XIX(ON) SOUND

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© Texto: Xavier Frías Conde © Imagem: Inaciu Galán © Lastura, 2010. Blog Eonaviego.

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SOBREVIVÊNCIA



I

É muito difícil dizer que não a um chefe, nomeadamente quando o teu soldo está em jogo. Ele era um paisano velho, desses que parece que não têm nada melhor a fazer na vida do que passá-la no escritório, fumador compulsivo e calvo solene exceto por uma faixa de cabelo ralo a se espalhar ente as duas orelhas. O meu chefe estava casado com uma mulher quarenta anos, mais nova do que ele, mas generosa de carnes. Tratava-se duma mulher composta, como comentavam no escritório –não era cousa minha, juro-o– com três bolas: uma pelota para a cabeça, um balão de praia para o corpo e um pneumático para o cu. Era assim. A minha vida poderia ter passado tranquilamente com aquelas minhas vistas ao Passeio de Begonha, onde costumava assomar a gaita para sentir o fresquinho quando não estava o chefe perto. Mas foi precisamente num daqueles momentos em que me vinha a inspiração ao som das 5


pombas que se cortejavam ao lado do café Dindurra, naquele arco estranho de cimento do que manava água, quando senti ás minhas costas a voz de apito do meu chefe, que me pilhara in fraganti a olhar pela janela: – Carlinhos –como odiava que me chamassem assim!–, vejo que está você em fase de inspiração poética... Fiquei de pedra. Primeiro porque o seu tom de voz não era de reproche, segundo porque me falava de inspiração, o qual significava que conhecia algo sobre as minhas afecções poéticas, cousa da qual eu nunca não falava no escritório. Efetivamente, esse assunto da poesia era o motivo da sua visita, porque havia algo com que me ia alegrar o dia. – Você tem um desses blogues na internet, verdade? –a sua pergunta foi inesperada, como um ataque à parte que más dói. – Pois é... –hesitei eu. – É que a minha mulher –teve que sair a sua mulher, o terror de todos os que trabalhávamos naquele escritório– o descobriu navegando –com certeza que estava todo o dia pendurada do computador, ociosa, cheia de fantasias sexuais–, e disse-me que lhe prestara demais... 6


O meu coração começou a bater fora de controlo. Senti terror. Não era normal que aquela paisana, que cada vez que passava pela oficina nos largava miradas insinuantes, tiver inquietudes intelectuais. Tanta carne preta não podia albergar boas intenções, e menos ainda estando casada com um cinzeiro andante. Contudo, esperei que o meu chefe acabasse de me bater. – Verá, Carlinhos –outra vez, que vontade de esfolá-lo–, ela escreve poesia –isso é a morte da literatura para sempre!–, como você – ha, ha, ha –. Por isso, queria pedir-lhe um favorinho de nada... Quedei paralisado de tudo. – Queria pedir-lhe –seguiu a dizer– que lhe publique alguns poemas à minha mulher no seu blogue, porque ela já me disse que você põe poemas doutra gente, ademais dos seus, e que tem muito sucesso... Não me dirá que não, certo? Apenas pude articular um sorriso fato e um movimento de cabeça que, for como for, o interpretou como um sim.

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II

Os ‘poemas’, como era de prever, levava-os o meu chefe acima. Não hesitou em mos passar. Tratava-se dum rolo de papeis onde escrito com letras maiúsculas pude topar um ataque ao bom gosto, tanto estético como lingüístico, o qual era totalmente previsível conhecendo a paisana. Não vou expor o contido daqueles papeis, para quê. Foi tremendo, caiu-me a alma aos pés depois de botar uma olhada a aquelas linhas, onde ademais se misturavam sem sentido nenhum corinhas –não sei por que lhe prestava àquela paisana misturar cores sem gosto nenhum. A questão era singela: se não publicava aquela merda –e perdão pela expressão, mas é o que melhor o descreve–, o meu chefe ia fulminar-me, ia topar o modo de me despedir. E tendo a hipoteca 8


per aí a voar, era algo que de jeito nenhum me podia permitir. O resto da manhã, a tarde seguinte e a noite conseguinte passei-as a arrastar a minha alma. Fui passear pelo Muro São Lourenço, tratando de topar uma solução a aquele sarilho brutal em que me ia meter o meu chefe. Eram as tantas da madrugada, a noite estava calma, não havia quase gente, o mar soava a poucos metros, enquanto as minhas pegadas ficavam marcadas na areia, como a indicarem o caminho à minha ruína total. Eu tinha certa reputação nos ambientes poéticos asturianos e mesmo de fora. O meu blogue fora dos pioneiros, por isso, se eu metia poemas daquela paisana, ia fazer estourar o meu blogue, a minha reputação; provavelmente muita gente ia deixar de me falar, mas, pelo outro lado, se não o fazia, ia para a rua, tendo a hipoteca, como já dixe, no ar. Era um imenso dilema. E o mar não me inspirava uma solução –embora às vezes me inspirasse poemas, mas é verdade que o mar é poesia, não é um conselheiro sentimental. Tive saudades duma garrafinha de vodca. Não sei por que exatamente de vodca, mas era do que tinha vontade. Pensei em como seria boémio cair na areia bêbedo afeito, deixar que o mar me mo9


lhar os pés –nada mais os pés, não sou nenhum suicida– e dormir, dormir, dormir, até acordar com uma ressaca de medo. Deviam ser mais das cinco da madrugada. Algo fazia pressagiar no ambiente que o sarilho rotineiro estava para começar. Quando estava à altura da escadeira 13 topei um par de moças a fumar sentadas perante o mar. Falavam baixo e riam. Ainda descobri algumas garrafas pelo chão, aparentemente valeiras. Notei que já estavam bêbedas. Falavam nalgum idioma estranho, desconhecido para mim, mas o tom das suas vozes fazia ver que estavam carregadas de álcool. Fique a olhar para elas. Elas olharam para mim. Tive para mim que se tratava de estudantes de Erasmus. Uma delas, de cabelo curto, lançou-me primeiro uma mirada risonha e depois falou-me: – Nechceš tady sedět, s námi? Eu não entendia nada, mas intui que me invitavam a sentar. Sentei entre elas, mirando para o mar. As ondas chegaram a tocar-nos os pés. Ainda quedava uma linha de vodca numa das garrafas –precisamente vodca. Ofereceram-mo. Eu bebi-o. A outra rapariga, de cabelo longo mas recolhido em coleta, apoiou a cabeça no meu ombro. Falou10


me em inglês, que pelo menos era algo que, com esforço, podia perceber: – You guess what?

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III

Quando entrei à outra manhã pela porta do escritório, não levava gravata nem tivera vagar de me fazer a barba. De feito tinha os pés molhados, as peúgas guardadas nas algibeiras e cheirava a uma mistura de mar e álcool. Mas sentia-me satisfeito, contente, eufórico, tudo isso a pesar da dor de cabeça brutal, porque passara a noite em branco, uma cosa pouco recomendável para os poetas como eu. O meu aspecto deplorável não passou desapercebido para o meu chefe, mas como estava de boas, não me fez comentário nenhum sobre como estava vestido, porém foi direito ao que lhe interessava de veras: – Carlinhos –outra vez, o filho de puta dele–, já teve vagar de meter os poemas da minha mulher no blogue? 12


Ele sabia perfeitamente que não, eu estava seguro de que a sua paisana já lhe comentara que não, porque certamente ela já fizera um percurso naquela mesma manhã pela rede, tão cedo como as suas três circunferências vitais se puseram em movimento. – Amanhã de manhã diga-lhe à sua senhora que estarão os poemas no blogue –dixe todo convencido. E assim foi. Vinte e quatro horas depois, quando tornei ao escritório já recomposto, cheirando a colónia –cousa rara em mim, mas em fim–, estava a esperar que o meu chefe entrasse no meu gabinete para me dizer algo. Mas não foi assim. Entrou ela, a sua mulher. A sua cara redonda era ainda mais redonda com a sua expressão de surpresa. Na mão levava uns papeis. Era a impressão dos seus poemas desde o meu blogue. Ela queria ser dura, talhante, brutal, mas não podia. – O que é isto? –perguntou-me. – Os seus poemas –dixe eu com um sorriso de orelha a orelha. – Bom, mas eu não lhos di assim... – Claro, mas se o que você queria era fama, há que o fazer doutro jeito –comecei eu a lhe largar o discurso que estivera a preparar para a ocasião–. 13


Há de saber que os checos são considerados a maior potencia mundial em poesia. Qualquer pessoa que quiser ter um nome internacional, tem que estar traduzida para o checo, porque é uma língua de referência, não sabe? Ela mirava para mim assombrada. Reparei daquela na madeixa de cabelo vermelha que pintara –mais do que tingira– por riba da testa e que lhe dava um aspecto do mais cómico. – Então, publicou os meus poemas em checo no seu blogue? – Exato... Ela finalmente sorriu e saiu pela porta a remexer o pneumático que lhe servia de cu. Relaxei. Prendi um pito e assomei a gaita ao Passeio de Begonha. Lambi nos beiços a pensar naquelas duas rapariguinhas checas que me sacaram daquele enleio com traduções etílicas à sua língua dumas porcarias que mesmo nem entendiam. Graças a elas, salvara o trabalho, mas nomeadamente salvara a minha reputação de poeta... boémio, agora mais do que nunca no duplo sentido.

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O ELÉTRICO DO PORTO



Depois de estar um par de horas a passear pelo porto, decidi tornar a casa no elétrico. Apanhei-o justo ao lado da fonte de Pelayo, em direção para a Praça Maior. Não precisei pará-lo, deteve-se só. Estava valeiro. Melhor, assim pude sentar, tinha todo o elétrico para min. Não reparei muito nele, apenas que era de madeira velha e que cheirava a séculos. Depois de me recolher, enveredou pela rua Marqués de San Esteban, deixando fora da minha vista o porto. Estava muito cansado, pesavam-me os olhos a esgalha. O vaivém do elétrico, suavinho, convidava-me a dormir uma soneca. As pálpebras já nem me respondiam. Com cinquenta e cinco anhos eu já parecia um velho de case setenta, como podia cansar tanto? 17


E justo então, o meu cérebro reativou. Desde quando havia elétricos em Xixón? Tentei recuperar a consciência o antes possível. O elétrico corria já daquela por vias que surgiam por um prado e desapareciam quando já estavam passadas, caminho de não se sabe onde, só comigo como passageiro. O meu único medo naquele momento foi pensar que talvez o condutor, do que mal intuía a sombra trás um vidro amarelo, podia abandonar o seu posto em qualquer momento e vir pedir-me o bilhete, que certamente não comprara ao subir porque ainda não sou reformado.

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A CHOVER NA RUA CORRIDA



Justo daquela começou a chover na rua Corrida. Se há algum sítio onde chove com categoria, esse é na rua Corrida, mas chove duma maneira brutal, tanto que molha até as ideias que estão ainda embrionárias. Como tantas outras vezes, pilhou-me sem párachuvas, o qual queria dizer que chegaria à casa enchoupado. Nesse momento, alcei a vista ao céu e, aguentando o empurrão das pingas, desafiei ao céu. Não saiu palavra nenhuma da minha boca, apenas apertei as queixadas até deixar escorregar toda a água ao longo do meu pescoço. Mas teve um efeito imediato. De golpe, parou de chover acima de min. Seguia a chover ao meu redor, mas não sobre min. 21


Era como se uma coluna seca me acompanhasse evitando que a chuva me molhasse. A gente reparou logo naquele estranho fenômeno, todos queriam aproximar-se de mim, para poder gozar daquela secura. Mas não podiam atravessar a minha barreira. Eu sorria todo contente a pensar em como impusera o meu critério ao céu. Mas era sempre um peão e houve de deter-me ante o semáforo da Praça do Carme. – Os escolhidos somos, ante todo, gente civilizada –pensei para min. E justo então, no meio do meu sorriso, no meio da inveja de todo o pessoal que me mirava abraiado, o autocarro urbano meteu a roda naquele charco imenso e chiscou-me inteiro, desde a cabeça até aos pés, tornando-me a água que o céu me aforrara.

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MAIS DO QUE UM ELOGIO



Como tantas outras vezes, decidira afogar as penas em sidra, embora for um conto isso de que depois a sidra se mija bem. Porém, naquela vez abusara demais do produto. Perdi o controlo mais do habitual, até alcançar um estado em que me parecia que a cidade minguara aos meus pés. E assim, agigantado, enveredei para Cimavilla, deixando embaixo a cidade embrulhada na noite. Entre as trevas e a brêtema, não sei onde caí, mas ainda soube que naquele cacho verde não estava eu só. Aquela voz de mulher surgiu do escuro. Era doce, cálida, esvaradia, insinuante. Não sei, tinha muitas cousas, era a voz duma mulher que, por um capricho da vida, estava ali comigo naquele momento a me acompanhar, mas eu estava certo de que ao amanhecer sumiria deixando apenas a 25


pegada duma lembrança, embora dolorosa, misturada com as fantasias dum bêbedo. Sabia que me namoraria, a sua voz temperada ainda me acompanhou até que, à fim, adormeci, contando-me, contando-me também ela como sofria pelas brincadeiras, pelos risos, pelas incompreensões que provocava a visão do seu corpo nos outros. Que bem a entendia e quanto ia recordá-la. Não sei as horas que passei ali tirado, mas espertei com os risos dalguns escolares que me contemplavam feito uma miséria humana. Daquela pude ver que caíra dormido diante do famoso Elogio do Horizonte. Não pude evitar mirar para onde estava aquele monumento com certo desgosto, de veras não prestava, como a tantos xixoneses. Mas daquela senti de novo aquela voz –e juro que naquela altura não estava bêbedo– que me falava na minha cabeça e me dizia: – Pensei que tu eras doutra maneira. Quedei pasmado a mirar para a estátua. Oxalá tivesse estado bêbedo para poder ter dito que a estátua me falara.

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O VELHO NÁUFRAGO DO CAFÉ DINDURRA



Entrei a tomar o meu café habitual das 4 no Dindurra. Aquele dia chovia como poucas vezes. Apetecia mais estar dentro do que fora, mas naquela tarde de outono os fregueses estavam a outras cousas, de maneira que o café estava quase valeiro. O camareiro trouxe-me o meu cortado habitual sem eu lho ter pedido, ele já me conhecia desde havia anos. Enquanto remexia co colher no café, dei-me conta de que ao meu lado sentara um paisano mal vestido e todo pálido. Dava mágoa mirá-lo. Perguntei-lhe se queria um café. Ele mal moveu a cabeça dizendo que não. Comentei-lhe ainda se não quereria outra cousa, mas ele não parava de mover a cabeça, triste29


mente, com uns olhos case apagados que faziam aumentar a sensação de mágoa por ele. Porém, chamei o camareiro e disse-lhe que se aquele pobre paisano pedia qualquer cousa dali a um bocado, que me a carregasse a mim. O camareiro mirou para todos os lados. Não via ninguém. – Como que não? Este velhinho aqui sentado, – disse eu acenando para o paisano. O camareiro, ainda sem vê-lo, pareceu compreender. – já sei –começou a explicar-me–, você referese a Dom Rufino. Mas fique tranquilo, não está vivo, é um fantasma... achega-se por aqui de quando em vez para cheirar o café e o fumo dos charutos... O coitado morreu dum infarto há cinquenta anos da que tomava café. Era um cliente fiel da casa, como você...

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O GAITEIRO



Tinham lançado campanhas e campanhas pedindo aos cidadãos que não luxassem a Praia São Lourenço com as pontas dos cigarros e que, portanto, não se fumasse na praia. Evidentemente não havia jeito de impedi-lo legalmente, a gente podia fumar nela e tirar as pontas na areia. Por que mudar uma tradição de séculos? Evidentemente eu era um daqueles fumadores acostumados a tirar o resto do cigarro na areia. Tanto me davam as consignas das autoridades municipais, nisso igualava-me com os de fora que em massa acudiam à praia a gozar do pouco sol que nos agasalhava o verão. Justo no dia 6 de agosto, um gaiteiro apareceu de repente no passeio. Começou a tocar uma sin33


tonia desconhecida. Vestia à maneira tradicional e caminhava muito devagar. O som da gaita ressoava por todo o passeio. Começara ao lado do Piles para depois seguir em direção à Escalerona. Enquanto ia soando –e isto é o incrível–, todos os paquetes de tabaco que havia na praia começaram a aboiar e pelo ar uniram-se em procissão ao desfile do gaiteiro. Todos ficamos surpreendidos. No seu caminhar ao longo do Muro, o gaiteiro limpou com a sua toada toda a praia de tabaco para depois perderse entre as ruas de Cimavilla. Naquele dia, ninguém fumou, nem no outro. Eu tratava de entender como era possível. Então recordei a historia do flautista de Hamelin. Exato. Era aquilo. Famelín não era outro que o Famelín em asturiano: tratava-se do gaiteiro de Famelín, de quem na minha infância sentira dizer que era capaz de levar trás de si tudo o que quiser arrastado pelo som da gaita. O que não inventasse a Câmara Municipal de Xixón para erradicar o consumo de tabaco, não o ia inventar ninguém...

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NOITE EM BRANCO NO PARQUE



Naquela noite não conseguia dormir. Botara para o corpo dous grolos de algo forte, nem lembro o nome do produto, só sei que tinha muita graduação. Dera-lhe um par de viagens com a esperança de que me viesse o sono. Mas não foi assim. Sono, não; mas enjoo, sim. Sai para a rua e tirei para o Parque de Isabel a Católica. Naquelas horas da noite, as três, mais ou menos, não havia uma alma por ali. Pensei em ir botar faragulhas aos patos, mas nem tinha pão nem cuido que os patos tivessem naquelas horas fame, embora isso não se possa saber com certeza. Porém, tirei para o estanque. A luz era pouca, mas o justo para ver por onde se ia. Então reparei que todos os pedestais ao lado dos que passava 37


estavam valeiros. Não havia uma soa estátua no seu sitio. Estranho. Pensei que, se quadra, a Câmara Municipal mandara retirá-las todas para limpá-las. Mas não, errara. Quando cheguei ao estanque, efetivamente não vi patos. Vi estátuas. Estavam todas ali, talvez também outras estátuas doutras partes da cidade. Aquilo parecia um ponto de lazer de estátuas. Havia-as que tomavam banho, que jogavam às cartas, que simplesmente parolavam e até algumas tinham sexo. Não quis pensar em como seria o sexo entre pedaços de pedra, mas parecia que lhes prestava. Uma estátua achegou-se-me: tratava-se de não sei que homem ilustre do século XIX que tinha uma expressão muito séria. Não parecia surpreendido ante a minha visão. Com uma voz rouca perguntou-me se queria unir-me à festa. Eu não tinha muita vontade, abofé. Por um instante pensei em que aconteceria se uma daquelas estátuas se me insinuava e me pedia sexo. Que horror. Refuguei com a cabeça. Mas disse em voz alta o que pensava: – Se conto isto amanhã, não me vão acreditar. A estátua assentiu com a cabeça: 38


– Efetivamente, ninguém não te ia acreditar, por isso podes quedar e mirar. O meu enjoo estava a aumentar. Sentei num banco e adormeci. Como era de esperar, na manhã seguinte, tudo "tornara à normalidade". Desfiz o meu caminho pelo parque e passei, precisamente, ao lado da estátua do paisano ilustre com que falara a noite anterior. Não pude evitar achegar-me a ela e remexê-la um bocadinho, mas não se moveu nem um milímetro do seu posto. Justo daquela, trás de mim senti uma voz de apito que me espetava: – A ver, você, não pode parar? O que acontece, ho, que nunca lhe explicaram que mesmo as estátuas também têm os seus sentimentos? Girei-me e vi que era um pavão real que me olhava todo sério com o rabo despregado.

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