O RISO DOS OUTROS (notas de rodapé)

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© Wafbooks 2018 © Pedro Proença 2018


n o t a s . d e . r o d a p é . à . e x p o

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ste Catálogo on-line complementa o livro que lhe é afim e que foi concebido e editado antes da exposição estar concluída — aqui reunem-se textos que foram escritos durante a execução das obras, assim como notas que o autor acrescentou de improviso.


s i ç ã o . o . r i s o . d o s . o u t r o s P O L I O N Í M I A S

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riso do homem vem de um roubo antiquíssimo, um roubo que antecede o do fogo. O homem imitava as hienas. Roubava cadáveres abandonados. Aprendeu a devorar o cérebro e o tutano. Parodiou o riso das hienas, que é uma expressão (nestes animais) da ansiedade. Foi da paródia da ansiedade alheia e da astúcia que nasceu esta sensação de júbilo. Engenho e paródia levaram-no para além da sobrevivência.

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m jovem li em Pessoa o que seria a frase exemplar de Homero — o riso inúmero das ondas. É um tema homérico que contém o programa pessoano: a clareza da metáfora, a multiplicidade sem freio, e a alegria visual que as imagens causam. a origem do mundo Homero põe o Oceano, deus circular e recirculante, pai de todos os seres. Ao príncipio era a ondulação. Ao príncipio era o riso. O riso do mar cor de vinho.

ão sei se os animais imaginam. Não sei se amam. Sei que o afecto lhes cai bem. Quando é que o homem começou a pensar e a inventar mais mundo que o mundo? Quando é que quis extender dentro do mundo, essa mania de pôr o que nunca fora? Quando é que se expandiu em obra? Desde que faz obra que a obra o persegue como um fantasma, um duplo, que irá continuar a vaguear.


uando o homem passou de recolector de cadáveres, que é Q uma extensão do colector de frutos, a um caçador dotado de armas, a morte das presas deixou de estar na ponta das

unhas para se encontrar nas formas aguçadas e penetrantes das armas. Deu-se uma propensão para a extensão do corpo. As armas tornaram-se indissociáveis da identidade. A inscrição, que é mais do que o dar conta da presença territorial, é-lhe algo correspondente. Foi preciso a escrita dissociar-se da comunidade. Com a democratização do alfabeto o sujeito fica frente aos seus arrepios e a confundir muitas vezes o pensamento com signos (hieroglifos, letras). As estátuas desnudam-se e avançam. Arquíloco, o mercenário, confessa que mais vale que um inimigo use o seu escudo, desde que ele se mantenha vivo. Safo introduz inúmeros matizes do Eros, e a necessidade de dizer-se contra todos os constrangímentos. O sujeito inventa-se para lá do indivíduo. Lírico, mesmo que seja contra a poesia, foi Heraclito, o que exaltou oracularmente a impermanência. Líricos são os que são assomados pela alteridade — outros caminhos, outras caçadas, outros dons que não os comuns. Lírico é o que pode crescer para além das necessidades da comunidade. Grande parte desse crescimento é para dentro. A comunidade irá beber nas suas margens. Tantas vezes equivocadamente. Pois não sabe como se lhe entra. Só os líricos desfrutam dos outros líricos.

o tempo de Sócrates o sujeito estava longe de ser conN solidado. Os daimons, os deuses, possuiam os homens. Socrates reclamara-se dotado de um daimon pessoal, uma forma lírica de possessão. Apuleio, sete séculos depois, será acusado de identica perversão e discorrerá sobre este deus.

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tragédia começa por introduzir, em Ésquilo, mais vozes que a do actor e do coro, mas só em Eurípedes (e por isso ele é tão críticado) é que a subjectividade lírica se entranha na tragédia. Perde-se a eficácia do mito, do conto, mas ganha-se aquilo que hoje chamamos humano, em que a psicologia surge e os deuses vão desaparecendo. Eurípedes era pintor — e tem o defeito “estático” da escrita de artista. Este processo de psicologização e de humanização atinge o seu apogeu e explendor nos personagens de Shakespeare.

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teatro é heteronomia e pluralidade do sujeito condensada no espaço de uma peça — o autor não “é” as personagens (ou é, e finge distanciar-se), mas pede-nos que nos projectemos nelas, que nos heteronomizemos por momentos.

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romance começou por ser várias vozes (a sutura, a paródia), a exercitação sofística de vários estilos. O romancista é um imitador de vozes — uma prática xamânica, como o imitar (ou falar com) animais. O romance é hipnótico. Vemos letras ou sugestões de coisas? Chegamos alguma vez a ver coisas? Somos conduzidos por uma voz? É a grande diferença com o cinema. Nada no romanesco é concreto, e o concreto decepciona. Somos arrastados pela magia de palavras emudecidas.


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e estivermos bem atentos entendemos que o krypthestai é o oposto da physis, que é emergência, crescimento, jorrar. Foi preciso chegar a Espinosa para encontrar a transcrição da physis numa teoria (ética) du sujeito. A Alegria, o júbilo, a lætitia, é o correspondente ao que os gregos chamavam natura. Podemos deduzir assim que o natural no homem é a alegria, e a transmissão da alegria1 ( a tristesa ou é um contramovimento, ou uma prega civilizacional que introjecta a “seriedade”)

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as a subjectividade, a interiorização, é uma forma de ocultação, de dissimulação, uma prega na superfície, uma experiência da tristeza, uma katabase, uma incursão ao mundo subterrâneo dos mortos. A alegria subjectivada seria assim um crescendo que se inflama como uma bolha no interior e que se expande muito para fora.

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o sec. XIX a pseudonímia instala-se em grande na escrita e no pensamento. Stendhal, aliás Henri-Marie Beyle, abusava desta propensão comediante. Stirner chamavase Johann Kaspar Schmidt. Kierkgaard publicou obras suas sob vários pseudónimos, como Victor Ermita e escreve sobre isso, dizendo expressamente que a sua pseudonomia é uma polionomia. Auto-comédia? Prazer na dissimulação? Propensão para a multiplicidade?

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último Nietszche, sobretudo em Para Além do Bem e do Mal, toca no mesmo ponto e fala expressamente na pluralidade do sujeito. Esta pluralidade é uma arte dramática, e isso resulta também da projectividade em que se enreda romanescamente ou teatralmento o leitor, e do que diverge espontaneimente dessa projectividade. No fundo, quer o teatro, quer o romance já o faziam expressamente ao apresentarem e estilizarem os modos, feitos, linguagens e razões dos personagens e figuras. Bakhtine falará mais tarde de dialogismo2, de algo de dentro dos textos que abre, nos interpela para lá das interpretações e intenções, levando-nos para um espaço a que chama carnavalesco (na senda de uma tradição a que chama menipeia). O desvio interessante operado pelos pseudonomistas do pensamento oitocentistas é que eles se tornam eles mesmo personagens literários perspectivados. Não há autor que resista às razões (tantas vezes caprichosas) das suas máscaras. Nietszche também acre



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ierre Delelande faz aqui uma dupla homenagem faos dadaístas alemães Kurt Schwitters e Johannes Baaer, muma peça chamada Autobiografia Csanalha. A linguagem geométrica, concisa e clínica de Delalande éatravessada por montagens, sobreposições, variações, justaposições, em que invoca fragmentos de sentidos para chegar a um sentidopessaol, sempre transitório. Baader foi um dos mais loucos e radicais rntre os dadaístas. Algums montagens de textos, saturadas e caóticas, com uma profusão de letras, constituiramuma autobiografia perdida. Baader julgava-se Cristo. Um dia fou para um congresso de gente que se julgava Cristo, de páraquedas. Schwitters, pelo contrário, era um homem sensato, um artista notável, um criador de tipografia e um escrito muito experimental e versátil, autor do famoso poema Anna Blume, e do Úrsonate, em vários andamentos, a mais célebre obra de poesdia sonora.

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estas colagens informáticas Delalande mistura toda uma tradição neo-dadaísta, como cartazes do grupo Fluxos, obras de Kosuth, de Poesia Concret, de Bárbara Kruger e On Kawara, com tipograias suas, imageans de livros quinhentistas, etc. Delalande reinventa-se no meio do lixo dessa tradição, vindo re-dadaizar o que se foi tornando demasiado sério e respeitável. Diríamos que esta série é bonita. Não há que ter medo da beleza, nem do lado infantil e heraclitiano — o acaso é o grande gerador de sentido e experiências.


Elegemos os nossos percursores baseados em preconceitos — a minha linhagem é o lalandismo, e provávelmente, nenhum dos lalandas assinalados foi meu antepassado. É Nabokov, em três curtos fragmentos, que me justifica, lançando clareza sobre si, e, acidentalmente, sobre mim, mesmo antes de eu ter nascido. Os Lalandes sempre escreveram o nome de várias maneiras. É um nome que se articula e desarticula: de-la-lande. Está cheio de artigos, e é quase um políndromo silábico (e como tal um nome barroco). Se Je est un Autre, qualquer autobiografia é heterobiográfica. A outra história do mundo torna-se a minha história (como em Llansol).

(Pierre Delalande)





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m postal de On Kawara, um diagrama de Duchamp. Um poema visual de não sei quem. Um conjunto de cartazes do Fluxos sobreimpressos. A tipografia surge como heroína — uma espéviede prazer guloso, semeada de remeniscências. A citação aqui não procura manipular sentidos ou predispor a interpretações, ms a fazer fervilhar os signos. Nem sequer há significante flutuante — há só o acasalamente de anamnéses. Estamos como as crianças perante as letras, intrigantes despojos de épocas heroicas, ou de projectos a que somos alheios. On Kawara, o homem que trabalha sobre as datas, sobre os milhões de anos, é convocado aqui como algo perdido no tempo — uma data: 1970. Um sítio, Nova Iorque. O que é que o passado quer fazer connosco. Serão estas obras locis de reencontro? Múrmurios de fundo que nos constroem como simples radiação?


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hat is his memorable painting? Para Delalande, a construção de sua identidade é uma anamnése que se faz a partir da canibalização de vários autores. Delalande retrocede a Pitágoras, uma reencarnação de Hermes. O que é memorável é o que nos constrói, diz ele. Depois temos que seguir as pintas dos calembours e das coincidências, como em Raymond Hains, ou nos textos de Rrose Selvy, ou ainda nas contruções a partir de homofonias, como o Raymond Roussel.

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elalande, pesem embora outros interesses, traí as suas origens francesas. O preciosismo, o gosto pelo sec. XVIII, os jeuxde-mots e os dits d’esprit. Delalande aparece aqui como um apostolo da leveza. Tudo é impermanente, como dizem os budistas, mas Delalande faz da impermanência a possibilidade de uma vida leve e sofísticada — cuida do seu jardim, e nele há muitas plantas exóticas — e o humor de um discreto, muito parecido com Erick Satie.




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á que desconfiar da leveza e da doçura. Resvalam, sem que nos demos conta para o terror, isto é, para o sublime. Edmund Burke dá-se conta disto nos anos 50 do sec. XVIII. O seu tratado sobre o sublime é escrito um ano depois do terramoto de 1755. Na beleza da natureza o terror pode surgir subitamente, e isso é uma propensão natural. Também a revolução pode surgir em sociedades que cultivam o idílico, e o açucarado. Diriamos que a sociedade anterior à revolução francesa era mentalmente diabética.


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elalnde sabe que toda a abstracção busca condensar as forças do sublime, e que o projecto moderno é o da reorganização do sublime na tecnologia e na abstracção., isto é, o controlo tecnológico do terror. Estas obrs, remeniscentes das tetralogias de Baldessari são próximas, temáticmente, ds questões que Ian Hamilton Finlay coloca nos seus jardins, mas numa perspectiva adbersa, anti-neoclássica. Aqui mostra imagens do Jardim Botânico de Lisboa para designar o exótico e o sublime. Os textos são de Burke. As grelhas podiam ser remeniscentespálidas dos circuitoa de Peter Halley. Mas Delalande cria quebras, hipóteses de evasão das grelhas decirculação. O outro sipo de abstracção é “explicadista” — trata de enunciar as forças que agitam os ímpetos teóricos. Há um mcarácter perigoso e lúdico nas explicações. O que é que podemos fazer?


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edro Proença estende as suas estruturas decorativas que derivam em boa parte da tradicção Greco-romana, da pintura dos interiores das villas, das miniaturas moçárabes e d tradição pictórica abstraccionista em grande escala. Desta última podemos falar do Sublime Americano, uma tradicção que também o é poética.

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experiência do sublime, é já subjacente à Íliada e à tragédia Grega, mas falta-lhe o nome. Fala-se de hybris e é disso que setrata. É a retórica que irá semear este termo em vários tratados como o do Pseudo-Longino, no sec. I. Esta experiência é depois metamorfoseada na teologia cristã pela Teologia Negativa do Pseudo-Díonisio, que nada mais é do que uma solução para a inadequação da linguagem, e por extensão das imagens, do desmesurado e terrível — o deus do Antigo Testamento. Por fim, a partir do final do sec. XVI, o infinito vai penetrando o discurso ciêntifico e não só até nos encontrarmos nos séculos serguintes com uma estética do sublime cujo apogeu é a Crítica da Faculdade de Julgar de Kant. Foi em torno de um problema de léxico que entre o pintor Barnett Newman e o Historiador, especialista em iconologia renascentista, Erwin Panofsky que se gerou uma polémica em torno do vocábulo romano sublimis.

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sta obra alude apenas a esse debate introduzindo notas iconológicas e cordas no que é uma estrtura relativamente simples. O continuo da grande corda horizontal, como se fora o fluir do tempo encontra uma resposta nos 4 paineis onde as cordas capricham e enredam manuscritos, assim como nas barras vermelhas que ritmam a peça. Um bom número de imagens simbólicas alúdem aos mitos maiores do ocidente — o episódio da Queda no Paraíso e Édipo, aqui com uma bengala Mamuda, que traduz as suas filhas na tragédia Édipo em Collona.





A

Odisseia é dominada por dois deuses, Hermes e Apolo. Deuses cúmplices quer nas imagens quer na música. Proença acredita mais nesta polaridade entre o firme e o transitório, entre o Riso de Hermes e a Seriedade de Apolo, do que na dicotomia apolinio-dionisíaco de Nietszche.

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Riso de Hermes, e a sua sexualidade explícita é também a sua outra face, a Melancoloia, assim como a Seriedade de Apolo é ora Terríbilidade ora Serenidade.


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atálogos de formas — uma espécie de gramática do visual, pura combinatória é ladeada por um Ourubouros, fugura alquímica aqui irónicamente cristianizada, num novo paradoxo que une a cruz e a roda na mesma figura.


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espaço é defenido por Aristóteles como um vaso, um cântaro. Heidegger elegirá o cânraro como exemplificação do Quadripartido, e como o que é a Coisa. Aqui a Coisa é nómadica. É a serpente da transformação que a arrasta.-

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ma folha triângular apresente motivos rocaille. Fulguração do puro ornamento, tal como o encontaremos em grande expansão na obra de Proença mais adianye.


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Adon, p Senhor, segura na Cobra, na Obra, enquanto Inanna, a deusa Suméria do Amor e da Guerra surge como uma espécie de Eva, de deusa primordial. Proença mistura os mitos, ou antes, alude ao mito de Inanna e Dumuzi, em que este amante será por fim sacrificado.







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stas são um conjunto de telas que canibalizam a Bíblia. É a entra de Jonh Rindpest nesta Exposição. Há algo de kabalístico e midráshico. Rindpest é acima de tudo um encenador de textos e alguém que se transformandop, dissimulando, escarafunchando, dizendo e desdizendo. Em Rindpest nada é o que parece.

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esta sua tradução a partir da Bíblia de Ferrara é a visão do excesso que tenta captar — visão de Daniel. Ou o estremecer. A minha forma voltou-se a mim por danação e não retive força. É o que diz o texto.

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m Rindpest são as forças e contraforças que abrem a visão do texto e o Kavod, a Doxa, a pura manifestação das presenças.



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óniantónia e Sandralexandra foram um duo, um dueto que o deixou de o ser. Artistas musicais que cantavam quase num só estilo em obras literárias diversas, das quais a primeira foi Orquideias atópicas.

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óniantónia foi abalada pela separação, e durante esse processo ressentiu-se numa críse mística em que surgiram algumas destas obras. Citaremos em itálico as reflexões da sua lavra. Quero livrar-me do teu estilo. Eu sei que me vou livrar do “nosso” estilo, mas vai demorar tempo até que o excesso de dor o possibilite. Deverei ir pelo caminho enfático e barroco, ou pelo estilo mitigado, seco, das carnes da velhice? Será o estado do meu corpo que ditará o meu estilo. Quero ser mais antiga que tu, semear meus canteiros com um prazer há muito adormecido — um outrora cheio de galhos que siga o exemplo da passarada inadequada — o latim providêncial que inicia nos ritos e ritmos do amor.


Houve um tempo em que podia contar a nossa história, as nossas insuficiências, as zaragatas, os gestos. Sabia dizer com exactidão o que tinhas na gaveta, os remédios, os ganchos, o fio dental, os colares e bizarros amuletos. Decorava os teus versos. Provava-te o sabor a vodka com o meu sabor a vinho. Apreciava a tua tenacidade, quando eras tu que me julgavas tenaz. Projectavas em mim as tuas seguranças e as tuas inseguranças. Pedias-me o tempo que não tinhas e que ninguém tem. Refugiavas-te nas tuas dores com tez enigmática. Encontravas consolo na escrita (um consolo pouco). Escrevias-me cartas que não enviavas. Ou antes, enviavas-me muito depois como ficções, pondo-me no papel de leitora ingrata, voyeurista das nossas desavenças. Criaste uma espécie de guerra inexistente. Eu sentia que me escrevias para a posteridade. Eu era o teu pretexto para encenares e pensares o teu amor, feito de labor artistico e intelectual. Também eu sofria ou gozava. O teu prazer era sacudires-te para a tua prosa variada, sob o pretexto do teu amor por mim ser uma tipologia, um exame do amor — não exactamente o amor em si, mas o amor comme si comme ça. Não me reconheço no que me escreveste, mas reconheço-te o colo e a vontade de outros colos. O meu caso, tão duradouro, tão feito de acertos e desacertos acabou por ser a decepção de não viajares, de me quereres para além de mim, de quereres mais do que podes vir a ter. Vontade de demasias, de pluralidades, de evasões. Querias coagular o ruidoso, e tiveste a tua oportunidade. Por vezes achavas que eu tinha sabor a demiurga. Outras vezes querias-me como mais uma do rebanho, pronta a seguir-te e a ser degolada.




Fomos um só ser até certa altura. Um só ser bicéfalo que começou a torcer-se a rasgar-se, a ficar em fiapos. Os meus impulsos devastadores e as prudências brejeiras dela amanhavam essa dilaceração. Era eu quem fazia avançar, mas era ela que era a obscura, a repentina, com segredos, clandestina. Nessas perversas cautelas Sandra urdiu o meu inconsciênte — silêncios cheios de marcas de eventuais violências ou rituais ocultos. Foi uma àrea de que não quieria saber. Para mim tudo é pratos limpos. Mesmo deus é de uma absoluta limpeza e exactidão. Se o visse por espelhos obscuros usaria de imediato detergentes para aliviar os espelhos do encardido. O divino é feito de brilho e é um permanente face a face. Assim o eramos as duas. Beijo a beijo.


Acordei com uma moeda do inferno sob o travesseiro. Era de ferro, com a efĂ­gie do diabo e uns algarismos incompreensĂ­veis. NĂŁo sei o que sonhei. Talvez Sandra me a tenha enviado dos seus sonhos, ou de uma discoteca cretense.



Não sei o que fazer com estes fragmentos-ferimentos vindos da boca do Minotauro. Não sei o que fazer com a minha mania dos deuses. Sou uma (des-)iniciada por imagens e é o que sei trasladar em sobressaltos de escrita. Entram-me e condensam-se, clavícula a clavícula, essas imagens. E os deuses nascem e morrem como imagens. O Minotauro vem em miniaturas desarrumadas, a babar-se, rodeado de caracóis. E arremete contra o íntimo. É o lastro iniciático de um mundo escuro, depois de maduro, a pingar do galho. Agora rapo o tacho com os dedos, e lambusada vou chupando o sabor sobrado, o amargo dos ossos do passado.



Alcoforado. Heloísa. Perséfona. O cordão umbilical é o fio de Ariadne. A nudez de Atena, de Artémis, das Koré, a nudez das virgens, das grandes mães, com as suas “harpas de sombra”, com a loucura no corpo que bate longamente nas cabeças filiais, fálicas. Prefiro dizer o que não sei, o que nem saberei, mas não me deixarei de dizer. Atena é Antónia, o atónito antónimo do outro amor. Ariadne é a serpente que dança no Labirinto e que devora os ratos de Apolo (ratos que são leões em miniatura), deus tão entornado no sacrifício e nos oráculos. No fundo da Sombra, dos hinos à Noite (á Negra) com deusas de peplos de açafrão, onde a doçura assoma e devora, onde somos crianças a tremeluzir ante a insaciedade da Morte. Há que despir da Arte todos os conceitos, aparatos, cínismos. Há que despir a Arte da Arte. Estamos diante de coisas mais sérias e terríficas. Ou mais alegres (a evidência Luísa Neto Jorge). Antes do Fundo — na zona da garganta onde vibram as cordas da voz, semelhante à da lira, à do arco, à do trípode, pitonisa, Diótima (ó Socrates, ó Holderlin!) — parir (a fecundidade), Fremo. Fremem os sólidos pitagóricos. Fremem as figuras fálicas, os deuses piramidais — como dizia Juana Inés de la Cruz — “piramidal, funesta/ da terra nascida sombra, ao Céu encaminhava de vãos obeliscos a ponta altiva”. Casas de Lezama Lima, Picasso, Emilio Villa. Os paramentos.


A

lira parodia a voz. A pitonisa ressuscita na grande Serpente morta por Apolo — não há dom de adivinhar, de entender/estender a teia do tempo no texto-desenho-objecto, se não te fizeres serpente — transexuando, Teresa-Tirésias (Apolinaire), largando a pele (e a primavera é o tempo da mudança de pele, deixando os ofídeos nervosos). A Koré-Mater. Perséfona/ Deméter. A bubó. O papel de mitologista delirante, de logologista fabricadora de mitos.


Eu encontro-me com Borges e Abelardo (e S.Paulo e Bloy e Heloísa) na minha peça a partir do Videt nunc per sepculum et in ænigma — e teria agradado a Marcel Duchamp. S. Bernardo de Clairevaux cita-o assim: nihil videt per speculum et in aenigmate, sed facie ad faciem omnia intuetur. Nada vemos por espelhos e em enigma, estamos face a face, ele observou. A peça deveria ser completada pelo Credum quia absurdum — cancro da fé, ou alicerce do divino? Eis-me numa posição barroca, não no enigma nem fora dele, mas entre o enigma e o não-haver enigma, entre o agora, em que não vemos a face, e o futuro em que veremos a face. Come se sabe, o tempo “inacabado” das línguas semíticas não admitiria esta tensão do tunc e do nunc. S. Paulo teve que escrevê-la em grego fintando a língua do Messias. Abelardo é mais fiel que S. Paulo ao tempo. O enigma — coisa escura? Ouvimos em parábola, recitamos a incompreensão, ficamos baralhadas — entorna-se o fosco ou é tudo compreensível? Há que interrogar? A interrogação é um desvio à animalidade e à veracidade? A interrogação pelo mestre é já a malicia do poder, e o tortuoso engano.


Andamos, há muito tempo, a tropeçar nos prestígios do mal e da transgressão. A arte é feita com e para os amorosos. Estafou-se dos seus escabeches, das suas querelas, de ser contra os outros, ou contra os seus criadores. A arte está farta de ser uma recusa engalfinhada em paradoxos, na mania da auto-destruição e nos ressentimentos endémicos. É chato dizê-lo, mas o ponto de vista machista apoia-se nessa recusa e numa apologética guerreira e destrutiva, vulgo tanático. Pelo contrário, a doçura a sensualidade. a amizade e a fragilidade são-nos caras. Estão no lado oposto ao da violência, e ao do culto, com caracter impressivo, da criminalidade e do suicidio — “agressão, provocação, subversão”, são valores que Herberto Hélder enalteceu e que são idiotas. E é dessa tradição que somos distantes, pois leva-nos não só à amargura, como ao ascetismo e exclusão.




A minha crise “mística” de 2014 foi mais uma experimentação literária. Escrevi as Trevas Vinhateiras e adiantei um pouco mais desse livro que é os Bordados Revolucionários — tudo soluços com algo de inconsequente. Li muita escolástica (os livro já muito antigos do Étienne Gilson, Vincent Spade e os um pouco mais recentes do Alain de Libéra). Traduzi o Dies Irae, a 7ª visão da Hildegarda Von Bingen e o tratado do Fredegisus de Tours. Devorei literatura gnóstica, regressando a Borges e a Bloom. Busquei as deusas antigas, mas desviando-me da literatura new age. Tentei redigir os evangelhos anulares e os evangelhos histriões a partir do conto Os Teólogos de Borges. Senti-me frustrada. Dou um exemplo: “Enquanto os homens não se fizerem varoas não entrarão no Reino. A entrada no Reino é a mesma que deu Deus ao mundo. Re-entrareis pois no ventre da Virgem. Desfrutareis desse corpo magno, o mais sagrado dos corpos. Quando combates o desejo é como arredares Deus do seu Corpo. Desejar sem agir semeia o mal do desejo incumprido, que passo a passo se torna o grande mal cumpridor. A minha oração é masturbação em silêncio. Os detalhes do corpo são inseparáveis da acção do Logos. A Dama de Amor Excelso tanto recebe na Carne YHVH, como Yeshua, como o Sopro Sagrado ou a Virgem Maria. O meu ardor é riso, fremência de santidade. As gargalhadas de Deus expandem o mundo. O demoniaco é desencarnação, ressentimento, desejo incumprido, ódio, antipatia, etc.”



Frases virais, contagiosas, que entram nas vidas, as revolvem, etc. A escrita é doença, veneno e cura. Se, Sandra, não te respondi (ou imagináriamente te respondi, ou as cartas foram outras, sem estilo e amargas), foi porque temi o pretexto, a armadilha da solicitação, o infindo diálogo sem consequências. Agora que já passou tanto tempo, podes escrever-me as respostas (contradita-te, por favor!) ao que não me enviando me enviaste à posteriori, nesse teu livro maciço que agora vais publicar. Podes ser a autora das minhas cartas apócrifas e falsas, ecos tardios de ti mesma. Mas se o fizeres, pinta-me melhor do que o que fui, faz-me doce e soberba. Se te sobrar tempo, nostalgia, ou saudade em forma romanesca, respondete como sendo o que agora me vais imaginando, e fingindo-me talvez me sejas melhor do que o que fui, ampliando-me como leitora numa consciência do que poderá ter sido, que a minha memória já me trai tanto, de fraca, de desleixada deformadora. Logo eu que só te queria o melhor dos melhores, nada mais do que esse excesso luminoso, sem decepção, sem tempo, indestrutível, inalienável, mas que foi ao fundo. Sei que desse naufrágio tenho que construir uma nova barca e continuar a travessia da alegria.

A

pesar da separação as duas artistas foram convidadas a fazer uma série de obras em conjunto que resultou nestas imagens do Não Já Perpétuamente Pop — colagens digitais semeadas de referencias pop, frases sobre o Amor e alusões ao mundo grego.






A paixão era e é o meu programa. Programa infecundo para quem se aninha nos pecadilhos das metamorfoses. Esta prosa não sei se é acme, mas não te consigo amar sem arte, por mais indefenida que esta seja, com as suas duas sílabas manhosas e a sua história cheia de orquídeas e percevejos. Bem me podem pedir para a defenir entre réplicas de actividades bastardas, a irem à feira de Basel, e a perorar em língua de pau na Artforum ou na Parkett. Mas se arte já me era epístola, poema, fragilidade, dilaceração, hoje tu fazes parte do eros duma arte maior, que é nosso, e de todos por extensão. Conceito? Decoração? Negócio? Talvez! Mas acima de tudo paixão.


Esta foi uma primavera invernal, e não houve nenhuma midwinter spring que cruelmente nos aconchegasse antes das crudelíssimas abriladas — não sei quando é que o verão nos vai desnudar. Os cordeiros devoram as plantas do mal, e enquanto as mascam estas parece que guincham a implorar compaixão. Entramos num junho frio e tenho finalmente tempo para pôr os teus poemas em dia na minha arte. Os teus poleiros do verso (que são poleiros da arte), as tuas meias para os cornos do Minotauro que lá terei que tricotar (logo eu que mal sei fazer tricô) hão-de fazer-se vetustas esculturas em delírios de tia conceptual.




Estou interessada em coisas que se parecem mas que se pensarmos bem são completamente diferentes Interessa-me a experiência do parecido, do ligeiro deslize, e confesso que não sei se sou artista se alguém que se parece com artista que faz algo parecido com arte Sou uma escrevedora de cartas que não envio, que não são carimbadas e que podem ser lidas por muito mais gente. Quando era nova os meus pais tinham um livro chamado o Secretário Português sobre como escrever cartas — havia duas edições desse best seller do século XVIII. Gosto da tipografia desses livros (parecida com a Caslon). Gosto das manchas que eles têm, dos rabiscos, das assinaturas. O tom epistolar tem qualquer coisa de desnorteado e convincente. O Romance, no sec. XVIII alicerça-se neste tom. É um tom que nos toca mais depressa. Agrada-me escrever cartas, mas detesto enviar coisas pelo correio. E o correio dá-me ângustia. Por causa de encomendas que esperei e nunca chegaram quando eu era pequena.








Não se exprime tão bem a paixão como nas cartas. Nem os ressentimentos e as miudas quezílias. O email hoje trata disso. O sms não. O sms nunca é sentimental. É um modo de fugir com o rabo à seringa. É um formato péssimo para escrever. Serve para combinar. Um OK é perfeito. Nunca me interessou a mail art, não sei porquê. Está cheia de regras ligadas à autenticidade do carimbo e a comunidades supostamente éticas. Eu sou ética, mas é cá comigo. Não preciso de andar a provar aos outros. E a comunidade é o que vou no dia a dia fazendo com amigos e conhecidos. É uma deambulação de afinidades e amores. Acho porreiro o o lado gráfico dos carimbos. Dão um ar do tempo. É um dispositivo retórico. E é raro não embelezarem o que quer que seja. Não sou uma grande fã de selos (nunca fui uma coleccionadora), mas também não sou contra. Estão cheios de cores ou risquinhos. São uma herança da ilustração antiga. Não me sinto sensibilizada pelo aspecto gráfico da mail art. Merecia melhor. Vou tentar fazer melhor. Escrever melhor. Espalhar os afectos. Reciclar esse manâncial de correspondências desencarnadas. Penso que todo o sentido está condenado a ser sempre palimpsesto. Algo que se acrescenta e em parte cobre, deixando sentidos antigos ali para escarafunchar, com o rabo de fora. A modernidade é um acrescento que parece apagar o que a precede. Mas foi apenas mais uma camada. E nós estamos para aqui a dar mais e mais camadas. As minhas camadas são amorosas e não têm nada de cínicas. Gosto de questionar a arte? Sim, um pouco… Mas gosto muito mais de praticar artes amatórias.

















B

ernardette B. vê-se como um nada que produz ficções literárias e visuais. O seu trabalho surgiu num grupo em diáspora de gente de Coimbra, (com Jorge Judas e João Goes) no início dos anos 60. Andaram por Londres, Paris, Milão e S. Paulo, e foram influênciado pelo Letrismo do algo esquecido Isadore Isou (percursor da Internacional Situacionista) e pelo Concretismo brasileiro. Uma certa mania da paródia deste pequeno grupo traduziu-se na criação de pastiches de movimentos. Assim, em lugar do Letrismo, do Espacialismo, do Concretismo, ou da revista KWY, Bernardette e os seus amigos criaram o Iletrismo, o Especialismo, a Poesia Cão-Creta e a revista KWZ (Ká Vamos Zarpando). São dos anos 60 os seus livros-objectos Quiosque Oculto, a Vida Antes, Rude Rugido e Tratactus. A vida académica levou-a a S. Francisco nos Estados Unidos onde ainda vive, jubilada.





F

ootnotes on Nothingness resulta do seu interesse pelo budismo, e em especial por Nagarjuna, o filósofo do Madyamika, e é uma resposta, ou comentário, ao labirinto de silogismos à volta da noção de shunyata (de vacuidade). O livro constitui-se de um conjunto de pseudo notas de rodapé (há um asterisco bizarro antes dos parênteses) que surgem numa sucessão de textos sem palavras e que tornam explícitos padrões de interacção, de diversidade, de insistência, de preplexidade (há um excesso de reticências), etc. Bernardette termina a publicação com um diálogo entre um quadrado e um circulo, em que ambos acabam por chegar a um acordo sobre a diferença da soma de vários zeros precedidos da soma de diversos parênteses. Depois vem o ladrar do editor (waf ! waf ! — said the publisher), e na contracapa um irónico “something is missing here”. A edição anuncia-se como alargada, e de facto, transmitiu-nos Bernardette, “esta edição tem maior número de páginas do que a original, porque vem aumentada de muito mais Nada, tendo desaparecido os textos que anotavam, de facto, o tema do vazio — chegou a altura em que o comentário é apenas o vazio recaíndo sobre o texto, tendo abandonado o filão de paradoxos nagarjunianos. É o indizivel que se mostra, espontâneo, improvisado.” Eis uma bizarra investigação filosófica, cheia de humor, tão desarmante.






Canto a impermanência, este eu, este não-eu este mim fabuloso, falso, detergente, o ritmo que me faz e desfaz, ingente, indecente, a sensação de revolução geral de tudo a quietude na inquietação, o silêncio que esmorece no bulicio seguinte, a transmutação de todas as criaturas deslaçadas e coligadas, indo no turbilhão, no balanço, na maré, na vertigem, na maravilha de tanto feito, do mar do saborear, nesta proprensão para o desastre que se apressa parecendo adiar-se, retração da onda acompanhando o olhar. E o que eu quero é incerto e não posso querer que os outros desejem os mesmos desejos que eu, cumpram as mesmas andanças, as mesmas volições, cultivem o mesmo jardim, as mesmas manias, sejam a mulher entalada no seu já inverno a fingir-se primaveril a enganar-se e desenganar-se como se todos os começos fossem possíveis como se toda a intermitência fora paraíso.







E eu vou tentar continuar ruminar, ruminar, ruminar, onde me faltam forças com suplementos alimentares, mézinhas, exercícios, com as recordações dos amigos das paixões, tantas, e porque não, que gozei e tenciono gozar para que me perfume, me vista, me penteie e me queira mudar de novo as vezes que forem precisas para os desaforos e beijos dos que vierem.




R

osa Davida ainda esteve para pintar esta sala com várias côres, respeitando a sua estrutura, mas a sua opção acabou por ser uma série de 150 frases em que o título se relaciona com o espectador de uma forma consciênte, irónica, emotiva e imprevisível.

É A

a sua obra msis marcante até ao momento e a experiência de quem a vê leva muitas vezes ao riso aberto — estranha emotividade onde se adivinhava uma obra fria e tautológica.

quantidade de títulos baralha o espectador. Este passeio o seu olhar desordenado, curioso, subindo e descendo, aproximando-se e afastando-se. O seu corpo sobe, baixa, põe-se em bicos dos pés. É uma obra que exige ginástica, que desperta a conaciência e que nos confronta com as próprias emoções.










A ideia de plágio por antecipação de Le Lionnais plágio por contaminação plágio por coincidência percursor (ou plagiador) por ignorância plagiar percursores percursores que são plágios de plágios criar os seus percursores aleatóriamente respigar os seus percursores criar linhagens evasivas procurar sucessores que são desertores a ideia de um eterno retorno com zonas de ruptura e evasão (fugas, estragos, inovações) ciclos de retorno degradantes e enriquecidos a neguentropia como nano-resíduo do universo




P

edro Proença fez nesta enorme sala um conjunto de peças inspiradas por Heraclito e Diógenes. Tal como em Sóniantónia aqui surge o Minotauro, mas também uma Babel que trompeta. Heráclito e Diógenes foram na ocasião misturados num heterónimo, Herógenes. Transcrevemos aqui alguns dos seus ditos: Para o deus, ao que parece, tudo o que é atirado para o altar é belo, bom e exacto, desde que seja sacrificado. Tendo cortado uma coxa sacrificial, observei que o deus estava queimando e envenenando os folegos dos doentes. Vi o espaço vazio escalando a estrada ascendente e a descendente como se estivesse desnorteado. Se o caminho ascendente e descente fossem o mesmo, o alto da montanha seria o fundo do mar, e ao subir ao mais alto morreriamos afogados. Onde começa o circular finda a rectidão. Animem-se, companheiros, o rio em que entramos e não entramos desemboca no mar! Complicamos o uso das mais simples dádivas, só para arranjar detalhes antes do desfecho da morte. A lã enrolada no novelo, se esticada, forma uma linha recta. A corda do arco e da lira, a que dá os belos cantos e a morte na batalha, é a mesma que o astuto ateniense deu a Ariadne, a cretense, para ajudar Teseu, seu compatriota, a escapulir-se do labirinto.





As coisas co-operam através da oposição, mas também da simpatia, mas no fundo é a precisão e o detalhe que interessam. Desconcertam-se na ambiguação das forças opostas, e não sabem o que fazer com elas. Quando vais às termas, a totalidade surge da soma das diversas partes que lavas? Eu vejo o todo na multidão, mas só qaundo embriegada ou possessa num ritual. Viver é morrer? Talvez! Mas como nunca vi um morto voltar a mexer-se, não poderei dizer que morrer é viver. A essência das coisas limita-se a um certo perfume com que Platão besunta os discípulos. Acusa-o, não de cupidez, mas de “copidez”, pois exagerou nos copos, e acabou como um porco, de fuça no chão. Se estar acordado é dormir, somos todos sonâmbulos. A velhice não é reversível, e se o fora desembocaria no nada. O arco se demasiado esticado quebra-se, tornando inútil a sua função de matar. Os corvos querem debicar o figo (o sexo) da tua amada. A conjuntura invisível das coisas é apanhares uma carga de porrada numa estrada de Esparta. Atenas é harmoniosa a olho nu, porque lá todos andam maquilhados.






Estou habituado a que a profetiza em Delfos omita as partes essenciais. Sobra-me a curiosidade. O leão vai espargindo indicações à sua passagem. É a vulnerabilidade aos daimons que nos faz mais humanos. As coisas quentes ficam frias, como o pão depois de coser, ou algo que tenha ido ao fogo. As coisas frias raramente aquecem, a não ser que o sol as aqueça. Sou um mendigo exilado onde nasceu, vestido de lobo, com falas de serpente e coração de cordeiro. Nem a mudança é imutável. As mudanças mudam as mudanças. É graças aos farrapos que sou sábio, independente e contente. Os homens não constroem para ruinas. A ruina é o mal negro das coisas belas. Quando Homero lavava a alface para viver, não dizia que desejava a guerra, como Heraclito, nem que gostaria de enfrentar um tribunal, como Sócrates. Os homens teimam em desaparecer da vida dos deuses. A filosofia costuma transformar os jovens mais depressa em velhos.


J

ohn Rindpest é um tradutor e um citador. Giosta de citar o seu amigo Delalande. É um aforista que acrescenta uma dramaturgia barroca ao que antes parecia um fragmento límpo e cortante. Não sabemos se, como Hamlet, é alguém que reflecte sobre a mortalidade e os espectros que sobram a este. Ou se se faz camelo, às duas por três, fazendo eco a um passo do Zaratrusta de Nietszche.

N

o fundo acredita na eficácia da inacção: Podem os sonhos restaurar o Mundo? Pode o Repouso agir sobre a acção?





H

á uma tragédia em se ir sendo homem. Primeiro ficou o gesto menor, o finito braço alcançando as coisas, depois a omoplata desenvolvendo-se para se defender ou atirar mais e mais longe e com força. Finalmente esse prazer do lance destruídor, seja o jogo de dados, ou a guerra. É aqui que entra a tradição mallermeiana nas artes, que a é também do deus que joga os dados em Nietszche e Heráclito, ou o que se deleita com o I Ching, como o Cage. É através das coincidências e do acaso que a arte muda de paradigma, em finais dos anos 60, através da recuperação de Duchamp e outros. Duchamp bebe em Mallarmée e Roussel, mais do que em Stirner. E é esse jogo do acaso e das suas distâncias e medidas que tem vindo a deixar um rasto como poética. Um rasto que infelizmente tem sido desviado para a mania da carreira, da circulação e do mercado. É no lastro dos jogos de dados com a linguagem e o acaso que me passei a rever nos poetas que se tornaram artistas, como o Ian Hamilton Finlay ou Marcel Broodthaers. Foram estes dois que me conduziram a inverter o meu percurso aos poucos. É como saír da lama, onde me deleitava como porco, tomando um bom duche. Ou como passar das apinhadas páginas da prosa para o espairecido espaço do poema. A partir daí fui avançando numa midráshica incerteza. Sou o comentador que não sabe muito bem o que comenta nem sabe exactamente o que quer dizer com os comentários.




P

ode a Selfie ser uma alegoria, e desviar-nos da tonteria para o que realmente é, um momento mori, o confronto com o que nos regista para a nossa pseudo-posteridade, a alegre encenação da mortalidade. Nesta Anatomia da Selfie Proença confronta os seus auto-retratos disparatados com as Máximas elegantes e críticas do moralista La Rochepoucauld. E o que dizem essas Máximas? Isto: Somos às vezes menos infelizes sendo enganados por quem amamos, do que se o não foramos. Acabamos por ser muito mais ridículos pelas Qualidades que pretendemos ter, do que pelas que temos. A maior das ambições dissimula-se plenamente quando descobre que o que pretende é inatingível. É bem mais simples suprimir o primeiro Desejo do que satisfazr todos os que lhe sucedem. É tão fácil enganarmo-nos sem darmos por isso, quanto é difícil enganar outros sem que se dêem conta. Um Homem pode ser mais esperto do que outros, mas não mais esperto que todos os outros. Os que são incapazes de grandes Crimes não suspeitam automáticamente que outros o façam. Tememos aparecer defronte de quem andamos quando andamos por aí a flirtar. Condenamos por vezes o presente louvando o passado,; e mostramos o nosso desprezo pelo actual exibindo uma Estima pelo que já não existe.





R

indepest tanto pode mergulhar na mais seródia reflexão, quanto na galhofa aparvalhada. Ele tem a sensação de que nunca sai da citação. E por isso mesmo tenta evadir-se dela. Ele é um terno bufão que não acredita em arte porque há algo que lhe é muito semelhante e que não precisa de lhe viver os traumas. Só ecoá-la:

A

natureza cita como escrava. Cita os códigos genéticos. Tudo deriva de elementos básicos que se introduzem, repetem, contextualizam. Pior. A Natureza é viciada em auto-citação. Nós podemos citar de uma forma mais livre, ainda que também sejamos Natureza, uma parte esquisita da natura.



O

mundo do rocaille é um delírio açucarado, achocolatado, onde os elementos aério e liquídos pontuam. Proença entregou-se a esta fantasia ornamental onde tudo se liga a tudo num espírito libertino e comichoso. Porém há elementos que traiem o estilo. Há um regresso a Leibnitz, à pura combinatória, à dobra camalrónica, a uma arte musical que freme contrapõe várias linhas melódicas. Tudo isso numa acção movente e provocadora, como no gigante poema Catano, de Proença:

Ofereço-te a culpa, cuja graça dá vida (dá-te conta!) & inúteis tormentos, entornando-se sobre os banais actos, mito sarapintado, monstruado, alvissarado na maçã a brilhar, em sabor bom mesmo, no cimo, alta, e à mão de semear. Ofereço-te o regaço de um desejo integralmente cumprido, ininterrupto, de aleivosias pré-establecidas. Esse ninguém te o tira plenamente gozado em fogos-de-artifício internos, telenoveleiro, por cenas pirosas e ternas.








F N

ernando Pessoa, na sua Ode Triunfal consegue a proeza de fazer um poema whitmaniano-futurista, à luz provocadora da mutabilidade das coisas, em que elementos lucrécianos se fundem, quase naturalmente, com ideias órficas.

o desenho que abre ou fecha a exposição, consoante o percurso, Proença mostra-nos um desenho em que o deus-texto nasce de um ovo, como nas cosmogonias órficas, que está suspenso na lira de 3 cordas. É Dionísos que é figurado nesta cosmogonia? É um deus ignoto? O que fazem as outras alusões músicais, pitagóricas er xamânicas, ao lado?

É

um aviso sobre o Inacabado, o que começa sem começo? Mais ouma vez recorro ao poema Catano:

Não recomeço o inacabado, porque escrevo sobre o palimpsesto atormentado galgando com o Logos para glosas laterais. O que se teria que dizer calha no encalço, no tropeção, na gralha divertida, na interpolação de rompante, sem comiseração, intromissora, na avariada demiurgia que se diz porque soa.




& aqui desagua esta breve excursão à exposição o Riso dos Outros que estará patente até 31 de Março no Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida escrita e paginada por João Gafeira o curadir da mesma





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