Filipe Romão | Estas paisagens não existem

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Filipe Romão Estas paisagens não existem

Curadoria de Maria de Fátima Lambert

2 março >>> 3 abril de 2019


Depois do Espaço t, surge a Quase Galeria Espaço t, espaço de integração pela arte, numa perspetiva de inclusão total, sem tabus, estereótipos, preconceitos e tudo aquilo que segrega o valor humano. Valorizamos apenas a aceitação incondicional do outro. Numa perspetiva transversal da sociedade, dos ricos dos pobres, dos coxos aos esteticamente intitulados de belos, todos cabem no conceito. Num mundo cada vez mais desumanizado, solitário, onde todos são “colocados em gavetas”, verificamos que o homem apenas representa o papel que lhe é dado, e quase nunca mostra o seu verdadeiro interior. Com o Espaço t, aqueles que por ele passam ou passaram, crescem e entendem que o verdadeiro homem não é o do “gaveta” mas o do seu interior e entenderam também o que há na sua verdadeira essência, quer ela seja arte bruta, naïf ou apenas arte de comunicar, é por si só a linguagem das emoções, a linguagem da afirmação do maior valor humano. O pensar e o libertar esse pensamento crítico sobre uma forma estética. Esse produto produz uma interação entre o produtor do objeto artístico e o observador desse mesmo objeto; promovendo assim sinergias de identidade e afirmação melhorando dessa forma a auto estima e o auto conceito daqueles que interagem neste binómio e se multiplica de uma forma exponencial. Este é o Espaço t, E apesar de sempre termos vivido sem a preocupação de um espaço físico, pois sempre tivemos uma perspetiva dinâmica, e de elemento produtor de ruído social positivo, ruído esse que queremos que possa emergir para além das paredes de um espaço físico. Apesar de não priorizarmos esse mesmo espaço físico, pois ele é limitador e castrador foi para esta associação importante conseguirmos um espaço adaptado às necessidades reais e que fosse propriedade desta associação que um dia foi uma utopia. Com a ajuda do Estado, mecenas, e muitos amigos do Espaço t, ele acabou por naturalmente surgir. Com o surgir do espaço do Vilar, outros projetos surgiram tendo uma perspetiva de complementaridade e crescimento desse espaço, que apesar de real o queremos também liberto desse conjunto de paredes, fazendo do espaço apenas um ponto de partida para algo que começa nesse espaço e acaba onde a alma humana o quiser levar. 2


Surgiu assim a ideia de nesse lugar criarmos outro lugar, também ele figurativo embora real, chamado Quase Galeria. Uma galeria de arte contemporânea com um fim bem definido: apresentar arte contemporânea Portuguesa nesse espaço, dentro de outro espaço, onde cada exposição será uma fusão de espaços podendo mesmo emergir num só espaço. Com este conceito pretendemos criar uma nova visão do Espaço t, como local onde outros públicos, outros seres podem mostrar a sua arte, desta vez não terapêutica mas sim uma arte no sentido mais real do termo que forçosamente será também terapêutico, pois tudo o que produz bem estar ao individuo que o cria é terapêutico. Com o apoio das galerias: Graça Brandão, Carpe Diem – Arte e Pesquisa, Carlos Carvalho, Presença, Reflexus /Nuno Centeno, Modulo, 3 +1, Jorge Shirley, Alecrim 50, Ateliê Fidalga (São Paulo/BR), Progetti (Rio de Janeiro/BR), Ybakatu (Curitiba/BR), Mercedes Viegas (Rio de Janeiro/BR), Waterside (Londres/UK), Módulo, Vera Cortês (Contemporary Art Agency), Filomena Soares, Fernando Santos, Galeria Sete e com a Comissária e amiga Fátima Lambert, temos o projeto construído para que ele possa nascer de um espaço e valorizar novos conceitos estéticos contribuindo para a interação de novos públicos no espaço com os públicos já existentes promovendo assim, e mais uma vez a verdadeira inclusão social, sem lamechices, mas com sentimento, estética e cruzamentos sensoriais humanos entre todos. Queremos que com esta Quase Galeria o Espaço t abra as portas ainda mais para a cidade como ponto de partida para criar sinergias de conceitos, opiniões e interações entre humanos com o objetivo com que todos sonhamos – A Felicidade.

Jorge Oliveira O Presidente do Espaço t

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Parte I – Estas paisagens não existem – Filipe Romão dixit – Quase Galeria

“imito a paisagem como se te imitasse, ou te escrevesse teu corpo dilui-se nos ossos das páginas, contamina as cartilagens das sílabas”1 Afinal estas paisagens existem. A presença de uma árvore única acontece. É a utopia que preside à assunção de toda uma série de paisagens-desenhos com que Filipe Romão brinda o nosso imaginário. De algum modo, lembrando Perajaume: “Paisagem e eu fugimos para a pintura…”2 Seguindo o exemplo do artista catalão, a paisagem e eu fugimos para dentro dos desenhos. Cada pessoa tem as suas peculiaridades. Nalguns caibo mais apertada, noutros o espaço é mais propício. A paisagem na sua multiplicidade cabe em formatos diferentes, diversificando-se e, todavia, sendo una. Por vezes a paisagem é muito, muita uma natureza pensada. Com tal intensidade que nunca seria possível fosse real. Porque a realidade nunca é assim tão convincente. Estas paisagens não existem: nem de outra forma poderia ser, ou estariam a atraiçoar os seus pressupostos epistemológicos. Tanto não existem pois são iluminadas de dentro para fora. Estando fora uma luz noturna que o imaginário potencializa, enaltecendo fantasias e ilusões. Predomina uma estética do artifício que se toma emprestada a Bernardo Soares, em missão estética pessoana. São visões quase alquímicas, inventadas como bem lhes compete, pois falamos de paisagens e não de sonhos. Porque os sonhos existem, mas as invenções precisam de 1 2

Al Berto, Vígilias, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p.26 Perejaume, “Pintura Caminada”, Oli damunt paper, Barcelona, Ed. Empuriès, 1992, p.11 4


matéria. A incongruência dos termos é complexa e sedutora. Impregna-se de uma aridez que corresponde a destino, a geografias indefiníveis. As paisagens que não existem tomam a palavra e assumem a prioridade de serem imago. Mas as imagens também não existem sem mais. O que complica as reflexões irreversíveis que se projetam até ao espetador. A paisagem é ou não uma invenção? A paisagem existe ou está em falta? Quanto se sabe, o termo paisagem integrou, pela primeira vez, num dicionário de latimfrancês em 1549, na edição de Robert Estienne. Nessa definição o termo indicava ao mesmo tempo quer a representação pintada de uma vista, quer a realidade em do país (campo) representado – numa aceção de algo que era observado à distância. Assim, o termo remete para a imagem e para a coisa, ainda que se perceba seja dada maior enfase à representação em si. Deriva, etimologicamente, de país em vários idiomas latinos europeus – paisagem (PT), paysage (FR), paisatje (CAT), paisaje (ES), paessagio (IT), enquanto na língua inglesa e na alemã, a título de exemplo, país cede lugar a terra, ou seja, respetivamente Landscape e Landschaft. Paisagem era então frequentemente usada entre os pintores, tendo Garnier (1573) em Hyppolyte (v.1224), atendido à palavra, associando-a a olhar: “De uma paisagem inigualável, vista ao longe.” 3 Relembre-se o ditado popular que diz: “Pintura e peleja, de longe se veja.” Assinale-se que à ideia de paisagem, se associa a ideia de distância, por certo aferida à perspicácia do olhar que vê, assim como a intenção de afastamento e de aproximação, por parte do observador – que não é um participante.

O género [pictural] de paisagem, na pintura ocidental surge tardio em diferentes culturas, relembrando com Augustin Berque, que carecia cumprirem-se cinco condições para que se qualificar uma cultura como paisagística. Deveria existir numa dada língua, um ou mais termos que designassem paisagem; verificarem-se práticas de organização estética em jardins (acrescentaria eu, os bosques ou locais afins); deparar-se na literatura oral e/ou escrita respetiva com referências laudatórias - descritivas, evocativas; constatar-se a conceção de representações pictóricas de Philippe Desan, “Montaigne paysagiste”, Nature et paysages, Paris, Publications de l’École nationale des chartes, 2006, p.40. Do mesmo autor veja-se também “Paysages”, Montaigne: les formes du monde et de l'esprit, Paris, Presses Sorbonne, 2008, p.93 3

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paisagem ou elementos constitutivos da mesma.4 Ciente de que tais condições – para que se qualifique uma cultura paisagística - sejam questionadas ou esclarecidas, não se deixa de considerar pertinente como determinaram o reconhecimento pela História da Arte Europeia Ocidental, de uma pintura em que a paisagem se bastasse a si mesma sem mais adereços figurativos. Se, na literatura, a famosa descrição da subida ao Monte Ventoso, empreendida por Petrarca (26 de abril 1336), é um dos textos que inaugura a consciencialização da paisagem – natural e humanizada, na pinturas desse tempo constata-se que o tema ainda não era frequente (tido como isoladamente), quanto mais autossuficiente (quer a nível estético, quer artístico). As tomadas de vista sobre jardins que se destacam nos murais de Pompeia foram precursores das veduto e dos panoramas que séculos mais tarde adquiriram a maior relevância e que persistem até hoje. Por outro lado, os fundos virtuosísticos de paisagem, reconhecem-se em iluminuras e retábulos, ainda que servindo propósitos específicos, que não se esgotavam per se. No caso das manifestações pictóricas da cultura romana, estar-se-ia mais próximo de uma identidade cultural paisagista do que nos séculos seguintes, durante o período medieval. Destacam-se nomes, donde o de Joachim Patinier, seja o mais evidente, entre os pintores que atribuíram nas suas composições maior destaque aos tópicos paisagísticos do que as figurações e temáticas que, supostamente eram protagonistas e motivos dominantes. Mas, trata-se de um pintor que exerceu atividade em finais de séc. XV, inícios de XVI (1483-1524).

Por outro lado, não se olvide quanto a natureza se transmutava em paisagem, por exemplo, nas representações dos meses, dos ciclos e estações do ano, como se observa nas Les très Riches Heures du Duc de Berry (1411-1416) em França ou na obra de Mestre Wenscelas (séc. XV), Itália. Na Idade Média, sublinhe-se, a celebração da natureza ocupava um desígnio teológico, a paisagem tinha por missão de refletir a excelência da Criação divina. Assim, o tema configuravase em termos de beleza exaltada em cores e detalhes, sendo relevante mas não exclusivo em si.

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Augustin Berque, Cinq propositions pour une théorie du paysage, Paris, Champ Vallon, 1994, p. 16 e ss. 6


O que prevaleceu em Petraca, questiona Christophe Imbert5, conforme ia escalando o Monte Ventoux, o que vivenciou quando atingiu o cume? E, sobreudo ,o que persistiu, reverberou em si? Distinguia a completude da vista panorâmica – de teor geográfico que supomos, ou preponderava na sua mente o que advinha de um percurso autognósico, de personalização e busca? Após Imbert, acredito que na paisagem, ambas perspetivas se entrelaçam, ou pelo menos, não se exlcuem. Talvez a noção da distância contribua para o mergulho hermenêutico de si. Artistas como Leonardo, Albrecht Dürer e Albrecht Altdorfer organizaram as suas preferências estéticas no tocante à assunção de fragmentos de paisagem: nas pinturas do italiano; nas gravuras, aguarelas e guaches dos alemães. Na abordagem à obra de Filipe Romão, cabe mais a referência ao pintor de Nuremberga, destacando peças específicas a relacionar: a densidade do traço, modelação de volumes e formas, uma saturação mesmo como se analisa num fragmento, seção inferior da gravura Némésis (1502); parte do setor esquerdo superior no guache e aguarela de Caminho de Montanha (1494). Numa distância próxima do observador, a gravura Paisagem com canhão (1518) possui a trama de modelação, traços e sobreposições que a respiração se retém, algo que sucede perante a saturação de pigmento em pinturas de Filipe Romão. Afirmar a não existência, talvez seja demasiado impositivo, talvez. Por outro lado, e muito em particular, a estratégia que coordena a aproximação no formato de desenho, é quase um zoom, ago que dialoga, como se pode apreciar, a eleições compósitas de Durer, analise-se o canto inferior direito da gravura Madonna com o símio (ou o canto inferior direito de Casa isolada num estanque (1495). Ainda o maciço de árvores (lado direito) Moinhos de água em Peignitz (1506), os ramos de arbustos, aparentemente calcinados, mortos em Pedreira (1496); o detalhismo de flores tal como é celebrado em Botão-de-ouro, trevo vermelho e banana-da-terra (1526) e, sobretudo, a densidade existencial das plantas em O Grande tudo de ervas (1503) e em Pequeno tudo de ervas – igualmente no Museu Albertina de Viena. Pois, eu acredito, as plantas, as árvores, a vegetação são sobremaneira existenciais na pintura e desenho de Filipe Romão. É condição, origem e destino em simultâneo. Albrecht Altdorfer (1480-1538) legou-nos pinturas e gravuras notáveis, aqui ponderando acerca das últimas que dialogam com o anteriormente analisado quanto a Dürer. Gravuras como Paisagem com cidade à beira do lago (c. 1520) a atmosfera desenhada agarra linhas mais leves que estruturam o arvoredo, sem a densidade e tensão que se vê no pintor de Nuremberga e, muito menos, na acentuação dramática que Filipe Romão determina. Contudo, averiguando outras peças como: Paisagem com abeto duplo em primeiro plano (1521-1522); a fusão da vegetação com as figuras em São Jorge a matar o dragão (1511); a árvore que se ergue solitária no canto superior direito de O sonho e julgamento de Páris (1511); a seção superior esquerda quer em O sonho de Paris (S/d), quer em Piramus e Thisbe (S/d). Nestes fundo que são afinal atores principais nas gravuras do gravador bávaro, as encenações atmosféricas são dramáticas, empolgando os espetadores que se adentram na imagem. Estudem-se pois seções nas composições, excertos gráficos, fragmentos destacados que demonstram o rigor no tratamento de detalhes com o teor da abordagem que em Filipe Romão vai além da celebração mimética, avançando nos territórios dos seres vegetais e atmosféricos (também) imaginários. Tudo parece estar num estado de contenção, podendo dinamizar-se a qualquer instante, ultrapassando o pseudo-hieratismo, avançando para um turbilhão psico-estético. Em Estas paisagens não existem vemos arbustos, flores, árvores, nuvens, terra, pedras exaltadas. São representações mas não existem reais, exatamente assim, quanto a disposição ou concatenação de dados figurais. Pensa-se quase de forma inevitável na lucidez de Gaston Bachelard ao indicar o reconhecimento criacional subsumido, por privilégio, a um dos 4 elementos. 5 Christophe Imbert et Philippe Maupeu, Le Paysage allégorique – entre l’image mentale et le pays trasnfiguré, Rennes,

Presses Universitaires de Rennes, 2011 7


Água, fogo, ar ou terra não são assim tão explícitos, não se plasmam por exclusividade a esse ponto, na obra do artista português. Todavia, reconhecemo-los, sabemos de algumas lembranças ou efabulações parecidas. Sejam referências internas singulares, provenientes, formatadas na ordem da memória ou da imaginação, o fato é que fornecem asas a qualquer imaginário individual que queira festejar o desígnio. Reais, imaginárias, idealizadas [est]as paisagens são sempre simbólicas. Em alguns casos, adverte-se quem leia ou veja, existem sob causa de uma intencionalidade alegórica. Que concatenações se promovem, quando é plausível ultrapassar as consignações significantes de circunstância?

Estas paisagens não existem porque são alegorias de si mesmas, residem num território – parafraseando – situado entre a imagem mental e um país transfigurado.6 Como se sabe, na tradição e prática ocidental da pintura, a dimensão alegórica oscila entre o que emana de um pensamento adquirido, que é normativo, e uma ativação introspetiva flexibilixadora e é capaz de acionar, de infligir, sem restrições, impulsos transfiguradores, determinantes, impondo a transmutação. A paisagem alegórica viaja entre dois polos: “uma paisagem mental propriamente alegórica que fornece o enquadramento necessário à figuração e a um desembrulhar da ideia; e uma paisagem natural – real – que se converte em espelho da alma, a paisagem simbólica da crítica pós-moderna.”7 Excluem-se ou clamam por si, pois, os princípios dominantes que poderiam corresponder, respetivamente, à matriz, à radicação medieval – afeta a uma estética sensibilizada pelo vocabulário visual descodificável – e a uma indexação romanticista eivada de conotações psicoafectivas, impregnadas por contaminações pulsionais. Entre a alegoria e o mítico-simbólico estar-se-á no paraíso ou no tempo apocalíptico. Saliente-se que nas paisagens que não existem, o tempo não se presentifica pleno, deixando brilhar a decisão espacial. Mas a organização do espaço que é, na realidade, lugar de nenhures, parece estabelecida por camadas vividas de tempo demorado e consistente. Impenetrável: quer o tempo, quer o espaço, nos previnem dessa imposição, desse estado, porque a matéria ideada da pintura os suplantou, dominou-os e quase os excluiu, de tão poderosa e definitiva que sobrevém.

Christophe Imbert et Philippe Maupeu, Le Paysage allégorique – entre l’image mentale et le pays trasnfiguré, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2011 6

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Op. Cit. 8


As paisagens simbólicas, imaginárias, alegóricas tornam-se mais reais, o que não lhes garante serem, possuírem uma existência reificada. Todavia, mediante a perceção estética que suscitam, tornam-se em algo mais efetivo do que qualquer ousadia latente. Dir-se-ia que “afinal as paisagens existem” na sua vida privada de pintura, de desenho. Padecem dessa circunstância, dessa categoria ainda que atribuída a posteriori e não sendo condição a priori para como tal se concretizar. A existência chegou depois, através da convicção que o artista soube outorgar-lhe; pelo dom de transpor as suas imagens ou mentais ou simbólicas ou imaginadas devidamente tratadas com o poder das ideias. Mas o poder das ideias não anula o poder das imagens, pois se implicam e adensam. O enfoque percetivo solicitado ao espetador pede a deslocação física. Há o movimentar-se, elevando os olhos e obrigando-os a exercícios de aferição, de [re]focagem; há a precisão de se distanciar e tornar próximo, consoante o ritmo de observação que se queira (ou disponha) para ver. Os princípios mínimos dinamizam a perceção totalizadora, dirigindo caminhos inventados, em excertos de estrada a corta-mato em que se sousa penetrar. É uma via exploratória que estimula. À semelhança de uma pedreira, de um pântano ou de um enorme bosque, suga-nos para dentro, para conhecer o que é impercetível para cada um e para outrem. As paisagens que não existem determinam sentimentos que se disfarçam. São, afinal reinos genuínos e paisagens ambicionadas e temidas. Por isso não existem, embora sejam mais poderosas por isso mesmo. Aparentam fragilidade, clareiam-se na luz focada de uma ascensão. Estas paisagens [que] não existem inscreveram-se – sem retorno - na pintura, com tal intensidade que parece terem-se-lhe gravado, embrenhado, cavado na pele profunda – como escarificações, incisões preenchidas por pigmento noturno. Adquirem uma identidade única. Assim como ninguém vê as paisagens da mesma maneira, tampouco estas pinturas poderiam retratar algo a ser na efetividade do real percecionado em termos visuais. Foi o pintor e cada um daqueles que as veja, a exercer a sua capacidade de as incorporar como realidade existente na pintura, plasmando a verdade que se confunde quase sempre. Além de ser um enigma da ordem representativa (do artístico) coloca outras ordens de problemáticas: fenomenológica, gnoseológica, epistemológica, estética…clamando por conhecimentos que se extraem e revisitam da filosofia do imaginário e da antropologia cultural simbólica. 9


Parte II – No Museu Nacional Soares dos Reis: Estas pinturas não existem e as pinturas de Henrique Pousão

No contexto da programação Ações estéticas quase instantâneas o projeto desenvolvido por Filipe Romão consistiu na escolha de obras, dentro da série em epígrafe, em convívio com as pinturas na Sala de Henrique Pousão. A paisagem preside na pintura do pintor nascido em Vila Viçosa e que o destino conduziu para uma Itália mediterrânica, ensolarada e vibrátil – muito em particular a ilha de Capri. Ainda que por infelicidade sua, a estadia no Sul de Itália e Capri coincidiu com a idealização reificada de um universo capaz de ser visto, absorvido e a ser plasmado numa obra onde se reconhecem lugares [in]existentes. Após Henrique Pousão, a pintura de paisagem em Portugal adquiriu outras circunstâncias, qualidades e exigências. Transpôs uma singularidade lumínica que apenas uma personalidade convicta sabe transmitir. Os seus enquadramentos, a ilusão e a verdade do inacabado, o jogo persistente entre o desenho e a pintura realizam paragens inéditas para os espetadores. Na parede, os formatos dividem a nossa escala, ainda que o nosso visor sobre o horizonte se dimensione e regule como que automaticamente. Daí ter escolhido trabalhos de diferentes dimensões no imaginário de Filipe Romão para esta adição na Sala Pousão. O fato de dois dos desenhos não estarem emoldurados (os maiores) e um outro estar com moldura é componente de um jogo que alude à própria diversidade de apresentação das tábuas e pinturas de Henrique Pousão. À parede vemos pequenas pinturas, com recantos e excertos de vistas com molduras que as recolhem. Depois, respeitando formatos e medidas análogas, vemos as pinturas na horizontal, sem moldura e dentro de expositores com vidro. Mas, quer numa, quer noutra situação, a ser-lhes proporcionada, o interesse e a volúpia do olhar persiste. Assim as olhamos deitadas, em descanso dentro das vitrinas. São pequenos formatos, concentram uma parcela muito grande do mundo, que aparentemente lá não caberia. Também os desenhos de Filipe Romão se simulam a si mesmos, glosando uma verdade artística que lhes confere peculiaridade. Os seis desenhos compõem uma visão debruçada, onde o nosso corpo se deixe seduzir pela necessidade de ver para além do que se saiba para enxergar. Estabelecem-se entre todos os trabalhos de Filipe Romão e entre estes e as obras de Henrique Pousão narrativas adicionadas que, de outro modo, não existiriam. Então o confronto entre autores de épocas distando entre si permite acumular novas doses de verdade e

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experiência às existências admitidas. Ou seja, residirá também em nós, enquanto público uma razão interpretativa que é polissémica, heterogénea. “L’image est une création pure de l’esprit. Elle ne peut naître d’une comparaison, mais du rapprochement de deux réalités plus ou moins éloignées.’ ‘Plus les rapports des deux réalités rapprochées seront lointains et justes, plus l’image sera forte, plus elle aura de puissance émotive et de réalité poétique.’ ‘Deux réalités qui n’ont aucun rapport ne peuvent se rapprocher utilement. Il n’y a pas création d’image.’ Deux réalités contraires ne se rapprochent pas, elles s’opposent.”8 Atribuir qualificativos à paisagem pintada ou desenhada, encaminha por vezes para a sensação de domínio de quando se vêm fotografias cujos conteúdos são paisagem. O questionamento da razão representativa passa não apenas por aquilo que de fora se internalize e devolve em obra feita, independendo do registo, da receção e da colocação do corpo do artista que desempenha o seu processo. Todos esses tópicos são invisíveis de forma explícita na obra. Mas teima-se em descodificar intenções e desvelar procedimentos, pois nos reconhecemos anda que não sendo autores nas visões e nas ideias de quem cria as obras. Estas paisagens não existem é [também um mantra. Questiona-se como – no contemporâneo e no atual – a paisagem poderia ser recuperada pelo olhar, narrando a cidade, narrando o território, sem procurar a sua descrição. “É ainda possível pintar paisagens?” perguntava Nelson Brissac-Peixoto, considerando que o recurso de Italo Calvino, ao estilo efabulatório das histórias clássicas de aventuras, lhe servia exatamente por isso. Assim, as suas personagens desenvolvem relatos, à semelhança dos tempos em que as narrativas sobre as terras distantes substituíam as viagens e os viajantes as incorporavam, tornando-se narradores e cartógrafos – “o narrador benjaminiano que é o viajante”. Para concluir que “Neste género tão anacrónico – como o paisagismo – mas ao mesmo tempo tão atual, a literatura encontra a pintura.”9 Dos Lugares onde nunca estive, é o título da Série de obras que integram o projeto Estas paisagens não existem. Depois de ter visto os desenhos e as pinturas, deixemos os lugares onde nunca estivemos residirem na nossa memória. Visitemo-los a qualquer momento, quando assim nos aprouver. Provavelmente lá encontraremos, numa dessas paisagens que não existem, o artista - Filipe Romão. Maria de Fátima Lambert Porto, fevereiro/março 2019

Pierre Reverdy, Nord-Sud, Self-Defence et autres récits sur l’Art et la Poésie (1917-1926), Paris, Flammarion, 1975, p.73 Cf. Nelson Brissac-Peixoto, Paisagens Urbanas, São Paulo, Senac Editora, 2003 in https://books.google.pt/books?id=z7xG6XSmg18C&pg=PA26&lpg=PA26&dq=Nelson+BrissacPeixoto+olhar+do+estrangeiro&source=bl&ots=AOOj-9ng-s&sig=noEjnIagwPml41R-hsLvyQNrHTI&hl=ptPT&sa=X&ei=PCafVM3CLoOuUcHQgKgL&ved=0CFEQ6AEwBw#v=onepage&q=Nelson%20BrissacPeixoto%20olhar%20do%20estrangeiro&f=false (pdf. p.26/31) 8 9

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Fichas Técnicas MNSR Na parede Série Dos Lugares Onde Nunca Estive #35 – carvão sobre papel, 56 x 76 cm, 2019 #12 – carvão sobre papel, 76 x 56 cm, 2018 #31 – carvão sobre papel, 25 x 16 cm, 2018 Na vitrina Série Dos Lugares Onde Nunca Estive # 40 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019 # 41 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019 # 42 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019 # 43 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019 # 44 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019 # 45 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019

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FILIPE ROMÃO nasceu em Lisboa, em 1981. Trabalha e vive em Sintra. Licenciou-se em Artes Plásticas - Pintura, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, em 2009. Em 2002 concluiu o Curso de Fotografia Profissional pela ETIC – Escola Técnica de Imagem e Comunicação. Exposições Individuais 2018 “Dos Lugares Onde Nunca Estive”, Galeria SETE - Arte Contemporânea, Coimbra. 2017 “Lugar”, MU.SA (Museu das Artes de Sintra), Sintra. 2014 “Na quietude do Lugar”, Museu Arqueológico do Carmo, Lisboa. 2010 “Atmosferas”, Sala Atlântico, Ericeira. 2009 “Outros Olhares”, Museu Terras de Basto. “Pétra", Galeria Castelo Pires Couxe, Loures. “De que eternidade se faz o instante em que dele apenas perdura a sua memória?”, Galeria Jorge Shirley, Lisboa. “Constâncias Lumínicas”, Casa de Cultura D. Pedro V, Mafra. 2007 “Entre o Céu e a Terra. Memórias de uma Paisagem”, Casa de Cultura Jaime Lobo e Silva, Ericeira. 2004 “Pela estrada fora”, Biblioteca Municipal, Aveiro. Exposições Colectivas 2018 “Pequenos Formatos”, Galeria Monumental, Lisboa. “Arte de Bolso, 7ª edição”, Galeria 7, Coimbra. “Ases e Trunfos”, Galeria SETE – Arte Contemporânea, Coimbra. JUSTLX, Stand Galeria SETE - Arte Contemporânea, Museu da Carris, Lisboa. “Convergências”, Galeria Orlando Morais da Casa de Cultura Jaime Lobo e Silva, Ericeira. 2017 “Arte de Bolso, 6ª edição”, Galeria 7, Coimbra. “Convergências”, MU.SA (Museu das Artes de Sintra), Sintra. “Travessia”, Centro de Congressos do Estoril e Farol Museu de Santa Marta, Cascais. 2016 “Arte de Bolso, 5ª edição”, Galeria 7, Coimbra. 2014 “DISCOOPERIO”, Edifício Descobertas, Carnaxide. “Colectiva Fotografia”, Atelier do Paço, Lisboa. 2012 “I Mostra Lusófona de Vídeo Arte”, Fábrica de Braço de Prata, Lisboa. 2010 “Sombras Latentes”, Galeria de Arte da Fábrica do Braço de Prata, Lisboa. 2009 “Actos Isolados”, Espaço Avenida, Lisboa. 2008 “10ª Edição do Prémio de Pintura e Escultura D. Fernando II”, Belas, Sintra. “Em Diferentes Escalas”, Espaço Avenida, Lisboa. 2007 “Arte em Cadeia”, Sala Bocage, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa. 2006 “II Encontro de Arte Jovem”, Bienal de Arte, Regimento de Infantaria nº 19, Chaves. 27


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