rotundas ligaduras facturas

Page 1

ROTUNDAS LIGADURAs Facturas PEDRO PROENÇA

poesia

waf books


para a Rita, completamente (a continuar)


R O T U N D A S LIGADURAS F A C T U R A S PEDRO PROENÇA

poesia

Waf Books


um prefácio é uma forma (borgiana?) de deformar um livro — pode-se lê-lo para ignorá-lo, pode-se dispensá-lo para saborear melhor (o que quer que seja).


RECICLANDO

Reciclas onde as bicicletas ciclopam — ratos, rifas, ruínas. Vozeias o vazio para te deixares morder por palavras desperdiçadas.

O mundo acha-se entre o que desmorona e o que ainda não se partiu — cacos, casas e acasos coisas que acasalam nos limbos do adiável encavalitadas tremuras de desavindas ternuras.


O mundo acha-se entre o que desmorona e o que ainda não se partiu — cacos, casas e acasos coisas que acasalam nos limbos do adiável encavalitadas tremuras de desavindas ternuras atiras pedras e refaz-se a poeira paredes contra nuvens — linhas rectas namorando as mudas do informe — inexactidões que amam o lume enorme


enchem-nos a boca de palavras que não nasceram connosco nem foram mastigadas ou beijadas mas passam-nos como feridas do antigo ou do inominável exaustivamente soletrado é um vai-vem entre algo que se desentranha ou se afunda na terra com os pés a conhecerem-lhe o sabor a astros e onde as palavras altas se abismam para se parecerem com as baixas as especulares as retrógradas —


porque o inalienĂĄvel prazer de que somos feitos como privilĂŠgio absoluto busca formas


ROTUNDAS


GRÃO A GRÃO ASSOPRA-SE A VOZ predadora de escuta, a fala abarca involuntáriamente a vibração da mutação das coisas, e como magia ininterrupta nela influi Refaço-me no que falo. Mesmo emudecendo dou grão à grã recitação que secreta o velido desvelar. Vibrados são os brados que reiniciam os inicios —


cordas que atravessam o universo em riso hermético, ecos que dilatam a dança do timbre em becos e se fazem mais linguagem — ressalva linfática que condensa em poemas as excepções das excepções, dizer que se vai significando nas cadências sacando os açucarados sulcos das evidências que dão imagens aos paraísos.


Palavras que são paixões plenas que dispensam o silêncio o inaudível o indizível para fazerem mais carne a carne de que nunca se separam.


Dizes citando que desagrafas se caligrafas e se entornam das blusas os mamilos laicos das letras — porque a escrita despe e inaugura o nu na pedra e no papiro e ri da morte desde Arquiloco ou Baudelaire provando os figos, afagando estrias e rugas enquanto outros corpos amanhecem nas linguas mortas.


Não te livras de amar mesmo sem ter que amar o amor desmaselando os conceitos e habitando a húbrica urbe só é amor o que nasce dos afectos vocalizados com gemidos germinando no fundo da garganta e esvaindo-se nas labiais onde escorre o cansaço para multiplicar a sede de mais beijos e ainda mais.


FIDÚCIA

Entro refutativo nos teus poemas para os amar (e a ti também) e não me entendo e desentendendo-me rio-me da minha cumplicidade com os sentidos que se frecham nos poemas quem nem sei se são meus no fabricá-los

Estas vozes não são refens dos silêncios dos deuses mas murmuram-nos mais divinas que as divindades e mais ridículas que as tais ridículas missivas amorosas.


Deixo que o silêncio seja o pó vermelho e múltiplo a babelar e nele segredem mais linguas que as todas as linguas de sempre. Sabes, traduzo para me agazalhar nos afectos alheios, e não para seduzir ou sossegar — é um aprimorar dos encantamentos que topo orelha atenta atrás do sofá e de ti acolho sensações que se minuciam pandémicas (pá!).


Tais poemas em que me espremo são palimpsestos de glórias que ignoramos e se acumularam nos gestos em que nos buscamos buscar e nas adjacentes palavras colhidas e levadas em cestos. Encontramo-nos distantes de nenhures sendo as letras mordidelas ou puro tacto venham do estilete ou dum teclado sejam em potência ou em acto.

E a viva musa que me afaga o cachaço despe-me na linguagem, pobre macho de parca roupa e ironias escorreitas. O meu poema não o sei escrever sem que o teu me toque no verso e na carne, involuntário e despautado e na putativa paródia, no ir ou não ir só, vou acompanhado.


Que interessa se sĂŁo bons ou maus os poemas e maiores ou menores os poetas invocados se neles se amarfanha a manha que queima a manha. Ah, a fidĂşcia dos fados.


PALAVRAS A OCORRER

Ocorrem palavras sem que lhes saibamos o sabor ou os sensíveis sentidos óbvios ou ocultos nas efemérides de serem sempre efémeras nos desavindos ontens e nos acautelados amanhãs. Arrumam-se nas transições infernais entre vazios impermanentes e as duras fronteiras nas quais vamos embatendo — chão, paredes, gentes e demais obstruções. Deslargam as mãos o que se desentranha da emudecida voz que intermedeia o que circula entre a carola e o coração —


letras em busca da justa tipografia ou excentricas ligaduras que engolfam glifos... E se a violência borbulha na substancia dos actos não te saberia magoar nem atirar à cara o ardor da minha dor, seja minúciosa ou ingente... Vou-te escrevendo poemas com rudes ocorrências numa mesa manchada por tintas mui diversas. Não sei se a escrita do meu desejo se faz em ti carne ou se transformada assomará na tua pele ao sol a esplanar e ao saboreares o café te saiba a forte amor.


A PATA NA POÉTICA

Não consigo deixar de sentir a animalidade das metáforas — bichos vivos ou mortos, memoráveis sempre e a deslocarem-se com gente entrando e saindo delas não faço ideia se as palavras nos poemas voam mas incitam (excitadinhas) a mais que aeronauticas fica-se num estado ambiguo, vacilante, hipnótico, por vezes amoroso, abstracto ou erótico


e é nisso que se intrometem as metáforas entre o desconcerto e a paixão — panóplia polposa a marinar mundos imaginais rente ao chão



A CESTA DA FALA

Falavas de figos, que os não provas. Está certo. Aqueço a minha linguagem na falsa frieza das tuas palavras — afagadas pela lingua e as dentadas (coisas ditas em rápidas visitas). Entre a antífrase e a declaração não cesso de dizer este amor, mais qualitativo que quantitativo que sabe ao que não se sabe bem sabendo bem com ganas canibais de devorar e ser devorado mundo a mastigar mais mundo e a querer-se oferenda funda.


Somos uma ceia que se ateia e se anseia. Provo-te a doçura que não é de tuta e meia e de amargores, maus hálitos e maus hábitos não te sei acusar. Devoluções devolutas não hei-de tanger em nenhum alaúde, só bem cheirosas canções barrocas e os teus honestos dentes e a voz enxuta.


Não há palavra que não seja impura, cozinhada entre estranhas bactérias que lhes dão o caracter que faz falta na desambiguação diccionária. Será possível fazer poesia com limpeza, polidinha, exacta sem que seja censura reaccionária? Azedam os poemas no horaciano polimento e amarga o poeta a maquilhar-se para uma posteridade poeirenta.


Façamos amor fazendo-o, e digamos o que diremos — nada nos impele a comedimentos ou entravamentos sem exemplos ou justificações. Somos entornados pela violência bailadeira de Eros, entre vislumbres e olhos que se cerram para sentir mais tudo já que o poema é sempre um caso bicudo.



CHAMAMENTO

As palavras acham-nos com o seu tamanho certo e se são curtas cortam-nos sem acabamentos com seus dentes obedientes — falo de amor feito de ir com em forma de gente

podiam ser outras palavras e são-nos nas linguas ignotas inadequadas aos hábitos que se pregam na glote e se infundem na imunda serventia verbal podia ser, como dizes, nome canino, logo cínico, mas de peito ingente, na horizontal ou na vertical


não sei se seria o mesmo nome, se é que há um mesmo amor, ou se o amor é sempre divergente — diligente imitar fluindo ou contra a corrente: um incontido gemido a co-habitar as lubricas artérias da obscuridade.



TINTA

A palavra passa sempre da boca muda à mão nervosa que saltita com ensopada tinta mental como uma fera breve por matas ambivalentes. Douo-me mais que o poema, poetando, com sorriso sem freios porque é encanto para lá de meios.


NĂŁo se trata de verter belezas puras ou raras ou sentidos cultos ou recatados. Mas fervo, sem gravidade e lendo-te alarvo-me no desejar-te com membros que em castelhano membram a ti, entregue a teus gestos.


Não me chegas com peso ou duresa mas dúctil, como cor que se estende na pintura para acolher o luxo, a calma, a voluptuosidade. Pois todo o poetar evita o epitáfio e espevita a falta de fins ou começos.


VOLTO JÁ

Porque não te espero culpar porque nenhuma letra se faz culpa e nunca mais te espero vir a culpar mesmo que o tom canalha e os gestos o digam mesmo que no xadrês dos afectos te queira aniquilar e as estratégias da sobrevivência façam os possíveis para encontrar em ti a desculpa do resto.


Não me culparei nem te culparei de te amar agora porque não há dissuadidos gestos e tosco, sem contabilidades, entro para livros com o espalhafato dos desejos e as pescarias retóricas de te querer embeiçada. Porque sou diurno mas chego nocturno às tuas tendas sem divisas ou dividendos por compartilhar para partilhar o impartilhável do amar.


E todavia não te espero culpar mesmo com as fraldas da consciência por fora e as mãos a percorrerem-te as vertebras camisa adentro, e um sorriso a malandrar. Jogamos a não jogarmos jogos que se ganham e descuramos das intenções que batam certo e beijamo-nos lentos a céu aberto porque nenhum afecto se faz culpa porque não te quero culpar porque não te espero vir a culpar jamais.


ESPLANADA

Sou a metáfora perdida que não encontra nome e que talvez o encontre, justa ou bifronte, entre fumos de fumos, entre trajectos de objectos — criatura intervalar a encalhar em poéticas coisa larvar. Escolho-me no deixar-me ir entre metáforas que arredas e nas quais te encenas como alegoria consumível mesmo que perfumada, equívoca, ou certa até.


E cheiro-te fora da palavra ou do dialecto da conversa enquanto te despes de memĂłrias que nĂŁo se despedem e ficas sacudida no ajustamento dos momentos nas intensidades que demoram no serem breves e toco-te com mĂŁos firmes ou dedos leves como uma criatura que te veio desafiar para muito mais.


Nos prelúdios do que der e vier talvez seja um café com cardamomo na esplanada a ser unanimente bebido, doce ou amargo, para memórias vigentes ou futura exploração. E nesse odor cafeinado renovamos a felix culpa em contramão.



COZINHA SEM CHEFES

Avisos quanto a sintonias e reciclagens de reticências com o poeta de gatas a reter o que o olhar não capta: entre o pilão e o almofariz empapam-se condimentos


azeite alho coentros pimenta da terra (que tão bem sabe no queijinho fresco) para apimentar o que se encurva e os minuciosos recessos que o coração pontua entre mãos bocas nadegas sexos.


LIGADURAS


DESENTRANHAR TODAS AS ESTAÇÕES EM CADA ESTAÇÃO há que recolher no outono o que aligeira o verão é no ritmo da caducidade que se eleva o poema Há que desentranhar de cada estação as premissas que vão das primícias às invernias. Cantas sempre que te estatelas com dor súbita, aguda, mas breve, sabendo que um dia haverá nova neve. Saberás erguer-te em tempos de melancolia com as alegrias imponderáveis do poema?


Saberás degustar o tempo que a noz preparou como recondita oferenda de antanho? Nenhum estio sabe morrer completamente nem dormir por inteiro quando cai a folha e se abismam amores em versos de mia senhor porque o sol é grande e o caduco voa e nos galhos inda há pássaros em loas.

As àrvores estão prenhes de céu mas no outono parecem desesperar sacudindo folhas, melancolias falhadas, consumando o que não era devido nem esperado.


Aprendes a cair a cada salto ou com o amor que se fez alto? Poderá ensinar-nos este outono mais que a repetição ou a predação inelutável do tempo?

Porque nos abismamos nele como se nascidos de uma outra pele deste mundo e surpresos vamos dando conta que o poema se eleva bifronte e corpóreo entre estas folhas aterrando nos pés.


PRIMAVERA EM ANTECIPAÇÃO Ironias gaiteiras a tapar inocências e a fazer acudir vocábulos em excesso quando se desbra o poema do regresso. Mas não é para já. O outono mostra as mágoas dos outroras agoras nos braseiros. Poética à perna, a acariciar o mamilo amigo do corpo de razões primaveris — cornucópias insolentes e passarada a aninhar-se para escrevinhar com lápis.


Primavera em antecipação com cupidos a ir ao cabeleireiro entre as sofridas compras natalícias. A gravidade das àrvores em lento strip-tease deixa-me também nú, sem metáfora soalheira, com a obscena literalidade das coisas frias e fugazes. Apetece estar quentinho na banheira e depois ler poesia com qualidades.


Suspeito que esverdecerão esverdejantes coisas e que as sílabas ignorarão as raízes e etimologias e cantarão o amor borbulhante no chinfrim das aves: amor ligeiro embriegado e fatal. Este porém é o tempo oportuno e certo para as primaveras privadas mesmo antes do Natal.


FALTA MAIS E MAIS CORPO PARA ESTAS TANTAS MÃOS Queria-me mais corpo, mais mãos, e não tenho bolsos para me enfiar. Calças e casacos são-me inúteis e tu dizes que vens vestida com os braços a sossobrarem aos recatos, perdidos no espaço público, no olhar invisível dos que censuram gestos desperdiçados, com a vergonha à perna, mesmo antes de desnuda que tanto te queres corpórea e plena muito tagarela ou muda.


Avançam os nossos corpos musicados num contraponto indiscreto, fuga gaiteira e confronto de partes — costas pernas ancas lábios nos dedos frases com métricas mancas consonantes dissonâncias de um querer sem eira nem beira. As nossas mãos, mais que as quatro e mais que a consciência que as guia, desembaraçam-se do embaraço no abraço.


Manipuláveis manipulando desagravos na doçura tactilíssima, em irregulares compassos, que demoram no não se fazerem rogadas ou escravas da ironia.

E agora, facilitados, longe das peças de roupa arremessada reparamos na feliz falta de mais e mais corpo para estas tantas tantas mãos.


OS BRAVOS BRAÇOS

Esbracejamentos, como quem encoraja ao equívoco. Insistes em não te pertenceres onde palpas o mundo. A mão é um compromisso que torna comuns as coisas e as ganas dos amantes pois a mão é a mais comuna das partes.


Não desenlacemos as mãos, não. Nenhum pensamento anda a empernar a sensação a mais, e não há comedimento, ansiedade ou prazo que abrevie esta confluência concreta.

Entre a mão e a boca não sabes se és predadora ou presa. Na conjugação assolapada dos corpos não se notam as denotações ou divisórias nem por onde andam os bravos braços a envolver ou a amotinar para mais desejo: se nas bandas que o pudor arreda ou nos arredores que arrepiam leves.


Desviantes sim — assimetrias a ajeitarem-se para parafrenália sumarenta. O teu corpo é o meu corpo na imperfeição liquída e na exaltação de consciências por polir, inocentes, indefesas, ligadas, abertas. Eu sou-te (diria o Álvaro) até no fragmentar-me qual bom ou mau poeta (o que é que interessa!) para o qualitativo culto —


oferenda musicada de corpos sem que haja pactos ou dividendos nos abraços que acolhem os respectivos peitos e fundem os horizontes e as distâncias na calmaria do acolhimento.

E o impuro corpo que já somos no coração babélico do Poema brusco busca mais metamorfoses.


MÁCULA MACACA

O como te quero é da côr que te devora.

Chego com a opacidade das tintas nas roupas, nos sapatos e nas mãos, com as sombras na minha vida a acolherem a barulheira da tua e o desejo de me ter teu, entalado nos tecidos, com a mácula macaca e a delicadesa inteiriça e eriçada.

Atravesso o rio e não há botes do Billy nem cacilheiros onde se possa sentir fora o cheiro a Tejo, rio babilónico dos bens e males presentes outra vez. Leio burguês o Louvor do Mário e sinto-me de terceira classe, pouco diário, com o azul do rio nas mãos e a gula escultural do Cesário.


É nossa essa sorte sem endeixas a acariciar as pedras da calçada mãos dadas em beijos de gueixas a encardir a palavra debotada. É nosso o sítio em que se assume o grumo e o gume da gaita a mancha torpe que dá lume e o crepe hindú, com raita. Com alegres lágrimas me desato: tu apalpas o meu mamilo escasso e sob a enxuta T-shirt sou um gato que precisa de ti como de espaço.


E a ensonar em lembranças de Sião pendurei a harpa no banquinho pus a tua nuca a sentir a minha mão e fiquei mais ébrio que de vinho.




CANTIGAS ENCICLOPÉDICAS

para nós, à cabra-cega com os tempos

Apanhei o lixo das palavras que soltaste. Fiz ligaduras para vocábulos feridos e deitei-me só, a sarar.

Não sei oferecer-te palavras solitárias porque vem tudo pespegado, colado com cuspinhos, e arranhado por desvarios.

Grávido de metáforas, dou-me conta de que até as encenações de citações são ready-mades de ready-mades — mas tu estás aí, ou aqui, impreparada e nada inframagra, apesar da mescla de oxímoros que condimenta a glória das aparências.


As coisas tão concretas ressurgem depois da efusiante festa dos paradoxos. O pão. A brisa. As rugas. O sexo. O beijo. A sesta. Por onde quer que ande com a fala seguem-me sombras sobras de metáforas. As palavras esquecem-me no fundo dos actos. Apanho autocarros, táxis, o metro e os barcos como metáforas em busca de enciclopédias enquanto tu finges que perdes as chaves do carro. Porque as metáforas são coisas que se apanham mesmo que gastemos tempo a esperá-las. Reinventam-se no spleen da espera em paragens apinhadas de palavras.


É tão simples deixar que elas entrem outra vez nas mentiras metonímicas, fresquinhas. Por isso se apressam as enciclopédias a chegar com o transito escorreito a rotundas perfeitas para reciclar os sentidos. Agora sim, quero dar-te mais do que palavras, tarde a dentro, cá comigo, solto mesmo que hoje não venhas logo agora que estou maroto.


Ligam-se as letras na sua irrequietude e inadequação azuis-escuras, em desalinho estudado, a escreverem-se como caligrafia àrabe, a anotar os diversos modos de chegar. Prometeste-me devolver palavras com o amante acaso, e eu não sei se faça caso. Vou ficar aqui a tecer frases em espera sincera. Mas porque te sei o amor confesso sei que chegará o que não te peço.


EROTISMO SEM VULGATA

Só pode ser una a lingua que linguareja e beija. Tudo o que te digo é uma não-não-relação involuntáriamente humida e espessa entre mim ti e o mundo cão real resto que resiste em escrita. Não há diferença entre escrever-te e amar-te e apetece-me mesmo ligar-te para dizer o que não está escrito nos beijos nem impresso nas expressões da voz… E dando-me não dando beijos estamos juntos estando sós.


À ESCUTA

...lá, onde arde a Rosa da complexidade.

Sem outra dádiva que a da escuta provava o orvalho da Rosa em tempo de Saturnais — a côr sabia a flor ácida espairecendo disseminando-se desentranhando a substância auricular da noz: melodia soerguendo-se mastigada das petalas a deflagrarem modos de estar no tempo.


UM CACHIMBO QUE NÃO É ISTO

ligo-te porque tens à perna a tua liga dura sem a dita dura

As imagens nunca são imagens quando se encostam às palavras — são a suspeita de uma demissão da distinção que vamos inspirando com as respectivas clemências. E respirável sabes da materna evidência: a ternura cura, e é uma busca eterna.


Podes enfrascar-te em terminologia e desentranhar diccionários dos armários mas só encontrarás o teu corpo noutros corpos na colisão entre dobras de tecidos ou pele a pele. É custoso adiar o que nos define e o texto que procuras e os subtextos são as texturas que se roçam ou acariciam ao longo dos corpos. As palavras são larvas. Entram-nos na carne para estimular coceiras. Aninham-se, a instigarem à existência, no ânus na boca na flora intestinal na pele no pensamento.


Queres livrar-te delas ou incandescer pura com palavras vermifugadas, perfumadas? Vem, vem com a tua lingua poética resgatar as palavras aos seus pruridos graves.

Para te dizeres com palavras tens que criar a tua arca diccionária, sugá-las pelos ouvidos e expeli-la pelos poros pelo sexo, como partos invisíveis. Desconfiarás dos sentidos correntes e perderás a fé nas definições. Farás amor como abstinência verbal, porque o verbo humilíssimo se fez carne, descartou eufemismos, bombou-se em desmesura de afectos.


As palavras voltarão entre lençois ou folhagens e tentarão reinstalar os seus modos reaccionários e quererão integrar-te no caldo viperino da vida tal qual. Esverdecer a entrar na mentira da maçã? Calendas para a morte excitar na romã ? Não é isso que queres. Tenebra de rosa, a linguagem que levarás contigo, será escura e lúbrica. Não é para todos pois lhes parecerá confusa e espinhosa, mas tu sabes que é indistinta da tua miuda anatomia sejas orquidea ou rosa. Quem diria?


Ah! É o bramido do búzio a desposar o aroma de cachimbo que no fundo não é cachimbo mas fumo a sugerir aos gagos jogos de linguagem, num humor que é himen e iman e aragem. E no quarto, manhã dentro, prosseguimos esse ócio fecundo, de quem refaz as palavras lentamente, lá no fundo.


ANALFABETO

De tanto o desenhar tornei-me quase analfabeto, como quem não escreve, como quem se oralisou, mas emudeceu, e se descartou de artes poéticas e do seu eu. Lirismo ao léu, crú, insone, depois de todo o amor e dos cabelos de rastos, das esconças citações, dos aluviões de nada: ruinas de coisas roídas, desarrumo de erros e vontade de ao te amar te ver amada.


Aqui tudo instiga à ligadura à letra que se amarra a outra letra e se conjuga como numa só, aurifera, fina, feita para livro cuidado, supérflua, ornato incandescente, coisa mordente e inusitada. (interludio para a bicharada, cinico conforto onde a gente se anicha e muita coisa se cochicha) O desperdício abreviado em glifos a trepanação feita imagem, a entrar nos miolos a querer ser desfeita, triturada, para pasta que te temperará o corpo com ervas frescas.


É a letra que alitera o que é literal, a sonoridade brejeira a abreviar a cauda dos factos, o ar desgrenhado, o rosto exausto, a teima insaciável, os actos imundos, a dobra que desdobra o drama em vários actos, o que te habitará para mais fausto fecundo.


Alisamos então a cama, sacudimos a vida, consideramos o pormenor, o patusco, a mosca morta, o lusco fusco, o frio que aguarda, o calor do chá o que nem sequer está lá. São palavras ainda por aprender letras que precisam de apanhar sol e ficarem escuras, bronzeadas, saudáveis, nas tintas para o colestrol. Deixo tudo para trás, entre o desarrumo e a ordem minima de quem não quer regressar depois para um caos caseiro.


Eis a cama onde apetece mergulhar novamente como um verso entreaberto, inacabado em busca de rima robusta e bem temperada.


Há que regatear pelo irrepetível, pela excepção inadiável, a querer mais em sitio a acertar. Deitemo-nos os dois a rodar na rotunda das ligaduras e demos aso a gestos que desatem os anseios amealhados e os encardidos fados que o coração precisa, olá se precisa, desta erupção.


FACTURAS (sem curadoria)


1 A pintura poetava. Não era poesia muda, mas tagarelice desavinda. Palavras apinhando-se ao lado, sobrepondo-se a outras, engolindo frases inteiras com arestas quebradiças. Amareladamente malandros eram esses poemas postiços pintalgados. “Há sempre algo em falta relativamente a si mesmo”, dizia a ansiedade da pintura a enxovalhar o poeta fingido.


Tentava copiar, com atento pincel, o teu estilo. O papel empapava as falsas vacilações da mão falha. O teu estilo fazia-se a minha força. Roçava-te em paródia subliminar para te saber pelas letras o que te vai no corpo desalmado. Literalidade sim, mas ao lado, e com uma sebe a delimitar o jardim pandémico, com as tais ironias paradisíacas.


O poema comia a pintura que comia o poema. Ambos sabiam que nasciam dos dois lados da cegueira: a cegueira ritmica de Homero e a cegueira que vislumbra de Tirésias. Tirésias pervertia bissexuadamente as imagens do presente, e asseverava que não era importante a competição sexual. “Não há não-relação sexual, porque o desfrute do gozo do outro chega constante na empatia. Mas se tiras a empatia não há mais do que descargas”.


A pintura não tem negativo, mas aprimora-se em palimpsestos. A côr é montanhosa, feita de oclusões, que não limam mas tornam espesso. A poesia descozia-se das limas. Atirava a pedra pomes para o charco. Via-se livre da melancolia imposta pela malandra da posteridade. A musa barrava coisas achocolatadas nas torradas.


2 Houve um tempo em que tudo na poesia saía da boca. Tu trazias os sons portáteis do teu corpo e ritmavas com eles as nossas vidas. Não era preciso haver letras ou escrita, e as palavras jorravam com a violência da voz. Só as orelhas as apanhavam. Depois ficavam a marinar nas memórias de cada.


O som é a parte nocturna da poesia. É isso que a humedece. Quando a poesia se fecha ou se enrola no livro é como um animal que hiberna e diz coisas em estado sonambulo que lhe são ditadas pelos mortos ou pelos inexistentes deuses. Quando tu escreves procuras a melodia, ou seu reverso, o baixo absoluto que lhe sustenta uma hipotética harmonia?


É o som do riso que inverte a catacrése. O não é uma prega que interioriza o sim (e o não-ser é sempre uma prega do ser) que torna tudo mais abstracto e desencarnado. O riso é uma ruga no não, e o seu som estende as imagens e devolve os corpos com os seus fluídos, esbracejamentos e movimentos das articulações.

Por isso o riso vem nocturno para devolver o dia claro. E eu dou-me conta da tua mão a utilizar o meu corpo como um instrumento musical.


3 A tradução era premeditadamente imperfeita. Não revelava aquilo a que os poemas se destinavam. “Nenhum poema se destina a ser traduzido, mas quer ser amado no equívoco das suas possibilidades mais salientes”, confessava o Pateta à Minie.


Andava com o dicionário pesado agarrado contra o peito. Pesavalhe o sentido das coisas porque lhe condicionava o sentir. No entanto tinha o diccionário como referência das balizas do sentido, com a escassez apropriada. Também tinha sensações avant la lettre, pré-históricas, ou mesmo muito antes do que quer que fosse.


Na tradução da pintura no poema, a cor buscava uma precisão cómica — “côr de casca-de-banana, cor de pele lívida, cor de brasa”. O que a pintura poetava não era o tema, fulcral, que se fazia subjacente, mas o magma reptilineo, com emoções crepitantes, estelares. “Traduz-se o quê no quê”? Crucitava o corvo no corpo curvo da bem amada, vivaça, a traduzir um pitéu em poemês.


4 Por vezes as letras que me imprimem irritam-me. Não sei como gostas das páginas nem se te queres legível, malgrado o teu humor, tão inocente como feroz.


Eu sei que sabes que a vocação dos livros não é a de condensarem o mundo, num duelo que o absorve e o absorve. Tu julgas (olá se julgas!) que os livros são extravagantes multiplicações de livros, e do amor, ou magia (tanto faz?) que parecem conter.


Os livros são atravessados pelo mundo, e o mundo, caso haja leitores, é atravessado pelos livros, como filtros que o dilatam e ampliam o riso demiurgico que dilui as coisas. Tudo isto se condensa na caligrafia e na tipografia, porque a voz ficou perdida num sítio qualquer. No meu quarto? Ou no teu?


5 Tratava-se de dar vulto, em carne e o osso, ao poema que fingiamos partilhar (ainda que superficialmente acreditássemos nisso). Faltavam as restantes estações, como era natural. Experimentamos posições, torções, retroflexões, invertidas. Ficamos pendurado no avesso. Estamos ambos empinados?


O poema anteflectiu, dobrando-se sobre si próprio, intimista, ensimesmado. Os sorrisos aterravam nesse recolhimento, desmascarando o lirismo soalheiro. “Porreiro pá! Ele são cloacas de luz! Iluminações brejeiras! Sabedorias de plasticina!”


E demandou, com o musculo distendido a fintar mÊtricas: — E esteve sempre aí, a tua natureza ressurrecta?



RECADO

e a face do poeta sossobrava sobre as Ă guas sem demiurgia a que se agarrar senĂŁo a ti


este livro foi paginado no dia 24 de Maio de 2017 em caracteres secretariado (do autor do livro) beijinhos para vรณs รณ amรกveis leitores!


Leio burguês o Louvor do Mário e sinto-me de terceira classe, pouco diário, com o azul do rio nas mãos e a gula escultural do Cesário.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.