossa chegada, dirige‐me ao nosso guia, Madhavananda dasa, um discípulo de Gaura Govinda Maharaja. “Comecemos o parikrama bem cedo pela manhã”, eu disse, “assim, podemos ver o máximo de lugares sagrados possíveis antes que fique quente de mais”. “Onde você gostaria de ir particularmente?”, ele perguntou. Eu pensei por um momento. “Vamos apenas andar por aí”, eu disse. Viajando em um auto‐riquixá, chegamos a um templo desconhecido para a maioria dos devotos da ISKCON. “Este é o templo de Radha‐Kanta”, disse Madhavananda. “A Deidade daqui é uma das seis originalmente instaladas pelo grande santo Srila Narottam das Thakur no primeiro Festival de Gaura Purnima da Bengala há 400 anos”. - 62 -


Eu havia visitado o templo há alguns anos buscando pelas famosas Deidades, mas os demais devotos não sabiam de sua existência. Quando entramos, oferecemos nossas reverências e seguimos até o altar para termos o darsana da Deidade. Quando nos colocamos diante da Deidade, eu falei com os devotos: “Esta bela Deidade de Radha‐Kanta, a Deidade de Vraja Mohan em Vrndavana e a Deidade do Senhor Caitanya na Bengala são as únicas Deidades que consegui encontrar das seis originalmente instaladas por Narottam das Thakur. Eu as busco há aproximadamente 20 anos”. Ao nos sentarmos para o bhajan, um dos sacerdotes locais, o qual ouvira por acaso o que eu havia dito, aproximou‐se e começou a sussurrar no meu ouvido: “O sacerdote principal daqui, que supervisiona a adoração a Radha‐Kanta, talvez possa lhe dizer onde estão as outras três Deidades”. Ele disse mais: “Ele é um idoso sadhu em seus 80 anos e é muito bem versado na tradição Vaisnava”. “Por favor!”, eu disse empolgado. “Você poderia arranjar para que eu me encontrasse com ele?”. “Vou ver”, disse o sacerdote. Enquanto dávamos início ao bhajan, eu olhei para Radha‐Kanta e orei para que Ele revelasse onde as outras Deidades estavam sendo adoradas. Vinte minutos depois, conosco ainda cantando, o sacerdote retornou. “O Maharaja concordou em se encontrar com você em dez minutos”, ele disse. Ele apontou para uma pequena sala próxima do altar. “Bem ali”, ele disse. Passados poucos minutos, coloquei‐me rapidamente em direção à sala. Quinze ou vinte devotos me seguiram. Repentinamente, o idoso sadhu apareceu à porta. Ele era um homem mais alto do que a média e, vestido em uma única peça de pano, trazia uma expressão séria. Vendo que não caberíamos todos em sua sala, ele pediu uma cadeira e se sentou conosco. Nós nos curvamos oferecendo nossos respeitos. “Maharaja”, eu disse, “somos todos devotados seguidores de Sri Caitanya Mahaprabhu, e por isso Seu devoto Srila Narottam dasa Thakur é muito querido aos nossos corações. Gostaríamos de agradecer a você e a seus discípulos por cuidarem tão bem de sua Deidade, Radha‐Kanta”. Ele olhava curioso para nós, como se nunca tivesse visto devotos ocidentais antes. “Como é isso de vocês admirarem Sri Thakur Mahasaya [Narottam das Thakur]?”, ele perguntou. “Sua profunda devoção pelo Senhor”, eu respondi, “como expressa em suas obras Prema Bhakti Candrika e Prarthana e o fato dele ter sido um resoluto pregador da mensagem de Sri Caitanya Mahaprabhu”. O idoso sadhu sorriu e concordou com a cabeça. “Estamos dando o nosso melhor para cuidarmos de Radha‐Kanta”, ele disse. “O ponto importante é a devoção. Há alguns recursos aqui, mas eles não significarão nada se não os oferecermos com devoção”. “E há um maravilhoso passatempo que se deu aqui”, ele continuou com um sorriso. Os devotos chegaram mais perto. “Quinhentos anos atrás, o Senhor Nityananda visitou este exato lugar, que era então apenas uma selva. Ele estava acompanhado por um grupo de crianças, e eles realizaram um kirtana que se - 63 -


prolongou por muitas horas. Posteriormente, quando o Senhor Caitanya esteve aqui, Ele declarou que há dois lugares em Jagannatha Puri onde o amor a Deus está facilmente disponível: o templo de Tota Gopinatha e este lugar, onde o Senhor Nityananda dançou em êxtase com as crianças”. “Alguns anos depois, quando Narottam das Thakur veio aqui em peregrinação, um de seus discípulos, Seva das, perguntou se ele poderia permanecer aqui e realizar bhajan. Passado algum tempo, Narottam ordenou que a deidade de Radha‐Kanta fosse trazida para aqui para ser adorada por Seva das”. O sadhu silenciou‐se. Eu senti que era o momento oportuno para apresentar minha questão. “Maharaja”, eu disse. “Após a partida do Senhor Caitanya, Radha‐Kanta foi instalado por Narottam das Thakur no famoso festival Keturi da Bengala, juntamente com outras cinco Deidades. Uma delas foi uma Deidade dourada do Senhor Caitanya, que agora é adorada em uma vila ao norte de Calcutá. Dentre as outras Deidades de Krsna, uma, Vraja‐Mohan, é atualmente adorada em Vrndavan. Você saberia onde estão as outras três Deidades?”. “Você sabe isso?”, o sadhu disse revelando‐se surpreso. “Há vinte anos tento encontrar essas Deidades”, eu respondi. Eu cantei então um de meus mantras favoritos, o qual traz os nomes de todas as seis Deidades. gauranga vallabhi kanta sri krsna vraja mohan radha raman he radhe radha‐kanta namo stu te Os olhos do sadhu se arregalaram. “Eu sei onde elas estão”, ele disse suavemente. Eu não podia acreditar nos meus ouvidos. “Maharaja!”, eu disse, “por favor, diga‐nos onde elas podem ser encontradas”. Ele começou de vagar. “Como você afirmou”, ele disse, “Gauranga está sendo adorado na Bengala na casa ancestral de Ganga Narayana Cakravarti, o principal discípulo de Narottam das Thakur. Vallabhi‐Kanta está sendo servido em um templo em Dvaraka, embora eu não saiba precisamente de Seu paradeiro. Sri Krsna foi adorado por algum tempo por um rei na Bengala Oriental e posteriormente dado a uma família de brahmanas. Seria necessária mais pesquisa para encontrar onde Ele está agora”. “Você mencionou que Vraja Mohan é adorado em Vrndavan. Ouvi dizer que Radha Raman também está recebendo serviço em algum lugar de Vrndavana”. “E Radha‐Kanta está, é claro, sendo adorado aqui”, ele disse. “Você talvez fique surpreso em saber que, das seis Deidades instaladas por Narottam, Radha‐Kanta foi pessoalmente adorada por ele pelo restante de sua vida”. Eu permaneci sentado desacreditado. Em um minuto, vinte anos de pesquisa deram fruto. Após desfrutar o momento, todos nós agradecemos imensamente o sadhu, oferecemos nossas reverências, e partimos. Caminhamos para fora do templo e começamos a descer a rua. “Maharaja”, Madhavananda - 64 -


disse, “tenho outro lugar incrível para levar os devotos”. Eu balancei minha cabeça. “O que poderia ser mais incrível do que o que acabamos de vivenciar?”, eu disse. Madhavananda sorriu. “Um templo há muito perdido”, ele disse. “Ele foi descoberto há pouco tempo bem no coração de Jagannatha Puri”. “Um templo perdido?”, eu disse. “Como poderia haver um templo perdido no meio de Jagannatha Puri?”. Enquanto caminhávamos, Madhavananda me contou a história. “Quinhentos anos atrás”, ele começou, “quando o Senhor Caitanya vivia em Puri, Ele permaneceu na casa de Seu devoto Kasi Misra. Essa casa, a qual ainda existe, posteriormente tornou‐ se o famoso templo Gambira, onde a Deidade pessoal de Kasi Misra, Radha‐Kanta, era adorada. Em virtude do rigor da cultura da época, mulheres não tinham autorização para prestar serviço pessoal a Deidades de templo. A esposa de Kasi Misra, todavia, tinha um forte desejo de servir o Senhor em Sua forma de Deidade; seu esposo, portanto, providenciou belas Deidades de Radha e Krsna para que ela adorasse em seu templo pessoal, o qual ele mesmo construiu. Ao longo da maior parte de sua vida, ela serviu essas Deidades com grande devoção. Infelizmente, com o passar dos séculos, o pequeno templo foi abandonado”. “Como um templo sagrado poderia ser abandonado?”, eu perguntei. Madhavananda balançou sua cabeça. “Kali‐yuga”, ele disse. “Dois anos atrás”, ele continuou, “um pujari no templo Gambira teve um sonho no qual as Deidades da esposa de Kasi Misra apareceram para ele”. “Nós estamos debaixo d’água”, Elas disseram. “Estamos rodeados de lixo e sujeira, atrás de um muro próximo ao templo Gambira. Por favor, venha e Nos resgate”. “O pujari acordou em um estalo. Ele juntou alguns amigos e ferramentas e então foram ao local indicado pelas Deidades. Era um local onde as pessoas por muitos anos jogaram lixo por cima de um muro que protegia uma selva há muitos anos negligenciada”. “Eles escalaram o muro, transpuseram uma enorme pilha de entulhos e chegaram a um espaço tomado de árvores e trepadeiras. Com golpes de machado, eles abriram caminho até encontrarem as ruínas de um pequeno templo. Quando forçaram para abrir a porta, a água retida saiu com violência. Ao adentrarem o templo, eles ficaram estupefatos ante a visão das grandes Deidades de Radha e Krsna sobre o altar. Foram necessárias semanas até que a beleza original das Deidades fosse restaurada. Depois que a área foi devidamente limpa e o templo reconstruído, a adoração a Radha e Krsna foi retomada”. “Essa é outra história incrível”, eu disse. “Eu pensei que coisas assim só aconteciam em eras anteriores. Eu mal posso esperar para ver essas Deidades. E eu também adoraria conhecer o puraji”. Tão logo eu falei, chegamos a um templo no limite de um bairro de crescimento visivelmente não planejado. Eu entrei no templo, ofereci minhas reverências às Deidades e então me coloquei reverencialmente de pé diante dElas, apreciando a beleza que tinham e também o passatempo que desfrutaram de revelar a Si mesmas ao mundo novamente. Quando os devotos se sentaram para ouvir Madhavananda lhes relatar o passatempo, caminhei para trás do templo com Gaura Hari das para cantar o mantra Gayatri em um local silencioso. Fomos - 65 -


acompanhados por um jovem residente de Puri que estava nos assistindo com traduções. Tão logo havíamos acabado de cantar o Gayatri, vi um homem idoso saindo de uma pequena edificação adjacente ao templo. Imediatamente atraído por sua aparência santa, eu espontaneamente ofereci reverências a ele. Ao me levantar, comecei a caminhar ao seu encontro. “Quem é esse bem‐aventurado sadhu?”, eu perguntei ao nosso tradutor. “Ele é obviamente idoso, mas parece jovem em razão de seu semblante refulgente”. O tradutor olhava de mãos postas para o sadhu. “Ele é o pujari que sonhou com as Deidades deste templo”, ele disse. “Por amor às Deidades, ele agora reside próximo dElas”. Eu não podia acreditar em nossa boa‐fortuna. Curvando‐me diante do sadhu, pedi que ele colocasse suas mãos sobre minha cabeça e me abençoasse. Como todos os Vaisnavas, ele era de natureza misericordiosa. Sorrindo amplamente, ele apoiou firmemente suas duas mãos sobre minha cabeça e disse alto: harer nama harer nama harer nama eva kevalam kalau nasty eva nasty eva nasty eva gatir anyatha “Nesta era de desavenças e hipocrisia, o único meio para se obter a liberação é o cantar dos santos nomes do Senhor. Não há outra maneira. Não há outra maneira. Não há outra maneira”. ‐ Brhad‐naradiya Purana 3.8.126 Eu o agradeci continuamente. Pela segunda vez nessa manhã, vi‐me expressando profunda gratidão por uma pessoa santa. Antes de retornarmos para o nosso grupo de devotos, oferecemos nossas reverências mais uma vez. Enquanto os devotos ouviam hipnotizados a narração de Madhavananda, dirigi‐me a Gaura Hari. “Uma vez que já ouvimos a história”, eu disse, “peguemos nosso tradutor e andemos pelas redondezas para ver com o que conseguimos nos encontrar”. Caminhamos para fora e entramos em uma rua estreita. Nosso tradutor nos disse que estávamos em uma parte antiga da cidade, onde os brahmanas do templo principal viviam com suas famílias. Enquanto caminhávamos, fiquei assombrado com a antiguidade de tudo ao meu redor. Ao virarmos uma esquina, vimos uma mulher idosa sentada na varanda de sua casa comendo a prasadam contida em uma tigela de barro no chão. Ela comia cada punhado lentamente e com profundo respeito. “Essa é uma excelente foto”, eu disse a Gaura Hari ao sacar minha máquina para fotografá‐la. Logo em seguida, um homem que parecia estar ambientado nos anos 60 saiu da casa. Vendo‐ nos, ele imediatamente sorriu. Ele estava vestido com um dhoti e um pequeno chaddar sobre seu pescoço, e seu cordão bramânico repousava‐se sobre seu ombro. “Esta é minha mãe”, ele disse. “Ela está honrando a prasadam do Senhor Jagannatha”. “Ele é um dos principais sacerdotes do templo”, nosso tradutor disse discretamente. “Todos os dias ele recebe um pouco da prasadam oferecida ao Senhor Jagannatha em um prato especial de ouro. A prasadam é preparada separadamente e pelos melhores cozinheiros do templo”. O sacerdote se aproximou para falar conosco. “Vocês são Vaisnavas?”, ele perguntou. - 66 -


“Sim, Maharaja”, eu respondi. “Pela misericórdia de nossos mestres espirituais, somos servos do Senhor. Viemos a Jagannatha Puri em parikrama com um extenso grupo de devotos do ocidente”. Ele permaneceu parado por algum tempo nos observando e então se virou silenciosamente e subiu na varanda onde sua mãe estava tomando prasadam. Abaixando‐se, ele respeitosamente pegou um pouco da prasadam em sua mão e caminhou novamente até onde estávamos. Em nossas mãos, ele colocou então um pouco da prasadam. Pegos de surpresa por sua generosidade, ficamos parados ali sem saber o que fazer ou dizer. Ele sorriu novamente. “Tomem prasadam”, ele disse. Olhando para sua mãe, que continuava apreciando a prasadam em sua cuia, coloquei em minha boca a prasadam do Senhor Jagannatha com toda a devoção que pude reunir. “Eu jamais havia provado algo assim em toda a minha vida”, eu disse a Gaura Hari. “Isto é celestial”. Quando o brahmana retornou para suas ocupações, vimo‐nos novamente nos curvando e agradecendo um sadhu por sua bondade conosco. “Esta é a misericórdia deste dhama sagrado”, eu disse a Gaura Hari enquanto caminhávamos novamente ao encontro do nosso grupo. “Os sadhus que aqui vivem gentilmente compartilham com outros a boa fortuna que possuem. É por esta razão que devemos visitar lugares sagrados como este tantas vezes quanto possamos em nossa vida”. “Eu concordo”, disse um entusiástico Gaura Hari. “Experiências como as que tivemos hoje em Jagannatha Puri”, eu disse, “fazem com que eu tenha fé de que um dia eu talvez até mesmo obtenha o raríssimo tesouro do amor a Deus”. Enquanto descíamos a rua, eu me lembrei de um belo verso: idam sena bhagyam bhavati sulabham yena yuvayos chatapy asya premnah sphurati na hi suptav api mama padarthe smin yusmad vrajam anunivasena janitas tathapy asa bandhah parivrdha varau mam dradhayati “O esplendor do amor puro, o qual torna a boa‐fortuna do serviço direto a Você facilmente obtenível, não é meu, nem mesmo em sonho. Contudo, Ó rei e rainha, o simples fato de viver em sua Vraja me concede grande esperança”. ‐ Utkalika‐vallari, verso 64 Nós nos encontramos com o nosso grupo de parikrama e começamos a voltar em direção ao local onde estávamos ficando. Ao chegarmos à rua Satpa Rsi, próxima de nosso destino, levei os devotos ao templo de Jagadananda Pandita, outro importante associado do Senhor Caitanya. No templo, eu falei aos devotos: “Jagadananda Pandita escreveu um livro chamado Prema Vivarta, no qual ele analisa o tema do amor divino em minuciosos detalhes. Kaviraja Gosvami diz no Caitanya Caritamrta: ‘jagadanandera ʹprema‐vivartaʹ sune yei jana, premera ʹsvarupaʹ jane, paya prema dhana’, ou seja, ‘Todo aquele que ouça sobre a reciprocidade amorosa entre Jagadananda Pandita e Sri Caitanya Mahaprabhu ou que leia a obra Prema‐vivarta, de Jagadananda, pode entender o que é amor. Posteriormente, ele obtém o amor extático a Krsna’.”. - 67 -


“Isso é algo que esperamos obter no futuro”, eu disse com um sorriso, “depois que tivermos sido bem‐sucedidos em nosso empenho de superar os desejos materiais. Por ora, coloquemo‐nos em direção ao nosso asrama”. Eu pude ver que os devotos estavam começando a ficar cansados, então não me prolonguei. Deixando o templo, olhei para o outro lado da rua e vi o famoso templo de Brahmananda Bharati Maharaja, outro grande associado do Senhor Caitanya. O templo estava passando por reformas, e, curioso para ver o trabalho, peguei na mão de meu discípulo Narottam das Thakur das, e passamos eu e ele por debaixo dos andaimes e entramos. O templo existe há 500 anos e mantém cada detalhe de sua antiguidade. Não havia janelas ou iluminação interior, mas com a luz que se infiltrava pela entrada pudemos ver as belíssimas Deidades de Radha e Krsna sobre o altar. “Estas são as Deidades pessoais de Brahmananda Bharati Maharaja”, disse um pujari vindo por detrás de nós. “Com a ajuda de muitos devotos da ISKCON, estamos fazendo com que o templo retome sua glória original. Permitam que eu mostre para vocês as salagramas silas que são aqui adoradas desde o tempo de Caitanya Mahaprabhu”. Ele foi até o altar, pegou uma caixa de madeira repleta de silas e as trouxe até nós ‐ até bem diante de nossos olhos. “Elas são maravilhosas”, eu disse. De repente, notei uma pequena pedra negra com uma bela linha branca a rodeando várias vezes. “Esta é uma Siva‐lingam, o próprio senhor Siva”, eu suspirei para Narottam das. “Antigamente, os sadhus adoravam Siva nessa forma. Atualmente, só se encontram essas lingams em templos. Elas são muito raras”. Eu parei por um momento. “Eu sempre ansiei ter uma”, eu disse, “para completar a adoração em meu altar”. “Mas por que nós, como devotos de Krsna, iríamos adorar o senhor Siva?”, Narottam perguntou. “Os sastras afirmam que ele é o maior dos Vaisnavas”, eu respondi. “E somente pela misericórdia dos Vaisnavas podemos servir o Senhor Supremo”. Eu citei o Bhakti Ratnakara: srimad gopisvaram vande sankaram karuna mayam sarva klesa haram devam vrindaranya rati pradam “Ofereço minhas respeitosas reverências a Gopisvara, ele que é o próprio senhor Siva. Ele é muito misericordioso, ele remove todos os obstáculos e concede amor espiritual em Vrndavana”. ‐ Bhakti Ratnakara Eu contemplei prolongadamente a sila. “Mas eu não vou pedi‐la”, eu pensei. “Talvez em outra oportunidade. De qualquer maneira, o pujari provavelmente não me daria”. Eu agradeci ao pujari pelo darsan especial e me voltei para Narottam. “Vamos”, eu disse. - 68 -


A entrada principal estava fechada, então caminhei cuidadosamente pela escuridão em direção à porta. Quando encontrei a maçaneta, abri a porta e caminhei para a luz do radiante sol. Eu reuni os devotos, falei por algum tempo sobre Brahmananda Bharati Maharaja e então anunciei que continuaríamos de volta para o nosso asrama. Subitamente, dei‐me conta de que Narottam não estava ali conosco. “Onde está Narottam?”, eu perguntei aos devotos. No mesmo instante, ele apareceu. “Desculpe o atraso, Guru‐maharaja”, ele disse. Ele fez breve silêncio. “Mas eu acho que você não irá se importar com meu atraso”, ele continuou, “porque eu tenho algo muito especial para você”. Depois de dizer essas palavras, ele colocou a belíssima Siva‐lingam na minha mão. “Narottam!”, eu disse. “Como você a conseguiu?”. “Foi simples”, ele respondeu. “Eu disse ao pujari que você e alguns de seus discípulos eram os principais contribuintes para a renovação do templo ao longo dos últimos anos. Quando ouviu isso, ele deu a sila com grande gratidão e amor”. Nessa noite no asram, lembrei algo dito por um discípulo de Srila Prabhupada, Madhavananda das, em entrevista a Yadubara das. Ele estava falando sobre o parikrama de Srila Prabhupada de 1971 em Vrndavana com seus discípulos ocidentais: “Quando chegamos a Vrndavana, lembro quando caminhei até a sala de Prabhupada e ofereci minhas reverências. Eu perguntei: ‘Srila Prabhupada, o que devemos fazer agora?’.”. “Ele olhou para mim e disse: ‘Vamos apenas andar por aí’.”.

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‐ Capítulo Décimo Quarto ‐

Sem Problema, Gente Boa 2 de dezembro de 2007 a 25 de dezembro de 2007

Após um mês inteiro de parikrama por Vrndavana, Mayapura e Jagannatha Puri, eu estava triste por ter de partir da Índia. No dia 2 de dezembro, embarquei em meu vôo para Sydney, Austrália, com a lembrança dos lugares que eu havia visitado ainda fresca em minha mente. A viagem havia causado uma impressão profunda na minha vida espiritual. Eu pude entender claramente porque Srila Prabhupada queria que seus discípulos visitassem regularmente a Índia e se refugiassem nos lugares sagrados. “Seguindo os passos de Sri Caitanya Mahaprabhu, construímos templos tanto em Vrndavana como em Mayapur, Navadvipa, apenas para dar refúgio para os devotos estrangeiros advindos da Europa e da América. [...] O propósito da Sociedade Internacional para a Consciência de Krsna é dar refúgio a eles e treiná‐los no serviço devocional”. – Caitanya‐Caritamrta, Madhya‐lila, Capítulo 25, verso 183, significado. Cheguei a cogitar a possibilidade de estender minha visita à Índia por mais algumas semanas, mas, tanto quanto eu ansiava ficar, eu sabia que o propósito da minha visita aos lugares sagrados havia sido satisfeito. Srila Prabhupada, certa vez, escreveu a um discípulo: “Vrndavana é apenas uma inspiração. Nosso verdadeiro campo de atuação é ao redor de todo o mundo”. – Mahanidhi Svami, Prabhupada no Radha‐Damodara, Capítulo 7 Com a decolagem do avião, passei a meditar na minha visita à Austrália. Dezesseis devotos da turnê de verão do festival da Polônia iriam se juntar a mim para uma turnê ali. Eles eram os principais integrantes do nosso programa de palco na Polônia, e eu os selecionei devido ao talento deles na dança bharat‐natyam, em bhajans, em yoga, nas artes marciais e em teatro. Quando cheguei à Austrália no dia seguinte, todos nós nos reunimos para nosso primeiro ensaio. Tendo vindo de vôos de terras distantes como a Polônia, a Estônia, a Ucrânia e a Rússia, os devotos, ainda abalados pelo jet lag, levaram algum tempo até unirem suas atuações. No dia seguinte, contudo, nosso show de três horas estava preparado. À tarde, saímos em harinama para divulgar o primeiro festival. Eu esperava um grupo de harinama maior, mas o templo local de Sydney só pôde disponibilizar alguns poucos devotos em razão de terem acabado de dar início à maratona de sankirtana deles de outubro. Nenhum dos devotos estrangeiros havia visitado a Austrália antes, e estavam incertos quanto ao que esperar. Mas nós logo experimentamos a congenialidade do povo australiano quando começamos a cantar e a distribuir convites. Quase todos aceitavam nossos convites com um sorriso e freqüentemente com palavras de apreciação. Isso se revelou uma dificuldade para os devotos russos, alguns dos quais haviam feito cursos de inglês pouco antes de irem para a Austrália. Após apenas dez minutos distribuindo convites, um devoto russo se aproximou de mim e perguntou: “Guru‐ - 70 -


maharaja, o que significa ‘jóia’?”. Eu ri e disse: “É uma gíria. Algo como ‘ótimo’.”. Cinco minutos depois, outro devoto russo se aproximou de mim e me perguntou em um inglês quebrado: “O que eles querem dizer quando dizem: ‘Tá na moral, gente boa’?”. Eu tive que consultar um devoto local que estava cantando conosco. “É uma expressão afirmativa”, ele disse sorrindo. “É como dizer que está tudo bem”. Ao fim do kirtan, uma devota ucraniana aproximou‐se de mim segurando um dicionário ucraniano‐inglês. “Eu não consigo achar a palavra ‘semproblema”, ela disse expressando confusão com seu rosto. “São duas palavras”, eu disse. “Quando eles dizem: ‘Sem problema, gente boa’, quer dizer: ‘não há nada com o que se preocupar’.”. No dia seguinte, saímos novamente em harinama. Nessa noite, tivemos nosso primeiro programa em Newtown, um subúrbio de Sydney. Eu estava preocupado que o comparecimento ao festival poderia ser fraco em virtude da pouca divulgação, mas o auditório logo estava no limite de sua capacidade de 300 pessoas. “Eles são basicamente do estilo alternativo New Age”, um devoto local me informou. A audiência adorou o nosso show e aplaudia sonoramente após cada apresentação. Houve muitos bons comentários da multidão enquanto eles deixavam o espaço, inclusive o de que o show havia sido profissional. Para mim, esse foi o comentário mais significativo, porque eu me esforcei por anos para elevar o nosso festival a um nível de excelência profissional. O conteúdo é devocional, o que é o ponto mais importante, mas, para atrair o público em geral, esse conteúdo deve ser apresentado de maneira bem organizada e atrativa. Somente então poderemos verdadeiramente conquistar o mundo com cultura. Srila Prabhupada disse uma vez: “Então, esta é a nossa missão. Essa cultura indiana. As pessoas anseiam por essa cultura, a cultura de Krsna. Vocês, portanto, devem se preparar para apresentar o Bhagavad‐Gita como ele é, e então a Índia irá conquistar o mundo com essa cultura de Krsna. Estejam certos disso”. – Aula ministrada em Bombaim em 31 de março de 1971 Durante os próximos dez dias, organizamos outros dois festivais bem‐sucedidos em áreas similares à primeira, atraindo multidões que se constituíam basicamente de jovens buscando por vida espiritual. Feliz com os resultados, indaguei de Vara‐nayaka dasa, o presidente do templo de Sydney, sobre o próximo programa. “Nós planejamos o próximo programa em Mona Vale, uma cidade conservadora do norte de Sydney”, ele disse. “Queremos nos expandir e alcançar diferentes tipos de pessoas com o programa do seu festival”. “Nós já fizemos algum programa lá antes?”, eu perguntei. “Não que eu saiba”, ele respondeu. “Talvez tenha acontecido um pouco de distribuição de livros lá ao longo dos anos”. ”E harinama?”, eu perguntei. “Talvez 30 anos atrás”, ele disse rindo. Grandes custos e esforços foram demandados no planejamento e na preparação da nossa turnê na Austrália, e eu estava hesitante quanto a fazer um programa em uma área conservadora. - 71 -


“Certamente não teremos a mesma resposta que obtivemos nos subúrbios de Sydney”, eu pensei comigo. No dia seguinte, todos nós fomos para Avalon, uma cidade próxima de Mona Vale. Porque a cidade também não era grande, queríamos distribuir tantos convites na área quanto fosse possível. Comigo, estava Santi Parayana dasa, que vivia há anos na região de Sydney. “Avalon é ainda mais conservadora do que Mona Vale”, ele disse. “Algumas das pessoas mais ricas da Austrália vivem ali”. Minutos depois, dirigimos até a singular cidade, que trazia lojas atrativas e seqüenciadas, cafeterias a céu aberto e jardins bem cuidados. Construções residenciais esporádicas se faziam ver próximas da encosta. Ao deixarmos as vans e nos reunirmos para o harinama, algumas pessoas pararam e ficaram a nos contemplar. “Eles nos conhecem aqui?”, eu perguntei a Santi Parayana. “Não parece”, ele respondeu. Percebi que os devotos estavam um pouco tensos e constrangidos. Então, quando descemos para o passeio, eu os encorajei com um sorriso. Logo a potência dos santos nomes se fez presente e os devotos demonstraram grande segurança enquanto alegremente cantávamos e dançávamos descendo a rua. Assim como o nosso show de palco, nosso harinama era muito atrativo devido ao seu planejamento. Eu havia insistido que todos os devotos deveriam estar impecavelmente vestidos: os homens vestiam dhotis bem passados, e as mulheres haviam decorado seus rostos com pontilhados similares aos usados pelas gopis. Seus saris moviam‐se belamente enquanto dançavam a sincronizada coreografia. O grupo de kirtana procedia venturosamente pelas ruas, e os devotos interagiam com as pessoas sorrindo e acenando. Elas cantavam melodiosamente em acompanhamento aos nossos tambores, címbalos e acordeons. Ao contrário da minha expectativa, logo se tornou obviamente visível que as pessoas estavam adorando nosso canto tanto quanto gostaram em Sydney. Vendo que as pessoas retribuíam nossos acenos e sorrisos, um dos devotos russos comentou: “Sem problema, Guru‐maharaja”. “Tá na moral”, gracejou outro devoto em seu carregado sotaque russo. Ao virarmos a primeira esquina, um homem bem vestido colocou‐se a andar rápido em direção ao nosso grupo de kirtana. “Essa não”, eu pensei. “Ele é provavelmente um oficial vindo nos parar”. “Apenas sigam em frente”, eu disse aos devotos. O homem nos alcançou. “Vocês são do Movimento Hare Krsna?”, ele me perguntou. “Sim, senhor”, eu respondi. “Então isso é para você”, ele disse colocando $150 na minha mão. Eu estava chocado. “Obrigado, senhor”, eu disse. “Mas use somente no movimento”, ele disse sorrindo enquanto se afastava. O passeio foi se alargando à medida que prosseguíamos, e paramos para cantar por alguns minutos em frente a uma cafeteria. Um dos clientes se levantou de sua mesa e veio para a rua. Seus olhos estavam arregalados, expressando claramente sua descrença no que via. - 72 -


“Eu não posso acreditar nisso”, ele disse alto. “Eu simplesmente não posso acreditar”. Eu me aproximei de onde ele estava. “No que o senhor não acredita?”, eu perguntei. “Não posso acreditar que vocês estão aqui”, ele respondeu balançando sua cabeça. “Estamos divulgando nosso festival em Mona Vale”, eu disse. “Eu acabei de me mudar de Sydney. Mudei‐me ontem”, ele disse. “Eu costumava comer regularmente no restaurante de vocês na cidade. Eu estava sentado aqui me lamentando pelo fato de que eu não mais veria vocês, e, de repente, vocês passam cantando. Isso é espantoso!”. Eu entreguei a ele um convite para o programa em Mona Vale. “Nós diríamos que isso é um arranjo de Krsna”, eu disse com um sorriso. “Compareça ao festival amanhã à noite”. Continuamos cantando enquanto seguíamos pela rua e paramos novamente na esquina de um cruzamento. Rapidamente atraíamos um pequeno grupo, que ficou assistindo e apreciando o kirtana. De repente, eu vi duas mulheres mais velhas olhando desconfiadas para nós. Uma delas se aproximou e disse alto: “Vocês são Hare Krsnas de verdade?”. “Sim, senhora”, eu disse tentando falar mais alto do que o kirtana. “Somos Hare Krsnas de verdade”. Ela olhou para trás e confirmou à sua amiga com a cabeça que éramos mesmo os Hare Krsnas. As duas mulheres seguiram assistindo ao kirtana e acenando e sorrindo para as devotas sempre que conseguiam a atenção de alguma delas. Enquanto nossa procissão tinha prosseguimento, peguei um bloco de convites e comecei a distribuí‐los. Eu entreguei um convite a um senhor idoso, que sorriu e disse: “Há 30 anos esperamos pela volta de vocês”. Notando um amigo próximo, ele apontou para nós e disse: “Ei, Billy, olha só. Olha só”. Seu amigo visivelmente nunca havia nos visto antes. “Quem são eles”, ele perguntou. “Os Hares”, o homem disse. Tendo ouvido essa resposta, eu ri e pensei: “Eles até mesmo têm uma gíria para nós”. “Boa gente”, o primeiro homem disse enquanto caminhavam embora. Isso foi pouco antes de chegarmos ao final da zona comercial. Nesse momento, nosso cantar havia atingindo um clímax, e os devotos dançavam e giravam em êxtase. Quando prestes a virar uma nova esquina, vimos um parque a cerca de 30 metros, onde um grande número de crianças e adultos de uma escola estavam fazendo pic‐nic. Ouvindo o kirtana, as crianças espontaneamente levantaram‐se de um pulo e correram em nossa direção. Dentro de instantes, estávamos rodeados por cerca de 100 crianças a cantarem empolgadamente conosco. Algumas delas deram as mãos para formarem círculos. Elas puxavam os devotos para o meio dos círculos e dançavam ao redor deles. Outras formavam filas colocando as mãos nos ombros do colega da frente e riam e gargalhavam enquanto dançavam ao ritmo das mrdangas. Ao que o compasso do kirtana acelerou, algumas crianças agarraram seus colegas e começaram a dançar loucamente. Rodopiando por toda parte, elas gritavam no limite de suas vozes: “Hare Krsna!”. Tomada pela empolgação, uma garotinha gritou: “Eu amo chocolate!”. Eu ri ao ver os amigos dela desaprovarem‐na com o rosto, indicando que a irrupção estava fora de contexto. Busquei então ver a reação dos pais e professores e me surpreendi ao ver que eles estavam - 73 -


desfrutando atentamente do evento, acenando para seus filhos e os encorajando. Impressionei‐me ainda mais quando um casal passando com seus dois filhos me perguntou: “Podemos deixar nossas crianças com você por 20 minutos enquanto terminamos nossas compras?”. “Bem... sim... claro”, eu respondi. Apontando para as crianças que dançavam, eu disse: “Elas podem dançar naquele terceiro círculo de crianças ali”. Outros transeuntes paravam para assistir, muitos batendo palmas para encorajar as crianças. Afastando‐me por um momento, fiquei assistindo impressionado à cena que se desenrolava. “Esse tipo de bem‐aventurança é possível unicamente em virtude da misericórdia do Senhor Caitanya”, eu pensei lembrando de um verso que eu havia memorizado recentemente: yada tada madhava yatra yatra gayanti ye ye tava nama‐lilah tatraiva karnayuta‐dharyamanas tas te sudha nityam aham dhayani “Ó Madhava, sempre e onde quer que alguém cante Seus nomes e descreva Seus passatempos, possa eu estar presente com milhões de ouvidos para beber de tal néctar” ‐ Visvanatha Cakravarti Thakur, Anuraga‐valli, verso 4 Transcorridos 45 minutos, a maior parte das crianças havia se dispersado, deixando entre 20 e 30 das mais entusiastas para cantar e dançar conosco. Vendo que alguns devotos estavam diminuindo seu ritmo pessoal, algumas das crianças correram à frente. Elas tomaram de nós nossos tambores e kartalas e começaram elas mesmas a tocar. Duas garotas pegaram do devoto que a segurava a foto do Panca Tattva com o maha‐mantra. Elas também pegaram o microfone do devoto que liderava e começaram a cantar Hare Krsna. Nós nos afastamos e olhamos incrédulos enquanto elas continuaram o kirtana por mais 20 minutos. Por fim, eu decidi encerrar o kirtana. Nós tínhamos que prosseguir e divulgar o festival em Mona Vale. Mas as crianças não me dariam ouvidos. Imersas no néctar do cantar, elas não pretendiam parar. Por fim, eu tive de puxar o plugue do amplificador. As crianças se aglomeraram ao nosso redor pedindo por autógrafos e endereços de e‐mail. Quando um devoto trouxe alguns saquinhos de nozes que estávamos distribuindo mais cedo, as crianças correram para cima dele para pegar. Quando elas se sentaram nos paralelepípedos dos jardins para comerem, um dos pais delas me abordou. “Nós sempre falamos a eles para que nunca aceitem comida de estranhos”, ele disse. “Mas veja como eles estão comendo essas nozes! Você roubou o coração deles e tornou esse pic‐nic escolar o melhor que eles já tiveram. Os professores e pais gostariam de convidá‐los a voltarem para o pic‐nic do ano que vem. Isso seria possível?”. “Tenho certeza que podemos organizar isso, senhor”, eu disse, ainda impressionado com tudo o que havia acontecido. “Vamos tentar arranjar isso da melhor forma possível”. Na noite seguinte, o auditório de Mona Vale estava completamente lotado com mais de 350 visitantes. Muitos deles eram de Avalon – e muitos eram crianças. Durante o kirtana de - 74 -


encerramento do festival, eram as crianças quem cantavam mais alto, enquanto dançavam para o contentamento de seus corações. “Cante sempre que você puder. [...] Enquanto estiver andando, você pode cantar Hare Krsna. Vemos na prática que, quando passamos pela rua, algumas crianças dizem ao nos ver: ‘Hare Krsna. Hare Krsna’. Até mesmo as crianças podem cantar. Isso é algo maravilhoso”. – Palestra de Srila Prabhupada ministrada em Montreal no dia 19 de agosto de 1968

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‐ Autobiografia ‐

Refúgio Além das Dualidades Esta é a história da minha vida. Ou melhor, a história de duas vidas: daquela da qual meu mestre espiritual me salvou, e daquela que ele me deu. Ambas se referem à mesma pessoa, mas uma vida é temporária, ignorante e cheia de sofrimento, enquanto que a outra é eterna e plena de conhecimento e bem‐aventurança. Esta é a história do milagre, ao menos para mim, de como eu fui liberado do oceano da vida material. Talvez dissessem que minha história começa dentro do ventre. Sei, no entanto, que ela remonta a muitas e muitas vidas, remonta a um passado distante de mais para ser conhecido ou compreendido por mim. Se máquinas fotográficas existissem há tanto, imagino que veríamos nas páginas desse álbum fotografias de reis e indigentes, animais e homens, famosos e infames – todos morrendo e nascendo novamente. Mas este capítulo da minha história começa, como todas as histórias de vida, quando me foi dado um novo nascimento, com um pai e uma mãe, irmãs e irmãos, primos e sobrinhos. A vida era difícil desde seu início... um tapa no traseiro. Mas, com a idade de quatro anos, veio meu primeiro saborear amargo da realidade: eu contraí meningite espinhal. Os médicos experimentavam novas drogas, mas nenhuma se revelava eficaz. Lembro‐me da visão da minha mãe chorando quando disseram a ela o que eu tinha. Tudo o que eu tinha na vida era uma febre avassaladora e meses solitários na ala hospitalar, onde os médicos desesperadamente tentavam salvar minha vida. Lembro‐me de uma vez ter ouvido as enfermeiras conversando baixo sobre minha inevitável morte. Ansioso por abrigo, eu me perguntei: “Onde está minha mãe, agora?”. Mas transcorridos alguns meses, os medicamentos se revelaram efetivos. Eu deixei o hospital um pouco mais sábio. Eu tinha apenas quatro anos, mas eu sabia melhor o que esperar. A vida não seria como contam os livros de história. Quando eu tinha seis anos, Old Yellar morreu. Ele era o perdigueiro do bairro, o melhor amigo de todos os garotos do quarteirão, nossa companhia constante até o dia em que atravessou a rua um pouco atrasado. O carro que o atropelou sequer parou. Alguns dos garotos correram atrás do carro atirando pedras nele. O restante de nós chorava ao lado do Old Yellar enquanto víamos sua vida desvanecer. Suplicamos ao Sr. Franklin, que passava por ali com seu caminhão de sorvete, que salvasse o Old Yellar. Ele, contudo, apenas permaneceu ali parado, porque era tarde de mais. Mais uma vez, um pensamento distante visitou minha mente: “A quem podemos recorrer por ajuda?”. Enquanto eu crescia, eu aprendi, em geral, a como sobrevir. A escola parecia irrelevante. Eu rapidamente tornei‐me desiludido, com minha mente ponderando acerca das dualidades do nascimento e da morte, da felicidade e da aflição. Nada iria durar – nada do que eu havia visto, o obrigo do ventre, o Old Yellar, e nem mesmo eu. Comecei a notar que outros também estavam perplexos e em sofrimento. Não apenas as pessoas, mas também os animais. - 76 -


Mas nem todos apreciavam o modo com que eu via as coisas. Quando eu tinha doze anos, na escola, a professora pediu que desenhássemos o que gostaríamos de ver na mesa da próxima ceia do dia de Ações de Graças. Eu desenhei legumes e verduras, e não peru ou carne. Meus colegas de sala acharam isso hilário; meus professores consideraram estranho. E no dia em que me recusei a comer carne, meu pai considerou isso uma grande falta de educação, e me mandou ir para o quarto sem jantar. Ao me deitar, considerei como a vida é difícil, mesmo que você tente fazer a coisa certa. Aos dezesseis, decidi agir. “Talvez não seja assim em todo lugar”, eu pensei. Talvez, em outro lugar, eu possa encontrar uma vida verdadeiramente satisfatória. Algumas vezes, eu sentia como se estivesse chegando onde eu queria, especialmente quando eu e meus amigos surfávamos nas ondas da praia de Stinson, próxima de São Francisco. Lá fora, éramos livres. Com grande esperança e muitas expectativas, fizemos nossas malas naquele verão e rumamos para o sul. Talvez no México encontrássemos a onda perfeita. Mas, mesmo antes de chegarmos, meus amigos me advertiram: “Mas isso não irá durar para sempre”. Em San Blas, ficávamos extremamente empolgados ao pegarmos ondas que nos permitiam surfar um quilômetro e meio. O verdadeiro desafio, entretanto, encontrava‐se na baía Rodger. Lá, as ondas quebravam em uma formação perfeita. O tubo era impecável. Embora ele perecesse perfeito, havia um problema – as ondas quebravam em um recife de corais. Eu não sei ao certo o que me impeliu a remar naquele dia em direção ao recife. Alguns dos garotos me desafiavam, outros imploravam que eu não fosse. Talvez eu estivesse desesperado. Sem dificuldades, eu peguei a onda. Ela era grande, linda e longa. Eu rapidamente fiquei de lado, agachei e subitamente me vi surfando para dentro do tubo. Eu estava empolgado e satisfeito – era isso! Mas em meio à minha empolgação, eu perdi minha concentração e escorreguei... exatamente em direção ao recife mortal. Lembro de mim gritando por ajuda enquanto o coral rasgava minha pele. Todavia, no íntimo da minha mente, eu novamente pensei: “Quem pode me ajudar, agora?”. Eu caí e rolei pelas pedras até ir parar na praia. Alguns habitantes dali se aproximaram e me pegaram. Eu tive sorte; exceto por um grande corte na minha perna esquerda, eu tinha, em geral, apenas pequenos cortes e hematomas. Mas minha prancha estava acabada, bem como minha busca pela onda perfeita. De volta aos Estados Unidos, eu considerei que, se eu não podia salvar a mim mesmo, talvez eu pudesse salvar outras pessoas. Eu então me alistei no corpo de fuzileiros navais, a maior unidade de guerra da América. Meu país guerreava contra o Vietnam para impedir a difusão do comunismo. Eu pensei que, se pudéssemos vencer o Vietnam, talvez pudéssemos trazer paz e felicidade para o mundo. É dito que podemos ver tanto o céu como o inferno mesmo nesta vida. Naquele ano, eu vi o inferno enquanto provava a terrível experiência de ser um assassino. Mas freqüentemente, quando fixávamos nossas baionetas para praticarmos duelos, minha mente objetava: “Você não acredita mesmo na guerra, acredita? Seja honesto consigo mesmo – você está aqui apenas por nome e fama; e você acabará perdendo sua vida por isso”. Um dia, eu me aproximei das minhas autoridades e me recusei a lutar. Os próximos vários dias na prisão me deram tempo para refletir. “Matar é fácil, difícil é saber a razão de viver”. Depois que eu havia recebido meus papéis de exoneração, eu não sabia se virava para a esquerda ou para a direita. Eu perambulava em desespero, apenas pensando em como toda vez que - 77 -


eu dava um passo na vida eu me encontrava com frustração e desesperança. Um dia, na privacidade do meu quarto, eu chamei por Deus. “Meu Senhor, eu estou em um mundo de angústia e aflição! Se Você realmente está aí, por favor, dê‐me Seu refúgio”. Na tarde seguinte, eu vagueei até um museu, objetivando esquecer de mim por meio da observação de antiguidades. Uma exposição da cultura e das tradições da Índia saltou aos meus olhos. Enquanto eu olhava as pinturas e artefatos, meus olhos foram levados a contemplar a mais bela das pinturas, a qual trazia a legenda: “Krsna e Suas vaqueirinhas”. A imagem cativou minha atenção, e eu me aproximei para ler o texto: “Esta cena retrata o paraíso, onde Deus desfruta da vida eterna”. “Sim!”, eu pensei. “É isto que estou buscando – vida eterna, um local além das dualidades do mundo. Mas seria assim? Quem é Krsna, e o que é, afinal, uma ‘vaqueirinha’?”. Eu olhei ao redor buscando por alguém que pudesse explicar a pintura com mais profundidade. Mas um guarda anunciou que o museu estava sendo fechado. Desapontado, caminhei até a entrada principal e me deparei com uma visão completamente maravilhosa. Sentados no gramado, próximos de mim encontravam‐se monges em vestes alaranjadas com várias coisas volumosas em suas mãos. Eles falavam atentamente com a multidão ao redor deles. Eu dei um passo à frente para ouvir melhor e fiquei estupefato ao ouvir o monge mais alto falar sobre Krsna e o mundo espiritual. Aprendi posteriormente que o que ele dizia se encontra na antiga escritura Védica Brahma‐samhita: “Krsna é a Suprema Personalidade de Deus. Ele vive eternamente no mundo espiritual, além das dualidades da vida material. Sua morada transcendental de Vrndavana é povoada por deusas da fortuna, que aparecem como vaqueirinhas e amam Krsna acima de tudo o mais. As árvores ali satisfazem todos os desejos, e as águas da imortalidade fluem pela terra composta de pedras filosofais. Ali, todo falar é canção, todo caminhar é dança, e a flauta é a companhia constante do Senhor. As vacas inundam a terra com leite em abundância, e tudo é luminoso como o sol. Uma vez que todo instante em Vrndavana é utilizado em amor a Krsna, não há passado ou futuro. “É isso!”, eu exclamei alto. Surpreso, o monge se voltou para mim. “É isso, o que?”, ele perguntou. “É isso que eu estou buscando!”, eu respondi. “Eu orei ontem. Então vi a pintura no museu... e agora eu encontrei vocês!”. “Ele provavelmente usou LSD”, comentou uma mulher à minha esquerda. Eu me recompus, um pouco constrangido pelo fato de toda a multidão estar olhando para mim. Mas eu estava determinado. Eu jamais ouvira tão grandioso conhecimento, menos ainda apresentado de maneira tão concisa. Eu me apresentei ao monge. “Meu nome é Visnujana Svami”, ele disse, “e viemos levá‐lo para casa”. E assim, naquele ano de 1971, tudo começou – esta nova vida, minha vida novamente como um devoto de Krsna. Se eu pudesse mostrar tudo o que aconteceu desde então, você veria muitas fotos nesta página – fotos com dançar e cantar dos santos nomes, com festivais e com palestras iluminadoras excessivamente numerosas para serem mencionadas ou explicadas. Tenhamos como suficiente dizer que, naquele dia, dei início ao meu retorno ao lar, além das dualidades do nascimento e da morte, de volta ao refúgio do reino eterno. - 78 -


‐ Cante Hare Krsna e Seja Feliz ‐


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