comentários apocalípticos

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C O MENTÁ R I O S A P OCALÍPT I C O S p edro proença

w a f b o o ks



C o m e n t á r i o s A p o c aliptícos


© Pedro Proença mmxvii © Waf Books mmxvii


COMENTÁRIOS APOCALÍPTICOS Pedro Proença

waf books mmxvii


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A

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ssim se descerra este livro da candura imaginal. Nele se desvela a monstruosidade do que não

tem fim nem princípio. As letras seguram a glória de Deus que se dá a ver através de imagens obscuras. O texto é percorrido por criaturas que penetram as

agruras

e

suavidades

das

almas.

Parágrafos

cromáticos abismam a leitura. Há transparências que te inventam e te tornam mais transparente. Segue esse desembaraçar das opacidades, largando tuas peles de astúcia.

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J

á te antecederam outros livros, outros copistas. Sob pórticos os anjos já leram este livro. Já o

encheram de linhas proféticas, já corrigiram as vacilações dos profetas. Tornaram os textos mais inspirados. de

Deus.

Transcreveram em paráfrases as falas Comentários

exageraram

sentidos

e

escalparam evidências. Tu agora comentas para te tornares vulnerável. E a tua nudez não é casta. Sabe-o o anjo que mergulha livros em sangue e que faz desentranhar estrelas de leituras.

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T

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odo o comentário é mais um apocalipse. Todo o apocalipse é permanente, e comenta-te, zomba

dos teus segredos, enche de bestas a tua pretensa humildade, traduz a ironia com que apascentas a tua soberba com cruel factualidade. Afinal tu és mera partícula de uma ira que açambarca o mundo. Despe a tua alma até que esta seja uma pornografia divina e amável.

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B

ramidos de constelações nas arcadas.

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O texto

chega em círculos concêntricos. A inocência do

amor é apavorante. Dentro deste livro que escutas há outros livros que sussuram e que te apetecem. Luxúria de vozes. Murmúrios que são astúcias. A obscuridade é uma polifonia de doces ruídos. Hás de obscurecê-la com a tua paciência.

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O

livro

fala-te

de

ligações,

de

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genealogias,

de deuses antigos que em Ur se adoravam.

Os homens incandesciam as estrelas com as suas relações e figuras. Apostavam a adivinhar o futuro que está apenas no regaço do Divino. Deus tece o futuro com consumada arte romanesca, não lhe antecipa as faces, nem lhes revela os enredos que hão-de de arreliar os homens e entreter-lhes as memórias.

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C

oligações

de

geometrias

transparentes.

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Os

números chamam as forças. As forças fazem-

se casos. No abismo da face inicial o Tohu-Bohu era a sobreposição de tudo o que viria a ser. Assim confluem também no abismo apocaliptíco as frases violentas e maravilhosas que nos encharcam de saboroso terror. As orelhas provam tecidos feitos de fibras. As estopas rebentam. Uma plenitude muito arcaica rega o fluir fatal das palavras.

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S

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erpenteantes criaturas que antes voltejavam no que vicejava esverdecente, respondendo à voz

creativa de Deus, abundam agora entre aguas fogosas, rôxas, convexas. Marasmo dos fluídos saíndo de livros aos quais se quebram os selos. Na vertiginosa rouxidão que engole as certezas tu sabes que só te resta rastejar. A abundância de palavras testemunha-o. És uma figura que mesmo na doçura reconhece a sua trágica desordem e o seu caracter animal. Voltas a rastejar como a cobra e o crocodilo. Sente com as tuas próprias tetas e a pele suave de todo o peito a a terra materna, pedregosa, resistente.

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R

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ecordas-te de David? A sua funda é a mesma que se afunda nos cânticos. A mão que mata

é a mesma mão que acompanha os salmos. É uma mão que vai envelhecendo a glorificar e a seduzir. Foste aquele que escolheu a cidade que te forjou o exílio. Foi no carro inspirado dos teus salmos que se levantaram as metáforas apocalípticas. Mas o salmo não cuida do fim dos tempos, mas apenas do sabor a fel dos momentos presentes.

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P

orém Yerusalem já não é a cidade de Shlemo. A amada não arrodeia pelas ruas em busca de

um amor tresmalhado de ténebra. Tu apenas notas a eclosão pura onde a inocência é gratuita. Porque as culpas se acumularam ao longo de séculos de séculos. E tu nem deste conta. A culpa secate a lingua e empata-te a boca de azedume. E tu traças quadros, geometrias, hipóteses, com esmero acidental.

Palimpsestos

suaves

que

fervilham

palavras batalhadoras. É dessa amalga, que foi laboriosamente apagada, que surge a clarividência. O que mal vislumbravas, num traço sêco feito a cana, fere-te agora como um texto inextricável.

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L

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adram os cães devoradores onde os circulos imaginam. Primeiro tens que aprender a degustar

o círculo e o seu centro. Foi com irradiações concêntricas que se inaugurou o mundo. É através das repercursões do circulo que retrocedes a esse momento. Dás-te conta que a voz sobre as àguas coincide com esses circulos. Talvez a escrita seja demasiado tardia, e uma imitação insonsa desse clamar. A escrita é a paráfrase da voz de Deus. Não foi com letras, como aventaram os cabalistas, que se fez o mundo, mas com vibrações sonoras estrondosas.

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E

ntende

a

fúria

que

habita

os

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ornamentos.

Rugem as formas como que envolvendo em nós

floridos, em molduras agitadas, em caminhos que se desviam de si mesmos e se encaminham para o justo caminhar, passo após passo, trilho a trilho. Chamaslhe ardor, inspiração, trepidação, incandescência, paixão, e não sabes com exactidão o que procuras, tanto é o desejo de uma força maior que se desvenda ocultando, que toma faces diversas. O ornamento é a intensidade da tua busca, mesmo que nada haja para buscar. O equívoco habita as demandas, mas tu não podes deixar de espairecer nos gestos. É a mão que agita a sua potência e agudeza. Tudo quer ser por ela figurado.

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G

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algam entre oferendas os reis do antigamente. O que é que há para oferecer? Que estrelas

indicam o caminho? É só através da mãe que surge o Filho para que a Mãe se faça filho. Os monarcas prostram-se à Mãe-Filho porque a Mãe é a dádiva incontornável, que não só lhe dá vida como lhe é alimento. O Filho canibaliza os sucos das mães. O corpo que Cristo virá a oferecer é o mesmo que o leite materno que antes devorou, a carne de que se fez nascido. Canibalismo uterino pelo qual todos passamos antes de sermos expulsos para a luz cruel e desconfortável onde tudo é esforço e necessidade. Pode a estrela de Dionisos, ou o labirinto do Minotauro, levar-nos à Virgem e ao Menino. Pois neste desvelamentos vos digo que é essa uma porta, e que outras loucamente se abrirão.

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I

lustríssimas

criaturas,

cordeiros

perdidos

do

seu pastor. Para que é quereis que vos levem

pelos outeiros com cajado. Sois bichos destinados à frequência do sacrifício. Com a vossa lã farão roupas que os protegerão dos tremores da invernia e propagarão a insensatez. Ó animal dócil, queres conhecer a cidade celeste? A matemática de deus serve-te para algo? Saberás ser o espírito criador que até no seu balbuceamento é luz?

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D

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esvario da cólera, luta entre o alado e o que rasteja, entre o pneumático e o telúrico. Esse

é o drama da melodia. Mas se não mostrares a tua cólera, o teu lado terrível que ruge como as nuvens, poderás amar espontaneimente, poderás aceder às verdades cortantes e incontornáveis. Estás preparado as consequências do desvelamento na luta entre o que rebaixa e o que sublima. Não é este o modo perfeito da arte poética? Podes escolher o nome da ave. Por exemplo: àguia-serpente.

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H

abitam-nos

gestos

comichosos.

O

cisne

frenético, a curva roçagante. A letra volve-se

mais luminosa quando se veste de bestiário. A letra encabeçará capitúlos com a qualidade da excepção, como o que acena ao incognoscível e à dissimulação do Nada em adjectivos que pecam pela sua negatividade. A brancura da página moderna nasce da pele do animal que tanto foi esfregada nos antigos códices. É sobre um bicho morto, polido, a que arrancaram o pelo, que se escrevia, cautelosamente. O livro unânime que condensará o mundo traz na sua falsa brancura acumulações de sacrifícios, e excessivo sangue, mesmo que hoje seja da àrvore que se faz a página onde os brancos conflitos ambicionam passar pelo Absoluto. Mas o Absoluto vem acompanhado por lutosos alaúdes e melancolias de passagem.

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M

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oldura vertiginosa do amor. Perfume que se desentranha do livro. Sandalo, cacau, cheiro

de frutas tropicais e de carnes adolescentes. Furor do que quer alastrar, maravilha do incipente, do que principia a floração, do que irrompe como mais uma coisa, enquanto outras tantas fenecem por não terem mais espaço. O que expande é cúmplice do que encolhe e some? Tecidos onde a velocidade das coisas é o mover das texturas, com padrões espampanantes. Esbracejar imprudente dos bebés, a agarrar e a largar, a deixar caír e a sorir. Sem alvos, buscas, razões.

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N

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algumas cidades celestes são os mapas que nos arrebatam, meu amor. Há uma cumplicidade

entre o templo, o mapa e a biblioteca. Todos tentam conter em si a força do desvelamento através de uma manha. O templo não aprisiona o deus. O mapa não é a paisagem. A biblioteca não é as acções nem as coisas que os livros contam. No entanto podemos aqui saborear os prelúdios da verdade. Estudarás os mapas, farás preces e oferendas, lamberás como uma lesma os textos fortes. E depois entrarás no perliminar inaugural, lambendo os sucos do Logos.

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P

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erguntam-me pela arquitectura. Digo-vos, é o que murmura acolhimento e repouso. Mas já o

apóstolo comparara templo e corpo. E repito-vos, aquele que não acolhe a lúxuria ignora o Senhor: Aquele que não o ama desmedidamente com carne, será que é digno de entrar na sua vera casa? É o sabor do divino complacência e comedimento? És tu a arquitectura que se faz casa para Deus? Ergue pedra sobre pedra. Constroi, trata, ornamenta. Sê o espaço de acolhimento perfeito. Sê o hóspede diligente capaz de saborear o ínfimo e o desmedido, pois não sabes o que é cada um deles mascara, e se não é o monstruoso que destilará o sublime…

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Q

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uando o homem ainda não se descobrira carne a monstruosidade era a sua forma, quer interna

quer externa. Linguas, orelhas, cheiros pestilentos, cornos demasiados, rugidos fulminantes, metáforas enlameadas, convicções estúpidamente sinceras. A partitura dos desaguisados é imensa. Podes alvejar com as flechas pandémicas os impuros, pois só purificarás com o mais impuro o que é naturalmente impuro. O fogo destrói mais que a peste. Nenhuma peste é eterna. Mas o fogo pode reduzir tudo a cinzas e tornar estéril para sempre aquilo a que tu chamas o mundo e que figura como paisagem e as pestes apenas estatão de passagem.

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uge no precepício a prostituta que cavalga. Ela dá-se a todos e por todos. Segura a taça do amor.

Ela é como a louva-a-deus, só te ama para te devorar, extorquindo tudo quanto consiga. Também o Tempo te ama para devorar. E de igual modo o Deus exige o teu amor para que te ofereças em holocausto. A tua vida é uma oferenda que se ignora. Julgas que cuidas de ti e que o fazes para teu mantimento entre os seres que por aí vagam. Porém és parte de um sacrifício, seja para a rameira escarlate, seja para o qual não pode sequer ser vislumbrado. Dirás que a carne da puta é mais urgente a destruir-te, e que ela te cavalgará até sugar tudo o que te agarra o mundo. E não é isso uma clareza terrível? Quanto tempo ficarás afundado nas tuas defesas que te entebrecem?

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T

udo era agora conclusivo. Os inícios justificavamse

como

tempestuosa

causa

de

um

final

excessivamente inclinado para si mesmo. O apocalipse é aapoteose de Elohim. É a sua cólera que desvela todos os enigmas acumulados. É a sua graça que liberta os símbolos e que os deixa errar, seja em selvas, seja em desertos. Não se pode confundir os símbolos com o Elohim. O símbolo é um engodo. O Elohim é o assimbólico extremo.

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U

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ma tenebrosa catástrofe abateu-se sobre as populações. Vales de mortos empilhados. Até os

corvos e os abutres se transformam em esqueletos. Vislumbras a morte na imagem do cadáver. Mera alegoria. A terra já está cheia de morte. Detritos de morte constituem o pó que se vai amontoando. Esse pó que protege do desaparecimento, mas oculta. O vento, a que chamas vida, porque tudo o que é vivo de algum modoi ventoso, é o que transporta a morte de um lado para o outro. Mas também residuos do mutável: polén, bactérias, signos.

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V

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elozes àguas que rodeiam letras capitulares. Os animais veneram as letras quando os capítulos

fazem inugurar os mundos. Tens a linguagem por inconfidência, como algo que ladeia na margem dos actos. Ignoras que, quer o queiras quer não, as palavras terão uma influência no devir, não como o estinmaras, na imprudência de serem palavras, e dos próprios paradoxos gerarem impulsos, pulsões. Tanto o Silêncio quanto a Palavra agem sobre as coisas. Se te furtares a escutar o Logos com assiduidade é o próprio Logos que te devorará.

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E

mendam-se amendoados.

os As

desacordos, barbas

de

nos

concílios

Deus

escorrem

da amendoa mística. Amígdala. Mandorla. Parte inflamável. Ventre do sagrado. As mulheres irão no encalço do divino com mais naturalidade, porque só elas sabem abandonar as suas casas para seguir a plenitude, só elas sabem que nada têm a perder com o largar os seus afazeres corriqueiros para se entregarem às forças mais fortes. E basta uma suspeita de que essa força vage por aí para que se abandonem à paixão, e os lares desmaselem, com a ângustia ou as saudades dos filhpos ou esposos.

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U

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m cruel sol fabricado de anjos envolverá os circulos que configuram e conferem o Mundo.

Poderás multiplicar a geografia do insondável, e terás por guia o número nove, que é o da novidade e da viagem, dos afundamentos cónicos e dos circulos que cegam de luz tanta. É o número que testemunha, e complementa o número seis, que é do sexo e da interpretação, do fulgor e da hermenéutica, das encruzilhadas e das mutações, o mesmo que atribuis ao Hermes grego e ao Toth egípcio. Também o autor da Comédia fez do nove o seu guia, nave de estrofes, doce cor que refulge orientes.

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rande nauta, faz-te à viagem, levas contigo o dom das linguagens que fazem estremecer.

Ergue as tuas asas de obscuridade magnífica. Deixa-te penetrar pelo hálito lilás. Estonteia-te na espiral dos instrumentos de sopro. O som arrebata-te. Como podes descançar. Os teus pés estão irrequietos. Estás à beira do oceano e este exige-te que embarques. Vem descobrir os segredos que habitam nos confins. Vem pelo menos vislumbrar a planta da imortalidade. Disseram-te que são as fórmulas mágicas encastradas nos livros que encantarão o mundo, mas tudo vem de uma planta aparentada ao alho. E mesmo que não o proves de imediato saberás que existe ao menos essa possibilidade.

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T

rombetam

as

maleitas.

pestilências.

Argúcia

das

Argumentam catástrofes.

as

Anjos

escorraçam cavaleiros. As nuvens afugentam. O universo encaminha-se para um emaranhamento fatal. As aves buscam estrelas. Os candelabros conduzem as hostes. Encardidas prostitutas dão beijos sarnentos. Grelhas, redes, incensos, máslinguas. Enviesamento da inocência. Sumiram-se as palavras para nomear esta avalanche de tormentas.

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á que triunfar da roda infernal do tempo e da recorrência que te embriega de eternidade. O

eterno é um falso, um Pseudos, que mascara uma força maior que é o próprio tempo e a inextricável mutabilidade. Podes vozear como os seguidores de buda: tudo é impermanente? Ou como no Qóhleth, nada de nada, pó de pó, vanitas vanitatum. Mas descartarias a transgormação, a mutação, a tradução, as ambivalências, a diversidade? Não há maior sabedoria no incerto, no mutante, do que na desilusão que apenas constata Nada? Sê tu próprio a Roda da Ilusão, o fluxo, a maravilha multiforme do mundo.

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T

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estículos de touro, papiros pintalgados, colunas de templos que desabam, candura dos deleites

de verão. No horror da visão são os antigos deuses de Ur que assustam, tridentidos. Encaras o terror como uma artimanha necessária. Transforma o medo em festa, a ângustia em dança, a cólera em manifestos, o sagrado explodindo em condimento de um manjar opíparo, o choque das formas em doçura e entretenimento.

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epois do Verbo veio o provérbio. E o provérbio fez-se guiza, maneira, apimentando as relações

entre homens, plantas e animais. O provérbio é uma ferramenta que se usa para considerar situações ou para coroá-las com a sabedoria. Mas terá que se fazer plausível pois a cada situação a que um provérbio assenta, haverá outro que, tal como a realidade, lhe é contrário. Assim, a desmesura do Logos não se sacia apenas com provérbios, que é arte pelo vulgo consumada. Talvez ensaie parábolas. Ou prefira o puro derramar de metáforas e alegorias sobre as quais os homens têm dificuldades em explanar.

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D

esenrolou que

da

lingua

palavras

salivavam

glória.

Espremeu

de as

fumo silabas.

Vislumbrou olhos de ira que se transformaram na besta, cujo número é o 999, a novidade absoluta que complementa a Doxa de deus que é o próprio zero epistolar. Arvoredos, nuvens retorcidades com ar escultural, remoínhos, cachos de cores fortes, tudo nos ofuscava em reciclado terror. Que a besta possa sêr um número, isso é quase um milagre.

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Z

ebrada página onde as serpentinas confluem. Tu não sabes distinguir os tempos. Nas palavras

proféticas

o

passado,

o

presente

e

o

futuro

confundem-se, alternam, baralham, confinsam. Ó tu, que me lês, não fiques zonzo com a incoerência dos tempos, e fica ciênte de que o desvelamento de que aqui se dá conta é fiel a este entrançamento em que o acontecido é indistinto do a acontecer. Todos os aedos, cantores e profetas são apóstolos do tempo. Anamnése é previsão. E o sangue que jorra do corpo do heroi é a ambrosia, mesmo que cães raivosos lhe devorem os ossos rondando as tendas das tribos combatentes.

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evavam potes cheios de ungentos abençoados, que depois derramavam das alturas sobre os cabeços

dos astros. Os seus movimentos desorganizavam as constelações, mas era como se o ouro fluísse desses potes, melífluo, indo ao fundo da grande obra que os alquimistas jamais souberam consumar. Todo o céu era ouro puríssimo, como numa iluminura. Apetecia aí demorar.

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M

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ãos manipulavam o sagrado. Uma voz dizia: sois todos Messias, ungidos pelas próprias

mãos do Kosmos. O que o Apocalipse desvela é a vossa face coincidindo com a face do Deuses, a que vós chamais Elohim. O abysmo inverte-se na plenitude. O livro revela-se nas facécias dos factos. Se arredares o riso será que és capaz de adorar?

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is a taça onde florescem os espelhos. A estrela é uma flor de inúmeras pétalas, embriegada, que

revoga as leis e as letras. Num mundo novo jamais seguirás a Diké. A tua fortuna está na suspensão do que antes fora proíbido. Irás pelos montes, descalço, ferido, bebendo o negro néctar. Perderás os precalços e tudo o que te amedronta. A tua insensatez será então a funda sabedoria da vide, a que acolhe o agraço. O sangue fervilhará nos teus pés, e dançarás com a noite, como se a terra fosse suaves brasas que não te queimam, e todo o teu corpo será contorsões encadeadas pelo Sopro do Deuses.

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N

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o grande derramamento que dilui os círculos dos anjos as àguas são labaredas que devoram

versículos. E cada versículo condensa um mundo a chegar. Palavras armadas como tendas de números. Geometrias

que

nas

proporções

proporcionam.

A própria cadeira de Deus está agora em chamas, porque no mundo derradeiro não há hierarquias nem necessidade de se sentar.

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ndulações maternas. A grande mama divina surge no centro do Kosmos. Deus é mãe e pai,

doçura e força. Nem autoridade férrea ou ciúmenta, nem grande deusa dos mistérios ondulantes. Os anjos sempre o souberam na sua ambiguídade. As entranhas são o celeste. Se distingues os céus dos infernos és um estulto. Não poderás casar o que sempre foi o mesmo, nem conseguirás manter oposto o que é de idêntica substância.

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á que degolar a Grande Serpente que mantém o mundo? Ou é a Serpente a escada por onde

ascendes para o extase permanente? A serpente que tentou Eva não o disse claramente?: vós sois deuses e de um não-morrer morrerão. Galga a Serpente que é a tua Carne e que é a Carne de qualquer espírito. Entra na pele das côres fortes, na energia das imagens. Não há paraíso se não seguires a força das côres que serpenteiam. Esquece os falsos guerreiros que dizem que degolaram o monstro, que mais não fizeram do que mentir e servir o Shaitan que faz dos homens escravos de mandamentos e proibições.

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e entre as vagas celestes sentes o sol como um centro do qual tudo irradia. O livro que sai

da sua boca é todo ele arquitecturas, portas que se abrem para que o poético doravante seja a condição de toda a criatura. A vocação do mundo é o poetar.E é no sol que essa vocação brota.

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derradeiro e o primeiro são o dom da visão, o Alfa-Ómega. As letras são mero utensílio

para a voz vislumbrar o dentro-fora. Serás sempre cúmplice das visões que florescem, e saberás acolher os Logos flamejantes, sem ironia, como cometas que encadeiam com as caudas as tiritantes ténebras de que se costura o Universo. Plenitude, potenciação, dispersão-recolhimento, interpolação, coerência das incoerências, vib-razão, noivado dos aspectos, cópula de todos os divinos, ténebra resplandecente.

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Este livro busca interpolações, acrescentos, cortes, montagens, desde que sejam inspiradas e creativas. Peço ao leitor que o complete, incomplete, comente, & aproveite com a graça dos fluxos poéticos que aí andam.



texto ILUSTRAÇÕES &paginação pedro proença em caracteres visigordita do mesmo as ilustrações são de mmvi foi escrito & paginado entre o dez e o doze de mmxvii


Ó tu, que me lês, não fiques zonzo com a incoerência dos tempos, e fica ciênte de que o desvelamento de que aqui se dá conta é fiel a este entrançamento em que o acontecido é indistinto do a acontecer.


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