Artigo GT imprensa alternativa Encontro de História da Mídia 1º 2013

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De Fato: jornal construído entre um sonho e a amarga realidade 1 LEMOS, Cândida Emília Borges (Doutora) SANTIAGO, Magda de Lima (Mestre)2 Centro Universitário UNA/MG Resumo: O jornal De Fato circulou em Belo Horizonte entre janeiro de 1976 a outubro de 1978, com 27 edições. O alternativo mineiro surge em consonância ao florescer da sociedade civil, em especial das camadas médias e do movimento sindical operário, que reivindicava a democracia, os direitos civis e a anistia aos presos, exilados e banidos pelo regime ditatorial, entre outros temas, no governo Geisel (19741979). De Fato, em seu nascedouro, ia além das abordagens políticas strictu sensu, pois abordava temáticas sociais e culturais amplas, como os direitos das mulheres e dos homossexuais, como os debates sobre o universo das artes, tais como teatro e literatura. A publicação não foi submetida à censura prévia, como outras publicações no período, porém, não foi imune às intimidações e às ameaças do regime e seus braços subterrâneos de repressão. O acervo completo da publicação foi digitalizado e, desde 2012, encontra-se disponível na web. Além da apresentação do contexto da época e da história do jornal, este artigo traz a análise do discurso dos editoriais de duas edições do De Fato. Palavras-chave: história da imprensa; imprensa alternativa; regime militar; análise do discurso.

INTRODUÇÃO

A digitalização do acervo completo do jornal De Fato em 2012 insere-se na construção da memória da história brasileira contemporânea e, em particular, da imprensa, especialmente, do período da ditadura militar (1964-1985). Foi parte das atividades que se desenvolvem no Centro de Investigação da Mídia, criado em 2012, lotado no Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA: 1Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Alternativa, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 Cândida Emília Borges Lemos é doutora em História (Universidade do Porto, Portugal), Mestre em Ciência Política (UFMG) e Bacharel em Comunicação Social, habilitação Jornalismo (PUC Minas), professora de graduação e pós-graduação do Centro Universitário UNA, Belo Horizonte e coordenadora do Centro de Investigação da Mídia na mesma instituição. candida.lemos@prof.una.br. Maria Magda de Lima Santiago é mestre em Linguística, Análise do Discurso (FALE-UFMG), especialista em Comunicação: Mídias, Linguagens, Tecnologias (UNI-BH) e bacharel em Comunicação Social, habilitação Jornalismo (PUC Minas). É professora de graduação e pós-graduação do Centro Universitário UNA e pesquisadora do Centro de Investigação da Mídia na mesma instituição. maria.lima@prof.una.br.


É um projeto da Coordenação de Extensão da UNA, nucleado no Instituto de Comunicação e Artes (ICA). Propõe-se à formação de um fórum permanente de pesquisa, investigação, análise da mídia brasileira, em particular, da mineira, com o resgate histórico das conjunturas específicas em que se operaram as intervenções midiáticas. Ao mesmo tempo, se propõe à recuperação e digitalização de alguns acervos que ainda não foram recuperados por instituições públicas e privadas. (CENTRO DE INVESTIGAÇÃO DA MIDIA, 2012).

O primeiro periódico digitalizado e pesquisado pelo Centro foi o jornal De Fato. A equipe era formada principalmente por jornalistas e a publicação insere-se no fenômeno midiático conhecido como “imprensa alternativa”, que se opunha ao Regime Militar em vigor no país. O jornal, em formato tabloide, teve 27 edições e circulou em Belo Horizonte de janeiro de 1976 a outubro de 1978. O acervo que foi digitalizado pertence ao jornalista Aloísio Morais, fundador e editor do periódico (DE FATO, versão on line, 2012). Tais estudos do Centro de Investigação visam à compreensão do papel dos meios na sociedade, à reflexão sobre a mídia na construção das sociedades democráticas, ao debate sobre questões ainda não abordadas sobre os meios de comunicação em conjunturas e fatos específicos, ao fortalecimento da responsabilidade social dos profissionais dos meios. (CENTRO DE INVESTIGAÇÃO DA MIDIA, 2012).

LUZES NA SOCIEDADE CIVIL

Entre as características da conjuntura política e social da segunda metade da década de 1970, estava a “vigorosa sociedade civil brasileira com a participação crescente das classes médias, que se tornaram um fator político de oposição ao regime” (LEMOS, 2009, p. 96). No Governo do General Ernesto Geisel (1974-1979), as classes médias distanciavam em larga medida do Regime Autoritário (SKIDMORE, 2004; GASPARI, 2004): Viam (classes médias) com desconfiança o projeto de distensão do Governo Geisel, que seguia cheio de marchas e contramarchas [...].Cresciam os movimentos de protestos. Parcelas das camadas médias abraçavam a luta pela anistia aos presos, perseguidos, cassados e exilados pelo regime. Ampliava-se e dinamizava-se a ação desses movimentos. (LEMOS, 2009, p. 97- 98).

Nesse contexto de descompressão, as fissuras no interior do regime eram visíveis. O assassinato do diretor da TV Cultura de São Paulo, jornalista Wladimir


Herzog, em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Doi-Codi de São Paulo deixava claro que o II Exército, sediado naquele estado, não queria o projeto de distensão de Geisel, ou, pelo menos, tinha sérias reservas ao seu encaminhamento pelo núcleo duro do regime:

O assassinato de Herzog colocava que ainda havia muitos empecilhos para a descompressão do regime. Em janeiro do ano seguinte, o operário Manoel Filho também fora assassinado pelo braço da repressão direta do Estado. O governo Geisel confrontou-se desde o seu início com opositores internos alinhados com a extrema-direita militar, que geraram inúmeras crises dentro das Forças Armadas, revoltados com a proposta de abertura política acenada pelo presidente. (LEMOS, 2009, p.107).

De acordo com Cruz e Martins, esses opositores atuavam com o respaldo de comandos – sobretudo, em São Paulo, área do II Exército – a repressão, ora voltada contra o PCB, seguia em sua mórbida batida, desconhecendo limites ou normas[...] Geisel demite o comandante do II Exército, substituindo-o por um oficial de sua inteira confiança. (1983, p. 53).

A sociedade buscava, em meio do arbítrio, sobreviver e, mais ainda, avançar. “A sociedade bloqueada criou seus canais de expressão” (CAPARELLI, 1982, p. 53). Neste contexto, houve o Manifesto dos Intelectuais, com 1.046 assinaturas, em início de 1977, enviado ao então Ministro da Justiça Armando Falcão, pedindo o fim da censura. No mesmo período, a Assembleia da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reunida em Itaici, São Paulo, divulgava texto no qual criticava o regime. A Comissão Internacional de Juristas Católicos denunciava a existência de tortura no Brasil. Durante o fechamento do Congresso Nacional, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) declarava-se em sessão permanente. Por sua vez, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) divulgava manifesto com 2.557 assinaturas de jornalistas que exigiam a liberdade de informação, de crítica e de opinião. (BRASIL, 2007, LEMOS, 2009). As divergências no seio das Forças Armadas não cessaram: Os grupos de extrema direita, ligados direta ou indiretamente aos órgãos de repressão do governo, reagiram ao crescimento das oposições: 24 atentados são executados em Belo Horizonte em 1978. Em outras capitais do país a situação não é diferente. A maioria era formada de atentados a bombas. Os comitês pela Anistia clamam pelo fim do aparato repressivo. (LEMOS, 1988, p.190).


Em 1976, o ataque à ABI mostrava que os agentes paramilitares estavam atuantes, quando uma bomba “destruiu todo o 7º andar do edifício-sede da instituição, onde funcionavam o Conselho e os serviços administrativos e a Presidência. As autoridades nunca conseguiram identificar os autores do atentado a bomba” (ABI, s/d.). Importante observação sobre a imprensa no período em tela foi feita por Abreu, para quem

A profissionalização da categoria também ocorreu durante o regime militar, com a ampliação da grande indústria cultural. A exigência do diploma universitário de jornalismo, a dedicação em tempo integral à atividade jornalística e a regulamentação da profissão são indicadores da profissionalização. (ABREU, 2005, p. 56).

Para Abreu, a imprensa alternativa esteve entre os canais mais importantes por onde se fazia a crítica “ao modelo econômico e às violações dos direitos humanos. Essa imprensa foi também responsável pela formação de uma nova geração de profissionais que ganhou espaço e poder nas redações após a abertura política”. (2005, p. 56). A imprensa, seja ela alternativa ou tradicional, tentava sobreviver à censura e à falta de liberdade de expressão no país. Era, porém, difícil resistir. Por exemplo, o jornal Opinião, que circulou entre 1972 a 1977, em seu editorial, veiculado em sua última edição, lamentava que em seus 230 números houvesse sido vetado o correspondente a 4.752 páginas. Portanto, “precisávamos fazer semanalmente, para cada jornal publicado, quase dois (...) nestas condições, não há como um jornal se possa manter”. (EDITORIAL, n. 230, 1977, citado por CAPARELLI, 1982, p. 53). Documento do Centro de Informações do Exército (Ciex), divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em abril de 1979, relativo à imprensa alternativa, organizava em seis características o que chamava de Imprensa Nanica (IN). Entre estas estavam a tiragem reduzida de cada impressão; repercussão reduzida, mas com exceção de Pasquim, Movimento e Em Tempo; falta de esquema empresarial com trabalho semiartesanal e de suporte financeiro adequado, caracterizado pela inexistência de anúncios comerciais; elevado número de pessoas integrando os órgãos de direção, administração e redação; e a “pregação de ideias marxistas nos diferentes aspectos e disfarces”. (MINISTÉRIO DO EXÉRCITO, [197-] citado por UM PLANO..., 1979, p. 14). São estabelecidas táticas de curto e médio prazo para acabar com a imprensa alternativa. Entre as de curto prazo estavam medidas administrativas e econômicas,


como a exigência de comprovação de que o órgão de imprensa não teria débitos com a Fazenda Nacional para a renovação do registro público e a proibição de colaboração (econômica ou redatorial) de qualquer órgão ou pessoa que estivesse respondendo à ação judicial referente a crime previsto na Lei de Segurança Nacional, dizia o Ciex (op. cit.). Entre as sugestões de médio prazo, o documento do Exército direcionava para a confecção de uma nova lei de imprensa. Recomendava que houvesse celeridade nos processos judiciários que envolvessem jornalistas e que fosse desenvolvido um “rito sumário ao processo na Justiça que atenda aos delitos presentes na Lei de Imprensa e, atualmente, na LSN”. (MINISTÉRIO DO EXÉRCITO, [197-] citado por UM PLANO..., 1979, p. 14). Para Kucinski, a morte de Herzog provocou crises internas em algumas redações dos jornais tradicionais, o que teria levado à ruptura nas relações de trabalho e ao surgimento de uma nova modalidade de jornais alternativos, de caráter regional, criados, em geral, por jornalistas de prestígio em capitais fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo, com apoio de seus sindicatos e portadores de propostas elaboradas de gestão cooperativa. (2001, p. 57).

Aloísio Morais, editor e fundador de De Fato, acredita que o assassinato de Herzog tenha sido o mote para se criar a publicação, pois havia uma forte motivação para se mudar aquela realidade brasileira de falta de liberdade. (MORAIS, 2013, informação verbal) 3. Kucinski afirma, em seu livro, que no momento de fundação de De Fato, além de Aloísio Morais, “colaboravam alguns dos jornalistas recorrentes da imprensa alternativa, como Flamínio Fantini, João Batista dos Mares Guia, Luís Dulci”. (2001, p. 58). Porém, ao se observar os expedientes de todas as edições, constata-se que Dulci jamais constou da equipe ou mesmo como colaborador eventual da publicação. Sobre Mares Guia e Fantini, eles só vieram a figurar entre os colaboradores na edição de outubro de 1976. Morais confirma esta informação. (op. cit.) Nas primeiras edições do De Fato havia uma Comissão editorial formada, além de Morais, por Bernardo Carvalho, Durval Guimarães, Jurani Garcia e Miriam Christus e uma equipe de 14 colaboradores. A Comissão Editorial, porém, desaparecera já na 3

MORAIS, Aloísio. Belo Horizonte, 29 mar. 2013. Entrevista concedida a Cândida E. B. Lemos.


quarta edição, dando lugar à “equipe do De Fato”, uma instância mais horizontal do ponto de vista da organização editorial da publicação. Em baixo da equipe, figurava a lista de colaboradores eventuais de cada edição. Morais avalia que passaram por De Fato mais de 100 pessoas: Havia um time fixo, alguns foram do início ao fim, mas havia gente que apenas passava por lá. “Era tudo muito aberto. Quem quisesse colaborar poderia vir”, recorda Morais (MORAIS, informação verbal)4. Entre os que ficaram até o fechamento da publicação, estão Kennedy Albernaz, Miriam Christus, Marco Antônio Campos, Fernando Assunção, Beth Almeida e Nilson Azevedo. A história de quase três anos do De Fato abarca dois períodos. O primeiro é definido por Morais (op. cit.) como o inicial, “mais sonhador”, com abordagens de temas mais sociais em sentido amplo. Já a segunda fase é percebida por Morais como “mais politizada, pois caminhou mais para a política em si, como a luta pela anistia que entrou com força” (op. cit.), recorda o editor. Na primeira fase do jornal, observa-se o relevo de temáticas relacionadas ao feminismo, homossexualidade, cultura popular e mesmo contos ficcionais, embora estes últimos tivessem uma forte carga política. São exemplos desta fase as capas “O Carnaval”, onde o foco são as escolas de samba e blocos populares de Belo Horizonte que conviviam com poucos espaços públicos para seus ensaios e as escassas verbas públicas (1976, n 2, p. 1); “Aborto, o mercado negro” (1976, n. 5, p. 1); “Ângela Diniz: em Minas tudo é permitido, mesmos o escândalo”, referente a uma socialite da cidade assassinada por seu namorado (1977, n. 10, p. 1); e “Homossexuais em Minas – como um judeu na Alemanha nazista” (1977, n. 11, p. 1). Ainda nesta primeira fase, registra-se o conto do jornalista Luis Fernando Emediato intitulado Das várias fases de se erguerem palácios presidenciais:

Em um lugar fictício, ergue-se um palácio do rei e na inauguração da obra, (...) homens e mulheres unindo corpos e palavras para festejar uma era de ouro em que a província se faz respeitar em tudo a Terra e o presidente considera-se o homem mais poderoso do mundo, porque para isso por Deus foi eleitor, porque é bom, humano e justo, porque assim tinha de ser, assim tinha sido e assim seria para sempre. (DE FATO, 1976, n 1, p. 14).

Já na segunda fase, havia artigos mais politizados, com conteúdos de fundo 4

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sobre as táticas e estratégias da esquerda para a derrubada da ditadura militar. Houve, inclusive, um jornal especial, em maio de 1978, exclusivo sobre a anistia. Edição anterior já havia dedicado 13 páginas ao tema, com a seguinte manchete de capa: “A agonia dos presos políticos”. (DE FATO, 1978, n 21, p. 1). Nesse período, com a intensificação e a diversificação das ações contrárias ao regime, muitas pessoas passavam pelo jornal e depois partiam para outras atuações: Muitas pessoas saíam para outras experimentações, pois foram surgindo movimentos sociais que exigiam novas iniciativas. Por exemplo, alguns saíram para criar o Jornal dos Bairros, na cidade industrial; outros foram criar o alternativo Em Tempo, e De fato acabou sendo um laboratório para o desenvolvimento destas experiências novas. (MORAIS, 2013, informação verbal) 5.

Na difícil situação financeira de toda a imprensa alternativa da década de 1970, o De Fato não fugia a esta regra. O valor arrecadado com as vendas de uma edição era a fonte de recurso para pagar a impressão da edição seguinte. A própria equipe do jornal realizava a venda avulsa dos exemplares em bares, portas de cinema e teatro. Além da venda em algumas bancas de jornal e revista e assinaturas. Cicarelli coloca que a receita do jornal era composta por 50% das vendas eram avulsas (bancas e avulsas propriamente ditas), 20% de assinaturas, 5% publicidade e outras colaborações, 25% (1982, p. 64). Morais, porém, discorda que tenha havido estas doações tão expressivas: “Não havia doações. Estas só houve para a edição e impressão do número um, quando colamos dinheiro nosso. As assinaturas representavam apenas cerca de 10% da receita”. (op. cit.). ASFIXIADOS PELA FALTA DE ESTRUTURA

A seguir, é feita a análise do discurso dos editoriais da primeira e da sétima edição do jornal De Fato, publicados em janeiro e em outubro de 1976, respectivamente. Como metodologia, lança-se mão de conceitos oriundos da Análise do Discurso Greimasiana, ou Análise Semiótica Francesa, para os quais consultou-se Fiorin (2008) sobre as noções de plano de leitura e de interdiscurso, situadas no nível da semântica discursiva. Por plano de leitura entende-se o sentido que o discurso propõe, uma recorrência de traços semânticos que indicam um modo de ler o texto. Por 5

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interdiscurso pode-se descrever o acesso, pelo discurso em análise, a outros discursos presentes no contexto e no senso comum, numa espécie de diálogo, que confirma ou contradiz ideologicamente esse outro discurso. Na sintaxe do nível discursivo, ateve-se à categoria de pessoa, em que a utilização da primeira e da segunda pessoa cria efeito de aproximação no discurso, de intimidade com o leitor; enquanto o uso da terceira pessoa traz a impressão de distanciamento, conforme explicado por Fiorin. (2008, p. 26-27). Figura 1: editorial da primeira edição do jornal

Fonte: DE FATO, 1976, n. 1, p. 2.

O primeiro parágrafo do editorial tem como temas principais o ‘autoritarismo’ e a ‘arbitrariedade’, dentro de um plano de leitura das ‘relações trabalhistas’ (nas expressões dono de jornal, seus empregados), além do plano de leitura da ‘história’, ou da ‘memória do jornalismo’ (há mais de cem anos). O discurso também elege como tema a ‘condução de sentido’, o que pode ser identificado em tentativas de [...] publicarem também outros aspectos dos acontecimentos e em narrava ao sabor das conveniências. As expressões consta que e teria sido publicada, que narram o acontecimento no tempo passado, parecem compor uma estratégia em que a categoria de ‘tempo’ foi usada para despistar a censura, assim como em interesses particulares do proprietário, que indicam implicitamente uma crítica a proprietários de jornais da época, como uma metáfora. Por infeliz frase e por lamentável proprietário de jornal, também se infere o


posicionamento ideológico do jornal, inscrito nos dois adjetivos. O segundo parágrafo continua no plano de leitura do trabalho (empresas, patrões) e também acessa o discurso da lei (garantias e privilégios legais). Ainda no passado (desde então, a frase tornou-se, ao longo desse tempo), a narrativa indica as consequências do acontecimento descrito no primeiro parágrafo, num recurso metonímico, uma vez que a publicação descrita gerou consequências ao nível coletivo. A sentença o repórter (...) quase nunca pôde exercitá-la senão para divulgar as ideias dos seus patrões, alinhavada com a expressão a despeito das garantias, confirma o tema da arbitrariedade, que nega a liberdade do exercício da profissão. Por tornou-se a principal bandeira das empresas de comunicação subentende-se a referência ao contexto da Ditadura. Em seguida, o discurso apresenta os objetivos que resultaram na criação do jornal De Fato. Atribui-se à frase infeliz os motivos para a edição de um jornal de jornalistas. A narrativa passa a ser mais opinativa, o que pode ser visto na sentença por não concordar (...) com seu conteúdo anti-democrático. O discurso informa que o jornal está nas bancas, e que faz parte de um processo iniciado há quatro anos, o que valoriza a publicação ao agregar o sentido de credibilidade no tempo citado. A dúvida, porém, sobre a periodicidade do veículo, implícita em – deve voltar mensalmente se tudo correr bem – deixa entrever o ‘autoritarismo’ e a ‘arbitrariedade’, confirmando os temas descritos. Por companheiros e páginas mimeografadas pode-se inferir a luta militante e as dificuldades dessa oposição ao regime, respectivamente, indicando a precariedade do jornal, nessas primeiras experiências, e o esforço dos jornalistas. O discurso faz referência a um passado recente, a edição do jornal Vapor, como exemplo de experiências que desapareceram asfixiadas por falta de estrutura, o que pode ser lido, de acordo com o contexto da época, como um desaparecimento causado pela repressão, pela censura, disfarçadas na palavra estrutura. Essa impressão é mais forte e quase explícita na figura de discurso asfixiadas. Quando se refere ao jornal Vapor, que abriu para todos nós os horizontes de um trabalho coletivo, o discurso utiliza um recurso de aproximação com o leitor ao utilizar a primeira pessoa do plural, em todos nós. No plano de leitura da ‘coletividade’, as expressões desmistificar uma velha mentira e era um sonho impossível conduzem ao sentido de ‘construção de resistência’ ao regime, em um plano de leitura que considera e acredita que a mudança política poderia acontecer. A narrativa transfere-se para o tempo futuro e a figura de discurso parede, na


segunda linha do quarto parágrafo, reforça o sentido de resistência, assim como muro, logo em seguida. Identificam-se os temas da ‘liberdade de expressão’ e também da ‘justiça’, opostos aos temas extraídos nos parágrafos anteriores, a ‘arbitrariedade’ e o ‘autoritarismo’, conforme exposto. Extrai-se uma condição democrática em que o sentido opõe-se ao que foi descrito, sendo um exemplo evidente a expressão conteúdo anti-democrático, no terceiro parágrafo. O tema da democracia está explícito em estampar a opinião de todos os leitores que acreditam que a liberdade de expressão, de reunião e todos os outros direitos dos homens são pressupostos de uma sociedade livre e justa. A palavra parede também compõe o título dado ao editorial, a parede de todos nós, o que remete à resistência coletiva e tematiza a ‘coesão’. O editorial não trata de acontecimentos no tempo presente da narrativa nos primeiros parágrafos. Evidenciam-se, primeiramente, os eventos passados, com a utilização dos verbos nos pretéritos perfeito e no imperfeito, para depois acessar o futuro do presente, parecendo evitar o ‘agora’, num efeito de sentido que distancia o discurso do leitor, numa espécie de comprometimento não comprovável. O passado tem conotação negativa; enquanto ao futuro o discurso reserva um tom positivo respectivamente sentidos disfóricos e eufóricos, que se evidenciam ao longo do texto. O tempo presente apenas é usado no último parágrafo, que faz referência aos possíveis leitores que pensam que o jornal é financiado por grupo empresarial, partidário ou ideológico. Esta referência traz inscrita, em si, uma denúncia, de modo subentendido e por oposição, que permite ao leitor supor que essa ação tem lugar em outros jornais. O discurso dialoga, assim, em toda a sua extensão, com outro discurso, presente no senso comum, que trata do controle da informação, da relação entre poder econômico e imprensa, num plano de leitura maior, o da política. Nesse diálogo com as relações de poder, condena a atuação da censura sobre a imprensa e prega a liberdade de expressão. O discurso informa aos leitores que o jornal dispõe de recursos financeiros sem nenhum problema de falência ou de auxilio externo que nos obrigue a comportamento dependente, o que, implicitamente, remete à situação oposta, em que jornalistas têm o conteúdo de suas reportagens e artigos controlado antes da publicação, portanto, cerceados moralmente e profissionalmente em sua produção. A utilização da terceira pessoa do plural, àqueles que pensam, cria efeito de distanciamento do leitor com esse coletivo, também distanciado da linha ideológica do jornal, em uma estratégia a partir da categoria de pessoa. O discurso assume um tom coloquial e transparecesse sinceridade ao expor ao leitor os valores de custo da


publicação. Ao término, acessa um signo presente no senso comum, ao criar um diálogo com a indústria produtora de cigarros, onde compara o preço do jornal ao preço de um maço de cigarros da marca Hollywood. Isto cria o efeito de sentido de aproximação com o leitor, noção reforçada pela utilização da segunda pessoa em lembramos a ‘vocês’, que se dirige diretamente ao leitor, apesar de não individualizá-lo. Figura 2: editorial do nº 2 - Pois é Vlado, nós continuamos na velha luta

Fonte: DE FATO, 1976, n. 7.

A análise do editorial da sétima edição do jornal apresenta diversos subtemas em oposição, atribuídos ora ao comportamento das autoridades, ora aos meios noticiosos, destacando De Fato. Eles fazem parte de dois temas principais, dentro dos planos de leitura da ‘política’ e do ‘jornalismo’: a ‘arbitrariedade’, que causa ‘indignação’, e a ‘liberdade de expressão’. A clara divisão entre a postura da imprensa e a das autoridades remete ao dualismo entre o ‘bem’ e o ‘mal’ ao longo de todo o discurso, o que está


implícito em deixa ao homem a glória de optar pelo bem, no penúltimo parágrafo. No título, a referência direta a Vladimir Herzog, Pois é Vlado, nós continuamos na velha luta, que não volta a se repetir no corpo do texto, cria o sentido de uma carta, ou de um desabafo, dirigido ao jornalista assassinado pouco antes do surgimento do De Fato. O editorial tem início com a narração sobre a rejeição à Carta de Princípios dos Jornalistas, apresentada pelo sindicato mineiro e apoiada por sindicatos de outros sete estados, no XVI Congresso da categoria. Apresenta os nomes dos dirigentes da Confederação e da Federação Nacional, além do nome do presidente do sindicato e de um jornalista gaúcho, apontados, implicitamente, como sendo os responsáveis pela recusa da carta proposta. Essa referência está inscrita no enunciado registrando-se um fato interessante em relação à delegação gaúcha, em que a expressão fato interessante parece despistar uma acusação direta. A ‘indignação’ contra as autoridades de classe é identificada nas expressões: apesar de representar os anseios da classe, a tese havia sido aprovada, a apoiou nesta primeira votação [...] e a rejeitou em plenário, é lamentável. Entre os subtemas de cunho negativo, inseridos no tema maior da ‘arbitrariedade’, podemos citar a censura, a repressão policial, a repressão contra a mobilização em busca da mudança social, a proibição da divulgação de informações. Juntam-se a essas questões outras como a pobreza, a inflação, a falta de escolas, o atendimento precário à saúde e a dívida externa brasileira, problemas que, se subentende, as autoridades estão infligindo ao povo. O tema da ‘indignação’, desta vez em relação às autoridades nacionais, está presente em: não podemos mais admitir, ainda perdura um injusto e ilegal sistema de censura, alguns órgãos lutam bravamente contra a prepotência e o arbítrio, lúcida sentença da Justiça Federal. No tema da ‘liberdade de expressão’, o editorial confirma os discursos, de cunho positivo, do livre debate, da transparência das informações, da democracia, do diálogo, da liberdade de manifestação do pensamento, propondo uma restauração democrática para o país, mostrando, explicitamente, que essas noções permeiam a proposta ideológica do jornal. Em alguns trechos a referência se estende a toda a imprensa, de modo metonímico, chegando a nomear alguns jornais vítimas da censura. Essa posição a favor da imparcialidade refere-se à objetividade jornalística em oposição à arbitrariedade das autoridades, que impedem a circulação da informação. Ao reforçar o tema da ‘liberdade de expressão’, o discurso procura esclarecer sobre o papel da imprensa, referindo-se ao próprio veículo e lembrando Ruy Barbosa,


numa estratégia de credibilidade: o jornal não cria perigo, que mal há?, que pode significar de perigo à segurança nacional?. Também dialoga com a política de países europeus e refere-se à França e à Inglaterra, dois exemplos de convivência pluralista que honram a liberdade e a autoridade, e afirma: nosso compromisso é com a liberdade. São identificados três personagens coletivos: as autoridades (ou o sistema de censura), os veículos de comunicação e o povo brasileiro. Apesar de referir-se ao personagem ‘o povo’ na terceira pessoa, o que cria o efeito de distanciamento, assim como nas referências às autoridades, o discurso tematiza a defesa, a preservação dos direitos da coletividade ou da consciência pública, nas expressões: em detrimento do povo brasileiro, direito do povo, instrumento para discernir, aos fins imediatos e futuros da coletividade, dentro do respeito devido ao direito de cada um, dignidade da pessoa humana. No último parágrafo, usa-se a primeira pessoa do plural, o nós, o que cria o sentido de inclusão, “nós, como povo”. Observa-se uma ameaça implícita em: há recursos legais para denunciar o abuso de autoridade mal treinada para a prática da democracia, ajuizou ação contra a censura e obteve ganho de causa. Essas expressões indicam uma posição mais fortalecida em relação ao que mostrou a primeira análise, na qual os principais sentidos implícitos são menos perceptíveis, mais obtusos, o que demonstra uma estratégia ainda mais cuidadosa para driblar a possibilidade de censura do que no segundo editorial, em que predominam as críticas às autoridades de classe e ao governo brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nota assinada pela equipe, foi relatado o atentado que ocorrera ao número 2.399, Fundos, na Avenida do Contorno, Bairro Floresta, mais precisamente, a redação do De Fato e a residência de Morais e de Fernando Assunção, em 2 de setembro de 1978: [...] foi deixada um bomba que deflagrou [...] Em que pese a série de dificuldades que temos enfrentado, intimidações como esta não nos afastarão da verdade dos fatos e continuaremos firmes no propósito de permanecermos na luta ao lado da oprimida maioria do povo brasileiro. (DE FATO, 1978, n. 26, p. 2).

Morais recorda aquela noite:


Fernando e eu não dormimos em casa. De manhã, estava tudo aberto e revirado, a caderneta de endereços tinha sido levada, fio do telefone arrancado. Uma garrafa com um líquido estranho sobre a mesa dava para perceber que era uma bomba caseira. A gente recebia cada vez mais ameaças por telefone, de madrugada, principalmente. (informação verbal)6.

O alternativo mineiro circulava pela última vez. O atentado à sede do jornal ainda aguarda por ser esclarecido, como tantos outros cometidos nesses obscuros tempos. REFERÊNCIAS ABREU, Alzira Alves de. A mídia na transição democrática brasileira. Sociologia, Problemas e Práticas [online]. 2005, n.48, pp. 53-65. ISSN 0873-6529. Disponível em: <www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/spp/n48/n48a05.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2012. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA. Fatos que marcaram a história da ABI. Site Oficial. Disponível em: <http://www.abi.org.br/paginaindividual.asp?id=1577>. Acesso em: 7 abr. 2013. BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos / Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_direito_memoria_verdade/livro_direito_m emoria_verdade_sem_a_marca.pdf>. Acesso em: 7 abr. 2013. CAPARELLI, Sérgio. Comunicação sem Massa. 2ª ed. , São Paulo, Cortez Editora, 1982. CENTRO DE INVESTIGAÇÃO DA MÍDIA. Extensão Universitária Una. Centro Universitário UNA, 2012. Disponível em: <www.extensão.una.br>. Acesso em 20 mar. 2013. CRUZ, Sebastião e MARTINS, Carlos Estevam. De Castello a Figueiredo: Uma Incursão na pré-História. In: ALMEIDA, Maria Hermínia. Sociedade e Política no Brasil pós-64. Editora Brasiliense: São Paulo, 1983, 13-61. DE FATO. Belo Horizonte: Morais, Aloísio, jan. 1976 – out. 1978. Disponível em: <extensão.una.br>. Acesso em: 10 abr. 2013. EDITORIAL. Opinião, Rio de Janeiro, 1º, abril, 1977, n. 230, p. 2. FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Editora 6

MORAIS, Aloísio. Belo Horizonte, 29 mar. 2013. Entrevista concedida a Cândida E. B. Lemos.


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