Etica da alegria

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morgana masetti

Ética da alegria no contexto hospitalar

2ª edição


Copyright © 2000 Morgana Masetti Copyright © 2015 desta edição, Letra e Imagem Editora. Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Revisão: Patrícia Sotello Ilustrações: Paulo Von Poser

Morgana Masetti Ética da alegria no contexto hospitalar / Morgana Masetti; ilustração de Paulo Von Poser. – Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2014. ISBN 978-85-61012-43-4 1. Crianças – Cuidados hospitalares 2. Crianças doentes – Psicologia 3. Crianças doentes – Recreação 4. Felicidade em crianças 5. Hospitais – Aspectos psicológicos 6. Terapia recreacional para crianças. I. Poser, Paulo Von. II. Título. CDD 610 CDU 362.1083

www.foliodigital.com.br Folio Digital é um selo da editora Letra e Imagem Rua Teotônio Regadas, 26/sala 602 cep: 20021-360 – Rio de Janeiro, rj tel (21) 2558-2326 letraeimagem@letraeimagem.com.br www.letraeimagem.com.br


sumário

Apresentação 7 Humanização: verniz para o capitalismo médico? 9 O olhar do palhaço 17 Discursos cifrados 27

A força dos encontros 31 O palhaço, o que é? 43

A poesia, no hospital 53

Visão dos personagens 59

Você pode segurar minha galinha? 73

Sobre a pesquisa realizada de 1994 a 2015 83 Quem são esses Doutores da Alegria? 119 Bibliografia 121

Sobre a autora 125



apresentação

Ética da alegria no contexto hospitalar resulta do trabalho e das observações que a psicóloga Morgana Masetti realiza sobre os

processos vividos por pessoas que estão sob tratamento em ins-

tituições hospitalares.

Sua inquietação a respeito da eficácia do papel que deveria

exercer nesse ambiente e as dúvidas sobre a forma como poderia se aproximar dos fluxos das experiências vivenciadas pelas

pessoas internadas começaram a encontrar respostas quando

conheceu Wellington Nogueira, um artista que atuava como pa-

lhaço com crianças hospitalizadas.

Ao vê-lo como Dr. Zinho, médico besteirologista interagindo

com os jovens pacientes, começou a perceber um pulsar dife-

rente nas relações que se estabeleciam naqueles quartos e corredores. Desde então, a autora exercita uma reflexão cotidiana

sobre o trabalho dos Doutores da Alegria, uma entidade sem

fins lucrativos, fundada em 1991, reunindo artistas profissionais

que desenvolvem sua arte em hospitais nas cidades de São Paulo,

Rio de Janeiro e Recife. Esse esforço de reflexão, o convívio com

artistas e profissionais da saúde e o testemunho dos aconteci-

mentos ao longo dos anos resultaram, em 1998, no livro Soluções de Palhaços – transformações na realidade hospitalar (Ed. 7


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ética da alegria no contexto hospitalar

Palas Athena), em que se relatam as histórias dos encontros en-

tre os palhaços e as crianças.

Agora, com seu novo trabalho, concebido inicialmente como

sua Dissertação em Psicologia Social, Morgana Masetti avança

em seus questionamentos, busca indícios das transformações

que ocorrem com os profissionais de saúde influenciados pela atuação dos Doutores da Alegria.

Seu maior desafio, entretanto, é apontar ao leitor os princí-

pios em que esse grupo de artistas baseia-se para interagir com o ambiente hospitalar, como constrói seus valores e sua ação, e quais os fatores desse universo que podem auxiliar na qualidade

das relações estabelecidas nos hospitais e no desenvolvimento do modelo médico atual.

Ética da alegria no contexto hospitalar fala-nos de encontros.

Mas procura, sobretudo, questionar se o trabalho desenvolvido

pelos Doutores da Alegria pode incentivar os médicos, enfermeiras e demais profissionais a adotarem uma ética da alegria em suas práticas profissionais.


Humanização: verniz para o capitalismo médico?

“Por mais que o homem se estenda em seu conhecimento, por mais objetivo que pareça a si mesmo, enfim,

nada tirará disso a não ser sua autobiografia.” Nietzsche

A organização Doutores da Alegria nasce nos anos 1990 e leva artistas de teatro e de rua para dentro de hospitais. Duas vezes

por semana eles se integram à rotina de enfermarias infantis.

Vestindo-se de palhaços que acreditam ser médicos realizam

exames e consultas em todas as crianças internadas, seus acom-

panhantes e profissionais da saúde.

Pioneiro na iniciativa, Dr. Zinho, possibilitou que muitas

crianças vissem pela primeira vez um palhaço e um espetáculo

teatral. O hospital, então, começou a experimentar fronteiras

pouco usuais à sua realidade, reinserindo questões da vida à sua rotina asséptica e controlada. Naquela época, a figura do

palhaço era algo incomum ao cenário das macas e enfermarias.

Graciosamente destoante, habilmente desconcertante e não ameaçador. Propunha aos adultos que cruzavam seu caminho

um tempo de reflexão para juntar mundo médico e circo. Movimento representativo em uma época em que o pensamento mé-

dico evoluía no conceito da humanização. Evoluir? Na ocasião

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ética da alegria no contexto hospitalar

não pensávamos nisso, o programa precisava sobreviver em um

contexto ainda inerte para investimentos em ações culturais. A

semente encontrou um solo propício. Dra. Emily, Dra. Ferrara,

Dr. Dog, Dra. Sirena, Dr. Krebes Croc, tantos outros vieram e

vivem com suas inúmeras histórias sobre crianças.

O tempo passou e o terceiro setor começou a crescer no país.

Hospitais intensificaram a inclusão de atividades “extracurriculares” aos diagnósticos e intervenções técnicas. A partir desse

movimento vieram: Dr. Escrich, Dra. Manela, Dra. Florinda Jar-

dins, Dr. Zorinho, Dr. Zapatta Lambada… e mais histórias. His-

tórias da vida de um povo. Da saúde do país.

Desta maneira, com o que víamos nos hospitais, pelos de-

poimentos dos artistas durante nossas reuniões, com os relatórios de atividade fomos estabelecendo parâmetros para cons-

trução de uma ética que valida nossa prática. Não foi apenas

a decisão de levar o palhaço ao hospital. Agora era também o

que o hospital nos contava e sobre o que nos convidava a pen-

sar. A miséria da morte e da vida. A violência do filho espan-

cado, dos órfãos da AIDS. Mães correndo de assaltantes pelos

corredores do hospital com o filho atado ao fio do soro. Recémnascidos ainda com cordão umbilical chegando da lata de lixo,

criança apanhando na saída do hospital dentro de veículo de

instituição que abriga menores. Mãe que mora em uma cadeira ao lado do leito de seu filho por meses. Falta de remédio, falta

de sabão, de mãos. E a proposta de continuar a se surpreender com esse cenário. Essas imagens passaram a nos habitar junto

com o respeito aos profissionais de saúde, que têm suas car-

reiras repletas dessas imagens e, mesmo assim, continuam a

investir nas relações humanas.

Hoje, tanto tempo depois, a humanização ancora como pa-

lavra que ordena essas ações: brinquedotecas, bibliotecas circulantes, contadores de histórias, recreacionistas, música, artes


Humanização: verniz para o capitalismo médico?

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plásticas. O número de voluntários cresceu e a quantidade de

grupos que se utilizam da máscara do palhaço também.

Nossa inquietude é muito maior que quando iniciamos o pro-

grama. O questionamento é inevitável: será que todo esse caminhar, aliado ao reconhecimento crescente dos departamentos

de humanização, fará com que corramos o risco de voltarmos

para casa e dormirmos tranquilos, acreditando ter dado conta da complexidade do trabalho que nos propusemos? Chegaremos a criar uma ISO da humanização para os hospitais? Dez passos

para humanizar? Sinceramente espero que não. Continuemos a

cuidar deste mistério que são as questões humanas, honrando a complexidade do tema.

A atualidade nos traz angústia e oportunidade. A angústia:

perceber que, irrevogavelmente, estamos conectados em uma

enorme rede, tudo o que acontece no mundo nos afeta, nos atinge visceralmente. A guerra no Oriente é

também nossa guerra, a pobreza da África

fala diretamente à nossa riqueza. Acordamos para a nossa conectividade com outros fusos, com a sociedade planetária da qual fazemos parte. Esse movimento silencioso acontece dentro dos nossos

carros, quando o sinal vermelho nos

mostra saquinhos de bala desempregados pendurados no retrovisor à espera

de um real. Nós, preservados em ar condicionado, retornamos à consciência dos

blocos que constituem o mundo: ricos e

pobres, separados por um vidro fechado e portas travadas. A chamada a essa

consciência é palavra de ordem em fóruns sociais, publicações, em nosso tra-


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ética da alegria no contexto hospitalar

jeto cotidiano. Hoje sabemos que nossa ação individual pode

influenciar mudanças, não precisamos mais esperar governos

ou instituições. Essa lucidez leva-nos para o outro lado: a opor-

tunidade.

Por que falar disso tudo neste momento? Porque essas ques-

tões norteiam a opção de ser um Doutor da Alegria, que vai muito além da exigência de um nariz vermelho. Faz com que

pensemos na educação do futuro, no mundo em que as crianças de hoje viverão, na construção de uma legislação planetária mais justa. Esse cenário é complexo, e não é nosso propósito

analisá-lo neste trabalho, mas contextualiza nossos anseios para encontrar a medicina do futuro.

O conteúdo de um livro nunca se esgota, vive do momento e

da incompletude. Mas pode inspirar. Este fala do esforço do homem em se entregar para a única condição possível de existên-

cia: a da relação humana. Quem nos ajuda a lembrar disso são

os palhaços. Dra. Valentina, Dra. Zuzu, Dr. Zabobrim, Dra. Juca

Pinduca, Dr. Cizar Parker, Dr. Severino e outros que transitam invisíveis pelas próximas páginas, que nos reconectam com essa potencialidade. E com a essência da medicina, esse fascinante

universo por onde anda nosso imaginário sobre vida e morte, espaço em que os sentidos do olhar, ouvir e tocar fazem circular os afetos e os desejos impressos nos corpos.

Por que, então, a necessidade de o palhaço ocupar esse cená-

rio? Talvez porque a medicina, em seu movimento de capitaliza-

ção, esteja se afastando desse sentir, ameaçando a integridade

e saúde das pessoas à medida que tal riqueza cultural é priva-

tizada, inserida em uma lógica econômica. Porque é possível que a atuação do palhaço ajude-nos a constatar o absurdo que a apropriação desse imaginário pode significar.

O aumento pela procura de terapias alternativas mostra que

parte da sociedade está buscando formas de questionar a medi-


Humanização: verniz para o capitalismo médico?

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cina oficial. Um momento de ambiguidades, em que convivem

o modelo médico capitalista implantado em hospitais-hotel (ou serão hotéis-hospital?) e hospitais públicos. Um tempo em que

parte do mal-estar da civilização moderna está ligado ao desaparecimento de espaços que incentivem e deem sentido às forças

e questões da vida. Época em que a depressão aparece como se-

gundo problema mundial de saúde, primeiro nos próximos anos.

Conjuntura em que o utilitarismo médico fortalece a insatisfação no atendimento ao permitir que a atuação médica deixe de ser continente para tais questões.

É por todo esse intrincado panorama que a humanização pode

colaborar para a medicina se religar com o envolvimento social da experiência médica. Como atores desse movimento estamos

diante de um enfrentamento entre a lógica da medicina como fenômeno social e a lógica capitalista. Peter Pál Pelbart ajuda-nos a

entender um pouco esse movimento. Em seu livro A vertigem por um fio ele revela como o capitalismo, mediante a incorporação de

tendências, gestos, modos, opiniões, devora fronteiras e elimina exterioridades, o que Deleuze chama de “as forças do fora”.

Essas forças ajudam-nos a colocar o pensamento em estado

de exterioridade. A saúde, por meio da loucura, exemplifica essa

possibilidade. A forma como o louco vê o mundo deixa o homem em contato com uma exterioridade enigmática, na qual ele pode

se confrontar com outros lados de si mesmo. Com a lógica atual,

no entanto, loucura e inconsciente incorporam-se ao cotidiano

banalizado. A cada dia novos rótulos médicos para comportamentos bizarros são descritos e medicados. Esses comportamen-

tos podem, então, circular no mercado com poder de venda e

compra de tratamentos, ganhando um espaço de circulação so-

cial, perdendo sua exterioridade. Segundo Peter, uma grande

evidência da incorporação dessa exterioridade ao humano como

processo seria o irônico nome de humanização, por meio dele e


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ética da alegria no contexto hospitalar

sua dialética diabólica teremos conseguido o impensável: abo-

canhar nosso próprio exterior. Qualquer tentativa de reflexão sobre saúde percorre esses sinuosos e sutis caminhos.

A experiência artística, na qual se baseia este livro, pode nos

ajudar a criar linhas de fuga, exterioridades para algumas ques-

tões da medicina atual.* Porque, apesar de movimentos do mer-

cado tentarem transformar a arte em fast food cultural, o verdadeiro artista busca a essência da arte, que está acima e além

dessa condição. Indagação é seu trabalho, criação de mundos,

libertar olhares de formas estabelecidas, propor exterioridades

mediante novas composições. É o que podemos aprender com

os doutores que a arte inventou: Dra. Quinan, Dr. Comendador

Nelson, Dr. João Grandão, Dr. Manjericão, Dra. Sakura, Dra. Du Porto, Dra. Rubra, e outros que virão.

* N.E.: Esta obra resulta da Dissertação em Psicologia Social defendida pela autora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2001.


Humanização: verniz para o capitalismo médico?

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Aconteceu na sala de quimioterapia com Dra. Quinam, Dr. Manjericão e Maria, paciente de 16 anos O casal de palhaços adentra a sala lotada. Dr. Manjericão esquece

o primeiro mandamento do cavalheirismo: damas primeiro. Dra.

Quinan tem forte acesso de mágoa que a leva, entre choros e lamentos, a um grande desabafo em meio aos pacientes. A paciente Maria pergunta: Por que você não se mata?

A artista por trás da máscara pensou por um segundo e resolveu

encarar o tema da morte na frente das crianças. Embarcou na ideia

de Maria concordando que essa seria a única solução para TAMA-

NHA tragédia. Após decidir com os presentes a melhor forma de

suicídio, subiu em um banco pronta para se jogar no abismo. Nes-

te momento, Dr. Manjericão começou a tocar seu violão e cantar:

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa, num doce balanço a caminho do mar... ”

Manjericão tentava fazer sua parceira mudar de opinião en-

quanto Quinan, na sua ideia fixa de suicídio, pronunciava seu testamento. Devagarinho, um coro de vozes foi aparecendo e a “Garota de Ipanema” tomou conta da sala. Enfermeiras pararam seus

afazeres para ajudar com suas vozes. Dra. Quinan, claro, desistiu do suicídio para se reconciliar com Manjericão.

E a bossa foi esta: em cima da cadeira ou à beira do abismo, em

qualquer limite que se trace entre realidade e fantasia, vale a pena arriscar um espaço para falar das coisas da vida.

(Trecho editado do relatório de atividades

da artista Marina Quinam)



O olhar do palhaço

fome pela metade Oliver Sacks, neurologista inglês, relata o caso da Sra. S. em um

de seus livros. Sexagenária, depois de um derrame teve sua in-

teligência perfeitamente preservada, mas uma porção do hemisfério cerebral direito foi afetada com uma alteração curiosa em sua percepção visual. Perdeu por completo a ideia de esquerda

em relação a seu corpo e ao mundo que a rodeia.

Ela reclamava que as enfermeiras não lhe serviam sobreme-

sa ou café. Só percebia que estava na sua frente quando sua

cabeça era virada de modo que o restante da bandeja ficasse à

vista, na metade preservada de seu campo visual. Às vezes, ela se queixava de que as porções eram pequenas demais, porque

só comia o que estava na metade direita do prato. Não via a me-

tade esquerda. Da mesma forma, só fazia a maquiagem do lado direito do rosto.

Sacks descreve esse quadro como de difícil tratamento, pois

o paciente não percebe o que está errado. É capaz de compreender, intelectualmente, sem conseguir alterar sua percepção.

Esse caso nos ajuda a pensar como o mundo depende de nos-

sa percepção. Não existe realidade objetiva exterior a nós. Ela é

construída a partir de nossos valores e crenças que determinam 17


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ética da alegria no contexto hospitalar

elementos que escolhemos como foco do que experimentamos como realidade.

De alguma forma, todos temos um pouco da Sra. S. Come-

mos só a metade da porção que está à direita do prato, certos

de que seja a porção completa. Abdicamos da sobremesa, na certeza de compreender o que se passa à nossa volta. Nosso foco

de atenção fixa-se sobre determinados fatores, delimitando um

pequeno campo de resultados que para nós parece a totalidade.

Algumas experiências ilustram muito bem essa verdade. É

o caso da pesquisa realizada com um grupo de oito pessoas

mentalmente normais, internadas em diversos hospitais psi-

quiátricos dos Estados Unidos (Rosenham, 1994). Essas pessoas

relatavam a mesma queixa fictícia: escutar vozes. Com exceção da mudança de nome, profissão e local de trabalho, as demais

circunstâncias de vida permaneceram inalteradas. Todas foram classificadas como esquizofrênicas.

Após nervosismo inicial, em consequência da internação, os

pseudopacientes passaram a comportar-se como de hábito, em


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