3 pontos de não-retorno e muito mais

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PONTOS DE NÃO-RETORNO & MUITO MAIS

w a f b o o k s







Em 1936, Picasso, numa crise sentimental, decide abandonar a pintura e consagrar-se frenéticamente à poesia. O acolhimento dessa poesia esteve longe de ser entusiasta (ainda que hoje esteja na moda entre persistentes vanguardistas). No sentido inverso o poeta Marcel Broodthaers decidiu tornar-se artista. O êxito não se fez esperar. É a partir da inversão desta declaração-obra de Broodthaers que John Rindpest (aliás, Pedro Proença), tradutor da poesia de Picasso e autor de um romance (Minotauro no Parnaso), decide conceber em livros on-line falsas instalações que parodiam imagens e processos da Arte Conceptual: I, too, wandered wheter I could do something honest to become poor in life. For some time I had been sucesseful at anything. I am fifty five years old now… Finally the idea of inventing something insincerely sincere crossed my mind and I set to work straightaway. At the end of one year I showed what I had written to a friend publisher. “But it is poetry” he said “and I’ll try to publish part of it.” “Agreed” I replied. “If I sell some books, I take 10%. It seems these are the usual conditions”. What is poetry? In fact it is pretencious words spared in books hard to sell. And it’s practically impossible to live of it.


O insinceramente sincero é um topos pessoano (“Artigos políticos insinceramente sinceros”, in Ode Triunfal). Em Rindpest a vontade de uma vida e prática poética coincidir com o fazer obras de arte é o oposto do diagnóstico do actual estado das artes feito por Peter Sloterdijk : The future of the art system is thus easy to predict: it lies in its fusion with the system of the largest fortunes. No seu primeiro livro, Abuctions, Rindpest mostra uma instalação à maneira de Wienner que é sintomática do que acabei de afirmar. Em cima tem escrito, em grande, a bold:

SENTENCE ON A WALL TO BE SOLD AS ART

e em baixo, em pequeno e thin:

SENTENCE ON A WALL TO BE FELT AS POETRY

No seu segundo livro, Rindpest reivindica a herança duchampiana como distância não só do óptico como do objectual: I think that in the case of Duchamp, the appropriation factor is overestimated in comparison with the poetic factor, of which it is inseparable. From my point of view the act of appropriation (and of pseudo-provocation) is subsidiary to the poetic act (which is essentially an experience of language). Hence the insistence on non-optical aspects. Este livro está repleto de instalações, livros, textos, objectos, entradas do dicionário etimológico de Grego Antigo (o famoso Chantrainne).


Uma das instalações, cheia de linhas de reticências, tem escrito por baixo, ALL POINTS ARE NON-RETURN POINTS, numa resposta ao aforismo de Kafka: A partir de um certo ponto, não há retorno. Esse é o ponto que tens de agarrar. Assim, a passagem de parte deste livro a exposição (que é o que vem aqui exposto) é um inevitável ponto de não-retorno que reconfigura não só a obra de Rindpest como a minha extensa obra. A falsificação, a paródia e o pastiche geram heteronimas (que por sua vez remixam textos e coisas e remixando-nos) e fazem nas nossas vidas, por sua vez, efeito delas. A passagem do falso, do pseudos grego, à ficção, e, seguidamente, ao real, é efectiva. Este programa começou a ser enunciado por mim há mais de 30 anos, mas é aqui que ele se torna radical e esfuziante.

João Gafeira




ENTREVISTA DE RINDPEST COM INÊS PEREIRA

Inês Pereira — Esta tua exposição parece um desvio surpreendente quanto ao que tens mostrado. Como explicas isso? John Rinpest — Andei anos a tentar “tentar ser um artista conceptual”, e a acumular divertidos falhanços. Quis encenar vários períodos da história de arte como quem escreve novelas históricas. Partilhei isso com alguns amigos. Havia, e há, um desejo de expandir a fraude, o engodo, a ilusão, como processo artístico e literário, isto é, devolver à arte o seu caracter ficcional em vez do lugar empresarial e comercial no interessante jogo da glória. Não quero dizer isto que seja a favor de suprimir o comércio em arte. Não sou desses puritanos obsecados em seguir os velhos situacionistas, e que acabam enfeudados no poder, ou, em última instância, recuperados pelo mercado. Sou apenas um hedonista que luta disciplinadamente contra todo o tipo de servidão e por uma vida o mais possível prazenteira, sabendo que não é na abstração do dinheiro ou na posse de objectos que residem o buzílis, mas nas actividades do corpo e na possessão creativa. Dispor de algum dinheiro pode facilitar ou complicar a vida. No entanto. a pulsão artística, a que alguns chamam vocação, é víciante e sobrepõe-se a tudo. Por vezes devora-nos.


IP — Costumas dizer que há pouca gente a escrever e a publicar sobre a arte. A crítica é rara, e a divulgação muito escassa. O silêncio obriga os artistas a falar mais de si? JR —A quase inexistência de críticismo favorece um caos em que são os galeristas e os compradores a ditar o valor das obras. A vontade de ganhar uma pipa de massa depressa e a vontade dos compradores serem os reguladores do sistema, e identificarem o seu gosto com o que é “bom” em arte, é um equívoco. Ao longo de muitos anos tenho reparado que a ignorância visual, histórica e teórica grassa em boa parte dos participantes no art world. Parece-me que os artistas são dos que têm o olhar mais afinado, os que fazem leituras atentas, embora parciais, dos outros artistas, e quando coleccionam acertam em cheio. Por vezes desatam a explicitar-se. Recorrem à escrita para colmatar o vazio. Escrevem sobre si e sobre os outros, que é uma maneira de também escreverem de si ou de se procurarem transformar através de uma atenção aqueles que admiram. IP — Há um lado teatral, barroco, nestas tuas instalações? JR — Sempre preferi a dissimulação à simulação. Ando a encenar falsos ready-mades como se estivesse numa peça de teatro. Tenho a sensação que tudo vacila e é erro. Não venho para aqui com garantias mas para desfrutar inexperiências. Estou a esquivar-me à pergunta? Talvez seja barroco, no sentido que este propõe uma arte combinatória e um apetite metamórfico que roça o exagero em que me revejo. Ou é o oposto de tudo isto?




IP — Andam palavras por todo o lado. E falas de poesia. O teu ar de coisa conceptual parece uma pulverização. Nem sequer pareces questionar a arte… JR — Questionar a arte parece-me uma das maiores banalidades, e uma comodidade do sistema. Prefiro o fazer e as poéticas do fazer. Se algumas das minhas obras questionam fazem-no porque são assim, perguntadeiras. Como sou antiessencialista, porque li muito Heidegger e acabei por vomitálo passado alguns anos, acho as defenições da arte uma coisa musical, uma forma de variação literária que apenas adianta como “poema”. O conceito Arte não gera obras de Arte, senão os filósofos, que são especializados em conceitos, gerariam obras de arte, o que não ascontece. E quanto a conceitos tanto os busco como me quero evadir deles. Não acho, como muitos, que o poético e o filosófico sejam opostos, porque há muita interacção recíproca e chegam da mesma fonte comum que é a linguagem. A filosofia é tradicionalmente inimiga do fazer poético, mas é tão tagarela e pretenciosa quanto os poetas. A grande diferença é que uma se move pelo ritmo e a outra procura frases que dêem a ilusão de que tudo é compreensível através de redes de conceitos. De qualquer modo o conceito é etimológicamente um acto de devoração. Só que hoje os conceitos encarnaram no mundo. É impossível ignorá-los, porque andam na boca de toda a gente e estão firmados como escrita em todo o lado, mesmo que sejam coisa deveras incerta. Já não podemos voltar a um saber pré-conceptual e pré-filosófico, tal como não se pode praticar uma arte que ignore quer os movimentos modernistas quer, por exemplo, a arte conceptual. Mas nesta linha de pensamento, também não podemos ignorar nem a tradição ocidental da arte, nem as dos outros povos não ocidentais. Quem fala de arte também fala dos restantes saberes.


IP — Mas mesmo quando usas imagens de diccionários parece que te queres evadir dos conceitos e procurar antes fazer aplicações da linguagem. JR — Não, não me quero evadir dos conceitos, antes pelo contrário. Sempre fui por uma dramaturgia aparentemente alegórica, que tem um lado borbulhante. IP — Usas aforismos. Teus ou de outros? JR — Sobretudo meus e os do Pierre Delalande, que tem uma poética em paete afim, e pode haver excepções, como na obra desta em que há uma frase do Kafka, mas é para identificar a fonte das preocupações, dar o clima e ser assertivo quanto à genealogia. Eu diria, como o poeta-artista Ian Hamilton Finlay, que o mundo artistico é, regra geral, ignorante da tradição aforística e da tradição poética e filosófica (ou “folisófica”, digo-me a mim que sou um pouquinho disléxico), o que torna insípidas e vulgares, além de pouco originais, as utilizações da linguagem na produção artística literáriamente menos conscientes e exercitadas — a arte teria muito a ganhar com um maior entrosamento com o campo literário. Por exemplo, o aforismo não é muito diferente do provérbio, mas o seu elemento teórico é mais intenso e irradiante. Não serve para emitir opiniões sobre alhos ou bagulhas, mas para encenar intuições sobre aspectos da vida e do mundo. Penso em grandes mestres como Heraclito, La Rochefoucault, Nietszche, Caneti, Kafka, Blake, Novalis, Cioran, etc. IP — Sentes-te então nessa linhagem? JR — Mais ou menos. Talvez seja apenas um aspecto de um arroubo literário mais ambicioso e inconsequente. Por outro




lado também vou beber à tradição duchampiana, que é poética. É outro filão, mais para o trocadilho. Dou razão ao poeta Jacques Roubaud quando fala de Duchamp como um caso do chá tília, calmante, algo maroto, mais ou menos um oulipiano que Duchamp também foi. O objecto em Duchamp é acidental. O importante são os procedimentos poéticos associados à intitulação, e as redes de sentido, ambíguas, algo indeterminadas, que suscita. Raymond Hains foi provávelmente o seu melhor herdeiro. De qualquer maneira sempre me pus do lado de uma estética quente e menos cerebral. Os aspectos cerebrais do meu trabalho são espontâneos, e a maior parte das vezes involuntários. Por exemplo: atribuo a mim mesmo falsas citações desfocadas, que são deformações, refutações ou variações de outros autores — era assim que procedia Nietszche — lê-se para desviar escrevendo. As nossas leituras insensatas conduzem a intuições que com o tempo se podem tornar pertinentes. IP — Uma arte que choque ou uma arte decorativa? JR — Uma arte lúdica, mas se possível enigmática. Uma obra de arte que choque tornou-se ao mesmo tempo uma banalidade e uma impossibilidade. As obras de arte que chocaram acabam depois tão decorativas como as outras. As Demoiselles do Picasso, os Bacons, os Duchamps, os Beuys, ficam bem em qualquer casa, escritório ou museu. Nada mais decorativo que um urinol ou uma vitrino do Beuys. O que choca nalguns casos é a displicência e a facilidade. E o que me incomoda, mas não choca, é a especulação desenfreada em volta dos objectos de arte e alguma ignorância dos artistas. Ou talvez não… a ignorância por vezes também é uma vantagem.


IP — O mais importante no fazer arte é a consciência? JR — A consciência é o mais importante em tudo, mas sempre com corpo e as suas pulsões. Os artistas estão mais interessados em saber o que andam a fazer do que fazer, porque muitas vezes mandam fazer — e aqui não sou excepção, embora na maioria das vezes prefira fazer. Há casos em que as obras se fazem só para tomar consciência e abrir possibilidades. Confesso-te que a minha concepção de consciência é erótica. IP — Pode-se falar de instalações tipográficas? JR — E porque não? Os poetas visuais e os artistas jogam quase sempre pelo seguro na escolha da tipografia. São ousados nos suportes, mas conservadorews na tipografia. Foram poucos os artistas a inventar tipografia. O Kurt Schwitterz e o Von Doesburg. Por cá o Lapa fez uma espécie de alfabeto básico, o etecetário. O Pedro Casqueiro também fez letras muito apetecíveis, mas de um modo pouco sistemático. Algumas das fontes que uso nesta exposição são minhas. Durante alguns anos dediquei-me à criação tipográfica, e hoje em dia tenho um conjunto de recursos significativo. IP — Mudando de assunto, a heteronomia diz-te alguma coisa. JR — Estou mais interessado numa coisa abrangente como a noção literári de personagem e os seu feedback sobre a gestão da subjectividade. Trata-se de aceitar a acção ds ficções que criamos sobre os modos de vêr o mundo de um modo consciênte e activo, tal como Fernando Pessoa, quando teorizava o sensacionismo. Como ficcionista ficcionando-me




prefiro aceitar a rejeitar, prefiro encantar-me, suspendendo a descrença, a ser um céptico. Tomo o mundo a sério no não tomá-lo a sério, ou apenas tomo-o tomando-o, independentemente de ser jocoso ou sério. É uma técnica de si que me tem ampliado imensi e resolvido muitos problemas. IP — Essas personalidades não te desarrumam ou perturbam? JR — Tudo na arte é um assunto de deixar assentar personalidades, que no fundo são poeiras. Ter apenas personalidade é reduzir-se a uma máscara feita de pó. E debaixo da máscara só há o informe ou o por formar. Eu prefiro formar de várias maneiras. É um modo de pluriintoxicação. De desfrutar do pó. Picasso dizia que o pó era protector, e que uma boa parte das coisas que sobreviveu do passado se deve ao pó que as protegeu. O pó é nosso amigo. O pó fez regressar, explendorosamente, a literatura Suméria. O pó ainda fará muito mais coisas regressar. IP — Poetry as Art as Poetry é, julgo, uma paródia do Art as Idea as Idea, do Joseph Kosuth? JR —Não estou interessado em ideias, mas no potêncial poético de certas ideias, ou no potêncial filosófico de certas imagens. Parto do acto poético como acto poético. Nunca saímos do acto poético. A passagem pela arte é mais uma contextualização. E depois há o ciclo mitologico das “poesie” do Ticiano. Isto é, a mitologia, e não tem que ser necessáriamente grega, está aqui necessáriamente presente. IP — Dois temas: viagem e revolução. Que me tens a dizer?


JR — Gosto de viajar, mas cada vez menos. Não preciso de mudar de cidade para me sentir completamente liberto. A revolução é vitória ou a derrota, festa ou apocalipse. O que me interessa não é a revolução, mas a canalização do entusiasmo revolucionário, isto é, o desejo de um prazer desmesurado ou de uma alegria cada vez maior e partilhável, como em Espinosa. Só neste sentido, e não do do terror, do ressentimento, da fúria ou da supressão da ordem, é que me interessa o espírito revolucionário. IP — Tens numa parede escrito, e traduzo, “o terror é o pleonasmo da revolução”. Isto não te parece reaccionário. JR — Antes pelo contrário. A revolução e o terror estão históricamente ligados, tal como a estética do sublime passa por esta relação. Já vem em Hegel. E o Marx também exaltou o terrorismo revolucionário. A ideia de uma revolução doce e lírica como o 25 de Abril está distante disso, porque o seu sentimento dominante não é o terror mas a alegria. É uma variante involuntária de uma frase do Finlay (só me dei conta depois da montagem), mas serve mais para inquirir, do que ir por um caminho radical. Sou, óbviamente contra o Terror, mas quero recuperar o entusiasmo revolucionário e alguns aspectos do sublime. Não se isso é possível, mas ando a tentar. IP — Normalmente associa-se o sublime ao dionisíaco. JR — É um equívoco. Basta recordar o papel de Apolo nas epopeias homéricas. A luz terrível da Apolo é a mesma que fez Ulisses dizimar os pretendentes num banho de sangue. A crueldade de Apolo é muito mais evidente e sanguinária, a crueldade de Dionísos é selvagem e nocturna. Além disso há muito mais deuses que me interessam, como Hermes e Proteu.




IP — Arriscas-te, neste frenesi de interacção de imagens em resvalar para o pantanoso domínio do alegórico. JR — Precisamente. A possibilidade de passear entre o que as imagens prometem e o que as palavras propõem encenar é algo erótico. Por isso a incursão nas aparências alegóricas é sempre variação. Vemos isso em Duchamp e Llansol. O alegórico que pratico é sem trela, articula-se com a tradição simbólica mas tornou-se selvagem, inesperada, aberta a outras associações, e disposta a gerar conceitos ou fábulas. IP — Inseres-te numa tradição? És um tradicionalista? Porquê tanta coisa do passado? JR — A tradição não é uma coisa que se aceita, mas um campo de ligações a re-inventar, a re-montar, a contaminar. É impossível fugir à ideia borgiana de que criamos os nossos predecessores e sucessores. Aliás, nós vivemos para sermos criados como predecessores pelos que hão de vir, e alimentamos irónicamente esse fugaz filão a que vivencialmente seremos alheios. Há uma empatia pelo devir, mas não é uma empatia pela palavra, o conceito, mas pelas criaturas que se adivinham. Não me vejo no papel de alguém importante a posteriori, mas há uma pulsão que se dirige para outros tempos da qual não me consigo evadir. A experiência dos conceitos é em boa parte uma descriaturização, embora possa ser habitada por sensações. IP — O teu trabalho aposta no jogo de contrários? Ou na habitação das contradições? JR — Neste momento não tenho resposta para isso. Já me contradisse tanto, contradizendo o que contradisse, e por aí


fora, que não sei onde está o meu gosto, mas sei que o tenho e que gosto de o exprimir de um modo assertivo e amoroso. É aqui que vai a ideia de Doxa, de que as aparências sobram aos jogos lógicos da contradição. Na natureza pode haver opostos a uma determinada escala, como polos de variações ou metamorfoses, mas não há uma lógica absoluta que o determine como contradição. IP — Não temes ser vítima da imaterialização do mundo, e especificamente na arte? JR — Eu faço uma arte que começa por ser absolutamente não-física e conceptual, mas não acredito nem no lado conceptual, nem no lado não-físico da arte, ainda que a materialidade esteja hoje de tal forma imbricada no mundo digital, que não se dá pela diferença. De qualquer maneira os fluxos de informação, vindos de múltiplas partes, habitam os nossos corpos. IP — A mala na exposição é um beaudelairiano convite à viagem? JR — Ao exotismo, à liberdade, à evasão, aos confins do mundo, às àreas mais obscuras, como em Conrad? Sim! A mala na exposição é também uma referência primária a Duchamp, e também a um livro curioso, ainda que incipiente, de Vilas-Matas que é “A História abreviada da literatura portátil”. Às vezes tenho vergonha de o dizer. É uma ideia que vingou no século XIX até à segunda guerra mundial. Das grandes deslocações às maiss ínfimas. E a alguma desolação. Almada tinha um trocadilho fácil sobre as malas, referindose a Pessoa. A mala traduzida do espanhol, como a má da fita.




IP — Referiste-me que o sentido é mais que um uso, porque está sempre a ser acrescentado e tapado. JR — Como na história das entradas de diccionários. Eu trabalho com camadas de sentido, tal como os pintores dão camadas de tinta. Às vezes uma camada é completamente diferente da outra. Aprendi isso com o Picasso, o mestre da interioridade da pintura, com as suas cinematografias. Posso, se me apetecer, continuar a dar camadas até ao fim da minha vida. As camadas dos outros são ingerências. Tenho que lhes abrir as portas. Se alguém comprar uma obra minha tem que a tomar como algo inacabado que sofrerá mutações, a maioria das quais através de contaminação ficcional. Uma obra minha, mesmo que nunca mais a veja, continua a crescer e a ser regada por sentidos. Eu vejo a totalidade da minha obra com uma jardinagem edénica. IP — És um xadrezista, como alguns dos teus percursores? JR — Nem por isso. O meu interesse pelo xadrês, como pelo de outros jogos, vem do canibalismo que lhe é intrínseco, em que todos podem simbólicamente comer todos. Neste aspecto o xadrês é mais generoso e cruel que o cristianismo, que só dá comer simbólicamente, ainda que repetidas vezes, o corpo de Cristo. De resto detesto jogar xadrês, pois deixame num estado de tensão e exaustão. IP — Tenho a sensação que no meio deste trabalho com ar seriíssimo há qualquer coisa de extremamente infantil, brincalhão. Estás a jogar connosco? JR — O jogo, o lúdico, o jocoso são ao mesmo tempo meditação e crueldade. Meditação, como disse Plotino,


é atenção prolongada, de um modo natural, sem esforço. Crueldade porque se substitui a tudo, e há nos jogos uma dimensão voraz. Jogos de linguagem, a familia, o estados, a economia, são jogos. Jogos que jogamos e que nos jogam. E, se quero mesmo mudar em mim algo não é a revolução que me socorre, mas a mudança de jogo, a começar pelos paralogismos e tautologias em que assenta. Na Odisseia práticamente não há rasto de Dionísos e a alternância é entre Hermes, o deus das metamorfoses, deslocações, engodos e risos e Apolo, o deus da justiça e da clarificação. E claro, há Atena. IP — Em várias obras tuas a arte é categorizada e parodiada, como se a noção de arte fosse ao mesmo tempo irrekevante e pertinente para entender o que fazes… JR — A arte não passa de uma palavra manhosa que designa um conjunto de actividades cada vez mais divergentes e inconciliáveis. É uma etiqueta que serve para alimentar os que se interessam essa etiqueta. Uma pescadinha de rabo na boca. Antes, ser artista era uma vocação, como ser poeta. Era uma competência, em certos aspectos maldita. Aquilo que faço surge desse fundo vocacional e é atravessado por saberes em que já me exercitei muito. No meio disto não me sinto nada à vontade com o art world. Acho que tenho estado a inventar uma espécie de art world paralelo, com uma estética concorente que não se pode chamar estética. É uma lógica da semelhança que ao mesmo tempo parodia e inverte as paródias. IP — Chamas-te John Rindpest. É uma doença antiga. Como te caiu esse nome?




JR —É um apelido raro. Rind é um revestimento, uma camada, uma pele, uma casca. É curiosa uma citação que o Google translator oferece quanto à palavra rind, que é muito pictórica e se aplica perfeitamente ao que sou: “A pintura atua como uma espécie de cobertura, uma casca conservando uma longa história de toques anteriores que contribuem com uma certa nodosidade, cheia de pequenas fendas, ao revestimento final”. E pest é uma praga, uma pandemia. O meu nome significa assim, a pandemia das diversas camadas. Adoptei este pseudónimo numa perspectiva de mau inglês, de pseudointernacionalização, que dá para desconfiar. Dou, ainda por cima, inúmeros erros de ortografia, e sou disléxico, desatento, desleixado. Para os mais formalistas é um horror! Este é um defeito que dá azo a filões creativos. A ortografia errada e o solecismo acabam por funcionar involuntáriamente como belas perturbações. Se forem irrelevantes é de corrigir. Como frequento textos medievais e diccionários oitocentistas (como o Bluteau) agrada-me uma certa anárquia ortográfica. Sou, em príncipio, a favor do desaparecimento de qualquer acordo ortográfico. Deixar o bom senso e a vontade de ser lido clara ou obscuramente a cada pessoa. IP — És muito metódico? Disseram-me que a exposição estava determinada ao milímetro antes de ser montada. JR — Julgo que nestas coisas recentes o processo é completamente espontâneo e entusiastico. O pensamento e as ideias formais surgem-me em catadupa. Sobretudo ao acordar. As ideias sobram-me e formam uma desordem. É o momento antes do esboço. Anotar ideias antes que desapareçam. Escrever cinco com “s”, como nalguns livros barrocos. O escrever ego com u, como um adolescente que se está nas tintas para a linguagem escrita, que não tarda será


obsoleta. Mas, parta ser franco, sou metódico no sentido em que isso me permite ser rápido e despreocupado. IP — Quando entrei pela primeira vez nesta tua exposição foi como se entrasse num livro que continha livros. Dizes que a exposição partiu de um livro. Em que medida o livro é importante para ti? JR — Nas exposições, que sobram como espaço aos livros que as originam, a negatividade e o vazio desdobram-se como algo ainda mais habitável. Enquanto o plano liso do poema permite a deambulação dos olhos e quiçá da mão (embora estes livros sejam só digitalmente manuseáveis), aqui entramos com o corpo no livro que é exposição. O corpo torna-se parte do livro. Isto é, o espectador quando entra na exposição faz parte da exposição que é em também livro. A sua consciência e a sua presença dentro da obra fazem parte da obra. Cada pessoa que entra na obra, é não só uma variação formal, como é uma variação na consciência. Não consigo aceitar a ideia de uma obra ne varietur. O que faço é já variável e variação, e é para vir a ser adoptado, colado, avacalhado, enaltecido. IP — Herberto Helder escreve: “a poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só”. Concordas? JR — Há uma solidão, sim, mas é já mais que um em si. Não vejo o artista ou o poeta como um caso isolado contra o mundo, contra o leitor, contra o meio (com ou sem claque). Essas são possíbilidades de encenação e de ajustamento de poderes. Sinto-me parte do mundo e de um meio que continuará muito depois de mim, seja lá como for. Tenho as minhas irritações, diferendos e polémicas, claro está.




IP — O Herberto também diz que “a grandeza afere-se pelas conveniências do mal”. JR — Mais pelas inconveniências do “saber bem”. A mítificação do mal é um tema romântico, e o mal é para mim uma coisa somática. O que nos sabe mal, literal ou metafóricamente, é indigno de grandeza ou veneração. Temse-lhe repulsa. IP — E o que achas da metáfora do artista como demiurgo? JR — É circular. A ideia original, antropomórfica, a de comparar a criação do mundo a um artesanato, é antiga. A sua inversão é mais do mesmo e tem qualquer coisa de caricato, uma vez que a ideia de demiurgo está há muito fora da ordem do dia quanto à emergência e fazer-se do mundo. A “minha” obra é apenas um detalhe no tecido das obras, e como tal participa como pode na vida. Eu vejo-me muito mais como um entre-autor, ou um actor criativo, do que como um “pequeno” demiurgo. Confesso que não me repugna totalmente esse papel, mas prefiro-lhe o de se deixar possuír por um deus que cria, por exemplo. Ou então, na sua inversão teúrgica, que herdamos do neo-platonismo; fazermos com que o suposto deus, que a cada dia faz o mundo, se deixe participar e influênciar por criadores menores. E neste caso, o mundo seria uma espécie de actividade colaborativa entre o divino e as criaturas. Agrada-me esta ideia anti-gnóstica de colaboração responsável, de diálogo, e até de confronto. Faz-nos sentir que somos inalienáveis, e de que a alienação, a estranheza, sendo sensações dramáticas, são também fecundas, resultam de erros da consciência. IP — Então alinhas pelo lema surrealista colhido em Lautréamon de que a poesia, ou a arte, é feita por todos?


JR — Para mim, insisto, contra todas as maldições e malditos, o acto de escrever, mostrar, desenhar, é comunitário. Faz-se com vários. Não o fazemos com todos, mas com alguns, vivos, mortos, etc. Não o fazemos contra todos, mas provocamos admiração, irritação, excitação ou alguma apatia. Muitas vezes é a irritabilidade que provoca a fecundidade. Boa parte do meu trabalho nasce da paródia ou da refutação, que, neste caso, são formas rebuscadas de dar sentido e valorizar os tais tipos e obras irritantes. IP — Citação, manipulação de citação, etc. O que me dizes a isto? JR — Citar citações, etc. Em pequena parte. Sempre preferi falsas citações, se bem que tudo ns linguagem é citação, mesmo as cores. O verde veronese, o azul Klein. Etc. Ecoamse cores, formas, frases, ou, a um nivel mais básico, palavras. IP — E autores, citas? JR — Respondo a eles, ou sou eco dos seus trabalhos e preocupações. Citar pode ser responder. Também se pode falar de influência, seja na versãp agónica, à Bloom, seja derivada do vulgar “e se fizesse assim”… Claro que posso soltar nomes: Duchamp, Lapa, Gombrowicz, Ian Hamilton Finley, Kosuth, Broodthaers, Kafka, Wiener. Não sou aficcionado de alguns destes nomes, de outros sou. Não procurei que esta exposição parecesse assim. Começou por ser uma ficção, como um devaneio pessoano, desinteressado, e resultou de uma ida com um amigo meu a Basel, em que sentimos uma nostalgia, em parte irónica, da Arte Conceptual, que já leva mais de meio século em cima. Ele disse-me “e se fizessemos umas coisas conceptuais, tipo anos 60 e 70?…”






IP — Há uma insistência no mundo grego na tua obra por demais evidente. Como explicas isso? JR — Seria impossível furtar-me ao que me pensa e me fascina. As coisas gregas podem parecer forçadas, a armar. Mas é algo vivido na carne desde que sei ler. O meu primeiro livro de cabeceira foi de mitologia egípcia, que li e reli várias vezes. O meu pai lia-me de um pequeno dicionário de mitos gregos prefaciado pelo Pierre Grimal. Lembro-me do Hércules. Depois li de enfiada um livro, sério que é o que havia lá em casa, da Edith Hamilton aos 9 anos, e decorei essas histórias, que no fundo eram transmitidas pelas amas às crianças. Convenci, quando tinha 8 anos, a comprarem-me, em inglês, por causa das fotos e bonecos, e que me lessem quando pudessem, a tradução da Enciclopédia Larousse com prefácio do Graves. Passado pouco tempo deram-me a Mitologia Geral da Maria Lamas, que é uma impostura, pois trata-se de uma tradução livre da referida Larousse, com desvios insignificantes aqui e acolá. Há cerca de 20 atrás dei uma série de aulas de Mitologia numa escola de arte, com incursõe no mundo hebraico, sumério e indiano. Tenho sido um mitólogo amador, com todos defeitos que isso tem, e gosto de questões ligadas ao vocabulário grego. Consulto o maravilhoso livro do Onians sobre o vocabulário desse mundo antigo, assim como o Vocabulário das Instituições Indo-Europeias do Benveniste e, cada vez mais o dicionário etimológico de grego antigo do Pierre Chantraine. Um dicionário establece associações e redes de sentidos, tal como um trocadilho ou um erro na linguagem. IP — Ficamos por aqui? JR — Ficamos por aqui!











Há algo de idiota na arte estar sempre a questionar-se e a questionar os seus limites, como quem coça uma ferida, narcisicamente. No fundo aceito esse questionamento como uma farsa literária cujos resultados são por vezes interessantes, aproveitáveis, recicláveis. Não me importo de participar em parte nesse trabalho (post) paradoxal, mas há algo que me faz querer distânciar. Desde há muito tempo que a promiscuidade entre textos e arte é grande. No modernismo houve muita gente a afastar a arte da literatura, em especial da narrativa. Uma divertida caricatura desse processo está literáriamente registada em The Painted Word de Tom Wolfe. A Arte Conceptual e post-conceptual usou textos (e tipografia) como arte, material ou imaterialmente. Alguns poetas tornaramse artistas. O caso mais explícito foi o de Marcel Broodthaers que rápidamente se deu conta de que a grande diferença é a de que a arte, mesmo a mais imaterial e a políticamente mais radical, é sempre uma mercadoria. O tipo de negócios que se pode fazer com a poesia, é ao lado da arte, completamente ridículo. Penso que no caso de Duchamp o factor apropriação é sobrestimado em comparação com o factor poético, do qual é indissociável. Do meu ponto de vista o acto de apropriação (e de pseudo-provocação) é subsidiário do acto poético (que é essêncialmente uma experiência de linguagem). Daí a insistência em aspectos não-ópticos. Há um lado de dissimulação e comédia em Duchamp que é de sublinhar.


A primeira arte conceptual reage ao extremo formalismo e serialismo da cultura americana, mas mantém-no, mesmo no uso da linguagem. O conceito, a ideia, o processo, são termos próprios da capitalismo. A tradição poética, que não os excluí, considera a experiência da linguagem muito acima de qualquer intencionalidade, forma ou conceitos A poesia não é parafraseável, e a sua redução ao que quer que seja é imbecil. De Mallarmée até hoje muita coisa aconteceu na poesia. Por um lado a poesia explodiu: na tipografia, na sintaxe, no som, nos ritmos, no campo semântico, no aspecto visual, nos processos, nas técnicas, nos suportes, etc. Mas a maior parte dos poetas continua a olhar de soslaio essas experiências (algumas delas bastante tontas e irritantes), que são ferramentas que podem dar frutos extraordiários. O triunfo do versilibrismo é um demorado impasse que cada vez mais se vive e escreve com auto-ironia. Se o sabor da mortalidade entrou na poesia em baudelaire, a mortalidade tornou-se hoje um caso eletrónico-digital (por exemplo:sabe-se dos que morrem on-line). A poesia pode apropriar-se quer da sua herança experimental quer dos métodos da arte mais recente, como o fez, mas só em pequena parte, a Conceptual Writting, numa perspectiva do grande filão poético que nada exclua. Há uma enorme falta de cultura visual na maioria dos poetas, o que é de estranhar, uma vez que a poesia distinge-se hoje em dia da prosa literária mais pelo aspecto visual do que pelo ritmo.






Por outro lado sempre existiu um namoro entre arte (e em particular a pintura) e poesia — arte é poesia muda e poesia arte que fala. Mas uma vez que hoje a arte também fala (e fala bastade que maneira!) e a poesia mostra, a diferença entre poesia e arte pode perfeitamente desaparecer. E uma vez que os limites da arte são tão extensos, aquilo a que hoje chamamos poesia só teria a ganhar com isso. Já existiram experiências, quer de um lado, quer do outro, mas o campo da arte e da poesia continuam a falar só para si (o art world não é o mundo literário). Se bem que a teorização da arte sempre se tentou distanciar da poética, e nalguns casos, até da prática da arte, é para mim uma necessidade tornar quer a poética, quer a teoria de arte (se possível poética) numa poética-arte. Isto é, fazer das artes poéticas obras de arte poéticas. É só levar a coisa à letra. Neste sentido a criação de um Museu de Teoria de Arte e Poética está em curso, assim como o assumir o lugar da exposição como “Livro”(vêr: Art Exhibitions as Books, de John Rindpest), na tradição de Malarmée. Retomando o filão barthesiano — não é a intencionalidade ou a ideia que incomodam, porque são óbvios, explícitos, e se ambivalentes fácilmente codifícados — é ainda a já velha ideia de indeterminado, de significante flutuante, de jubilação inerente aos signos que compõe a poesia-arte, e essa é no fundo inapropriável, por mais que possa surgir como paramento de algum poder.









Antologia de Artistas

Artistas que balbuciam, que querem ter nomes, ter vida, biografias, etc. De onde vem isto? De um desejo de expansão do “sujeito” para além do sujeito, como se a alegria espinosiana não coubesse num só? No prazer mimético: camuflagem, pastiche, dissimulação, polémica, brincadeira? No “e porque não”, “se calhar”, “desejo forte entrando na substância do mundo”, prazer de se entregar ao jogo das influências (entusiasmos e ânsias ao mesmo tempo)? Pois claro! E o que é se expõe? 1) De um lado uma instalação que encena fragmentos de um poema ainda em gestação, um épico chamado “Do Catano”, em 144 cantos. Esta obra é filiada na poesia visual, mas com incursões claras no ornamental, não fora o autor desde sempre adepto do ornamento — excluir o ornamento é excluir a natureza e o corpo, e sem estes, poéticas ou éticas não passam de espirituosas manhas bem intencionadas. 2) Do outro uma série de imagens de exposições e instalações cozinhadas digitalmente, a passarem (em slides?) — visões imateriais de materializações (já se experimentou ao menos uma vez!). Correspondem ao desejo de uma maior promiscuidade produtiva entre o mundo da livro, da escrita, e o bem estranho art world (tão enredado nos seus negócios, legitimações, mortes, sobrevivências). O olhar desprevenido perguntará: onde é que isto é? É aqui, sempre em nós, no que a nossa consciência for capaz de encenar. como paramento de algum poder.








AMAT

Temos o prazer de anunciar a todos os institucionais e interessados a inauguração do AMAT/MATA — Ambulatory Museum of Art Theory/Museu Ambulatório de Teorias de Arte. É uma data feliz em que a teoria, a prática poética e da Arte se conjugam finalmente para poderem caminhar juntas. Uma teoria que se torne artistica e poética, uma obra de arte que seja teórica e poética, ou uma poesia que seja teórica e artística. Não tendo para já um espaço perviligiado em que se fixar o AMATA/MATA propõe-se expor, ou simular que expõe, em múltiplos espaços, sempre que possível. Não existindo no mundo nenhum museu deste tipo, e sendo a teoria de arte um prática milenar indispensável para o entendimento e a percepção das obras de arte (ao ponto de por vezes se confundir com ela), levamos finalmente a cabo este projecto que já acalentavamos há mais de uma década. O nosso museu, que é para já um Museu ad hoc, conta acolher em breve algumas exposições, e tem como regra só admitir exposições organizadas por artistas ou poetas. As entradas serão livres, e esperamos que o público se sinta seduzido com esta ideia ou que nos seduza com as suas ideias. (de que a crítica, agora práticamente defunta, foi um dos ramos)






SUGAR & TERROR

Indeed, terror is in all cases whatsoever, either more openly or latently, the ruling principle of the sublime. (Edmund Burke) A fantasia irrequieta, a comicheira ornamental, a folhagem, e um apetência especiosa (ou galante) pela desmesura pareciam outrora frívolos e superficiais. No entanto preparavam o terror do sublime. Também no século XVIII as teorias estéticas anteciparam, com rigor, o que veio a suceder na revolução francesa, sem saber que o estavam a fazer. Shaftesbury, Burke e Kant foram claros quanto ao repto que representava o sublime. A modernidade optou resolutamente pelo sublime contra o belo, desde a insistência no ruído do Manifesto Futurista de Marinetti até aos ulteriores desenvolvimentos na arte. Não é só nas versões quentes e expressionistas que esse ardor sobrevive. Aí o lirismo fazia ainda parte da comédia de um eu dilacerado, no confronto sofrego com o nada ou as suas elevadas aspirações. Porém é na abstracção e na estética fria derivada de Duchamp que o gosto pelo sublime, filtrado pela insaciável energia do mundo digital, que se exibe cruamente o sublime. Um sublime que nunca se descarrega suficentemente, e que busca o terrorismo no social e no mediático. Os actos terroristas são a outra face da moeda das catástrofes naturais derivadas. Não há pausas para o belo.


Adília Lopes, citando Barthes, escreveu que o açucar mata. Estas obras não matam, mas põe a questão: podem as artes e o pensamento abrir o caminho para uma ecologia que dissolva o sublime na vida? Será que é a partir do sublime e da sua inversão que podemos saborear a liberdade e co-habitar?








O modo narrativo irrompe em toda a parte no que tenho vindo a fazer. E é esquisito porque sou um mau contador de histórias. Não as seguro. Metem a pata na poça e arranjam umas preleções para não se moverem do sítio. É a narrativa que nos livra do ar enfatuado, das soberbas, do orgulho. É ela que nos permite ser os artesãos do nosso destino. Por outro lado não há nada a descrever ou a auto-descrever com inusitada pureza, como se tivessesmos tomado umas gotas de LSD. E mesmo assim veriamos tudo de outra maneira, e não como uma fenemonologia naif. Eu cito sempre o Tzara: Tudo o que se vê é falso. Livrem-nos de qualquer terror do querer abarcar tudo. Não me importo com o burlesco das citações. Por vezes julgo que o artista cumpre a tarefa de criar um esquecimento que torna o futuro suportável ao mesmo tempo que cria uma memória incomportável e que gostariamos de saciar com mais tempo e mais memória. Há uma sofrega incompletude. Isso é parecido com o amor. Desculpa se estou a invocar sempre o amor, seja ele o extase entre corpos, seja o desalmado cíume, seja a relação consolidando quando um dos amantes segura com firmeza e contentamento o antebraço do outro. Posso acrescentar que estou do lado oposto ao da eternidade, ou do post-mortem, ou ao do falar, pintar, esculpir, cagar para os mortos. Diria que minha postura é a de anti-escravatura, de anti-servidão perante qualquer sombra de eternidade ou do fascínio da obra. Não me metam no papelão de figurão espectral a simular uma glória perpétua com a barriga cheia e o ego inchado, o que vendo as coisas dá no mesmo. Estive metido nisso e achei horrendo.


Porque persistimos em fazer obras de arte? A resposta é banal e simples. Porque estas acrescentam intensidade, complexidade e gozo ao mundo. Mais Eros, mais espelhos, mais subtilezas, mais modos de representar, mais sensações de deleite, quer com o comezinho, quer com o arrepiante. É uma atitude egoísta, o desejar mais prazer para nós, o termos o prazer de dar mais prazer aos outros, assim como o comichoso orgulho que assiste a todas essas operações, ou a comédia de haver um enorme número de pontos de vista. Assim como quando lemos ou vemos algo que nos faz estarrecer, assim o queremos, involuntários memes, reproduzir e reproduzir mais. O que à primeira vista surgia como mero onanismo não passa de resposta inconsciente, vontade de variação e semi-domínio de forças esquisitas que, malgrado as angústias subjacentes, mostram a excitabilidade da alegria a querer galgar mais e mais, nessa desmesura jamais alcançável em que se teima chamar infinito. O melhor é retomar a luz das fontes, a vingança que ascende na trama da tragédia, e a inevitável transe. Barba branca à caça de cabeças... a reaparecer sempre, a cozinhar e a guardar em conservas divinas com um tom lírico, que resplandece sem que o ancorem. Encarna o sono dos campos.

in Zoom (autobiografia de Rindpest)


JG — Vai longa a e da Arte…

JR — E iremos cear a lutar pelo equívoco dos equívocos.… Ma enganos e heresias.


entrevista na mansĂŁo

em mesas de cinzas, o, pela glĂłria inaudita ais uma comĂŠdia de







este livrito resulta do afã de documentar 3 exposições do ano de 2018 anunciadas como de Pedro Proença mas protagonizadas sobretudo por John Rindpest & Pierre Delalande estas exposições complementam as exposições, livros e eventos à volta da exposição o Riso dos Outros e foi editado pelos Waf Books no início de Março de 2019



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