Passeata

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PASSEATA

Pedro Proença

Edições Asa de Icarus


o pé disposto a andar - o trilho é à borla


montanhas enfrentam-nos


que frescuras e ervas abominรกveis e o que dรก gosto ver


onde é que vou chegar…


começa-se num sítio


e acaba-se noutro


partimos das nossas duas cabanas



o caminho ĂŠ para a frente as ervas crescem para cima: acho que gostam do sol



vou sem intenções e não encontro mais intenções



subo, desรงo, paro


estรก tudo de passagem, mesmo as casas


levo um bastĂŁo


levo uma bolsa


depois da curva avisto várias hortas: uma está cheia de tomate, a outra não faço a mínima ideia




chegaram as montanhas como se fossem chapĂŠus: as montanhas fazem sombras


eis alguns riachos e cascatas


que vontade de nadar


hรก plantas que apetece chupar


e aranhas que merecem pรณdios



algumas plantas sĂŁo pulsĂľes


subir e descer sĂł para perder o fĂ´lego


uf uf uf uf



finalmente uma zona a que atĂŠ posso chamar bucĂłlica


costumo perder a direção


canas enfaixadas


bichos com muitas patas


arvores caĂ­das


uma casa com ar de ser de bruxa mas com gente pacata


os sons de antes do meio-dia


tabuletas eadereรงos de espantalho



o sol estรก forte e acena a coisas incendiรกrias



upa upa (o miradouro)


uma vedação com escadas que descem para a estrada ao pé do rio



muitas vezes o verde estรก contaminado de sol (e ferve)


flores que se evadem e nĂŁo se explicam


flores loucamente gĂŠmeas (enamoradas)


encruzilhadas com pegadas de burros e restos de adereรงos de putas


ah, os caminhos do sexo


um carro, uma tenda de campismo e uma toalha estendida para pic-nic


vroum vroum vroum



as coisas inclinam-se com assiduidade


a terra e o cĂŠu estĂŁo a copular (sempre)



sinto-me um herege e alegre


um horizonte que devora falĂŠsias


escrevo cartas nos intervalos


a cor em ambas as margens ĂŠ igual


insectos que parecem salpicos (bze bze)



também há caminhos que acabam (pois)


e outros que nĂŁo sabemos


encontrei uma caveira de uma vaca pintada



os fofos campos onde durmo sestas em cima das mamocas do meu bem


ó i ó ai: canto canções da minha terra


momentos a olhar reflexos na agua e reflexos as espelhar o meu olhar


bebericar à gua com uma concha de cortiça


troncos queimados do último incêndio (é triste)


e novos arbustos extravagantes


o som do badalo vibra nas hastes: a sympathia dos sinos



lugares onde me sinto Ă­ntimo


esqueรงo-me de mim sem o corpo se esqueรงa de si


ganas de ir mais e mais alĂŠm


a aventura, o churrasco, a vinhaรงa


o zumbir dos poemas chineses a fingir que sĂŁo exĂłticos



os insectos a entrar e a quererem ser parte do livro


mais uma travessia


um cacto a insinuar maldades


antenas de grilo a roรงar


pequenas cavidades onde se encontram coisas



estranhos engenhos das hortas (enferrujados)



o caminho para o carinhoso sudoeste




hรก algo de musical nas criaturas com muitas patas



onde fica o coração das àrvores…


parar para sentir as cores e beber duma pucarinha



pĂ´r roupa, tirar roupa, agasalhar, refrescar



lírico por vocação




restos de estar ainda mais vivo


fitas penduradas em ramos (se calhar de um ritual)


chegamos ao centro de uma não-civilização



plantas que crescem em vasos abandonados


a velha linha de comboio dava um ar de western




uma ponte de madeira por cima de um precepĂ­cio



pedras amontoadas

a fingirem ruĂ­nas


vai entardecendo, e tenho bolhas nos pĂŠs


o calor da dor


fizemos um jogo com estacas



de repente, saudades do aconchego dos lençóis


e da tralha de casa



volta-se por outro caminho


aqui viveram ricos muรงulmanos




uma bola rolou pela escadaria: acho que fugia de nรณs


poucas coisas para dizer e muito para tagarelar



pensei em escrever um poema inspirado em Milarepa, mas muito erรณtico



hรก montes com cara de monstros




e criaturas que saem de casulos



também há quem cague no campo (é mais natural)



um buda com colher gigante a pensar em mulheres


tudo se expande



ainda voltei a estender a manta por um bocadinho para descansar o corpo



que horas são que horas são diria o Lapa




estamos quase a chegar: apetece-me devorar tudo


ainda tenho que pĂ´r a roupa a lavar




e tomar uma maravilhosa banhoca


comeรงo a despedir-me dos caminhos: adoro-vos




e cรก estamos de novo: vou fazer um gaspacho



jรก estou pronto para mais passeatas


para a rita (com quem quero dar muitos passeios)


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