Caixão não tem gaveta

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Caixão não tem gaveta Nada se leva dessa vida. Nos cuidados paliativos isso fica ainda mais evidente

Era Sábado de Aleluia, numa manhã amena e com ocasionais pancadas de chuva, quando fui pela primeira vez no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre. Chegando lá, subi ao terceiro andar, onde se encontra o setor de Serviço de Dor e Cuidados Paliativos do Grupo Hospitalar Conceição. Foi naquele cenário que encontrei personagens de histórias que me surpreenderam por não falarem só de dor, mas de esperança e de superação. Elbert Jagnow tem 49 anos, cabelos claros, barba bem aparada e olhos pequenos. É ele quem me recebe. Pastor luterano, trabalha na assistência espiritual dos pacientes e explica o trabalho realizado por ele e por seus colegas: “Os cuidados paliativos são os cuidados necessários quando não se tem mais uma perspectiva de cura. É um trabalho para dar qualidade de vida enquanto ainda há vida”. Segundo Jagnow, a dor que pode ser encontrada nesse setor é a “dor total”, em que o ser humano está em um ponto alto de seu sofrimento, tanto biologicamente, quanto espiritual, psicológica e socialmente. A equipe, que é composta por diversos profissionais, tem o papel de absorver essa dor, ouvir e prestar atenção no que os pacientes estão sentindo e precisam. É mais que receitar remédios, é dar atenção.

IRACI Jagnow é meu guia no setor. É ele quem fala com os pacientes, pergunta se querem ou se têm condições de falar comigo. Na segunda visita ao hospital, conheci Iraci Hoerlle, de 82 anos, que recém havia descoberto um câncer no intestino. Ela vestia o avental do hospital, exibia sobrancelhas desenhadas, batom nos lábios, cabelos presos e um sorriso doce. Ainda não sabia se poderia ser operada ou não, mas encarava a situação com tranquilidade. Ela já estava ali fazia oito dias. A descoberta da doença começou depois do processo de mudança de apartamento. “O excesso de trabalho me derrubou”, lembra. Durante a entrevista, em muitos momentos, ela sentia dor e, mostrando a finura da perna, contou que perdeu 15 quilos. “Eu não era assim magrinha”, confidencia baixinho. Iraci gosta do serviço do hospital, mas não nega: “A minha cama é melhor, né?!”. Ficar parada é um desafio para ela, que sempre teve uma vida ativa. Durante 25 anos


trabalhou em um cargo de chefia da Porcelana Renner e se aposentou aos 40 anos. Depois trabalhou mais 10 em outra empresa. “Vou fazer o quê? Ficar em casa? Eu não sirvo para isso!”, declara. Com 50 anos, Iraci resolveu viver uma aventura internacional. Por dominar três idiomas (inglês, alemão e português), trabalhou como recepcionista em um restaurante chique nos Estados Unidos. Só voltou ao Brasil depois de viver uma cena digna de Hollywood: ela e alguns colegas de trabalho estavam em um carro e nevava. O veículo perdeu o controle e ficou com a traseira presa em um trilho de trem. A traseira foi arrancada, mas todos ficaram bem. Iraci, no entanto, tomou uma decisão. “O país mais lindo do mundo é o Brasil, não importa o governo. Eu vou é pra casa”, lembra. Iraci também conta que foi casada com um homem viciado em jogar cartas, o que a levou a pedir divórcio depois de acumular tantas dívidas do marido. Na época, a separação era chamada de “desquite”, e ela lembra como o juiz a questionou por não ter filhos. “Eu não ia botar um filho no mundo para passar trabalho. Com o dinheiro que eu ganhava, não dava para pagar uma babá – porque creches não eram comum naquela época –, sustentar minha sogra e o vício do meu marido.” No processo de separação, ela herdou as dívidas dele e, algum tempo depois, ainda teve que pagar pelo enterro do ex. Como lição de vida, Iraci aconselha fazer o bem sem olhar a quem e que só o amor constrói. “Caixão não tem gaveta. Tu não leva nada junto”, afirma. Falei que a visitaria de novo na semana seguinte. “Espero que eu não esteja mais aqui”, respondeu rindo.

ANA Naquele mesmo dia, vi a Ana Carolina Carvalho pela primeira vez. Depois de muitas idas e vindas, aquela era a sua 11ª internação. Não consegui falar com ela, pois ela estava sob efeito de remédios para a sua dor. Acompanhei sua conversa com o pastor Jagnow e logo soube que eu precisaria voltar outro dia para falar com ela. Ana tem algo de diferente em relação aos outros pacientes. Com cabelos pintados de loiro, brincos alargadores na orelha e um espírito positivo, Ana ainda é muito jovem. Ela tem só 27 anos. Duas semanas depois, voltei ao hospital. Iraci já não estava mais lá, havia ido para casa. Fui, então, falar com Ana. Ela estava melhor, sentada e falante, comemorando que já não precisava da máscara de oxigênio fazia dois dias. Então ela me contou sua história antes do câncer no reto, que descobriu em setembro de 2015. Seu relato é muito


relacionado com a fé. Seu testemunho é constante e, mesmo em um momento tão crítico, ela se alegra por ter encontrado a paz de Deus. A vida de Ana tem muitos altos e baixos. O tumulto, segundo ela, começou quando deixou de participar da Igreja. Com 19 anos, engravidou e, aos 20, teve seu filho Vitor. “Andei nos piores lugares do mundo. Drogas, bebida, cigarro. Tudo. O mundo só sabe nos proporcionar isso”, relata. Ela chegou ao fundo do poço e, assim que conseguiu mudar de vida, descobriu sua doença. O câncer de Ana é genético. Enquanto ela luta contra a sua doença, sua mãe enfrenta a mesma situação. Ela se preocupa e reza que essa corrente genética seja quebrada por seu filho de sete anos, que também é uma das maiores fontes de sua força. “Meu pequeno é incrível. Eu vejo Deus nele”, conta. “Ele diz para mim: ‘Mãe, eu era um anjo. Aí Deus olhou para a Terra e viu como tu estava sozinha, triste, e Deus foi lá e me botou na tua barriguinha para te trazer felicidade!’”, relata emocionada. Ana é um exemplo de perseverança e diz que sua atitude positiva surpreende. “As pessoas não conseguem acreditar que eu consiga lidar com a minha doença e ainda ajudar ao próximo”, fala. “Uma pessoa veio me visitar na minha primeira internação e disse: ‘Poxa, eu pensei que ia chegar e ver uma pessoa zumbi, doente, em cima de uma cama e tudo. E tu está sentada, dando risada. Vim aqui para te confortar e eu que saio confortada’. E eu disse: ‘Essa é a diferença que Deus faz na minha vida’”, lembra. Ela também não poupa elogios para a equipe do Serviço de Dor e Cuidados Paliativos que cuida dela. “São pessoas que estão sempre te ajudando, se não dá de uma forma, dá de outra. Eles estão sempre tentando me dar força quando eu fraquejo. Eles já vêm sorrindo para ti, que já te dá uma alegria”, comenta. Sobre o futuro, Ana tem esperança e diz que não vai desistir: “Creio na minha cura, nas bênçãos que ainda estão por vir na minha vida. Pela minha família, pelo meu filho, por todas as pessoas que eu amo, eu luto. E para poder testemunhar o amor de Deus na minha vida eu luto todos os dias, cada segundo, cada minuto. Eu preciso lutar, ir adiante. Deus me deu essa missão e eu vou até o final”. Dentre seus sonhos, ela tem como objetivo estudar enfermagem para poder ajudar as pessoas que vivem situações como a dela. Quando perguntei que mensagem ela gostaria de deixar para as pessoas que estão em dor, Ana disse que sempre depois de uma tempestade vem um lindo dia de sol. “E eu estou nesse lindo dia de sol”, diz. “Por mais que eu ainda esteja nessa luta contra a doença, eu estou no meu dia de sol. Assim como todos vamos estar, basta confiar em Deus”.


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