Pausa

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Between the click of the light and the start of the dream Arcade Fire

Pausa para ser lido nos intervalos

BELO HORIZONTE JANEIRO DE 2008 NĂšMERO ZERO


expediente Conselho Editorial Erick Costa Rafael Reis II Projeto Gráfico e Direção de Arte Fernanda Gontijo II Colaboradores Alexandre Fantagussi João Rocha Lúcia Castello Branco Maraíza Labanca II Imagens Juliana Gontijo (exceto p. 4) II Impressão Guia Prático II Tiragem 1.000 exemplares II Informações Críticas Comentários Envio de material Contato jornal.pausa@gmail.com

Pausa: termo de origem latina que designa uma paragem ou uma interrupção momentânea de sons, movimentos, ações ou discursos. Uma pessoa assiste a um dvd, o telefone toca: pausa – a imagem paralisada, em estado de dormência, aguarda o acionamento do mecanismo que permitirá sua continuidade. Esse entretempo da imagem e do som é como um tempo em suspenso – “nada acontece”. Um recomeço aguarda o telespectador, e isso só é possível porque, escondida e silenciosa, a maquinaria do aparelho continua em rotação. Toda sua engrenagem trabalha para que a pausa aconteça e se mantenha, indefinidamente. A pausa é, simultaneamente, repouso e movimento. Pausa: jornal para ser lido nos intervalos – sentado num café, o momento às vezes demorado da espera; dentro do ônibus, lugar de passagem; nos momentos de ócio, quando nada resta a se fazer. Suspensão momentânea da corrente do mundo – suspensão que se abre para outros mundos. As pausas: jornal mais de escrita que de informação. A busca de uma linguagem que se fale no espaço de um intervalo – nada se pretende fundar, apenas interromper. Nada contra os recursos cibernéticos, quase ilimitados, mas tentar o infinito nos limites da página. A opção pelo jornal: crença na autonomia da palavra impressa, a possibilidade de distribuir os jornais pela cidade como cartas certeiras a um destinatário desconhecido – um leitor qualquer. Permitir-lhe que pegue, dobre, amasse e rasgue o papel; permitir-lhe que o leve para lugares insondáveis... A importância do contato manual: passar de mão em mão. (Uma pessoa, sentada num café, espera alguém. Distraída em relação ao espaço ao redor, tem sobre a mesa um jornal pelo qual passa os olhos – não questiona, não se lembra que espera nem o que espera, apenas lê; toca o telefone, ela se sobressalta: pausa: um mecanismo impalpável qualquer interrompe o fluxo descontínuo da leitura – é como se as palavras dormissem. A conversa termina e, coincidentemente, a pessoa aguardada chega; ambos se vão, deixando o jornal sobre a mesa; a leitura, inacabada. As palavras continuam em repouso, aguardando o momento em que o movimento pulsante da vida as colocará em contato com um novo leitor. Se essa leitura terá começo ou fim, pouco importa – a leitura é sempre um exercício de pausa). 2 II Rafael Reis




O QUE NOS IMPELE A nós, abandonados aos papéis errantes, não é dado furtar ao próprio espírito: – temos o cristalino silêncio do mundo a se desdobrar. Se gestos leves, dão-nos passagem os céus; se levianos, é então a perdição dos infernos.

Precisamos atravessar o infinito com lâminas nos pés e nas mãos: – cerrados os olhos com lâminas d’água não naufragam na sabedoria que os invade.

Assinaladas nossas portas à beira da noite imemorial, impelem-nos sussurros de papéis cortantes: – esse nosso risco. Evadimos – pés firmes sobre dupla lâmina – para territórios agrestes, secos, seguros da morte precisa.

O que nos impele: fazer caminhar a eternidade, extirpar as horas a fio, cegar mil sóis que nos ofuscam a vista, abrir frisos, frestas em lugares frios, dobrar mundos descobertos sobre si mesmos, suas falhas nas folhas frias; sob o jugo de nossa pena, verter o corpo proscrito de infinitos mundos e sobrescrevê-lo na pele cortante de um poema.

Erick Costa II 5


Conversa em tom menor

– entrevista com Lúcia Castello Branco

Lúcia Castello Branco é professora da Faculdade de Letras da UFMG e escritora. Está organizando as Obras Completas do poeta Manoel de Barros e, recentemente, dirigiu Língua de Brincar, filme baseado na obra do poeta. Nessa conversa, ela nos fala sobre sua relação com Manoel de Barros e sua obra, além de contar como foi essa experiência de transpor a poesia escrita para a tela. Pausa: Quando e como foi o primeiro contato com Manoel de Barros? Lúcia: Minha amizade com o poeta já se estende por vinte e cinco anos. E sempre foi, também, uma amizade “por escrito”. Ou, quem sabe, “por escrita”. É que, para minha honra e alegria, o meu primeiro ensaio publicado, antes mesmo que eu fosse professora da Letras e tivesse publicado o meu primeiro livro, foi um ensaio sobre Manoel de Barros. Chama-se “Palavra em estado de larva” e, mais tarde, foi publicado em um dos livros que fiz com a Ruth Silviano Brandão, o Literaterras. Esse ensaio sobre a poesia do Manoel saiu publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais. Na época, eu recebi, para ler, os livrinhos do Manoel, ainda editados em edições caseiras que ele mesmo bancava, quando ganhava algum prêmio literário. Mas ele já era prefaciado, por exemplo, por Antônio Houaiss. Então, eu fiquei completamente impactada com aquela poesia. E acho que esse texto, de alguma maneira, revelou o meu impacto. Porque o Manoel, depois de receber o Suplemento, me escreveu uma carta em que ele me agradecia e me dizia que muita gente veio procurar sua poesia depois que leu aquele ensaio. Isso, é claro, é parte da generosidade dele. Mas assim começamos nossa amizade “por escrito”, que mantemos até hoje. Só em 1996 fui até Campo Grande e fiquei mais de uma

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semana hospedada na casa do poeta. Só então o conheci pessoalmente. E hoje tenho mais de 60 cartas dele. Pausa: Como foi essa experiência de transpor para a tela uma poesia que se suporta sobre o nada? Lúcia: Então, não sei se foi assim difícil, para mim, fazer um filme que se suportasse sobre o nada. Pois o filme, de fato, tem como suporte essas cartas. E as cartas são ali mais ou menos o que o Pessoa escreve, em Mensagem, sobre o mito. Ele diz: “o mito é o nada que é tudo”. As cartas são, ali, “o nada que é tudo”. Então, o filme tem mesmo um suporte de papel. Essa sim, talvez, tenha sido a sua maior dificuldade: a de trazer o suporte de papel para a tela. Desde o início, sabíamos que esse era o desafio. Tínhamos o verso “um lápis numa península” como guia. E não queríamos, é claro, a imagem de um lápis sobre uma península... Queríamos o que essa imagem dá a ver: a escrita do poeta, aquilo que ele diz, de maneira muito natural, em uma de suas entrevistas: que, na ponta de seu lápis, tem um nascimento. Porque o que eu desejava mesmo era retirar a poesia do Manoel desse lugar um tanto regionalista em que a crítica o colocou. Queríamos a paisagem da palavra e essa paisagem, como o Manoel mesmo diz, é sem qualquer exuberância. A luta dele (e creio que a nossa, também) foi conter a exuberância do Pantanal. Pausa: Sabemos que você está organizando as Obras Completas do Manoel de Barros. O que falta para que elas sejam publicadas e, se não for pedir muito, você poderia nos dizer se elas terão algo “a mais”? Lúcia: Durante esse período em que estivemos fazendo o filme, de 2006 a 2007, eu organizei a fortuna crítica e escrevi o prefácio para as Obras Completas do poeta, a saírem publicadas pela Record. Estavam prometidas para dezembro de 2006, para os 90 anos do poeta, e estamos às vésperas de seu aniversário de 91 anos e isso ainda não aconteceu. Bom, mas o fato é que também foi uma luta contra a exuberância esse trabalho das Obras Completas. Pois o Manoel, dizendo que não tem fortuna crítica, mas “miséria crítica”, acabou não querendo nada disso no volume de suas Obras Completas. Ele gostou muito do prefácio e me disse que só quer ser levado pelas minhas mãos. Fiquei honrada, claro. E acho que isso é muito coerente com o seu percurso como poeta. Mas não sei o que editora acha disso. Ele não quis fortuna crítica, nem bibliografia sobre, sem biografia, ao final. O prefácio se intitula “Poesia de Mendigos Superiores” e eu creio que consegui escrevê-lo em “tom menor”, como ele gosta. Essa foi a minha luta, porque, apaixonada, eu só queria elogiar, exclamar, louvar. Mas, como o fiz em “tom menor”, ele gostou. E ele me disse, então, recusando a “fortuna”: “não quero elogios, sou vaidoso: sou mendigo superior”.

Lúcia Castello Branco II 7


do-it-yourself

Como se opera uma (leitura da) escrita no jornal e como o jornal se comunica com o livro? Podemos tomar o jornal como um pequeno livro, condensado. E tomá-lo nas mãos como um livro que, em cada número, está a ser feito indefinidamente, e que passa. Passa porque este espaço, o espaço do jornal, anuncia seu próprio desaparecimento; é esboço, rascunho, um farrapo do livro, que carrega consigo, para o lixo, para o nada, um naco de escrita. Falar em jornal é, pois, falar em um suporte abreviado, contraído, onde a escrita se interrompe no limite da página, inacabada. Trata-se de um espaço econômico, breve; de contenção e recorte: eis aqui as leis dessa escrita. Trata-se ainda de um escrever em que possivelmente se ensaia o livro. Por isso, nesse lugar, interessa deixar a linguagem experimentar a si mesma. Nesse gesto, a escrita, a idéia, ventiladas, se apresentam, inéditas, àquele cuja atenção, ainda que na duração de um instante, seja capturada por este continente onde se depõe um pensamento em expansão. Uma abertura, uma minúscula abertura. No livro-jornal, a escrita, talhada, reduz-se à menor medida, a medida do poema. Nas páginas deste veículo, sustenta-se apenas o que for breve, sucinto: um conto que se ensaia, um ensaio conciso que se conta... No perímetro das páginas jornalísticas, literaturas que apontam para o ilimitado, sismos de palavras que se abrem ao infinito pela porta do mínimo – um risco, um sulco, um átimo. Com seu “porte minúsculo”,

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“Tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, encaminha-se para o seu fim”. W. Benjamin

carrega um “vulcão de matéria narrada”, poetizada. Micronarrativas intermitentes. No jornal, as folhas são disjuntas, cindidas. Não há, por isso, um movimento de leitura determinado: desafia-se, desse modo, a linearidade do livro. O leitor, diante dessa paragem, deve juntar os fios soltos, pular as partes ao sabor do acaso. (Sim, tal percurso não se ativa sem um certo sabor pelo acaso.) Em cada rosto, em cada dobra, deve cintilar a sua “fileta de ouro”, como diria Haroldo de Campos, poeta para quem a grande imprensa desempenha papel fundamental nos rumos da literatura do século XX. Com o jornal nas mãos, o leitor desenha seu próprio trajeto, olha para fragmentos permutáveis, autônomos, que oferecem, como numa rede, múltiplas entradas e múltiplas saídas: qualquer ponto pode ser o início e o fim da viagem. Andarilhos-leitores trans-ladam o papel que compõe este livro-móbile. Pela leitura nômade, traça-se um percurso que exige portos – pousos, pausas – em contínuo deslocamento. O jornal é o livro escrito sob a tinta fresca dos acontecimentos, dos pensamentos, entre os vãos de tempo. Nesse mosaico, em cada página iça-se um livro. Cada segmento é passagem, um fio de escrita, faísca de poesia.

Maraíza Labanca II 9



6 e meia da manhã É desumano.

7 e meia Depois de ver toda vida passar diante de seus olhos, consegue levantar. Precisa de alguma razão realmente forte pra realizar esse ato aparentemente banal. Lembra-se de todas as escolhas que fez e que o levaram a esse momento. Formação escolar relapsa, universitária medíocre, profissional... parece não se aplicar ao seu caso. Essa sucessão de eventos levou a esse dia, essa manhã, esse horário. Não pode deixar de levantar. O peso desse passado deveria mantê-lo na cama. Mas não, deve levantar, justamente por causa desse peso. Não há outra saída. “A vida passa diante de seus olhos como um filme”... dizem por aí que o mesmo acontece quando se morre.

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Entre le corps et le corps il n’y a rien, rien que moi. Ce n’est pas un état, pas un objet, pas un esprit, pas un fait, encore moins le vide d’un être, absolument rien d’un esprit, ni de l’esprit pas un corps, c’est l’intransplantable moi. Mais pas un moi, Je n’en ai pas. Je n’ai pas de moi, mais il n’y a que moi et personne, pas de rencontre possible avec l’autre, ce que je suis est sans différenciation ni oppsition possible, c’est l’intrusion absolue de mon corps, partout.

tradução joão rocha

antonin artaud

poema

Entre o corpo e o corpo não há nada, nada senão eu. Isso não é um estado, não é um objeto, não é um espírito, não é um fato, menos ainda o vazio de um ser, absolutamente nada de um espírito, nem do espírito, não é um corpo, não ainda, é o intransplantável eu. Mas não um eu, isso não tenho. Não tenho eu, mas não há nada a não ser eu e ninguém, nada de encontro possível com o outro, o que sou é sem diferenciação nem oposição possível, é a intrusão absoluta do meu corpo, em meio a tudo.


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