livro: poéticas digitais

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digitais

ricardo maurĂ­cio gonzaga

Universidade Aberta do Brasil 1 Universidade Federal do EspĂ­rito Santo

Artes Visuais Licenciatura


Poéticas Digitais foi elaborado

para servir como material didático de apoio à disciplina de mesmo nome, oferecida pelo programa de EAD da UFES, como parte do Curso de Licenciatura em Artes Visuais. O texto objetiva, em primeiro lugar, familiarizar o aluno com o problema da relação dinâmica entre arte e técnica nos diversos contextos históricos, de modo a tornar permeáveis noções cristalizadas relativas à natureza material da obra de arte. Em segundo lugar, pretende-se a aproximação do leitor ao advento das imagens técnicas – em especial à imagem digital, sua influência paradigmática na percepção do real e, consequentemente, sua presença na produção de arte na atualidade. Finalmente, objetiva-se capacitar o futuro professor de arte a exercitar e transmitir, em diálogo com as poéticas contemporâneas, consciência crítica frente às imposições programáticas de realidades pela via da imagem.




U N IVER S IDA DE F EDER AL D O E SPÍRITO SANTO Núcleo de Educação Aberta e a Distância

digitais ricardo maurício gonzaga

Vitória 2012


UNIVERSID A D E F ED ERA L D O ES P ÍR ITO S AN TO Presidente da República Dilma Rousseff

Reitor Reinaldo Centoducatte

Diretor do Centro de Artes Paulo Sérgio de Paula Vargas

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

G642p

Gonzaga, Ricardo Maurício. Poéticas digitais / Ricardo Maurício Gonzaga. - Vitória : UFES, Núcleo de Educação Aberta e a Distância, 2012. 233 p. : il. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-8087-071-8 1. Arte moderna. 2. Arte digital. 3. Arte e sociedade. I. Título. CDU: 7.01

Laboratório de Design Instrucional Coordenação Heliana Pacheco José Otavio Lobo Name Letícia Pedruzzi Fonseca Ricardo Esteves Gerência Daniel Dutra Gomes

Editoração e Capa Marianna Schmidt

Impressão GM Gráfica

Imagens Pupo Art Inc. Gabor Balagh

Copyright © 2012. Todos os direitos desta edição estão reservados ao ne@ad. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordenação Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Visuais, na modalidade a distância. A reprodução de imagens de obras neste livro tem o caráter pedagógico e cientifico, amparado pelos limites do direito de autor no art. 46 da Lei no 9610/1998, entre elas as previstas no inciso III (a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra), sendo toda reprodução realizada com amparo legal do regime geral de direito de autor no Brasil.


referĂŞncias

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PoĂŠticas Digitais


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introdução

a realidade ampliada

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o ser como avatar

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tela total

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arte, cultura e sociedade

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entre palavra e imagem

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arte: originalidade e conhecimento

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as imagens técnicas

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do moderno ao contemporâneo: a ampliação do campo da arte

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arte moderna: prática e teoria puristas

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arte contemporânea: a infiltração do fotográfico

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o paradigma virtual

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hiperespaço e tempo real

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efeitos de retroalimentação (feedbacks) do virtual

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conclusão sobre os efeitos do paradigma virtual

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estratégias para o virtual

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a lógica do aparelho: clareando a caixa-preta

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operações alegóricas no interior dos aparelhos

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poéticas da era digital

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conclusão

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referências

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índice de imagens

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PoĂŠticas Digitais


Caro aluno: Poéticas Digitais é, antes de tudo, uma disciplina prática. Em última instância, seu principal objetivo é preparar o aluno, você, para, ao final do curso, estar apto a conceber e a realizar um trabalho em arte por meios digitais. No entanto, a ênfase da disciplina, assim como a deste texto, recairá, aparentemente de forma contraditória, como você vai ler e ver, sobre a teoria. E sobre a história. Por quê? Acontece que, como observou muito bem Edmond Couchot e vamos aprofundar adiante, o artista [...] terá de transcender os modelos colocados à sua disposição, ou que ele próprio imagina, ir além de sua comunicação tecnológica, não exibir – como se vê muitas vezes em manifestações dedicadas à imagem digital, em que é raríssima a presença de autênticos criadores – puras técnicas de modelização, mesmo se entupidas de inteligência artificial (COUCHOT, 1993, p. 46).

O problema é exatamente este: para realizar um trabalho no campo das “poéticas digitais” não basta dominar técnicas de programação de imagens computadorizadas, as chamadas imagens numéricas, pelo contrário: na verdade, nem mesmo é imprescindível que o artista as domine. O que é fundamental é que se esteja apto a compreender o contexto em que a influência das imagens digitais opera, produzindo alterações radicais em nossa interação com o mundo e entre nós mesmos. Ainda mais: o resultado do trabalho do artista poderá nem mesmo se apresentar ao final em forma digital, o que não impede que tais questões sejam abordadas em profundidade. Ou, se for impres9


cindível, o artista poderá recorrer a alguém que tenha conhecimentos técnicos suficientes para realizar aquilo que ele/ela pretende. Nada de espantoso ou absurdo nisso: na prática da arte atual boa parte dos trabalhos é “terceirizada”, isto é, o aspecto técnico propriamente dito de sua realização pode ser delegado a técnicos especializados muito mais competentes para executar a forma final do trabalho naquele meio específico escolhido pelo artista que o próprio. Este colaborador técnico, por mais importante que seja sua participação, não se torna de modo algum um coautor do trabalho. Isto porque o trabalho autoral em arte — o trabalho do artista — é de outra natureza. Deriva daí a importância da teoria para a prática artística. De fato, hoje, inversamente ao que acontecia em períodos anteriores, a principal “habilidade específica” do artista é mental: trata-se de aliar a capacidade intuitiva, característica do pensamento artístico, à reflexão crítica e à informação — tanto específica, isto é, referente à história e ao contexto da própria arte e suas realizações, quanto à relativa aos contextos gerais da vida social e política da humanidade. O problema que muitos têm com a “teoria” advém do fato de se pensar ser possível dissociá-la da prática. Nada mais falso: não há prática sem teoria. Na verdade, a teoria não é “uma outra coisa”, mas o pensamento que analisa as coisas e a si mesmo, reflexivamente, propiciando que a prática se realize. Aquele que diz preferir a prática à teoria nada mais faz que se ocupar de uma prática que, de tão repetida, parece nem ter mais relação com qualquer teoria. Ledo engano: é o hábito que cria esta ilusão, fazendo parecer que teorizar é um complicar as coisas simples ou delas se distanciar. Estas tornam-se simples — e até banais — pela repetição de algo que inicialmente é sempre difícil, exigindo um esforço da consciência para se tornar inteligível. Com a repetição vem a simplicidade e o modo como a 10


maior parte das pessoas na maior parte das vezes se relaciona com elas: irrefletidamente, repetindo a prática que tradições e convenções consolidaram. Isso as impede de modificar o percurso de tais práticas quando elas se tornam insuficientes para lidar com o real, à medida que este está sempre em transformação, exigindo novas soluções para novos problemas. No seu caso, educador/a em arte, a exigência é ainda mais radical: é evidente que uma postura apática não pode se coadunar com as necessidades da profissão. Como preparar o aluno para tornar-se um ser crítico em relação à realidade que o cerca, de modo a tornar-se ativo e apto a modificá-la e, ao mesmo tempo, ajudá-lo a perceber de que modo a arte lida com uma inteligência muito particular para enfrentar estes problemas, se não se consegue fazer mais do que repetir inconscientemente padrões que nos foram impostos — a tal prática acrítica — sem saber exatamente porque o fazemos? Na sua origem, teorizar diz respeito a ver mais longe para ver melhor, com mais clareza, aquilo que não se dá a perceber à maioria, que continua a ver apenas o que se apresenta de modo óbvio. Por quê? Ora, porque dá menos trabalho! De fato a maioria das pessoas passará a vida ao largo de todas estas questões e problemas, sem se dar conta de que elas podem estar nos conduzindo para abismos dos quais talvez ainda possamos escapar, o que as impedirá de contribuir para uma mudança de rumo na direção de mundos em que seja mais do que agradável, possível, viver. Se não nós mesmos ou nossos filhos, quem sabe, nossos netos e bisnetos. Pela mesma razão — a preguiça, mãe do desinteresse — a maior parte das pessoas vai passar ao largo do que os artistas produzem de melhor, esperando que a arte se adéque aos seus frouxos, superficiais e parcos conhecimentos, que na maior parte das vezes são conside11


rados suficientes. Perdendo, assim, a oportunidade de se deixar tocar por poéticas capazes muitas vezes de redirecionar vidas inteiras. Infelizmente, porque arte é, ou deveria ser, para todos. Ao educador em arte cabe, portanto, a tarefa de proporcionar ao aluno os instrumentos que o capacitem a entender como os trabalhos de arte articulam suas proposições, e o nexo formativo que os une às realidades práticas da vida e seus desdobramentos futuros. Nosso processo será o seguinte: vamos desmontar a caixa-preta (se você ainda não conhece o termo, não se preocupe: aos poucos ele irá se tornando familiar) da história da arte, para analisar, peça por peça, o modo como chegamos aos inputs (aqui vale também o comentário anterior) que inconscientemente aceitamos como “naturais”, isto é, como sendo aquilo que naturalmente a arte — e a vida — deve ser. A arte não é natural: para além do momento da criação — e tornando-o possível, ela é efeito — e causa — de um longo processo — histórico e cultural — estreitamente ligado à própria história da humanidade e mais: que define mesmo — junto a outros fatores — os rumos deste processo geral. Vamos então tentar entender este processo que levou à situação atual e o papel da arte neste contexto. Portanto, minha companheira/meu companheiro de viagem, prepare-se: aperte o cinto que a aventura da arte vai começar. Na teoria e na prática!

Ricardo Maurício Gonzaga

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a realidade ampliada 15


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o ser como avatar Um homem azul aparentando ter mais de três metros de altura escala uma árvore altíssima com incrível rapidez. Curiosamente, tenho a certeza de que sou eu quem controla seus movimentos, apesar de não ter a menor ideia de como consigo fazer isso. Ou mesmo de onde ele se encontra. De repente, ele escorrega e cai e, apesar de ter a sensação nítida da vertigem da queda, pressinto que não há a menor possibilidade de me machucar. Corta.

Cena do filme Avatar, dirigido por James Cameron

A palavra Avatar vem do sânscrito Avatâra, que significa “aquele que descende de Deus”, ou simplesmente “encarnação”. Refere-se, portanto, neste sentido originário, a qualquer espírito que ocupe um corpo de carne, representando assim uma manifestação divina na Terra. Deriva daí sua aplicação a qualquer representação pictórica de si mesmo que um internauta use em ambientes virtuais.

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As portas do trem metropolitano de uma grande cidade se abrem e, sem deixar de olhar fixamente para a tela de seu celular, uma adolescente entra no vagão. O metrô percorre três ou quatro estações e, antes de parar na seguinte, uma voz metálica, depois de anunciá-la pelo alto-falante, observa: “estação em curva: cuidado com o vão entre o trem e a plataforma”. Assim que a porta se abre, a garota se movimenta rapidamente para sair, sem deixar de olhar para o celular. Corta.

Celulares no metrô de Tóquio

“Hoje não pensamos o virtual, somos pensados pelo virtual”. A afirmação de Jean Baudrillard (2002, p. 57) apresenta a realidade da situação: já vivemos — e a tendência, aparentemente inexorável, é passarmos a viver cada vez mais — numa espécie de ambiente de imersão em que o real assume cada vez mais uma dupla face: uma, o real/real, por assim dizer, aquele com o qual a humanidade lidava até o século XIX; outra, o real mediatizado, 18


produzido por tecnologias que se aprimoram a cada dia e modificam radicalmente nossa percepção de mundo, sem nos darmos conta disso. Por que isto acontece? Segundo Vilém Flusser, “imagens são mediações entre homem e mundo”. Flusser acrescenta: “o homem ‘existe’, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente” (2002, p. 9), disso decorre, ainda segundo ele, a necessidade humana de recorrer a — e criar — imagens e textos que tornem possível compreender e compartilhar a realidade com os demais membros do grupo social. No entanto, como ainda explica Flusser, acontecem movimentos retroativos, de feedback em relação ao real, em que estas formas de mediação com o mundo que foram criadas para o entendimento do real acabam por se confundir com ele. É esse o perigo: que a menina no metrô do trecho acima, totalmente imersa no mundo virtual da comunicação que seu celular proporciona, perca de todo o contato com a realidade concreta do mundo — passando a correr todos os riscos que podem decorrer desta alienação. Um perigo cada vez mais próximo: pois, à medida que os processos de retroação descritos por Flusser tendem a invadir nossos modos de percepção do real, passamos também a confundir a segunda situação descrita — a da menina no metrô — com a primeira que faz referência ao filme “Avatar”. O problema é que no mundo real nossos corpos reais estão submetidos a todos os percalços e acidentes de sua existência física. Quando nos confundimos e perdemos estas referências, corremos o risco de passar a nos comportar como seres virtuais — avatares — e o preço a pagar pode ser tremendo. É como a diferença entre cair de um lugar alto num sonho (ou num videogame, em que você tem muitas vidas a perder) ou acordado: do sonho você acorda... 19


Quando o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas dos planetas (REIS, 1999) Como na letra da canção, as “imagens técnicas” (veja a caixa de texto a seguir), aparecem como um segundo sol, que já realinhou radicalmente nossas existências sem que tenhamos consciência disso. A percepção crítica do problema não só é necessária, mas premente, cabendo a arte um papel fundamental neste processo. Para Vilém Flusser imagens técnicas são aquelas produzidas por meio da utilização de aparelhos. Aparelhos, ele explica, são produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado (FLUSSER, 2002).

A real dimensão do problema pode ser avaliada pela constatação de que a maioria das pessoas, a maior parte do tempo, como diria Heidegger, comporta-se cotidianamente como a menina do metrô, isto é: à mercê dos efeitos — sedutores, sem dúvida — que a maré de produtos da tecnologia nos apresenta a cada dia, sem se dar conta de como nossa relação com o mundo é modificada por eles.

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tela total A expressão “tela total” cunhada pelo sociólogo francês Jean Baudrillard (BAUDRILLARD, 2002), sintetiza bem os termos em que a situação se apresenta: vivemos em progressão acelerada numa relação cada vez mais indireta, mediatizada — mediada, como vimos, por imagens ou textos -, com aquilo que chamamos de mundo real. A realidade do programa televisivo Big Brother, definida pelo paradigma da visibilidade total, é absorvida com naturalidade pelos telespectadores. Leia o livro, veja o filme: Big Brother: o nome do programa deriva do título do romance homônimo de George Orwell que descrevia os aspectos de uma sociedade fictícia essencialmente totalitária (ORWELL, 2003).

Mais do que aceitar com tranquilidade que um grupo de pessoas exponha sem inibições suas vidas e intimidades no tempo real do espetáculo televisivo, o telespectador, sem perceber, está introjetando a sensação de estar sendo constantemente monitorado por uma câmara oculta. Ocorre aí mais um daqueles processos de retroalimentação (feedback) como os apontados por Flusser, de confusão do real com o imaginário. Ou seja: esta câmera oculta, que na verdade nem mesmo existe, torna-se mentalmente onipresente em todos os momentos de nossas vidas, mesmo os mais íntimos e que deveriam permanecer privados. Deveriam? Ou não. Mais e mais, na lógica — e na nova ética — da chamada “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1972), a vida de cada indivíduo passa a se definir — principalmente para ele mesmo 21


— como um show do qual ele próprio é o protagonista, situação que o incômodo filme O show de Truman, estrelado por Jim Carrey, apresentou com perspicácia.

Cena do filme O Show de Truman, com Jim Carrey

Se você não viu, veja, se já viu, reveja: O show de Truman é um filme de 1998 dirigido por Peter Weir e escrito por Andrew Niccol. Estrelado por Jim Carrey, o filme mostra a vida de Truman Burbank, um homem que inicialmente não sabe que está vivendo em uma realidade construída de um programa da televisão, transmitido 24 horas por dia para bilhões de pessoas ao redor do mundo. Truman começa a suspeitar da realidade e embarca em uma busca para descobrir a verdade de sua vida.

Os quinze minutos de fama, brilhantemente profetizados por Andy Warhol, tornam-se, assim, paradigmáticos dos objetivos de cada vida que se quer “bem sucedida” na contemporaneidade. Estendê-los ao máximo, se possível por toda a duração da vida do indivíduo, passa a ser o ideal final, que leva cada 22


um a ansiar por tornar-se uma “celebridade”. Nem que seja por quinze minutos. Num outro aspecto do problema, ou melhor: de outra perspectiva, passamos da visibilidade total à vigilância idem. De algum tempo para cá, temos visto nos telejornais o aumento de imagens — na maior parte das vezes ligadas a ocorrências criminais — gravadas por câmaras de seguranças estrategicamente postadas de modo a captar tudo que acontece em volta. A cada dia, na hora do telejornal, a sucessão dessas imagens nos reafirma que vivemos numa sociedade extremamente insegura. Parece não haver assalto à loja de conveniência, atropelamento ou execução a sangue frio em qualquer parte do planeta que não se torne imediatamente visível nas telas da sua casa — seja a do televisor, seja a do computador, ou até mesmo a do celular ou do tablet. Mera ilusão (de ótica, poderíamos dizer): em termos estatísticos, o número de imagens apresentadas é, evidentemente, ínfimo, se comparado à totalidade das ocorrências. Mas isso é o de menos: podemos entender, por exemplo, que “de tantos em tantos minutos, uma loja de conveniência é assaltada em tal capital” ou que “a cada hora acontece uma vítima fatal no trânsito de uma determinada cidade”, mas este entendimento é abstrato. É completamente diferente o impacto de ver o fato em si, como se estivesse acontecendo na nossa frente. E é por isso que olhamos, mesmo que, às vezes, contra a nossa própria vontade. É fundamental perceber que sem a reunião de tantas imagens de ocorrências distantes tanto entre si como em relação a nós mesmos e também sem a sua reunião cotidiana e apresentação pelos telejornais, raramente — ou talvez até mesmo nunca — veríamos fatos como estes “ao vivo”, diretamente. Decorre desta superexposição a imagens dessa natureza uma 23


percepção acentuada da realidade, principalmente a urbana, como perigosa (não que ela não seja!). Percepção que leva cada vez mais pessoas a apoiar com naturalidade a instalação de câmaras de vigilância nos espaços públicos de suas cidades. Segundo o sociólogo Zigmunt Bauman, a sociedade paga um preço pelo aumento da segurança: a consequente diminuição de seu coeficiente de liberdade (BAUMAN, 1998). Somos, portanto, na sociedade da “tela total” e da “câmera onipresente” — o Big Brother nosso de cada dia — cada vez mais monitorados — e consequentemente controlados — por dispositivos de produção, manipulação e publicação de imagens. Por outro lado, à medida que passamos a ter nossos desejos cada vez mais conduzidos por campanhas publicitárias, que nos impõem determinadas necessidades coletivas de consumo, tornamo-nos, antes de tudo e de mais nada, consumidores compulsivos. Com a diluição progressiva de outros valores, ser torna-se cada vez mais ter e, portanto, consumir se torna fundamental para existir. Com a normatização e a uniformização dos indivíduos geradas por este processo, o sistema tende a dominar completamente todos os territórios da vida humana: a ansiedade decorrente do fato de não se poder consumir o tanto que se imagina necessitar está na base da maior parte das frustrações contemporâneas e dos desequilíbrios sociais, que muitas vezes emergem na forma da violência criminosa. Mas, retornando ao problema da arte, o que ela tem a ver com tudo isto? Tem tudo a ver, tanto em termos de causa quanto de efeito. Começando pelo fim, isto é, pelos efeitos da realidade sobre a arte, podemos adiantar que, a cada tempo, a arte esteve sempre relacionada ao contexto específico de sua época. A compreensão deste aspecto pode ajudar muito o educador em arte no que diz respeito 24


à motivação do aluno. Despertar o interesse do aluno pela chamada “arte contemporânea” (veja explicação no quadro abaixo) depende em muito da capacidade do professor de ajudá-lo a perceber a relação contextual daquele trabalho de arte com a realidade histórica, social, política, econômica e cultural do momento em que foi produzida. Neste sentido, procurar responder às perguntas: por quê? Para quê? Para quem? Como? Além das mais comuns, quando e onde, possibilita a retomada da compreensão da relação orgânica da arte com seus contextos a cada momento. A expressão “arte contemporânea” é redundante à medida que, se for arte, será sempre, necessariamente, contemporânea, já que não se pode fazer arte de um tempo ao qual não se pertence. Qualquer tentativa neste sentido resulta num produto acadêmico que pouco ou mesmo nada tem a ver com arte.

Por outro lado, quanto às causas que nos conduziram à situação atual que, levando em conta tudo o que foi analisado até aqui, poderíamos chamar de “sociedade hipermediatizada”, o papel da arte, como você talvez já tenha percebido e vamos aprofundar na sequência, é mais que significativo, determinante. Vamos então fazer a análise retroceder no tempo, de modo a examinar os processos pelos quais chegamos ao momento atual — do mundo e da arte.

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arte, cultura e sociedade 27


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entre palavra e imagem Tudo começou com a fotografia. Ou melhor: tudo recomeçou com a fotografia. Porque para começar mesmo, do início, quando se trata da história das imagens, começamos — nós, a humanidade — com a pintura. Ou com o desenho. O que hoje denominamos arte existia desde as pinturas parietais das cavernas de Lascaux — “a aurora da espécie humana”, na expressão de Georges Bataille, que apresentavam “pela primeira vez o signo de nossa presença sensível no universo” (BATAILLE, 1955, p.1). Durante longo tempo, no entanto, inconsciente de sua própria existência, este dispositivo de imagem simplesmente funcionava, sem sequer ser nomeado como tal. A cada momento e lugar, os objetos de arte cumpriam suas funções, redefinidas pelas transformações sociais, políticas e econômicas com as quais interagiam tanto estreita quanto inconscientemente.

Pintura parietal, gruta de Lascaux, França

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Como vimos com Flusser, inventamos estes dispositivos culturais, sejam imagens ou textos, porque precisamos deles para existir: não percebemos o mundo imediatamente. Na verdade, Nietzsche precede Flusser nesta teorização pragmática da cultura: a criação e a permanência dos dispositivos culturais está diretamente ligada ao uso que um grupo social específico faz dele (BRUM, 1986). A cultura é, portanto, necessária, e permanece com a forma que adquire enquanto o for. Vilém Flusser vê a história cultural do Ocidente oscilando num processo dinâmico em que se daria uma alternância entre momentos marcados pela hegemonia da imagem e outros pela do texto1 esta invenção tipicamente ocidental. Estas fases seriam delimitadas pelo surgimento de eventos fundadores que as definiriam: as primeiras imagens, os primeiros textos e a fotografia (FLUSSER, 1996). Assim teríamos três (grandes) fases da história ocidental: a primeira, pré-histórica, surgiria com as primeiras pinturas parietais; a segunda, histórica, com os primeiros textos fonéticos; e a terceira, pós-histórica, com o advento das imagens técnicas, sendo a primeira dentre estas a fotografia (FLUSSER, 1996). Ora, como vimos, textos e imagens são criados e permanecem porque produzem modos de mediação com o real, úteis para a sobrevivência coletiva dos grupos que os preservam. No momento em que entram em crise — isto é, deixam de ser aptos para produzir as mediações que os justificam — obrigam aqueles grupos a substituí-los por outras formas de mediação com o real. Para Flusser estas

1 Flusser refere-se aqui especificamente ao texto fonético. Em outro texto intitulado Prétextos para a poesia, ele aprofunda a análise histórica que leva progressivamente, por meio de um processo de abstração, de uma linguagem hieroglífica e ideogramática à transcrição fonética dos conceitos (FLUSSER, 1985).

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crises se dão porque, naqueles processos retroativos, “de feedback com a realidade”, que mencionamos anteriormente, os dispositivos mediadores que deveriam explicar o real tornam-se opacos, passando a se confundirem com ele. Ou seja: o que deveria ser meio vira fim, e, por conseguinte, perde sua finalidade originária. Por exemplo: as primeiras imagens, as pinturas parietais teriam, na visão de Flusser, a função de produzir um recuo em relação à circunstância para tornar possível perceber seus contornos, “as relações entre objetos. [...] A intenção é dupla: fixar visão fugaz” — ou seja, abstrair a dimensão temporal — “e tornar tal visão acessível a outros”, o que se atinge através da fixação das relações espaciais evidenciadas pela abstração da terceira e da quarta dimensão. “Imagem é (portanto) “visão tornada fixa e intersubjetiva [que pode ser partilhada por vários sujeitos]” (FLUSSER, 1996, p. 66). Assim, o que no mundo é móvel e tridimensional (uma manada de bisões, por exemplo), encontra num equivalente pintado na parede da caverna uma forma imóvel e plana, passível de ser compartilhada pelo grupo. Para Flusser, enquanto isto serve para manter a coesão social, sendo acessível a todos os membros, permanece. A crise se dá quando um determinado grupo específico desta sociedade usurpa para si a capacidade de acessar tais imagens, passando a ter a intenção de dominar seus significados e interditando aos demais a possibilidade de usufruí-las como formas de mediação com o mundo. Surgem então as sociedades de castas e aqueles que dominam o significado dessas imagens — que agora adquirem o estatuto de sagradas, exigindo um processo de iniciação para ser decodificadas — os sacerdotes - aliam-se ao poder militar e passam a intimidar os outros com este canal com o divino que detém com exclusividade.

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Como ilustração deste domínio opressivo da classe sacerdotal sobre os demais membros do grupo social a partir de conhecimentos específicos, ver as cenas iniciais do filme Apocalipto, que apresenta sacerdotes maias fazendo uso coordenado de uma cerimônia de sacrifício com o momento de um eclipse, gerando terror e fascínio em proveito próprio.

Este processo é descrito por Flusser como sendo o que leva à idolatria: neste momento, segundo ele, imaginação, a capacidade de produzir imagens “vira alucinação, vira idolatria” (FLUSSER, 1996, p. 66), o que configuraria a consciência pré-histórica, o pensamento mágico. Se as imagens, que deveriam explicar o real para todo o grupo, foram apropriadas por uma minoria que agrega assim poder contra os demais, resta a estes inventar outro meio de (re)torná-las acessíveis. Isto aconteceu, segundo Flusser, com a invenção da escrita (FLUSSER, 1996). É importante observar com Flusser que o processo da invenção da escrita fonética não se deu de uma vez por todas. Ocorreu por meio de um processo lento e continuado, que se repete em diferentes sociedades, de alinhamento de pequenas imagens, que contém significados próprios. Assim, temos, por exemplo, os hieróglifos, no Antigo Egito ou os ideogramas, no Oriente, unidades que, alinhadas, passavam a adquirir significados mais e mais complexos, de modo a se tornar capazes de assumir narrativas sofisticadas (FLUSSER, 1985). Por um processo progressivo de abstração, no qual o fonema inicial relativo a um determinado signo usurpa o lugar do significado original — por exemplo: o ideograma que significava “touro”, aleph em hebraico, passa a significar o fonema “a” — em torno da 32


Phénicien

Grec ancien

aleph bêt gimel dálet he waw zain het tet yod kaf lamed mem nun samek ‘ain pe sade qof resh shin taw phi khi psi

Grec classique

alpha bêta gamma delta epsilon digamma dzêta hêta thêta iota kappa lambda mu nu xi omikron pi san qoppa rho sigma tau upsilon xi phi khi

Étrusque

omega

Evolução da grafia dos alfabetos ocidentais

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Latin


metade do segundo milênio antes de Cristo aparecem os primeiros textos alfabéticos lineares (FLUSSER, 1985). Para Flusser o gesto que cria estes primeiros textos consiste em “dar um passo para trás das imagens a fim de se libertar do fascínio alucinador que exercem e torná-las novamente transparentes para a circunstância que encobrem”. Esse gesto consiste em “substituir a bidimensionalidade da imaginação pela unidimensionalidade do pensamento conceitual” seu objetivo é “explicar, contar o conteúdo das imagens” (FLUSSER, 1996, p. 66). A imagem é bidimensional: tem altura e largura; o texto escrito é unidimensional, pois a escrita transcreve a fala e esta acontece no tempo, sua dimensão única. Por isso não é mera coincidência que, ao tentar visualizar uma linha do tempo à nossa frente, ela prossiga da esquerda para a direita, com o passado à esquerda, o presente à frente e o futuro à direita: seguindo o sentido do modo como escrevemos. Com a escrita, portanto, a humanidade se libertava do domínio do pensamento mágico e, consequentemente, do poder da idolatria. A imagem de Moisés descendo do Monte Sinai após ter recebido de Deus as tábuas dos Dez Mandamentos — escrita — e confrontando seu povo que, abandonado, tinha retornado à adoração do Bezerro de Ouro — idolatria, adoração de imagens —, para destruí-lo em seguida, é sintomática desta passagem para a fase histórica da humanidade: a escrita vem combater a imagem e seu culto; o pensamento histórico combate o pensamento mágico. No entanto, esse período, o período histórico do Ocidente, segundo Flusser, que vai dos primeiros textos escritos até meados do século XIX, não se caracteriza, como ele alerta, pelo domínio total da “nova consciência histórica, linear, progressiva” sobre a “consciência imaginística, mágica”, já que ambas passaram a conviver, “os textos 34


iam explicando as imagens, as imagens iam ilustrando os textos. A história do ocidente passou a ser dialética entre texto e imagem” (FLUSSER, 1996, p. 66). Com a tradição cristã, retorna o culto à imagem. Flusser explica que o Ocidente se dividiu então entre aqueles que sabiam e aqueles que não sabiam ler. Os primeiros viviam numa temporalidade histórica, que os outros acessavam precariamente por meio de imagens que tornavam visíveis trechos das narrativas bíblicas - nos afrescos pintados no interior das igrejas católicas italianas, por exemplo. Esse dispositivo funcionaria sem maiores problemas até o final da Idade Média (FLUSSER, 1996). Quem detinha neste período o acesso aos textos? Quem era alfabetizado, em geral membros da Igreja Católica. Mais uma vez a aliança com o poder militar — agora a classe aristocrata europeia — funcionava de modo a garantir uma parcela do poder àqueles que detinham o acesso a formas de mediação com o real. Os aristocratas, que contavam com o poder da armas, não precisavam, evidentemente, saber ler, bastava que se adestrassem constantemente no exercício de seu manuseio. Por outro lado, as grandes bibliotecas, em geral, ficavam localizadas em mosteiros, que, por sua vez, contavam com a proteção dos príncipes ou de outros nobres vizinhos, para defendê-los de inimigos externos. Mesmo no interior dessas organizações eram poucos os monges cuja erudição permitia acessar os grandes clássicos da Antiguidade greco-romana, verdadeiras relíquias, guardadas muitas vezes a sete chaves. A produção, assim como a reprodução, de um livro era extremamente dispendiosa. Dependia, em seu início, de um autor, ou de um tradutor, sempre, evidentemente, um erudito. Em seguida, esse texto 35


Leia o livro, veja o filme: a esse respeito você pode – e deve – ler o romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, assim como assistir ao filme homônimo produzido a partir dele. Capa da edição brasileira do romance O nome da rosa, de Umberto Eco.

passava por um longo processo que envolvia uma cadeia de produção cujos membros eram extremamente especializados: um monge calígrafo, que transcrevia cuidadosa e vagarosamente página por página do texto original; monges ilustradores, que se dedicavam em tempo integral à criação de vinhetas e ilustrações; monges encadernadores, que finalizavam o processo de produção desses valiosos e cobiçados objetos que, por vezes, eram destinados a presentear o príncipe local como forma de agradecimento por serviços militares de defesa prestados; como esperança de futuros; ou ainda como política de boa vizinhança, de modo a evitar qualquer ato bélico deles mesmos. Poucos livros — e caros —, consequentemente, poucos leitores. Imaginação controlada: as imagens que deviam ser vistas e cultuadas eram as sagradas, do Cristianismo, pintadas nas paredes das igrejas. Segundo Pierre Francastel, (1990). “a Idade Média acreditou que tudo estava em Deus. Nenhuma distância entre as coisas, já que elas não eram mais que a manifestação de uma essência única”. Dessa forma, a desvalorização imposta pelo Cristianismo à vida terrena, que era apresentada como um mero pretexto para a salvação, implicava a limitação do interesse pela representação dos entes 36


Página de livro medieval

deste mundo, já que a finalidade única da produção simbólica era servir como orientação para a salvação post-morten e a vida eterna. “O artista medieval”, lembra E.H. Gombrich, “jamais se defrontaria com a necessidade de apanhar um livro de esboços e desenhar algo a partir da vida real” (GOMBRICH, 1972, p.147). Como explica Bazin, “o homem da ‘Idade Média’ [...] vive senão fora da história, pelo menos acima dela, pois o cristão, retrocedendo a um estado anterior da humanidade, não se considera como agente da história, que está nas mãos de Deus” (BAZIN, 1989, p. 4). Vive, portanto, magicamente. A imaginação popular, no entanto, não estava totalmente domada: nas feiras livres, por exemplo, circulavam desenhos satíricos, realizados no calor da hora, modo de canalizar insatisfações e críticas àquela visão única e controladora do real. Mais: tais desenhos 37


passaram a se valer de um meio rápido e barato de reprodução. Gravadas em pequenas tábuas de madeira que recebiam em seguida uma camada de tinta que seria impressa facilmente em qualquer superfície plana, essas imagens faziam circular para um grande número de indivíduos das classes que compunham a base da pirâmide social a informação que o desenho original apresentara. Esse processo muito simples, utilizado até hoje em arte — a xilogravura, ou gravura em madeira —, ao ser adaptado por Gutenberg à reprodução de textos — com a mobilidade dos tipos —, iria dar origem a uma invenção importantíssima: a da imprensa. Retornando à Flusser, nesse momento, segundo ele, com a invenção da imprensa: “a consciência histórica passou a dominar a sociedade toda” e “as imagens foram expulsas da vida cotidiana” (FLUSSER, 1996, p. 67). Sintomaticamente e não por mera coincidência a Reforma protestante — iconoclasta — eclode simultaneamente à invenção da imprensa.

Xilogravura popular medieval

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O burguês alfabetizado, sujeito histórico e livre, pode agora entrar em contato direto com a palavra divina. Torna-se, assim, diretamente responsável por sua salvação ou perdição, passando a prescindir, para tanto, da intermediação do sacerdote. O protestantismo assinala, assim, a possibilidade de libertação — política — e salvação — religiosa — do homem ocidental comum pela via do acesso direto à palavra. Não é menos sintomático que o primeiro livro impresso com os tipos móveis de Gutenberg, em 1455, tenha sido justamente uma Bíblia. Há controvérsias relativamente à autoria da impressão da chamada Bíblia de Gutenberg ou Bíblia de Mazarino - esta segunda denominação tendo sido cunhada pelo fato do livro ter sido encontrado na biblioteca daquele cardeal francês –, já que o nome de Gutenberg não aparece impresso ali, o que não diminui em nada, pelo contrário, reforça mais, o valor, que se tornaria simbólico, da atribuição de autoria a ele.

Com a invenção da imprensa, o livro fica mais barato. Mais pessoas terão acesso à leitura; consequentemente, mais pessoas precisam aprender a ler. Surge aí a ideia, moderna e até hoje vigente e atuante, da necessidade da universalização da educação. Segundo Flusser,“a conseqüência foi o domínio das ideologias (de textos que obrigam a circunstância a adaptar-se ao escrito)” (FLUSSER, 1996, p. 67), no que veio a se constituir como sendo “a consciência ocidental moderna” (FLUSSER, 1996, p. 67). Quanto ao campo da imagem, importantes mudanças também estavam em curso. Com o advento da era moderna e a ascensão desta nova classe social, a burguesia, os interditos morais do Cristianismo que incidiam sobre a representação da imagem do mundo 39


passam a ser, se não de todo suspensos, ao menos relativizados. Por outro lado, à mesma medida que impunham uma reorganização dinâmica à sociedade, rompendo a circularidade do feudalismo, os novos valores burgueses elaboravam pouco a pouco um sistema simbólico que organizava coerentemente todos esses novos modos de compreensão do mundo e representação do real. A obra genial de Giotto di Bondone, por exemplo, no Treccento, o século XIV italiano, vai operar uma aproximação inédita com a imagem do real, introduzindo efeitos ilusionísticos, que simulavam pela primeira vez à percepção a presença efetiva das cenas que passavam a se apresentar como se de fato estivessem presentes naquele momento e lugar. Um elemento constitutivo fundamental da operação de Giotto de aproximação à representação da imagem do real foi a introdução da noção de unidade de tempo ligada a de espaço, para cada cena representada. Assim, se, por exemplo, na pintura Cenas da vida de São Nicola, de Ambroggio Lorenzetti (ilustr.), os momentos sequenciais da vida do santo eram apresentados simultaneamente, desdobrando-se na mesma seção espacial da pintura, com Giotto, inaugura-se esse novo momento decisivo para a história da visualidade ocidental, como podemos ver em A ressureição de Lázaro (ilustr.). Quando, um século depois, Masaccio vai pintar o afresco O Tributo (ilustr.), na Capela Brancacci da Igreja do Carmine, apresentando simultaneamente os três momentos da cena bíblica sem divisões espaciais, vai fazê-lo por opção estilística. Àquela altura, como explica Giulio Carlo Argan,

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Ambroggio Lorenzetti, Cenas da vida de São Nicola

Giotto di Bondone, A ressureição de Lázaro

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[...] podia tranqüilamente separar os episódios, inclusive porque a narração contínua não era freqüente em Florença, pelo menos depois de Giotto; podia dividir o espaço em três partes, numa espécie de tríptico. No entanto, progra-

maticamente, resolve a cena como evasão da ordem cronológica, porque não quer coisas sucessivas, mas simultâneas, quer condensar os tempos sucessivos num espaço único (ARGAN, 1999, p. 45).

Masaccio (Tommaso di Ser Giovanni Cassai), O Tributo

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arte: originalidade e conhecimento O Quatroccento italiano seria marcado pelos esforços de vários pintores tais como Paulo Ucello e Piero della Francesca no sentido de desenvolver o sistema de representação em perspectiva linear, que se tornaria hegemônico no Ocidente a partir de então. Fundamental para a lógica de seu funcionamento era o ponto de vista individual, monocular, em relação à imagem do real, que liberava o sujeito para o espaço de liberdade da experiência pessoal e intransferível do mundo. A partir daí, abria-se, pelo menos no plano simbólico, para cada indivíduo, a possibilidade de compreensão do mundo, livre das amarras impositivas de autoridades terrenas e celestiais. Incorporava-se então incisivamente ao processo histórico a noção de contribuição pessoal do indivíduo excepcional, senhor tanto do próprio destino quanto do coletivo. Essa noção, central para a definição do próprio caráter burguês, vai estabelecer-se como valor estrutural da sociedade moderna. Aberto o mundo à iniciativa individual, um novo olhar emergente vai se interessar como nunca pela investigação das aparências visuais do real, procurando devassá-lo a um saber simultaneamente científico e artístico. Conhecer o mundo passa a significar, então, saber representá-lo, retratá-lo visualmente de modo que nada nele permaneça oculto ou fora do alcance desse olhar investigativo. Este momento vê surgir também, em coerência com a emancipação da capacidade crítica individual e sua ressonância no campo da produção de imagens, a própria noção de “arte”, como caracterizando obras de excepcional qualidade, valor e originalidade (SHEAR43


Desenho de Leonardo da Vinci À direita, Antonio Pisanello, Seis macacos e um esturjão

MAN, 1978). Como sintoma desse novo espírito, Giulio Carlo Argan observa que “no século XV, quem encomenda a obra fornece uma indicação genérica e espera para ver como o artista vai interpretá-la; dessa interpretação surgirá um novo significado e um novo valor” (ARGAN, 1999, p. 36). Paralela à gênese da noção de indivíduo, começava a se constituir a noção de arte como algo que se poderia isolar de suas meras atribuições representacionais e habilidades manuais rigidamente convencionadas. Quanto ao problema da técnica na produção de imagens, podemos igualmente afirmar que predominava, pragmaticamente, a utilização do que estava à mão, isto é, daquilo com que se podia contar de melhor em função de necessidades específicas. Ou seja: se a tarefa de realização da imagem envolvia decoração de paredes internas de um edifício religioso, uma igreja, um refeitório ou as paredes das ce44


Giotto di Bondone, Entrada de Cristo em Jerusalém

Na imagem acima, podemos perceber uma interessante manifestação da limitação de uma técnica. Pintada em afresco por Giotto, a imagem de Cristo entrando em Jerusalém apresenta um arrependimento (pentimento) do grande pintor: além da imagem definitiva do jumento montado por Jesus, aparece outra cabeça do animal, menor, totalmente fora da escala geral. Provavelmente foi pintada primeiro e depois, mudando de ideia, Giotto teria decidido ampliar a imagem total, repintando a definitiva por cima desta fase inicial. Como a técnica não garante, depois da secagem da argamassa, a qualidade da repintura, uma parte desta descascou, revelando o processo, como demonstram também os azuis residuais de um primeiro céu.

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las individuais de um mosteiro, a técnica apropriada seria o afresco, ou seja: a pintura a fresco, em que o pigmento diluído era aplicado sob as camadas de argamassa ainda úmidas, de modo a se entranhar nela, garantindo assim sua durabilidade. Este procedimento técnico tinha o inconveniente de ter que ser realizado muito rapidamente, sem arrependimentos, devido à velocidade de secagem da argamassa. Para a pintura de retábulos a técnica utilizada na Itália era a têmpera, a mais adequada aos propósitos deste tipo de trabalho, até ser superada pela pintura a óleo, chegada dos países nórdicos. Esta trazia consigo a vantagem de um processo de secagem mais lento, de modo a permitir ao pintor uma gama maior de variações e passagens de tons e matizes cromáticos. Tecnologicamente falando, portanto, a pintura a óleo representava, à época do Renascimento, o “estado da arte”, ou seja: aquilo com que de melhor tecnicamente podia se contar de acordo com as necessidades de realização de uma imagem. O período Barroco é fortemente marcado pela reação da Igreja Católica à Reforma Protestante, a Contra-Reforma. Ao ataque às imagens, à sua adoração e à pregação de sua destruição pelos movimentos reformistas a Igreja responde com... mais e melhores imagens. Propaganda Fide — a propagação da fé — era a palavra de ordem que movia a Igreja, a partir do Concílio de Trento, a fazer uso de um programa explícito de utilização do fascínio mágico das imagens da arte, numa tentativa de refrear a onda — iconoclasta — protestante. Não é mera coincidência que apareça aí a palavra propaganda, à qual nos tornamos tão habituados. A explicação é simples: o programa da Contra-Reforma está mesmo na origem do conceito moderno de publicidade. No entanto, algo estava por mudar radicalmente: as ideias libertárias do Iluminismo, diretamente ligadas ao movimento men46


cionado de ascensão burguesa, dos homens livres, iriam em breve sacudir toda a Europa. E as Américas. Assim, o final do século XVIII verá a situação política se alterar de fato, quando os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade induzem as insatisfações acumuladas a pegar em armas na Revolução Francesa e na Guerra da Independência Americana. É o triunfo da Razão Iluminista. O triunfo do livre-arbítrio sobre as imposições de caráter religioso de uma sociedade imobilista. Paradoxalmente, na forma que assumiu, de revolução, um triunfo banhado em sangue.

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para uma nova sociedade, uma nova arte Razão, no entanto, que, tendo triunfado na França com a revolução, não tardaria a encontrar-se em novo impasse: um novo momento histórico exigia novas formas simbólicas e não olhares retroativos como os do neoclassicismo de Winckelman, que sugeria que os modelos ideais deveriam ser resgatados de um passado distante para informar — dar forma a — novos conteúdos.

Jacques Louis David, O juramento dos Horácios

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A sistematização “dos saberes e fazeres” (PLAZA, 1997, p. 21) da arte pelas academias desde o século XVI havia se configurado como instrumento de dispositivo conservador de normatização e convencionalização do fazer em arte (segundo Baudelaire (apud BATAILLE, 1983, p. 40): “uma escola, vale dizer: a impossibilidade da dúvida...”), cujo principal objetivo era manter as coisas exatamente como estavam, no conteúdo e na forma. Constituía-se como tentativa de manutenção de certo modo de organização do real, isto é, de todo um mundo: ora, como escreveu Georges Bataille, [...] esse mundo era aquele que outrora se organizava nas igrejas de Deus e nos palácios dos reis. Até então, havia cabido à arte a tarefa de exprimir uma majestade acachapante, inegável, que unia os homens (BATAILLE, 1983).

Para uma nova sociedade, uma nova arte. Mas que arte? Nesse momento, como vimos com Flusser, a principal força motriz histórica, era o texto escrito, hegemônico desde a invenção da imprensa e da consequente tendência à universalização do processo de esclarecimento coletivo e responsável, por isto, pelas grandes transformações políticas que a Europa (e o mundo) atravessara. Mais do que isso, esse período de grandes mudanças de todas as ordens exigia que novos textos fossem escritos. Nesse momento histórico, o Ocidente atingia aquilo que Hegel definira como sendo o momento de autoconsciência do indivíduo e dos povos: estes passam a se ver como sujeitos de sua própria formação histórica e senhores de seu destino, a partir da liberdade conquistada neste processo (HEGEL, 1988).

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Aos Estados Modernos tornava-se imprescindível, portanto, construir as grandes narrativas capazes de afirmar as singularidades de seus processos de formação históricos, garantindo, assim, a unidade necessária à própria ideia de nação. Quanto à arte, em especial à pintura, que a tradição elegera como a mais nobre dentre elas, qual o seu papel neste momento? Tipicamente de acordo com os parâmetros da fase histórica do Ocidente, nos termos de Flusser, numa espécie de pacto entre palavra e imagem, a arte dava sua contribuição a este processo de construção das identidades nacionais do seguinte modo: à medida que os textos teciam as grandes narrativas históricas nacionais, as imagens as tornavam visíveis (GONZAGA, 2011).

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Por isto, nas academias, a disciplina de maior importância era a de Pintura Histórica. Cabia a ela, à qual acorriam os alunos mais capazes de representar, por meio do desenho, as realidades visíveis do mundo, principalmente, por motivos óbvios, a figura humana, realizar grandes quadros históricos, objetivo máximo que norteava todo o processo do ensino acadêmico. Tais pinturas, cujos principais exemplos no Brasil são os grandes quadros de Pedro Américo (ilustr.) e Vitor Meirelles, são os representantes mais emblemáticos desta situação: a afirmação visual dos grandes momentos — em geral bélicos, mas nem sempre — por meio dos quais as mitologias nacionais eram construídas e afirmadas.

Pedro Américo, A Batalha do Avaí

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Notemos que todo este processo funciona ainda nos termos do regime de representação, isto é, a pintura apresentando-se como janela, que se abria para a visualização das narrativas consideradas fundamentais pela sociedade. Ora, todo esse dispositivo entraria em crise quando novas realidades sociais passaram a não mais encontrar neste pacto — entre um texto que explica o real e uma pintura que o apresenta como imagem — ou o ilustra - um coeficiente de realidade, por assim dizer, com que possam se identificar. Então o sistema todo desmorona, com toda sua grandiosidade. Daí por diante, Eduard Manet, por exemplo, o pintor impressionista francês, utilizará como tema de sua pintura, indiscriminadamente, um fuzilamento ou aspargos (ilustrs.): a pintura não é mais janela aberta para retratar grandes realidades textuais — simbolicamente anacrônicas — e, mesmo quando o faz, a prioridade de seu sentido já se deslocou. Agora importa sua realidade própria, como “parede”, suporte assumido em sua materialidade específica que recebe a outra, idem, do tecido pictórico. Mas qual a causa desta crise? Crise do sistema de representação que funcionara tão bem, com sua dinâmica própria de transformações, mas que, no entanto, preservara sua essência desde Giotto? Ocorre que, como explica Flusser, também o texto escrito começava a demonstrar sinais de fadiga equivalentes àqueles apresentados por uma arte acadêmica e exangue. Naquele momento, segundo ele, num novo movimento de “feedback entre gesto e consciência” — equivalente àquele que desvirtuara a função de mediação crítica da imagem, inchando-a e “encobrindo a circunstância” que deveria revelar — a própria circunstância passava a ser assumida de acordo com as regras da escrita alfa-numérica que se projetavam sobre ela. Nesta situação, “conceituação vira textolatria” e a compreensão 52


Édouard Manet, Execução do imperador Maximiliano

Édouard Manet, Feixe de aspargos

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coletiva passa a se abrir monoliticamente, direcionada por leituras exclusivas e excludentes, flagrantemente contraditórias ao espírito de liberdade originário que as produzira (FLUSSER, 1996, p. 66). Ou seja: também o texto, inventado para resgatar a compreensão do mundo perdida na idolatria, passa a ocultar o mundo, antecipando-se a ele. Assim, passa a valer o que está escrito, porque está escrito, e esta crença no poder da palavra adquire um caráter impositivo de fé: não se trata mais de entender, mas de acreditar. E seguir. Inaugura-se, assim, a era das Grandes Ideologias, seja de que natureza fossem – políticas, religiosas ou até mesmo científicas, cada uma com seu Grande Livro sagrado: se não está escrito nele, não existe. Tomado ao pé-da-letra, em estrita fidelidade - e obediência - à página escrita, segundo Flusser, “o mundo passa a ser inteiramente concebível, calculável e inimaginável”. Essa “vitória do texto sobre as imagens” significou o “fim da história ocidental sensu strictu” (FLUSSER, 1996, p. 67), já que, segundo ele, “História é explicação progressiva de imagens, desmagicização, conceituação. Lá, onde os textos não mais significam imagens, nada resta a explicar, e a história pára” ( (FLUSSER, 2002, p. 11 ). Então, “o mundo [...] passa a ser mundo vazio, e os conceitos inimagináveis que o explicam passam a ser conceitos vazios. [...] Abismo absurdo, lá fora e cá dentro” (FLUSSER, 1996, p. 67). A concepção de Flusser de mundo como “abismo absurdo” deriva da “visão particular” de Nietzsche, como explica José Thomaz Brum: “que ele [o homem] habite um lugar do “incompreensível”, sem Deus. [...]. Que ele respire este ar de abismo e a partir dele crie valores, ficções que lhe possibilitem uma vida não de verdade ou transparência, mas de criação e contingência. Onde sua verdade não aponte para um centro doador de sentido e sobrenatural, mas retorne a si como único doador e criador, sem apoio algum senão sua vontade, instrumento de vida e potência”. (BRUM, 1986, p. 21).

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a crise do texto Com a crise do texto, advém a crise das imagens que os ilustravam: simplesmente não se acredita mais nelas. Nas pinturas acadêmicas o que se vê — principalmente o que o pintor, aquele que deveria se encarregar de sua (re) produção, vê — não é mais a janela aberta para os grandes feitos de uma nação, mas o acúmulo excessivo das convenções que as construíram e que impede a visão das pessoas e dos fatos representados. Acontece que a crise do texto como paradigma cultural é apenas um aspecto de outra maior: a crise do sistema clássico de representação. Representar significa apresentar de novo algo em cuja existência se acredita sem dúvida. É preciso que se acredite na grande História que as pinturas acadêmicas narram. Não se pode duvidar do valor de Verdade destas narrativas. Esta Verdade tem que ser aceita como absoluta, não pode ser relativizada como uma versão da história que possa admitir outras. Um exemplo: um general da Guerra do Paraguai teria necessariamente que ser visto como um grande líder heróico, para ser pintado como tal; a possibilidade de que ele tivesse sido um sanguinário executor de soldados inimigos prisioneiros não poderia de modo algum atrapalhar esta visão monolítica...

Portanto, era necessário que em torno de tais imagens — e textos — tivesse se formado um consenso quanto a sua capacidade de dizer — mostrar — a Verdade, para que adquirissem o valor de símbolo, na acepção de Charles Sanders Peirce.

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Símbolos, segundo Charles Sanders Peirce, são signos que dependem de um consenso sobre a propriedade da ligação do veículo do signo com seu referente, ou seja, aquilo que ele designa, seu designatum. Um símbolo, define Peirce, é “um signo que depende de um hábito nato ou adquirido” (PEIRCE apud SANTAELLA; NÖTH, 1999, p. 63). Como lembram Santaella e Nöth, essa definição não é nova, já que, em grego, símbolo “ou convenção” (SANTAELLA; NÖTH, 1999, p. 63). Charles Morris, por sua vez, lembra que Peirce “chegou à conclusão significava celebração de um contrato de que, no fim, o interpretante de um símbolo, a imagem mental criada pelo signo na mente do intérprete, deve residir num hábito e não na reação psicológica imediata que o veículo do signo evocou ou nas imagens ou emoções presentes” (MORRIS, 1976, p. 52).

Palavras também são símbolos: é através de um contrato coletivo que os falantes de uma língua, no caso da expressão oral, podem se fazer entender, ao se remeter a ela, patrimônio coletivo, a cada fala. Ora, por outro lado, para uma imagem funcionar como símbolo, fazia-se necessária a unificação cultural em torno de acordos tácitos coletivos baseados em hábitos e crenças legitimadoras que os amparassem em profundidade, de modo a fazer com que surgissem em aparente espontaneidade (tais como a possibilidade única do heroísmo do general, mencionada acima). E era justamente com isso que já não mais se podia contar, tanto no que diz respeito ao texto quanto relativamente à imagem, isto é, para falar com Nietzsche, com “a santificação social e lingüística daquelas mentiras preservadoras da sociedade e do indivíduo” (SALLIS apud BRUM, p. 44). Este momento da crise do símbolo pode ser lido, portanto, como decorrência direta das transformações políticas, filosóficas e sociais envolvidas, como momento da morte de Deus, da decapitação do rei, da proclamação da res publica, consequentemente como crise do Ver56


bo como Verdade absoluta de origem divina. Crise, portanto, da noção de anterioridade da voz do Outro como detentora de uma verdade única e indiscutível, produtora de ondas verticais de homogeneização, crise que coerentemente apontaria na direção da horizontalização dos testemunhos subjetivos: não mais a norma do Pai, mas a opinião dos iguais. Segundo Paul Virilio, “no Ocidente, a morte de Deus e a morte da arte são indissociáveis” (VIRILIO, 1994, p. 35). Daí o “abismo absurdo” mencionado por Flusser: a investigação do mundo pela visão não garantia mais a descoberta de verdades prévias absolutas, criadas por uma Ordem maior, onisciente, garantia de consenso social e político. No âmbito da arte, a falência deste dispositivo vai se manifestar no declínio do poder absoluto representado pelo sistema acadêmico, falência que se iniciaria “no século XIX com o Romantismo, que procura uma arte liberta de regras (“a arte não pode ser ensinada” (PLAZA, 1997, p. 21). Arte dominada pela imaginação, a arte do Romantismo é, portanto, simultaneamente, sintoma e agente desse momento de ruptura e já preparava a irrupção do novo “evento crucial” que estabeleceria o fim do período histórico ocidental, de acordo com Flusser: a invenção da fotografia.

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as imagens tĂŠcnicas 59


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Agora sim, retomando: tudo (re)começou com a fotografia. A fotografia é a primeira das imagens técnicas. Como vimos, na acepção de Flusser, imagens técnicas são aquelas produzidas por meio da utilização de aparelhos. Aparelhos, ele explica, são produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado. Aprofundando a questão, Flusser esclarece que “imagens técnicas são, portanto, produtos indiretos de textos — o que lhes confere posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais” (FLUSSER, 2002, p.13). Ou seja: não se dá neste momento um retorno às imagens tradicionais, que representavam o mundo a partir do conceito de sua imitação. Segundo Flusser as imagens técnicas não representam o mundo, elas vão constituir o mundo a partir de sua capacidade de tornar conceitos visíveis (FLUSSER, 1996). No caso da fotografia, estes conceitos são os da física e da química que permitem a emulsão dos grãos de nitrato de prata pelo agente luminoso; os da mecânica que permitem a construção dos elementos móveis e fixos do aparelho — seu hardware; e, principalmente, toda a história da arte, em especial da pintura, com a invenção do quadro e do sistema da perspectiva linear monocular do Renascimento, além da fundamental aplicação do funcionamento da câmara obscura, já há muito conhecida dos pintores e que, agora, agenciada aos avanços da ciência, permitia a produção instantânea de imagens do real e sua fixação num suporte específico. A fotografia, portanto, dá continuidade à história da pintura ocidental, valendo-se para isso dos avanços da ciência e da técnica. Com a fotografia, surgia, então, segundo Flusser, uma nova consciência, “bidimensional, imaginativa, computadora”, que ele denomina “consciência pós-histórica emergente” e irá substituir “a consciência histórica, linear e calculadora” (FLUSSER, 1996, p. 67). Se 61


esta — a que derivava de textos — projetava, como vimos, “as regras da escrita sobre o mundo”, que passava a adquirir “caráter textual”, texto a ser decifrado, a nova consciência “‘descobriu’ que não há nada no mundo que possa ser decifrado, [...] que ao nascermos fomos projetados num mundo absurdo” e “que é o homem quem projeta significado sobre o mundo” (FLUSSER, 1996, p. 68). Uma mudança radical, uma inversão vetorial na dinâmica de produção da significação: na primeira situação, o significado vem do mundo, é preciso extraí-lo dele, portanto, re-presentar o mundo. Na segunda, percebe-se que o significado do mundo não está lá, à espera de ser revelado — representado —, mas se dá a partir de nosso contato com ele: não há significado no mundo a não ser o que projetamos nele, ou seja: nós é que atribuímos valores e sentido ao mundo. Agora, torna-se preciso, portanto, por assim dizer, “pro-presentar” (GONZAGA, 2006) o mundo e o pensamento conceitual adquire nova função: “serve, não mais para explicar o mundo, mas para dar-lhe sentido” colaborar “com a nova imaginação na sua tarefa de dar significado ao mundo” (FLUSSER, 1996, p. 68). Torna-se, segundo Flusser: “pré-texto” (FLUSSER, 1985). Flusser explica que “prétextos, préscrições, programas não mais tornam visível o discurso falado, mas transformam em imagem, em som e em ato o conceito pensado” (FLUSSER, 1985, p. 18).

Se a primeira situação caracterizava-se por um modelo linear de desenvolvimento histórico, cujo paradigma estrutural seria a escrita, a outra será moldada pela relação simultânea e não hierárquica com que as imagens operam entre si e com a realidade externa. A temporalidade linear da escrita será substituída pela 62


instantaneidade e simultaneidade das imagens emancipadas da “outra” realidade, a do mundo. Flusser acrescenta que esta mudança de perspectiva gera uma importante alteração na forma como se organizam os campos do saber: a ciência, com suas estratégias de objetividade, que intentavam revelar a verdade do mundo, [...] deixará de ser disciplina que explica e passará a ser disciplina que confere significado [...], o que a transformará em disciplina artística, já que a arte (o pensamento imaginativo) sempre procurava conferir significado (o grifo é meu). Ora, ciência como uma arte entre outras obrigará repensarmos conceitos como ‘verdade’ e ‘conhecimento’ (FLUSSER, 1996, p. 68).

Ciência como arte! Eis aí uma reviravolta sem precedentes na história do Ocidente. De fato, segundo Craig Owens, “se a realidade mesma já aparece constituída como imagem, então a hierarquia entre objeto e representação — o primeiro sendo a fonte de autoridade da segunda — entra em colapso” (OWENS, apud TIBERGHIEN, 1992). Entrando igualmente em colapso a pretensa objetividade distanciada da ciência. As consequências dessa inversão paradigmática são tremendas e, como aponta Flüsser, “uma nova antropologia começa a se cristalizar: o homem enquanto doador de sentido a si próprio e ao mundo” (FLUSSER, 1996, p. 68). Por estarmos totalmente imersos nesta situação, pós-moderna e pós-histórica, temos dificuldade em perceber as modificações em nossa percepção que as imagens técnicas, começando com a fotografia, introduziram. Costumo perguntar a meus alunos numa das 63


primeiras aulas da disciplina de Multimeios se eles conhecem as pirâmides do Egito. A resposta é invariavelmente afirmativa: sim, é evidente, todos as conhecem. Em seguida, os mais perspicazes, dado inclusive o contexto em que surge a questão, começam a perceber a armadilha: sem perda de tempo, “puxo a cordinha”: mas vocês já estiveram lá? Apenas uma vez para minha surpresa, uma aluna respondeu a esta segunda pergunta afirmativamente. O que a situação toda deixa claro — e que cotidianamente é imperceptível — é que, com o advento da fotografia, nossa relação com o mundo mudou radicalmente: percebemos agora o mundo como imagem e, com isso, todas as nossas experiências no hic et nunc - o aqui e agora - da experiência “real” ficam relativizadas. Vimos a foto? Conhecemos a coisa ou a pessoa em si, mesmo que nunca tenhamos tido contato direto com ela. Não é por outro motivo que os telespectadores cumprimentam na rua os apresentadores de telejornais quando os encontram. Pela mesma razão alguns chegam a responder educadamente — e ingenuamente — ao “boa-noite” dos mesmos quando o programa termina: são velhos conhecidos! É que o senso comum não percebe todos os fatores envolvidos na construção dessas imagens: a tela da televisão funciona aí, no limite (do olhar inocente), como uma janela aberta entre duas realidades... Evidentemente tal “olhar inocente” tende progressivamente a desaparecer. Reparem também no seguinte fato: quantas vezes numa viagem, ao visitar um lugar fascinante, com uma paisagem deslumbrante ou um monumento histórico interessante, não nos deparamos partindo para fotografá-los, antes mesmo de ter usufruído minimamente o momento da visão “real”? É que já estamos tão imersos no universo da tecnologia que, sem perceber, substituímos o ver pelo fotografar. Graças à utilização deste recurso, o aparelho fotográfico — esta 64


O pĂşblico se aglomera no museu do Louvre para fotografar a Monalisa

LEGENDA

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prótese que amplia nossa visão, fazendo com que perdure por mais tempo —, abdicamos do presente — do agora — e do lugar — o aqui — em nome da garantia da preservação das imagens produzidas. Ou seja: vivemos, sem nos darmos conta, a estranha situação de fotografar para ver depois — e já não pudermos mais ver — aquilo que não vimos quando tivemos a oportunidade! Assim, é a experiência do real que se vê completamente desvalorizada. Pelo mesmo motivo, os frequentadores de museus importantes se aglomeram em torno de obras-primas — a Monalisa no Louvre, por exemplo — não para vê-las, mas para fotografá-las, produzindo mais reproduções, em geral de baixa qualidade, semelhantes a tantas outras que já estavam fartos de ver antes de entrar em contato com o original. O documento — a fotografia — diz: “eu estive lá!” Mas será que, neste contexto, poderá dizer: “eu vi!”? Notemos, no entanto, que ainda estamos nos referindo à primeira das imagens técnicas: a fotografia. A ela se seguiram outras que poderíamos denominar de imagens-tempo, o cinema e o vídeo, imagens que se apresentam — ainda nos limites da história do enquadramento da arte ocidental — como equivalentes da continuidade das imagens do mundo, captando sua temporalidade; e as imagens virtuais, que prescindem totalmente de qualquer referente visual anterior para sua realização. As primeiras — fotografia e cinema — são analógicas, isto é, elas são produzidas diante da imagem do real, em analogia ponto a ponto com ela. A cada ponto da imagem do real corresponderá (teoricamente, na realidade da superfície granulada da ampliação o resultado não se dá exatamente assim), por projeção, um ponto equivalente na imagem produzida. Já as imagens virtuais realizam plenamente a acepção de Flusser de “imagens pós-históricas”: são imagens, como vimos, que podem 66


derivar exclusivamente de conceitos. Neste caso, mesmo que simulem as aparências do mundo, não o fazem por meio da captação analógica destas. Como explicar então a captação fotográfica de câmaras digitais? Acontece que as imagens captadas por estas câmaras são transcodificadas por programas — softwares — de produção digital de imagens, a partir de unidades cromáticas básicas, os pixels. Se nas câmaras fotográficas tradicionais, analógicas, a imagem do real é captada ponto a ponto, de modo a fazer corresponder por projeção cada um desses pontos a outro na superfície do filme — e depois, com a ampliação, traduzi-la para a realidade granulada do papel fotográfico — nas câmaras digitais isto não acontece deste modo direto. Evidentemente os programas que alimentam as câmaras são produzidos para reproduzir a imagem do real, mas isto se dá por meio de processos indiretos de captura e transcodificação. Daí a ilusão para o senso comum de que nada fundamentalmente se alterou. Engano. Na sequência vamos desenvolver a análise da influência — paradigmática — deste novo regime de produção de signos — as imagens virtuais — em nossas vidas e de como arte pode lidar crítica e reflexivamente com o problema. Podemos começar partindo de mais dois exemplos que podem ser úteis para esclarecer o modo como estes dois tipos de imagens técnicas — a imagem-tempo do vídeo e a imagem virtual — vêm modificando nossa percepção do real, sem que na maior parte do tempo o percebamos. No primeiro exemplo, ligado ao paradigma da imagem-tempo — temos a frustração que o torcedor de futebol sente no estádio ao ter momentaneamente se distraído e, consequentemente, perdido o momento do gol de seu time: seguindo seus hábitos de telespectador, esperará ansiosa e inconscientemente o replay que não virá: perplexo, ver-se-á obrigado a respirar o ar 67


rarefeito desse hic et nunc obsoleto, enquanto não se instalam telões nos estádios, como em alguns shows de rock em que o público acompanha os movimentos da diminuta e distante banda no close up do telão. O tempo real da realidade factual passa, de uma vez por todas; o “tempo real” da imagem transmitida pode tornar a ser exibido o quanto se desejar (e o equipamento permitir). No segundo exemplo, referente à imagem virtual: em imagens inéditas, dois aviões se chocam contra duas torres de arranha-céus que acabam por ruir. Durante a transmissão ao vivo das imagens dos fatos ocorridos em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001, as emissoras não cessavam de alertar os telespectadores, por meio de legendas, para o fato de que aquelas imagens eram efetivamente factuais, ou seja, que se referiam a fatos que realmente estavam acontecendo, numa tentativa desesperada de recuperar certa densidade ao real, definitivamente perdida na sua percepção como simulacro, ativada pela duplicação do mundo em imagem. Por quê? Porque não se acredita mais na capacidade das imagens se referirem a fatos, coisas ou pessoas reais! De fato, Hollywood pode fazer — e faz, graças a efeitos especiais cada vez mais sofisticados — cenas apocalípticas cada vez mais convincentes, talvez mais até que aquelas, agora históricas, — se descontarmos nossa consciência, já agora também histórica, isto é situada numa linha de tempo — de que aquelas correspondiam realmente a fatos. Como imagens, elas são inócuas e até esperadas: já vimos outras como elas e até mais impressionantes (em breve, em 3D...). Daí a importância de reafirmar a vinculação daquelas imagens ao real, sua indicialidade, típica do modo como a fotografia, por ser analógica, se conecta com o real. Quanto à fotografia, o próprio Peirce observou que, devido às circunstâncias que permitem que a imagem fotográfica seja produzida, 68


O conceito de indicialidade ou “indexicalidade” (SANTAELLA; NOTH, 1997, p. 110) deriva da noção de índice. Diferindo do símbolo, que, como vimos, na definição de Peirce, depende de uma convenção que o relacione com seu referente, o índice é um signo que se liga a seu referente por uma conexão física. Exemplo: uma pegada humana, ou de animal, na lama, que indica sua passagem por ali; ou a fumaça, índice de fogo.

esta é “obrigada fisicamente a corresponder ponto por ponto à natureza” (PEIRCE, apud SANTAELLA; NOTH, 1997, p. 110). Segundo Roland Barthes, por mais que uma distância venha inapelavelmente se interpor entre ela e seu referente, a fotografia estará sempre dizendo que “’isto foi’” [ou ‘isto aconteceu’], (‘ça y est’)”, já que, ela “pertence a essa classe de objetos folhados cujas duplas folhas não podem ser separadas: a vidraça e a paisagem, (...), dualidade(s) que podemos conceber mas não perceber (o grifo é meu)” (BARTHES, 1984, p. 15). Portanto, analógica, na sua indicialidade, produzida a partir de uma conexão física com seu referente, o trecho do real fotografado, a fotografia “adere ao real” (BARTHES apud COUCHOT, p. 40). Neste sentido esse texto que referenda a relação indicial da imagem fotográfica com o real apresenta-se segundo o modo como a legenda se relaciona com a fotografia. Isto porque há, como vimos acima com Barthes, simultaneamente, uma fusão da imagem fotográfica com seu referente — que diz sem cessar “isto foi” — e uma distância entre estes dois elementos — o real e o fotográfico — que começa no momento mesmo do clique. Este é o momento de fusão absoluta: o “isto foi” indicial e analógico. Em seguida se inicia o processo de distanciamento: a imagem do mundo, imersa na sua lógica temporal, continua a se modificar, ao passo que a imagem fotográfica congela o fotografado, retirando-o do fluxo do tempo. 69


Isto foi: sim, mas “o quê” é isto? E também: quando? E mais: onde? Desta força — que tudo mostra — e desta fraqueza — que para além deste tudo que mostra, por ser imagem, não tem como acrescentar mais nada — da fotografia deriva a importância da legenda: ela é o texto que vai produzir — ou simular, quem garante? — ligações da imagem fotográfica com o real. Muito do que se produz em arte na contemporaneidade se vale deste modo indicial como a fotografia se relaciona com o real e do efeito decorrente da legenda, como paradigma de funcionamento. Como? Alegoricamente. Etimologicamente, alegoria diz: outra fala. Segundo a definição de Walter Benjamim, na alegoria fica disposto que “qualquer pessoa, qualquer objeto, qualquer relação possa significar qualquer outra coisa” (BENJAMIN apud OWENS, 1992). Então, num processo alegórico que tem muito a ver com o modo como a legenda é capaz de produzir deslocamentos de sentido à imagem fotográfica, agenciamentos entre imagens, textos, coisas e até mesmo pessoas podem produzir novos sentidos dentro daquilo que se pode chamar de “campo ampliado” (KRAUSS, 1984) da arte na atualidade.

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do moderno ao contemporâneo: a ampliação do campo da arte

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arte moderna: prática e teoria puristas Em 1979, a crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss introduzia o conceito de “campo ampliado”, aplicado no caso à categoria artística que estava analisando, a escultura (KRAUSS, 1984). Este conceito é hoje muito explorado, por motivos óbvios: descreve muito bem o movimento pelo qual a arte passa na situação atual. Já vimos como foi sempre orgânica e pragmática a relação da arte com a técnica; vimos também o modo como, no momento atual, a tecnologia, em sua fusão com a arte — no caso da produção de imagens por aparelhos — modificou radicalmente nossos dispositivos de percepção do real. Vamos examinar agora o processo pelo qual a arte foi modificada pela invenção das imagens técnicas e como adveio daí a ampliação de campo do fazer artístico. Com a invenção da fotografia, a pintura foi obrigada a se reinventar, sob pena de se extinguir como técnica anacrônica — artesanal num mundo cada vez mais industrializado. A invenção da fotografia afetou a arte como um todo, mas a pintura de modo mais específico por razões evidentes, à medida que dava continuidade, como vimos, à história da captação e reprodução de trechos do real visível que se iniciara com a câmara obscura no século XV e se desenvolvera por todo o Renascimento através do aprimoramento e da sistematização do sistema de representação da perspectiva linear. Com a diferença fundamental de que, com a fotografia, essa operação passava a ser realizada por meio de um mecanismo técnico, um aparelho, que, como vimos, projetava a imagem do real 75


numa superfície bidimensional através de um processo físico-químico, com consideráveis vantagens em termos de velocidade de produção e, principalmente, para o que nos interessa aqui, para a sensação de maior veracidade da imagem produzida, já que, aparentemente, como se pensou num primeiro momento, prescindiria de interferência humana significativa, de caráter, digamos, autoral. Como a máquina fotográfica retratava mais rapidamente — consequentemente a um custo menor — indivíduos e famílias sequiosos, além disso, de submeter-se à novidade que a experiência representava, a pintura, ou melhor, os pintores, viram-se subitamente despojados de um importante filão de seu ganha-pão. Reagindo a esse impasse, muitos pintores menores trataram de aprender a nova técnica, tornando-se artistas-fotógrafos. Naquele momento, desenhavam-se, segundo Giulio Carlo Argan, duas hipóteses relativas ao problema da relação entre arte e técnica: 1) a arte é o produto de uma técnica sui generis, que varia consoante as diversas artes, mas é constante na estrutura e na finalidade; a técnica artística é a única a produzir o ‘valor’ estético (a qualidade), realizando-o no processo irrepetível e continuamente reinventado da operação artística; 2) não podem existir técnicas especiais, exclusivas do artista, porque o único sistema técnico legítimo é aquele que a sociedade vai organizando e realizando consoante as necessidades da vida; se a arte é uma necessidade da vida, o artista deve valer-se das técnicas ‘sociais’, assim como delas se deve valer a sociedade para tornar utilizáveis, por parte da comunidade, os valores produzidos pelo artista (ARGAN, 1988, p. 91).

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Ainda segundo Argan, havia outra possibilidade, que se constituía a distância dessa oposição centrada na questão da técnica: tratava-se de evitar o problema “sustentando que a arte é atividade espiritual que não pode ser substituída por um meio mecânico (é a tese de Baudelaire e, posteriormente, dos simbolistas e correntes afins)” (ARGAN, 1992, p. 79). No Simbolismo, como explica o próprio Argan, “a arte não representa — revela por signos uma realidade que está aquém ou além da consciência” (ARGAN, 1992, p. 83). O pintor opta por pintar realidades invisíveis e vai buscar no imaginário da mitologia, na fantasia e ativando a própria faculdade da imaginação, imagens que a fotografia não encontraria no real e que só poderiam ser (re)criadas pela mente humana. “As imagens que se erguem das profundezas do ser humano encontram-se com as que provêm do exterior: o quadro é como uma tela diáfana através da qual se opera uma misteriosa osmose, se estabelece uma continuidade entre o mundo objetivo e o subjetivo” (ARGAN, 1992, p. 83).

Verifica-se aí a possibilidade de um último suspiro do regime sígnico que tem o símbolo — e o texto — como referência paradigmática. Para Argan “o Simbolismo, ainda que contrário à pura visualidade impressionista, não se contrapõe ao Impressionismo como conteudismo ou formalismo, mas tende a transformar os conteúdos (o grifo é meu) assim como o Impressionismo muda o valor das formas” (ARGAN, 1992, p. 82 — 83). Assim, atuando sobre os conteúdos, ou seja, interferindo na etapa (semântica) da articulação dos significados, o Simbolismo teria repactuado o compromisso da pintura com a textualidade ainda no âmbito dos termos convencio77


nalizados pela tradição, deixando intocada a estrutura fundada no símbolo, em regime de re-presentação, da relação da imagem com o texto. Aqui, o texto seria re-elaborado em outro texto, mas preservaria intacta sua função convencional, o “lugar” de onde opera em seu pacto com a imagem. É que o que se evidencia, por exemplo, tanto na “pintura-literatura” de Gustave Moreau quanto no “alegorismo de evocações clássicas” (ARGAN, 1992, p. 82) de Puvis de Chavannes: comparados, na perspectiva proporcionada pelo distanciamento histórico, com os resultados obtidos pela opção, digamos, realista, visualista e materialista do Impressionismo, tornam-se inapelavelmente antiquados como se pertencessem a séculos diferentes.

Pierre Puvis de Chavannes, Summer

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Gustave Moreau, Oedipus and the Sphinx

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Baudelaire distingue a “arte física” da verdadeira arte, a “arte espiritual”: “cercar-se exclusivamente das seduções da arte física, diz ele, é criar grandes chances de perdição. Durante muito tempo, muito tempo mesmo, vós não podereis ver, amar, sentir nada que não seja o belo. Tomo a palavra num sentido restrito. O mundo vos aparecerá somente em sua forma material. Os meios que o fazem mover-se permanecerão durante muito tempo escondidos”. (Baudelaire, Charles, L’École Païenne. In Lemaitre, Henri, Curiosités esthétiques L’Art Romantique et autres oeuvres critiques de Baudelaire, Paris: Bordas, 1990). Henri Lemaitre aponta em Baudelaire, “uma distinção paralela entre o belo, em seu sentido restrito, e o belo em seu sentido espiritual e autêntico. Segundo ele, isto implica em que “se há, no nível físico, um conflito entre a arte e o útil, há, no nível espiritual, síntese do belo e do verdadeiro”. E conclui: “Porque a verdade é desta ordem metafísica a qual dão acesso à criação e ao conhecimento”. (Lemaitre, Henri, Introduction, in op. cit., p. LXVIII). Corentemente, o juízo de Baudelaire em relação `a fotografia, definido por seu desprezo à reprodução mimética do real, é impiedoso: “Nesses dias deploráveis, uma nova indústria se produziu, que não contribuiu pouco para a confirmação da tolice na sua fé [...]. Em matéria de pintura e estatuária, o Credo atual das pessoas comuns, sobretudo na França, [...] é o seguinte: “creio na natureza e em mais nada [...]. Creio que a arte não pode ser mais que a reprodução exata da natureza. [...] Assim, a indústria que nos der um resultado idêntico à natureza será a arte absoluta. Um Deus vingador esgotou os votos dessa multidão. Daguerre foi seu Messias. E agora ela se diz: [...] a arte é a fotografia!” (“Salon de 1859” in op.cit, p. 317), (trad. do autor).

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A obra híbrida de Odilon Redon apresenta de modo exemplar o embate entre as duas tendências: se, por um lado sua técnica decididamente moderna faz com que ele, por vezes, seja alinhado junto aos impressionistas, por outro, a forte carga simbólico-textual de seus quadros o afasta radicalmente do espírito daquela pintura. (ilustr.).

Odilon Redon, O nascimento de Vênus

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Mas, por outro lado, em outra hipótese, poderíamos tomar o Simbolismo, arte da imaginação, como respondendo ao mesmo impulso que teria levado à fotografia; nesta chave de leitura, o texto, reformulado, tornar-se-ia pré-texto, exteriorizando uma imagem mental, ou seja, atuando como se uma câmara fotográfica apontasse para o espaço da interioridade, das imagens mentais do indivíduo. Compelida a optar pela primeira das duas hipóteses elaboradas por Argan sobre o problema da técnica — obviamente não poderia optar pela segunda que a condenaria à obsolescência como técnica anacrônica, artesanal numa sociedade industrial e a ser substituída pela fotografia —, a pintura teve, então, que enfrentar o desafio nela contido: definir claramente em que poderia vir a consistir essa técnica sui generis que, fundamentada ontologicamente em sua especificidade material, fosse capaz de garantir seu espaço de sobrevivência no quadro das disciplinas modernas. Nessa busca, vão ser enfatizados os componentes materiais que distinguiam o resultado final da superfície pintada daquele produzido pela imagem fotográfica. Se esta é neutra, similar a todas as outras da mesma espécie e inexpressiva em termos de seus constituintes materiais, a superfície pictórica, por outro lado, já contava em seu repertório tradicional com um vasto cabedal de recursos, que vinha se construindo ao longo de sua história, na relação dialética da prática com a teoria, e que lhe garantia uma base suficientemente sólida de apoio para futuros desdobramentos produtivos. Este repertório material ligava-se diretamente aos procedimentos técnicos artesanais característicos da prática da pintura e a seus instrumentos: o pincel que, ao espalhar a tinta sobre a tela, deixa a marca do gesto do pintor; a pincelada, sinal indicial desse gesto, que identificava na singularidade rítmica de sua malha pictórica a 82


caligrafia do realizador, caracterizando-se como marca autoral; a massa, o empasto de tinta, que corporificava a imagem emprestando-lhe carne; o próprio brilho das cores da tinta a óleo e do verniz, que conferiam uma vitalidade única à superfície pictórica, tudo isso garantia à pintura uma base material específica suficientemente sólida para sua sobrevivência. Segundo Thierry de Duve [...] tendo rejeitado toda a tradição, a pintura passou a ser vista como uma espécie de essência, presente na pintura do passado, do presente e do futuro, como se o meio, em sua pureza e por si próprio, pudesse estabelecer todas as regras e fornecer o recipiente para o talento” (DE DUVE, 2003, p. 94).

A questão é se isso de fato se deu — e se poderia ter se dado —, como pretendeu a pintura moderna, a partir de uma rejeição radical da tradição. A frase de De Duve, em si mesma, ao apresentar termos contraditórios, aponta para o dilema da impossibilidade de tal rejeição total: se se procura atingir uma espécie de essência que, como tal, possa fazer-se presente no presente e no futuro assim como já se manifestava no passado (o grifo é meu), não se pode, para tanto, rejeitar totalmente a tradição, pelo contrário, está se tentando recuperá-la produtivamente, deslocando-a criticamente de lá de onde vem. Sem a tradição da pintura não se pode nem mesmo falar em pintura, quanto mais em sua essência. O problema é que, ao tentar definir seu meio em termos de uma “essencialidade pura”, a pintura tomou como essencial o que havia sido historicamente contingenciado, isto é, o que era realmente possível em cada estágio da técnica, de acordo com os termos des83


critos para as “técnicas sociais” da segunda hipótese de Argan, – a tinta a óleo, por exemplo, como vimos acima. Esta não era, no momento de sua introdução, mais “essencial” que o afresco, por exemplo, que, tendo ocupado uma posição central a seu tempo, quando a pintura a óleo nem havia chegado à Itália, hoje caiu em desuso, sendo impensável pensar-se algo como “a essência da pintura” a partir dele. No entanto, o fato é que, ainda que passível de crítica, esse procedimento estratégico propiciou à pintura os meios suficientes para prosseguir. Posteriormente, a invasão de novos materiais, prática introduzida pelo papier-collé e pelas colagens de Picasso e Braque, violentaria perigosamente os limites da especificidade dessa técnica sui generis, limites estes já então aparentemente essenciais à pintura, que seriam, no entanto, prontamente restabelecidos logo a seguir pelo cubismo sintético. É curioso observar que, talvez por não pesar sobre ela o papel de protagonista das definições dos limites categoriais da arte moderna, tenha cabido à escultura do início do século XX uma abertura maior em relação à possibilidade de incorporação de materiais e técnicas industriais em ruptura com os modelos artesanais da tradição pré-moderna. Num texto de 1937, Escultura: A Talha e a Construção no Espaço, o construtivista russo Naum Gabo anunciava o fim da tradição da escultura de massas, que cederia lugar a preocupações espaciais e à ênfase nas propriedades específicas dos materiais utilizados, livres de restrições normativas seletivas. Afirmando que “os materiais desempenham na escultura um dos papéis fundamentais” e que “a gênese de uma escultura é determinada pelo seu material” (GABO, 1996, p. 334), Gabo faz nesse texto uma 84


interessante menção à afinidade originária entre a materialidade da escultura e a dos corpos humanos: “nosso apego aos materiais”, observa, [...] tem sua base em nossa semelhança com eles. Nessa afinidade se fundamenta toda a nossa ligação com a Natureza. Os materiais e a humanidade são ambos derivados da Matéria. [...] Amamos os materiais porque amamos a nós mesmos (GABO, 1996, p. 335).

Empenhada, portanto, naquele primeiro momento, em distinguir-se da fotografia, a pintura procurava, simultaneamente, por outro lado, uma aproximação com os procedimentos da fotografia, pedindo-lhe emprestadas algumas de suas características. “É difícil dizer se era maior o interesse do fotógrafo por aqueles pintores ou o dos pintores pela fotografia” observa Argan (1992, p. 75), referindo-se aos impressionistas. Esse desejo de aproximação informa, por exemplo, boa parte dos procedimentos desses pintores, como a tentativa de captação da imagem do real visível com a maior objetividade, mas também com a maior presteza possível, a fim de transpô-la para a superfície da tela com isenção, digamos, ‘maquínica’. O pintor impressionista pretende que seu olho funcione como objetiva fotográfica e busca, informado pelas teorias óticas em desenvolvimento e pelo entendimento do processo fisiológico de captação da imagem pelo dispositivo ótico olho/cérebro, sistematizar ao máximo seus procedimentos técnicos. É o próprio olho que deve ser visto como máquina, ou melhor: aparelho. O ponto culminante desse processo de sistematização é a elaboração pelo neo-impressionismo, especialmente por Georges Seurat, de uma “teoria própria da pintura, 85


baseada na ótica das cores”, o divisionismo, tentativa limite aliada à formulação de uma técnica, o pontilhismo, que se pretendia “tão rigorosa quanto à da pesquisa científica” (ARGAN, 1992, p. 118). Entretanto, quanto ao aspecto relativo à pretensão de objetividade, o próprio exercício prático da pintura haveria de revelar os limites da intenção inicial: ao tentar se ater à objetividade da impressão visual produzida pelo mesmo trecho do real visível, Monet e Renoir, nas telas pintadas em La Grenouillère (ilustrs.) nos arredores de Paris, em 1869, por exemplo, longe de alcançar a objetividade pretendida, afastavam-se flagrantemente dela, o que se tornava evidente pela disparidade de resultados percebida na simples comparação entre os trabalhos. A explicação é simples: longe das imposições normativas homogeneizantes das academias, a singularidade do olhar de cada pintor, determinada por sua própria vivência, passava a definir um resultado único, a partir de uma relação própria do indivíduo com o mundo. Pretensão de objetividade, revelação de subjetividade: do impressionismo, abria-se, assim, a possibilidade do expressionismo em arte, poética que propiciava ao autor a possibilidade de dar vazão a uma interpretação livre e autônoma do real. A arte agora é o resultado de uma experiência única do artista junto ao real. Experiência que vai se realizar em pintura, escultura, desenho, etc. À medida que o século XX avançava, a arte moderna ia definindo com clareza seu sistema, apoiado numa divisão em categorias artísticas que delimitavam nitidamente seus fazeres respectivos: pintura era pintura, escultura, escultura e assim por diante. Então cabia ao pintor pintar, como ao escultor esculpir. O pintor poderia também esculpir, mas então trabalhava e pensava o processo 86


Auguste Renoir, La Grenouillère

Claude Monet, La Grenouillère

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como escultor, esquecendo neste momento a pintura. As atividades e resultados não se confundiam ou se misturavam. Com algumas exceções, tais como as experiências de introdução de elementos e materiais estranhos aos procedimentos da pintura por Braque e Picasso no momento do cubismo analítico, ou o objeto dada e surrealista, que, por seu poder de subversão em relação ao sistema, foram deixadas de lado pela teoria modernista, esta manteve a arte nos limites puristas em que pretendia que atuasse. Esta situação do campo da arte manteve-se inalterada até inclusive o advento do expressionismo abstrato norte-americano, momento que viu o eixo principal do mundo da arte se deslocar de Paris para Nova Iorque. Clement Greenberg, o principal crítico ligado ao grupo dos expressionistas abstratos, foi também o principal responsável pelos termos com que a pintura viria a se definir enquanto disciplina moderna, ou seja, [a pintura] deve apresentar-se como plana, não deve ser ilativa, deve deixar um espaço suficiente para a escultura e para a arquitetura e possui, portanto, aspectos relativos ao espaço e à superfície que são absolutamente centrais (DANTO, 2000, p. 202).

Greenberg reagia ao ver quaisquer de seus cânones teóricos ameaçados, ou mesmo relativizados, como ficou patente em seu comentário de que Willem de Kooning teria passado a fazer “um sucesso ainda maior quando passou a fazer pinturas amenas” (GREENBERG, 2002, p. 260), expressão sutilmente crítica a uma suposta concessão ao gosto mediano, desvio condenável principalmente porque o crítico considerara num momento anterior (meados dos anos 30) o holandês como sendo “talvez o pintor mais forte e mais original do país [EUA]” (GREENBERG, 1996, p. 238).

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arte contemporânea: a infiltração do fotográfico Pois bem, este quadro purista e organizado, com o qual concordavam prática e teoria modernista, passaria a fazer água em meados dos anos 50, quando Robert Rauschenberg, um, por assim dizer, membro periférico do grupo dos expressionistas-abstratos, atuando no que ele próprio chamava de “lacuna entre arte e vida” (KAREN, 1999), começou a introduzir toda sorte de elementos estranhos (ao universo material da arte), objetos retirados da vida cotidiana, tais como bolas de beisebol, garrafas de Coca-Cola, (ilustr.) travesseiros, colchas, tiras de histórias em quadrinhos e até animais empalhados em seus trabalhos.

Robert Rauschenberg, Coca-Cola Plan

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O resultado, que chocou público e crítica quando foi exposto pela primeira vez, desorganizava completamente a ordem daquilo que se aceitara até então como limites de possibilidade do campo da arte. Apresentando-se muitas vezes na fronteira entre o bi e o tridimensional, as obras provocavam grande confusão num público acostumado às definições puristas normativas do sistema moderno — às quais não se restringiam mais. Como o próprio Rauschenberg mencionou, ele tinha gerado um problema para si mesmo: se chamasse os trabalhos de pinturas, diriam que não, que eram esculturas e vice-versa. Ocorreu-lhe então o seguinte: assim como Alexander Calder inventara o termo móbile para suas esculturas móveis — radicalmente novas, à medida que, até seu surgimento as esculturas eram fixas e imóveis — Rauschenberg passou a se referir a seus trabalhos como combine works, um termo derivado em parte da noção de hibridismo em agricultura, mas que apontava principalmente para a ideia de combinação das categorias artísticas. Com isso, tendo ampliado o campo da arte como artista pela via da prática, Rauschenberg fazia o mesmo conceitualmente. Mais tarde se referiria ao fato com marcado senso de ironia, dizendo que a palavra — combine — “agora está no dicionário” (RAUSCHENBERG apud THOMAS, 1999). Mas a contribuição de Rauschenberg, pioneiro — assim como seu amigo Jasper Johns a quem ele transmitiu os princípios fundamentais de seu pensamento — de um novo espírito na arte, o da pop art, transcende em muito o ultrapassar e confundir as fronteiras das categorias modernistas, seu resultado mais evidente. Seu trabalho operava um deslocamento fundamental: fechava a porta da estrada das viagens profundas de autoconhecimento e imersão existencialista que a aventura da pintura expressionista-abstrata ativara e abria outra, para a rua, permitindo que entrasse 90


uma infinidade de imagens e coisas provenientes da visualidade trivial da vida cotidiana urbana. Assim, ele “fotografava” o ambiente urbano à sua volta. Sua marchande Illeana Sonnabend recorda uma frase de John Cage que, segundo ela, descreve à feição seu método de trabalho: — “ele [Rauschenberg] abre a janela e o trabalho entra”. O próprio Rauschenberg relata que todas as suas histórias começa(va)m assim: “eu estava na rua...”, observando que nas fases iniciais de seu trabalho, em vez de ir à loja de tintas, ele “dava uma volta no quarteirão, se não conseguisse material suficiente para começar a trabalhar, dava outra” (GRANLUND, 1997). Esse processo de exteriorização, de desdramatização, característico de uma mudança no espírito da época, generalizou-se nos anos 60, anos marcados por uma exteriorização do espaço da vida na direção do social, em oposição aos valores que privilegiavam o espaço privado e a vida interior nos períodos anteriores. Mas, principalmente, ao voltar-se para a incorporação das imagens que cada vez mais se multiplicavam em profusão por todos os setores da vida da cidade moderna, Rauschenberg vai passar a operar com um novo paradigma: aquele que, finalmente, vai ter na influência da imagem fotográfica e do modo como ela opera transformações radicais em nossa percepção de mundo; seu elemento fundamental. Não se trata, portanto, em seu trabalho — e, por conseguinte, em toda a pop arte —, de um simples retorno à figuração, que pudesse ser enfrentado pela oposição figuração/abstração; não: o elemento figurativo agora se apresenta como imagem prévia, isto é, esvaziado de seus conteúdos como seres ou entes a ser representados. Como exemplo podemos citar a análise que o próprio Rauschenberg faz do processo de criação de sua obra Monogram, a célebre da cabra empalhada (ilustr.). 91


Robert Rauschenberg, Monogram

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Rauschenberg menciona inicialmente que passara a utilizar animais empalhados porque achava uma pena que estivessem mortos (too bad they are dead). Então pensara: “eu posso fazer alguma coisa por isso”. Ao descrever o processo específico de incorporação do bode empalhado a uma obra em andamento, ele menciona que as diversas tentativas haviam fracassado, à medida que, por ser excessivamente maciço, ele “se recusava a ser abstraído na arte (refused to be abstracted into art)”. O resultado permanecia sendo algo assim como “arte com cabra”. Foi então que lhe ocorreu a ideia de circundá-la com o pneu — e a coisa funcionou: “viveram felizes para sempre” (RAUSCHENBERG apud GRANLUND, 1997). Por quê? De que modo os processos mentais intuitivos, isto é, pré-conceituais, característicos da criação artística, conduziram Rauschenberg à percepção de que tal solução plástica resolveria o problema que o obsedava? Vamos por partes: em primeiro lugar, vamos tratar da natureza ontológica do animal empalhado: o que ele é? Bem, inicialmente temos que um animal empalhado é o resultado de uma tentativa de preservação da forma — e da imagem — do animal vivo com o a maior fidelidade possível àquela(s) que ele tinha quando estava vivo. O sucesso desta empreitada depende da capacidade técnica do taxidermista, em servir a este objetivo. Portanto, podemos dizer que nada se assemelha mais ao animal vivo do que seu corpo morto empalhado. Com a diferença — fundamental - que diz respeito a tudo aquilo que um ser vivo — e a própria vida — pode significar. Ou seja: ao preservar forma e imagem do animal empalhado, a taxidermia garante sua permanência inalterada (certamente não eterna) por um período de tempo mais longo, retirando-o da cadeia de interações próprias aos processos naturais de decomposição e entropia aos quais estariam sujeitos na natureza. 93


Ora, a esta altura, você já deve ter reparado que este processo é, em grande parte, análogo a outro que também retira algo do curso da linha do tempo para preservá-lo, fixando-o em sua forma momentânea: a fotografia! Pois não é isto, como vimos, que fazemos ao fotografar algo ou alguém? Não retiramos sua imagem do mundo para conservá-la na superfície do papel fotográfico? Voltando à cabra de Rauschenberg — ou a qualquer outro animal empalhado — não podemos pensá-la como uma fotografia tridimensional — uma espécie de holograma exato — do ser vivo? Referindo-se a este trabalho, o pintor Brice Marden, que foi assistente de Rauschenberg, lembra que a presença da cabra empalhada não faz evidentemente referência ao animal no sentido da representação, como em uma pintura realista, ou a qualquer tipo de simbolismo que pudesse estar envolvido com sua imagem (MARDEN apud THOMAS, 1999). De fato, ela é de outra ordem e é voltando à solução que Rauschenberg encontrou com o agenciamento do pneu como um anel ao redor da cabra que, em aproximação com o curioso título que ele deu à obra — Monogram —, poderemos encontrar a pista para elucidar não só o sentido do trabalho, mas também o modo como ele aparece como um ótimo exemplo da vigência da influência paradigmática da fotografia incorporada ao campo da arte. Vejamos: que efeito se produz à situação tridimensional “cabra empalhada” — em sua vocação fotográfica, por assim dizer — elemento excessivamente impositivo em sua presença, a partir do acréscimo do anel-pneu? Mais: como o título — Monogram — pode contribuir para a solução deste enigma? Ao incorporar o conceito de monograma — uma cifra que agrupa as iniciais de um nome para significá-lo — Rauschenberg parece fazer referência a um equivalente deste processo que incorpora imagens: os brasões da heráldi94


ca, que, muitas vezes, usam animais para representar famílias cujos nomes derivam deles. Eis aí a chave do enigma: com o anel de pneu, a cabra, antes de aparecer como cabra, evocando a realidade do animal vivo, ou qualquer carga simbólica de caráter figurativo representacional, aparece como “imagem de cabra”, evocando, isto sim, toda uma cadeia de referenciais culturais na qual estavam previamente presentes imagens como esta. Porém, sintomaticamente, estes referenciais também se veem, um a um, despojados de suas cargas referenciais anteriores. Trata-se da vigência da lógica do simulacro, que se caracteriza pela emancipação da imagem em relação ao real. No entanto, para se fazer justiça a Marcel Duchamp, torna-se necessário mencionar que, com a noção de readymade, já havia se colocado em arte esta operação que fazia referência à influência paradigmática da fotografia na percepção contemporânea. Vários teóricos mencionam a complexa ligação de Duchamp com a fotografia. Em O Ato Fotográfico, Philipe Dubois, por exemplo, refere-se especificamente ao readymade numa passagem em que analisa o problema da definição da natureza indicial da fotografia. Ao discordar da posição de Franco Vaccari, que afirmara ser o readymade a “fotografia total”, Dubois lembra “que se perderia [sic] nessa operação todos os problemas que o princípio de distância precisamente implica” (DUBOIS, 1993, p. 89). Mesmo tendendo a concordar com esta afirmação, quanto ao que nos interessa, a possibilidade de aproximação da fotografia com o readymade pode conter um dado significativo. Se levarmos em consideração que o readymade pode ser definido como algo que, sem deixar de ser o que é, ou seja, uma coisa, adquire outra carga ontológica a partir de um gesto que o indica, passando a ser simultaneamente um signo, teremos que: primeiro, para ser este signo — que como readymade 95


de fato é — o objeto não foi alterado: “estava pronto” — portanto, signo e coisa, se não chegam a ser o mesmo objeto (veremos o porquê em seguida), no mínimo, ocupam o mesmo lugar no espaço físico objetivo; segundo: o readymade é sempre um objeto industrial, fabricado em série, sua presença, portanto, invoca a noção de serialidade a partir desta série que não é vista, mas subentendida, à qual se sabe que ele pertence e da qual foi destacado, daí decorrendo que ele nunca pode vir a ser pensado como objeto único ou original, porque, enquanto objeto serial similar a todos os outros desta série, efetivamente não o é; terceiro: na operação perceptiva, mesmo se mantendo a noção de que, como foi dito acima, objeto e signo são coincidentes na realidade física, habitam, por assim dizer, a mesma coisa, ao olhar não é dado perceber esta dupla natureza simultânea, mas sim sucessivamente, ou seja: ou vejo (penso/percebo) o objeto como coisa ou o penso (vejo/percebo) como signo (readymade), do que decorre que, no âmbito da operação perceptiva, na recepção, objeto e signo ocupam dois lugares distintos; quarto: na sua semiose — pelo menos intencional (Duchamp recusava explicitamente essa possibilidade) — o readymade descarta a possibilidade de ser lido como símbolo — poderia ser ícone (para a definição de ícone veja o quadro a seguir) — não há semelhança maior que esta - ou índice: também é impossível pensar uma conexão física maior do que a que vincula a coisa a algo que, não sendo propriamente ela, ocupa o mesmo lugar no espaço físico. Mas sendo índice, o readymade é índice de quê? Qual é o seu referente? Ícone: para Peirce “um ícone é um signo que remete ao objeto que ele denota em virtude das características que ele possui, quer esse objeto exista realmente, quer não. (DUBOIS 1993, p. 63).

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Marcel Duchamp, Fonte

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Uma possível resposta deriva diretamente do efeito de afastamento da coisa em relação à sua imagem emancipada, isto é, daquela “dupla distância” referida por Dubois, origem da ruptura da aura benjaminiana (segundo a definição de Walter Benjamin, a aura de um objeto seria “a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que esteja” (BENJAMIN 1975, p. 15): o readymade neste registro, passaria a indicar a própria presença da coisa, reafirmando-a e, paradoxalmente — dada a ruptura da indissociabilidade da união entre imagem e presença — a sua relativa e simultânea ausência, da qual deriva a necessidade dessa reafirmação mediática. Se for verdade, como afirma Morpurgo-Tagliabue, que “a coisa representa a si mesma (MORPURGO-TAGLIABUE apud CALABRESE, 1987, p. 121), a imagem da coisa, na sua autonomia conquistada e a partir desta fratura que estipula a distinção entre as duas instâncias, pode se referir a ela distinguindo-se dela. Portanto, é exclusivamente através do gesto que indica algo como sendo um readymade, isto é, um signo, que sobrevive a possibilidade de recuperação — ainda que parcial — daquela unidade rompida. Neste ponto, chegaríamos a afirmar que o readymade é, não “fotografia total”, mas índice total, que apresenta com precisão o problema fundamental da ruptura do “hic et nunc” perceptivo: com a perda da aura é exclusivamente através de uma operação simbólica, mediática, que, ainda que precariamente, pode-se resgatar a unidade entre a imagem da coisa e aquilo que, nesta, a ultrapassa, isto é, sua presença enquanto coisa. Evidentemente, toda esta análise relativa ao readymade, aplica-se não só à cabra de Monogram, como aos alvos, bandeiras e latinhas de cerveja de Jasper Johns (ilustr.). Em relação a estas poder-se-ia sugerir analogamente ao que se sugeria diante da pintura de 98


um cachimbo de Magritte, A traição das imagens (ilustr.), em que se lê, pintada, a frase: Isto não é um cachimbo, (experimente fumá-lo!): experimente bebê-la (a cerveja).

Jasper Johns, Bronze Pintado

René Magritte, A traição das imagens

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O mesmo se aplica às imagens de John Kennedy de Rauschenberg ou às marilyns de Andy Warhol: seria um engano tremendo esperar encontrar nestas pinturas retratos dessas pessoas no sentido tradicional do termo, como faz o senso comum. Tomemos, por exemplo, a pintura de Warhol Díptico Marilyn (ilustr.). Aqui, Warhol não está retratando Marilyn, nem mesmo reproduzindo uma foto de Marilyn. Está, sim, através de um procedimento que torna constitutivo o encadeamento de técnicas de reprodução serial da imagem, produzindo uma imagem de outra ordem: a que tem como referente fundamental esse mesmo processo em cadeia — de imagens de Marilyn. Se o referente originário é Marilyn, ou melhor, “o ser humano Norma Jean” (MELLEN, 1973, p. 26) — o nome de batismo da atriz — a imagem pintada foi esvaziada de qualquer relação semântica direta com esse referente. Não cabe perguntar quanto de Marilyn — muito menos de Norma Jean — resta nessa imagem pintada, simplesmente porque não é mais disso que se trata: estamos em outro ambiente de significação. De fato, tanto a repetição serial horizontal, por assim dizer, quantitativa, da qual as vinte e cinco marilyns do título são uma indicação simbólica, quanto a vertical, qualitativa, que reproduz em profundidade uma cadeia contínua de simulacros nas etapas técnicas de reprodução, remetem a um ícone dinâmico que se distancia vários graus de seu referente inicial. Introduz-se, assim, a memória — aliás, melhor seria dizer: a desmemória — do processo, que desloca vertiginosamente a fotografia original para um turbilhão — paradoxalmente paralítico — de imagens, que desvaloriza todas elas. O processo esvazia de realidade o referente original, que, sugado pelo vampiro do simulacro, adquire, na medida mesma desse esvaziamento, consistência como realidade autônoma. 100


Sob o signo da reprodução fotográfica, perde-se de uma vez por todas a aura dos objetos (e pessoas) para que outra advenha: a que envolve os novos mitos da sociedade pós-moderna e pós-industrial e que talvez possa ser assim apresentada: “a múltipla aparição de algo próximo, por mais distante que possa estar”. Entre as aspas da fotografia, Norma Jean agora é Marilyn, mas Marilyn também, neste túnel de citações de sua imagem, recebe mais e mais aspas em sucessivas etapas. De modo que, finalmente, referência longínqua desta realidade primeira, originária, agora transformada em “outra”, a Norma Jean sugada pelo processo (des)aparece esmaecida no horizonte fantasmático do simulacro. O próprio referente original fotografado pela primeira foto, ou seja, o “ser humano Norma Jean”, já não existe como tal, — ou, pelo menos, sua existência se torna mais e mais desimportante (como acontece com a paisagem que fotografamos sem tê-la visto) — já que, afetada pelo feedback do processo, cede lugar ao ícone cultural Marilyn Monroe. A questão: “subsiste uma “pessoa real” no fundo deste processo?” torna-se irrelevante — para o processo, em detrimento do ser humano —, uma vez que a concepção de realidade foi radical, inapelável e irrecorrivelmente alterada. Obviamente esses “retratos” de Marilyn nada mais têm em comum com a noção anterior de re-trato. Poderíamos talvez denominá-los, na sua vocação “propresentativa”, “pós-tratos”. Segundo Klaus Honnef, certa vez Andy Warhol dissera que “os lábios de Marilyn não despertavam interesse para ser beijados, mas sim para ser fotografados” (HONNEF, 1988, p. 58): a realidade aqui já se apresenta como imagem, “uma máscara de superfície pura”, na expressão de Honnef (1988, p. 58). O processo pode se estender ao autorretrato: “se você quiser saber tudo sobre Andy Warhol, dizia o próprio, 101


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Andy Warhol, Marilyn Diptych

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simplesmente olhe para a superfície de minhas pinturas e filmes: lá estou eu. Não há nada por trás disso” (WARHOL apud COMPTON, 1970, p. 163). Mas, não nos iludamos: como explica Honnef, “na obra de Andy Warhol, a superfície parece de fato um abismo e não deve ser confundida com superficialidade” (HONNEF, 1988, p. 58). “Reconheci que tudo o que faço tem relação com a morte”, disse certa vez Andy Warhol (apud HONNEF, 1988, p. 61). Revelava, assim, a compreensão de que, no fundo da sequência especular das imagens técnicas, resta o espectro de uma lógica de produção que se alimenta mais e mais da manipulação do desejo mórbido que incide sobre objetos de que nunca precisamos até que passem a nos parecer imprescindíveis, para, em seguida, tornar-se obsoletos, exigindo sua imediata substituição, o que constitui a lógica diabólica da espiral do consumismo compulsivo e desenfreado da era do capitalismo tardio. Enfrentar a lógica do sistema foi, portanto, para os artistas pop, saber lidar com o conceito de obsolescência fundamental para seu funcionamento, conceito que não se aplica exclusivamente a coisas, mas estende-se também aos indivíduos, que alimentam a máquina. Utilizados até o limite de sua “obsolescência”, tornam-se igualmente descartáveis: “no futuro todos serão famosos por quinze minutos”. “Quinze minutos” que não se confirmaram apenas, tornaram-se um dos lugares-comuns mais repetidos dos últimos... quinze minutos. E dos próximos. Warhol intuiu: a velocidade do processo tende a aumentar inexoravelmente e controla também a noção de sucesso mundano. Não por acaso, os temas — se é que ainda podemos chamá-los assim — recorrentes da pop art — morte, sexo e comida — remetem ao processo a que são submetidas as massas ansiosas e acríticas pelo aparelho da sociedade de consumo, representada miticamente pela 104


Mulher, sobre quem parecem se concentrar histericamente todas as forças envolvidas. Submetido à vertigem de fusão total/dissociação radical do universo da imagem, o mundo passa a habitar um túnel de ilusões reais e realidades ilusórias em que tempo e espaço deixam de contar como coordenadas confiáveis. Sob o signo tirânico da fotografia, morte e eternidade se fundem nesse amálgama pós-histórico: no mesmo movimento em que Norma Jean, pessoa, é tragada para o interior do grande peixe e se desintegra, Marilyn Monroe, imagem, é regurgitada na praia da eternidade. Torna-se eterna - enquanto dure - como ícone de seu tempo. Como definiu Wernner Spies (apud HONNEF 1988, p. 61), “o que empurrou Marilyn Monroe para a morte foi precisamente este beijo dirigido a todo o mundo que Warhol imortalizou, a sua obrigação de permanecer sempre uma imutável marca registrada”. A partir desta operação que afirma o duplo no uno aparente e que se institui no percurso da distância indicial fundada pela imagem fotográfica, decorre uma possibilidade de deslocamento do sentido, ao modo da alegoria, que vai se alimentar precisamente daquela ruptura. A constatação deste movimento de externalização do conteúdo — que parte da falência da crença naquela “verdade espiritual” interna — para o espaço entre objeto e sujeito, e neste, no percurso entre o olho e a mente, estipula uma nova carga de responsabilidade moral e intelectual para todos os agentes envolvidos na operação: se o mundo apresenta-se efetivamente como “abismo absurdo”, como supõe Flusser, a partir da impossibilidade de crença em verdades absolutas a serem reveladas; se, ainda, produz-se um vácuo de significação no percurso da distância indicial entre o mundo e as novas imagens significantes, então, todas as coisas encontram-se 105


em estado de disponibilidade para significados possíveis produzidos na interação com sujeitos variados. Este deslocamento ativo faz com que, de acordo com a definição de alegoria de Walter Benjamin já mencionada, “qualquer pessoa, qualquer objeto, qualquer relação possa significar qualquer outra coisa”. O mundo, assim percebido, não-significante em si, mas constituindo-se como matéria-prima para qualquer significação, redimensiona ao extremo o poder ativo de intervenção neste intervalo e aumenta consequentemente a carga de responsabilidade de cada opção. Trata-se agora de inventar pontes possíveis sobre o abismo, mas pontes para que admiráveis mundos novos? É exatamente disto que se vale o artista na atualidade: todas as coisas, todos os seres, todas as imagens e textos estão disponíveis para agenciar interações produtivas de novos significados. Assim, a ampliação do campo da arte implica também a exigência sem precedentes de ampliação da nova consciência de sua responsabilidade. Não se trata apenas de ter agora todos os materiais, técnicas e assuntos disponíveis para a realização do trabalho, como de fato se dá, mas de se conscientizar do poder implícito em realizações que vão produzir novos sentidos para o real e, por conseguinte, fundar o futuro.

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o paradigma virtual 109


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hiperespaço e tempo real Coerentemente com as análises anteriores, o foco principal da análise do paradigma virtual vai incidir inicialmente sobre o modo como nossos dispositivos perceptivos e nossas concepções da realidade serão afetadas por esse novo paradigma. Como lembra Derrick Kerckhove (1997, p. 50): no dia em que a realidade virtual tiver invadido os lares como a televisão, ela já terá mudado as bases de nossa psicologia, de nossa vida social e política e certamente de nossa economia.

Para tanto, vou evocar inicialmente algumas análises que permitirão elaborar o modo como tais mudanças poderão ser concebidas. A análise anterior relativa à possibilidade do funcionamento alegórico do trabalho de arte baseava-se, como vimos, no modo como a imagem fotográfica influencia nossos dispositivos de percepção do real. As imagens virtuais diferem das fotográficas, no entanto, como vimos também anteriormente, pela ausência total de um referente imagético prévio, realizando, por isso, plenamente a definição de imagens pós-históricas da definição de Flusser — imagens produzidas a partir de conceitos. No mesmo sentido, Lúcia Santaella e Winfried Nöth apontam a distinção entre as presenças paradoxais do tipo das imagens televisivas ou mesmo holográficas e as das imagens sintéticas, distinção determinada, como vimos, pelo fato de que, como no caso da fotografia, também aqui, no primeiro caso, mantém-se uma relação — de natureza indicial — entre, segundo a definição de Paul Virilio, “um 111


objeto no espaço real e o tempo real de transmissão ou de percepção da imagem desse objeto” (VIRILIO, 1993), ao passo que na imagem sintética não há relação com qualquer referente prévio no espaço real. Acontece que, como mostra Virilio (e já vimos acima, inclusive com os exemplos das pirâmides, do momento real do gol e do atentado de 11 de setembro de 2001) nossa concepção da realidade passa a ser drasticamente afetada a partir das alterações na percepção espacial e temporal introduzidas pelas tecnologias de transmissão instantânea, não só de informações audiovisuais, mas até de ações a distância, que começam a redefinir e redesenhar em escala macroscópica o mapa da atividade humana sobre o planeta (VIRILIO, 1993). Segundo Virilio, neste novo cenário, a cidade, referência simbólica fundamental sobre a qual a sociedade moderna se erguera, já tendo sofrido um processo de descentralização com o advento do automóvel, transformando-se, de lugar habitável, em corredor de passagem, tende agora a desaparecer (VIRILIO, 1993). Uma vez que às grandes distâncias não correspondem mais grandes afastamentos, já que mesmo o problema da maior ou menor velocidade de transporte físico cede lugar em importância à instantaneidade da transmissão de dados à velocidade da luz, qualquer referência a uma espacialidade concreta — e mesmo a um tempo homogêneo — deixa de ser significativa, reduzindo-se, assim, à insignificância os conceitos modernos de espaço, tempo e até mesmo a noção de quarta dimensão, espaço-tempo (VIRILIO, 1993). Como explica o autor em referência, “o tempo real do terceiro intervalo do tipo luz das ondas eletromagnéticas predomina definitivamente sobre o espaço real da matéria” (VIRILIO 1993, p. 104). Consequentemente, a sedentariedade da vida urbana moderna dará lugar à inércia da recepção imediata, as relações distantes tendendo 112


a prevalecer sobre as próximas, com prejuízo evidente para noções como “vizinhança”, “comunidade”, etc. (VIRILIO, 1993). Neste sentido, já não pode haver dúvida em relação à potência de transformação da vida contemporânea por sites de relacionamento tais como Facebook, com suas aproximações do distante que criam novas relações de “proximidade” virtual, com todos os seus limites e impasses. Por outro lado, já é frequente a utilização de laptops ou netbooks em reuniões em que deveria prevalecer o hic et nunc - o aqui e agora - da presença real dos participantes. Sem se dar conta, ligados à rede dos computadores, os participantes/usuários tornam-se, nesses casos, parcialmente presentes — e parcialmente ausentes. Obviamente nem tudo é problema: nossa realidade mesmo, do ensino a distância, reflete esta potência do paradigma virtual em sua alteração das realidades ligadas aos conceitos de distância e proximidade (ainda que curiosa e paradoxalmente, valendo-se simultaneamente da forma-livro, histórica, o texto que você está lendo. O que vem demonstrar que as transformações não acontecem definitivamente e de uma vez por todas). Com tudo isto, no entanto, não resta dúvida: a vida torna-se definitivamente mediatizada, a ponto de vivermos “em dois tempos igualmente reais”, numa espécie de desdobramento da personalidade do tempo: o tempo real de nossas atividades imediatas, no qual agimos simultaneamente aqui e agora na grade de horários da emissão televisiva, em detrimento do aqui, ou seja, do lugar de encontro. (VIRILIO 1993, p. 103)

que pode se dar, então, graças ao satélite, como num colóquio por 113


vídeo conferência, “paradoxalmente em nenhum lugar do mundo” (VIRILIO 1993, p. 103). Observe que este efeito de diluição das referências espaciotemporais já vigorava no âmbito do paradigma da imagem-movimento ativado pelo videoteipe, que opera diluindo as distinções temporais entre imagens de fatos reais ocorridos no “passado-contínuo” e as que exigem a apresentação da legenda “ao vivo”, de modo a referendar sua simultaneidade à do tempo do espectador como imagens de acontecimentos ocorrendo no “presente-contínuo”. Em novo “feedback entre gesto e consciência”, gera-se, então, como vimos, a partir da conformidade ao hábito perceptivo da repetição mediática do evento, a expectativa de um funcionamento similar em relação ao real, num desdobramento deste que — evidentemente — não se cumpre. Lembremos os exemplos já mencionados do torcedor que perde o gol do seu time e fica esperando um replay que não virá, assim como também o que ocorre em alguns desses megashows de rock: o público acompanha os movimentos da diminuta e distante banda no close up do telão. Ou seja: o sujeito sai de casa e paga caro para assistir à televisão! O que ele poderia fazer em casa, pagando menos, com maior conforto e melhor nitidez de imagem... Como consequência desse processo de desmanche do real, Paul Virilio, que é arquiteto e urbanista, aponta para a natural e consequente degradação da arquitetura como ciência das superfícies sólidas e dos limites concretos, já que, à medida que “a limitação do espaço torna-se comutação, a separação radical transforma-se em passagem obrigatória” e “a aparência das superfícies esconde uma transparência secreta” (VIRILIO, 1993, p.13). Portanto, já está em curso, segundo Virilio, um processo inexorável em que “o meio geofísico sofre uma inquietante desqualificação de sua ‘profundidade 114


de campo’ que degrada as relações entre o homem e seu ambiente” (VIRILIO, 1993, p. 106). Para entendermos como este efeito desqualificador mencionado por Virilio já afeta nossa percepção espacial, produzindo uma nova categoria espacial, da ordem não do físico mas do virtual, a hiperespacialidade, será útil compará-lo com uma análise de Fredric Jameson, da espacialidade do Hotel Bonaventure de Los Angeles, que ele considera um exemplar típico do espaço arquitetônico pós-moderno.

O hotel Bonaventure

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O Bonaventure aspira a ser um espaço total, um mundo completo, uma espécie de cidade em miniatura, [...] não deveria ter nenhuma entrada, uma vez que toda entrada sempre será o fio que liga o edifício à cidade que o circunda: porque ele não quer ser parte da cidade mas seu equivalente ou substituto (JAMESON, 2002, p. 66).

Obviamente, o hotel não poderia deixar de ter entradas, mas Jameson assinala a relativa desimportância dessas: não há nada como uma grande portaria principal a estipular simbolicamente a passagem do exterior urbano para o interior. As entradas são “parecidas com entradas laterais ou dos fundos” (JAMESON, 2002, p. 65) e dão acesso direto ao segundo andar. Já o espaço interno do saguão do Bonaventure apresenta-se como um não-lugar, um hiperespaço virtual que impede, na falta de volumes, paredes ou quaisquer referências visuais diferenciadoras, a possibilidade do indivíduo orientar-se em seu interior. Esta situação encontra um equivalente no exterior, em que a superfície espelhada dos vidros externos impede a percepção do edifício como estrutura arquitetônica, massa concreta efetivamente presente a ocupar um local específico da cidade. Jameson ressalta “o modo pelo qual este revestimento de vidro repele a cidade” dissociando-se dela: “não se trata nem mesmo de um exterior, na medida em que, ao se olhar para as paredes externas, não se vê o hotel, mas imagens distorcidas de tudo que o circunda” (JAMESON 2002, p. 68). É a imagem camaleonicamente camuflada de uma ausência. Em resumo: tanto interna quanto externamente o Bonaventure, como uma espécie de edifício fantasma, parece não se situar em nenhum lugar da cidade, mas ocupar um espaço próprio, virtual, que prescinde de qualquer fisicalidade. 116


Essa realidade hiperespacial, contígua à cidade, “satisfaz-se em deixar o tecido urbano degradado continuar a ser em seu ser’” (JAMESON, 2002, p. 67): ela não quer fazer parte da cidade: isola-se, virando as costas para qualquer relação, próxima ou distante, com ela. Eis aqui, tanto na descrição de Jameson quanto na apresentada por Virilio, os efeitos de mais um processo de feedback, desta vez do paradigma virtual sobre o espaço real, produzindo neste equivalentes concretos às transformações impostas por aquele aos modos da percepção. De fato, onde estamos, quando, na reunião mencionada acima, nos dividimos entre o real de nossa presença física na sala e nossa atenção voltada para comunicações virtuais com pessoas e informações que nos chegam via computador? Curiosamente, na sequência de sua análise do Bonaventure, Jameson produz uma interessante analogia entre as superfícies espelhadas do hotel e aqueles “óculos de sol espelhados, que impedem um interlocutor de ver nossos olhos, dotando-nos assim de certa agressividade e certo poder sobre o outro” (JAMESON, 2002, p. 68). Ora, se ampliarmos um pouco essa analogia e levarmos em conta a percepção de Rilke que tanto agradou a Merleau-Ponty, dos olhos como “janelas da alma” (MERLEAU-PONTY, 1974 , p. 298), no sentido de passagens do interior para o exterior, poderemos tomar as questões referentes aos problemas da transformação física e da alteração perceptiva do espaço e do volume da arquitetura urbana, tanto da perspectiva teórica de Virilio quanto da de Jameson, levando-as a convergir para a seguinte questão, relativa ao espaço da interação interpessoal: como somos afetados pela vigência do paradigma virtual, para além de nossa concepção de realidade, no modo como concebemos nosso próprio ser e que mundo se abre e se produz a partir daí? 117


Segundo Heidegger (2002), a nossa temporalidade não só antecede nossa espacialidade como a constitui. Ora, o que se passa na hiperespacialidade do espaço pós-moderno é que, ao modo de um videogame — ou de um site como Second Life —, o próprio caminhar parece ser responsável pelo desdobramento contínuo de um espaço que deriva diretamente dele sua única possibilidade de se constituir. Assim, ficam desvalorizadas quaisquer noções relacionais de posição e até mesmo as próprias noções de espaço real, em função de um tempo único, um presente absoluto que desconhece qualquer outra referência que não seu vetor prospectivo. Santaella e Nöth aproximam a temporalidade própria à imagem eletrônica daquela que é própria à música. Com esta analogia, apontam para o fato de que, ao contrário das imagens indiciais que se conservam ligadas ao referente que representam, “[a música] só pode por fatalidade passar, evanescer, soar e desaparecer” de onde concluem que “[ela] é, tal como a vida, devir irremediável”. A imagem eletrônica tem em comum, segundo os autores, em sua “antimatéria luminescente”, as mesmas características fundamentais. Portanto, insistem, “quanto mais ela se desprende de qualquer tipo de referencialidade [...], mais se aproxima da natureza dos campos sonoros” (SANTAELLA; NOTH, 1999, p. 95). Parece evidente, no entanto, que podemos perceber uma diferença notável: a menos que nos desmaterializemos na música de um puro devir, preservaremos sempre, ontologicamente, para falar com Heidegger ( ), para sermos o que somos, uma relação referencial com aquilo que fomos, além de contarmos sempre com aquilo que viremos a ser. Daí que tal evanescência que “soa e desaparece”, não pode se arriscar, em novo feedback com o real, a ser tomada como a única realidade, sob pena de, nesse movimento, sacrificar118


mos aquilo de que depende mesmo todo o resto: nosso próprio ser. Neste cenário, a influência do paradigma virtual passa a ser redimensionada para muito além das transformações da realidade cultural, à medida que as possibilidades efetivas de transformação do real são radicalmente ampliadas pelas novas tecnologias. Por isso, a possibilidade de atuação da arte em seu campo ampliado ultrapassa em muito os limites de fruição estética circunscritos pela teoria moderna. Segundo Victor Goldschmidt, “a arte participa [como as técnicas] de um saber teórico e, por esse meio, assume uma função não só de fabricação e poética, mas teorética e de conhecimento” (GOLDSCHMIDT apud TIBERGHIEN, 2000, p. 176). Assim, as tarefas da arte, da ciência — “uma arte entre as outras”, como aponta Flusser — da técnica — e da filosofia - passam a conjugar-se, levando-nos forçosamente à necessidade de simulação de cenários futuros, abertos, em princípio, a todo e qualquer admirável mundo novo. Antecipando-se ao momento referido por Kerckhove apresentado no início do capítulo, Jean Baudrillard afirma que já “hoje não pensamos o virtual, somos pensados pelo virtual” (BAUDRILLARD, 1997, p. 57). De que modo, portanto, a realidade virtual já terá se infiltrado em nossos modos de ser, alterando “as bases de nossa psicologia, de nossa vida social e política e [...] de nossa economia”? Vou tentar ir ao encontro de possíveis respostas a esta questão, aprofundando-a na sequência.

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efeitos de retroalimentação (feedbacks) do virtual De início, temos, como vimos acima, que a noção de tempo real tende a desvalorizar o passado e consequentemente toda e qualquer referência anterior e conteúdo histórico. Assim, passa a prevalecer o vetor único de um presente absolutizado, que se projeta para um futuro imediato. Na verdade, como você já deve ter percebido, a menção à desvalorização até a extinção de todo e qualquer de referencial anterior é problemática: sem dúvida os referenciais existem e nem poderiam deixar de existir: apenas os modos de captação de dados para a formulação dos conceitos pré-textuais programadores deixaram de ser vinculados à tradição renascentista ótico-cognitiva, assim como a sua mais recente formulação, a fotográfica-indicial, constituindo-se agora a partir de redes de dados estatísticos que se baseiam nos processos quantitativos de captação dos modelos da tecnociência. Em seu importante livro O pós-moderno, o filósofo Jean–François Lyotard aponta para o fato de que qualquer informação que não seja passível de ser quantificada tende a ser desprezada (LYOTARD, 1986). Talvez possamos localizar aí um perigo e uma possível perda significativos: esta inteligência computacional tende a se afastar do potencial da nossa compreensão intuitiva do mundo. Tal capacidade imaginativa, impossível de ser completamente transcodificada em dados quantificáveis, transcende amplamente a capacidade quantificadora de uma inteligência computacional. Como vimos com Paul Virilio, a transmissão instantânea de informações tende a abolir a noção de distância, ou torná-la irrele120


vante. Vimos também que a este achatamento espacial corresponde a outro, temporal, decorrente da primazia do tempo real em sua negação do passado, de tudo que é histórico e que tende a desaparecer na atualidade de um presente tomado como absoluto. A explicação de Paul Virilio é elucidativa quanto a este aspecto: [...] aos três tempos — passado, presente e futuro — da ação decisiva, substituem-se sub-repticiamente dois tempos, o tempo real e o tempo diferenciado. O futuro tendo desaparecido, por um lado, na programação dos computadores e, por outro, no falseamento deste tempo pretensamente ‘real’ que a uma só vez contém uma parte do presente e uma parte do futuro imediato (VIRILIO 1994, p. 95).

Achatamento da memória Os efeitos impositivos em processo de feedback pelo tempo real paradigmático já podem ser verificados, tanto macro quanto microcosmicamente. O sociólogo Jean Baudrillard observa que se, “no tempo histórico, o acontecimento ocorreu e as provas estão aí, [...] no tempo real não há mais provas de nada” (BAUDRILLARD, 2002, p. 58). Baudrillard usa como exemplo o fenômeno do negacionismo, ou seja, a negação do holocausto judeu perpretado pelos nazistas: a proposição negacionista em si mesma é absurda; tal é a evidência que a questão crucial passa a ser: por que há necessidade de defender a verdade contra eles? Por que a existência das câmaras de gás pode ser questionada? Em outros tempos teria sido impossível [...]. Ora o próprio fato de ter de

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defender a realidade histórica das câmaras de gás como causa moral, de ter de defender a ‘realidade’ em geral através de uma espécie de engajamento político, testemunha fortemente sobre a mudança de registro da verdade histórica e sobre as turbulências da objetividade (BAUDRILLARD, 2002, p. 58).

A noção de verdade como conformidade aos fatos, verdade retrospectiva, referencial, histórica, se esvazia nesse processo, tendendo a se tornar irrelevante. Na tentativa de absolutizar o dito “vale a versão não o fato”, os negacionistas “francamente aberrantes e [...] francamente errados [...] contestam a realidade histórica e objetiva da exterminação”. O que confere ao problema toda sua gravidade é que, como observa Baudrillard, tal posição absurda é favorecida pelo fato de que “a exterminação nunca será verificada em tempo real”. Baudrillard descreve o tempo real como “um gênero de buraco negro onde nada penetra sem ser esvaziado de sua substância” (BAUDRILLARD, 2002, p. 58), de modo que “os campos de exterminação tornam-se aí virtuais [...], caem no mesmo abismo virtual — o de acontecimentos ou de fatos que existem o tempo que existem, ponto, nada mais” (BAUDRILLARD, 2002, p. 58-59). Ou seja: em última instância, a história corre o risco de se tornar uma questão de crença. Sujeita aos estímulos da propaganda contínua em tempo real. Para combater este risco ela tem que apresentar suas provas — os documentos históricos — constante e continuadamente em tempo real. Para Paul Virilio ocorre que “a verdade não mais mascarada, mas abolida, é a da imagem real, a imagem do espaço real do objeto” (VIRILIO, 1994, p. 95), verdade, como vimos, representativa, histórica, linear, verdade como proposição correspondente a fatos. Segundo Flusser, na lógica da imagem virtual, “o salto [...] se dá sobre 122


o abismo que separa o conceito da vivência e não sobre o abismo que separa a vivência do mundo objetivo” (FLUSSER, 1985, p. 19). Consequentemente, segundo Baudrillard, a própria memória torna-se impossível, os filmes que documentam o horror, “esgotam[-no] na atualidade da imagem”, logo a “exterminação real está fadada a essa outra exterminação, a do virtual”. Ele conclui que não se trata efetivamente de uma derrota do pensamento histórico e crítico, “mas sim da vitória do tempo real sobre o presente, o passado” e, nesta situação, “mesmo o futuro, em tempo real, não está garantido.” (BAUDRILLARD, 2002, p. 59). Isto porque, como explica Henry-Pierre Jeudy, “passado, presente e futuro são colocados no mesmo plano, do imediatismo da mediatização” (JEUDY, 2002, p. 146). As Idades Humanas e a Força Gravitacional do Tempo Real Atraídas para a órbita dessa força gravitacional do tempo real, as idades humanas são afetadas: a infância é progressivamente encurtada, a maturidade mais e mais adiada, a velhice dissimulada em função de uma convergência para um estado de juventude esticado ao esgarçamento e que, prescindindo do uso de qualquer elixir, pretende-se eterno — mas de uma eternidade que ocorre em tempo real, ou seja, eternidade como permanente atualidade, sem extensão. Aliás, elixires da juventude não faltam: a gerontologia é o ramo da medicina que mais tem evoluído nos últimos anos, tirando o sono dos burocratas responsáveis pela gestão dos sistemas previdenciários do mundo inteiro.

Estranho paradoxo: o do aumento progressivo do número de longevos, numa sociedade voltada cada vez mais para os jovens. O 123


que obriga os “menos jovens” a camuflar-se: em recente entrevista apresentada pelo canal de TV Globonews, o psicólogo francês Charlles Melman evocava a imagem da grande quantidade de pessoas da terceira idade em aeroportos, shoppings, etc. trajando joggings e calçando tênis e observava que antes o velho trazia consigo uma dignidade da velhice (MELMAN, 2005). Como observa Ortega, “no caso da velhice, o modelo biomédico dominante vê o envelhecimento exclusivamente em termos de declínio à idade adulta, como um estado patológico, uma doença a ser tratada” (ORTEGA, 2002, p. 159). À medida que essa situação se estabelece hegemonicamente, deixa de ser de “bom tom” ter passado, ter história: o jovem passa a ser a referência única e, se ele chega a ter algum passado, este não chega a ter propriamente espessura: seu aspecto determinante é: ele está pleno de atualidade de certo modo sabe que vai envelhecer (a outra opção é muito pior...), mas, no fundo, não acredita muito nisso: a velhice é para os outros! Esta inconsciência, típica da juventude, é natural. O problemático é que, mais que hegemônica, ela vem se tornando absoluta, impondo seu modus operandi a todas as idades. Seja jovem!, eis o imperativo do momento. O dramaturgo Nelson Rodrigues, indagado sobre um possível conselho aos jovens, teria respondido com ironia: “envelheçam!”. Já agora, os mais velhos podem ironicamente dizer: “sou jovem há mais tempo”... Por outro lado, a criança é compelida a deixar de sê-lo, já que, como observa Baudrillard, “o ritmo atual, do imediatismo, da aceleração do tempo real, vai exatamente de encontro à concepção, à gestação, ao tempo de procriação e criação, da longa duração em geral à qual corresponde à infância humana. Condena-se, portanto, a criança a desaparecer” (BAUDRILLARD, 2002, p. 53) atingindo a 124


puberdade o mais rápido possível: meninas menstruam cada vez mais cedo, enquanto, por outro lado, o próprio sexo torna-se uma diversão como outra qualquer: o corpo como playground das sensações banalizadas: “adolescência sem fim e sem finalidade que se autonomiza sem consideração pelo Outro, por si mesma e volta-se por vezes violentamente contra o outro” (BAUDRILLARD, 2002, p. 52), como se refere Baudrillard, a essa nova síndrome de Peter Pan. Também a maturidade passa a se comportar como se já fosse um momento seguinte, pós-climático, em que o principal definitivamente já passou. Deixa assim de ser referência para qualquer possibilidade de amadurecimento de uma juventude, que, percebendo-se como centro das atenções, torna-se presa desse mesmo triunfo aparente, gaiola dourada da negação da própria natureza existencial característica do nosso modo de ser. Como explica Baudrillard, [...] há de resto uma estranha coincidência entre esse estado infantil anterior ao princípio de realidade e o universo da realidade virtual, nosso universo midiático adulto, posterior ao princípio de realidade, onde o real e o virtual se confundem. Eis o que explica, aliás a afinidade espontânea de uma geração jovem com as novas tecnologias do virtual. A criança tem para ela o privilégio da instantaneidade. [...] No que diz respeito ao tempo real, está definitivamente adiantada em relação ao adulto (BAUDRILLARD, 2002, p. 53).

Isso se deve, evidentemente, ao fato de que, como vimos, se o tempo real produz um achatamento do passado, apenas o adulto é afetado nesta situação, já que só ele tem que lidar com uma memória que se revela agora cada vez mais inútil, um fardo do qual seria 125


preciso se livrar. Quanto à criança, o tempo real coincide com sua própria temporalidade, que, definida ainda pela pequena extensão de sua existência já vivida, apresenta-se como abertura plena para a atualidade e o devir imediato, que o caracterizam. Tentativa de Adiamento e Abolição da (própria) Morte Se for verdade — como parece — que a imagem mental que temos de nós mesmos deixa de se modificar após termos atingido certa idade, como se a velhice fosse um atributo postiço — “quem é esse velho que me olha no espelho” —; se é verdadeiro também que, como vimos, o passado tende a ser apagado e o futuro dissolvido no presente total, o momento atual, como consequência da tirania desta absolutização do tempo real, leva essa situação ao limite de sua possibilidade de realização efetiva: à ânsia de apagar por meio de cirurgias plásticas os sinais da passagem do tempo — rugas, papadas, estrias, adiposidades — soma-se agora a tentativa de abolir a própria morte. Nos EUA, uma companhia, Alcor, oferece os serviços de congelamento do cadáver logo após a morte e sua manutenção nesse estado a quem se dispuser a pagar de acordo com a seguinte tabela: U$80.000, apenas o cérebro, U$150.000, o corpo inteiro. Compromete-se também a chegar ao local do falecimento em tempo hábil, de modo a evitar a degradação irrecuperável dos tecidos, o que é garantido por um aparelho que registra as batidas do coração do “freguês”. A expectativa é a de que num futuro, próximo ou distante, o segredo da vida venha a ser revelado e todos esses “zumbis” possam vir a ser ressuscitados para a vida eterna, numa paródia triste e literal do Juízo Final cristão. Um casal de velhinhos, tendo ela já morrido e sido congelada, seu marido estipula em contrato que, chegada a hora, deve ser res126


suscitado primeiro, pagando também para garantir que seu apartamento seja preservado no estado em que estava no momento de sua morte; espera poder assim preparar a recepção da amada para serem felizes para sempre, na preservação da vida cotidiana em um presente eterno e inalterado. A pretensão é a de que a morte deixe assim de ser viagem sem volta: no máximo um breve passeio do qual se retorna para o conforto permanente do lar. Comportam-se nessa situação como se pudéssemos descolar a existência da consciência de nossa própria morte, pretendendo assumir exclusivamente sob esse aspecto, o modo de ser das coisas inanimadas, os entes que nos sobrevivem. Obviamente é um engano: como explica Michael Inwood, Heidegger “assume que uma vida infinita seria inviável e incauta, tornando-se impossível decidir o que fazer e quando fazê-lo” (INWOOD, 2002, p. 116). Ou seja: a certeza da morte é condição fundamental e necessária para a possibilidade da ação: se você tem todo o tempo do mundo, vai adiar para sempre qualquer momento de decisão e ação. Antes de

Flyer de propaganda da Alcor, designer: Richard Leis. Texto do flyer: “Antes de morrer você pode escolher entre o caixão e a urna. Nós pegamos a opção 3.”

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Heidegger, outro filósofo alemão, Scheler argumentara “que a certeza não empírica da própria morte origina-se da observação de que a esfera possibilidades abertas para uma pessoa diminui à medida que a vida desta pessoa avança e parece convergir para o limite de uma única possibilidade, se não para o total desaparecimento” (INWOOD, 2002, p. 116). “Ter tempo” aqui significa a possibilidade de harmonização entre expectativa de tempo de vida restante e projetos para o futuro, em função da experiência já vivida. A morte se torna estranha: Walter Benjamin já tinha observado que, se “morrer era antes um episódio público na vida do indivíduo [...] hoje a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos” (BENJAMIN, 1994, p. 207). Scheler também apontava “nossa tendência, intensificada pelo capitalismo moderno, de esconder a morte” (INWOOD, 2002, p. 116). Já para o professor David Pegg, da York University, na Inglaterra, o processo de congelamento de cadáveres para futura ressurreição, nada mais é que “a última versão de um processo cultural recorrente ao longo da história” (PEGG, 2002). Ele sugere que “as antigas múmias egípcias tinham a mesma pretensão: garantir a vida após a morte” (PEGG, 2002). Processo este, de horror à perda e desejo de conservação, do qual, como vimos, as imagens técnicas representam importante episódio. A Euforia Tecnicista: o corpo-máquina Em busca de uma otimização de suas performances físicas e mentais, a recepção eufórica das conquistas da técnica leva o ser humano, num processo de coisificação de si mesmo, a testar também seus próprios limites físicos, submetendo seu corpo a processos de hibridação, metamorfoseando-o, no limite, em híbridos de máquinas e se128


res humanos. Num primeiro exemplo do modo como a arte enfrenta tais questões, veremos como o artista australiano Stelarc apresenta em sua obra (ilustr.) e textos proposições exemplares desse processo. Para ele, [...] O CORPO [é] OBSOLETO: É hora de se perguntar se um corpo bípede, que respira, com visão binocular e um cérebro de 1.400 cm3 é uma forma biológica adequada. Ele não pode dar conta da quantidade, complexidade e qualidade de informações que acumulou; é intimidado pela precisão, velocidade e poder da tecnologia e está biologicamente mal-equipado para se defrontar com seu novo ambiente extraterrestre [...;] REPROJETAR O CORPO/REDEFINIR O QUE É O HUMANO. Não faz mais sentido ver o corpo como um lugar para a psique ou o social, mas sim como uma estrutura a ser monitorada e modificada. O corpo não como um sujeito, mas como um objeto – NÃO UM OBJETO DE DESEJO, MAS UM OBJETO DE PROJETO [...] A SUPERFÍCIE E O EU. Como superfície, uma vez a pele foi o começo do mundo e simultaneamente a fronteira do eu. Como interface, uma vez ela foi o lugar do colapso do pessoal e do político. Mas agora esticada e penetrada por máquinas, A PELE NÃO É MAIS A SUPERFÍCIE SUAVE E SENSUAL DE UM LOCAL OU UMA TELA. [...] Como interface, a pele é inadequada [...] TROCAR A PELE [...] SEM NASCIMENTO /SEM MORTE – O ZUMBIDO DO HÍBRIDO [...] SISTEMAS HÍBRIDOS HOMEM-MÁQUINA, etc. (STELARC, 1997, p. 54 - 59).

Aparentemente ousadas, tais propostas são, pelo menos em sua origem, ingênuas, ainda que, em suas consequências como pro129


Stelarc, Third Hand

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jetoras de significados, possam ser perigosas. Muitas derivam do imaginário de uma ficção científica de histórias em quadrinhos e seu teor de audácia reside exclusivamente na sugestão de efetiva transposição para o real de tais realidades ficcionais. O risco está justamente aí, na medida na qual alimentam o processo — já em andamento acelerado — de coisificação do ser. Tais proposições, que literalizam a virtualidade pós-fotográfica e atualizam-na fisicamente sem restrições, aplicando-a, mais do que ao corpo, ao próprio ser, elidem, nesse movimento, o principal: na tentativa de ultrapassar os limites físicos do nosso ser, abandonando quaisquer limitações físicas e limites existenciais em nome de um suposto devir libertário radical, corremos o risco de nos tornarmos vulneráveis a processos que conduzirão a nossa própria extinção. Afinal, como disse magnificamente Maurice Merleau-Ponty, “o corpo é para a alma o seu espaço natal e a matriz de qualquer outro espaço existente” (MERLEAU-PONTY, 1974, p. 289). Assim, em outro processo de feedback, o corpo é tomado em labilidade similar a das imagens numéricas, deixando de ser surpreendente, como observa Jeudy, ver Stelarc passar dos “rituais de suspensão” [em que se pendurava por ganchos fincados na própria pele] ao uso de imagens sintéticas, sem dar a impressão de mudar de universo. (JEUDY, 2002, p. 152)

Para Stelarc “a tecnologia invasora marca o fim da evolução darwiniana como a conhecemos; ela é o começo da hibridação do biológico pelo artificial” (STELARC apud JEUDY, 2002, p. 152). Ora, o problema talvez não seja tão simples assim. 131


Em primeiro lugar, longe de buscar a motivação original para tais hibridações na ideia de “fim da evolução darwiniana”, devemos, ao contrário, entendê-la como motivada pela própria tese darwinista que ela leva a um paroxismo, buscando uma otimização irrestrita da capacidade performática do indivíduo no mundo. Sabemos que o ser humano dentre todas as espécies é a única que tem a capacidade — e pode ter a pretensão — de produzir as diferenças vantajosas que, submetidas ao processo natural, seriam selecionadas para sobreviver e se reproduzir mais e melhor que as menos aptas. As próteses, desde as mais simples, pré-industriais — os instrumentos — até as mais complexas, industriais, técnicas — as máquinas — ou pós-industriais — os aparelhos —, são meios pelos quais nossa capacidade de ação sobre o ambiente — incluindo a de transformação deste — é ampliada. Tem como objetivo, portanto, ampliar vantajosamente nossa capacidade de lidar com o mundo que nos cerca e no qual vivemos. Isto quer dizer que, quando nos tornamos aptos, como agora, a modificar a nós mesmos, seja na forma final — através das interferências cirúrgicas, plásticas ou não — seja na causa original — as alterações genéticas — estamos alterando as regras desse jogo — e consequentemente arriscando os limites que definem o modo como existimos. O desejo de atingir a possibilidade de uma identidade puramente incorpórea, espiritual, e fazê-la habitar próteses onipotentes motiva algumas propostas radicais, como a de G.J. Sussman, professor do MIT, citada por Le Breton: Se você puder fazer uma máquina que contenha seu espírito, então a máquina é você mesmo. Que os diabos carreguem o corpo físico, não tem interesse. Mas uma máquina pode

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durar eternamente. Mesmo se parar, você pode sempre se retirar para um disquete e recarregar-se em outra máquina. Todos nós gostaríamos de ser imortais. Infelizmente temo que sejamos a última geração que vai morrer” (SUSSMAN, apud LE BRETON, 2003, p. 215).

Esse radicalismo deriva diretamente da crença fortemente enraizada na cultura ocidental no mito da separação dualista do indivíduo em corpo perecível e alma imortal e, consequentemente, numa vida eterna além da morte. Porém, como indaga o teórico das ciências da cognição, Humberto Maturana, onde nós, indivíduos humanos responsáveis, estamos em tudo isto, que podemos ser tão facilmente manipulados por outros humanos através de seus argumentos de geração de progresso no desenvolvimento do poder da máquina, enquanto eles satisfazem suas próprias ambições, desejos ou fantasias?” (MATURANA, apud MAGRO; PAREDES, 2001, p. 189).

Eu, robô? Deveríamos indagar a nós mesmos. Vejamos: uma coisa é uma prótese que substitua, por exemplo, um membro danificado ou ausente, mas qual o limite de intervenções a que o corpo pode se submeter sem correr o risco de se arriscar a invadir uma zona perigosa de perda de identidades fundamentais? Ou seja: até que ponto eu (qualquer eu) permaneço sendo eu, se meu cérebro for transferido para outros dispositivos, híbridos, derivados das chamadas tecnologias úmidas, por exemplo, um foguete ao qual meu cérebro se conecta, como propõe Stelarc? O robô para o qual minha 133


consciência será transferida, como quem insere um disco num aparelho, ainda serei “eu”? O corpo puro: o eu como imagem virtual No entanto, as próteses, mecânicas ou eletrônicas, representam apenas o penúltimo capítulo, industrial, de uma história que já passou à fase seguinte: pós-industrial, sob influência ainda mais drástica do paradigma virtual. Segundo Paul Virilio, com o colapso das distâncias, a contração imóvel [...] atinge em primeiro lugar o corpo deste homem válido superequipado com próteses interativas, cujo modelo passou a ser o inválido equipado para controlar seu meio ambiente sem se deslocar fisicamente. (VIRILIO, 1993, p. 115)

De fato: de que serve ser superdotado fisicamente por próteses que multiplicam a eficácia de sua ação no mundo, se você não vai mais se levantar da frente da tela do computador? David le Breton observa que, nesta perspectiva, [...] o corpo não é somente um acessório a ser retificado; percebido como um anacronismo indigno, um vestígio arqueológico ainda ligado ao homem, é levado a desaparecer para satisfazer àqueles que buscam a perfeição tecnológica (LE BRETON, 2003, p. 211).

Eis aí o paradigma final: transparente à ação de tais forças, o corpo, que já tinha sido previamente coisificado, passa a almejar agora sua própria desmaterialização, tornando-se, assim, habitan134


te virtual de uma realidade idem, corpo puro, avatar intangível a qualquer gesto do mundo real, que, de resto, poderia, em última instância, igualmente desaparecer. Será que, na vida cotidiana, o real [não] é muitas vezes apreendido como virtual e este hábito mental [não] tem uma incidência sobre o mundo virtual criado pelas imagens digitais? Será que a palavra “virtual” que designa um “outro” real no ciberespaço, liberta-se por isso de sua antiga denotação? (JEUDY, 2002, p. 160),

indaga Henri-Pierre Jeudy: a comparação entre as duas acepções da palavra “virtual” aponta para o fato de que esse novo “real”, o ciberespaço, configura-se a partir de uma possibilidade já aberta pela consciência anterior de nossa dualidade corporal e incorporal. O perigo está no risco de confusão entre as duas instâncias e de dificuldade de distinguir entre elas, que o feedback do paradigma virtual impõe a nossa consciência. Exemplo: num videogame, o usuário pode agir inconsequentemente, à medida que, finalizado o jogo, ele poderá aparentemente retornar sem problemas a sua vida real, deixando para trás tudo o que realizou virtualmente. Pode inclusive “morrer”, isto é, “perder vidas”, porque sempre terá outras sobressalentes. Já na vida real “game over” é game over mesmo: fim de jogo, literalmente... Já podemos vivenciar parcial e momentaneamente esta experiência do esquecimento de nossa própria corporalidade quando, ao imergir num universo virtual compartilhado, saímos de nós mesmos, de modo semelhante ao que acontece no escuro do cinema, quando nos tornamos apenas um olho que vê, enquanto o resto 135


do corpo é abstraído. Com a seguinte diferença, no entanto, como aponta Jeudy, [...] posso sempre passar da realidade presente ao mundo virtual, que me oferece um outro real, mas meu próprio corpo não deixará jamais de me trazer de volta à prova de sua virtualização.[...] A imersão em uma rede, como a da Internet, é a maneira de esquecer totalmente as imagens do meu próprio corpo sentado em frente à tela, mas, em um momento furtivo essas imagens voltarão (JEUDY, 2002, p. 160).

A reversibilidade do “movimento de virtualização”, isto é, “a passagem do real ao virtual”, continua Jeudy, “é condição primeira do gozo em todas as modalidades de irrealização do corpo” (JEUDY, 2002, p. 160). Logo, a menos que, num processo de absolutização desse novo feedback, esse movimento (de virtualização) “desapareça para as próximas gerações, supondo-se que o virtual se torne o único modo de ligação com o mundo e com as coisas” (JEUDY, 2002, p.160 - 161), devemos permanecer ainda capazes de nos desdobrar entre as duas condições. “Em que medida meu corpo pode suportar os efeitos de sua própria irrealização?” (JEUDY, 2002, p. 161), indaga Jeudy, observando que, assim como os heróis e heroínas virtuais não despertam sentimentos de inveja ou despeito em seus fãs, já que, não sendo “reais” não podem acentuar por comparação diferenças físicas em relação a estes, [...] meu próprio corpo em imagens sintéticas separa-se de mim, sendo ao mesmo tempo meu duplo figurado [...] A imagem sintética não me oferece meu outro; faz de minha ima-

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gem, após sua separação, uma imagem-objeto sobre a qual os outros podem agir e eu também (JEUDY, 2002, p. 165).

Doravante, seria preferível talvez que me metamorfoseasse de uma vez por todas nesta imagem? Como observa David le Breton, [...] o computador transforma-se em parceiro na vida, em companheiro, em abertura para o mundo. O internauta que o percebe como uma máquina pensante e viva chega às vezes a suspeitar que ele próprio está encerrado em um corpo, cujas possibilidades são terrivelmente limitadas; sonha fundir-se com a máquina, dissolver-se nela a fim de não [... ter] de se preocupar com um corpo que o lembra o tempo todo de seus limites. Sua hibridação com a máquina, se um dia fosse possível, resolveria seu problema” (LE BRETON, 2003, p. 155).

Na impossibilidade atual de realizar plenamente este intento, muitas pessoas em todo o mundo já vivem os sintomas de uma síndrome que as impede de sair dos próprios quartos, onde se mantém conectadas por meio do computador em linha com o mundo exterior, em negação ao mundo real, inclusive às vezes até mesmo a própria família, tal o pânico gerado pela perspectiva de qualquer retorno à vida real e à fisicalidade de seus encontros. O Outro virtual Se os processos de objetificação do próprio corpo já estão em curso, com a consequente ideia de que toda e qualquer manipulação é possível e até mesmo desejável, entra em jogo neste processo outro aspecto da nossa realidade: o social. 137


O Outro passa também a ser percebido não como sujeito de sua própria existência, mas como um objeto que só precisa ser levado em consideração quando se apresenta como obstáculo à continuidade da ações de uma existência egoística e autocentrada. A violência contra o Outro também pode ser explicada assim: se me aparece como empecilho, impedimento, tem que ser posto de lado e até mesmo destruído. Muitas vezes isto é feito com a frieza com que se destrói uma coisa ou se “deleta” uma imagem. Como num videogame, em que se liquidam os inimigos que impedem que se prossiga na perseguição ao objetivo principal — atingir as fases imediatamente seguintes —, familiares podem ser mortos por adolescentes; namoradas por namorados rejeitados, para citar apenas alguns exemplos típicos de situações em que indivíduos se recusam a aceitar quaisquer limites à continuidade de um viver em tempo real, sem culpas nem responsabilidades — sem passado nem futuro — autoprogramado à imagem e semelhança da hiperespacialidade vivenciada pela prática daqueles games. Jean Baudrillard atribui a esta familiaridade com a instantaneidade do tempo real a facilidade com que a criança e o jovem se relacionam com a música, a eletrônica, a droga: “o isolamento psicodélico não a assusta” (BAUDRILLARD, 2002, p. 53). De fato: o que caracteriza o vício — em drogas ou videogames — senão o aprisionamento a um estado de suspensão de todas as ligações ontológicas do ser consigo mesmo, na exigência recorrente de alívio do fardo da responsabilidade existencial envolvida em ser? Nesse processo de coisificação do Outro, a morte real que se anseia por abolir só pode, aliás, ser a própria, já que, em coerência com a lógica desse processo, a morte do outro passa a ser igualmente banalizada, como passagem inócua do estado de uma coisa 138


a outra, ou, ainda mais, da passagem de um estágio do processo de metamorfose de uma imagem para outra. Manifestação sintomática dessa tendência é o grande afluxo de multidões gerado pela exposição Body Worlds dos cadáveres plastinizados pelo anatomista alemão Gunter Hagens, que atraíram “mais de 14 milhões de pessoas em oito países” (COELHO, 2004, p. 83) numa paródia macabra da arte contemporânea. Segundo Teixeira Coelho, “body worlds leva quase às últimas consequências a lógica geral da atual sociedade humana, em toda parte: a ‘objetificação’” (COELHO, 2004, p. 85). Aqui a vida retorna como farsa e os corpos desses “mortos-vivos” imitam, poderíamos dizer, macaqueiam - em quadros estereotipados, as vidas dos “vivos-mortos” que se extasiam com essa identificação espe(ta)cular. Espectro, espetáculo, espelho: Virilio aponta significativamente o radical comum que exprime na origem etimológica esta “avidez” (VIRILIO, 1994, p. 93) de tudo devassar a uma visibilidade total que recusa quaisquer opacidades. Escândalo, se o escândalo ainda fosse possível numa era em que nada mais escandaliza, muitos desses corpos foram doados em vida por seus próprios “donos”. Estranho epitáfio o desse narcisismo espectral que se quer exibir em espetáculo após a própria morte. O pior de tudo talvez seja o fato de que famílias inteiras acorrem a este espetáculo macabro da banalização da dignidade do Outro, levando suas crianças a participar inocentemente de um jogo que é tudo menos leve e divertido como um passeio de fim-de-semana deveria ser. Se passamos a conviver com Outro como coisa e em seguida como imagem, a exibição desse Outro coisificado, como cadáver, fascina pela sua própria aparição como coisa, se o horror e a indignidade da operação não se evidenciar à nossa consciência. 139


No triste espetáculo de sua exibição, estes mortos, se adequam agora ao modo de ser próprio à coisa: ex-humanos, menos que humanos, esses tristes simulacros apresentam-se agora em sua nudez macabra como manipuláveis, inertes e totalmente transparentes e penetráveis à curiosidade de um olhar que se pretende onipotente mas que é apenas impotente. Conexões Virtuais Da coisificação à virtualização, os contatos interpessoais, coerentemente com tais processos de feedback, também tendem a tornar-se mais e mais virtuais. Moldada pela percepção do Outro como simples estímulo em tempo real, seja televisível, telefônico ou em rede cibernética (telemático), a convivência com o outro se metamorfoseia. Por um lado, deixa de ser propriamente con-vivência; por outro, dilui-se a alteridade, o diálogo tende a se tornar monólogo, de um si para consigo mesmo, que nem mesmo está mais propriamente em si. Sobrevêm então a simulação da presença de um outro, que, mesmo que esteja presente aqui e agora, me aparece como imagem, a partir de uma certa distância que não depende mais de sua posição real, já que estará ou não “agora”, na única realidade que interessa, a que se dá em tempo real, ou seja, na “ausência de distância temporal entre a realidade do evento e sua reduplicação em imagem” (JEUDY, 2002, p. 167)? David le Breton resume um conto de Bioy-Casarès, “A Invenção de Morel” que capta com extrema propriedade e acuidade a essência do problema, prefigurando “os imaginários telemáticos do amor sem corpo” (LE BRETON, 2003, p. 170):

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Em uma ilha deserta e inóspita, um fugitivo se esconde de um grupo de homens e mulheres lá instalados. Em várias ocasiões ele vê uma jovem, Faustina, por quem se apaixona perdidamente. Mas ela parece jamais vê-lo, mesmo quando ele lhe declara sua paixão, surgindo diante dela em uma trilha. Da mesma maneira ele permanece transparente aos olhares dos outros ilhéus quando é surpreendido por eles – ninguém jamais parece vê-lo. O fugitivo logo compreende que aqueles homens não existem naquela dimensão do mundo, apesar de seus movimentos, de suas palavras, de sua materialidade. São simulacros que dispensam vigorosamente uma ilusão de vida. Morel, o proprietário da ilha, é o inventor de uma máquina que registra e em seguida projeta no espaço momentos de sua existência com todas as aparências da realidade. Sem seu amor ser retribuído, amava Faustina e, para garantir a eternidade de sua presença ao seu lado, filmou, às escondidas, seus amigos e Faustina, impondo-lhes a imortalidade indesejável de uma semana que recomeçava eternamente. Mas aos poucos a máquina destrói o que registra. Assim, os protagonistas desse tempo infinito morrem pouco após ser filmados. Despeitado, mas ainda apaixonado, o fugitivo mistura-se então com as imagens, dorme ao lado de Faustina, segue-a em seus deslocamentos etc. Querendo ir ainda mais longe, consegue penetrar nos mecanismos da máquina e filmar a si mesmo para entrar, por sua vez, no mundo das imagens materiais e vincular para sempre sua vida à de Faustina . O preço é a morte, ele sabe, mas esta não conta, porque ela é “a condição necessária e a garantia de contemplação eterna de Faustina (BIOY-CASARÈS 1973, p.10 - 18 apud LE BRETON, 2003, p. 170 - 171).

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O sacrifício do corpo é pouco para esse homem, que estima que o erro na busca da imortalidade “é manter vivo o corpo inteiro. Bastaria tentar conservar apenas o que interessa à consciência” (LE BRETON, 2003, p. 171). Bioy Casares parece referir-se metaforicamente a várias das questões relativas ao processo de feedback do virtual sobre o real tratadas até aqui: assim quando diz que “aqueles homens não existem naquela dimensão do mundo”, podemos ler que somos nós que, contaminados pelo modo de ser da imagem, desaprendemos a existir como habitantes do mundo real. Quanto ao apaixonado que quer “garantir a eternidade” da presença de sua amada, ele agora só pode fazê-lo como imagem, isto é, como um Sísifo virtual apaixonado, que, condenado à tirania em tempo real da “imortalidade indesejável de uma semana que recomeçava eternamente”, é obrigado a reconquistá-la a cada nova semana. Por outro lado, se viver virtualmente passa a ser submeter-se a um processo de desrealização, logo, “os protagonistas desse tempo infinito morrem pouco após ser filmados”. E se o ser não pode mais deixar de ser “ser-com-as-imagens-dos-outros”, só resta ao “fugitivo mistura[r]-se então com as imagens”, consciente ou não, de que “o preço é a morte”. Finalmente, considerando ser um equívoco insistir na imortalidade do corpo, ele o sacrifica, conservando “apenas o que interessa à consciência” e, pode-se acrescentar, o que é compatível com a eternidade virtual do tempo real. A situação narrada não é muito distante da vivida por tantos que se apaixonam por imagens de atores e atrizes; apresentadoras de programas televisivos ou telejornais; cantores; e até jogadores de futebol, passando a viver a histeria de uma paixão movida por ilusões e miragens provocadas pela tirania da imagem, irrealizável 142


por princípio e definição. Este é o preço que se paga pela imersão inconsciente na realidade influenciada pelo paradigma das imagens técnicas, em especial a virtual. Interrupção Imediata da Comunicação: “Os protagonistas desse tempo infinito morrem pouco após ser filmados”: na instância desse real afetado pelo feedback das tecnologias das teles e do virtual, o próprio estatuto da morte é modificado. Se viver na virtualidade da imagem não é viver, morrer como imagem também já não é mais morrer. Do mesmo modo que, com o controle remoto, posso zapear, pulando de canal em canal televisivo, à procura ou não de um programa que desperte meu interesse e retenha minha atenção, ou posso simplesmente, apertando um botão, desconectar-me, seja da imagem televisiva, seja do acesso à rede mundial de computadores, ou, ainda, desligar o telefone e nunca mais na vida voltar a falar com determinada pessoa, mesmo morando na mesma cidade, assim também a morte de alguém que conheço, mas que não encontro frequentemente, mesmo produzindo um choque na alma no momento em que me é comunicada, me aparece abstratamente: tenho que me esforçar para me conscientizar de que aqueles contatos esporádicos simplesmente não vão mais ocorrer no mapa de meus trajetos cotidianos. A verdade da morte desse ser cede a vez à verdade da consciência vaga da impossibilidade de sua aparição no espaço real, mas não da visão de sua imagem. Recentemente, a exibição no horário gratuito obrigatório de propaganda política do programa de um partido confirmava a estranheza dessa nova instância de realidade, ao apresentar a imagem de um político recém-falecido dirigindo-se frontalmente ao telespectador em discurso inflamado, como se estivesse vivo — e “ao 143


vivo”. Estando morto, estaria, como na ilha de Morel, dirigindo-se a outros mortos? Sim, à medida que mergulhemos acriticamente na irrealidade do efeito retroalimentativo deste paradigma. “A própria morte é destituída da qualidade de real”, afirma Jeudy (2002, p. 164). Isto se explica, segundo ele, porque “a imagem virtual não se apresenta como o objeto petrificado de uma parada sobre uma imagem; ela remete à evidência fantástica de um mais além do morto e do vivo” (JEUDY, 2002, p. 164). Trata-se da extinção da morte como a conhecemos: aqui não se produz nenhuma distância entre uma imagem do que foi e a que vejo, como na fotografia, simplesmente porque o que passou, não existindo mais como realidade da imagem em tempo real, segundo a lógica do virtual, já não é mais, e tudo que é concentra-se — melhor seria dizer: dilui-se —, agora, no agora do tempo real. Se, como observou Walter Benjamin, “antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém” (BENJAMIN, 1994, p. 207), agora os próprios quartos são natimortos: em sua impessoalidade pasteurizada e estereotipada, cujo padrão é o apart-hotel pré-decorado; adquirem um aspecto virtual, tornam-se não-lugares, onde não é mais possível viver de fato nem propriamente morrer: passaram também a existir em tempo real: lugares fantasmáticos como o Bonaventure, mas habitados por um novo tipo de fantasma — vivo. O Destino do Corpo Aparecendo exclusivamente como imagem, o corpo, em sua realidade física, tende a tornar-se então elemento estranho, que o fugitivo da ilha de Morel — que nós estamos nos tornando pelo efeito de retroalimentação produzido pelas tecnologias do virtual — não 144


hesita em sacrificar. Assim, bem à medida de um retorno à noção romântica do amor como impossibilidade terrena, também a mais íntima das relações de encontro com o Outro, a relação do amor físico, sexual, é afetada pelo feedback da nova ordem virtual. Num artigo significativamente intitulado “A sexualidade como doença transmissível” Jean Baudrillard afirma que “os sexos não se tocam, não se roçam mais, não buscam seduzir-se. [...] Parece que a própria sexualidade está em causa – cada sexo estando como que afetado por uma doença sexualmente transmissível, o próprio sexo” (BAUDRILLARD, 2002, p. 69). Se, com David le Breton, concordarmos que o erotismo é uma relação de satisfação recíproca com o corpo do outro [que] implica uma confiança mútua suficiente para evitar perder-se no outro e para com ele viver um momento de intensa intimidade (LE BRETON 2003, p. 163),

como pode ainda se realizar tal satisfação se, não só o corpo do outro, mas o meu mesmo se me tornou estranho, assim como qualquer possibilidade de con-viver em qualquer nível e muito mais em “intensa intimidade” com um Outro que, doravante, nem mesmo chego mais a perceber como tal? Baudrillard observa que, agora, “tem-se medo de pegar AIDS, mas tem-se medo também de pegar qualquer coisa que se assemelhe à paixão, à sedução, à responsabilidade” (BAUDRILLARD, 2002, p. 69). Não é que se deixe de “praticar” sexo, pelo contrário, Charles Melman observa que “o sexo torna-se uma necessidade fisiológica como qualquer outra, comer, dormir, urinar” (MELMAN, 2005). No limite dessa tendência, nem se namora mais: 145


“fica-se”; de namorado/a a “ficante”, exprime-se, no modo de se referir ao parceiro, a banalização e casualidade do encontro. O sexo se esvazia, banaliza-se, transforma-se em atividade física, uma espécie de esporte entre outros e, consequentemente, os parceiros tendem a ter cada vez menos importância, na mesma medida em que sua quantidade aumenta. Essa dificuldade se apresenta porque “o contato exige de fato sair de sua reserva pessoal, submeter-se à prova do corpo e ser confrontado com uma alteridade difícil, eventualmente portadora de perigo físico ou moral” (LE BRETON, 2003, p. 176). Em síntese: é preciso arriscar-se tanto para desejar quanto para compartilhar o prazer do encontro, e é isto que se perde nestes novos encontros irreais — ainda que reais —, muito mais exibições de vaidades narcísicas que contatos verdadeiramente amorosos. Por outro lado, como observa Le Breton, “o sexo cibernético oferece as condições ideais para essa fantasia de erradicar da condição humana um corpo imperfeito e destinado à temporalidade e à morte” (LE BRETON, 2003, p.171). Prossegue ele: [...] no sexo cibernético, o outro não existe; reconhecido radicalmente em sua dimensão de engodo, ele é afastado em proveito dos signos; pura imagem substituída por um banco de dados que proporciona o sentimento do real, a sexualidade telemática inventa uma dimensão elegante e pós-moderna do onanismo, fazendo da imagem mental um resíduo arcaico em proveito da simulação, isto é, de um fora de lugar nem mental, nem real, ao mesmo tempo em que é um e outro (LE BRETON, 2003, p. 176).

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Le Breton cita a esse respeito, a opinião de J. G. Ballard: [...] acredito que a sexualidade orgânica, corpo a corpo, pele contra pele, não é mais possível, simplesmente porque nada pode ter a menor significação para nós fora dos valores e das experiências da paisagem tecnomediática (BALLARD apud LE BRETON, p. 177).

“Ballard exagera” avalia David le Breton (2003, p.177) e, sem dúvida, parece que, pelo menos por enquanto, temos que concordar com ele. Porém em que medida não estaríamos vivendo apenas uma fase inicial de um processo inexorável que, em algumas gerações, poderá vir a confirmar o diagnóstico de Ballard? Entretanto, enquanto ainda nos dividimos entre o real e o virtual, assim como em mim mesmo sou chamado a este outro que é a realidade corporal de meu ser, por meio dos [...] infinitos pequenos movimentos do corpo – coçar a orelha, o nariz, sentir dor de estômago, tossir, esfregar os olhos [que] não só me lembram a presença material orgânica do meu corpo, como também restituem os sinais tangíveis da virtualização (JEUDY, 2002, p. 161),

também o corpo do Outro é, por vezes, instado, a partir dos contatos virtuais, a apresentar-se concretamente em encontros reais. A crônica desses encontros pós-rede, ainda que recente, já está repleta de passagens em que a “dureza” do real, manifesta na realidade inesperada da presença do outro, vem produzindo e continuará a produzir decepções, desilusões e até crimes. David le Breton 147


resume um romance de J. G. Ballard que se passa num mundo em que os homens jamais [...] estão isolados – estão em contato com uma multidão de amigos ou de colegas, levam uma vida familiar que os satisfaz, sua sociabilidade é intensa, mas puramente telemática [olha o Facebook aí, gente!]. O médico herói da novela estudou sem nunca tocar num doente. [...] Um dia, esse homem teve a idéia despropositada de conhecer sua mulher e seus filhos de carne e osso. Atitude inaudita e longamente preparada, cuja primeira tentativa fracassa de maneira sinistra, o casal não conseguindo suportar ver-se realmente sem a transfiguração da imagem. Seus respectivos corpos parecem-lhes velhos e feios, repulsivos. Fogem. Uma segunda tentativa com as crianças acaba em tragédia. Dilaceram-se e acabam por matar uns aos outros. A emergência do corpo é mortal (LE BRETON, 2003, p. 211).

Essa história soa como um possível triste epitáfio de uma humanidade banida de si, por si mesma. A questão fundamental é: em proveito de quem? E outra, não menos importante: como a arte pode lidar criticamente com estas questões? Reprodução: clonagem Ecoando tanto a tentativa de abolição da própria morte quanto a desvalorização, até o limite da dissolução, do Outro, surge o desejo de reproduzir-se em igual a si mesmo, seja factualmente pela via da clonagem, seja por meio de um processo cultural de homogeneização. Neste caso, segundo Jeudy, “quer seja por razões éticas (em nome do 148


igualitarismo anti-racial), quer seja por motivos estéticos (em nome da universalidade do Belo), a transformação do corpo estranho em parte do si mesmo, pelo simples jogo das identificações, conduz a uma resolução da alteridade, ao seu aniquilamento” (JEUDY, 2002, p. 108). Ou seja, no lugar do Outro passa-se ao Mesmo, ao Igual: se não é como eu, se não me identifico com ele por não ser idêntico a mim, não posso conviver com ele, pois, mais do que não tolerar a diferença, não consigo compreendê-la, nem, portanto, aceitá-la. O espaço virtual adequa-se perfeitamente a este processo, que David le Breton define como de fim das “coerções da identidade” (LE BRETON, 2003, p. 145).. Ele narra um caso exemplar: [...] em 1985, Julie aparece em um chat, mulher idosa com muitas deficiências e que mal consegue usar o teclado de seu computador.[...] Empática, colhe inúmeras confidências de outras mulheres.[..]. De repente estoura o escândalo: Julie é de fato um psiquiatra de meia-idade, que pensou nesse estratagema para se comunicar mais profundamente com as mulheres. Um dia, de fato, ao dialogar na Internet com uma correspondente que julgava ser ele uma mulher, ficou perturbado pela qualidade da relação que se estabelecera (LE BRETON, 2003, p. 145).

Saldo final: “a revelação de sua identidade real transtorna suas correspondentes, muitas das quais dizem ter sido “violentadas”, desapossadas de sua intimidade” (LE BRETON, 2003, p. 145). Autoviolentadas, poderíamos arriscar talvez, a partir da própria ilusão que as levou a criar um referente real anacrônico — e absolutamente desnecessário dentro da lógica das comunicações virtuais — no 149


universo da rede de computadores. Autoviolentadas, ainda, pelo desejo equivocado e igualmente ilusório de reproduzir um modelo confessional privado, no espaço mais do que público da Internet. Culpa igualmente ilusória, por outro lado, do psiquiatra, que, transtornado pela experiência da perda da própria identidade e da identificação virtual com seu avatar feminino, Julie, apressa-se em ‘assassiná-la’ numa tentativa ilegítima, nos termos da virtualidade, de, em restabelecendo a verdade da conexão referencial, ocupar seu lugar, que de todo modo ficaria dali por diante inapelavelmente vago. Isto porque “Julie” não era mais que um pré-texto, um avatar, personagem programado para uma existência virtual, legítima, nos limites daquele chat em que se dispunha a interagir. Sua existência fora dali limitava-se ao modo como era reconfigurada mentalmente na recepção em tempo real, em acordo com as regras do virtual com suas correspondentes, não importando, portanto, quem de fato emitia sua participação nos diálogos. Se, nesse processo de transbordamento, em feedback, do virtual para a realidade cultural, o Mesmo, o Igual tende a ocupar o lugar do Outro, também no que diz respeito à reprodução física passa-se a pretender a perpetuação de si mesmo em novos corpos, aparentemente tornada possível pelos processos de clonagem. A intenção é descartar, assim, por um lado, a “incômoda obrigação” de se recorrer à troca com o Outro, necessária à reprodução sexuada, e operar “por conta própria”, financiando a reprodução de todos os seus genes, num processo, segundo Baudrillard, de “liquidação da reprodução sexuada e, por consequência, de toda diferenciação e de todo o destino singular do ser vivo” (BAUDRILLARD, 2002, p. 153). Retrocedemos assim, deplora Baudrillard, paradoxalmente, pelas vias da ciência e do progresso, à 150


[...] monotonia biológica do reino anterior [...], anulando a maior revolução no reino animado: a passagem da multiplicação indiferenciada, protozoária e bacterial, da imortalidade dos seres monocelulares, à reprodução sexuada e à morte imprescritível de todo ser individual (BAUDRILLARD, 2002, p. 153).

Mais uma vez: por apego narcísico a si mesmo, abole-se o amor, em nome do amor-próprio. Ignora-se, por outro lado, a evidência de que a duplicação genética não é em si só suficiente para gerar o idêntico, já que, como todo irmão gêmeo o sabe, mesmo nascendo ao mesmo tempo e de origem genética idêntica, o fator experiência, fenotípico, levado a cabo ao longo de uma existência independente, é ontologicamente determinante do modo de ser do indivíduo.

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conclusão sobre os efeitos do paradigma virtual Concluindo, poderíamos resumir assim o efeito em feedback da influência do paradigma virtual sobre o indivíduo e sua relação com o mundo: submetendo-se acriticamente ao poder do modo de funcionamento das imagens virtuais, sempre presente no tempo real da tela total do computador, o ser humano passa a tentar se identificar radicalmente com ela, evitando a própria morte, adiando-a indefinidamente para existir num eterno presente; negando seu próprio passado e história na busca angustiosa de uma eterna juventude; e, finalmente, atenuar e mesmo, se possível, eliminar todas as diferenças que constituem o Outro, até mesmo em si mesmo, numa tentativa de homogeneizar todas as imagens, aproximando-as de modelos padrões, rigorosamente controlados. Parece evidente, a esta altura, que essa vida para a qual se tende, na sua precariedade e vazio, na sua distância de tudo aquilo que há de real numa vida, com suas alegrias e percalços, perdas e conquistas e que faz com que seja tão bom viver, não é mais vida: é um simulacro desprezível, onde não há mais nada a perder, porque não há mais nada a ganhar: um show de Truman. Até onde, na ânsia de evoluir com o auxílio da tecnologia e suas próteses, o ser humano pode continuar sendo fiel a si mesmo sem deixar de almejar — o que de resto não conseguiria mesmo evitar — ampliar suas possibilidades de ser mais apto junto ao mundo e aos outros, mas também e principalmente — e aí talvez esteja o nó da questão - junto à morte? Este é o limite: o jogo da sobrevivência é sempre um jogo que se 152


joga em relação a Outrem. Este se constitui como um bicho de três cabeças: os outros, o mundo e a morte. A força vital que nos leva a lutar pela vida configura-se sempre em relação a eles. É um jogo contínuo que, por existir no mundo e com ele, não podemos deixar de jogar, mas que também não se pode ganhar de uma vez por todas sob pena de, paradoxalmente, perdê-lo de uma vez por todas, violando suas regras fundamentais: as da própria existência. O paradoxo é, pois: por excesso de apego à vida podemos antecipar o momento da morte coletiva, o fim de nós todos e, por conseguinte, de todos os mundos. Mas será que ainda está em nossas mãos decidir quando e como será nossa morte? Podemos tentar adiá-la, mas vencê-la definitivamente implicaria em derrotarmos a nós mesmos. Jean Baudrillard se indaga: “será que, diante do perigo de supremacia dos computadores, não deveríamos espalhar, nas linguagens artificiais, a mesma confusão que Deus nas línguas naturais?” (BAUDRILLARD, 2002, p. 118). A insinuação à possibilidade dessa nova Babel aponta para a necessidade de defendermos o “lugar” único do qual podemos falar, aquele de onde existimos. A questão central é: se desejamos preservar uma referência fundamental, uma última unidade atômica, isto é, indivisível, ou se prosseguiremos estendendo ao campo ampliado das responsabilidades holísticas a posição a-ética da ciência do século XX, esse “pensamento “operatório”” (MERLEAU-PONTY, 1974, p. 276), que, como apontou Merleau Ponty, “manipula as coisas e renuncia a habitá-las” (MERLEAU-PONTY, 1974, p. 275). E que outra referência poderia ser esta que não nós mesmos, como queria o velho e bom humanismo? “Mister se faz que o pensamento de ciência [...] torne a colocar-se num “há” prévio, no lugar, no solo do mundo sensível [...], 153


para nosso corpo, [...] esse corpo atual que digo meu” (MERLEAU-PONTY, 1974, p. 276), alertava Merleau-Ponty. Para isso é preciso definir os limites em que o ser humano pode flertar com outras possibilidades de existência, muitas vezes fascinantes, tais como hibridizações, ou desmaterializações, aproximando-se perigosamente da incorporeidade das imagens virtuais, sem se arriscar neste processo a perder definitivamente aquilo que era mesmo a motivação original desta aventura e deste jogo, ou seja, a própria sobrevivência de seu ser como tal, sua humanidade. De acordo com Gilles Tiberghien, estamos aqui “nas fronteiras da ética, da estética e da ciência, domínios bem distintos no modernismo [... e que] hoje novamente, se não se entrecruzam, [...] se tocam” (TIBERGHIEN, 2000, p. 174). Portanto, neste novo campo ampliado de responsabilidades, ética, estética e cognição - ciência, arte e moral - devem se responsabilizar pela busca dos limites à capacidade de reinvenção das regras do jogo do ser, do tempo e do mundo. Qual a real importância de toda esta discussão? Do ponto-de-vista da humanidade — e há outro? — é a mais importante: a que pode evitar a nossa dissolução e, consequentemente, o fim do mundo. Ora, qualquer ponto de vista é ainda um referente prévio e a virtualização total tende a dissolver, como vimos, qualquer vestígio de referentes anteriores, logo, a força de atração para a órbita desse paradigma, tende a levar, paradoxalmente, não ao achatamento, mas à ejeção final e à dissolução total do ser.

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estratĂŠgias para o virtual 157


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a lógica do aparelho: clareando a caixa-preta O que a arte — o artista — pode fazer então a partir da compreensão destes problemas? Como operar criticamente em relação à força gravitacional da lógica do paradigma virtual em sua aparente inexorabilidade? Para tentar responder a essas questões, vou recorrer mais uma vez ao pensamento de Vilém Flusser. Em seu artigo Prétextos para a poesia, ele expõe as características do conceito já mencionado acima, de “prétexto” — e “os seus sinônimos préscrição e programa” (FLUSSER, 1985, p. 18), que, na situação pós-histórica, substitui o texto, histórico, linear, unidimensional da fase histórica, como vimos. Flusser explica que “prétextos, préscrições, programas não mais tornam visível o discurso falado, mas transformam em imagem, em som e em ato o conceito pensado” (FLUSSER, 1985, p. 18). Segundo ele: [...] o propósito do escrever [textos] é publicar modelos de conhecimento, de comportamento e de vivências [...,] tais modelos (por exemplo, tratados científicos, leis e poemas) devem ser decifrados pelos leitores para que estes possam conhecer, agir e vivenciar de acordo. Trata-se de imprimir modelos sobre pessoas humanas, informá-las (no significado exato do termo). Não há como negar: trata-se de manipular pessoas humanas pelo intermédio de textos (FLUSSER, 1985, p. 18).

Já o termo “pré-texto” denominaria um “novo tipo de escrita, que escreve para máquinas”. Por se dirigir a estas, tal escrita “está obrigada a utilizar códigos adequados a ‘inteligências artificiais’” (FLUSSER, 1985, p. 18), a simulações do pensamento. 159


Em outro texto, Filosofia da Caixa Preta, Flusser propunha uma distinção mais clara entre máquinas e aparelhos: aquelas seriam instrumentos técnicos, industriais, que trabalham: “arrancam objetos da natureza e os informam”, quantos aos aparelhos, estes “são objetos pós-industriais [...,que] não trabalham [...mas] visam a modificar a vida dos homens” (FLUSSER, 2002, p. 22). Portanto, “para modificarmos o mundo segundo os nossos desejos não mais teremos de trabalhar, mas deveremos programar aparelhos” (FLUSSER, 1985, p. 18). Como vimos, a máquina fotográfica foi o primeiro dos aparelhos e, para Flusser, “o fotógrafo não trabalha, age” (FLUSSER, 2002, p. 22), ele não mais manipula objetos, mas símbolos. Ele é, portanto, “funcionário” (FLUSSER, 2002, p. 24) do aparelho: sua tarefa é esgotar o programa contido no aparelho, o que ele intenta tirando fotografias. Mas sua “escolha” é limitada pelo número de categorias inscritas no aparelho: escolha programada. O fotógrafo não pode inventar novas categorias, a não ser que [...] passe a funcionar na fábrica que programa aparelhos. (FLUSSER, 2002, p. 31)

Flusser introduz então uma importante distinção: entre o programador e o funcionário. Tal distinção adquire um peso ainda maior, político, porque, segundo ele, a sociedade pós-histórica é definida por um encadeamento contínuo de programas e aparelhos. Isso é muito importante porque explica a lógica de programação da vida pela sociedade dos aparelhos. No caso da máquina fotográfica, por exemplo, há “dois programas que se co-implicam” (FLUSSER, 2002, p. 26), hardware e software:

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enquanto objeto duro, o aparelho fotográfico foi programado para produzir automaticamente fotografias; enquanto coisa mole, impalpável, foi programado para permitir ao fotógrafo fazer com que fotografias deliberadas sejam produzidas automaticamente” (FLUSSER, 2002, p. 26).

O dado mais significativo, no entanto, é que para além desses programas há outros, de outros aparelhos, que os incluem: “o da fábrica de aparelhos fotográficos [...], o do parque industrial [...], o econômico-social [...], o político-cultural” de modo que “não pode haver um “último” aparelho, nem um “programa de todos os programas” (FLUSSER, 2002, p. 26). Isto porque: “todo programa exige metaprograma para ser programado” (FLUSSER, 2002, p. 22). Como consequência ocorre um importante deslocamento político: o poder “se dilui e se desumaniza” (FLUSSER, 2002, p. 27), o que se explica assim: “os programadores de um programa são funcionários de um metaprograma” (FLUSSER, 2002, p. 26), em função do qual são obrigados a decidir. Por outro lado, esta lógica impede que, como as máquinas, os aparelhos tenham proprietários que “os utilizem em funções dos próprios interesses”. Eles passam a funcionar de acordo com a lógica em cadeia do sistema de aparelhos, numa “hierarquia aberta para cima”. Indagar-se sobre “quem é o proprietário dos aparelhos” passa a não ter mais sentido nessa situação: “o decisivo em relação aos aparelhos não é quem os possui, mas quem esgota o seu programa” (FLUSSER, 2002, p. 26 — 27). Para Flusser, o elemento significativo no aparelho, aquilo pelo que se paga, não é o objeto duro, o hardware, mas as virtualidades operacionais contidas nas suas regras de funcionamento: seu softwa161


re: “transvalorização de valores; não é o objeto, mas o símbolo que vale”. Assim, “quem possui o aparelho não exerce o poder, mas quem o programa e quem realiza o programa” (FLUSSER, 2002, p. 27). No processo de programação por meio de prétextos, tanto o programador [...], quanto o receptor dos modelos processados por aparelhos, passam a ser muito mais livres para criticar os modelos, já que não estão mais obrigados a elaborá-los. (FLUSSER, 1985, p.18 - 19)

O prétexto vai, portanto “permitir a seres humanos um pensamento de segundo nível, [...] já que emancipará o homem para a manipulação de modelos e relegará todo pensamento mecânico para aparelhos” (FLUSSER, 1985, p.18 — 19). Referindo-se a “assim chamada ‘arte com computadores’”, Flusser observa que esta, “se se tratar efetivamente de “arte”, é [...] arte em significado novo”. Como exemplo para essa nova possibilidade ele utiliza as imagens sintéticas, que, assim como sons e até volumes (os hologramas), são produtos de inteligências artificiais “convenientemente construídas e programadas”. Já vimos, com o próprio Flusser, que estas não são imagens indiciais, são imagens “não de objetos, mas de conceitos”, e ele acrescenta: “o salto que o produtor das imagens sintéticas faz se dá sobre o abismo que separa o conceito da vivência e não sobre o abismo que separa a vivência do mundo objetivo”. Portanto, “as imagens sintéticas são sonhos superdespertos e a nossa fantasia não pode ainda sequer intuir o futuro que tais imagens nos abrem”, o que vale também para a música sintética e para hologramas. Flusser considera que esses são “modelos de vivências de tal forma novas e arrebatadoras 162


que o termo “arte” passa a não ser suficientemente forte”, já que mesmo sendo “por certo, ‘artísticos’”, são também “epistemológicos e éticos e a vivência que proporcionam é sacral, “muda o homem”. Este novo tipo de escrita, portanto, [...] programadora, imagética [o pré-texto] não substitui apenas o antigo, histórico, unidimensional, [...] mas igualmente as artes plásticas e a composição musical, já que nele o gesto de escrever, de fazer imagens e de compor música se sintetiza em nível novo (FLUSSER, 1985, p. 19).

Sem dúvida, esta situação apresenta para o artista grandes desafios. Conforme analisa Edmond Couchot e em parte já mencionamos acima: [...] o problema para o artista que se limita a manipular instrumentos se não inteligentes, pelo menos oriundos das tecnociências, é o de mudar a destinação originária desses modelos que são produzidos para produzir conhecimento e não arte, de transformar as certezas das ciências em incertezas da sensibilidade, em gozo estético e esse excesso de clareza em sombra. De fazer acordos, também, com uma e com outra. Ele terá de transcender os modelos colocados à sua disposição, ou que ele próprio imagina, ir além de sua acumulação tecnológica, não exibir - como se vê muitas vezes em manifestações dedicadas à imagem digital, em que é raríssima a presença de autênticos criadores – puras técnicas de modelização, mesmo se entupidas de inteligência artificial [o grifo é meu]. Uma soma de modelos não resulta em obra de arte.

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Os modelos numéricos são para o artista meios poderosos e limitadores: ele terá que arrancá-los de sua performatividade científica e técnica, interpretá-los e traduzi-los em seu próprio sistema simbólico (COUCHOT, 1993, p. 46).

Não estaria a posição de Couchot, no entanto, excessivamente comprometida com uma determinada noção anterior de arte e “artístico”, denotada pela menção às “incertezas da sensibilidade” e ao “gozo estético”? Qual seria então a alternativa para se lidar por hora com essa possibilidade de síntese estética, ética e cognitiva embutida na virtualidade do paradigma pós-histórico, terreno desconhecido — “pós-artístico” — no qual apenas começamos a tatear timidamente? Uma coisa parece evidente: em concordância com a opinião de Couchot, a “via realista” da computação gráfica não parece ser a resposta adequada a essas questões. Segundo Arlindo Machado, [...] as imagens sintéticas, mesmo aquelas que recebem o rótulo de hiper-realistas, são na verdade entidades tão abstratas quanto as notas de uma partitura musical. Embora muitas vezes reconhecíveis como “duplos” de coisas e seres do mundo material, elas, a rigor, carecem de referencial, ou talvez fosse melhor dizer que o referencial é o programa de que se originam. Na verdade, o simulacro digital é a expressão sensível de uma linguagem especializada, de um pensamento lógico e não pode atestar qualquer outra existência senão a do código que o engendra (MACHADO, 1996, p. 129).

Isto ocorre porque “seus referenciais mais imediatos são as equações matemáticas que lhe dão vida”. Machado observa que “a 164


realidade — como defendia Marx (a partir de Hegel) e depois toda a física contemporânea – não nos é dada pronta e predestinada, [...]: ela é algo que advém e como tal precisa ser intuída, analisada, interpretada, numa palavra representada (apresentada in absentia)” (MACHADO, 1996, p. 129). Machado refuta a hipótese de ocorrer nestas imagens um retorno à “estética da mímese, voltada à cópia das aparências e de retorno aos cânones mais ortodoxos da pintura do Renascimento. Num certo sentido”, continua ele, “há realmente um retorno a certos ideais renascentistas, não propriamente de imitação do real, mas de exploração do real, no sentido heurístico do termo”. Assim, “caminha-se no rumo das imagens “inteligentes”, imagens que se “sabem” imagens, capazes de agir sobre si mesmas, transformar-se, aperfeiçoar-se e interferir em seu ambiente, responder a ele.”. Machado esclarece que se dá aí uma desvalorização do aspecto visual destas imagens, em detrimento de seu potencial como “objetos de manipulação, estratégias de ação”. Apesar de ser verdadeiro que “sua novidade” se desloca do “que é concretamente dado a ver”, para “aquilo que Rénaud denomina sua morfogênese” (MACHADO 1996, p. 132), ou seja, “o processo é, portanto, mais importante aqui do que a imagem propriamente dita” (RÉNAUD apud MACHADO, 1996, p. 132), parece evidente que, no seu desejo de atingir um resultado “realista”, tais tentativas comportam-se de modo semelhante àquele pelo qual a fotografia, em seus passos iniciais e naturalmente ignorante de suas próprias potencialidades, procurava aproximar-se dos resultados obtidos pela pintura. Nesse sentido, Santaella e Nöth observaram que a passagem histórica de um paradigma a outro nunca se dá de modo abrupto” (SANTAELLA; NOTH, 1999, p. 175), e que 165


quando se dá o aparecimento de um novo paradigma, via de regra, esse novo paradigma traz para dentro de si o paradigma anterior, transformando-o e sendo transformado por ele. (SANTAELLA; NOTH, 1999, p. 184)

Como indica Julio Plaza, no caso das NTC [Novas Tecnologias de Comunicação], expressões de origem náutica como navegar, piratear, redes, imergir, cibernauta, etc., são utilizadas enquanto não aparecem outras. (PLAZA, 2000)

isto ocorre, ainda segundo ele, porque “a compreensão dos novos meios costuma-se fazer a partir de metáforas e conceitos de tecnologias anteriores” (PLAZA, 2000). Também a esse respeito indaga Pierre Lévy: [...] de que lugar julgamos a informática e os estilos de conhecimento que lhe são aparentados? Ao analisar tudo aquilo que, em nossa forma de pensar, depende da oralidade, da escrita e da impressão, descobriremos que apreendemos o conhecimento por simulação, típico da cultura informática, com os critérios e os reflexos mentais ligados às tecnologias intelectuais anteriores” (LÉVY, 1993, p. 19).

O mesmo acontece com a arte: o modo como ela vai tornar sensível essa lógica dependerá de suas próprias tentativas e insistências em um território ainda obscuro, que apenas essas mesmas investidas poderão iluminar. 166


Desta situação, inescapável e necessária, em que as imagens virtuais são forçadas a aproximar-se de um modo ou de outro das indiciais, derivará seu porvir, a ser elaborado a partir de seu potencial morfogenético, o que justificaria plenamente a afirmação de Rénaud de que: a novidade dessas imagens se situaria não propriamente no seu resultado-imagem, mas nos procedimentos e gestos originais (um imaginário essencialmente operatório e não mais especular) que as tornam possíveis. (RÉNAUD apud MACHADO, 1996, p. 132)

No momento, a possibilidade operacional da arte no campo das poéticas digitais aponta, portanto, para processos híbridos, onde o paradigma virtual possa germinar a partir de sua mescla com outros paradigmas. Pois, como bem dizia John Cage: “não é necessário renunciar ao passado ao entrar no porvir. Ao trocar as coisas, não é necessário perdê-las” (CAGE, apud PLAZA 1993, p. 72). Esta hibridação de paradigmas é favorecida como vimos pela disponibilidade do potencial morfogenético da imagem numérica. Segundo Couchot, sendo [...] arte dos modelos de simulação, sem dúvida, a arte numérica é antes de tudo uma arte da Hibridação. Hibridação entre as próprias formas constituintes da imagem sempre em processo, [...]. Hibridação entre todas as imagens, inclusive as óticas [...] a partir do momento em que se encontram numerizadas. Hibridação entre a imagem e o objeto, a imagem e o sujeito [...]. Hibridação ainda entre o universo

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simbólico dos modelos [...] e o universo instrumental dos utensílios, [...] entre logos e techné. Hibridação enfim entre o pensamento tecno-científico [...] e o pensamento figurativo criador (COUCHOT, 1993, p. 46 - 47).

Poderíamos acrescentar: hibridações entre os campos estético, ético e cognitivo; hibridações entre imagens, sons e linguagens verbais. No entanto, como observa Couchot, se a ordem numérica torna possível tais hibridações, “esse possível não é forçosamente provável: tudo depende da maneira pela qual especialmente os artistas farão com que tais tecnologias se curvem a seus sonhos” (COUCHOT, 1993, p. 47). Retorna então a questão: de que modo o artista operará para lidar com essa possibilidade? Se, por um lado, a simples utilização de uma nova mídia não está condicionada necessariamente, como vimos, pelo domínio total, pelo esgotamento do funcionamento dos dispositivos técnicos, mas por uma compreensão de suas potencialidades específicas em termos das implicações envolvidas neste funcionamento, não é menos verdadeiro que seja possível trabalhar questões relativas a possibilidades definidas por mídias paradigmáticas não só a distância de sua utilização direta, mas até anteriormente à sua invenção, no momento em que a compreensão em germe começa a se abrir à intuição — o que possibilita a invenção dos aparelhos — técnicos — que efetivamente virão a efetivá-la. Jonathan Crary observou que não só os inúmeros dispositivos óticos que investigavam a possibilidade de produção da imagem em movimento eram manifestações da sensibilidade de uma época pronta para inventar o cinema, mas também que, posteriormente, os espetáculos simultaneístas dada intuíram e improvisaram a possibilidade 168


de uma nova forma de arte, que viria a se realizar plenamente com a invenção do cinema falado, antecipando-se a ela (CRARY, 1991). Portanto, o artista que se propõe a investigar os efeitos sobre a percepção resultantes das transformações impostas à realidade pelas novas técnicas, não depende necessariamente da utilização direta de tais mídias. O que equivale a dizer que mesmo com um punhado de pedras pode-se investigar a natureza da lógica virtual. Como? Não me pergunte: invente! Um exemplo poderá ajudar: com o readymade, Marcel Duchamp não intuiu, como vimos, em coisas comuns do dia a dia, a fissura promovida pelo duplo fotográfico nos nossos processos perceptivos, o que foi retomado anos mais tarde tanto pelas pinturas de bandeiras e latas de cerveja de Jasper Johns quanto pela cabra empalhada de Rauschenberg?

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operações alegóricas no interior dos aparelhos Vamos tentar entender, então, o modo como a ação do artista pode se realizar neste campo. Retorno, para isso, à distinção mencionada por Flusser entre programador e funcionário. Ele explica: [...] o complexo “aparelho-operador” é demasiadamente complicado para que possa ser penetrado: é caixa-preta e o que se vê é apenas input e output. Quem vê input e output vê o canal e não o processo codificador que se passa no interior da caixa preta. Toda crítica da imagem técnica deve visar ao branqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos decifrá-las (FLUSSER, 2002, p. 15).

Se somos todos funcionários mesmo quando somos programadores, podemos ser, no entanto, funcionários críticos ou acríticos. Como lembra Flusser, [...] quem escreve precisa dominar as regras da gramática e ortografia. Fotógrafo amador apenas obedece a modos de usar, cada vez mais simples, inscritos ao lado externo do aparelho. Democracia é isto. De maneira que quem fotografa como amador não pode decifrar fotografias [...], pois [...] crê ser o fotografar gesto automático graças ao qual o mundo vai aparecendo (FLUSSER, 2002, p. 55).

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Ou seja, aparelho e programa são invisíveis ao usuário acrítico dos aparelhos: ele simplesmente os assume como estando disponíveis para uso. Logo, “impõe-se conclusão paradoxal: quanto mais houver gente fotografando, tanto mais difícil se tornará o deciframento de fotografias, já que todos acreditam saber fazê-las.” (FLUSSER, 2002, p. 55). Como observou Jean Baudrillard, [...] a multiplicação só é positiva em nosso sistema de acumulação. Na ordem simbólica, equivale a uma subtração. [...] Se um indivíduo morre, sua morte é um acontecimento considerável, enquanto que se mil indivíduos morrem, a morte de cada um é mil vezes menos importante (BAUDRILLARD, 2002, p. 156).

A possibilidade de lidar criticamente com a situação inventando um espaço de liberdade é, segundo Flusser, “jogar contra o aparelho” (FLUSSER, 2002, p. 75). Isto pode acontecer porque: 1. O aparelho é infra-humanamente estúpido e pode ser enganado; 2. Os programas dos aparelhos permitem introdução de elementos não-previstos; 3. As informações produzidas e distribuídas por aparelhos podem ser desviadas da intenção dos aparelhos e submetidas a intenções humanas; 4. Os aparelhos são desprezíveis (FLUSSER, 2002, p. 75).

Flusser crê que “os fotógrafos são inconscientes de sua práxis” e não percebem as transformações radicais envolvidas na “revolução 171


pós-industrial, tal como se manifesta pela primeira vez no aparelho fotográfico” (FLUSSER, 2002, p. 75). Mas ele aponta uma exceção: [...] os fotógrafos chamados experimentais [que] sabem que os problemas a resolver são os da imagem, do aparelho, do programa e da informação. Tentam conscientemente obrigar o aparelho a produzir imagem informativa que não está em seu programa. Sabem que sua práxis é estratégia dirigida contra o aparelho (FLUSSER, 2002, p. 76).

Porém, Flusser observa que mesmo estes não se dão conta do alcance da práxis fotográfica cuja tarefa é dar resposta “ao problema da liberdade em contexto dominado por aparelhos, problema que é, precisamente, tentar opor-se” (FLUSSER, 2002, p. 76). Portanto, seria esta a tarefa de uma filosofia da fotografia, “a única revolução ainda possível” para Flusser: refletir “sobre as possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos” (FLUSSER, 2002, p. 76). Bem, se você me acompanhou até aqui, começa a perceber que o arco lógico aberto com o argumento da introdução sobre o papel da teoria começa a se fechar. Por que de nada adianta tomar, por exemplo, uma câmera fotográfica e se dispor a tirar “belas” fotografias, que a despeito de poder sê-lo, se juntarão a milhares de outras imagens anódinas e insignificantes, ou produzir (des)interessantíssimas peças de computação gráfica, se não houver uma consciência crítica da caixa-preta do significado envolvido no operar com aparelhos. Na ausência desta, é o aparelho que opera você. Ou seja, você vai agir como todos os outros usuários inconscientes do que significa operar com aparelhos: 172


produzindo resultados idênticos àqueles que foram definidos por uma programação prévia. Ora, a arte contemporânea é rica em estratégias de deslocamento que subvertem a lógica programática dos aparelhos, em função de outras intenções. Traço de união característico dessas estratégias é o dispositivo alegórico de ressignificação já mencionado, repotencializado pelos múltiplos processos de hibridação também apresentados. A diferença fundamental entre as faculdades humanas e a dos aparelhos, pode ser explicada pelo que, segundo Baudrillard, nos distingue do computador: enquanto para nós “há um outro [o grifo é meu]” (BAUDRILLARD, 2002, p. 119), para o computador [...] nada há em face, nada de outro, [...]. Ele evolui no interior de sua própria programação. [...] Ora, é precisamente aí, para além da potência mental do cálculo, que o homem pode ter a pretensão de ser definitivamente superior – nessa relação de alteridade que se funda sobre a deposição do seu próprio pensamento [...] e é o pressuposto sutil do jogo (BAUDRILLARD, 2002, p. 119).

Baudrillard aponta para o dado fundamental que está na origem desta diferença, o corpo: [...] se tivesse mãos (olhos, sexo) [o computador] teria sem dúvida também pensamento; pensaria, em todo o caso, de outra maneira. [...] Ora, pensar é próprio do homem, mas, sobretudo, ir mais rápido do que seu próprio pensamento, graças a alguma coisa que tem a ver com seu corpo, seu sexo e, de algum modo, não passa mais pela caixa-preta do cére-

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bro. Podemos chamar isso de afeto, intuição, estratégia (BAUDRILLARD, 2002, p. 119).

Conclusão: o computador não pode ser alegorista, ou seja, não pode pensar em alternativas estranhas, “outras falas”, para ele tudo é “pão, pão, queijo, queijo” e dois mais dois nunca somam cinco: ele sabe o que sabe, conhece apenas o nível do óbvio, não pode intuir sentidos que o transcendam. Já ao artista contemporâneo, como funcionário crítico, alegorista do aparelho, abre-se a possibilidade de partir tanto de imagens fotográficas, videográficas ou numéricas, produzidas ou não por ele e que não se prendem a critérios de qualidade programados por aparelhos institucionais e estranhos a suas pretensões — o que reúne prática e teoria modernistas, por exemplo —, quanto de elementos de natureza diversa, verbal, corporal, sonora em complexos híbridos significativos. Quanto ao problema da técnica, não importa o nível de conhecimento técnico que se tem a respeito do modo de funcionamento interno da caixa-preta do aparelho: o artista opera em outro nível, de negociação entre aquilo que é preciso fazer entrar ao aparelho (input) para produzir na saída o deslocamento pretendido (output), inerente a esse processo de (re)significação. Significativa quanto a esse aspecto é, por exemplo, a distinção que faz Abigail Solomon-Godeau entre o que ela denomina “fotografia artística” e “fotografia pós-artística” (SOLOMON-GODEAU, 1984) e que, no fundo, denota a diferença conceitual que separa a fotografia moderna da pós-moderna. Para ilustrar o modo como tal distinção aparece, ela apresenta um diálogo que se passou entre o galerista Ronald Feldman e o professor de fotografia e arte moderna 174


da Universidade de Princeton, Peter Bunnell, num debate publicado nas páginas de The Print Collector’s Newsletter: RF: Bem, Peter, você acha uma Cindy Sherman interessante? PB: Eu a acho interessante como artista, mas desinteressante como fotógrafa. RF: Interessante como artista, mas não como fotógrafa? PB: Eu não a vejo levantando questões significativas em relação a seu meio. Eu acho sua imaginária fascinante, mas, do modo como eu interpreto seu trabalho, não sei como poderia incorporá-la a um discurso relativo à natureza do meio através do qual ela deriva sua expressão (apud SOLOMON-GODEAU, 1984, p. 79).

Apesar das restrições evidentes denotadas pela resposta do prof. Bunnell, percebe-se que, na sua avaliação crítica diferenciadora entre uma Cindy Sherman (veja a página ao lado) artista e outra, fotógrafa, ele demonstra distinguir entre o campo de ação da fotografia como arte (moderna) — a “fotografia artística (art photography)” de Solomon-Godeau — e uma outra possibilidade de seu uso pelo artista contemporâneo — a “fotografia pósmodernista”, de acordo com aquela definição. Segundo Solomon-Godeau a arte agora lida com “práticas fotográficas que, num certo sentido, se inventam em função do projeto específico” (SOLOMON-GODEAU, 1984, p. 82). Um projeto específico, vale dizer: um pré-texto. Mais uma vez retornamos ao ponto crucial: é disso que depende hoje a possibilidade do trabalho do artista, o desenvolvimento de uma capacidade crítica que o leve a intervir no campo da arte de modo a produzir uma diferença. Na arte e no mundo. 175


Cindy Sherman, Still de Filme sem título nº 27. À direita, Still de Filme sem título nº 35.

Em sua série Untitled Film Stills, de 69 fotografias em preto e branco, criada entre 1977 e 1980 (ilustrs.), a artista norte-americana Cindy Sherman realiza investigações sobre o problema da identidade na órbita de influência do paradigma virtual. Lidando com a fotografia como meio para suas experimentações, ela fotografa a si mesma, de modo a submeter sua própria imagem às variações estereotípicas do feminino moldadas pela cultura da sociedade de massa e assim desconstruir tais processos que incidem sobre a produção de identidades sociais, culturais e históricas geradas por esse contexto ideológico (GONZAGA, 2005).

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Andy Grunberg descreve uma situação semelhante à apresentada por Solomon-Godeau, que envolve uma irônica concomitância de acontecimentos: em 1975, John Szarkowski, diretor do Departamento de Fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e “desde 1962 uma figura dominante na definição do ambiente crítico da fotografia” (GRUNBERG, p. 134, a tradução é minha) publicava um artigo no New York Times — “Um tipo diferente de arte” era o título —, de caráter nitidamente modernista, em que defendia as diferenças da fotografia como meio em relação às outras artes visuais, acentuando ser ela “um instrumento perfeito para a exploração e a descoberta visual, mas bastante tosco para realizar as invenções da pura imaginação” (SZARKOWSKI, apud GRUNBERG, p.134). Como aponta Grunberg, a ironia — que o processo histórico havia de evidenciar — reside em que naquele mesmo momento “um número significativo de artistas que trabalhavam fora da tradição do meio estavam adotando a fotografia como um instrumento de ‘pura imaginação’” (GRUNBERG, p.134). Segundo ele, o verdadeiro “tipo diferente de arte” nos anos 70 não era a fotografia per se, mas seu uso nos limites do mundo da arte [o grifo é meu] – principalmente pelos artistas da arte conceitual e suas várias divisões (GRUNBERG, p. 135).

Pois é justamente este modo com que os artistas deslocaram a fotografia das exigências das definições do meio moderno que serve agora como alternativa para a arte que, por sua vez, em seus procedimentos mais recentes, funciona como modelo operativo junto a aparelhos na sociedade pós-histórica: não se trata de operar malabarismos criativos ao nível de software, muito menos de har177


dware, mas de intuir deslocamentos sutis que desnudem criticamente e até subvertam a lógica de funcionamento do sistema, impondo-se a ele como um Outro, crítico, que ele insiste em recusar. O artista pode então se apropriar de produtos já existentes — de outputs anteriores — como citações, que estão tão em voga — ou mesmo sugerir e dirigir a sua produção, para depois deslocar o resultado de acordo com intenções ressignificantes. Esta possibilidade operacional opõe-se de certo modo e até supera, no que diz respeito à consciência crítica, a do fotógrafo experimental de Flusser: guardando certa distância desconfiada de qualquer especialização relativa ao funcionamento técnico dos aparelhos, este “funcionário” não especializado terá como única especialidade, a capacidade crítico-subversiva de produzir deslocamentos alegóricos desestabilizadores do funcionamento do sistema. Operando assim, ele corresponderá às expectativas de funcionamento prospectivo — pro-presentativo — do paradigma virtual, reforçando seu sentido de projeção sem perder o vínculo indicial com o real e possibilitando que, pouco a pouco, se abram à compreensão todas as potencialidades envolvidas em sua plena utilização, proporcionando que se avaliem criticamente todas as consequências envolvidas em suas aplicações efetivas. Resta ainda uma última observação: ela diz respeito à modificação da natureza do input no paradigma virtual. Já me referi à distinção fundamental entre a natureza indicial das imagens captadas fotográfica ou videograficamente e as imagens sintéticas derivadas unicamente de conceitos. Ora, tais conceitos são produzidos a partir de dados captados por sistemas oriundos por sua vez de outras tantas bases conceituais. O problema embutido aí é que, em outro processo de feedback com o real, estas redes de sistemas de pré178


-textos sejam tomadas, numa euforia de matematização do mundo, de modo a serem confundidas com o próprio real e assumidas como sendo a única realidade. O antídoto possível contra este movimento de perda de contato final com o real é justamente a ênfase nos aspectos próprios ao modo de ser que nos define como humanos, que impõem uma relação de envolvimento total com o mundo, impedindo que a intuição, a afecção e o sentimento sejam abstraídos e, com eles, com nossa própria materialidade física, corporal. Ora, é justamente da preservação da possibilidade de desvelamento da verdade, para falar com Heidegger, a partir do contato estético com a imagem do mundo que depende nossa capacidade de produzir salvaguardas contra o desvanecimento da humanidade na harmonia de uma nota musical de um derradeiro e fantasmático algoritmo. Acreditem: o processo já está em andamento.

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poĂŠticas da era digital 181


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Vale a pena repetir? Vamos lá: nem tudo que se produz com os recursos da tecnologia digital é arte, nem tampouco os trabalhos mais significativos que lidam com as questões que se colocam a partir da vigência do paradigma virtual necessitam ser realizados com os meios técnicos desenvolvidos por esta lógica. Por mais interessantes que possam ser, muitos trabalhos de feiras digitais, tais como vídeos de computação gráfica, ambientes de imersão com sensores de movimento e tantos outros, não chegam a ser arte, limitando-se ao campo, muitas vezes fascinante, sem dúvida, do entretenimento. Por quê? Será este juízo radical demais, inflexível? Não: é que se trata de coisas diferentes. Para ser arte é necessário que o trabalho introduza certo grau de inquietude, de estranhamento, que desloque momentaneamente as coisas de seu lugar habitual, permitindo, assim, que se possa descortinar através desta brecha outra possibilidade do real se dar, do mundo ser, de mudarmos nossa realidade. É este poder de gerar a dúvida que faz com que a arte difira radicalmente de processos que dão continuidade ao modo como as coisas — e as pessoas — são percebidas — e, no caso das pessoas, interagem — habitualmente. Neste capítulo, veremos exemplos de trabalhos de artistas que operam na atualidade com os problemas que se apresentam a todos nós pela contaminação do real pelo virtual, na esteira dos processos de feedback da utilização dos aparelhos que invadiram nossa vida cotidiana. Alguns desses trabalhos foram realizados exclusivamente com meios digitais, outros por meio de hibridizações com outras imagens técnicas, fotográficas ou videográficas e outros ainda em linguagens híbridas com outros suportes, imagens artesanais, textos e até mesmo a realidade física do próprio corpo do artista. O importante, como vimos, no caso desses últimos, é o modo como operam criticamente no 183


âmbito das transformações introduzidas em nossas vidas pela tecnologia do virtual, assim como pela lógica da sociedade dos aparelhos. Como vimos, uma das principais modificações introduzidas na vida contemporânea pelo universo da tecnologia digital diz respeito ao encurtamento e até à anulação das distâncias — do que a prática do ensino a distância é um aspecto evidente — e o consequente aumento da capacidade de interação interpessoal decorrente. Que este ganho de aproximação não se dá sem determinadas perdas, resultantes de certo distanciamento do mundo e do Outro pelos processos de imersão no hiperespaço virtual também já foi analisado em alguns de seus diversos aspectos em momentos anteriores deste texto. As possibilidades de interação com o público proporcionadas pelas tecnologias digitais ampliaram ao extremo uma tendência presente na arte desde os anos 60 do século XX, a de lidar com sua participação direta como elemento fundamental à plena realização do trabalho. Confirmando a afirmação de Marcel Duchamp de que ao autor cabe apenas 50 % da responsabilidade em relação ao trabalho, ficando a outra metade por conta do público que o completa na recepção, os happenings de Allan Kaprow, os penetráveis de Hélio Oiticica e as instalações minimalistas, só para ficar com alguns exemplos, exigiam uma nova forma de participação, fisicamente ativa, locomotora e deambulatória, para ser de fato plenamente usufruídos (ilustr.).

Hélio Oiticica, penetrável A Invenção da Luz

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Allan Kaprow (no centro, de barba) e participantes de seu happening Yard

Com as tecnologias digitais abre-se um inusitado campo de experimentação, que multiplica esta prática interativa de modo a deslocá-la para possibilidades totalmente impensáveis anteriormente. A noção de “obra aberta”, introduzida por Umberto Eco, (1968), adquire uma nova capacidade de abrangência, à medida que o público passa, até mesmo em alguns casos, a poder intervir e redirecionar o trabalho, tornando-se efetivamente um coautor deste, em posição inédita, próxima como nunca da do propositor inicial. Quanto ao “lugar” técnico em que o trabalho do artista digital opera, temos duas possibilidades: ele pode atuar em nível de hardware ou de software. Dificilmente acontece de o artista ser capaz de operar em nível de hardware; isto implicaria em ter acesso à origem do processo, isto é, à fase de projeto que leva à fabricação do apa185


relho. Como vimos com Flusser, isto, no entanto, não é problema: tanto como programador quanto como usuário/funcionário o artista pode operar criticamente o aparelho, seja, no primeiro caso, em nível de software, seja, no segundo, por meio da produção de inputs alterados que produzam outputs desestabilizadores da lógica de repetição acrítica do sistema. Operando em nível de software, abrem-se duas possibilidades para o trabalho digital: uma offline, outra online. No modo off-line o público interage por meio de uma instalação desconectada da rede mundial de computadores, dentro dos limites do universo de possibilidades programado pelo artista, A poética se realiza à medida que tais alternativas são testadas, revelando o caráter da proposição no próprio processo de sua operacionalização. Na alternativa, online, o propositor — o artista — pode optar por ter mais ou menos controle do processo, chegando até mesmo a abrir mão completamente de qualquer poder de controle sobre os rumos que irá tomar em sua trajetória na rede. No limite, uma proposição inicial é lançada e se abre à manipulação pública de modo a configurar plenamente a possibilidade de autoria compartilhada, assim como da noção de obra aberta. Ao autor da proposição inicial cabe agora acompanhar os rumos do processo metamórfico por que o trabalho passa, podendo intervir obviamente nestes como qualquer outro participante da aventura da (re)criação digital aberta em rede. Vejamos alguns exemplos. Uma prática recorrente na arte atual é a da citação, isto é, trabalhos que fazem referência a outros da história da arte mais ou menos recente, cuja evocação torna-se constitutiva e, portanto, necessária a seu entendimento. Vídeoperformance de um ano (ou samhsiehatualizado) é um trabalho da dupla MTAA (M. River e T. Whid), fundada em 1996, que apresenta, por meio de 186


uma citação deste tipo, a questão do modo como nossa percepção de espaço, tempo e, consequentemente, nossa experiência do real, é afetada pela alteração paradigmática da imagem virtual. Para isso, o trabalho se vale de uma referência a outro anterior, da década de 70 do século XX: em 1978, o artista coreano radicado em Nova York, Teching (Sam) Hsieh decide realizar uma experiência radical: durante um ano permaneceu recluso em seu atelier, sem contato com ninguém a não ser seu assistente que tinha a função de lhe levar alimento e retirar seus dejetos e com quem não falava; para radicalizar a qualidade da experiência ele também não assistiu à televisão, nem leu livros ou revistas. O trabalho, que põe à prova o poder de resistência antes de tudo espiritual do indivíduo, diz respeito ao poder de transformação e elevação do mesmo mediante a submissão a uma prática que se assemelha aos processos milenares do ascetismo e à noção de sacrifício como meio de autotransformação, presente em várias tradições culturais, filosóficas e religiosas ocidentais e orientais. Pois bem: se você acessar http://turbulence.org/Works/1year verá em tempo real, lado a lado na tela de seu computador M. River e T.Whid habitando dois recintos contíguos, isolados cada um no seu, vivendo atos corriqueiros de uma vida cotidiana normal, tais como: dormir, acordar, comer, urinar, se exercitar, etc. Você poderá acompanhá-los pelo tempo que quiser: eles estarão lá expostos a sua curiosidade como num reality show qualquer. Um detalhe: se a soma total do tempo que você despendeu vigiando-os atingir um ano de duração, a dupla promete lhe enviar um kit da obra. Evidentemente, como você já deve ter percebido, o trabalho, cujo título é Vídeoperformance de um ano (aka Samhsiehupdate) difere radicalmente do de Hsieh, ao qual faz referência. Se naquele 187


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Teching Hsieh, The Cage Piece

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estava envolvida a duração real do período de um ano, necessária para que a experiência realizasse em profundidade sua carga de sacrifício, em busca de seu poder de transformação pessoal, agora, no campo da imagem virtual, ao substituir os processos humanos por processos de computador, os fatores se alteram radicalmente: obviamente se podemos vê-los indefinidamente na continuidade do tempo real da imagem virtual, isto não implica que estejam lá, num lugar qualquer, enquanto os acompanho. Não se trata mais de um trabalho que lide com a noção de tempo existencial vinculado a uma experiência vivencial real — e radical — como no primeiro, mas, inversamente, joga com a possibilidade de ativação dos dispositivos críticos de descrença — ou, no mínimo, de suspensão da crença automática — em relação à possibilidade das imagens virtuais se referirem a existências e existentes reais. O que é fascinante no trabalho é sua capacidade de induzir o olhar a uma percepção de uma aparência de realidade que simula a temporalidade do real e que, no entanto, se percebe não ser real, a não ser como imagem. O trabalho de Hsieh permanece presente, como referência, no horizonte da nossa mirada, como algo que talvez tenhamos perdido de uma vez por todas: a capacidade de estarmos de fato presentes na unidade de tempo e lugar de um aqui e agora, substituído por um agora absoluto do tempo real da imagem em interface, da tela do computador. Telegarden, de Ken Goldberg, de 1995, por sua vez, é um trabalho que lida com este dispositivo crítico de suspensão da crença inerente à realidade virtual, lançando-o no espaço da interação telecinética com o usuário em rede. Ou seja, agora é a própria ação a distância que entra em cena, com questões semelhantes às evocadas pela transmissão de imagens do trabalho anterior. Na prática, o trabalho sugere propiciar ao usuário a possibilidade de cuidar a distância 190


M. River e T.Whid, VĂ­deoperformance 1 ano (aka Samhsiehupdate)

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das plantas de um jardim. Na tela do seu computador, você acompanhará passo a passo os efeitos de sua ação sobre o crescimento real de um jardim, uma atraente combinação de elementos naturais com alta tecnologia robótica. “Crescimento real”? Ou não. Como no caso das imagens pretensamente “existenciais” do trabalho anterior, quem garante que as ações a distância de cuidado com as plantas estejam acontecendo de fato e não apenas virtualmente? A questão surge mais uma vez: “Como é que podemos confiar e saber se aquilo que vemos on-line é autêntico?” (TRIBE; JANA 2007, p. 46). Ambos os trabalhos operam, no modo on-line, por meio de processos de hibridização que se valem de imagens videográficas, necessárias e constitutivas à realidade do trabalho, objetivando ativar o dispositivo crítico relativamente à possibilidade de dúvida em relação a seu caráter indicial. Ação e presença, visíveis, podem ser tomadas como “reais”? Na era do virtual, pode-se crer no que se vê? Coerente com a ampliação do campo da arte, as proposições poéticas digitais podem igualmente se apresentar em processos híbridos com outros meios e linguagens, para muito além da noção restrita de arte como “visual”. Em Glasbead, de John Klima (http.// www.glasbead.com), por exemplo, o potencial de interação coautoral aberto para o usuário em rede se apresenta como manipulação, individual ou coletiva, de sons, transbordando para o campo da música. Nas palavras de seu criador, Glasbead, “uma interface musical colaborativa e persistente para multi-usuários, permite aos jogadores manipular e trocar arquivos de sample e criar uma miríade de campos sonoros e sequências musicais rítmicas”. Funciona assim: o usuário entra em contato com uma interface que apresenta uma esfera tridimensional azul com caules que irradiam de seu centro. Estes caules são de dois tipos, “sinos” e “martelos”, e podem 192


Ken Goldberg, TeleGarden

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ser acionados na superfície da esfera com o auxílio do mouse. O usuário pode carregar os arquivos de sons dos caules e controlar tom e volume por meio de anéis que os circundam, de modo a fazer música, individual ou coletivamente (TRIBE; JANA, 2007). Neste processo de divisão de responsabilidades autorais, é significativa a declaração de Klima sobre o papel de cada participante: [...] recuso-me simplesmente a fazer trabalho que compense o fato de o utilizador ser um idiota. Em Glasbead, se carregar sons estúpidos e chocalhar tudo na interface, isso soará de forma estúpida. Se considerar aquilo que carrega e aquilo que abana, então soar-lhe-á bem [...] (TRIBE; JANA, 2007, p. 54).

John Klima, Glasbead

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Esta recusa em paternalizar e infantilizar o participante demonstra a percepção por parte do autor de que a possibilidade de desdobramento da coautoria pelo trabalho de arte digital on-line não implica o esvaziamento da carga de seriedade e responsabilidade envolvida em qualquer processo criativo. Pelo contrário: não se trata aqui de facilitar as coisas ao usuário colaborador de modo a convencê-lo de estar participando de fato de um trabalho de arte, sem que seja necessário que se dê ao trabalho exigido por este fazer. Se não se esforçar, simplesmente não produzirá nada de interessante. Em outra interessante utilização do potencial de hibridização das tecnologias digitais com a música, Goram Levin produz em 2001 com Scott Gibbons, Gregory Shakar e Yasmin Sohrawardy, Dialtones, uma sinfonia de telefones celulares. Em sua apresentação no concerto no festival Ars Eletronica em Linz, na Áustria, duzentos espectadores foram convidados a registrar seus aparelhos pessoais num quiosque seguro da NET, no próprio local do espetáculo. Durante trinta minutos, os músicos atuaram como maestros, coordenando por meio de um software os tons previamente conhecidos de cada celular, de modo a manipulá-los em ondas de efeitos sonoros que culminaram com os duzentos aparelhos soando simultaneamente num final apoteótico. Segundo Levin: “Ao colocar cada participante no centro de um massivo aglomerado de alto-falantes, Dialtones torna visceralmente perceptível o éter do espaço celular” (TRIBE; JANA 2007, p. 58). O trabalho exemplifica outra possibilidade, a de se operar por meio de aparelhos em rede, no entanto off-line, isto é, não conectados com a rede mundial de computadores. Despertar a consciência do público para esta possibilidade — artística — de coordenação de resultados da utilização de aparelhos naquilo que em geral na cotidianidade passa despercebido, como erupções randômicas, é ativar pela via do sensível aquele deslocamento perceptivo de que só a arte é capaz. 195


Golan Levin com Scott Gibbons, Gregory Shakar e Yasmin Sohrawardy, Dialtones

Outro trabalho interativo que depende da participação ativa do espectador é a instalação off-line híbrida de computação-gráfica e equipamento real, The Legible City, do australiano Jeffrey Shaw. O artista instalou uma bicicleta no meio de três grandes telas de projeção; ao pedalar, o participante ativa nas telas a realidade hiperespacial de uma cidade virtual tridimensional, cujas ruas são formadas por palavras e frases (RUHRBERG et al 1998, p. 616). As possibilidades de recriação neste ambiente de imersão do programa criado pelo artista dependem do usuário, que, por meio de suas decisões relativas à velocidade e direção, cria sua própria história de interação com o trabalho e o modo como sua experiência pessoal com ele vai ser vivenciada.

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Jeffrey Shaw, The Legible City

Desta cidade-linguagem, passamos, em Entre as Palavras, da artista húngara Agnes Hegedüs, a uma situação, em que, a despeito do título e de forma aparentemente contraditória, aquelas estão ausentes. Hegedüs cria um ambiente em que duas pessoas podem se comunicar por meio de um ambiente virtual. Próximos, mas separados por uma parede real, os participantes podem se ver, mas não se tocar ou falar. Manipulando joysticks eles podem alterar a configuração de pares de mãos gráficas (um par para cada participante), de modo a experimentar alterações num processo dinâmico de recriação de códigos de linguagem substitutivos de linguagens corporais que o software disponibiliza e que se superpõem nas telas translúcidas à face real do próximo distante (RUHRBERG et al, 1998). Como vimos anteriormente, acostumados aos modos de comunicação mediatizada pela realidade virtual da interface do computador, em geral não nos damos conta deste efeito simultâneo de aproximação/distanciamento a cujos efeitos já estamos plenamente 197


submetidos. O ponto de vista da primeira foto do trabalho de Hegedüs, de quem vê de fora a situação, e sua aproximação à posição envolvida do participante, mostrada na segunda, apresentam com nitidez emblemática o problema envolvido. Ou seja: para percebermos com nitidez uma situação de modo a sermos capazes de atuar criticamente sobre ela – como artistas, por exemplo - é preciso que tenhamos um mínimo de distanciamento crítico, que nos permitirá compreender e avaliar os termos em que o problema se apresenta, de modo a sermos capazes de modificá-la.

Agnes Hegedüs, Entre as Palavras

Dado o alto custo operacional envolvido na programação de softwares muitos artistas optam por desenvolver suas poéticas em ambientes virtuais disponíveis na web. Nascido na China, em 1978, Cao Fei, por exemplo, atua no Second Life, um “universo paralelo on-line”, por meio de seu avatar China Tracy, construindo a RMB City, de 2007, “um modelo experimental de construção de um mundo utópico apoiado numa síntese caricatural e fantasiosa das contradições das cidades da China contemporânea” (FARIAS et al, 2010, p. 86). O resultado combina elementos da tradição oriental com um imaginário futurista e resulta numa estranha hibridização de ideologias opostas, a comunista e a capitalista, numa paródia 198


Cao Fei, RMB City

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ácida aos impasses, contradições e dilemas da sociedade chinesa atual, alucinados paroxisticamente. Outro exemplo de atuação que se vale de um programa disponível on-line é o trabalho HeyYou do artista capixaba Eduardo Cozendey (ilustr.). Em outra ocasião descrevi assim sua ação poética: O trabalho de Eduardo Cozendey realiza uma invasão. Por uma porta escancarada: seu avatar Heyyou é um parasita virtual de fotos alheias publicadas no site Fotolog, espécie de cortiça coletiva de fotos na Internet. Cavalo-de-tróia virtual, penetra de todas as festas, revela às intimidades sequiosas de seus quinze minutos de exposição que, uma vez na chuva, há que se molhar: caiu na rede mundial de computadores é peixe público, tarde demais para verter lágrimas virtuais sobre o leite da privacidade derramada. Aliás, num mundo dominado cada vez mais por sistemas de vigilância, big brothers, televisivos ou não [...] que fronteiras definiriam ainda o limite entre o público e o privado? Há possibilidade de fuga? Sorry, você está sendo filmado, sorria (GONZAGA, 2004, s.p.).

A operação, como as imagens mostram, é muito simples, por isso mesmo tão eficaz: pressupõe o conceito de que não há — e não há mesmo, como vimos — espaços privados na Internet — quem pensa assim se ilude — e parte para uma espécie de ação de guerrilha virtual, intrometendo-se — como imagem, virtualmente — na vida alheia. O trabalho deixa claro que ao se publicar imagens ou textos na rede de computadores, estes caem, na prática, ainda que não legalmente (e a legislação que organiza os direitos em rede é ainda muito incipiente), no domínio público. Não aceitar isso, im200


plica em correr riscos de decepções. Cozendey trata da questão de uma maneira leve e divertida: I was there, acrescenta ele, mas lá, onde? Na lógica do hiperespaço, este lá se resume à interface que se apresenta em qualquer tela de qualquer computador no tempo real de seu acesso, uma nova forma de “arte pública”, atuante num novo tipo de espaço público, o virtual, hiperespacial. Uma das vantagens do trabalho de Cozendey é a de se valer de uma estratégia de atuação que não depende de grandes recursos, à medida que se baseia num certo domínio técnico de programas de manipulação digital da imagem por seu autor, tais como Photoshop, para por em funcionamento uma ideia perspicaz e bem-humorada - mas nem por isso menos potente.

Eduardo Cozendey, Hey you

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Lógica que Helena de Barros abordou no mesmo site, Fotolog. com, desviando-a para o universo das imagens fantásticas dos contos de fadas. Na série Wonderland, seu avatar Helenbar assume o papel da Alice de Lewis Carrol, passando a habitar as ilustrações realizadas em imagens digitais que metamorfoseiam o ambiente hiperespacial no próprio país das maravilhas. O fascínio provocado por essas imagens deve muito à ambiguidade resultante da fusão de imagens fotográficas com as derivadas da própria capacidade de imaginação de cada um em uma nova realidade, própria à imagem virtual. (Você pode acessar Helenbar em http://www.fotolog.com.br/ helenbar/ ou no site pessoal http://helenbar.com/). (ilustr.)

Helena de Barros, Helenbar em Wonderland, A lagarta

Ambiguidade entre real e virtual que se faz também presente no misterioso silêncio que emana dos retratos de mulheres da artista 202


Valerie Belin, da sĂŠrie Untitled

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Orlan, American Indian Self Hybridizations

Orlan, African Self Hybridizations

Orlan, Pre-Columbian Self Hybridizations

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francesa Valerie Belin, que apresentam estranhas criaturas, híbridos de seres humanos e manequins. Estas imagens nos permitem observar a nós mesmos de uma perspectiva ligeiramente distanciada: são como nós, mas levemente estranhas, um pouco como extraterrestres humanóides nos veriam — ou como nós os veríamos provavelmente. O ser humano — nós mesmos — tão banalizado por sua reprodução pelas imagens técnicas, aqui nos reaparece como um Outro, levemente incômodo, perturbadoramente desconhecido. Outra artista francesa, Orlan, após ter realizado uma série de performances — seu trabalho mais radical e conhecido — em que — submetia a própria face a intervenções cirúrgicas conceitualmente programadas, passa a realizar em imagens digitais hibridizações de sua própria fisionomia com as de mulheres de outras origens étnicas. A iniciativa, com seu potencial de manifesto imagético-político, realiza a natureza metamórfica da proposta inicial — das cirurgias — em um meio menos radical, mas, talvez, mais apropriado — o digital — que o antigo suporte: o corpo humano. Mais uma vez o efeito de estranhamento potencialmente crítico e fundador produzido pelo deslocamento do familiar operam dentro da lógica da imagem virtual, presente aqui tanto na origem quanto no resultado (enquanto na série das cirurgias operava apenas na origem conceitual, isto é, produzindo imagens a partir de conceitos em “suporte”, a meu ver, no mínimo inadequado: o corpo humano). Atuando, como nos exemplos anteriores, no campo do retrato para reverter sua lógica, submetendo-a ao modo de funcionamento do paradigma virtual, o também francês Thierry Kuntzel, em Tu, de 1988, lida com o tempo, ou melhor, com nossa percepção visual dele, e com o modo como estaque sofre o efeito deste deslocamento. O trabalho apresenta oito fotografias de identidade de uma criança, de 205


Thierry Kuntzel, Tu

uma mesma série, ampliadas em grandes dimensões e fixadas numa parede circular. Junta-se a elas uma nona e última imagem do mesmo tamanho, que apresenta os retratos precedentes em movimento (tratamento de morphing, metamorfoseamento digital) muito lento. É importante perceber que o fato de o trabalho apresentar os retratos originais simultaneamente à imagem em movimento resultante do processo de morphing lhe confere um caráter autoexplicativo, ou seja, qualquer um que se detenha minimamente em um estado de atenção concentrada pode perceber sua técnica — constitutiva — de realização — mesmo que não domine o entendimento das etapas dos processos técnicos que tornaram possível sua realização. Acontece que o tempo de transformação de uma imagem em outra, resultante do processo de morphing, muito lento, é completamente diverso do que seria perceptível numa mudança de posição natural — real — do rosto do menino de uma pose para outra, filmado em câmera lenta (para confirmar esta diferença acesse em <www.arpla.fr/canal20/ adnm/?p=243>). Todo o encantamento que emana do trabalho deriva desta sensação: é como se a realidade virtual tivesse pousado na mais corriqueira das imagens, a da face humana, apresentando, mais uma vez, como em Valerie Belin e ORLAN, um universo aparente206


mente semelhante ao nosso, mas muito diverso, em que as imagens têm vida própria. Diante do trabalho, tentamos capturar aquilo que de tão estranho se interpõe à percepção de algo tão familiar: a metamorfose lenta e visível do ser humano na imagem fantasmática de si mesmo, imaterial e virtual, mas não irreal. O trabalho também nos mostra como nossa percepção de tempo é alterada pelo paradigma da arte virtual. Como lembra Selligman-Silva, “a revolução digital incorpora o passado no seu presente perene, no tempo-lugar da web, onde, para o bem e para o mal, não sabemos mais diferenciar o virtual do real” (SELLIGMAN-SILVA, 2007). Os efeitos desta progressiva incapacidade de diferenciar o real dos “efeitos de realidade” são investigados pelo artista sueco Ola Pehrson. Em Caçada ao Unabomber (ilustr.), apresentado na 27 Bienal de São Paulo, em 2006, ele expõe as vísceras da construção ideológica de significâncias pelos processos midiáticos. Segundo José Roca, o trabalho, cuja realização prática mistura imagens de vídeo a objetos produzidos artesanalmente, “sublinha o caráter ficcional daquilo que consideramos de ‘documentário’” (LAGNADO, Lisette; PEDROSA, Adriano, 2006, p. 192). Em entrevista com o artista, Roca indaga: [...] [em Caçada ao Unabomber] você pretendia enfatizar o fato de que as imagens que conferem verdade a uma história são frequentemente fabricadas e que, na ausência de um material real, os produtores recorrem a imagens genéricas encenações e depoimentos para construir uma história que, na realidade, é um simulacro da verdade? (LAGNADO, Lisette; PEDROSA, Adriano, 2006, p. 192).

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Ola Pehrson, Caรงada ao Unabomber

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Para responder, Pehrson opta por descrever o processo de realização do trabalho: Para esse trabalho recorri a um documentário real, mantive a trilha sonora e substituí todas as imagens pelas minhas de vídeo, filmando acessórios e construções simples, além de interpretar os diferentes papéis dos entrevistados. Tentei empregar o menor esforço para que as coisas parecessem reais, aproveitando as indicações visuais das imagens originais, refazendo-as com materiais simples e objetos reciclados. (LAGNADO, Lisette; PEDROSA, Adriano, 2006, p.192).

Grande parte do interesse que o trabalho desperta parece advir deste partido que o artista toma, no sentido de lidar com uma extrema precariedade em relação aos materiais que constroem os referentes, numa inversão de sentido em relação à produção das imagens e, também, ao fato de todo o processo ser revelado simultaneamente, imagens de vídeo e objetos. É como se ele dissesse: “veja como a coisa toda funciona”, abrindo, quase que didaticamente, para nossa apreciação crítica, o interior da caixa-preta da construção das verdades nossas de cada dia. Partindo da utilização da imagem fotográfica do real como meio para a realização de trabalhos que operam com a lógica do virtual, vários artistas se valem de processos digitais para atingir efeitos hiperrealistas que não poderiam ser atingidos de outra forma. O canadense Jeff Wall, por exemplo, constrói narrativas fictícias em imagens fotográficas extremamente detalhistas, “imagens ficcionais digitais”, na expressão de Ishii, (2008) fascinantes exatamente por dar a ver aquilo que fotografia nenhuma em sua instantanei209


Jeff Wall, Uma sĂşbita rajada de vento (after Hokusai)

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dade indicial — e menos ainda qualquer visada direta sobre o real — permitiria de forma tão completa. O fascínio deriva mais uma vez do fato de o resultado final se apresentar como imagem fotográfica, que aponta para uma relação indicial improvável, senão de todo impossível, na soma de tantos instantes significativos que se dão a ver simultaneamente na lógica do enquadramento do instante característica deste dispositivo. Observemos que se o resultado final apresentasse uma imagem pintada este efeito não seria possível, porque numa pintura este efeito é perfeitamente esperado, à medida que é decorrente mesmo do processo de construção de uma imagem realista neste meio. Como explica Ishii: [...] paradoxalmente, a unidade atingida por A Sudden Gust [Uma rajada de vento] foi conquistada fazendo uso de mais de cem imagens reunidas digitalmente. Todos os elementos, desde o volume do ar à composição em três dimensões das folhas de papel, também foram manipulados em processo digital ao longo do trabalho de um ano inteiro. De fato, a suspensão do tempo não teve origem no clique da câmera (ISHII, 2008).

Operando com recursos técnicos bem menos sofisticados, eu mesmo realizei, em 2006, um pequeno deslocamento sobre uma imagem fotográfica, de modo a instigar o observador a trabalhar com um pequeno enigma: o que incidia sobre a carga de realidade de algo absolutamente factual: o lugar, na pele, de uma mancha de nascença, no caso, minha. Na “realidade do real”, por assim dizer, onde a mancha se situa: sobre a orelha esquerda? Sobre a direita? Ou em nenhuma, sendo totalmente virtual, fictícia? A partir de uma 212


realidade trivial, uma espécie de anti-autoretrato, e com uma técnica muito simples — que poderia ser realizada adigitalmente, pela simples inversão de um negativo fotográfico no momento da ampliação — o trabalho também pretende disparar aquele gatilho do potencial crítico de desconfiança quanto à natureza da realidade visível, necessário à situação atual de vigência do paradigma virtual.

read me

head made

Ricardo Maurício Gonzaga, Read Me, Ready Me: Head Made

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ready me


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É evidente que os exemplos de trabalhos significativos poderiam continuar para muito além deste breve recorte, ampliando em muito nosso mapeamento. O mais importante, porém, é que, ao relacionar estes que foram selecionados com a argumentação teórica, você tenha em mente aquilo que é fundamental para que o artista opere revelando o funcionamento da caixa-preta da sociedade programada pela lógica pós-histórica dos aparelhos: sua capacidade crítica de perceber como — em processo de retroalimentação — nossa percepção e visão decorrente do real é afetada agora, no “extremo contemporâneo”, pelo predomínio da lógica peculiar das imagens virtuais. Acredito que a partir desta compreensão você será capaz daqui para frente, não só de interagir crítica e produtivamente com trabalhos de arte deste campo das poéticas digitais, mas também de preparar seus alunos para fazer o mesmo. Além disso, quem sabe se você não desejará agora correr o risco — e estimular seus alunos a corrê-lo também — de dar uma contribuição autoral ao campo da arte, isto é: como artista? Neste momento, em que cada vez mais a arte se hibridiza com a ciência e a ética, a responsabilidade do artista e do educador em arte é crescente. Cada novo trabalho ou cada nova abertura para a compreensão dos que já foram realizados pode significar um avanço numa caminhada: a que pode evitar, quem sabe, o risco de nos confundirmos de vez com imagens, num mundo cada vez mais dominado por elas e por sua lógica específica.

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Still do filme Avatar Direção: James Cameron 2009, Estados Unidos

Celulares no metrô de Tóquio Fotografia de Debbie Martin 2009 Japão

Still do filme O Show de Truman Direção: Peter Weir 1998, Estados Unidos

Pintura parietal Sala dos touros aprox. 17.000 atrás Gruta de Lascaux, França

Evolução da grafia dos alfabetos ocidentais Imagem reproduzida no LDI

Página de livro medieval Fólio 108v de um livro das horas (MMW 10 F 50) 1460 Retirado de: <http://www.larsdatter.com/>

Xilogravura medieval Retirada de: <http://www.isabetta.com/?p=103>

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Ambroggio Lorenzetti, Cenas da vida de São Nicola Têmpera sobre madeira cerca de 1332 Galeria Uffizi, Florença, Itália

Giotto di Bondone, A ressureição de Lázaro Afresco, 200 x 185 cm 1304 – 1306 Capela Scrovegni, Pádua, Itália

Masaccio (Tommaso di Ser Giovanni Cassai), O Tributo Afresco, 225 x 598 cm 1425 - 1427 Capela Brancacci, Igreja Santa Maria del Carmine, Florença, Itália

Leonardo Da Vinci, Desenho Estudo anatômico de braços e ombros

Antonio Pisanello, Seis macacos e um esturjão Grafite sobre papel 1430 Museu do Louvre, Paris, França

Giotto di Bondone, Entrada de Cristo em Jerusalém Afresco, 200 x 181 cm c. 1305 Capela Scrovegni, Pádua, Itália

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Jacques Louis David, O juramento dos Horácios Óleo sobre tela, 330 × 425 cm 1784 Museu do Louvre, Paris, França

Pedro Américo, A Batalha do Avaí Óleo sobre tela, 600 × 1,100 cm 1877 Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil

Édouard Manet, Execução do imperador Maximiliano Óleo sobre tela, 252 x 305 cm 1867 Galeria de Arte de Mannheim, Alemanha

Édouard Manet, Feixe de aspargos Óleo sobre tela 1880 Wallraf-Richartz Museum, Colônia, Alemanha

O público se aglomera no museu do Louvre para fotografar a Monalisa Fotografia de Jonathan Fitzsimmonds 2010 Museu do Louvre, França

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Gustave Moreau, Oedipus and the Sphinx Óleo sobre tela, 206,4 x 10,8 cm 1864 Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos

Pierre Puvis de Chavannes, Summer Óleo sobre tela, 350 x 507 cm 1873 Musée d’Orsay, Paris, França

Odilon Redon, O nascimento de Vênus Óleo sobre tela, 143,2 x 62,5 cm 1912 Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos

Claude Monet, La Grenouillère Óleo sobre tela, 74 x 100 cm 1869 Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos

Auguste Renoir, La Grenouillère Óleo sobre tela, 66 x 81 cm 1869 Museu Nacional de Estocolmo, Suécia

Robert Rauschenberg, Coca-Cola Plan Materiais mistos, 68 x 64 x 14 cm 1958 Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, Estados Unidos

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Robert Rauschenberg, Monogram Materiais mistos, 68 x 64 x 14 cm 1955 - 59 Moderna Museet, Estocolmo, Suécia

Marcel Duchamp, Fonte Ready made: urinol em porcelana, 23,5 x 18,8 x 60 cm 1917 Coleção de Arturo Schwarz, Milão, Itálisa

Jasper Johns, Bronze Pintado Bronze pintado, 14x 20,3 x 12,1 cm 1960 Museu das Belas Artes de Basileia, Suíça

René Magritte, A traição das imagens Óleo sobre tela, 62, 2 x 81 cm 1928 - 29 Los Angeles County Museum of Art, Estados Unidos

Andy Warhol, Marilyn Diptych Acrílica sobre tela, 205,4 x 289,5 cm 1962 Tate Gallery, Londres, Inglaterra

John C. Portman, Hotel Bonaventure 1974 - 76 Los Angeles, Estados Unidos Retirada de: <http://www.portmanholdings.com>

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Flyer de propaganda da Alcor Designer: Richard Leis. 2007

Stelarc, Third Hand Alumínio, aço inoxidável, acrílico, latex eletrônicos, eletrodos, cabos e bateria 1980 - 1998 (performances) Yokohama, Japão

Cindy Sherman, Still de Filme sem título nº 27 Fotografia, 25 x 19 cm 1978 Metro Pictures, Nova Iorque, Estados unidos

Cindy Sherman, Still de Filme sem título nº 35 Fotografia, 24 x 16,2 cm 1979 Whitney Museum of American Art, Nova Iorque, Estados unidos

Allan Kaprow, Yard Happening 1967 Galeria Martha Jackson, Nova Iorque, Estados unidos

Hélio Oiticica, A Invenção da Luz Penetrável 1978

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Teching Hsieh, The Cage Piece Performance 1978 - 79 Nova Iorque, Estados unidos

M. River e T. Whid, Samhsiehupdate Videoperformance 2004 - 05 Maine, Estados Unidos

Ken Goldberg, TeleGarden Instalação tele-robótica 1995 - 2004 Ars Electronica Museum, Áustria

John Klima, Glasbead Software (jogo online interativo) 1999 - 2000 Nova Iorque, Estados Unidos

Golan Levin, Dialtones (uma tele-sinfonia) Performance-concerto 2001 Ars Electronica Festival, Áustria

Jeffrey Shaw, The Legible City Instalação interativa computadorizada 1989 - 91 ZKM-Medienmuseum, Karlsruhe, Alemanha

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Agnes Hegedüs, Entre as Palavras Instalação interativa computadorizada 1995 Brucknerhaus, Áustria

Cao Fei, RMB City Cidade virtual construída no site Second Life 2007 Pequim, China

Eduardo Cozendey, Hey you Interferências em imagens digitais online 2004 Col. do artista Fotografia Márcio RM

Helena de Barros, Helenbar em Wonderland, A lagarta Fotomontagem digital 2003 Col. da artista

Valérie Belin, Sem Título Impressão com gelatina de prata montada em alumínio, 100 x 80 cm 2003 Galeria Jerôme de Noirmont, Paris, França

ORLAN, Refiguração, Auto-Hibridações Indígenas, nos 1, 2 e 6 Fotografias digitalizadas, 152,5 x 124,5 cm (cada) 2005 - 2008 Paris, França

ORLAN, Refiguração, Auto-Hibridações Africanas Fotografias digitalizadas, 125 x 156 cm (cada) 2000 - 2003

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ORLAN, Refiguração, Auto-Hibridações Pré-Colombianas, nos 2,

4, 5 e 6 Fotografias digitalizadas, 1998

Thierry Kuntzel, Tu Video e foto-instalação 1994 Galeria l’Art du Temps Paris, França

Ola Pehrson, Caçada ao Unabomber Objetos em técnica mista e vídeo, dimensões variáveis 2005 Moderna Museet, Estocolmo, Suécia

Jeff Wall, Uma súbita rajada de vento Fotografia digitalizada, 229 x 337 cm 1993 Tate Gallery, Londres, Inglaterra

Ricardo Maurício, Read Me, Ready Me: Head Made Fotografia, imagem e texto digitais, dimensões variadas 2006 Col. do artista Fotografia Márcio RM

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PoĂŠticas Digitais


Ricardo Maurício Gonzaga

é artista plástico e performático, professor adjunto do Departamento de Artes Visuais da UFES e professor colaborador do Mestrado em Artes do PPGA/UFES. Doutor em Linguagens Visuais pelo PPGAV/ EBA/UFRJ, desenvolve em arte, desde 2002, a série Read me, Ready me, que circula entre a presença em imobilidade do autor e suas duplicações em imagens técnicas - vídeo, fotográficas e digitais, de modo a enfrentar os problemas de percepção e construção de realidades e alteridades.

referências

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ISBN 978-85-8087-071-8

9 788580 870718

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www.neaad.ufes.br (27) 4009 2208


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