Duas vidas inventadas

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Duas vidas inventadas

Todos os dias de manhã representavam para ela os mesmos sentimentos. Aquela doce nostalgia, a saudade companheira do breve momento de um abraço que, não sabia bem se por amor ou idolatria, tornara-se sinônimo de uma fé cega na presença de um amor que a fortalecia. E seus pés imediatamente a conduziam para o lugar costumeiro. No entanto, as imagens que, para alguém menos sensível, ou que não amou como ela, aparentam habituais e fúnebres, para Isabela representavam um passado que se fazia presente todas as vezes em que seus delicados dedos tocavam as cordas do velho violão. Era dessa maneira que a menina se transformava em um misto de mulher madura que aprendeu a lidar com o sofrimento e de uma criança que ora todas as noites em busca de uma razão por não mais poder contar com os beijos e os carinhos paternos. Mas tudo se iluminava quando o som do violão invadia a casa. Então ela podia vê-lo ali, sentado na poltrona, com os olhos fechados e uma expressão repleta de satisfação, a qual, na época, ela não conseguia entender muito bem. Enquanto Isabela tocava, o mundo para seu pai resumia-se no som da voz infantil da filha a cantar palavras cujo significado e dor só agora ela compreendia plenamente. Enquanto Isabela tocava, a imagem do velho pai que o tempo insistia em desbotar na sua memória tornava-se mais que nítida: era quase real, porque junto dela vinha o perfume de sabonete que exalava dos ombros onde ela se entregava a uma sensação deliciosa: sentir-se inexplicavelmente amada e protegida. Enquanto Isabela tocava, a música, a primeira canção que ela aprendeu com seu frágil e doente herói, preenchia não somente o seu ser, mas também todo o espaço vazio que ele deixou na casa, em cada cômodo, em cada pedaço da melodia que se quebrou no chão e cujos restos ela tentava juntar enquanto tocava o instrumento com violenta emoção. Depois, ela acordava desse sonho e entrava em um mundo onde seu pai não existia, onde ele era paulatinamente esquecido pela capacidade inata do ser humano de regenerar feridas. Mas não, ele não era para Isabela uma ferida ou uma cicatriz. Era a cura em forma de versos de uma velha canção enquanto ela vivia duas vidas inventadas: uma, silenciosa e melancólica, e outra, repleta de uma alegria tristemente inatingível...

Jéssica Assis


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