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CUIDADO INTERDISCIPLINAR DE PESSOAS IDOSAS

SBGG-RJ | EternamenteSOU | ILC-BR



Carolina Rebellato Daniel Lima Azevedo Raphael Cordeiro da Cruz Renata Borba de Amorim Oliveira Organizadores

CUIDADO INTERDISCIPLINAR DE PESSOAS IDOSAS Da teoria à prática

SBGG-RJ


Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia Seção Rio de Janeiro BIÊNIO 2020-2022 DIRETORIA Presidente Daniel Lima Azevedo Vice-Presidente Virgílio Garcia Moreira Presidente do Departamento de Gerontologia Carolina Rebellato Secretária Geral Raphael Cordeiro da Cruz Secretária Adjunta Renata Borba de Amorim Oliveira Tesoureiro Anelise Coelho da Fonseca Diretor Científico Ivan Abdalla Diretora de Defesa Profissional e Ética Yolanda Boechat Conselho Consultivo de Geriatria Claudia Burlá Elizabeth Regina Alves Xavier Conselho Consultivo de Gerontologia Almir Oliva Laura Machado


comissões Comissão Científica de Geriatria Alessandra Ferrarese Barbosa Ana Clara Guerreiro Martins Bárbara Gazal Habib Gustavo de Jesus Monteiro Priscila Brutt Malaquias Roberta Barros da Costa Pereira Vinicius Jara Casco de Carvalho Comissão Científica de Gerontologia Barbara Martins Corrêa da Silva Elizabeth Gonçalves Ribeiro Flavia Moura Malini Glaucia Cristina de Campos Ingrid Petra Chaves Sá Lilian Dias Bernardo Maria Clotilde B. N. Maia de Carvalho Romulo Delvalle Wallace Hetmanek dos Santos Câmara Técnica de Gerontologia Aracely Gomes Pessanha Andrea Camaz Deslandes Renata Graniti Raquel de Oliveira Araújo Lilian Dias Bernardo

Comissão de Articulação Técnico-Científica de Gerontologia Margareth Cristina de Almeida Gomes Maria Angélica dos Santos Sanches Renata Borba de Amorim Oliveira Wallace Hetmanek dos Santos Comissão de Articulação das Ligas Acadêmicas de Geriatria e Gerontologia Christiano Barbosa da Silva Priscila Brutt Malaquias Renata Olival Romulo Delvalle Comissão de Defesa Profissional e Ética de Gerontologia Beatrice de Fátima da S. Carvalho Consultora em Gerontologia Ligia Py


Copyright © 2021 dos autores Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Revisão Vitor Ribeiro Design e Produção Editorial Letra e Imagem Editora

dados internacionais de catalogação-na-publicação (cip) de acordo com isbd I61

Introdução às velhices LGBTI+ [recurso eletrônico] / Carolina Rebellato ... [et al] ; organizado por Carolina Rebellato, Margareth Cristina de Almeida Gomes, Milton Roberto Furst Crenitte. - Rio de Janeiro : Fólio Digital, 2021. 192 p. ; PDF.

Inclui bibliografia e índice. ISBN: 978-85-92908-06-5 (PDF) DOI: 10.24328/2021/92908.00 1. Identidade de gênero. 2. Pessoas LGBTI+. 3. Saúde do idoso. 4. Envelhecimento. 5. Orientação sexual. I. Rebellato, Carolina. II. Gomes, Margareth Cristina de Almeida. III. Crenitte, Milton Roberto Furst. IV. Título. CDD 306.43 2021-2293

CDU 316.7 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Identidade de gênero 306.43 2. 2. Identidade de gênero 316.7


sumário Agradecimentos......................................................................................................9 Prefácio................................................................................................................... 10 apresentação. Um percurso interdisciplinar..........................................

Carolina Rebellato, Daniel Lima Azevedo, Raphael Cordeiro da Cruz e Renata Borba de Amorim Oliveira

Uma introdução aos desafios do envelhecimento no século XXI............. Yolanda Eliza Moreira Boechat e Marcella Guimarães Assis parte i: o cuidado em diferentes cenários capítulo 1. Abordagem prática do cuidado

da pessoa com demência.....................................................................16 Yolanda Eliza Moreira Boechat, Ivan Abdalla Teixeira,

Aracely Gomes Pessanha, Gunnar Glauco De Cunto Carelli Taets e Laura Maria Mello Machado

capítulo 2. Aspectos multidimensionais das quedas......................... 24

Andrea Camaz Deslandes, Carolina Rebellato, Flavia Moura Malini

Drummond, José Elias Soares Pinheiro e Vinícius Jara Casco de Carvalho capítulo 3. Desospitalização, transição de cuidados

e atenção domiciliar............................................................................ 32 Alessandra Ferrarese Barbosa, Anelise Coelho da Fonseca,

Bárbara Martins Corrêa da Silva, Raphael Cordeiro Da Cruz e Wallace Hetmanek dos Santos

capítulo 4. A longa e permanente ação de cuidar...............................40

Beatrice Fátima da Silveira Carvalho, Gustavo de Jesus Monteiro e Ingrid Petra Chaves Sá

capítulo 5. Dependência total, imobilidade e lesões

por pressão em instituições de longa permanência............................46 Barbara Gazal Habib, Daniel Espírito Santo da Silva e Renata Borba de Amorim Oliveira


capítulo 6. Por trás dos portões: breve ensaio sobre

sexualidade em instituições de longa permanência............................ 54

Eloisa Adler Scharfstein e Priscila Brütt Malaquias

capítulo 7. Morte em casa: um desfecho possível..............................64

Daniel Lima Azevedo, Renata Borba Amorim Oliveira e Claudia Burlá

parte ii. fragilidade e declínio funcional: o cuidado da pessoa idosa com doenças crônicas capítulo 8. Uma proposta de intervenção integrada

na síndrome de fragilidade.................................................................. 72 Virgílio Garcia Moreira, Glaucia Cristina de Campos e Renata Graniti

capítulo 9. Disfagia: avaliação e abordagem em equipe .................... 78

Elizabeth Gonçalves Ribeiro, Glaucia Cristina de Campos e Roberta Barros da Costa Pereira

capítulo 10. Reflexões sobre o cuidado do

idoso criticamente crônico.................................................................. 88 Elizabeth Regina Xavier Mendonça, Lilian Dias Bernardo e Raquel de Oliveira Araújo

capítulo 11. As múltiplas faces da dor crônica do reconhecimento às

possibilidades de atuação...................................................................94 Diogo Kallas Barcellos e Flávia Moura Malini Drummond

capítulo 12. Polifarmácia, desprescrição e prescrição segura ......... 100

Aline Saraiva da Silva Correia, Almir Gomes de Oliva Filho e Cleverton Kleiton Freitas de Lima

parte iii. novas perspectivas do cuidado: um olhar para o futuro capítulo 13. Diretivas antecipadas de

vontade afinal, do que se trata?........................................................ 108

Cristiane Branquinho Lucas e Renata Olival Cunha Alvarez capítulo 14. Benefícios e desafios da abordagem

da espiritualidade na prática clínica ................................................... 116 Anelise Coelho da Fonseca, Raphael Cordeiro da Cruz e Cassia Quellho Tavares


agradecimentos

Aos membros da diretoria da atual gestão (biênio 2020-2022) da SBGG-RJ, pela inspiração e por acreditarem na produção desta obra, baseada em um projeto de construção conjunta do conhecimento em geriatria e gerontologia e de sua práxis. À notável Ligia Py, que, além de nos presentear com o prefácio, forneceu, gentilmente, excelentes recomendações para o processo de revisão e organização deste livro. Obrigada pelo exemplo de humildade, escuta, solidariedade e competência técnica. Aos integrantes da diretoria, da câmara técnica e das comissões da SBGG-RJ que aceitaram o desafio de contribuir para a produção de capítulos com colegas de diferentes categorias profissionais e vinculação institucional, refletindo a produção do conhecimento em rede e, sobretudo, a colaboração interprofissional como estratégia do trabalho em equipe no campo. A eles, o reconhecimento dos organizadores pela dedicação na concepção do livro e ao longo do primeiro ano de gestão. Pela geriatra: Alessandra Barbosa, Anelise Fonseca, Barbara Habib, Claudia Burlá, Elizabeth Xavier, Gustavo Monteiro, Ivan Abdalla, Priscila Brütt, Renata Olival, Roberta Barros, Vinícius Jara, Virgílio Garcia e Yolanda Boechat; pela gerontologia: Almir Oliva, Andrea Deslandes, Aracely Gomes, Barbara Martins, Beatrice Carvalho, Elizabeth Gonçalves, Flavia Malini, Glaucia Campos, Ingrid Petra, Laura Machado, Lilian Dias, Margareth Gomes, Raquel Araújo, Renata Graniti e Wallace Hetmanek - muito obrigado! Aos mestres Eloisa Adler e José Elias Pinheiro, pela colaboração primorosa e leve, competência, sensibilidade e disponibilidade. Às parceiras de trabalho das gestões anteriores da SBGG-RJ: querida Aline Saraiva, obrigada pela disponibilidade e dedicação; Sandra


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Rabello, referência na luta pela garantia de direitos da pessoa idosa e formação de cuidadores, gratidão pela parceria. Aos ilustres colegas de Minas Gerais, Diogo Kallas Barcellos, presidente da Comissão da Dor da SBGG Nacional, e Marcella Guimarães Assis, pela valiosa contribuição, cumplicidade e exemplo de trabalho cooperativo. Aos colegas Cleverton Freitas, Cássia Quelho, Christiane Branquinho, Daniel Espírito Santo, Flaviana Dias, Gunnar Taets e Taiuani Marquine pela competência, confiança e disponibilidade para participar conosco de uma obra que pretende integrar aspectos teóricos e práticos, por meio de casos clínicos. A todos os colegas da geriatria e da gerontologia que colaboram com as ações da SBGG-RJ e acreditam, como nós, no harmonioso encontro entre especialidades para a melhoria da qualidade e da efetividade do cuidado à pessoa idosa, de forma integral, contínua e ampliada.


prefácio

Este novo livro é uma oferenda: como o valor precioso ofertado nas religiões antigas, estudiosos e cientistas ofertam, aos leitores, o seu conhecimento inscrito nos livros. Neste, particularmente, cabe uma partícula do que membros e convidados da SBGG-RJ estudam, pesquisam e praticam, espertamente resguardando o sabor da carência que instiga a busca incessante pelo saber. Como somos denominados atores, nesta vida em sociedade comunitária, imaginemos os astros da atual gestão da SBGG-RJ num palco, arquitetando uma arena que abole os limites frontal e laterais para atrair a livre chegada de interessados e curiosos; bordando suas ações em tapete quase mágico a nos chamar para sentar e compartir; trazendo para o teto a pintura da grande parede de trás que carrega a história da SBGG-RJ. Assim é: chão e teto sem paredes, arena acolhedora e sábia! Esta gestão esmera-se em agregar personagens antigos aos novos, expandem-se às demais Seccionais da Nacional e a tantas outras instituições. É um grupo de profissionais arrojados no pioneirismo, ousados nos temas evitados, incandescentes na criatividade, apaixonados na entrega, atrevidos no trato e cuidado dos envelheceres e das velhices, da doença e da incúria, da dor e do sofrimento, da morte e do luto. Tudo sem jamais deixarem de nos brindar com o bom humor e a generosidade que os distinguem. Este livro é a expressão da radicalidade do humano inscrita no fazer interdisciplinar, bem ao gosto da legitimidade da ciência geronto-geriátrica: o cultivo da humildade diante da insuficiência dos saberes isolados, aliado à tarefa dificílima de superação de vaidades individuais. Dotada da capacidade de transformar temas em problemas, a interdisciplinaridade integra o saber à vida. E é aí que se encontra 11


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com a pessoa idosa que, afinal, é o sujeito e a destinatária da ciência geronto-geriátrica. Aprendemos com José Francisco em infinito que a tessitura em rede e o desenho dos projetos e das ações interdisciplinares não têm uma trajetória previsível, mas, como a vida alongada dos idosos, vão assumindo direções e sentidos maravilhosamente surpreendíveis. Vemos, então, que o fazer interdisciplinar movimenta uma ciranda de profissionais, escapando à circularidade sem princípio nem fim. Ao invés disso, segue em elipse aberta em ponta para alçar vôos inimagináveis. A gênese, a intenção e a descrição dos capítulos estão primorosamente dispostas na Apresentação, um aperitivo inteligente e delicioso para a apreciação dos sabores geriátricos e gerontológico aqui contidos, tão diversos quanto harmoniosos. Apontamos, apenas, para dois aspectos: a premissa de Mace e Rabins sobre cuidar (porque nos parece que é disto que se trata aqui, o cuidado na sua manifestação espectral): o cuidado é um processo contínuo, ao mesmo tempo em que é um produto da união de esforços de muitos, ‘feito sob medida’, para cada um em particular. O outro aspecto é o que nos lembra José Bleger: quando procedemos a uma intervenção na nossa prática profissional, estamos, ao mesmo tempo, investigando e intervindo. Ah! É uma experiência de felicidade receber este livro, oferenda delicada e densa para o nosso estudo e aprimoramento. Daqui, longe das exigências de produção, me entrego à leitura, a ‘ouvir as estrelas’ autoras da obra. Sigo no espanto de rever conceitos, revirar preconceitos e aprender ... aprender … Evoco, numa imagem de Rubem Alves, Daniel Azevedo e seus companheiros de gestão na terceira margem do rio, carregando os feitos, os não feitos e os desfeitos da história da SBGG-RJ, com o inarredável compromisso de legar os refeitos e os novos feitos aos associados. E este livro é a oferenda que segue como um barco a navegar o rio “palavra mágica para conjugar eternidade”. Ligia Py


apresentação

Um percurso interdisciplinar Carolina Rebellato Daniel Lima Azevedo Raphael Cordeiro da Cruz Renata Borba de Amorim Oliveira

Ao longo do século XX, a longevidade passou a ser um atributo da espécie humana em países de todos os continentes. Trata-se de uma conquista que merece celebração pelo tempo de vida agregado. O bônus da longevidade, no entanto, não se produz sem o seu anverso, na habitual relação dualística que caracteriza a experiência humana: os anos adicionais, para muitas pessoas, são marcados pelo desenvolvimento de doenças crônico-degenerativas que envolvem os sistemas essenciais do organismo, a exemplo de demências, doença de Parkinson, insuficiência cardíaca, doença renal crônica e doença pulmonar obstrutiva crônica, dentre tantas outras. Mesmo afecções ditas próprias do envelhecimento, como a redução da acuidade visual ou auditiva, incorrem em repercussões funcionais sobre cada indivíduo. A conclusão inescapável é de que existe um ônus associado ao envelhecimento. O cuidado de pessoas idosas com doenças crônico-degenerativas é uma das tarefas de maior complexidade da saúde ocidental contemporânea. Os atores sociais envolvidos, desde os pacientes, familiares e cuidadores remunerados, até os profissionais responsáveis pela assistência, estão em constante negociação de seus desejos,

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vontades, preferências e limites. Conhecer as condições mais comuns e planejar estratégias pertinentes de intervenção constitui-se, portanto, em uma das prioridades da abordagem gerontogeriátrica. Tal abordagem pressupõe um treinamento diferenciado dos profissionais da saúde que lidam com pessoas idosas, com base no desenvolvimento de habilidades de escuta e comunicação. A aquisição de conhecimento técnico específico de cada profissão, com foco nas questões típicas do envelhecer e da velhice, também é imprescindível para que as propostas terapêuticas partam da necessária distinção, nem sempre evidente, entre o que é normal e o que é patológico. A complexidade do cuidado de pessoas em situação de máxima vulnerabilidade ou com comprometimento da autonomia expõe insuficiências do saber de cada profissional e aponta, como resposta, a premência da conjunção dos conhecimentos em bem-vindo trabalho de equipe. Para além da pluralidade de uma equipe calcada no preceito multidisciplinar, cada um de seus integrantes deve adquirir e aprimorar a capacidade fundamental da atuação interdisciplinar. Existe um hiato extenso entre os prefixos multi e inter. O trabalho interdisciplinar não se produz sem tensões interpessoais, que traduzem ocasionais conflitos existentes entre as próprias disciplinas dos profissionais e podem levar a indesejável esgarçamento relacional ou mesmo inviabilizar a manutenção de uma equipe. Tal modalidade de atuação demanda maturidade pessoal e profissional, bem como a aceitação das fronteiras de cada saber e o exercício democrático do reconhecimento de que, para que o trabalho conjunto atinja os benefícios pretendidos, em analogia com um princípio da democracia, é mais do que salutar ouvir e acatar o ponto de vista alheio, ainda que divergente. Cabe atestar, ainda, que louros e revezes da intervenção são compartilhados pela equipe e justificam comemoração e discussão, sempre com o propósito de refinamento. A diretoria da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia do Rio de Janeiro (SBGG-RJ) adotou, no biênio 2020-2022, o lema


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“mais fortes juntos” com o intuito de representar a aproximação capital entre diferentes segmentos, a começar por geriatria e gerontologia, com extensão para a interlocução entre a SBGG-RJ e as demais seccionais estaduais e aquela possível entre a SBGG-RJ e outras instituições científicas ou a sociedade civil. Por definição, trata-se de uma diretoria multidisciplinar, que pretende sensibilizar seus integrantes e pares para um trabalho interdisciplinar. Ao organizarmos o presente volume, em harmoniosa união entre geriatria e gerontologia, que entendemos como disciplinas não apenas complementares, mas indissociáveis, nossa intenção é provocar reflexões sobre as possibilidades do trabalho interdisciplinar nos diferentes âmbitos do cuidado. A redação dos capítulos ficou a cargo de integrantes da gestão, com eventuais convidados externos, cuja missão era enriquecer o material com perspectivas adicionais. O processo de produção dos capítulos, em alguns casos, resultou em um texto que mais se aproxima da proposta multidisciplinar, talvez por certa timidez, justificável pelo fato de que os autores integram serviços distintos e lhes falta convívio suficiente para gerar cumplicidade – aliás, outra característica da atuação interdisciplinar. Não obstante, os organizadores têm a convicção de que o produto final permite entrever os desafios inerentes à prática gerontogeriátrica, com atualizações e sugestões que, em sua estima, são valiosas para os profissionais que compõem o público-alvo da obra. Em última análise, a interdisciplinaridade é o padrão-ouro do cuidado das pessoas idosas e figura como um termo usual em publicações de geriatria e gerontologia. Alcançá-la na prática diária, porém, é mais difícil e raro do que reza a teoria. Resta a esperança de que, ao domar vaidades, contornar preconceitos e exercer uma comunicação exemplar entre si, um grupo de profissionais unidos em torno de um propósito consiga, enfim, demonstrar que juntos são mais fortes.


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O percurso do livro O livro propõe a discussão de temáticas atuais no campo do envelhecimento, selecionadas de acordo com a expertise dos colaboradores. Um caso clínico ilustra cada capítulo e se articula com o conteúdo teórico proposto. Todos os capítulos foram escritos em parceria por geriatras e especialistas em gerontologia, com a intenção de enfatizar a importância da associação de práxis diferentes. As referências utilizadas pelos autores ressaltam, conforme solicitação dos organizadores, textos produzidos, preferencialmente, nos últimos cinco a dez anos, com a intenção de permitir uma atualização objetiva em cada assunto. Ao considerar o panorama descortinado pelo envelhecimento populacional para o século XXI, a introdução versa sobre os desafios em larga escala decorrentes da longevidade: a implantação de políticas públicas transversais, as mudanças referentes às práticas dos profissionais da saúde, que incluem capacitação para atuação interdisciplinar em equipes multidisciplinares, e as adversidades enfrentadas pelas pessoas idosas. O texto funciona como um ponto de partida, norteador dos capítulos subsequentes, em especial daquele sobre gerontecnologia, com o qual entabula um diálogo franco. A Parte I aborda a assistência à pessoa idosa em múltiplos cenários, com a visão de que uma equipe integrada é a principal responsável pelo cuidado e pela proteção preconizada, onde quer que o paciente esteja. O capítulo 1 demonstra possibilidades do cuidado ambulatorial da pessoa com demência, que transgridem a mera prescrição medicamentosa e incluem a intervenção de musicoterapeuta, assistente social e psicólogo para o devido suporte emocional ao paciente e à família. O capítulo 2 traz uma vivência de paciente com parkinsonismo que apresenta quedas de repetição em casa. Ressalta a relevância da ação conjunta dos profissionais, com destaque para adaptações ambientais e a proposta de prática


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de exercícios, e se encerra com uma ousadia literária: após narrar o desfecho real do caso, permite um final alternativo, com direito a um brinde – que pode ser interpretado como a forma escolhida pelos autores para lidar com a frustração gerada por um paciente tão resistente aos cuidados. O capítulo 3 aborda um dos momentos mais delicados do cuidado: o processo de desospitalização, que depende de um planejamento primoroso de transição de responsabilidades e de reabilitação para atingir o êxito. O texto flerta com um aspecto dramático da contemporaneidade, ao incluir um paciente com grave perda funcional decorrente de internação por COVID-19. O capítulo 4 abre um bloco sobre o cuidado em instituições de longa permanência para idosos (ILPI), assunto com presença ainda pálida na literatura, o que pode se relacionar ao estigma histórico de tais ambientes. Discute boas práticas do cuidado em ILPI, com base em um exemplo de gestão inadequada que levou uma instituição à falência. O capítulo 5, por sua vez, aborda a síndrome de imobilidade e lesões por pressão, questões prevalentes em ILPI, com proposta de intervenções por uma equipe que inclui médico, enfermeiro e nutricionista, componentes básicos do corpo clínico de qualquer instituição que abrigue pessoas idosas. Já o capítulo 6 dedica-se a um tema digno de discussão mais ampla: o exercício da sexualidade dentro dos muros de uma ILPI, com estratégias para que a equipe possa lidar com um tópico que ainda causa estranhamento. A Parte I termina com o capítulo 7, que debate dilemas da morte em casa por meio de uma situação exemplar. Será possível permanecer no domicílio até o momento final? A reflexão é oportuna e inclui fatores facilitadores e agravantes desse desfecho, com direito à abordagem detalhada da proposta e das vantagens da alimentação de conforto. Toda a Parte II dedica-se a aspectos das doenças crônicas que provocam declínio funcional. O capítulo 8 ocupa-se da síndrome de fragilidade, entidade de reconhecimento notório na geriatria e na gerontologia, com uma sugestão de intervenção em ambula-


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tório multidisciplinar que permite uma mudança na trajetória da paciente que protagoniza o caso selecionado. A disfagia é assunto do capítulo 9, que ressalta o valor da abordagem realizada em conjunto por médico, fonoaudiólogo e nutricionista. As autoras do capítulo 10, por sua vez, têm o atrevimento, recebido com satisfação, de refletir sobre o cuidado do idoso criticamente crônico. Personagem recente nas publicações nos campos do envelhecimento e da terapia intensiva, ele apresenta grave comprometimento da cognição e da funcionalidade, com dificuldade para manter a homeostase, com frequência em decorrência de internação hospitalar. O texto coloca em evidência o papel da equipe da saúde, tanto na comunicação com os familiares como no reconhecimento do processo de morrer e na tomada de decisões relativas ao final da vida. A dor crônica é mote do capítulo 11, que conta com a colaboração especial do Dr. Diogo Kallas, membro da Comissão de Dor da SBGG. Ao abordar essa temática, os autores ressaltam estratégias de reconhecimento de dor em pessoas com demência avançada e apresentam sugestões de abordagens não-farmacológicas. O capítulo 12 discorre sobre polifarmácia e desprescrição, parte do dia a dia de qualquer profissional que acompanhe pessoas idosas, com ênfase na atuação de farmacêutico clínico como participante da equipe. Oferece, ao final, uma compilação de dicas para assegurar uma prescrição segura. A Parte III finaliza o livro com novas perspectivas sobre o cuidado, ao oferecer um olhar para temáticas ainda incipientes no Brasil e inovações tecnológicas futuristas que já estão disponíveis e permitem aprimoramentos promissores. As diretivas antecipadas de vontade são o foco do capítulo 13, com participação da Dra. Cristiane Branquinho, promotora de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro. Em parceria intergeracional dessa autora com médica que cursa residência em geriatria, o capítulo conjuga a perspectiva médica à legal em assunto da maior relevância, que ganha corpo no país desde a promulgação da resolução do Conse-


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lho Federal de Medicina pertinente ao tema, em 2012. O debate sobre benefícios e desafios da espiritualidade e sua aplicação na prática clínica preenche o capítulo 14, que também inclui a atenção ao autocuidado do profissional. Para além das religiões, é importante pensar a espiritualidade como um caminho possível para iniciar uma aproximação existencialista. O capítulo 15 retoma a gerontecnologia, comentada na introdução, e abrange vantagens e barreiras da inclusão digital, com todas as possibilidades que a tecnologia oferece para favorecer o cuidado em situações de prejuízo cognitivo ou funcional. A matriz de impacto da gerontecnologia é prova cabal de que as novidades tecnológicas já conquistaram um espaço de relevo no cotidiano de pessoas idosas. Por fim, o capítulo 16 encerra a obra de uma forma leve, mas não menos pertinente, ao discutir o lazer e o engajamento em ocupações significativas na velhice. O texto demonstra como a equipe, por meio de uma proposta que respeita a biografia da paciente retratada, consegue promover sua autoestima e ganhos funcionais. É um convite à dança, no sentido literal – mas também no figurado, em que os membros da equipe atuam como parceiros em uma coreografia, ora no papel de condutores, ora como aqueles que se permitem conduzir, com a confiança da solidariedade interdisciplinar. Ao longo do percurso do livro, observam-se pontos de interseção intencionais entre os capítulos, que incorporam olhares suplementares sobre situações comuns na prática da geriatria e da gerontologia, a exemplo do cuidado de pessoas frágeis ou com demência. Nesse sentido, as ocasionais repetições de temas, ainda que validadas pela realidade, pretendem transcender a redundância, ao compor um mosaico dos assuntos abordados sob a ótica de disciplinas distintas.



Uma introdução aos desafios do envelhecimento no século XXI Yolanda Eliza Moreira Boechat Marcella Guimarães Assis

Introdução No Brasil, o progressivo aumento da esperança de vida associado ao declínio da fecundidade, com ritmos diferentes nas diversas regiões geográficas, resultam no crescimento do número de pessoas idosas (CAMARANO, 2016; OLIVEIRA, 2016). O aumento da população idosa acarreta desafios como a implementação de políticas públicas que abarquem as multifacetadas dimensões do processo de envelhecimento (OLIVEIRA, 2016); o cuidado de idosos que envelhecem de forma ativa e saudável e de idosos que apresentam diversas condições crônicas de saúde; a capacitação de profissionais, geriatras e especialista em gerontologia, para prestação de um cuidado interdisciplinar factível, humanizado e digno; e o acesso da pessoa idosa aos diferentes níveis de atenção à saúde, à tecnologia, ao lazer e à cultura. Tantos desafios podem se desdobrar em outros e ampliar a centralidade da temática do envelhecimento, no cenário nacional e internacional, no século XXI. Portanto, ao considerar a diversidade de demandas trazidas pelo envelhecimento populacional, este capítulo versa sobre três desafios maiores: 1) relativos à implantação de políticas públicas

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transversais; 2) relacionados às práticas dos profissionais da saúde; e 3) experimentados pela própria pessoa idosa. Ademais, o capítulo inclui o caso clínico de um idoso atendido, por via holográfica on-line, em uma unidade federal de assistência de um grande centro, em comunicação com outra unidade federal de um pequeno centro.

Desafios do envelhecimento populacional para as políticas públicas Um relevante desafio a ser enfrentado no século atual refere-se às políticas públicas direcionadas às pessoas idosas, que representam 14,3% da população brasileira (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA [IBGE], 2015). Neste continuum da população, incluem-se pessoas de 60 até 100 anos ou mais, que envelhecem de forma ativa e saudável ou que apresentam incapacidades físicas, cognitivas e psicossociais. Tais diferenças no perfil do grupo de idosos impactam diretamente na elaboração e efetivação das políticas públicas. Em que pese o arcabouço legal vigente no Brasil, com destaque para a Política Nacional do Idoso (PNI), Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994, o Estatuto do Idoso, Lei Federal nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI), Portaria nº 2.528, 19 de outubro de 2006, cabe ressaltar que ainda existe a necessidade de implementação plena dessas políticas, além de novas demandas de ampliação e atualização (CAMARANO, 2016). Ademais, constata-se que o envelhecimento da população não tem lugar de destaque na agenda política nacional, o que evidencia uma cultura de preconceito etário. Assim, o desafio é permanente e, na tentativa de viabilizar a atenção integral à pessoa idosa, foi criado o Pacto pela Saúde, Portaria nº 399/GM (BRASIL, 2006), que inclui o Pacto pela Vida. Den-


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tre as diretrizes do Pacto pela Vida, ressaltam-se a promoção do envelhecimento ativo e saudável; a atenção integral e integrada à saúde da pessoa idosa; o estímulo às ações intersetoriais; os serviços de atenção domiciliar; o acolhimento preferencial em unidades de saúde; e a formação e educação permanente dos profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Tais diretrizes continuam atuais, mas as lacunas na atenção persistem. Além disso, ao longo do extenso território nacional, as ações de proteção do envelhecimento saudável são reduzidas, bem como os serviços de atenção domiciliar (BRASIL, 2018). Quanto à integração das ações de saúde, cabe destacar as dificuldades em relação a oferta de serviços de média e alta complexidades (OLIVEIRA, 2016) e a implementação de serviços alternativos para suprir a necessidade de atendimento intermediário entre hospital e domicílio (BRASIL, 2018). A inexistência de uma atuação articulada das políticas de Saúde e Assistência Social junto à população idosa institucionalizada ficou ainda mais evidente durante a pandemia de COVID-19. A efetivação da linha de cuidado da atenção básica à especializada, na Rede de Atenção à Saúde (RAS) (BRASIL, 2018) possibilitará o atendimento integral à pessoa idosa, com foco no seu protagonismo e necessidades. Entretanto, a população idosa, os profissionais da saúde e os gestores das diferentes regiões brasileiras precisam de maiores esclarecimentos sobre os fluxos e as pactuações do atendimento em rede. Cabe também destacar a necessidade de refinar as articulações com as redes intersetoriais para otimizar os recursos existentes. Outro desafio a ser enfrentado no século XXI, a respeito da atenção integral à pessoa idosa, é o trabalho interdisciplinar em equipe. O imperativo da atuação em equipe é incontestável frente à complexidade do processo de envelhecimento. Embora o trabalho em equipe seja uma diretriz presente em várias políticas públicas e no discurso de profissionais e gestores, a equipe multidisciplinar ainda não é uma realidade na maioria dos municípios brasileiros. O


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número reduzido de geriatras e especialistas em gerontologia e a concentração destes profissionais nas grandes cidades das regiões Sudeste e Sul são barreiras para a formação de equipes, que precisa ser explicitada a fim de possibilitar soluções factíveis e urgentes. Ao considerar a carência de profissionais especialistas, evidencia-se a necessidade de investimento na inclusão de conteúdo sobre envelhecimento e na formação para atuação em equipe nos diversos cursos de graduação e pós-graduação na área da Saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION [WHO], 2017).

Desafios para os profissionais O cuidado integrado e centrado na pessoa idosa exige a constante capacitação dos profissionais da saúde. Esse cuidado demanda habilidades gerontológicas e geriátricas, mas também envolve competências gerais, como a capacidade de compartilhar informações por meio de tecnologias de comunicação e o combate ao preconceito em relação à pessoa idosa (WHO, 2017). Os atendimentos clínicos exigem dos profissionais reciclagens frequentes e adequação de evidências científicas aos cenários de prática, onde eles lidam com processos de envelhecimento desiguais que repercutem em uma população idosa heterogênea. Acrescido ao desafio de capacitação e reciclagem, em muitos países, segundo a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2017), o envelhecimento do contingente de trabalhadores da saúde será outra questão desafiadora. Estratégias para manter os trabalhadores qualificados deverão ser propostas mundo afora. Investir na educação permanente de todos os profissionais é uma condição sine qua non para enfrentar o envelhecimento populacional acelerado e intenso da população. A catástrofe mundial da pandemia de COVID-19 é mais um desafio a enfrentar. As calamidades envolvem seres humanos e têm


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repercussão social, ao deixar marcas indeléveis na vida daqueles que residem nas áreas afetadas. As atividades socioeconômicas transformam o ambiente natural e, nas catástrofes, repensam-se as relações entre sociedade e natureza (CARRASCO, 1992). Nelas também se programa a formulação e implementação de medidas de enfrentamento (MATTEDI; BUTZKE, 2001), que impulsionam a publicação de revistas especializadas, a realização de congressos e até a criação de centros de pesquisa. A análise estratégica de uma calamidade transforma-se num indicador de sustentabilidade (TOBIN; MONTZ, 1997). Ao extrapolar tal análise para a temática do envelhecimento, percebe-se que não existem, na atualidade, políticas voltadas para a sustentabilidade que valorizem a pessoa idosa como sujeito de conhecimento e poder de mão-de-obra para a manutenção da sociedade. Viver anos extras com boa saúde depende de ambiente apoiado para estimular e manter capacidades cognitivas e funcionais. As projeções da epidemiologia propõem as pessoas idosas como a maior parcela da população em poucas décadas. O que tem sido feito para tornar tal realidade financeiramente viável? O que tem sido feito para que essa fração crescente e atualmente trabalhadora não se torne disfuncional e desrespeitada? Como os próprios profissionais têm visto esse momento de suas vidas? Será que eles pensam em se manter ativos e produtivos como profissionais da saúde e devolver à sociedade anos de orientações pelas capacidades adquiridas? Ou pretendem tornar-se aposentados e disfuncionais do ponto de vista da produção de trabalho para uma sociedade melhor, que necessita de apoio e orientação dos mais experientes? Pensam que estão ultrapassados e precisam sair de cena por não aprenderem mais e não serem úteis? Tornam-se descartáveis após envelhecerem? A COVID-19 impulsiona novos aprendizados obrigatórios e provoca a necessidade de reinvenção.


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Dilemas e possibilidades das consultas à distância Nesse horizonte, como questão de sobrevivência, desponta a telemedicina, cuja presença vinha sendo rechaçada anteriormente por alguns profissionais e idosos. Ela possibilita consultas, contatos entre famílias e profissionais, suporte psicológico e novas estratégias de intervenção. A telemedicina, em sua origem, é o exercício da Medicina à distância, cujas intervenções, diagnósticos, decisões de tratamentos e recomendações baseiam-se em dados e documentos transmitidos através de sistemas de telecomunicação, com benefício para pacientes sem acesso a especialistas ou até mesmo à atenção básica. O termo telemedicina foi usado pela primeira vez nos anos 1990. Sua utilização foi vista, inicialmente, como uma proposta que fugia à ética e pretendia substituir a presença do ser humano (d’ÁVILA, 2003). A NASA foi o primeiro projeto a utilizar a telemedicina para aproximar saberes, uma vez que os especialistas dos centros de excelência em Medicina se encontravam distantes das localidades espaciais onde sua participação seria necessária. A partir daí, desenvolveu-se uma infraestrutura em forma de pirâmide tendo em seu ápice o Hospital-Escola, o qual supria a necessidade de orientação aos médicos generalistas de cidades pequenas e evitava a remoção desnecessária de pacientes. Tratava-se de uma administração bem conduzida do atendimento médico especializado. De acordo com essa visão, a Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2012, construiu o projeto “Telessaúde”, cuja patente foi pedida ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial, em função de utilizar a holografia como sistema inovador de visualização de imagens e atendimento. Na UFF, as teleinterconsultas são realizadas on-line e on-time com a presença em 3D de profissionais, pacientes e familiares (DAL BELLO et al., 2012; BEAKLINI et al., 2017), o que difere dos primeiros projetos que usaram como recursos a videoconferência, a telerradiologia e as manifestações de uma “segunda opinião”.


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Em 1988, surgiu o protótipo do sistema de telerradiologia do Massachusetts General Hospital: a “WorldCare”, empresa que opera em alguns países e une o Massachusetts General Hospital e a Cleveland Clinic Foundation para dar assistência nas áreas da Medicina, em especial na educação médica continuada. No Brasil, há experiência em videoconferências e monitoração de sinais vitais e eletrocardiograma (ECG). Na Bahia, por exemplo, pelos convênios entre Santas Casas, postos de saúde e prefeituras, com a instalação de equipamentos de ECG,

transmitem o padrão gráfico por tele-

fone a mais de 400 municípios. Em 1997, o Conselho Federal de Medicina (CFM – Parecer nº 31/97) autorizou assistência médica à distância em condições excepcionais de emergências, nas embarcações e plataformas marítimas, respeitando princípios éticos e técnicos para tratamento de pessoa necessitada, retirando do médico a responsabilidade do exame físico e da execução de procedimentos que seriam realizados por terceiros. Em 1998, o CFM aponta a responsabilidade profissional na transmissão de informações na Central de Regulação de Atendimento Pré-Hospitalar. Em 1999, o Ministério da Saúde (Portaria Nº 824/99) confirma o entendimento sobre essa responsabilidade. Desde então, outras questões surgiram e se passou a investigar a melhor forma de garantir a confidencialidade e a segurança dos dados enviados e das recomendações recebidas. Como criar um padrão de qualidade capaz de atender aos interesses de pacientes e médicos? Na Declaração de Tel Aviv (1999), adotada na 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em 1999, intitulada “Responsabilidades e Normas Éticas na Utilização da Telemedicina”, contemplaram-se algumas destas exigências. A telemedicina envolve questões sobre princípios da ética médica, principalmente no que diz respeito à relação médico-paciente, assim como problemas de ordem jurídica, ao suprimir o momento mais importante do ato médico: a interação física ocorrida no mo-


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mento do exame clínico entre o profissional e seu paciente, onde muitos segredos são revelados (BRASIL, 1988). Com a telemedicina, há redução de riscos e custos relativos ao transporte do paciente ou da imagem de diagnóstico. Os sistemas de comunicações, como a videoconferência, permitem aos médicos e outros profissionais consultar colegas e pacientes com maior frequência e manter excelentes resultados nas orientações. Os avanços da tecnologia criam novos sistemas de assistência e ampliam a margem dos benefícios, ao promoverem maior acesso à educação e à pesquisa médica, em especial para estudantes e profissionais que se encontram fora dos grandes centros. Em primeira instância, a prática está autorizada em momento de emergência, o que decerto será reavaliado. Há necessidade de acesso a um amplo pacote de tecnologias para que as consultas remotas atendam à demanda crescente da população.

Modalidades de consultas à distância Alguns conceitos fundamentais merecem considerações adicionais: A teleassistência é a interação entre o médico, ou outro profissional da saúde, e o paciente geograficamente isolado ou que se encontra sem acesso a um médico local. Esta atividade era restrita, até antes da pandemia, a situações específicas, como emergências. O profissional é legalmente responsável por suas decisões. A televigilância é a interação entre o médico e o paciente ou familiar ou cuidador com transmissão de informação médica por canal eletrônico (p. ex., pressão arterial, Eletrocardiograma - ECG), permitindo a vigília regular do estado do paciente com enfermidades crônicas. Nesses casos, pode-se também ter outra pessoa especialmente qualificada para obter resultados confiáveis e seguros. A teleconsulta ou consulta em conexão direta é a interação do paciente diretamente com o médico, utilizando qualquer forma de telecomunicação, incluindo a Internet. Não há uma relação


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presencial médico-paciente nem exames clínicos e não há um segundo médico no mesmo lugar. Nesse caso, há incertezas a serem superadas relativas à confiança, confidencialidade e segurança da informação intercambiada, assim como referentes à identidade e credenciais do médico. A teleinterconsulta permite a interação entre dois médicos: um fisicamente presente com o paciente e outro reconhecido por sua expertise em determinada área. A informação médica se transmite eletronicamente ao médico que consulta, que deve decidir se pode oferecer de forma segura sua opinião, com base na qualidade e quantidade de informação recebida. Em todas as modalidades de telemedicina, há facilitação da comunicação e acesso entre profissional e paciente. Ainda que remota, essa relação deve basear-se no respeito mútuo, na independência de opinião do médico, na autonomia do paciente e na confidencialidade profissional. Em situações ideais, a teleconsulta deve ser realizada quando o médico já tem uma relação com o paciente ou o conhecimento adequado do problema que se apresenta, de modo que possa formar uma impressão clara e justificável. A decisão de utilizar ou recusar a telemedicina deve basear-se somente no benefício do paciente. O médico assume a responsabilidade do caso em questão, o que inclui diagnóstico, opinião, tratamento e intervenções médicas diretas. As regras correntes de consentimento e confidencialidade do paciente são importantes e o paciente deve assinar o consentimento esclarecido. Esse é um legado da pandemia: os recursos tecnológicos disponibilizados podem ser usados na manutenção do envelhecimento ativo e no controle do envelhecimento com déficits. Um desafio profissional para os anos vindouros é a utilização correta desses recursos para formação profissional, orientação a idosos, familiares e/ou cuidadores, prescrição, prevenção, controle de doenças, estimulação e reabilitação cognitiva e funcional, seja individual ou em grupo.


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Desafios para a pessoa idosa Dentre os inúmeros desafios que a pessoa idosa enfrenta destacam-se: o seu reconhecimento como um cidadão de direitos, o que deveria garantir o acesso prioritário ao cuidado nos diferentes níveis de atenção à saúde; a disponibilidade de cuidadores preparados para auxiliar no seu cuidado; o acesso a tecnologias digitais; a conscientização e o combate à violência contra a pessoa idosa; e a superação da falta de acessibilidade dos ambientes. Quanto ao reconhecimento do idoso como um cidadão de direitos, é importante compreender que a velhice é uma etapa natural do processo de desenvolvimento humano, que introduz demandas específicas e não pode prescindir de investimentos do indivíduo, da sociedade e do Estado. A garantia do acesso ao cuidado integral e integrado a pessoas idosas com múltiplas comorbidades, que têm complexas necessidades de assistência e recorrem a vários serviços de saúde, deve estar prevista nos diferentes níveis de atenção. Apesar do foco crescente no cuidado integral, no planejamento do cuidado, na gestão de casos e na telessaúde para manter a independência das pessoas idosas e evitar a incapacidade, os serviços de saúde e de assistência social respondem a situações agudas e crises, mas têm uma atuação limitada em relação às medidas preventivas (OLIVER, 2012). As síndromes geriátricas, as demências, as neoplasias e as doenças cardíacas respondem por grande porcentagem da ocupação dos leitos hospitalares e pela dependência de serviços domiciliares, cuja ausência pode desencadear a transferência dos pacientes idosos para uma instituição de longa permanência (ILPI). A trajetória que envolve hospitalização, cuidado domiciliar e em ILPI demanda respostas rápidas e intervenções precoces e integradas dos serviços social e de saúde. Vale salientar, também, a ausência de políticas dirigidas aos cuidados de longa duração e cuidados paliativos (GIACOMIN; MAIO, 2016). Ademais, processos de avaliação ampliados, intervenções multiprofissionais, procedimentos para


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melhorar a (des)prescrição de medicamentos e ações intersetoriais coordenadas podem contribuir para um cuidado preventivo e ágil, o que colabora para a qualidade de vida da população idosa. Outro cuidado fundamental diz respeito à qualidade de morte, por meio da oferta de cuidados paliativos nos diferentes pontos de atenção da rede de atenção à saúde. Em relação aos cuidadores informais de pessoas idosas, um desafio persistente é garantir o acesso à informação e ao treinamento para que eles desempenhem de modo efetivo as suas funções no dia a dia (WHO, 2017). Com frequência, tais cuidadores são também idosos ou familiares com doenças que demandam cuidados. O próprio ato de cuidar de idosos frágeis pode ser um fator adoecedor para quem cuida. O acesso à rede de cuidado por meio de diferentes tecnologias e procedimentos deve ser estimulado. A convivência com instrumentos tecnológicos fará com que idosos se tornem cada vez mais aptos a utilizar as redes para a manutenção de um envelhecimento ativo. Muitos idosos têm dificuldade no acesso inicial às tecnologias e vencer essa barreira é uma base para a promoção de sua autonomia. Ademais, é urgente aparelhar a sociedade com políticas de financiamento direcionadas às pessoas idosas. Talvez esse seja um dos maiores desafios sociais e governamentais para as décadas vindouras, ao reduzir a sobrecarga social de um envelhecimento sem qualidade de vida e oferecer uma solução à realidade denunciada por estudos das últimas décadas (MIRANDA; MENDES; SILVA, 2016).

Caso Clínico O caso clínico apresentado a seguir foge aos moldes dos demais deste livro: figura no encerramento do capítulo, como ilustração e reafirmação da forma como o apoio por meio de teleinterconsulta pode redimensionar a vida de um paciente, agregar qualidade aos anos de vida que restam e esclarecer as atividades, por meio de um olhar especializado.


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Paciente de 65 anos, residente na Amazônia em lugar de difícil acesso, com tumor de vesícula biliar e obstrução de colédoco secundária. Apresenta perda ponderal associada a sinais de obstrução biliar, como icterícia, dor abdominal e episódios diarreicos. Indicou-se cirurgia radical, que seria de alto risco pela debilidade do idoso. Foi solicitada, então, consulta holográfica dos profissionais que atendem na Região Amazônica com os profissionais que atendem numa metrópole brasileira, com a presença do paciente e um familiar, para oferecer orientação sobre a cirurgia proposta. Durante a consulta holográfica, discutiu-se o prognóstico e o procedimento a ser realizado. Um dos profissionais da metrópole percebeu que o paciente estava completamente desconectado do que se discutia a seu respeito e solicitava, com o olhar, apoio ao familiar sempre que questionado sobre seu estado. Realizou-se, em seguida, a entrevista familiar, onde ficou evidente que o declínio cognitivo instalara-se meses antes do quadro abdominal. A hipótese de síndrome demencial foi aventada e, após exames complementares, confirmou-se a existência de uma demência degenerativa primária. Com isso, o planejamento cirúrgico foi convertido em uma cirurgia paliativa, o que trouxe ao idoso uma sobrevida de melhor qualidade. Essa decisão permitiu que ele permanecesse no campo, junto a seus familiares, até seus últimos dias, e evitou a realização de uma cirurgia extensa -- que provavelmente não lograria sucesso, uma vez que havia forte probabilidade de ela ocasionar agravamento do quadro degenerativo.


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Considerações finais O século XXI caracteriza-se por mudanças que impõem desafios às pessoas idosas, aos profissionais da saúde e à sociedade. Aos idosos, cabe o desafio de lidar com as novas tecnologias e acompanhar a evolução de seus familiares e do mundo que os cerca. Aos profissionais, geriatras e especialistas em gerontologia, compete criar espaços para a escuta e prestar assistência às diferentes facetas da velhice, onde quer que ela se apresente, além de olhar com atenção e curiosidade para o seu próprio processo de envelhecimento. À sociedade, por fim, resta a árdua tarefa do engajamento cotidiano em prol de uma vida longa, digna e com qualidade para todos os indivíduos.

Referências BEAKLINI, A. C. et al. Interiorização da medicina utilizando um sistema de telepresença holográfico. IV Workshop O Futuro da Videocolaboração (CT-Video) Cap 1, 2017. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 399. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial da União, 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Orientações técnicas para a implementação de Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde da Pessoa Idosa no Sistema Único de Saúde – SUS [recurso eletrônico]. Brasília: Ministério da Saúde, 2018. 91 p. CAMARANO, A. A. Introdução. In: ALCÂNTARA, A. DE O.; CAMARANO, A. A.; GIACOMIN, K. C. Política Nacional do Idoso: velhas e novas questões. Rio de Janeiro: Ipea, 2016. p.15-47. CARASCO, F. Estratégias de desarrollo social en situaciones de desastre. Revista Mexicana de Sociologia, v. 53, n. 4, p. 11-24, 1992.


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DAL BELLO, J. C. R. et al. Pedido de Patente INPI para o Processo de Telessaúde Holográfico, 2012. D’ÁVILA, R. L. Responsabilidades e Normas Éticas na Utilização da Telemedicina. Portal CFM, 18/11/2003. Disponível em: https://portal. cfm.org.br/artigos/responsabilidades-e-normas-eticas-na-utilizacao-da-telemedicina/. Acesso em: 23 mai 2021. DECLARAÇÃO DE TEL AVIV, de outubro de 1999. 51ª assembleia geral da Associação Médica Mundial em Israel. Disponível em: http:// www.dhnet.org.br/direitos/codetica/medica/27telaviv.html. Acesso em: 27 jun 2021. GIACOMIN, K. C.; MAIO, L. G. A PNI na área da saúde. In: ALCÂNTARA, A. DE O. CAMARANO, A.A., GIACOMIN, K.C. Política Nacional do Idoso: velhas e novas questões. Rio de Janeiro: Ipea, 2016. p.135-174. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA [IBGE]. Mudança demográfica no Brasil no início do século XXI: subsídios para as projeções da população. Organizado por Leila Regina Ervati, Gabriel Mendes Borges e Antonio de Ponte Jardim. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. (Estudos e Análises. Informação demográfica e socioeconômica, n. 3). MATTEDI M. A.; BUTZKE I. C. A relação entre o social e o natural nas abordagens de Hazards e de desatres. Ambiente & Sociedade, ano IV, n. 9 p. 1-22, 2º semestre, 2001. MIRANDA, G. M. D; MENDES, A. C. G.; SILVA, A. L. A. da. Population aging in Brazil: current and future social challenges and consequences. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, v. 19, n. 3, 2016. OLIVEIRA, A. T. R. de. Envelhecimento populacional e políticas públicas: desafios para o Brasil no século XXI. Revista brasileira de geografia econômica, ano IV, n. 8, p.1-20, 2016. OLIVER, D. 21st century health services for an ageing population: 10 challenges for general practice. British Journal of General Practice, v. 62, n. 601, p. 396-397, 2012. TOBIN, G. A.; MONTZ, B. E. Natural hazards: explanation and integration. New York: The Guilford Press, 1997.


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WORLD HEALTH ORGANIZATION [WHO]. Global strategy and action plan on ageing and health (2016-2020). Geneva: World Health Organization. Disponível em: https://www.who.int/ageing/GSAP-Summary-EN.pdf. Acesso em: 27 jun 2021.



PARTE I: O CUIDADO EM DIFERENTES CENÁRIOS



capítulo 1

Abordagem prática do cuidado da pessoa com demência

Yolanda Eliza Moreira Boechat Ivan Abdalla Teixeira Aracely Gomes Pessanha Gunnar Glauco de Cunto Carelli Taets Laura Maria Mello Machado

INTRODUÇÃO Demência é definida como uma alteração progressiva da memória e de pelo menos uma outra função cognitiva, representando declínio em relação ao nível prévio de funcionamento, com impacto no comportamento e de intensidade suficiente para interferir no aspecto pessoal, social e profissional da pessoa acometida. Em estágios mais avançados os comprometimentos acarretam dependência total (NASCIMENTO; FIGUEIREDO, 2021). O cuidado ao idoso em processo demencial é um desafio para os profissionais de saúde, tendo em vista que a dinâmica familiar, os sintomas apresentados e a sobrecarga no cuidado demarcam a heterogeneidade de cada caso. O cuidado integral aos idosos deve abarcar suas necessidades de saúde, com ênfase em boas condições de vida, direito de ser acolhido e escutado, possibilidade de desenvolver vínculo com uma equipe que se responsabilize pela atenção contínua e garantia de acesso a serviços e tecnologias ne

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cessários para o enfrentamento de seus problemas (FEUERWERKER, 2016). Para abranger as dimensões que envolvem o processo de envelhecimento, é fundamental que a equipe desenvolva um trabalho interdisciplinar. Não é tarefa simples. A interdisciplinaridade enovela o pressuposto da integração entre as disciplinas e a intensidade de trocas entre os profissionais, que incorporam seus conhecimentos em um novo modo de agir e na forma como se produz o cuidado em saúde, evitando a ótica da individualidade e, consequentemente, da fragmentação do cuidado (BERTAZONE et al., 2016). O objetivo deste capítulo é, a partir de um caso clínico que se desenvolveu em um hospital público, discutir como a abordagem multidisciplinar com ações interprofissionais da geriatria e da gerontologia permitiu promover melhoria da qualidade de vida a uma idosa de 70 anos com evidências de comprometimento cognitivo.

Fisiopatologia e diagnóstico A cognição é um dos desafios no atendimento de pessoas idosas. Trata-se de uma das áreas mais exploradas em neurociências e neurologia comportamental nas últimas décadas. Seu amplo espectro inicia-se no indivíduo cognitivamente normal, passa pelas alterações cognitivas sutis, segue com o comprometimento cognitivo leve (CCL) e pode culminar nos quadros demenciais. Com o envelhecimento populacional revelado pelas estatísticas oficiais, o CCL vem despertando interesse em pesquisas, uma vez que sua evolução para demência trará repercussão na qualidade de vida dos indivíduos (SCHIMIDT et al., 2020; PETERSEN; NEGASH, 2008; SARASIN; DUBOIS, 2002). Desde o século XX, estudiosos reconhecem a importância do diagnóstico precoce do CCL em função da interferência na autonomia, um dos fundamentos da saúde e da própria constituição do indivíduo.


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Petersen (2000; 2003) o classifica como estágio intermediário entre envelhecimento cognitivo normal e a demência. O referido autor aponta que, na maioria das vezes, o CCL evolui para um quadro demencial franco, embora exista a possibilidade de reversão para um estágio de funcionamento cognitivo normal. O CCL pode afetar qualquer domínio da cognição, com maior prevalência de prejuízo de memória, atenção, linguagem, funções executivas e habilidades visuoconstrutivas. Seus critérios clínicos podem ser observados no Quadro 1.1. Em 2014, a American Psychiatric Association o incluiu no DSM-5 como transtorno neurocognitivo menor.

Quadro 1.1: Critérios clínicos para diagnóstico de comprometimento cognitivo leve Queixa subjetiva de prejuízo ou declínio cognitivo. Evidência objetiva de comprometimento cognitivo. Funcionalidade normal nas atividades da vida diária. Ausência de demência.

Desde a década de 1980, construiu-se um modelo baseado na hipótese amilóide de mudanças dinâmicas sequenciais dos biomarcadores para explicar a Doença de Alzheimer (DA), propondo uma cascata prototípica com duração de anos, durante a qual o acúmulo da proteína β-amilóide cerebral e a hiperfosforilação da proteína tau impulsionam a neurodegeneração e acarretam os sintomas cognitivos associados (SNITZ; BRICKMAN, 2019). Para Thomas e colaboradores (2020), a deposição de amilóide ocorre muito antes do declínio cognitivo e, para o diagnóstico de DA, a presença de déficit da cognição não deve preceder as taxas de acumulação de deposição de amilóide. Os mesmos autores observaram que adultos mais velhos sem demência, mas com dificul-


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dades cognitivas sutis identificadas de forma objetiva em testes neuropsicológicos, têm aumento da deposição de amilóide no cérebro em imagens de PET SCAN. As demências podem ser classificadas de diversas formas. Para a finalidade deste capítulo, os autores as dividem entre primárias e secundárias. No primeiro grupo, encontram-se as demências irreversíveis (p. ex., Demência de Alzheimer, Demência de Lewy, frontotemporal) e, no segundo, aquelas potencialmente reversíveis (p. ex., hidrocefalia normobárica, hipotireoidismo e hipovitaminose B12). A maioria das demências combina fatores de risco modificáveis e não-modificáveis. A abordagem dos primeiros impacta o indivíduo de forma diferente em fases distintas de seu curso de vida. Modificar obesidade e hipertensão arterial em uma pessoa de 60 anos não terá o mesmo impacto do que fazê-lo em outra de 90 anos - à medida que uma pessoa envelhece, tende a perder peso, estabilizar e até reduzir a pressão arterial. Quanto mais precoce a intervenção nesses fatores de risco, maior a possibilidade de proteção cognitiva. Avaliar e propor abordagens em tais fatores exige observação clínica e decisões terapêuticas que contemplem a heterogeneidade do envelhecimento (LIVINGSTON et al., 2020). Cabe destacar também a importância dos achados laboratoriais no diagnóstico diferencial da etiologia das disfunções cognitivas. Hiperhomocisteinemia e diabetes mellitus, bem como outras alterações metabólicas, têm associação com maior incidência de disfunção cognitiva (LEE et al., 2021). O caso a seguir motiva a discussão das intervenções disponíveis.


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Idosa, 70 anos, cozinheira e jardineira, aposentada por invalidez, com escolaridade de 5 anos, casada, residindo com o esposo de 75 anos; mãe de quatro filhos que moram distantes de sua casa; dedicada à religião kardecista e amante de música. Encaminhada ao ambulatório de geriatria após o 4º episódio de Acidente Vascular Encefálico (AVE) isquêmico com perda importante de funcionalidade após esse evento. Caminha em casa somente com auxílio de terceiros e usa cadeira de rodas em via pública. Apresentou crises convulsivas e, por tal motivo, faz uso regular de anticonvulsivantes. Tem diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia e doença coronariana com infarto agudo do miocárdio prévio. Após o AVE mais recente, evoluiu com sequela motora (hemiplegia em dimídio direito), incontinência urinária noturna, disartria, afasia e perda da memória recente, com dependência funcional para todas as atividades instrumentais (AIVD) e básicas da vida diária (ABVD), exceto alimentação. Na primeira avaliação de rastreamento cognitivo, apresentou mini-exame do estado mental (MEEM) de 5/30. Após 3 anos, retornou ao ambulatório com MEEM de 3/30 e perda funcional completa. Além da avaliação geriátrica, foi submetida a investigação diagnóstica com exame de imagem. Da equipe gerontológica, foram solicitadas as avaliações da fisioterapia (reabilitação funcional/motora), da fonoaudiologia (estimulação cognitiva e melhora da linguagem), do serviço social (orientação acerca dos direitos da idosa, a fim de melhorar a condição financeira para prover os cuidados), da terapia ocupacional (orientação de adaptações para melhoria da funcionalidade) e da psicologia (abordagens com os familiares para promover adesão ao cuidado proposto).

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Em reunião subsequente de equipe, houve a proposta de abordagem cirúrgica da grave obstrução carotídea, cuja correção traria possibilidade de reversão, ainda que parcial, das disfunções cognitivas e funcionais. A família resistiu à intervenção cirúrgica, o que demandou repetidas conversas com membros da equipe, até que o procedimento foi autorizado e realizado. Seis meses após endarterectomia e reabilitação intensiva pela equipe psicofuncional, a repetição da avaliação cognitiva da paciente registrou MEEM de 13/30, recuperação parcial da continência e da comunicação. Ela voltou a se alimentar sozinha e a fazer solicitações simples. Também conseguia andar com menos auxílio. A partir dessa consulta, indicou-se início de estimulação cognitiva por meio da musicoterapia, além das demais atividades já em curso.

A abordagem interdisciplinar As demências são condições complexas que exigem abordagens múltiplas, porém coordenadas, divididas por propósito didático em farmacológicas e biopsicossociais (ou não-farmacológicas). O tratamento farmacológico visa o controle dos sintomas cognitivos e comportamentais e inclui medicamentos diversos, como anticolinesterásicos, antagonistas dos receptores N-metil-D-aspartato (NMDA), antidepressivos, antipsicóticos e psicoestimulantes. No caso em questão, por se tratar de demência por doença cerebrovascular, o uso de antiagregante e estatina é fundamental para prevenção secundária de novos eventos isquêmicos, mas não impacta na síndrome demencial já instalada. Em uma fase poste-


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rior, com total dependência e impossibilidade de reversão do prejuízo funcional, tais medicamentos devem ser reconsiderados. Os anticolinesterásicos (rivastigmina, donepezila e galantamina) aumentam a concentração de acetilcolina na fenda sináptica e podem melhorar a cognição ou atenuar o declínio cognitivo nas fases inicial e moderada de demência de Alzheimer, demência por corpos de Lewy e demência na doença de Parkinson (O’BRIEN et al., 2017). Não há evidência para seu emprego na demência vascular pura, apenas para as formas mistas. Em geral, os anticolinesterásicos são bem tolerados e constituem tratamento de primeira linha também para o controle das alterações comportamentais na demência. Contudo, podem agravar a agitação em pacientes com demência frontotemporal e não devem ser usados nestes. Ademais, convém conhecer seu extenso perfil de efeitos colaterais, que incluem perda de apetite e peso, bem como arritmias e indução ou piora de incontinência urinária. A memantina atua como antagonista dos receptores de NMDA. Uma metanálise recente demonstrou benefício do uso da memantina na cognição e na funcionalidade de pacientes com demência de Alzheimer em estágio moderado a avançado, independente do uso concomitante ou não de anticolinesterásico (McSHANE et al., 2019). Entretanto, o mesmo não foi observado na demência de Alzheimer na fase inicial. Portanto, apesar de prática comum, não há qualquer suporte para o uso da memantina na fase inicial. Questiona-se o benefício na demência vascular leve a moderada, com poucas evidências, que são ainda mais limitadas em outros tipos de demência (Lewy, Parkinson, frontotemporal e relacionada à AIDS). Importante ressaltar que anticolinesterásicos e memantina não estão indicados para pacientes com comprometimento cognitivo leve. Antidepressivos, especialmente os serotoninérgicos e, dentre eles, o citalopram, possuem crescente utilidade no tratamento de sintomas de agitação na demência (WILKINS; FORESTER, 2016), apesar de não serem eficazes para tratamento da depressão secun-


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