Tau da Travessia - a Teopoética de Milton Nascimento

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O Tau da travessia: a teopoética de Milton Nascimento

Crédito: Pedro David/Nascimento Música

Paulo Botas Pedro Sol Blanco




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Sumário

Introdução

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O Tau da travessia: a teopoética de Milton Nascimento

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Entre a travessia e a resistência: sentinela

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Uma teologia da resistência

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A proscrição dos poetas e profetas

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A utopia: o Tau-não-ainda-possível

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Referências

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Sobre os Autores

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Introdução

Este Caderno que agora temos em nossas mãos é o resultado de um importante projeto do Instituto Ciência e Fé, da PUCPR, denominado Diálogos Contemporâneos. Dialogar é condição necessária do respeito que dedicamos às pessoas, em favor de uma mesma humanidade. Ele é um existencial que aproxima as diferenças, constrói caminhos, vislumbra perspectivas. Sem dúvida, estamos num momento da história em que o diálogo se configura como uma ação vital e imprescindível e que, para acontecer, necessita de lugares reais de acolhida, de iniciativas concretas de encontro e de procedimentos qualificados de comunicação. Dialogar com o contemporâneo é um desafio. Ao colocarmos esse tema em questão, devemos estar à altura daquilo que ele nos exige e, principalmente, dispostos a assumir as consequências de tal escolha. Diante desse “tempo do presente”, concordamos com Giorgio Agamben quando afirma que o contemporâneo é “perceber no escuro do presente essa luz que


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procura nos alcançar e não pode fazê-lo. Por isso mesmo, os contemporâneos são raros. E, por isso, ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós”1. Com uma clara inspiração no projeto Átrio dos Gentios, do Pontifício Conselho para a Cultura, o objetivo dos Diálogos Contemporâneos se efetiva na criação de pontes entre diferentes visões de mundo. Inserido no universo acadêmico, e a partir de uma conversa verdadeira sobre assuntos que tangem à existência humana e sua relação com o transcendente, espera-se traçar percursos comuns, nos quais a escuta qualificada e a interlocução transparente se transformem em fontes originárias para as buscas de sentido e para, quem sabe, como nos inspira o Cardeal Ravasi, um aventurar-se pelas altas veredas do mistério — que, para aqueles que acreditam, traduz-se na experiência de Deus, e para outras pessoas, num encontro com o Desconhecido. Esta segunda edição dos Diálogos Contemporâneos tem a responsabilidade de discutir a fé e a espiritualidade nas músicas de Milton Nascimento. A simplicidade é uma marca da criação artística e do jeito de ser desse gênio “mineiro” e brasileiro, e suas canções tocam profundamente a alma daqueles que estão sensíveis ao inesperado. Suas letras e melodias nos convidam a fazer travessias: falam do amor em todas as dimensões e nos lembram que uma vida, para ter sentido, 1

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AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p. 65. Caderno Ciência e Fé


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precisa de buscas, de sonhos, de solidões e de fé. Bituca, como os amigos o chamam carinhosamente, desfaz com sua arte a tênue linha que separa (ou aproxima) a imanência da transcendência, e nos ensina que somos mais felizes quando sentimos, em nossa existência, a beleza e a angústia do mistério que nos envolve. Aos poucos, vamos compreendendo as doces palavras de Elis Regina quando diz que, “se Deus cantasse, seria com a voz do Milton”. Unir teologia e poesia. Essa foi a forma que o teólogo Paulo Botas e o músico Pedro Sol, ambos amigos do Bituca, encontraram para falar de fé e espiritualidade nas músicas do cantor. E eles o fizeram com sensibilidade e competência, próprias daqueles que compreendem, a partir de sua maneira singular de ver o mundo, que a vida se constrói na mística do caminho. E o que eles nos ensinam? Que a teopoética de Milton é canção profética, forte; de uma fé engajada com o tempo, com a história, com a natureza. Mas é também canção que dura para sempre, porque nos recorda, a todo instante, que somente somos plenamente humanos quando estamos abertos ao infinito. Nosso agradecimento ao Paulo, ao Pedro e também ao Edu Spiller, que tornaram possível, com sua amizade, a realização de mais um Diálogo Contemporâneo. Fabiano Incerti Diretor do Instituto Ciência e Fé da PUCPR

Ir. Rogério Renato Mateucci Diretor de Pastoral e Identidade Institucional da PUCPR

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O Tau da travessia: a teopoética de Milton Nascimento Paulo Botas Pedro Sol Blanco

A Daniel Cielo Blanco, mano da travessia... Antes mesmo de ser um encontro, pude crer que o começo está com gosto de continuação no fluxo da eternidade. Plenitude e fraternidade fluem solos no meu ser, sem barreiras pendentes, muito menos dúvidas presentes das mazelas ou bondades puras dessa terra. A raiz dos meios de contato, a ciência, a física quântica e o amor universal pleno, contém em sua seiva a resposta original e genuína, baseando, na cumplicidade da vida, na humildade de errar e assumir – nem que seja fazer o sinal da paz e sorrir, ou senão um “tudo bem” e sumir, nem que seja por um segundo na linearidade da ilusão –, aquilo que chamamos de tempo, que é mano do vento, que fez pacto com o mar, que salgou a terra e secou ao sol. (Pedro Sol Blanco, O começo, os meios e o fim)


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As pessoas necessitam saber o que são elas mesmas. Há em cada um de nós um certo tom, uma certa palavra, e nosso dever é fazer disto nosso próprio poema, nosso próprio canto, uma sinfonia. Se faltarmos a esse dever, teremos vivido em vão. (Eugen Drewermann) Há espaço para tudo numa única vida. Para acreditar em Deus e para um fim miserável... é uma questão de se viver a vida de minuto a minuto, acolhendo, além disso, o sofrimento. (Etty Hillesum, Diários 1941-42)1

A

s travessias da vida são diversas e plurais. Das afetivas às políticas, elas vão se revelando a cada novo momento e a cada novo encontro. Guimarães Rosa (2006, p. 553) escreve no seu mais célebre romance: “Existe é homem humano. Travessia”. Para ele, travessia tem o sentido simbólico de vida, transposição de etapas: “digo: o real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 2006, p. 57). No entanto, se são plurais as travessias, o caminho a perseguir (Tau) é um só: a busca da plenitude que as várias culturas religiosas nomearam de Deus, não só numa aventura de alegria, encontros, mas também de sofrimentos e cruzes.

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Etty Hillesum, holandesa de 29 anos, assassinada em Auschwitz em 30 de novembro de 1943.

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Ontem deixei muito claro para mim que eu demorei 27 anos para conhecer o verdadeiro amor universal, que é resultado da união de todas as coisas não sagradas nem pagãs, e sim a união de toda a natureza, que resulta no que chamamos de Jehovah, Alah, Deus, Jah, Criador, Todo Poderoso, dentre muitos outros nomes que nossa história cultural denominou, ao longo das gerações e nos diferentes cantos geográficos do nosso pequeníssimo mundo, mais vulnerável que uma pulga no pescoço de um cão peludo! (Pedro Sol)

O Tau é a 22ª e última letra do alfabeto hebraico. No alfabeto grego é a 19ª, associada ao número 300, uma combinação derivada dos números 3 e 100 (este, um múltiplo de 10, que representa a perfeição). Para os cristãos, essa letra marca a contradição e a rasteira que o Senhor passa em todos os que pensam poder reduzi-Lo a conceitos racionais e tangíveis: “A loucura de Deus é mais sábia que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens” (1 Cor 1,22-25). Essa letra sempre foi usada como sinal. Para os hebreus, a plenitude do alfabeto; para os gregos, num duplo sentido: como cruz e como vida; para os romanos, em suas listas militares, era escrita ao lado do nome dos soldados para significar que eles estavam vivos. Essa marca é apresentada pelo profeta Ezequiel como o anúncio e a esperança da plenitude do pacto feito pelo Senhor: “Eu lhes darei um coração íntegro e infundirei neles um espírito novo: eu lhes arrancarei o coração de pedra e lhes darei um coração de carne” (Ez 11,19). Caderno Ciência e Fé

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Na libertação do Egito, a marca do Tau foi feita com o sangue do cordeiro nas molduras das portas, para que o Senhor, quando passasse pelo Egito para castigá-lo, respeitasse as que estavam com aquele sinal e não deixasse o exterminador penetrar nas casas dos hebreus (Ex 12,21-23). O Tau é um sinal no meio da travessia. O caminho de uma escolha espiritual e o testemunho de vida concretizado no amor, na verdade e na liberdade. No livro do Apocalipse, o Tau é o selo do Deus vivo: “Vi outro anjo que subia do oriente, com o selo do Deus vivo, e gritava com voz potente aos quatro anjos encarregados de causar dano à terra e ao mar: não causeis dano à terra nem ao mar nem às árvores, até que selemos a fronte dos servos do nosso Deus” (Ap 7,2-3). São Francisco assinava seus escritos com a letra Tau, que, para ele, significava a bênção de Deus: “Que o Senhor te abençoe e te guarde; que o Senhor faça brilhar sobre ti a Sua face e Se compadeça de ti; que o Senhor volte para ti o Seu rosto e te conceda a paz” (Nm 6,24-26). O Tau é o símbolo de uma vida sempre renovada que afasta a velhice e a mesmice dos que só cobram resultados e perdem a gratuidade de existir: é o símbolo da cruz, da intersecção entre o humano e o divino, para testemunhar que tudo tem um preço, que a vida não é impune e que o Senhor nos chama a fazer dela uma consagração de amor e de liberdade. Por essa razão, o Tau não pode ser reduzido a um mero elemento exterior ou decorativo. Ele é um selo, uma marca, uma tatuagem gravada, a ferro e fogo, como símbolo e sinal da força interior e da bênção que devemos ser para os que nos amam e nós amamos (BIGI, 2004). 14

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O Papa Bento XVI (2005, p. 33, 39) escrevia: O cristão é alguém que durante a sua vida tem de compreender que as suas certezas e a sua situação pouco se distinguem das dos outros, mesmo que ele tenha pensado o contrário anteriormente. Existe sempre uma ameaça da incerteza, da tentação e com toda a dureza a fragilidade de tudo aquilo que costumava parecer-lhe tão evidente. No mar do oceano das incertezas da vida se encontra cada um de nós. A única coisa que nos salva e não nos faz afundar é a trave da cruz, o Tau, que nos liga a Deus.

Assim se faz a travessia dos homens e das mulheres: algumas vezes náufragos, sempre errantes num mundo incerto; outras vezes agarrados a um pedaço de madeira como um joguete das ondas do oceano. E todos nós estamos realmente presos a uma cruz, mas a uma cruz – um Tau – que não está preso a mais nada, porque está flutuando no mar.

Entre a travessia e a resistência: sentinela Milton Nascimento surge no cenário da música brasileira em 1965, no II Festival Nacional da Música Popular, convidado por Baden Powell para interpretar uma composição deste em parceria com Lula Freire, chamada “Cidade vazia”. Em 1966, Elis grava “Canção do sal”2, e então tem início a travessia poética do Bituca, seu apelido carinhoso. Milton 2

Gravada por Elis Regina em 1966, no disco Elis, e por Milton no disco Courage, em 1969. Caderno Ciência e Fé

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conta que havia lido um livro sobre as canções de trabalho dos negros do Mississipi (sul dos EUA) e voltou à sua memória o tempo de quando era criança e sua madrinha o levou para Cabo Frio. A imagem dos salineiros, da água do mar virando sal, teceu uma rede de associações com os negros americanos e surgiu a poesia, na máquina de escrever do escritório de Furnas, em Belo Horizonte, onde exercia o cargo de datilógrafo3. O cotidiano desses homens salta aos olhos e ao coração: Trabalhando o sal, é amor o suor que me sai Vou viver cantando o dia tão quente que faz Homem ver criança buscando conchinhas no mar Trabalho o dia inteiro pra vida de gente levar

E a sua indignada indagação sobre a destruição da natureza e sobre a exploração da força vital desses homens, obrigados a vender sua vida na esperança de um futuro melhor para suas mulheres e seus filhos. A preocupação social de Milton já vem delineada na canção, e será sua eterna companheira de travessia. Água vira sal lá na salina Quem diminuiu água do mar? Água enfrenta o sol lá na salina Sol que vai queimando até queimar 3

Todas as letras e informações são extraídas do livro Contos da água e do fogo: a poesia de Milton Nascimento, notas organizadas por Danilo Nuha (a ser publicado).

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Trabalhando o sal pra ver a mulher se vestir e, ao chegar em casa, encontrar a família a sorrir Filho vir da escola, problema maior de estudar Que é pra não ter meu trabalho e vida de gente levar

No período de ebulição social e política de canções de protesto, teatro de denúncia e shows politizados, Milton não fica imune a essa contestação toda e escreve “...E a gente sonhando”4 (1962-1963): Há quem muito sofre, porque quer sofrer Há quem muito chora, porque quer chorar Há quem não quer nada e de tudo tem e, tendo de tudo, nunca tem ninguém

Em 1966, Milton escreve “Morro velho”5, motivado pela situação vivida na fazenda da tia de Wagner Tiso, onde as crianças brincavam juntas – os meninos da casa do patrão e os da fazenda: Filho de branco e do preto correndo pela estrada atrás de passarinho Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos

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Disco ...E a gente sonhando, 2010. Dos discos Milton Nascimento, de 1967, e Courage, de 1969.

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Passava um trem na beira do rio à margem da fazenda e, profeticamente, sua poesia descreve o que seria inevitável: Filho do sinhô vai embora, tempo de estudo na cidade grande

O pacto dos amigos é feito pelo que parte, sem saber que as condições sociais desiguais entre os dois os separariam para sempre: Não se esqueça, amigo, eu vou voltar

A volta do amigo que partira é marcada pelo status conquistado a partir do trabalho da família e de seu amigo de infância: Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar E seu velho camarada já não brinca, mas trabalha

No Festival Internacional da Canção de 1967, com “Travessia”, Milton tem uma participação consagradora e solta, definitivamente, a voz nas estradas sem parar, ainda que seu caminho fosse de pedra e lhe fosse custoso sonhar. Nesses tempos de preconceito religioso, sobretudo com os afrodescendentes, em que a hegemonia religiosa era católica romana e das igrejas evangélicas, Milton compõe “Pai Grande”6 e, sem saber o porquê, rende homenagem ao 6

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Disco Milton, 1970. Caderno Ciência e Fé


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dono do seu Orí 7, Oxalufã, orixá sincretizado com Jesus Cristo. Emergia sua dimensão religiosa feita poesia e canção: Meu pai grande, quisera eu ter sua raça pra contar a história dos guerreiros trazidos lá do longe sem sua paz

E revelava a conquista do Ìwà Pèlé, o bom caráter dos seus ancestrais: De onde eu vim, é bom lembrar, todo homem de verdade era forte e sem maldade Podia amar, podia ver todo filho seu seguindo os passos e um cantinho pra morrer [...] Se estou aqui, trouxe de lá um amor tão longe de mentiras Quero a quem quiser me amar...

Esse tema seria retomado no encerramento da Missa dos Quilombos, escrita por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, e realizada no Recife, em 1981, na praça em que expuseram a cabeça de Zumbi, líder de Palmares. A ameaça feita pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) não intimidou nem Milton nem os bispos Dom Hélder Câmara, Dom José Maria Pires, Dom Marcelo Cavalheira e Dom Pedro Casaldáliga, que a concelebraram. Em 1985, escreve a poesia “Lágrima do Sul”, uma crítica contra o Apartheid na África do Sul: 7

Orí, na língua yorùbá, significa “cabeça, alma orgânica, perecível cuja sede é a cabeça, inteligência, sensibilidade, em contraposição ao emi, espírito, sopro, imortal” (CACCIATORE, 1977, p. 205). Caderno Ciência e Fé

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África, berço de meus pais, ouço a voz do seu lamento, de multidão, grade e escravidão, a vergonha dia a dia E o vento do teu sul é semente de outra História que já se repetiu, a aurora que esperamos E o homem não sentiu que o fim dessa maldade é o gás que gera o caos, é a marca da loucura África, em nome de Deus cala a boca desse mundo e caminha, até nunca mais, a canção torce por nós

Milton evoca o preconceito contra os judeus, o Holocausto e o genocídio produzido pela Segunda Guerra Mundial. Ainda hoje, o preconceito não foi abolido, e pelas ruas e pelos becos de nossos países cresce o movimento violento dos neonazistas contra os pobres, os negros e os homossexuais. O dramaturgo alemão Bertold Brecht escreveu, profetizando: “Não se alegre com a derrota dele, jovem. Embora o mundo erguido tenha derrubado o canalha, a cadela que o gerou está no cio novamente”. No fim dos anos 80, Milton também se solidariza com a questão ambiental, com a causa dos Povos da Floresta e das Nações Indígenas e realiza uma expedição pela Amazônia, com o apoio do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) e do Núcleo de Cultura Indígena da União das Nações Indígenas (UNI), que resulta na criação do disco Txai8 – termo que significa: companheiro, a outra metade de mim, palavra da língua da nação Kaxinawa.

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Disco Txai, 1990. Caderno Ciência e Fé


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Uma teologia da resistência A Resistência e o Amor Rasgaram fora meu bloco de notas E me deixaram algumas páginas em branco Para o desencantamento do que foi E o despertar definitivo do que virá Jogaram vento e, de paraquedas, Eu encontrei uma térmica infinita Para o desencantamento do que foi E o despertar definitivo do que virá Foi tentando que errei Foi achando que perdi A essência do que sou A resistência e o amor Mas como não desisto nunca De perseguir minha verdade Dou da nuca ao calcanhar A quem por mim passar Na resistência e o amor, O amor Na resistência e o amor, O amor... (Pedro Sol)

Em 1973, em plena Ditadura Militar, no governo do General Médici, o período mais violento da repressão,

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Milton gravou “Sacramento”9, e nesta letra encontramos o cerne da sua opção existencial e de seu canto: um apelo à resistência e à esperança. Três pessoas vieram me pedir Não morra que o mundo quer saber As coisas que a vida não te impôs A morte que sempre a ti perdeu O amor que teus olhos sabem dar Com o pranto calado me casei De noivo do pobre me tornei No crisma de busca assumi O quarto fechado que afastei Que um banho de cinzas batizou E o mais que consigo é dizer: Com o pranto calado me casei Um banho de cinzas batizou O quarto fechado que afastei No crisma de busca assumi Dois olhos que ainda não achei.

Viver é não conceder na morte, não temer, resistir, perseverar. Caminhar para onde se encontra a vida. Profeticamente, denunciar ao mundo este conflito constante e histórico entre a imposição dos opressores e a busca da liberdade e dignidade dos oprimidos. Ter a lucidez de que a vida dos opressores é paga à custa da pouca vida ou mesmo da morte dos oprimidos. Nessa resistência é que afirmamos nossa capacidade de amar. Um amor em atos e 9

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Disco Milagres dos Peixes, 1973. Caderno Ciência e Fé


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obras. Não o amor das boas intenções, que não nos leva a lugar e parte alguma; nem o amor das evasões em nome do “ainda não é hora de...”. Esse pseudoamor vela as verdadeiras contradições e as exigências concretas dos embates e desafios pela instauração da paz e da justiça. Não podemos ceder nem conceder às estruturas da morte que convertem em banalidade a vida de nossos irmãos e irmãs. Deve-se resistir na travessia para frutificar o “amor que teus olhos sabem dar”. Não podemos temer a novidade que a travessia da vida nos apresenta sempre. Como nos prega o Papa Francisco (2013a): Frequentemente mete-nos medo a novidade, incluindo a novidade que Deus nos traz, a novidade que Deus nos pede. Fazemos como os apóstolos, no Evangelho: muitas vezes preferimos manter as nossas seguranças, parar junto de um túmulo com o pensamento num defunto que, no fim das contas, vive só na memória da história, como as grandes figuras do passado. Tememos as surpresas de Deus e Ele não cessa de nos surpreender. O Senhor é assim.

Como o poeta e cantor Pedro Sol, que, não temendo a imprevisibilidade do Transcendente, busca-O dizendo: Rolando a lista telefônica, mal lendo os nomes direito, apresso-me para achar um nome que não comece com nenhuma letra, um número sem conter dígito, um mapa sem estrada, uma rota sem chegada, uma pétala sem flor, uma gota sem mar, um Deus sem religião, um erro

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encaixar num acerto maior, numa meta sem alvo, num jogo sem gol nem pontos, muito menos números.

Ou como o profeta amado por Milton: Imagine que não há céu É fácil, se você tentar Nenhum inferno embaixo de nós E, em cima, só firmamento Imagine todo mundo Vivendo pro dia de hoje. Imagine não haver países Não é difícil imaginar Nada por que matar ou morrer E nem religião também Imagine todo mundo Vivendo a vida em paz. Você pode dizer Que sou um sonhador Mas não sou o único não Espero que um dia Você se junte a nós E o mundo será uma coisa só. Imagine não haver posses Duvido que você possa, Sem lugar para a gula ou a fome, Uma fraternidade do homem Imagine todo mundo Partilhando todo o mundo.

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Você pode dizer Que sou um sonhador Mas não sou o único não Espero que um dia Você se junte a nós E o mundo viverá como um só10.

Milton, em sua poesia, revela que as opções de nossa vida se fazem em momentos de profunda solidão. Não de uma solidão que nos isola dos companheiros, mas uma solidão que dimensiona a estatura do gesto a ser vivido e que é sempre, e deve ser, um gesto concreto de amor. Como afirma Gabriel Marcel: “a solidão é essencial para a fraternidade”11. “Com o pranto calado me casei” é esposar o pranto calado, triste e difícil como o do Cristo que balbuciava: “A minha alma está triste até a morte” (Mc 14,34). Milton continua a revelar as escolhas a serem feitas: “De noivo do pobre me tornei”. Tornar-se noivo do pobre é reconhecer que a ele é anunciada a Boa Nova e que os pobres são os depositários da força de Deus. Nunca podemos esposar o pobre, pois esposá-lo é reconhecer que sua condição social

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John Lennon, Imagine, 1971. Imagine there’s no heaven/It’s easy if you try/No hell below us/Above us only sky/Imagine all the people/Living for today./Imagine there’s no countries/It isn’t hard to do/Nothing to kill or die for/And no religion too/ Imagine all the people/Living life in peace./You may say/I’m a dreamer/But I’m not the only one/I hope some day/You’ll join us/And the world will be as one./Imagine no possessions/I wonder if you can/No need for greed or hunger/A brotherhood of man/Imagine all the people/Sharing all the world./You may say/I’m a dreamer/But I’m not the only one/I hope some day/You’ll join us/And the world will live as one. Agradecemos a André de Azevedo pela lembrança desta citação. Caderno Ciência e Fé

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é querida por Deus, como tantas vezes nossos manuais de teologia têm repetido ad nauseam: “É a vontade de Deus...”. No entanto, os ricos vão fenecer como a flor da erva do campo, pois “quem se farta de riquezas não consegue dormir” (Ecl 5,11). O Senhor exige de nós uma imediata decisão: de qual lado estamos? Da vida? Da morte? “Assim porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca” (Ap 3,16). O último livro selou a sorte dos ricos: “Pois dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. Não sabes, porém, que és tu o infeliz: miserável, pobre, cego e nu” (Ap 3,17). Milton avança na sua revelação: “No crisma de busca assumi, o quarto fechado que afastei, que um banho de cinzas batizou”. A busca de um mundo novo se faz por meio de nossos engajamentos e compromissos com os que se reconhecem companheiros, que comem do mesmo pão. Seremos sinal de contradição, acolhidos por uns e amaldiçoados por outros. Seremos o sim e o não ao mesmo tempo. Romper o quarto fechado é destruir os muros para deixar o sol entrar; é sermos pontes para que nos convertamos em distribuidores da misericórdia e da generosidade, e não guardiões intransigentes da intolerância. Sermos batizados no banho de cinzas é reconhecer a humildade de que somos todos filhos do mesmo Pai e que não devemos trabalhar tão perfidamente uns contra os outros (cf Ml 2,10). Essa humildade, esse lavar os pés uns dos outros, é a força interior que nos faz construir um caminho de solidariedade entre os homens e as mulheres, que nos faz perseverar e resistir na esperança. O Papa Francisco (2013b) declara que devemos estar a serviço uns dos outros, pois esse sinal – o de servir – “é 26

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uma carícia de Jesus, que Jesus o faz, pois Jesus veio justamente por isso: para servir”. Quando o poder e a posse são considerados fins em si mesmos, não há nenhuma presença samaritana do serviço. O poder será um poder contra os outros, e a posse, a exclusão dos outros. Deixar Fluir Leve o pensamento o mais longe que puder Mas volte com o vento antes do sol se pôr Tudo tem motivo, não importa o que for As perguntas sem respostas muitas vezes causam dor Não vou fugir, eu vou sonhar Me distrair no teu olhar Vou te pedir pra responder O que ainda não entendi Vou deixar fluir, deixa fluir Deixa fluir através de ti, Vou deixar fluir, deixar fluir Deixar fluir através de mim Lógica só me atrapalha a entender melhor Meu próprio entendimento se limita na razão Quero ir além do que meus olhos podem ver Eu quero ter meus pensamentos focados só em você Não vou fugir, eu vou sonhar Me distrair no teu olhar Vou te pedir pra responder O que ainda não entendi

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Vou deixar fluir, deixa fluir Deixa fluir através de ti, Vou deixar fluir, deixar fluir Deixar fluir através de mim Leve o pensamento o mais longe que puder Mas volte com o vento antes do sol se pôr Tudo tem motivo, não importa o que for As perguntas sem respostas muitas vezes causam dor Não vou fugir (Pedro Sol)

Finalmente, Milton revela que este caminho insondável da busca de “dois olhos que ainda não achei” será realizado quando o mundo novo for criado e tenhamos definitivamente rompido com a opacidade e o ressentimento de quem não entrega sua vida. Se a solidão matasse, eu já estaria morto, mesmo tendo família, amigos e elogios. Se a perdição morresse, eu já estaria morto, pois, afinal, na vida só se encontra quem já se perdeu. Perdida nessa história está a noção dos que foram sujeitos à vossa verdade, nas vossas condições. Quero um pacto com a liberdade, um contrato com o silêncio, tascar um beijo na solidão e abraçar por inteiro a redenção de amar e ser amado, chorar e ser consolado por alguém sem interesse, uma mão sem conter braço, um coração sem haver compasso, contando dias, horas, meses e segundos para 28

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decifrar a duração de um ano, que perde, a cada ano, mais uma fração de segundo, refracionando em si um reboot do acervo apresentado pelos mesmos que vivem pela lei que diz o que é e o que não é nessa pequena terra mesquinha e inútil, se não houvesse a possibilidade da aproximação da presença da santa música e do sagrado amor universal (Pedro Sol)

Dom Pedro Casaldáliga escreveu sobre Milton: “Digo eu. Canta Milton. Gritam livres, os pobres. Não é possível que continuem as estrelas impassíveis”. E neste julgamento final, as estrelas não estarão impassíveis porque aprenderam que “o que estava escrito era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra” (Gabriel García Márquez).

A proscrição dos poetas e profetas Milton tinha a lucidez de que sua proscrição como músico e poeta havia de acontecer porque se alinhara, no seu silêncio mais do que na timidez, aos que enfrentavam o governo autoritário e militar com toda a sua censura aos artistas e poetas. Seu disco Milagre dos Peixes, gravado no estúdio, em 1973, teve quase a totalidade das suas letras proibidas. Milton não se intimidou, lançou o disco com vocalizes no lugar das letras censuradas. Um marco no enfrentamento Caderno Ciência e Fé

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ao obscurantismo cultural do regime ditatorial que estendia suas garras vorazes aos músicos, dramaturgos e poetas do país: presos, torturados, exilados e mesmo desaparecidos. Em 1981, escreve seu poema de enfrentamento “Olha”12: Tu clamas por liberdade, mas só aquela que te convém Tu puxas a arma no escuro e não suportas ninguém feliz Persegues a quem trabalha, calúnia, carga e traição Te julgas o mais esperto, mas és mentira, só ilusão Depois de passar o tempo colhe o deserto que é todo teu Com todo teu preconceito segue pensando que enganas Deus E enganando a ti mesmo Pois quem trabalha continuou em cada sonho suado que nem percebes o que custou.

Milton faz desmoronar os esquemas preestabelecidos e rigidamente pré-fixados. A vida é obra do coração de cada homem, intransferível, e não o produto de uma cadeia de montagem. Cada um tem seu ritmo e seu itinerário. Cada um tem sua liturgia de gestos e palavras para expressar seu amor, mas também sua indignação. Milton sempre acolheu os que buscam, questionam, enfrentam, os que se debatem nas incertezas e perseguem, como ele, um raio de luz. É uma busca dolorida que pode ser mais autêntica que a posse de uma certeza que provoca a acomodação e a esclerose. A inquietude de Milton é traço vital da sua travessia existencial, com tudo o que carrega

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Disco Ânima, 1982. Caderno Ciência e Fé


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não só de proscrição, de maledicência, mas também de encontros e despedidas. Sabe que: Quem quiser nascer tem que destruir um mundo; destruir no sentido de romper com o passado e as tradições já mortas. Desvincular-se do meio excessivamente cômodo e seguro da infância para a consequente dolorosa busca da própria razão do existir: SER é OUSAR SER (HESSE, 1999).

Não abrirei mão do meu sossego Quanta farsa e hipocrisia Eu não aguento mais viver O sonho falso de outro ser Que é mesquinho e pequeno Com o que merece mais atenção: Um bom carinho, um trato raro, singelo e aguçado, sem pretensão, sentindo a premonição das coisas lindas que estão por vir, Das muitas vidas que pude abstrair do meu ser, que é singelo E com intenção plena e pura de devoção a todos que procuram, como eu, o porquê. Atento ao vento e ao imprevisível, encontrei a minha sina, minha reza e devoção... Não abrirei mão do meu sossego (Pedro Sol) Caderno Ciência e Fé

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Milton fora marcado com o sinal de Caim, o da proscrição, mas reconhecia no mais fundo de si mesmo todos os outros também marcados pelo mesmo sinal. Seria Caim para os covardes e medíocres, mas Abel para Deus. Para o mundo, nós, os marcados com [o sinal], haveríamos de passar por pessoas estranhas, talvez loucas e até mesmo perigosas. Éramos pessoas que havíamos despertado ou despertávamos, e nossa aspiração era chegar a uma vigília ainda mais perfeita, enquanto a aspiração e a felicidade dos demais consistiam em ligar cada vez mais estreitamente suas opiniões, seus ideais e seus deveres, sua vida e sua fortuna, às do rebanho. Para eles, a humanidade era algo completo que devia ser conservado e protegido. Para nós, a humanidade era um futuro distante para o qual todos caminhávamos, sem que ninguém conhecesse sua imagem e sem que se encontrassem escritas suas leis em parte alguma (HESSE, 1999).

Ecoava, neste credo do Bituca, o Credo da teóloga alemã Dorothee Sölle: Eu creio em deus que não criou um mundo imutável, algo incapaz de se modificar, que não governa de acordo com leis que permanecem invioladas [...] eu creio em deus que deseja conflito na vida e quer que nós transformemos o status quo, pelo nosso trabalho, por nossas políticas e por nossos sonhos (FOX, 2011, p. 269).

Milton vai confirmar, em alto e bom som, sua posição diante da vida em “Teia de Renda”13: 13

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Do meu destino, o que restou Marca profunda de muito amor Tão procurada, iluminada Essa loucura que me abraçou [...] Eu não aceito o que se faz Negar a luz, fingindo que é paz A vida é hoje, o sol é sempre Se já conheço, eu quero é mais O que se andar, o que crescer Se já conheço, eu quero mais

A utopia: o Tau-não-ainda-possível Essa busca tomou conta... por meio da busca do Ser Superior que se encontra dentro, ao redor e impregnado nas entranhas dos simples e humildes de coração, que aceitam, como eu, que somos seres frágeis, fracos impotentes e inúteis sem a inspiração divina do Tau “Ser Superior”. (Pedro Sol)

Essa esperança de um mundo novo é mais ainda aguçada em Milton, ao conhecer o místico dominicano Mestre Eckhart, do século XIV, punido pela Igreja oficial “por ensinar e escrever doutrinas heréticas”. Em Eckhart, pensamento, vida e fé assumem a mesma coloração da unidade, do UM em cada homem, sem exceção, mesmo “quando ainda não era”, uma centelha divina.

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A declaração sobre a Trindade e sua pericorese (daça) o emociona profundamente: “O Pai sorri para o Filho, o Filho sorri para o Pai, e o sorriso faz nascer o prazer, o prazer faz nascer a alegria e a alegria faz nascer o amor” (MESTRE ECKHART apud RADCLIFFE, 2004, p. 35). Milton, motivado, grava, de viva voz, esta frase no seu disco ...E a gente sonhando14 como epígrafe do seu poema “Sorriso”: Sim, o teu sorriso penetrou minha alma Como um filme de Truffaut Músicas, crianças nessa mesma festa colorida céu ficou [...] Nunca uma mentira nenhuma tormenta Nas janelas do teu ser Solta sonho e vida Cultiva a amizade faz o teu amor vencer [...] Não desapareças, o mundo precisa da beleza para renascer Tudo mais que eu queira é cumplicidade, ajudar quem quer viver.

Essa cumplicidade humana, demasiadamente humana, cultivada, a duras penas, na travessia de Milton, aponta para a eternidade do Transcendente. Juntam-se as vozes de Bituca e Eckhart: De Deus é a honra. Quem são os que honram a Deus? São os que deixam totalmente a si mesmos e, de modo algum, nada buscam do que é seu em nenhuma coisa, seja o que for, grande ou pequeno; não veem nada abaixo nem acima de si, nem ao seu lado nem em si mesmos; 14

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Disco ...E a gente sonhando, de 2010. Caderno Ciência e Fé


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que não procuram bem, honra, conforto, prazer, utilidade, nem interioridade, nem santidade, nenhuma recompensa nem mesmo reino dos céus e que se tornaram exteriores a tudo isso, a tudo que é seu. Dessas pessoas Deus recebe honra. E elas honram a Deus, no sentido próprio, dando a Deus o que é de Deus (MESTRE ECKHART, 2010, p. 69). A estrada da vida me aguardou fazer a mala enquanto eu aguardava e estudava o tempo aberto. Ontem aprendi, na prática, que o sol continua brilhando acima das nuvens escuras. Hoje, virei a chave do carro da minha vida e saí debaixo de chuva atrás do meu destino. (Pedro Sol)

Em síntese, para Eckhart, Cristo é todos os homens e todo homem pode ser Cristo. A uni-versalidade do evento Cristo não se restringe a um fato histórico chamado cristianismo, nem a uma ou outra instituição. A historicidade desse evento lança raízes e vem à luz na própria humanidade do homem, que é divina. Há um poema indiano que pode ilustrar a visão cósmica de Eckhart (2010, p. 33)15, em que em cada grau sempre está presente o todo do universo da força, não como soma das partes, mas como força remissiva uno-múltipla. Na identidade de atuar e ser, no entanto, dá-se sempre e somente unidade: 15

Para quem desejar aprofundar a visão cósmica de Eckhart, ver o Sermão 54 na obra citada, p. 296. Caderno Ciência e Fé

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Deus dorme na pedra, respira na planta Sonha no animal e desperta no homem

Nessa sintonia, Milton denuncia o utilitarismo do mundo, o consumismo desenfreado que impede o encontro mais íntimo entre os homens e as mulheres. Nele, ainda ecoam as palavras do místico: Muitas pessoas, porém, querem ver a Deus com os mesmos olhos com que veem uma vaca, e querem amar a Deus como amam uma vaca. Amas uma vaca por causa do leite e do queijo, e por causa do teu próprio proveito. Desse modo comportam-se todas aquelas pessoas que amam a Deus por causa da riqueza exterior ou de consolo interior. Elas, porém, não amam propriamente Deus e sim o próprio proveito16.

E Milton arremata, em 1984, em “A Primeira Estrela”17: Perdoar e fazer crescer o bem comum, o seu trabalho, seu sustento A emoção de ver seu filho tecer, com mão, a cor da liberdade Sua casa, casa clara, clara paz celebrando a natureza Abraçar o mundo na ternura e na dor, elevar o pensamento e tornar-se rei [...] Nosso irmão, Senhor das manhãs com sua estrela deusa, lua novidade Simples coração de prata de lei 16 17

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Idem, Sermão 16. Disco Encontros e Despedidas, 1985. Caderno Ciência e Fé


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Nosso coração traz tanto pranto, pranto, pranto tanto canto, pra soltar Renascer da velha história abraçando o mundo da ternura e na dor Nos ensina a escrever a canção do sol

Finalmente, o Tau, caminho e cruz, nos é apresentado com toda a sua força e virulência. Nas nossas travessias múltiplas e plurais, o caminho a ser conquistado e trilhado é o caminho da amizade e do amor, que é o único que nos conduz ao Transcendente. No poema “Tudo”18, de 1979, Milton nos convida a despertar: Barco é pra quem pode, barco é pra quem quer Pássaro que pousa onde vê. Onde está a entrega, tua vibração Num abraço, um beijo é teu coração. Tá tudo o que importa coisa de irmão que nunca termina É só conhecer. Raiva, me ajuda que a morte é solidão. [...] Barco é só um nome e é tudo de você É chamada, é vinda, é o fundo, é se ver Tá tudo o que importa onde está o irmão Pássaro que pousa barco é o coração.

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Disco Sentinela, 1981. Caderno Ciência e Fé

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Milton continua a reafirmar, como um grito preso na garganta, em “De Magia, de Dança e Pés”19, de 1980: A pulsação do mundo é o coração da gente O coração do mundo é a pulsação da gente Ninguém nos pode impor, meu irmão O que é melhor pra gente.

Declara a sua definição de alma no poema “Ânima”20, como uma concretude de ternura e coragem: Alma, vai além de tudo o que o nosso mundo ousa perceber Casa cheia de coragem, vida Todo afeto que há no meu ser te quero ver, te quero ser alma.

Milton aprende que, tanto no amor quanto na amizade, ninguém é dono nem devedor. Uma reciprocidade amorosa que deve conduzir os que se amam a olhar na mesma direção e não somente um para o outro. O segredo do caminho do amor e da amizade é cada um buscar fazer feliz o outro e não procurar realizar a sua própria felicidade no outro, pois neste caso não amamos o diferente de nós, mas nosso próprio espelho. Milton nos exorta, em “Portal da Cor”21: Coragem, companheiro Pra que fechar a voz 19 20 21

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Disco Caçador de Mim, 1981. Disco Ânima, 1982. Disco Encontros e Despedidas, 1985. Caderno Ciência e Fé


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Se a força do desejo Pulsa em cada um de nós?

Milton fez gravar, na porta da sua casa, há alguns anos, um texto de Santo Agostinho: As conversas, o rir juntos, a leitura conjunta de livros amenos, os passatempos em comum, ora leves, ora sérios, as brigas ocasionais sem rancor, como de um homem consigo mesmo, os mais frequentes acordos, o ser um do outro ora mestre ora discípulo, a saudade impaciente de quem está longe, a acolhida festiva de quem volta – estes e outros sinais semelhantes, próprios de corações amigos, expressos com a boca, a língua, os olhos e mil gestos extremamente agradáveis – tudo isso é como o alimento da chama que funde juntas as almas e de muitas faz uma só (Confissões 4, 8, 13).

Forma Única Dividimos as metades confundindo o inteiro Insegurança humana produz desespero Procuramos um caminho que defina liberdade No fim do labirinto, um ponto é o que nos resta Ninguém mais já foi perfeito Livre de todo preconceito Que a raça humana inventa Para impor a diferença Pontos de vista pra cá, não perca a vista de lá Pois é de lá que vem o socorro e o socorro tem Uma forma única

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Enxergo a forma que você conserva Alcanço a forma de outro jeito, mesmo assim Vejo o brilho em seu olhar como mais um caminho E a alegria em meu andar faz parte do costume E a única forma de enxergar É alcançando as outras formas de olhar Pra aquilo que se enxerga Enxergo a forma que você conserva Alcanço a forma de outro jeito, mesmo assim Vejo o brilho em seu olhar como mais um caminho E a alegria em meu andar faz parte do costume Costume, se acostume com a paz de saber que o socorro tem uma forma única. Única, sim, única, uma forma única Uma fonte única, sim, única. (Pedro Sol)

Em “Rádio Experiência”22, Milton vai desvelar o segredo deste Tau da travessia: Eu quero a alegria em cada voz Que a antiga espera tenha a sua vez E o sonho que carrego em minhas costas É o laço de união entre vocês Nós

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Disco Encontros e Despedidas, de 1985. Caderno Ciência e Fé


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Devemos ser um entrelaçamento de pessoas que afirmam sua originalidade por meio de sua alegria, de sua doação e de sua ternura. O Papa Francisco, na homilia que iniciou seu ministério de Bispo de Roma, em 19 de março de 2013, afirmou: Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida [...] Não devemos ter medo da bondade e da ternura [...] Uma grande ternura não é virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro, de amor. Não devemos ter medo da bondade, da ternura!

Nossas vidas devem fazer ecoar, como tem ecoado a vida de Milton, neste Tau da Travessia, neste Tau-não-aindapossível, cosmicamente, o escrito por Santo Agostinho (Carta 73, 3, 10): Quanto a mim, confesso que acho natural entregar-me por inteiro ao afeto de meus amigos, especialmente quando estou cansado dos escândalos do mundo. Neles me repouso sem preocupação alguma. Pois sinto que Deus está lá, que é n’Ele que me lanço com toda a segurança e em toda segurança me repouso. Quando sinto que um homem, abrasado de amor cristão, tornou-se meu amigo fiel, o que lhe confio de meus projetos e de meus pensamentos não é a um homem que confio, mas Àquele em que ele permanece e pelo qual é o que é.

Finalmente, permita-nos encerrar com o poema “Cogito”, de um homem que marcou a mesma geração de Milton: Torquato Neto (1944-1972). Como Bituca, ele Caderno Ciência e Fé

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buscou, viveu e escreveu naqueles tempos perturbadores, e sua voz ainda é profética nestes tempos de banalização do mal e da existência em que vivemos, nos movemos e somos. eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim eu sou como eu sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim.

Amor Universal Ontem já não é mais hoje, Hoje já não foi amanhã? no fundo, o que vale são as sobras que o tempo nos dá para viver e simplesmente sermos única e exclusivamente nossos por alguns momentos 42

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Sem julgamento Sem máscaras nem armadura Alimentado de Ternura e Verdadeiro AMOR UNIVERSAL Que vem da fonte daquilo mesmo de que somos feitos: energia cósmica que se torna matéria, que tem liberdade de pensamento Liberdade de expressar tais pensamentos, liberdade para agir e viver no mesmo patamar da nossa mente e, consequentemente, da nossa boca Coragem para vencer obstáculos cada vez mais altos e impossíveis, tornando o não-ainda-possível cada vez mais possível, o que possibilita uma visão da nova vida que, em primeira mão, aparenta ser desregrada, mas vale lembrar que estamos prejulgando nossos atos de acordo com um critério que não tem verdadeiro critério divino e teológico o apoiando (às vezes, muito pelo contrário), por se originar de pensamentos humanos e calculistas que rastejam num nível no qual nenhuma divindade deveria ser “julgada”, “avaliada” ou até mesmo enquadrada numa moldura, como se fosse enfeite... Um bom exemplo disso seria o próprio texto que redijo, palavra por palavra, entre inspirações e pensamentos duradouros de vida, com formas coloridas brilhando com a certeza do erro inevitável. A certeza do caminho infalível e da indiferença que as palavras e os gestos maldosos de preconceito e caos fazem, faziam ou farão ao caminhar

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diante da obstinação de seguir o Tau Caminho ainda-não-possível, que se torna a cada dia mais possível, ao viver fielmente e a qualquer custo o caminho do Bem Maior em nome do Amor Maior Guardado em Toda Natureza Do meu ninho ao meu vinho Do Teu vinho (sangue do Cordeiro) De volta ao ninho (Fonte Divina) Quero viver simples assim Mergulhado em ternura e obstinação Por meio do poder do único Deus vivo Do qual faço questão de viver bem pertinho Por ter nos dado de presente A verdadeira PAZ E AMOR UNI VER SAL P.S.: Não posso ser o Único que viu, vê ou verá o Sal... (Pedro Sol)

Comunidade dos Manos da Terna Solidão (Matersol) Rio de Janeiro/Teresópolis, abril de 2013

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Referências

BENTO XVI. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005. BIGI, M. O Tau, um sinal, uma espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2004. CACCIATORE, O. G. Dicionário de cultos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. FOX, M. Christian Mystics. California: New World Library, 2011. HESSE, H. Demian. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1999. MARCEL, G. Homo viator. Paris: Aubier, 1944. MESTRE ECKHART. Sermões alemães. Petrópolis: Vozes, 2010. PAPA FRANCISCO. Homilia da Missa da Ceia do Senhor no Cárcere para Menores em Roma. 28 mar. 2013a. PAPA FRANCISCO. Homilia da Vigília Pascal. 30 mar. 2013b. RADCLIFFE, T. Les sept dernières paroles du Christ. Paris: Du Cerf, 2004.


Paulo Botas e Pedro Sol Blanco

ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Nova Fronteira, 2006. SANTO AGOSTINHO. As Confissões. São Paulo: Editora das Américas, 1961.

REFERÊNCIAS DE DISCOS NASCIMENTO, M. Milton Nascimento. Rio de Janeiro: Ritmos/ Codil, 1967. 1 disco sonoro. NASCIMENTO, M. Courage. A&M Records/CBS/Polygram, 1969. 1 disco sonoro. NASCIMENTO, M. Milton. Rio de Janeiro: EMI-Odeon. 1 disco sonoro. NASCIMENTO, M. Milagres dos Peixes. Rio de Janeiro: EMIOdeon, 1973. 1 disco sonoro. NASCIMENTO, M. Caçador de Mim. Rio de Janeiro: Ariola/ Polygram, 1981. 1 disco sonoro. NASCIMENTO, M. Sentinela. Rio de Janeiro: Ariola/Polygram, 1981. 1 disco sonoro. NASCIMENTO, M. Ânima. Rio de Janeiro: Ariola/Polygram, 1982. 1 disco sonoro. NASCIMENTO, M. Encontros e Despedidas. Rio de Janeiro: Polygram, 1985. 1 disco sonoro. NASCIMENTO, M. Txai. Rio de Janeiro: CBS, 1990. 1 disco sonoro. 46

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NASCIMENTO, M. ...E a gente sonhando. Rio de Janeiro: Nascimento/EMI, 2010. 1 disco sonoro. REGINA, E. Elis. São Paulo: Phillips, 1966. 1 disco sonoro.

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Sobre os Autores Paulo Botas Doutor em Filosofia pela Sorbonne, em Paris, na França. É teólogo, escritor e “disco de ouro” pela participação na produção do disco Sentinela, de Milton Nascimento. Participou como diácono da Missa dos Quilombos, em Recife, em 1981, juntamente com Dom Helder Câmara, Dom José Maria Pires, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Marcelo Cavalheira e Milton Nascimento, e também em Santiago de Compostela, Espanha, em 1992, em comemoração aos 500 anos do Descobrimento da América.

Pedro Sol Blanco Cantor, compositor, músico e ator. Fez curso de Teoria e Percepção de Música, estudou canto com Felipe Abreu, violão clássico com Célia Vaz e bateria com o percussionista Robertinho Silva. No teatro, atuou em diversos musicais, como 7 – O Musical, Despertar da Primavera, Beatles num Céu de Diamantes e Milton Nascimento – Nada Será como Antes, atualmente em turnê pelo país.



CrĂŠdito:Matersol


Impresso na Gráfica Everest Rua Waldemar L. de Campos, 3.946 Xaxim – Curitiba (PR) Tel: (41) 3276-0040 Fax: (41) 3275-7160 Curitiba - Paraná - Brasil A presente edição foi composta pela Editora Universitária Champagnat e impressa pela Gráfica Everest, em sistema offset, papel pólen 90 g/m² (miolo) e papel supremo 250 g/m² (capa), em junho de 2013.



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