o artista, o meio, a arte

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B O

artista O

meio A

arte

Pedro Proença

edições Asa D’Icarus


© Pedro Proença & Asa D’Icarus


O

O

artist a meio arte

A

Pedro Proença

iiii iii ii i edições Asa D’Icarus

MMXVII



O artista

e e e On n’a jamais trouvÊ un artiste pendu devant une rose.



B O ARTISTA

e

O artista como autor e não só

o artista é um autor

o artista é um não-autor (ora! ora!)

o artista é um autor que se faz passar por um não-autor (trés bien!)

o artista é um não-autor que se faz passar por autor (ó diabo!) o artista é um autor em busca de uma identidade diferente (whatever)

o artista é alguém com uma autobiografia muda (u-lá-lá) o artista é alguém com uma autobiografia tagarela (bingo!) o artista assume-se como alguém que é dotado de narrativas

o artista tem uma identidade que dissimula (as suas) narrativas

o artista é alguém em luta contra o anonimato (dá-lhe forte!)

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o artista é alguém que exalta o anonimato ao fingir lutar com ele o artista é um lastro intersubjectivo, múltiplo, plural, de fronteiras moles

o artista é o que anda em busca de um papel (confuso?) de artista o artista é o que busca um papel eficaz para agarrar a fama através da arte

o artista é uma pluralidade de subjectividades em busca de (mais) sujeitos

o artista é uma serialização de sujeitos e subjectividades em busca de obra

o artista é uma confluência de sujeitos que se fixam num ou mais estilos o artista é um monomaníaco, narcisista e ego-tripado

o artista constitui-se como autor através de refutações o artista constitui-se como autor através de empatias, influências e rejeições o artista cai na autoria espontaneamente

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B O ARTISTA

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o artista mistura as suas empatias e influências com a sua espontaneidade as empatias, influências e rejeições do artista são espontâneas

o artista fabrica a sua identidade através de tautologias

o artista destrói a sua identidade através de tautologias e ironias o artistas progride na sua autoria através da autocomiseração

o artista desvia-se da sua autoria sem dar por isso

o artista desiste da sua autoria e passa a não ser artista o artista torna-se mais artista por ter desistido de ser artista (é um Bartleby) o artista tem heterónimos e pseudónimos

o artista é um eu em devir e um hipotético outro

o artista não é um eu nem um outro mas qualquer coisa de intermédio o artista é um eu e um outro que é qualquer coisa de intermédio e muito mais

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O ARTISTA

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o artista tem heterónimos de heterónimos e pseudónimos de pseudónimos o artista tem heterónimos anónimos

o artista tem heterónimos e pseudónimos a várias mãos com outros artistas o artista participa em anónimos a várias mãos

o artista vê-se a si como impermanente (e à arte também)

o artista parodia a autoria, a arte, a legitimação e a história

o artista parodia a autoria e a arte para se legitimar mais depressa o artista auto-parodia-se degradando-se o artista auto-parodia-se porque é giro

o artista entusiasma-se com o auto-parodiar-se

o artista bate no fundo auto-parodiando-se (e até se pode matar) o artista tenta parecer-se com um artista que faz coisas parecidas com arte

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B O ARTISTA

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o artista não consegue fazer coisas que não se pareçam com arte

o artista exercita-se em diversos modos e métodos de ser artista

o artista categoriza os modos de ser artista enquanto arte (faz listas) o artista vê-se como uma blague social que lhe agrada ou desagrada o artista vê-se como resistência a todos os clichês e estruturas

o artista descobre através de clichês cultos que só pode falhar melhor ou pior o artista constitui a sua autoria aprendendo a falhar (como quem cai)

o artista descobre que a arte ou é êxtase ou é falhanço, e isso é a autoria o artista sabe que a arte é um cocktail de êxtases e falhanços, e isso é ser autor

o artista descobre que o sucesso é traumático, e isso é ser autor

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O ARTISTA

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o artista descobre que a autoria é catastrófica e que o melhor é habituar-se

o artista descobre que a autoria pode dar muita massa e isso é fixe

o artista descobre que a autoria é prostituição e o melhor é fugir o artista é um tipo com ética e que não é desses filhosda-puta o artista tem uma ética implacável que evita imensas situações o artista exibe-se como ético mas é um aldrabão o artista aspira a ser santo ou até é santo

o artista aspira a ser revolucionário mas não mexe uma palha

o artista está-se nas tintas e só quer é sexo, carcanhol e fama

o artista não quer nada (ou só quer que não o chateiem) o artista cultiva um género de acordo com a idade

o artista é um tipo senil que faz o que lhe dá na gana

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B O ARTISTA

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o artista é um jovem pretencioso que imita o que está a dar o artista é lúbrico e faz disso uma marca autoral

o artista é casto, espiritual, metafísico, melancólico e sério (e isso vende) o artista é um intelectual e um habilidoso teórico

o artista é um intuitivo que não quer saber de teorias

o artista é um gestor de citações, referências e métodos de produção o artista tem uma autoria porque descobriu um tipo de investigação o artista é alguém que leva à cena as suas emoções intensas

o artista é alguém que leva à cena a dissimulação de emoções suas ou alheias

o artista é um dissimulador de sensações e de teorias de sensações o artista é o que esfria toda a emotividade (de várias maneiras)

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O ARTISTA

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o artista é um ready-made de outro artista

o artista é um falso ready-made de si mesmo

o artista é artista por acaso (é um autor acidental)

o artista é alguém que quer deixar de ser artista mas não consegue o artista é um angustiado a bater com a cabeça contra o nada o artista é um pateta reconhecidamente pateta (mas que faz coisas fixes) o artista é um maniacó-depressivo, ou outro tipo de chanfrado o artista é um oportunista (feliz talvez)

o artista é um bêbado ou um drogado (consoante)

o artista é um chamã que bebe e droga-se para chegar ao essencial o artista é um tipo bem comportado e integrado em tudo, sem vícios, porreiro pá o artista é irresponsável, mau-fígado, desordeiro, provocador

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B O ARTISTA

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o artista é um asceta, metido num buraco ou numa espécie de meditação

o artista é um perguiçoso com um dom para não fazer nada o artista é um marginal involuntário

o artista é um gajo rico que faz excentricidades esbanjando muita massa

o artista é um trepador social na horizontal que faz as exposições no sítio certo o artista é o que se auto-documenta com regularidade

o artista é um artista porque disse a si mesmo “e porque não?” o artista é um poeta que se integrou na boa no mundo da arte o artista é o que acha que o seu corpo é o corpo dos outros e vice-versa o artista é um tipo com jeito para fazer coisas (é um jeitoso!) o artista é um malandro encartado (“esse gajo é um artista”!)

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O ARTISTA

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o artista é um curador frustrado (não percebi esta!) o artista é alguém com essa vocação

o artista é alguém que não pára de fazer coisas a que chamam arte o artista é apenas um co-autor que foi solicitado por outros o artista é o que desconstrói artisticamente ou teóricamente a autoria

o artista é o que faz tudo e mais alguma coisa para se manter como artista o artista é o que não faz ponta de um corno para o acharem artista o artista é um actor de ser autor

o artista é uma vitíma da autoria artística

MMMMM e


B O ARTISTA

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estudo sumário sobre a intencionalidade (e a expressão em primeira segunda e terceira mão)

O artista tem algo para dizer

O artista não tem nada para dizer

O artista tem algo para dizer mas não diz o que quer dizer O artista diz algo mas não sabe o que é que é O artista diz que não tem nada para dizer

O artista diz outra coisa diferente daquilo que tem para dizer

O artista recusa-se a tornar explicito aquilo que tem para dizer O artista está confuso quanto ao que tem para dizer O artista tem muitas coisas para dizer

O artista diz que «diz que não tem nada para dizer» O artista diz e pouco mais

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O artista diz insuficientemente

O artista não diz nada de jeito

O artista anda à procura de algo para dizer

O artista não anda à procura de nada especial para dizer O artista diz com indiferença O artista diz com presunção O artista diz confusamente O artista diz eroticamente

O artista diz com perplexidade O artista diz com cinismo O artista diz com rigor

O artista diz com ironia

O artista diz com humor

O artista diz agressivamente

O artista diz com ressentimento

O artista não consegue dizer o que tem para dizer

O artista não consegue dizer que não tem nada para dizer

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B O ARTISTA

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O artista já não anda à procura de qualquer coisa para dizer O artista está sempre a encontrar qualquer coisa para dizer O artista não encontra o que julga que quer dizer

O artista gostaria de dizer mas não sabe bem o quê O artista quer dizer só para si

O artista quer dizer só para o seu amor O artista recusa-se a dizer

O artista diz umas coisas para uns e outras para outros O artista diz inequivocamente O artista diz ambiguamente

O artista diz polifonicamente

O artista diz demasiadas coisas O artista diz nada

O artista diz quase tudo

O artista diz quase nada

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O ARTISTA

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O artista diz quase tudo

O artista diz quase nada

O artista diz só para entendidos

O artista diz para que ninguém o perceba O artista diz para parecer estúpido O artista diz para parecer esperto

O artista diz para parecer inteligente O artista diz para parecer artista

O artista diz para fingir que não parece artista O artista diz por dizer

O artista diz para mudar o mundo

O artista diz para que o mundo fique na mesma O artista diz para pôr ordem no mundo

O artista diz para pôr desordem no mundo O artista diz para se mudar a si mesmo O artista diz para mudar os outros

O artista diz porque está habituado a dizer

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B O ARTISTA

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O artista diz para ganhar dinheiro e fama O artista diz para seduzir pessoas O artista diz para contrariar O artista diz para legitimar

O artista diz para se contrariar O artista diz com sentimentos O artista diz sem sentimentos

O artista diz porque não se sabe calar

O artista quando diz está cansado de dizer O artista descansa ao dizer

O artista é viciado em dizer

O artista gosta de dizer sempre a mesma coisa

O artista repete-se mesmo quando diz coisas diferentes O artista é obrigado a dizer

O artista diz sem intencionalidade

O artista diz de um modo não-intencional O artista diz umas graçolas

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O ARTISTA

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O artista diz porque quer deixar de ser artista O artista diz qualquer coisa

O artista diz algo de especial O artista diz as influências

O artista é ventrilocado por alguém O artista diz o mundo

O artista diz a vacuidade

O artista diz o incomunicável O artista diz o desconhecido O artista diz apenas coisas

O artista diz a vida tal como é O artista diz a memória O artista diz o absoluto O artista diz o relativo O artista diz o banal

O artista diz o irrelevante O artista diz o sexual

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O artista diz o «meio»

O artista diz o anti-meio

O artista diz porque está possesso O artista diz porque está bêbado

O artista diz porque já não está possesso O artista diz porque está lúcido O artista diz o erro

O artista diz a ilusão

O artista diz a verdade O artista diz a mentira

O artista diz a mentira que diz a verdade O artista diz a verdade que diz a mentira O artista julga que diz

O artista diz o que os outros têm para dizer O artista repete o que outros dizem

O artista diz o que já ninguém tem para dizer O artista diz o silêncio

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O ARTISTA

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O artista diz contra o silêncio O artista cala-se

O artista diz que não diz O artista é um palrador

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O ARTISTA E A ARTE SOCIAL

há o artista que acha que a arte é (sobretudo) social há o artista que acha que a arte é social e faz arte intencionalmente social

há o artista que acha que a arte é social e faz arte que questiona a arte social

há o artista que acha que a arte é social e faz arte que é uma reflexão sobre o social há o artista que acha que a arte é social e faz arte que age socialmente há o artista que acha que a arte é social e faz arte que flirta com o reflectir e agir socialmente

há o artista que acha que a arte é social e faz arte que é socialmente poética (ou poeticamente social) há o artista que acha que a arte é social e faz arte que procura ser socialmente eficaz há o artista que acha que a arte é social e faz arte que

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O ARTISTA

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se promove como arte social só para o art world (e nada de especial para além disso)

há o artista que acha que a arte é social e cita muitos teóricos da arte social para justificar o seu trabalho

há o artista que acha que a arte é social e que confia num curador que justifique e promova o seu trabalho

há o artista que acha que a arte é social e que faz arte que é contra a arte pouco ou nada social

há o artista que acha que a arte é social e cuja principal preocupação é ser amigo de curadores de arte social há o artista que acha que a arte é social e que faz arte que quer expôr sobretudo em museus institucionais (porque é mais provocatório? ou legitima mais?)

há o artista que acha que a arte é social mas não vende nada a ninguém e não expõe em museus por ética, convicção ou embirração há o artista que acha que a arte é social e se recusa a sociabilizar assim como à sua arte (mas que um dia quem sabe talvez…)

há o artista que acha que a arte é social e vende tudo numa galeria da moda (ascendente, de consagrados)

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B O ARTISTA

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especializada (ou não) em arte social

há o artista associal que faz arte que é acidentalmente social

há o artista que faz arte política que não é social nem anti-social há o artista que considera que a sua arte associal é mais social e política que a arte social há o artista modesto que ignora que há uma arte com preocupações sociais há o artista completamente associal cuja arte nunca ninguém viu há o artista que se está nas tintas para tudo

há o artista carreirista que um dia diz que faz arte com preocupações sociais, num outro diz que é poeticamente solipsista (“sou o maior poeta de mimmesmo”), e no outro que faz arte para vários tipos de elites (art world, coleccionadores, políticos) há o artista que está baralhado com tudo isso e ainda não se decidiu há o artista, que custe o que custar, só quer ser um grande artista

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A organização e o artista

o artista desorganiza-se? organiza-se para quê?

alguém tem que organizar para o artista? é uma necessidade do artista? é uma necessidade da arte? o artista não contribui? contribui?

tem que contribuir? pode estar fora?

tem que alguém estar dentro (ao seu serviço) para ele poder estar fora? é mais um tipo a inventar-se do que um fazedor de eventos? ou a coisa mudou e é um empresário de eventos chamados arte?

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B O ARTISTA

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eventos é um nome que se dá ao que antes eram exposições? o verbo “vir” em vez do verbo “pôr”?

o que é mostrar (para fora) e o que é causar, fazendo vir? divulgar, fazer eventos, promover? — que implicações têm? expôr — puro exebicionismo?

é falocêntrico (o dispositivo hipnotisador, o fascinus)? a arte é associal no seu cerne? ou é sempre social’?

ler e pensar são actos associais (como insistem alguns)? não são o espaço poético e o artístico o mesmo? uma conversa precisa de público? o público precisa de conversas? é-se curioso da tagarelice?

registar a tagarelice é inventar públicos?

criar públicos é publicar? ou publicitar? ou criar leitores/ escutadores/visionadores?

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O ARTISTA

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solipsismo mediático?

o paradoxo da arte é a sua sociabilização através da sua singularidade associal? arte para si?

arte para quem se ama? para os amigos?

para os artistas?

para os curadores, galeristas e outros empreendedores de arte? para um pequeno mundo da arte?

para um mundo da arte cosmopolita? para as massas?

regionais ou glocais? internacionais?

ou é questão desnecessária?

a divulgação (feita pelo mesmo, ou pelos alheios) é indissociável do fazer? arte pelo gozo?

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arte apesar do prazer ou do desprazer?

arte porque há um campo de coisas em devir a que nos habituamos a chamar arte, com ou sem defenições dos artistas, dos pensadores, dos sociólogos e outros contribuintes encartados a arte tem que desmontar, denunciar, desconstruir, pôr em causa? a arte pode montar, afirmar, construir, amar?

a arte pode vacilar, ser ambígua, estar em transformação, ser indiferente? tem a denúncia um caracter anedótico (coleccionável) para o mundo político-empresarial? é como a transgressão, uma coisa apetecível para os poderes instalados?

porque é que há muitos museus que mostram aquilo que não só os põem em causa, como o que os representa? é uma necessidade de auto-denegrição do poder? tratam-se de vãs paródias?

em que é que se estão a transformar os modos de divulgar em rede?

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qual a próxima fronteira à frente da próxima fronteira? há modos de mostrar obsoletos? tem que se ser alternativo aos modos “mais avançados” em devir? ou podem-se praticar modos múltiplos de divulgação?

se há uma múltiplicidade de modos porque não utilizá-la? o que é a interacção?

do artista com outros artistas?

da arte com os amantes de arte? da arte com os usuários da arte?

do artista com os profissionais que circulam pelos lugares onde anda a arte? há molduras protetoras?

o que é que torna as coisas na arte mais vulneráveis?

em que limites (de fragilidade?) é que se exercita a arte de que “gostamos”? o artista quer o quotidiano? não gosta do quotidiano?

quer evadir-se (como Rimbaud)?

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quer mudá-lo mesmo? quer só criticá-lo?

quer o extraordinário? (é bem possível) inventa para fora do quotidiano?

procura qualquer coisa que lhe vem do mundo para transformá-la em outra coisa que irá parar ao mundo? quer pôr-lhe umas pitadas de encantamento?

quer celebrá-lo na sua crueldade com vigor poético? quer mesmo vomitar nele?

regista-o com cinismo e um belo discurso analítico? é possível ou impossível escapar ao discurso do quotidiano? o artista é (ou tem que ser) contemporâneo? e pode ser anacrónico ou intempestivo?

pode gostar da história e do passado (e há mal nisso)? é obsoleto, voluntária ou involuntariamente?

segue fielmente as várias modas, vigilantemente, e nunca desiste?

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O MEIO

fff Roast beef, medium, is not only a food. It is a philosophy.



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da fama e da obra

“o artista a partir de certa altura é perseguido pela sua obra” (V.P.) “a mim perseguem-me é os credores” (J.S.)

o artista ou o escritor vão fazendo a obra e a obra é que fica o artista morre e a obra fica só para os outros

se o artista é ateu quando morre os outros deixam de existir (ou só existem enquanto é vivo na consciência como ideia de continuidade) se o artista acredita na reencarnação ele será outro mas a obra será uma pequena parte do mundo que talvez o toque se o artista acredita num outro mundo, será que a sua obra fará parte desse mundo? e ainda há o caso raro dos que acreditam que podem continuar as suas obras depois de mortos (e pela eternidade a fora?)

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nos tempos antigos, em que o culto dos mortos era relevante, os feitos ou as obras davam ao morto um estatuto especial — nesse sentido a preocupação com a obra era crucial

a fama ou a posteridade são um jogo que os artistas jogam para si, isto é, um jogo de valorização relativa dentro (versão budista) da impermanência generalizada

neste âmbito o próprio buda (Gautama) é um caso de bem sucedida posteridade que ele não gozou (ninguém goza a posteridade) — e foi alguém que teve e tem importância para a produção de “obras” de arte (e etc.) quais os efeitos da fama?

riqueza, prestígio, poder usar influência, ter (eventualmente) uma melhor qualidade de vida, desfrutar de atenção, ser mais reconhecido, as suas opiniões poderem ser relevantes

mas também: sofrer de inveja, ser alvo de intrigas, menor privacidade (mas nem sempre), perder tempo a gerir mais coisas adquiridas ,etc. preocupação ou não preocupação por ser mais ou menos famoso (gestão da subjectividade e da auto-estima, de

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de l’amour-de-soi)

a obra como local de auto-valorização e de exercitação de valorizações por especialistas e pela comunidade

o autor que se exercita em introjectar o seu lugar, para si, mas não só, como obra é o comum — torna-se o seu auto-crítico, por vezes o mais feroz — é um topos desde Horácio, que não é só o do polimento do estilo, mas o de toda a obra Vasari molda algumas ideias de história e posteridade com as suas biografias — o século XV e XVI divinizam autores (vidé Petrarca)

o séc. XIX e a canibalização das figuras culturais pelos nacionalismos fez com que estes sejam vistos como heróis exemplares nas suas obras (o que desculpa qualquer falta de escrúpulos na vida)

a mitologização da Obra como lugar do Absoluto, numa mistura da ideia alquímica com algo de hegeliano — mais tarde será enriquecida com alguma filosofia oriental, e com as variações do Absoluto (o Samadhi, o Nirvana, o Vazio, o Tao, etc.) o criador encena para si (e na obra) o Absoluto (ou a aspiração ao Absoluto), assim como um severo

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criticismo — ou então encena um contra-absoluto (vulgarização, avacalhamento, ironia, auto-comiseração) ao qual dá um valor a Angst da relação do autor com a Obra — autodestruição, ou mandar destruir obras post-mortem (Kaf ka)

a outra angústia das relações com o reconhecimento (variações na valorização pela comunidade especializada ou pelo mercado) — por vezes uma cultivada incompatibilidade entre a auto-valorização e as consequências do reconhecimento

o mais importante (para si) é o modo como o criador se entretem — as interpretações ou as valorizações serão sempre variáveis (ficções, ou modos como cada época ou comunidade projecta numa determinada obra as suas espectativas, ansiedades, carências, etc.) Pessoa escreveu o Eróstrato como aferir o que é imortalidade e o génio — os modos de garantir um cantinho relevante na memória colectiva, isto é, de incorporar de maneira relevante certas singularidades na “espécie” a satisfação que a “sua” obra pode causar a um criador

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é sobretudo de índole autobiográfica e narcisíca — mesmo quando a narrativa não é linear — é o espelho de um passado, é o testemunho de intensidades vividas a fazer coisas cujos resultados se tornaram partes do mundo que resistem a desaparecer depressa

a angústia sobre o que se considera insatisfatório na Obra é o mais comum — nalguns casos resulta em renegar ou proíbir a circulação de uma parte da obra porque esta, pela sua menor quantidade, enfraquece a intensidade da visão da Obra como um Todo — o que resulta num pavor pelo olhar crítico comum, que valoriza e desvaloriza a partir de apérçus sobre as obras, por vezes maldosos, e que consiste frequentemente em fazer juízos de valor destrutivos a partir de pormenores ridículos é frequente referir obras fulgurantes de certos criadores a que se sucederam irrelevâncias e da desnecessidade destas — no entanto a vida tem que continuar, e nem sempre o que é qualitativamente superior é o mais vital o importante é manter o máximo de liberdade e criatividade, e sentir o fluxo fremente do que é vivo (diz o artista)

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THE ULTIMATE HUMILIATION

(a arte de bem lamber botas como arte)

Dado que:

a) A bajulação é das artes que melhor permite triunfar no art world

b) A relação artista/crítico/curator/galerista/ colecionador (nas suas múltiplas possibilidades sexistas ou anti-sexistas) é uma relação de cumplicidade erótico-económico-politico-artística c) A humilhação é outra das práticas recorrentes

d) O artista é uma criatura que se gosta de queixar da sua situação precária e infantil

proponho obras que mostrem inequivocamente e sistematicamente o que se passa (exemplos para passar a video/fotografia com legendagem antes de cada situação)

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O artista dá graxa ao crítico, literalmente ou de outras formas. Vê-se o artista ajoelhado dando graxa ao crítico indiferente. O artista convida o galerista para jantar e vice-versa.

O galerista e o artista pagam o jantar ao crítico num sítio caro.

O curator proporciona uma viagem exótica ao artista e ao crítico. O director do museu tenta estar a sós com o artista e sem o galerista. O artista tenta aproximar-se do galerista numa inauguração.

O galerista esforça-se para conhecer o crítico na inauguração.

Um grupo de artistas tenta conhecer um importante curator numa feira. O artista lambe as botas a vários críticos.

O artista é (literalmente) espezinhado pelo crítico. O galerista suborna com dinheiro vivo o crítico.

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O artista tem um problema psicanalítico com o galerista (julga que este é o seu pai) e tem reuniões desagradáveis a pedir coisas difíceis. O galerista é muito possessivo com os seus artistas.

O crítico liga para casa do artista às 4 da manhã, em estado de bebedeira. O artista toca à campaínha do crítico às quatro da manhã para o insultar. O crítico apaixona-se pelo artista.

O artista apaixona-se pela galerista.

O artista abandona triunfante a galeria.

O galerista corre com o artista à pancada.

O art world ignora um artista que foi humilhado.

O artista, numa atitude supostamente superior, retira-se do art world para um sítio isolado.

O artista compra um automóvel de luxo e uma vivenda.

O artista anda no seu descapotável com óculos escuros e várias louras. O artista embebeda-se lamentavelmente na inauguração.

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O artista manda em vão e-mails e faxes a críticos importantes. O artista chora nos braços do curator.

O artista solta gargalhadas despropositadas nas barbas do crítico. O artista encena tentativas de suicídio para chamar a atenção. O artista parte a cara ao crítico.

O artista começa a dar-se com políticos.

O artista vai em vassalagem beijar a mão do ministro da cultura. O primeiro-ministro vai à exposição do artista.

A mulher do primeiro-ministro acha o artista sexy. O primeiro-ministro acha que o artista cheira mal.

O galerista anda excitado porque vai abrir um novo espaço.

O artista acha que a sua próxima exposição é que vai torná-lo famoso. O artista está feliz porque a sua exposição está a

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abarrotar.

O artista está triste porque a sua exposição está às moscas (vêm-se moscas).

O artista compra o jornal e descobre uma crítica elogiosa. O artista compra o jornal e descobre uma crítica denegridora.

O artista telefona a amigos indignado com a crítica. O artista insulta o crítico em público.

O artista e o crítico cruzam-se numa inauguração sem se falarem (desviam o olhar).

O galerista esforça-se para que o artista e o crítico façam as pazes. A mulher (ou homem) do artista põe achas na fogueira sempre que surge um problema. A mulher do artista vai para a cama com um curator para arranjar exposições importantes para o marido.

O artista tenta ir para a cama com curators importantes. Os curators aproveitam a oportunidade e vão para a cama com toda a gente.

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O artista mendiga dinheiro ao galerista.

O artista dá festas para mostrar que está bem na vida. O artista já não vai a festas para mostrar que está mesmo muito bem na vida.

O artista já não mexe uma palha porque está muito mal na vida.

O galerista reúne-se com o artista para lhe dizer se pode pagar o que lhe deve a prestações. O coleccionador convida o artista, o crítico e o galerista para um jantar de arromba (com champanhe e charutos). O coleccionador pede um grande desconto ao galerista. O coleccionador enche-se de coragem e telefona directamente ao artista pedindo-lhe que venda uma obra com desconto. O coleccionador descobre que sai mais barato se for galerista e torna-se galerista.

O coleccionador telefona ao director do museu para lhe mostrar a colecção. O director do museu mostra ao coleccionador interesse

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em ter parte da sua colecção em depósito no museu. O artista odeia profundamente outro artista e reune-se com um grupo de amigos para dizer mal dele.

O artista olha com um ar enjoado para obras de outros artistas. O artista olha com um ar lubrico para a mulher do curator O artista faz finalmente a retrospectiva no melhor museu.

O artista assedia telefonicamente todos os dias o director do museu porque este uma noite nos copos disse que até lhe fazia uma retrospectiva.

O director do museu queixa-se a críticos e colaboradores dos telefonemas constantes do artista a assediá-lo para fazerem retrospectivas. O artista, depois de fazer várias retrospectivas anuncia que vai fazer um ano sabático

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interpretação e criticismo em arte

(usar como inquérito?)

a interpretação é uma necessidade (biológica) de dar sentidos plausíveis às coisas? a interpretação é uma série de equívocos?

a interpretação é uma necessidade de plausibilidade acautelando equívocos?

interpretar arte é incorrer numa múltiplicidade préestablecida de abordagens? nem tudo vale ou é ambíguo? é claro como àgua?

é associalmente intenso? é socialmente relevante?

é social/associalmente indiferente? é divertido?

há questões políticas, de género, tipo post-colonial?

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em que pé é que entro na interpretação? caio nela?

sou intuitivo?

sou filosófico?

há que ser poético? literário?

cauteloso? frio?

analítico?

contextualiza-se?

usa-se como pretexto?

é uma questão de resposta?

a melhor interpretação é outra obra de arte? ou outra experiência criativa?

responde-se interpretativamento citando?

ou misquoting? (ver os misquoteros de Batarda) criticismo envergonhado?

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tradução animal?

a emoção é uma interpretação?

o que nos faz rir, babar, chorar, tranquilizar perante uma obra de arte? a interpretação suscita expressões no corpo?

ao pensamento a interpretar corresponde uma fisiologia? há obras de arte que abrem o apetite?

há obras de arte que fazem apaixonar?

há interpretações que levam a actos sexuais? ou apenas a abraçar alguém porque sim?

a interpretação é reacção de empatia ou repulsão? a interpretação é sublimação?

a psicanálise é para aqui chamada? deslindam-se enigmas?

percorrem-se labirintos?

há Minotauros e Ariadnes?

ou é dar conta dos jogos de linguagem (e deslindá-los)?

f

51


B

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O MEIO

f

estás a brincar a que jogo? estás a enunciar algo?

estás a convidar a alguma experiência? ou é percepção nua?

pode a interpretação despir-se de conceitos e preconceitos? é aí que entra nas coisas?

ou é na forma, na estrutura, no ritmo, no equilíbrio/ desiquilíbrio? é uma linguagem nova? vem codificada?

é um risco que temos que tomar?

é uma forma de embrieguês quiçá dionisíaca? a obra está no que a olha (Duchamp)? tudo o que se vê é falso (Tzara)?

o espectador é um traidor (Franz Fanon)?

mata-se o autor para o interpretar (como quem “mata” um pai)?

f


B O MEIO

f

é um relaxamento? é um esforço?

é uma exercitação (talvez espiritual)? é um cantinho para pensar? é uma reacção visceral?

é uma encomenda institucional?

é um favor ao amigo (que insistiu imenso)? é um gesto gratuito de admiração é uma vontade de polémica?

é uma pedra atirada ao charco?

são os círculos gerados pela pedra atirada ao charco (diz a RTB)? é um estado de possessão que leva a dizer e pensar coisas? é pura curiosidade?

é a mania de pensar diferente? é uma aventura de mão dada?

f

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B

54

O MEIO

f

é um vício?

é uma invejinha?

é uma resposta honesta e convicta?

é um acto de mistificação ou de desmistificação?

é mais um questionamento da arte e dos seus limites? trata-se de marcar posições?

trata-se de mostrar vulnerabilidades? é puro exibicionismo?

é a arte de ser bem pretencioso e de dispor a mais refinada retórica? é tão fácil como saltar à corda?

é uma variante da arte do insulto? trata-se de higiene mental?

é pôr tudo em pratos limpos? arrumar a casinha? superar paradoxos?

confrontar teorias com coisas?

f


B O MEIO

f

é a base da curadoria?

é uma necessidade existêncial?

é como levar um cão a passear?

é uma incursão simbólica ao mundo dos mortos? é uma alquimia?

é a cumplicidade com o deus Hermes? é um piscar de olhos a terceiros? é uma tese de doutoramento? é uma tauromaquia?

é o exorcisar de fantasmas? é um gesto maroto?

é mais uma bofetada no público? é dar a mão à palmatória?

é uma experiência caótica e perturbante? é um tête à tête?

é a reacção a uma dor enorme? é um acto de travestismo?

f

55


B

56

O MEIO

f

é o ter notado uma certa coisa?

é o reconhecimento de coisas em comum?

é a intuição de coisas estranhas ou desconhecidas? é uma associação de ideias inesperada? é um longo trabalho de investigação? é uma epifania?

é uma desilusão?

OOOOOOO f


B O MEIO

f

de como chegar ou não chegar lá

o artista quer chegar lá, ao alto, á consagração permanente

mas tem que subir e o jogo da glória é exigente o mais provável é ficar pelo caminho *

convém ter lata, capacidade de sedução, estratégias

ironia, saber avançar ou esperar, aguentar os infortúnios continuar, insistir, lutar por isso mudar de direcção

mexer os cordelinhos

não mostrar ansiedade

convidar para almoçar ou jantar gente influente fazer propostas indecentes com elegância fazer propostas decentes com rectidão

f

57


B

58

O MEIO

f

trabalhar, trabalhar, trabalhar estar atento

saber escolher a ocasião propícia

não andar na boca do mundo (porque se arranjam inimigos)

andar na boca do mundo (porque surgem novos amigos) dar festas apoteópticas ser um tipo reservado

ter alguma particularidade que dê das vistas insistir metodicamente nalgum objectivo não ser um chato que insiste

convencer que é bom, interessante e intiligente ser bom conviva

não mentir por sistema

escrever muitos mails a curadores e artistas ter sempre um projecto na manga

estar em quase todas as inaugurações

f


B O MEIO

f

ou só estar nas mais importantes estar aberto a propostas

tomar iniciativas imaginativas ter uma claque, um grupo

ser alguém sobre quem correm rumores ter a arte de recusar com cortesia contratar imensos assistentes

trocar obras com artistas mais novos

oferecer alcoól ou alguma massa aos que montam exposições estar rodeado de gente bonita

convencer políticos e empresários a investir em projectos caros ter alguém que lhe faça tarefas menores (pagas ou não) ter um bar da moda que costuma frequentar

ser um velho mestre retirado num ermo casarão conseguir ser director de uma instituição

f

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B

60

O MEIO

f

criar um mito de inacessibilidade dar entrevistas bombásticas

publicar muitas monografias

não ter perfil no facebook nem site na net só expôr em galerias grandes e boas nunca vender obras baratas

oferecer desenhos a gente que interessa escrever cartas comovedoras

traduzir um autor muito difícil ou de uma língua difícil ser amigo de poetas obscuros

seguir os conselho da arte da Guerra

consultar o I Ching

responder a propostas “e porque não?” mostrar-se um grande entusiasta

ter uma mailing list considerável

convidar para coisas pessoalmente

saber ser um bom entertainer (contar anedotas)

f


B O MEIO

f

mostrar que é um grande profissional

ser capaz de beber sem parar e não ficar bêbado

ser um conhecedor de lugares especiais e excêntricos não perder demasiado tempo com filhos ou coisas conjugais

não deixar as coisas ficarem em àguas de bacalhau marcar datas sempre que possível avançar imediatamente

responder com prontidão

ser ele próprio e não um poltrão

PPPPP f

61



A ARTE

n n n A arte ĂŠ um eqiuĂ­voco que devora sabiamente a verdade


64


B A ARTE

n

DEFINIÇÕES DE ARTE (tema e variações)

I belive in art and other lies

Arte é tudo aquilo que gostamos de acreditar que seja arte.

Arte é tudo aquilo que gostaríamos de acreditar que seja arte.

Arte é tudo aquilo que já nos custa a acreditar que seja arte. Arte é o que já não acreditamos que seja arte.

Arte é o que é melhor não acreditar que seja arte.

Arte é o que uns acreditam e outros não acreditam que seja arte. Arte é o que a maioria acredita que seja arte.

Arte é o que já quase ninguém acredita que seja arte. Arte é o que se foi acreditando que era arte.

Arte é o que se vai desacreditando que seja arte. Arte é o que nos fazem acreditar que seja arte.

n

65


B

66

A ARTE

n

Arte é o que tentamos fazer acreditar que seja arte. Arte é o que deixamos de acreditar que seja arte.

Arte é o que uns tentam fazer acreditar a outros que seja arte.

Arte é o que alguns gostam que seja arte embora não acreditem que isso seja arte. (Arte é o que engolimos como se fosse arte).

Arte é uma coisa que se gosta mas não se acredita.

Arte é uma coisa que se acredita mas não se gosta.

A arte quanto menos se acredita mais é para todos os gostos. A arte é o gosto de acreditar que se gosta de arte. Arte é a arte de acreditar na arte.

Arte é a arte de desacreditar a arte.

Arte é a arte de gostar de gostar de arte. Arte é amar a arte apesar de ser arte.

Arte é odiar a arte apesar de se amar a arte. Arte é gostar de odiar a arte.

n


B A ARTE

n

Arte é recusar-se a odiar a arte.

Arte é esforçar-se por amar a arte.

Arte é tudo aquilo que acreditamos na arte e que já mais ninguém acredita. Arte é a fatalidade de se acreditar na arte ou de gostar de arte. Arte é tudo o que equivocamente se acredita que seja arte. Arte é a confiança ilimitada numa confusão que se acredita que seja arte.

Arte é uma salada sociológica na qual os actores representam uma brincadeira idiota chamada arte.

Arte é o poder de fazer passar qualquer coisa por arte. Arte é a melhor mentira capaz de se fazer passar por arte. Arte é a especulação financeira mais absurda sobre objectos inúteis.

Arte é o que legitima o poder o mais possível para além do seu esgotamento.

n

67


B

68

A ARTE

n

Arte é o ornamento erótico das civilizações.

Arte é algo precioso que se converteu numa naúsea.

Arte é o que os museus nos querem convencer que é arte. Arte é a melhor arte possível.

Arte é a melhor arte impossível.

Arte é o que é mais parecido com um paraíso fiscal. Arte é o que torna os artistas artistas.

Arte é o que os coleccionadores de arte gostam de ostentar.

Arte é o que os críticos de arte usam como pretexto para fins muito distintos. Arte é o que os galeristas de arte se esforçam para vender.

Arte é o que não é suposto ser ensinado nas escolas de arte.

QQQQQ n


B A ARTE

n

PROCESSOS (on Wiener)

Uma peça pode ser «construída» Uma peça pode ser destruída

Uma peça pode ser desconstruída Uma peça pode ser esquecida

Uma peça pode não ser construída

Uma peça pode não ser nem uma ideia, nem um projecto nem um enunciado

Uma peça pode não passar de uma intuição passageira Uma peça pode ser algo vislumbrado num sonho

Uma peça pode ser a busca de uma peça indeterminada Uma peça pode involuntariamente tornar-se numa peça. O artista pode fabricá-la

O artista pode ser fabricado

O artista pode mandar fabricá-la

n

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B

70

A ARTE

n

Alguém a pode fabricar pelo artista A peça já existe fabricada A peça não se fabrica A peça é infabricável

O artista proíbe o seu fabrico

J J J J J n


B A ARTE

n

da qualidade

há arte que amamos há arte que odiamos

a arte que amamos é a boa

a arte que odiamos talvez seja a má

a arte que não aquece nem arrefece ainda é pior há arte que demora imenso tempo a fazer há arte que se faz num instante

há arte que se está agora a fazer há arte inconclusa para sempre há arte com materiais caros

há arte com materiais baratuchos

há arte cujo material resiste ao tempo

há arte efémera e que vai pró galheiro há arte que tem que ser restaurada

n

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B

72

A ARTE

n

há arte que tem que ser bem conservada há arte que nos deixa de boca aberta há arte que nos deixa indiferente

há arte que nem sabemos se é arte

há arte que parece muito bem feita há arte maravilhosa que é falsa há arte a despachar fabulosa

há arte cheia de atrito e dificuldade

há arte cheia de ligeireza e facilidade há arte que foi muito pensada há arte que é instintiva

há arte que é mera apropriação há arte em primeira mão há arte que nos alegra há arte que nos irrita

há arte que precisa de muita explicação há arte que não se acredita

n


B A ARTE

n

há arte que nos vai ao coração há arte que nos mobiliza há arte que é lamechas

há arte que é conversas há arte que é sagrada

há arte que só tem piada há arte de transgressão

há arte que nos faz sorrir

há arte que dá vontade de cuspir há arte que não é material há arte que pesa toneladas há arte tecnológica

há arte feita à mão

há arte de correspondência há arte com ilusões

há arte que é um esguincho de esperma há a arte que é merda enlatada

n

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B

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A ARTE

n

há arte que é pornografia

há arte que é como a pescada há arte que é monocromática há arte que é matemática

há arte fruto de uma vida há arte vítima da SIDA há arte bem equilibrada

há arte que é pura confusão há arte por encomenda

há arte que não vende no leilão

há a Ronda da Noite do Rembrandt há o Koons a enrabar a Cicciolina

há o artesanato numa aldeia alemã há o grafitista de Escalos de Cima

há o tipo que desenha com primor

há o especialista em imagens de terror há arte extremamente culta

n


B A ARTE

n

há arte só para gente adulta há arte que impõe respeito há arte que até aceito

há arte que antes não era arte

há arte que irá deixar de o ser há arte que dá boas sensações

há arte que nos deixa a perder há arte para agradar ao poder há arte que anda a resistir há arte cheia de intenções há arte que diz por dizer

há arte completamente codificada

há arte que é para fazer projecções há arte que é sobre o nada há arte que é sobre o ser há arte que é ritual

há arte com citações

n

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B

76

A ARTE

n

há arte que inventa tudo

há arte que baixa os calções há arte com conteúdo

há arte só feita de letras

há arte em que se abrem gavetas há arte que é só gordura há arte que é inframagra há arte que é gigantesca há arte sem dimensões

K K K K K K n


B A ARTE

n

os Tipos de arte

arte ideológica (radical)

arte formal (incluir todo o tipo de abstracção, mesmo informal) arte intencional-conceptual

arte não-intencional processual

arte erótica (soft porno — para pôr na sala) arte poética

arte em/com fotografia

arte video (ou cinema de artista) arte contestatária

arte sobre questões muito importantes

arte sobre tudo o que diz respeito ao art world

arte com o corpo ou sobre o corpo (com ou sem automutilação)

n

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B

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A ARTE

n

arte que não tem nada a ver com o corpo (?) arte que representa coisas (figuração?)

arte que des-monta ou des-constrói coisas e sistemas arte utilitária para o povo (como o construtivismo) arte que reflete (culta, filosófica, etc.) arte libertária (whatever)

arte mediática (ou tecnológica)

arte que tem qualquer coisa a ver com a ciência ou cientistas arte de coisas que um gajo encontra algures na rua arte de coisas parecidas com o que está a dar arte só para dar nas vistas (muito variada)

arte que agrada a empresários e políticos (estar atento) arte a partir do inconsciente (tradição surrealista) arte pulsional (ou catártica) arte de rua (grafittismo?)

arte de crianças e loucos (não abusar!)

n


B A ARTE

n

arte decorativa (torcer o nariz!) arte sobre o género

arte que celebra o mercado (de vendidos) arte sobre o (depois do) fim da arte arte voluntariamente obscura

arte cheia de referências e citações arte com letras

arte com statements

arte com muita tinta e em grande arte com luzes

arte com materiais esquisitos arte com sons

arte com bichos, plantas ou materiais inanimados arte performativa (em geral)

arte com cenas pornográficas (em particular) arte com coisas sensíveis e delicadas

arte que se parece com montagens de museus

n

79


B

80

A ARTE

n

arte de comer, cozinhar, etc.

arte na web (supostamente digital) arte violenta

arte com lixo

arte de destruir todo o tipo de coisas arte de embalar ou contextualizar arte auto-destrutiva

arte com ilusões de óptica

arte com/sobre o mercado da arte

arte sobre cinema, rock, televisão, etc arte invisível

arte em livros de artista arte em anedotas

arte para a qual se tem que encontrar uma explicação rebuscada

arte com objectos que não eram arte e depois passam a ser

n


B A ARTE

n

arte que é feita por gente da ilustração

arte de poetas visuais/concretos (incluindo jardinagem) arte com arte de outros

arte naif (e porque não?)

arte com molduras muita boas e muita caras arte que os curadores decidem de que tipo é arte parecida com arte

arte involuntariamente arte arte sacra arte caca

L L L L L L n

81




A própria teoria se tornou combinatório, refutação de inclinação, paródia, fundo carochinha, frases a desbra a largarem a sua pele anim sem contaminações, desape hipnose, gargalha ambulató qual recai a graça, mania de ainda mais, sem pedir nad que a venere ou adopte,


u serial, distraído momento refutação e por aí adiante, o, curiosidade, história da avar porque sim, conceitos mal, desvio para um olhar ego alegórico, sério caso de ória, irritabilidade sobre a e desembaraçar a complicar da, sem exigir de ninguém a trote ou a galope pois.



Este Livro foi concebido como uma exercitação do autor destinada a clarificar a sua participação na exposição O Livro Disperso tendo escrito boa parte dele a 6 de Junho de 2017 ao qual juntou quatro textos anteriores que lhes são afins & foi paginado no dia seguinte pelo autor em caracteres secretariado incluindo uma fotografia de Pedro Portugal tirada no ano de 1997


c E RRRRRRRRRR d N u B LLLL


KKK C G XXXXXX D JJJJJ b H


B Listas serializadas a partir de cada um destes termos, mostram o esqueleto do mundo da arte, as manias de definir a arte, e o que vibra contraditoriamente em cada um dos ambiciosos artistas, nos quais o autor óbviamente se inclui.

edições Asa D’Icarus


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