A brincadeira é a crônica da vida

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www.arquisp.org.br | 2 a 8 de agosto de 2017

| Com a Palavra | 15

Nairzinha Spinelli

‘A brincadeira é a crônica da vida’ Cirandando Brasil/Divulgação

Nayá Fernandes

nayafernades@gmail.com

Quando falou pelo telefone com a reportagem do O SÃO PAULO, direto de Salvador (BA), onde mora, Nair Spinelli Lauria, a Nairzinha, estava se preparando para um show em que participaria logo mais, em 26 de julho, Dia dos Avós, com avós e netos num grande shopping da capital baiana. “Haverá troca e brincadeira. Os avós irão ensinar aos netos, essa velha, que é uma novíssima forma de brincar: as brincadeiras de roda”, disse ela, que há 42 anos começou o projeto “Cirandando Brasil”, com a chancela do Unicef, da Organização das Nações Unidas (ONU). Nairzinha nasceu em Salvador, no dia 11 de setembro 1948, é autora de quatro livros e tem 18 CDs gravados. De família musical, tendo participado por 14 anos de um projeto de arte e educação na sua cidade, Nairzinha lançou, no fim do mês de julho, um portal onde estão colocadas 200 obras musicais por ano, com explicação teórica e contextualização cultural, além de sugestões pedagógicas para cada uma delas. O portal www.cirandandobrasil.com.br pretende deixar ainda mais acessível o acervo do folclore brasileiro recolhido durante anos por Nairzinha, e que ela quer agora devolver ao povo brasileiro, principalmente aos educadores.

O SÃO PAULO – COMO FOI O INÍCIO DO ‘CIRANDANDO BRASIL’? Nair Spinelli Lauria – O projeto “Cirandando Brasil” tem 42 anos. Eu estava formada em Serviço Social e trabalhava com a comunidade popular, onde tudo se celebra cantando. Durante esse processo, fui adquirindo um acervo de canções populares, mas não fazia isso intencionalmente, era meu hobby. De repente, percebi que estava imersa, espontaneamente, nesse importante trabalho de resgate cultural. Hoje, tenho 2,5 mil obras catalogadas e contextualizadas, do ponto de vista étnico e cultural. No começo, era uma pesquisa de campo espontânea. Eu aprendia a tocar, anotava a letra e, só então, começava a pesquisar qual a identidade daquela canção, se era africana, portuguesa, indígena etc. Com o tempo, a identificação foi ficando cada vez mais fácil. Também comecei a fazer uma pesquisa mais organizada, in loco, nos quilombos, nas aldeias indígenas. Importante dizer que meu público-alvo para essa pesquisa sempre foram os idosos. POR ONDE O “CIRANDANDO BRASIL” JÁ TE LEVOU? Com o povo em geral, já trabalhei no Estado da Bahia, em 151 municípios. No Brasil, já trabalhei em 17 estados, levando o “Cirandando Brasil” para edu-

cadores, contando a história da brincadeira brasileira, situando a formação étnica do povo com os valores da cultura da brincadeira. Já estive em São Paulo, na PUC-SP e na USP, na UFRJ, no Rio de Janeiro; em Minas Gerais; no Ceará; além de Portugal e África, em países de língua portuguesa. Foram mais de 6 mil eventos em praças públicas com as brincadeiras tradicionais, cantadas, como as cantigas de roda, acalentos, cancionetas, lenga-lengas e parlendas. O QUE É A CIRANDA? Ciranda é uma roda de pano que era amarrada no tronco da oliveira na antiga cultura portuguesa. Essa roda era rodada pelas mulheres cantando, enquanto os homens sacudiam as oliveiras, para que as olivas, ou seja, azeitonas, caíssem dentro dela. Pois, se elas caíssem no chão e fossem machucadas, o azeite acabava por se acidificar. O conceito de ciranda, na cultura popular, é simbólico. Ela é uma crônica da vida. Não se tratam de cirandas todas as manifestações de roda. Existem as brincadeiras cantadas; as cancionetas, que são as canções das crianças pequenas; as parlendas, que são rimas, que podem ser cantadas ou não. Elas são de domínio público, pois vão passando de geração em geração. Folclore é a manifestação de costumes que vão sendo passados pela oralidade. QUAIS AS CARACATERÍSTICAS DESSAS BRINCADEIRAS? A ciranda é uma brincadeira altamen-

te inclusiva, não custa absolutamente nada. Está na cultura, valoriza o saber no interior das famílias, é uma cultura de afeto, que se aprende no colo. Desenvolve as habilidades sociais num momento em que a criança está tão restrita na solidão do brinquedo eletrônico. É uma forma de apresentar como nova essa velha maneira de brincar, num momento em que as habilidades de convivência estão sendo trocadas pelo contato virtual. A roda é democrática: nela ninguém fica na frente ou atrás, todos estão no mesmo plano, participando da brincadeira. Ela é atávica, ou seja, transmitida ou adquirida de maneira hereditária. E COMO NASCEU A IDEIA DO PORTAL? Eu faço a partitura, coloco a cifra e contextualizo a identidade das canções, além de dar sugestões pedagógicas. Assim, de cada canção, se abre um mundo. Há tempos, eu venho devolvendo essas peças para a escola, por meio de capacitações. Decidimos lançar um portal que possa tornar esse conteúdo ainda mais acessível às pessoas. Por um valor fixo anual, serão acrescentados 200 conteúdos que estarão totalmente disponíveis. Além das canções para download, a contextualização teórica e cultural acompanhará cada peça. O público que até agora tem acessado o portal é quase exclusivamente de educadores, tendo sido procurado também por brasileiros que moram fora do Brasil. Embora seja pela via virtual, o objetivo do portal é o contato presencial.

VOCÊ ACREDITA QUE AS CRIANÇAS MUDARAM O JEITO DE BRINCAR? As crianças não mudaram, as crianças continuam as mesmas e se interessam pelas mesmas coisas de sempre. A criança não é usuária de brinquedos, ela é brincante. A criança se empolga por tudo em que ela é protagonista. A brincadeira é a crônica da vida. A criança é essencialmente teatral: ela brinca de mãe, de motorista, de cozinhar. Ela está fazendo a crônica da vida que ela vive e presencia. O brinquedo entra como uma forma de ajudar a criança a abrir novas perspectivas, dentro daquilo que já é seu cotidiano. Mas, como vivemos numa sociedade de consumo, o marketing acaba oferecendo às crianças brinquedos que já têm uma finalidade. E isso, muitas vezes, pode tirar dela o direito à imaginação e à criatividade, porque a brincadeira e a ludicidade desenvolvem a ferramenta do pensamento que é capaz de tirar o ser humano de qualquer situação, que é a criatividade. QUAL O PAPEL DA ESCOLA NO INCENTIVO À CRIATIVIDADE? A escola é fundamental. Por isso, tenho como foco a escola, mesmo sabendo que a brincadeira é uma questão de colo, de carinho. As mães e pais estão oito horas no mercado de trabalho, uma ou duas horas no trânsito e têm cada vez menos tempo de brincar com os filhos. Mas, brincar com o filho é a melhor maneira de conhecê-lo. Porque ali você vê a reação dele quando ganha ou perde, como se relaciona com a vida, com o cotidiano. Isso está faltando nas famílias. QUANDO VOCÊ PERCEBEU A TRANSVERSALIDADE DA BRINCADEIRA? Um ano, fui chamada para cantar na inauguração de um grande terminal de ônibus. Cantei algumas Ave-Marias e, depois, canções de roda. Quando vi, os adultos estavam de mãos dadas cantando comigo. De repente, uma mulher, totalmente embriagada, subiu no palco e pediu meu microfone. Entreguei o microfone a ela e ela começou a cantar “Ó rosa vermelha”. Depois, devolveu-me o microfone, em prantos, e disse: “Viu, minha filha? Eu ainda sei cantar música de gente”. Aquele foi para mim um teste com adultos, porque, até então, eu só trabalhava com crianças. Percebi o quanto a cultura popular é transversal. Por mais diversas que sejam as pessoas, existe sempre algo profundo que as une e faz com que elas se sintam gente. Ninguém é suficientemente diferente, que não tenha sofrido influência de uma canção tão simples que é do acervo da humanidade. Eu acredito demais nisso que eu faço. Estudo a brincadeira do ponto de vista psicológico, antropológico e étnico e, assim, percebo a identidade do sujeito coletivo brasileiro.

As opiniões expressas na seção “Com a Palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO.


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