Pilares do Tempo

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Pilares do tempo Da Grécia antiga à Figueira da Foz, os relógios de sol apresentam uma longa história, marcada pela necessidade da humanidade medir o tempo. Embora já não sejam usados para ver as horas, podem continuar a ser ferramentas úteis de ensino TEXTOs Marco roque fotos pedro ramos e mário nicolau

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Desde o início, o poder, fosse religioso ou político, apoderou-se do tempo, através dos calendários 07JulHO 2011


Tudo está calmo na Escola Inês de Castro. As

aulas já terminaram, por isso não há rebuliço, nem o barulho dos alunos no recreio. Situado perto do Hospital dos Covões, a envolvência do edifício não é comum num estabelecimento de ensino em meio urbano: as árvores que o rodeiam dão uma cor verde ao ambiente, fornecendo sombras para fugir ao calor. No entanto, esta não é a característica mais marcante da Inês de Castro. Para além do verde, a escola é casa de três relógios de Sol. Isabel Filipe, diretora, revela que os relógios foram construídos pelos alunos e por iniciativa de um professor muito especial. "O professor Carriço desenvolveu o projeto, tinha um grande interesse pela temática, chegou a ir a várias faculdades para conseguir criar os relógios, porque para estarem certos têm de ter determinadas características, ele corria tudo para os fazer bem", avança a professora. "E o facto é que eles estão aí e são diferentes entre si (ver fotos)", sublinha. Professor de Educação Tecnológica, Manuel Carriço, já falecido, construiu os relógios como parte de outro projeto. "Eram complementares à criação de alguns azulejos, onde se recriavam figuras da história de Portugal", lembra Isabel Filipe, acrescentando que "ele fazia o desenho na pedra e ia colando os azulejos. Foi uma ideia que tinha uma componente tecnológica forte". Por isso, os relógios de Sol "também foram decorados com pedaços de azulejo". Nos arquivos do professor ainda é possível encontrar os projetos originais dos relógios e inúmeros documentos sobre a criação de relógios de Sol, alguns traduzidos à mão. No entanto, Carriço não hesitava em pedir ajuda. "Ia sempre buscar pessoas para ver se estavam a funcionar, se estavam bem construídos", conta Isabel Filipe. Hoje, os azulejos que recriam imagens de Pêro Vaz de Caminha ou Nuno Álvares Cabral continuam a adornar partes do exterior do recinto escolar. Os relógios de Sol também ainda lá estão, mas sem estarem completos. "Tivemos de retirar os ferros que criavam a sombra para marcar as horas", revela Isabel Filipe. "É uma pena que isto esteja assim, gostávamos de encontrar alguém que nos ajudasse a reparar os relógios", lamenta.

Miradouro sobre o Cabo Mondego onde se localiza um relógio de Sol abandonado

Do sol nasce o tempo No mundo dos relógios de Sol, a parte que cria sombra dá pelo nome de gnómon, que significa agulha em grego. "Estes relógios têm dois elementos essenciais - um gnómon, ponteiro ou outro tipo de peça,

que projeta sombra e um mostrador", refere Fernando Correia Oliveira, jornalista e investigador de questões relacionadas com o tempo. "Desde que, na Grécia antiga, se descobriu como afinar um relógio de Sol (colocando o gnómon em paralelo com o eixo da terra), que estes dão sempre, no local onde estão, o tempo solar verdadeiro. Um relógio de Sol (se estiver bem orientado) nunca mente", sublinha. É do Sol que nasce a medição do tempo. "Do que se conhece, foi o Sol que primeiro ensinou o homem a medir o tempo, através da observação da sombra. Os primeiros relógios de Sol conhecidos têm milhares de anos antes de Cristo", avança José Mota Tavares, que se dedica ao estudo da relojoaria mecânica. "O Homem desde sempre se preocupou com o domínio do tempo, contado durante o dia através do sol ou somente da luz, e na noite observou a lua e as estrelas e daí aprendeu a ver a passagem do tempo", completa. Mas o avanço da história não foi benéfico para os relógios de Sol. "Foram muito usados e construídos no antigo Egito, sendo posteriormente roubados pelos invasores, quer romanos, quer mais recentes. Existem gnómons do Egito em Roma, em Londres, em Nova Iorque... Tudo roubado!", conclui José Mota Tavares. Esta "tecnologia do passado" veio colmatar uma necessidade inerente ao ser humano. "Medir o tempo é tão natural ao homem como respirar", refere Fernando Correia de Oliveira. No entanto, "desde o início, o poder (religioso e político) apoderou-se do tempo, através dos calendários: os primeiros, construções tipo Stonehenge, marcadores de dias especiais no ano, os solstícios, quando o Sol atinge o ponto mais alto ou mais baixo no horizonte", conta. E a maneira como se olha para o tempo pode moldar civilizações. "Há dois tipos de interpretação temporal - cíclica e linear. As civilizações (religiões) que adotam uma leitura cíclica do tempo falam de caos, criação, caos, de nascimento, morte, reencarnação; as que encaram uma leitura linear do tempo, como as ocidentais, falam mais em progresso, em paraíso para além da morte", afirma. Até porque "o tempo, em si, não existe. Apenas damos por ele se o ligarmos ao espaço e ao poder - religioso, político, económico, científico, social. Assim, de um tempo local (como o dos relógios de Sol), passamos a tempos nacionais, internacionais, globais". Só que o tempo parece ter ultrapassado as primeiras

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Os três relógios de Sol da escola Inês de Castro são bastante distintos. O mais peculiar acaba por ser o da esquerda, que permite uma leitura da hora solar em três faces distintas. Em comum têm o facto do gnómon ter sido retirado e, portanto, não podem ser usados para medir o tempo.

ferramentas criadas para o medir e muitos dos relógios de Sol do país estão abandonados. Qual é o futuro dos relógios de Sol? No museu do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra podem encontrar-se alguns relógios de Sol antigos. E é lá que descobrimos o presente e o futuro destes relógios. "É um caso feliz que muitos professores usem os relógios de Sol para ensinar matemática", avança João Fernandes, do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra, depois de apresentar os modelos do museu. "A construção do relógio de Sol é uma atividade interessante do ponto de vista manual, mas também da matemática que lhe está associada. Pode-se aproveitar o relógio de Sol para ensinar muitas coisas, não só de astronomia mas também de matemática ou até mesmo coordenadas", diz. É na matemática

que se encontram os atuais guardiões dos relógios de Sol. "Só se consegue compreender o funcionamento de um relógio de Sol através da dedução matemática", indica João Fernandes, acrescentando que "há o fenómeno físico, que tem a ver com a rotação da Terra, mas, para transformar esse fenómeno numa hora há um conjunto de cálculos que só se podem fazer recorrendo à matemática". Até porque a leitura de um relógio de Sol, em Portugal, obriga a alguns cálculos simples de matemática. "A hora que nós temos nos relógios digitais está baseada na hora de Greenwich, calculada com o momento da passagem do sol por esse meridiano. Como nós estamos afastados meia hora do meridiano, logo, temos sempre um desfasamento de meia hora", revela João Fernandes. E o horário de verão também interfere, ou seja, até regressarmos ao horário de inverno, as 12H00 solares vão corresponder a cerca das 13H30 de Greenwich. Para além

À direita: o professor Carriço deixou, na escola, vários livros usados para construir os relógios de sol. À esquerda: um quadrante equatorial em exibição no Museu do Observatório da Universidade de Coimbra 28

disso, há mais um pequeno acerto: a equação do tempo, relacionada com o facto do movimento do Sol na esfera celeste não ser constante. "Um relógio tem de ter uma marcha constante, não pode ter minutos com tempos diferentes, o movimento aparente do Sol tem algumas variações. Para as compensar, existe a equação do tempo que, no máximo, pode provocar uma diferença de 16 minutos", completa. Devido a estes fatores, "muitas escolas propõem a construção de um relógio de Sol, devido à sua importância do ponto de vista didático. O professor pode dar toda uma aula usando como base o relógio", refere João Fernandes. Escolas como a Inês de Castro, com projetos impulsionados por educadores como o professor Carriço. No entanto, à semelhança da maioria do relógios de sol, os da Inês de Castro estão parados, neste caso sem gnómons. É à sombra das árvores do observatório que surge uma solução. João Fernandes coloca-se de imediato à disposição para ajudar a reparar os relógios da Escola Inês de Castro. Assim, pode ser que, no próximo ano letivo, os alunos vejam quanto tempo falta para acabar o recreio olhando para a sombra de um gnómon.


Há um fenómeno físico, que tem a ver com a rotação da Terra. Mas, para transformar esse fenómeno numa hora há um conjunto de cálculos que só se podem fazer recorrendo à matemática

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Mau tempo obrigou à demolição de relógio O relógio de SOL mais conhecido de Coimbra já não existe. O Pavilhão do Relógio de Sol foi construído em 2003, no Portugal dos Pequenitos, com o objetivo de "acolher, no seu interior, atividades e eventos lúdico pedagógicos". O elemento distintivo do pavilhão era, exatamente, o relógio de Sol no exterior do pavilhão. Na época, o projeto pretendia dar "início a uma nova fase arquitetónica do parque", lê-se no site da Fundação Bissaya Barreto. No entanto, o pavilhão não durou uma década, já que foi demolido em 2010. "No final do inverno existiram ventos muito fortes e a cobertura ficou danificada", revela Lúcia Monteiro, diretora do Portugal dos Pequenitos. "A própria estrutura ficou bastante danificada e a recuperação do edifício não era viável", completa a diretora. O 71º. aniversário do parque temático dedicado aos mais pequenos, trouxe novidades em relação à utilização do espaço ocupado anteriormente pelo relógio de sol. Ao que tudo indica, nessa zona, vão ser construídas

réplicas de edifícios do século XX. O Portugal dos Pequenitos foi fundado por Bissaya Barreto, com o objetivo de ser o "retrato vivo da portugalidade e da presença portuguesa no mundo". O espaço conta com réplicas de monumentos do país e das antigas colónias.


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Mini-roteiro dos relógios de sol Este verão, antes de ir dar um mergulho à Figueira da Foz, porque não aproveitar para conhecer alguns relógios de Sol? A viagem pode começar no Museu do Observatório Astronómico em Coimbra, onde pode conhecer alguns modelos mais antigos (foto 1, 2 e 3). De seguida, um curto desvio, em Montemor-o-Velho. No miradouro, para além do relógio de Sol (foto 4), aproveite o parque de merendas e uma vista pouco habitual do castelo. Chegado à Figueira, tempo de observar um dos exemplos mais conhecidos e bem

Figueira da Foz Com dez metros de altura e duas toneladas de peso, o relógio de Sol da Praça da Europa é um monumento icónico da cidade. Está enquadrado num pojeto de arquitetura paisagista, após as obras de remodelação. Em semicírculo, marca a hora solar, meses e estações do ano, assinalados pelos signos do Zodíaco.

conservados: o relógio em frente à câmara municipal tem o gnómon em forma de vela (foto 5). Ao final da tarde, nova subida a um miradouro, desta feita na serra da Boa Viagem (foto 6). A vista sobre o Cabo Mondego , faz valer a viagem e dá uma dinâmica especial ao final do dia.

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3 5 Coimbra

6 Miradouro (Torre)

Santa Clara

Miradouro (Cabo Mondego)

montemor-o-velho Praça da Europa

Figueira da foz Montemor-o-Velho

Museu Observatório

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O Museu do Observatório da UC, em Santa Clara, fornece uma boa oportunidade para conhecer diferentes tipos de instrumentos para medir o tempo através da posição do Sol. A foto número um mostra um quadrante solar equatorial. Na segunda é uma armila, também conhecida como anel astronómico. Na terceira surge um relógio de Sol universal.

A caminho do jardim zoológico, num miradouro mais resguardado, surge este grande relógio de Sol. A vista do castelo e a vila são um ponto forte, numa zona pouco visitada. E, à sombra, existe um parque de merendas para fazer uma pausa e desfrutar do bom tempo.

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