Indígenas em São Paulo, um sinal de que outro modo de vida é possível

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Campanha da

em aldeias ou espalhados pelos bairros, os povos indígenas lutam para preservar sua cultura das mais diversas formas Nayá Fernandes

A

nayafernandes@gmail.com

urytha Tabajara (foto) estava no Pateo da Cruz, no campus da PUC-SP, em Perdizes, na zona Oeste, vestida com uma blusa verde e usando brincos e colar de penas e sementes. Durante o intervalo do cursinho pré-vestibular que faz na Universidade, em preparação para a prova que pretende prestar no fim deste ano, ela falou com a reportagem do O SÃO PAULO. Na capital paulista, a indígena do povo Tabajara divide o aluguel com uma prima no bairro do Jabaquara, na zona Sul, e já trabalhou numa empresa de telemarketing, como babá, cuidadora de idosos e diarista para conseguir se manter por aqui. A situação de Aurytha é a mesma de muitos indígenas que vem para “a cidade grande” por motivos diversos e aqui tentam estudar ou trabalhar. Ao contrário do que imagina a maioria da população, nem todos os povos indígenas vivem em aldeias. No município de São Paulo, por exemplo, somente os Guarani vivem em aldeias, que estão localizadas nas imediações dos bairros de Parelheiros e do Jaraguá. Outros povos como os Pankararu, os Pankareré ou os Kariri-xocó vivem espalhados pela cidade, concentrados ou não nos bairros. A principal motivação para sair das suas aldeias de origem, na maioria das vezes, é a mesma de qualquer brasileiro: buscar melhores condições de vida para si, suas famílias e seu povo. Foi isso que trouxe Wiryçar (foto na página 15) a São Paulo. Casado e pai de três filhos, o cacique do grupo Kariri-xocó foi praticamente enviado pela sua aldeia para uma missão: divulgar a cultura e levantar recursos para sua família e para os kariri-xocó que ficaram em Alagoas.

Mais de 300 povos que falam 200 línguas no Brasil

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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(IBGE), de 2010, há 305 etnias indígenas no Brasil, que falam 274 línguas diferentes. Embora haja uma situação muito precária dos Guarani, no Jaraguá, onde cerca de 700 pessoas vivem num espaço com 1,7 hectares, impressiona escutar as crianças falando o tupi guarani. Mas essa não é a realidade de muitas etnias. Dos entrevistados para esta reportagem, apenas os Guarani conseguiram preservar a língua. “No Nordeste, os povos indígenas foram proibidos de falar suas línguas. Meus avós contam que viviam como fugitivos. Eram caçados e mortos simplesmente por serem indígenas. Eles já se fizeram de mortos para não serem assassinados de fato. Falar a língua e não o português era definitivamente proibido. Hoje, há uma antropóloga que está fazendo um trabalho de resgate da nossa língua na aldeia”, contou Aurytha, que desde os 8 anos anota as histórias contadas pela avó, Francisca Binga.

Tabajara

Em 2017, Aurytha conseguiu, finalmente, elaborar um projeto de contação de histórias indígenas nas escolas. “Estou tentando há cinco anos, mas só agora, com a ajuda de um professor da PUC-SP, consegui elaborar o projeto” contou à reportagem, enquanto tirava da mochila os livros e folhetos que já escreveu e as antologias das quais participa desde que chegou a São Paulo. A indígena que pretende formar-se em Letras antes de voltar para a aldeia, disse que viveu aqui, em determinado momento, uma crise de identidade que a fez enfrentar uma profunda depressão. “De repente, depois de um ano tentando trabalho sem conseguir nada, desanimei, porque as coisas estavam difíceis demais para mim. Mas pensei que antes eu precisava voltar ao Ceará e falar tudo para minha avó. ‘Filha, você precisa ouvir o rio’ – disse minha avó. Ficamos uns 20 minutos em silêncio a beira do rio. E ela, então, me perguntou se eu tinha aprendido algo. Como minha resposta foi negativa, ela disse: ‘O objetivo do rio é desaguar em um rio maior. Se ele parar, se existir algo que seja obstáculo como o lixo, por exemplo, a água vai apodrecer, porque ele não teve energia para continuar. A mesma coisa vai acontecer com

Luciney Martins/O SÃO PAULO

você. Se desistir, você não vai conseguir continuar. Depois daquela conversa, eu voltei para São Paulo, mas foi totalmente diferente. Comecei a procurar indígenas de outras etnias e me aproximei mais deles. Isso foi muito importante para mim”, comentou Aurytha, que já trabalhou ao lado de Daniel Munduruku, doutor em Educação pela USP, fundador do Projeto Uka – Casa dos Saberes Ancestrais e membro fundador da Academia de Letras de Lorena (SP), onde mora atualmente com sua família. As aldeias Imburana e Cajueiro ficam no munícipio de Poranga (CE), uma cidade que tem 11 mil habitantes, dos quais mais de mil famílias são das etnias Tabajara e Kalabaça. “Poranga era só mata. Os fazendeiros que procuravam lugar para o gado, a encontraram, mas os Tabajara já estavam lá. A cidade cresceu em volta da aldeia, que fica entre três pedras, em cima de uma serra. No início da habitação, quiseram nos expulsar, mas os povos Tabajara já tinham se juntado aos Kalabaça e com lideranças fortes, conseguiram manter-se ali. Contudo, a terra ainda está em fase de estudo e não foi demarcada”, explicou Aurytha, que é também formada em Magistério.

‘Cultura não tem cor’

Em São Paulo, seu primeiro emprego foi como operadora de telemarketing.

“Demorei um ano para conseguir trabalho. Eu percebi tarde que era preciso acompanhar um determinado padrão de roupa, maquiagem, modo de falar e, principalmente, que eu não podia me apresentar como indígena. No começo, eu chorava muito quando saía de uma entrevista de emprego e, por isso, entrei em depressão”. Além da horta e do artesanato, os indígenas nas aldeias Cajueiro e Imburana sobrevivem da caça e muitos trabalham nas próprias aldeias ou fora delas. “A caça mais comum é o peba [uma espécie de tatu] e a cotia. Temos um ritual próprio para a caça e tudo o que é conseguido, é compartilhado. Além disso, se alguém está numa situação de dificuldade, todos se unem para ajudar”, explicou. Aurytha saiu da aldeia porque desde pequena queria conhecer outras culturas, num lugar que fosse diferente de onde nasceu. “Mas minha avó não me deixava sair. Agora, não quero ir para lá sem contribuir com meu povo, por isso pretendo concluir a faculdade. Quando voltar, vou me colocar à disposição, e eles vão me conduzir. Em São Paulo, aprendi a valorizar minha cultura e adquiri conhecimentos sobre os direitos dos povos indígenas, que eu jamais teria se tivesse continuado ali”, disse a tabajara que recordou à re-


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Guarani Mbya

Ele ficou conhecido no mundo inteiro depois de tirar uma faixa vermelha na qual estava escrito “Demarcação”, durante a abertura da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 2014. Jeguaka Mirim tinha 13 anos na época e é filho de Olívio Jekupê, liderança indígena da aldeia Krukutu, do povo Guarani Mbya. “Foi muito importante, porque naquele momento as comunidades indígenas ficaram mais conhecidas, bem como sua principal luta: a demarcação de suas terras”, disse Olívio, em entrevista ao O SÃO PAULO. Olívio nasceu no Paraná e tem cinco filhos. A aldeia onde ele mora atualmente fica na região de Parelheiros, no extremo sul da capital. Lá vivem cerca 300 pessoas, numa extensão de 25 hectares. Ele é autor de 15 livros, palestrante e um dos fundadores da associação dos Guarani. Na aldeia há uma escola do Estado, um Centro de Cultura Indígena (Ceci), mantido pela prefeitura e a Unidade Básica de Saúde (UBS) Krukutu. Além disso, todas as noites eles se reúnem para rezar na Opy’i – casa de reza. “Passaram-se muitos séculos e muitas dominações, mas os Guarani conseguirem permanecer. A Opy’i é o principal lugar da aldeia”, explicou Olívio. Muitos Guarani trabalham dentro da aldeia, outros fazem artesanato que é vendido quando os indígenas recebem grupos de visitantes. Além disso, uma parcela da população é aposentada e eles se organizaram para divulgar a cultura em escolas e eventos, ocasiões em que recebem, também, alguma ajuda de custo, principalmente para as crianças que cantam no Coral Guarani. “Há cerca de dez anos, tivemos muitos problemas de desnutrição, porque não tínhamos água boa. Agora, temos um poço artesiano e isso nos ajudou muito. Água boa é remédio. Temos uma equipe médica na aldeia e agentes de saúde também. O pajé realiza rezas pelos doentes e ensina as pessoas a prepararem seus remédios naturais”, contou o pai de Jeguaka, que também já publicou dois livros, entre eles os “Contos dos curumins guaranis”.

Kariri-xocó

A aldeia Kariri-xocó fica entre Alagoas e Sergipe, perto da cidade de Arapiraca (AL). Wiryçar Kariri-xocó veio para São Paulo há cerca de oito anos. “Já viajei para lugares como Rio de Janeiro e Santa Catarina, mas tenho ficado mais tempo em São Paulo. Vou, porém, na aldeia duas ou até três vezes por ano. Em janeiro, temos um ritual fechado, o Ouricuri, no qual passamos 15 dias no mato, mais uma semana em retiro. Como sou eu responsável pelo retiro, vou cerca de um mês antes para preparar”, contou Wiryçar, que é casado e tem três filhos, todos nascidos em São Paulo. “Não conseguimos mais sobreviver de caça e pesca e, devido à dificuldade de subsistência, resolvemos vir para divulgar nossa cultura e

biomas brasileiros e defesa da vida

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conseguir sobreviver aqui e lá. Além disso, a região em que estamos sofre muito com a falta de chuva. Trabalho aqui como palestrante, em apresentações nas escolas e eventos. Nesses encontros, contamos a verdadeira história dos Kariri-xocó. A sociedade imagina os índios de 500 anos atrás e não a realidade dos povos hoje”, contou à reportagem o indígena, cujo nome significa protetor da natureza. No momento da entrevista, já passava das 20h e Wiryçar tinha acabado de chegar de Jundiaí (SP), onde havia palestrado e feito apresentações de danças para os estudantes e professores. Os eventos são também uma oportunidade para venda do artesanato trazido do Alagoas. Na aldeia dos Kariri-xocó vivem cerca de 5 mil indígenas. A principal fonte de renda é o artesanato, vendido em todo o Brasil. Há um grupo de mulheres que faz copos e panelas com o barro da própria aldeia e os troca por feijão e farinha no interior do Estado. “Este ano, conseguimos eleger dois vereadores. E há, ainda, aqueles que são professores e agentes de saúde”, explicou Wiryçar. O cacique mora na região do Jaçanã, na zona Norte, e seu último filho, Wiryçar Tenório da Silva tem apenas 6 meses e nasceu no hospital São Luiz Gonzaga. Registrado com nome indígena, situação que só foi permitida pelos cartórios brasileiros após uma resolução do ano de 2012, o pequeno provavelmente irá aprender logo algumas palavras usadas pelos Karirixocó em seus rituais.

Estratégias de resistência

Ao ser perguntado sobre a situação de empobrecimento em que vivem os indígenas nas comunidades urbanas, principalmente os Guarani, que estão nas aldeias do Jaraguá, Daniel Muduruku afirmou que a presença indígena na cidade é sinal de que um modo de vida diferente é possível. “Os indígenas urbanos são fruto de um fenômeno muito comum na sociedade brasileira: a questão territorial, que obriga à migração. Penso também que tal êxodo tem ocorrido por conta da necessidade de buscar melhores condições de vida e formação intelectual ou ainda projeção cultural. Grandes centros costumam oferecer opções viáveis para que os indígenas possam viver suas culturas, por mais contraditório que isso possa parecer. Não se trata, portanto, de uma ‘fuga’, mas de autoafirmação identitária que encontra eco em lugares que precisam refletir sobre o tipo de desenvolvimento que rege um país como o nosso. Realmente, eu penso que nossa presença nos centros urbanos acaba se tornando a consciência necessária para que as pessoas reconheçam que outro modo de vida é possível. Nesse sentido, nossas comunidades indígenas urbanas cumprem um papel fundamental na manutenção de uma utopia. Nossas comunidades – apesar das dificuldades que passam – são verdadeiras ‘ilhas de resistência’”, disse Daniel, que nasceu na aldeia dos Munduruku, no Pará, é autor de 50 livros, entre eles “Meu avô Apolinário”, escolhido pela Unesco para receber menção honrosa no Prêmio Literatura para Crianças e Jovens na Questão da Tolerância.

Arquivo pessoal

portagem um episódio em que foi demitida do emprego no mesmo dia em que contou sua origem.

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