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(excerpto)

G Andaste por fora, julgo que por Londres…

L — Uma vez, vi lá uma menina com cara de aspirina que fazia filmes polacos. Vi também o primeiro Polansky, antes de pedófilo, uma fita que passou na cinemateca londrina.

G Conheceste gente?

L — Dei-me com um amigo australiano que tinha a irreverência do mundo ao colo e fazia colagens com os cotovelos.

G E aprendeste coisa que se veja?

L Automatismo protocolar para uso de pintor veneziano: experi mental. Nada de sibilino nem de críptico, mas a bordo de gôndola com alaúde nas manápulas.

G E sabedorias?

L Uma razão egoísta para te esfregares no banho a ouvir musiquetas com espuma.

G Quanto ao estado do mundo?

L Um gajo habitua-se a ver isto nas entrelinhas com catástrofe ecológica garantida. Vou fazendo o que posso. Activismo. Colar cartazes, assinar petições e cultivar jardins.

G Onde é que aprendeste mais sobre arte?

L Nas revistas. Era no tempo em que íamos à caça das reproduções de pintura na Lello, imaginando a aura deixada fora. O Museu ao alcance das carantonhas e dos dedos, olhos esbugalhados, voyeuristas do catano, e aquilo nem era minetes ou coisa que o valha. Folheávamos em miniatura para endeusar a escala imaginária.

G — A coisa entretanto mudou muito…

L Agora vamos que nem patos a Pequim na net. É como ter lata. Podemos frequentar sem sair da secretária. O mundo avulso de Júlio Verne e o de Roussel chega em menos de um fósforo e dá beliscões e piparotes. Os cromos agora são de borla.

G Tens a sensação de estar isolado?

L A clandestinidade saiu-nos na rifa a menos que vamos dar uma volta a Serralves e comer uns filetes numa cervejaria do Campo Alegre, e aí apertamos as mãos e beijinhos e tal e tal. Temos vergonha da luta já ser nada e o culto oracular de que nunca mais virmos a ser nada com a ambição nas algibeiras, a quase parafrasear o Campos.

G — Acomodaste-te?

L Dediquei-me aos afectos, nem tendo gato nem lebres. Trans formam-se os afectos no que há, no mundo ao alcance do corpo, a começar pela biqueira dos sapatos.

G — Quando voltaste de Londres onde é que foste parar?

L Instalamo-nos no Porto, como num bunker, uma Reboleira de Nova Iorque, em chique a valer, com caves vinícolas e gente que sabe o que é viver bem.

G — Qual a situação das artes por cá?

L De costas voltadas para o mercado, enquanto me acanho na pleni tude. Nem sequer sou bom garfo. Vende-se poucochinho. Prontos…

G Consegues falar de dinheiro ou é um tabu para ti?

L Relaciono-me mal com a massa em pipa. Tive um ordenado que, além das despesas correntes, ainda dava para encomendar os books necessários, do Gombrowicsz ao Lezama Lima. E as reproduções dos camones. O Newman e o Kline e depois o Hockney até ao Jeff Koons. Nunca me interessaram Ferraris nem casas de campo…

G — Jubilaste-te. Tens agora o tempo todo para fazer o que te apetecer?

L A reforma é recente. Não tem dado para gozar. A reforma é o não-gozo a desaguar em calaveras depois de uns rins esfregados por vinho da Madeira.

G — Erotismo? Sedução?

L Prazer da metamorfose segundo a chicha de cada amor. A nossa carne depende em grande parte das opiniões perdidas e das oportuni dades desperdiçadas.

G — Continuas a trabalhar então?

L Acho que tenho versatilidade suficiente. E ainda vão sair muitos catálogos.

G — Acreditas na glória?

L Às doses, como na restauração, para ser aviada. E em saudosas teses de doutoramento com bibliografia sonsa.

G Qual é o teu olhar sobre a arte do passado?

L — É um tópico orientalista, aqui, com a cor ocidental, roubada ao Giotto antes desta ir para o esgoto enfiada no “conceito de Museu”.

G O que é que falta à arte hoje?

L A arte conceptual livrou-nos da cor, do picante da cor, dos car mesins, dos cyans, dos ocres. É para o “olha o passarinho”!

G És então um colorista…

L Tentei conciliar os modos de inquirição com o palpitar dos

negros, dos azuis entornados, do branco brilhante cobrindo superfícies baças.

G — E a arte como ideia, como projecto, não te tenta?

L Como gajo espanta-me que tenha caído tantas vezes nas malhas filosofais. Boa malha, como se dizia.

G Lês muita teoria de arte?

L — É defeito de deformação. Pode-se ser filósofo em verso como o Lucrécio. Também dá para ser filósofo em quadros e quadras populares com manjericos, tudo ao mesmo tempo.

G Costumas desconversar assim tanto quando te fazem perguntas?

L — É queda na cena histriónica da incompreensão tal qual os existencialistas. Mitos pessoais para alimentar o gado e private jokes para farelos em capoeiras.

G Tens aqui imensos livros de poesia. Costumas buscar inspiração neles?

L Li demasiado o Eugénio para chegar ao obstinada rigor. Era novato. E essa coisa de polir e da perfeição supõe a porosidade da própria pedra-pomes e o avanço gaiteiro da mão. De perto, vê-se que a vibração da tela é um querer ser pele.

G E tiveste a tentação de escrever literatura?

L Também me imaginei poeta, com piolhos. Fricolé. Não que não me lavasse ou houvesse bicharada. Ainda por cima ambos pensamos a partir do cinema, do coup-de-foudre da câmera a querer saltar para o pelo. Ou o close-up a fixar-se na poesia como montagem de um pre tenso imaginário. Estás a seguir a rodagem?

G — Nem por isso.

L Eu tinha duas coisas, para além de dores de corno e costas: ingenuidade e mau feitio. Era um metido na casca insuportável. Era o

próprio eterno retorno da idade do armário. Requisitos idóneos para pintar-pintarolar.

G — Mas desenrascaste-te…

L Entendi-me com o meio encanhado, casando para poder ficar de gatas a lamber telas. Foi um pacto que facilitou e teve mais-valias estéticas em detrimento do erótico. O encontro com o comum, o lavar a loiça, levar o menino ao colégio, dar instruções de compras à empregada e outras sopas. Ou o sofrer na pele com o iníquo desgaste dos humoristas.

G Tu estás interessado na estupidez?

L — Nem por sombras. Continuo é fascinado com o Grand Verre do tio Marcel.

G Gostavas de ter vivido num grande centro artístico?

L Foi preciso o Duchamp ir para Espanha, para Tenerife, para perceber que a malta também se podia exilar em Borba, em Peniche, em Marcos de Canavezes e fazer desmistificações a depenar argúcias. Depois do Duchamp também dava para abalar para o mais ermo, como já o tinha feito o Rimbaud em mau, o Wittgenstein em bom, o Henry Miller na Grécia, o Pessoa em Lisboa, o Gombrowicz em Buenos Aires, ou o Kavafis lá na terra dele.

G Aqui é o provincianismo?

L — Em toda a parte. Também nos States a coisa é provinciana, com o seu jargão, as suas claques, tudo coisas comezinhas e irritantes do virar da esquina. O meio impróprio, o tal enguiço que mata, as virtudes in disciplinadas da mediocridade essencial. Dá em cirrose, além de gota. Consegue sobrar. Pode ser que o adverso faça dar a ler luzes.

G E tu, leste tudo?

L O aluno diz que é deixarmos as blagues pousar.

G Nos ombros, entre a caspa?

L É a penúria da cor.

G — Alguma relação com a experimentação universal?

L É arriscar os riscos que se fazem com cores em criança. G E duvidar para existir?

L Se duvidasse aí duvidava com as línguas que já morreram e com as que querem ressuscitar, dentro do possível. A minha criança, sendo parecida com a tua já assumiu a inclemência da segunda infância, a verdadeiramente edipiana, cheia de rugas. Há que voltar a gatinhar como quem é mestre. Como o Aristóteles montado pela cortesã.

G — Passaste uma temporada no Algarve. Essa experiência serviu-te de alguma coisa?

L Nos lugares extremos onde o sol queima a sério também me deu em pintar antes que pirasse da tola. Copiava com vista a dar lugar a re produções, a partir de reproduções, como na Pop Art, a preto e branco, a sair barato. Acabara de encontrar a luz do sarcasmo. Bastava ligar os holofotes e apagar as velas de acção de graça. No meu inferno não havia razão para outra luz. Como a massa era pouca pintava em papel, e assim garantia que não vendia, ou que vendia pior, baratucho, com reticências. O meu inferno perguntava-me: “como se faz?. Acende-se as chamas. Em redor tudo pode ruir ardendo”, respondia uma vozinha já inflamada no fundo dos gasganetes. Há que saber escolher mal de repente. É esse o trabalho trágico, aquele que torna respeitável porque vem dos gregos, dando cabo de tudo. “E o teu inferno, como é que se faz aí?”. Faz-se a cada pincelada. “E a chama não é exagero?” É um paraíso, já sei. É sempre o paraíso, desde que meta a cor ao barulho. É como a história corrompida correndo atrás de nós para nos pôr os cornos a cada momento.

G Achas que a cor é um de demónio e pintar um xamanismo?

L A cor agarra-nos. Vai tomar conta de nós. É a inadaptação, como quando fiz aquela porcaria na retrospectiva.

G Realismo ou ficção?

L Reina a suspensão da descrença entre o que ignoro e o que ficciono. Parece que ouvi uma ninfa a tirar o peso a Deus e a divindade na voz por trás a dizer: Acabou-se, agora tens que pintar como o Francis Bacon, sê um ganda javardo.

G O Ricardo Reis escreveu: “para seres grande sê inteiro”. Estás à altura de ser inteiro?

L — Desloquei os fragmentos para as traseiras da arte, pode ser que engrandeçam, ou que a arte recupere uma vocação que ainda não sei qual é.

G Fizeste pintura figurativa?

L — Fiz. Quando comecei a fazê-la, tive aquela sensação de ridículo, de quem está fora de épocas, mesmo idas as vanguardas. Fora dos circuitos, empinado, duvidoso, apatetado, emplumado, a esgrimir máfigura. Era coisa de poeta, com vergonhas e rubor nas faces. Tive de informar os amigos que começavam a abrir escritórios com intenções de organizar exposições.

G Foi uma chatice?

L — Tive problemas de menor monta e passei a vender a sério, o que deu para comprar uma casita pipoca na Foz com atelier virado para o Douro. Tornei-me então num culto. Frequentei concertos, comprei pick-ups e Lps e fui a jantaradas com amigas apinhadas de pérolas. Em contrapartida, deixei de viajar. Esta terra chega e sobra. Fiquei a olhar para o boneco e a tentar ter estilo dentro do sem-estilo da minha arte. Por vezes, pintava tudo de branco e voltava ao princípio. Também tive

a fase negra, como o Ad Reinhardt. Perdi imenso cabelo. Parei a tempo de ficar careca quando a minha mãe veio de África com malas aviadas.

G — A tua mãe tinha um efeito benéfico sobre ti?

L A minha mãe? Era infernal. Não achava satisfatória a minha condição. Rondava a perguntar: “Fizeste mais um quadro? Já o pintaste de preto?”. No fundo era humana e preocupada. E eu fiquei horrorizado com a possibilidade de entrar no clube selecto dos carecas. Parei de pintar e pirei-me para Moledo, pra casa de amigos arquitectos. Foi a crise da meia-idade. Dei no Outono seguinte, uns cursos na Árvore e o contacto com malta mais nova aliviou-me. Ainda tenho imenso cabelo, forte, embora grisalho.

G —Viver é crer na sorte ou na desdita?

L —Ter ficado mata, dizia, julgo que o Duchamp, a um entrevistador. Eu fiquei e não morri logo. É aos bochechos.

G — Custa-te a crer em alguma coisa?

L Em crer nas Belas-Artes e no Mercado. Hoje parecem-me antagónicos. Vistos a posteriori, ambos são ridículos. O Mercado engana-se sempre e as Belas-Artes também. Basta olhar para trás.

G Dás então conta dos teus recados…

L Um gajo só pode dizer: sou o proprietário do meu nada pessoal, à La Stirner, com a cerveja na caneca e o lamiré nas trombas. Não admito patas de explorador na minha fuça. Não me estou a ver a fazer de engravatado num escritório, sequer de advogados.

G Consideras-te a paródia a pôr bombas.

L Sou inofensivo para chegar lá e gosto demasiado de pessoas para bombar.

NUMERO DEUS IMPARE GAUDET

NUMERO DEUS PARE GAUDET

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