Livro "Amor e Silêncio"

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AMOR E Silêncio


AMOR E Silêncio

Até que ponto um amor verdadeiro consegue se manter no silêncio do anonimato? Esta é a história de um segredo, cujo tempo e a vida trataram de revelar.


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O

s corredores daquele colégio pareciam ao mesmo tempo tão estranhos e familiares. Eu podia quase me imaginar correndo pelo pátio, engolindo sempre às pressas a água do bebedor, quicando bola de forma atrapalhada, com medo de quebrar um dedo ou o braço, algo tão corriqueiro naqueles tempos meus de meninota, pois eu havia sido tão magrinha, os ossos frágeis demais. Quanto tempo se passara e mesmo assim tudo permanecia da mesma forma, exceto por alguns detalhes da decoração, agora um pouco menos tradicional. Mas toda a lembrança, ou pelo menos, a essência dela ainda estava lá, tão viva! Segundos antes de entrar pela porta principal da escola onde passei praticamente toda a minha infância e adolescência, eu poderia jurar que nada seria capaz de mexer realmente com as minhas emoções, provocando devaneios sentimentais do passado. Pois afinal, já era uma mulher madura, bem casada e em ligeira ascensão profissional. Digamos assim, a vida até que estava caminhando relativamente bem e sem aqueles sentimentos exageradamente românticos que costumam rondar o dia a dia das meninas coquetes. No entanto, apenas segundos depois, me perguntei se estava ou não enganada. Andando pela escola, vi a cantina, o grande teatro, a biblioteca e o laboratório de ciências. Passei os olhos demoradamente por uma sala de aula em especial e, aos poucos, eles ficaram mareados. Admiti para mim mesma que, afinal, mesmo com toda a bagunça pela qual passava a minha mente naqueles tempos adolescentes meio malucos, tratava-se de uma época em que eu descobria verdadeiramente minha própria identidade.


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Tentei retomar o passo tranquilamente, caminhando de mãos dadas com minha filha. Karina sempre fora tão doce, e até hoje estou em todos os momentos a pensar que ela sempre cativa a todos com sua vivacidade contagiante. Coisas de mãe coruja. Orgulhei-me de poder lhe proporcionar a chance para que ela pudesse, já aos cinco anos, estudar em uma das melhores instituições de ensino da cidade, cujo acesso é permitido somente aos filhos de ex-alunos com históricos de boas notas. Observando-a caminhar tão altiva, torci para que mantivesse no futuro a mesma postura confiante. Procurei distrair a mim mesma com simples divagações, mas realmente não houve jeito: bastou passarmos em frente à sala dos professores para que muitas lembranças começassem a surgir. E me vi novamente com meus inesquecíveis quinze anos. Estava afobada, com a respiração irregular e os nervos à flor da pele após ter me dado consideravelmente mal em uma prova de química. Estudando até altas horas e com a mente embotada, eu não havia dormido nada na véspera. E então, lá estava ele, segurando carinhosamente minhas mãos, fazendo-me esquecer qualquer responsabilidade ou lógica. Meus pés pareciam flutuar e nem sequer tocavam um milímetro do chão. Estava assim, meio tonta, não sabia se pelo cansaço em si ou pelo ardor do momento. Ou as duas coisas juntas. Eram tantas as recordações, ao mesmo tempo suaves, ao mesmo tempo turbulentas. Mas um puxão no meu braço direito me fez voltar bruscamente ao momento atual. — Vamos logo, mamãe. Não vejo a hora de fazer a matrícula. Assim, já vou poder brincar naquele parque enorme, não é? Aos cinco anos, Karina tinha toda a energia ao seu dispor para saltitar ininterruptamente de lá para cá, encantada com os versáteis playgrounds, as quadras e as abundantes áreas verdes da escola. Estávamos entrando na secretaria, quando percebi minhas pernas bambolearem de uma vez só, numa tremedeira instantânea. Meu Deus, o que ele estava fazendo ali? Eu já havia me informado sobre o quadro de docentes e sabia que aquele professor em especial não lecionava mais na escola havia muitos anos. De repente, porém, tudo pareceu meio turvo e eu já não entendia mais se estava sequer acordada. Ele também percebeu a minha presença, imediatamente. Aos poucos foi se aproximando com aquele sorriso maroto tão familiar e, à medida


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que isso acontecia, pude perceber, com surpresa os seus cabelos quase completamente grisalhos, as inevitáveis marcas de expressão e rugas da idade. Quantos anos deveria ter agora? Uns sessenta e três? Sim, um pouco mais velho do que o meu pai. Ele tinha uma boa aparência, envelhecera com dignidade. E parecia feliz por me reencontrar. — Sua filha é realmente linda – disse simplesmente, enquanto eu não sabia nem como fincar os pés no chão. — Obrigada – respondi muito sem graça e notei que estava ficando corada. — Como ela se chama? — Karina. — Gostei do nome. E então, Karina vai estudar aqui? — Parece que sim. — Parece, não! Eu vou! – Karina se intrometeu e, sem mais nem menos, agarrou as mãos dele. — Ei tio, você pode me levar para conhecer aquele parquinho ali? Ele concordou e saíram andando de mãos dadas. Ver os dois assim juntos era algo pelo qual eu realmente não esperava ao acordar naquele dia que, à primeira vista, parecia comum como qualquer outro. Achei desconcertante. Como não havia outro remédio, fui caminhando vagarosamente atrás deles. — Sua filha é realmente encantadora. Muito parecida com o pai, mas tem a meiguice da mãe – ele observou pensativo. Agradeci com um gesto cordial, tentando parecer muito educada, quando de repente um turbilhão de palavras começou a eclodir, meio sem permissão. — Você sabe, eu realmente tentei entrar em contato com você durante alguns anos... Queria apenas saber como estava. Mas seu nome havia desaparecido de todas as listas telefônicas. — Eu andei antissocial por um tempo – de repente, ele segurou minhas mãos de uma forma carinhosa. – Mas fiquei sem entender por que você simplesmente sumiu depois daquele concerto.... — Você nunca me dizia nada, quer dizer, que expressasse algo sobre seus sentimentos, sobre nós... – eu respondi sem pensar.


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De forma brusca e repentina, ele soltou as mesmas mãos que havia tomado com delicadeza. Parecia, então, estar me estranhando. Ele continuava mesmo esquisito. — A vida sempre segue seu rumo, não é mesmo? – disse, numa animação que parecia pouco natural para o momento. — Pena nos reencontrarmos somente agora. Eu gostaria que pudéssemos conversar mais. — Não há mal algum em conversarmos um pouco mais. — Não agora. Eu tenho um voo a tomar daqui a exatamente quatro horas. Estou me mudando para a França. Então, finalmente, ele iria realizar seu grande sonho de lecionar História no exterior! — Vai mesmo mudar de país? – perguntei, tentando esconder certa decepção. — Ganhei algum dinheiro com a venda de meus livros didáticos nos últimos tempos. E decidi arriscar. E você, continua em busca daqueles seus sonhos de adolescente? Continua encantando as pessoas com sua voz? — Na verdade, tenho praticado pouco o canto e me apresentado só para os amigos mais chegados. Não tenho tempo para isso. Acho que era mesmo um sonho maluco! E agora trabalho demais na redação daquele jornal. — Eu acompanho algumas de suas matérias de vez em quando... — Também li alguns dos livros que publicou. Eram a minha única notícia sobre você. — Não deixe de cantar, menina! Eu sinto falta daquela sua voz... E, trabalhe menos... passe mais tempo com aquela pequena joia ali – disse, apontando para Karina. — Não sou mais tão menina. — Quer me acompanhar até o aeroporto para conversarmos mais um pouco antes do voo? O quê?! Eu tinha acabado de reencontrá-lo e ele iria novamente desaparecer para sempre? Mas o que eu poderia fazer? Nossas vidas pareciam mesmo ter seguido rumos diferentes. Tinha apenas segundos para pensar. Eu queria tanto conversar um pouco mais com ele. Quem sabe teria sido a ocasião perfeita


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para preencher certas lacunas que ficaram perdidas no tempo e no espaço... — Eu até que gostaria, mas não posso agora. Karina está comigo e preciso levá-la ao balé. Ela está ensaiando para uma apresentação importante – percebi que eu estava gaguejando ao inventar uma desculpa qualquer. Pronto! Havia perdido o instante. Não iria ao aeroporto, embora fosse só o que eu desejasse naquele momento. Notei que ele ajeitava seus pertences para partir imediatamente. As palavras saíram de minha boca, antes que pudessem ser bloqueadas por qualquer racionalidade: — Se eu lhe fizer uma única pergunta, você me responde com sinceridade? — Pode perguntar. — O que, afinal, você sentia por mim? Ele retirou um cartão do bolso e o colocou em minhas mãos, afagando-as levemente, como se permitindo um último carinho. — Aqui está o meu novo endereço. Venha me visitar em Tours um dia, se puder. Eu gostaria muito. De verdade. Tantos anos haviam se passado, e ele já estava com incontáveis rugas no rosto... Mas a dificuldade em falar sobre os próprios sentimentos continuava a mesma. E lá se foi apressado, apenas com um breve aceno. Fiquei olhando incrédula a realística imagem daquele senhor de idade. Já a certa distância, era curioso como ele parecia completamente um desconhecido para mim. Eu já não podia, então, reconhecer aqueles olhos negros tão brilhantes de outrora, onde, se mirados bem a fundo, talvez deixassem resplandecer vestígios daqueles sentimentos ardentes do passado.


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