Fotografe 217

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NO 217 | Ano 19 | outubro 2014

TES TE

Fotógrafo roda por 29 países de bicicleta e faz imagens incríveis

EXCLUSIVO

Fotojornalismo Orlando Brito: há 50 anos com foco no poder

30 dicas para

Retratos

NIKON

Aprenda macetes de direção, luz e produção com Glória Flügel

d810 chega A substituta da D800 com mais recursos para fotografar e filmar. ela promete desbancar a rival canon 5D Mark III

sony alpha

a6000 Avaliamos a mirrorless com virtudes para atrair iniciantes e profissionais

MAIS

es As novidad age da PhotoIm Brasil 2014

eparar Como se pro para clicar ecisivo momento d

Livro discute a natureza fias das fotogra

fotógrafa Conheça a caçadora de americana es tempestad


PORTFÓLIO DO LEITOR

O GM Bel Air, de 1954, Daniel emprestou de um amigo que aluga o carro para casamentos

À moda vintage O paulista Daniel Gonçalves se inspirou no estilo retrô para fazer um belo ensaio. Acompanhe 30 Fotografe Melhor no 217

A

paixonado por tudo que é vintage, o fotógrafo Daniel Gonçalves, 39 anos, planejava fazer um ensaio com um tratamento inspirado nos videoclipes da cantora Lana Del Rey, que têm esse ar sixty. Mas não imaginava que a produção de época daria tanto trabalho. Com tempo dividido entre seu estúdio de fotografia publicitária e as aulas de fotografia que ministra no Senac de Jaú, no interior de São Paulo, onde nasceu e mora, sobravam apenas

os fins de semana para pesquisar. “Em todo lugar que ia, procurava algum espaço que pudesse servir de locação e possíveis fornecedores”, explica. Foram quatro meses pesquisando cenários, roupas e acessórios que remetessem aos anos de 1960. O GM Bel Air, de 1954, foi emprestado de um amigo que aluga o veículo para casamentos. As locações escolhidas foram uma estrada de terra que dá acesso à Vila Ribeiro, em Jaú, e o clube da cidade, que tinham esse


Fotos: Daniel Gonçalves

A própria mulher do fotógrafo (à esq.) e uma amiga do casal, escolhida pelo estilo pin-up que tinha, posaram para o ensaio; Daniel afirma que prefere trabalhar com modelos não profissionais para aperfeiçoar suas habilidades na direção de pessoas

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Fotos: Daniel Gonçalves

PORTFÓLIO DO LEITOR

A primeira locação para fazer as fotos externas foi a estrada para Vila Ribeiro, em Jaú, interior de São Paulo

ar mais retrô que Daniel procurava. As modelos eram a própria mulher do fotógrafo e uma amiga deles, cujo estilo achou interessante, pois tinha um quê de pin-up por conta do cabelo vermelho e das tatua-

gens. “Prefiro fotografar mulheres comuns a modelos profissionais, explorar a beleza de cada uma e também busco me superar como diretor de modelos amadoras”, conta. As roupas e os acessórios Daniel não teve dificuldade de encontrar, pois há uma infinidade de lojas especializadas no estilo retrô. Com tudo alinhado, o fotógrafo marcou o dia da sessão.

DE VOLTA AO PASSADO Modelos, maquiador, fotógrafo e assistentes chegaram cedo na locação para se prepararem para o ensaio feito com uma Canon EOS D70; três lentes: 50 mm, 100 mm e 75-300 mm; um flash portátil com sombrinha; e um rebatedor. Ao longo do dia, foram feitas 400 fotos entre a sessão na estrada rural, pela manhã, e a no clube da cidade, à tarde. Para escolher quais entrariam no ensaio, o fotógrafo pré-selecionou 100 e as postou no Facebook. As 20 imagens com mais repercussão foram as eleitas pelo fotógrafo para compor o ensaio, que depois receberia o tratamento final. Daniel é um entusiasta da lomografia 4

32 Fotografe Melhor no 217



Fotos: Orlando Brito

FOTOJORNALISMO

Três dos réus condenados no escândalo do Mensalão: Delúbio Soares (à esq.), Simone Vasconcelos (centro) e Marcos Valério

Com o foco no poder POR KARINA SÉRGIO GOMES

Fotógrafo Orlando Brito registrou boa parte das mudanças políticas do País e agora se dedica a sua agência e a projetos pessoais 42 Fotografe Melhor no 217

O

ano era 1965, o Brasil vivia o começo da ditadura militar. Certo dia, soube-se que o presidente marechal Castelo Branco teria ido visitar o arcebispo de Brasília (DF). Assim que o editor do diário Última Hora, Alberico de Souza Cruz, tomou conhecimento do passeio do militar, disse: “Ah, manda esse menino lá”. O menino era o

fotojornalista Orlando Brito, 64 anos, que na época tinha apenas 15 anos e trabalhava como contínuo no jornal. Depois dessa primeira pauta, o adolescente descobriu a profissão a qual se dedica há quase 50 anos e já passou por grandes jornais. Depois do extinto Última Hora, trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil e revista Veja. Hoje, comanda a própria agência de


Retrato ic么nico de Ulysses Guimar茫es que foi capa da revista Veja, em 1992


Fotos: Orlando Brito

FOTOJORNALISMO

Acima, o cartunista e escritor Ziraldo, em 1971, protestando por liberdade em plena ditadura militar; na pág. ao lado, foto simbólica mostra o povo sob as botas dos militares durante a comemoração do 7 de setembro de 1971

44 Fotografe Melhor no 217

fotografia, a Obritonews, por meio da qual vende suas fotos, edita seus livros e realiza projetos institucionais, como Dores que o Tempo não Apaga, para o Ministério das Cidades. Mineiro de Janaúba, mudou-se para Brasília ainda criança, no fim de 1956. “Naquela época não havia faculdade de fotografia. Você começava por baixo nas redações”, conta. Orlando foi assistente de Roberto Stucker e trabalhou primeiro no laboratório de fotografia antes de ir para as reportagens. “Era ávido por aquele mundo que estava descobrindo por meio da fotografia. Não me fechava para pautas, tudo o que aparecia eu encarava”, lembra. Quando assumiu o posto de fotógrafo, aos 16 anos, não faltavam pautas para serem feitas no Palácio do Planalto e, aos poucos, começou a se especializar nos registros de imagens sobre o poder. E logo suas fotografias começaram a se diferenciar das dos demais.

“Sempre fui muito ligado em estética e decidi aplicar esse olhar para fazer fotos mais bacanas, com um novo visual para cobertura de política na época. Entendi que não bastava ser noticioso, precisava ser bonito. Tinha de ser atraente. Buscava por fotos que também sugerissem perguntas”, explica. Esse olhar mais aguçado também o ajudava a transmitir a situação que o País vivia sem ser censurado. Um exemplo é um registro de uma comemoração de 7 de setembro, feito em 1971, em que se vê as botas de um militar em uma espécie de guarita sobre a cabeça de várias pessoas. A foto foi feita para O Globo, jornal no qual Orlando trabalhou por 13 anos. Depois, seguiu para a revista Veja, onde permaneceu por 18 anos, e teve de apurar ainda mais o olhar. “Quando fui trabalhar em uma revista semanal, sabia que teria de produzir um material ainda mais diferenciado, pois



Fotos: Orlando Brito

FOTOJORNALISMO

só iria publicar a foto dias depois de o fato ter acontecido. Isso contribuiu para eu peneirar ainda mais o olhar”, conta.

RETRATOS PODEROSOS

O presidente Fernando Collor em cerimônia com a presença de militares

46 Fotografe Melhor no 217

Depois de um certo tempo de carreira, boa parte cobrindo pautas de política, Orlando percebeu que já tinha um vasto material sobre poder e que muitas cenas, como a solidão, se repetiam às vezes com personagens diferentes. Ele cobriu praticamente todos os 20 anos do período militar e a redemocratização, produzindo retratos icônicos de políticos brasileiros. “O fotógrafo deve cuidar bem de seu ofício e de seus personagens. Se fosse da área de esportes, faria o mesmo com os atletas. Mas eu sou um fotógrafo de poder, e o que faço é tentar retratar a alma dessas pessoas. Sempre digo que foto-


Sequência que registrou a queda que matou dois soldados durante o treinamento em Osório (RS), em 1979: com a série Orlando Brito (ao lado) se tornou o primeiro brasileiro a vencer o World Press Photo, naquele mesmo ano

grafia de política tem muito mais de futuro do que de passado ou presente”, ensina. E um dos exemplos de previsão é a famosa fotografia de Ulysses Guimarães, cujo perfil está contornado por um fio de luz que parece sobrenatural. Ele lembra que era uma terçafeira de setembro de 1992. Voltava para a redação de Veja sem ter feito uma única fotografia no Congresso. Uma luz suave do fim de tarde entrava pela janela. Ao sair do elevador, encontrou o então deputado federal Ulysses Guimarães, um dos mais importantes políticos brasileiros na época pela sua oposição ao governo militar. Da posição em que estava, via-se apenas a sua silhueta recortada pela contraluz.

Achou plasticamente bonita a imagem e fez a foto. Na hora, não deu muita atenção para o registro. Dois dias depois, ocorreu um acidente de helicóptero com o político, cujos destroços desapareceram no mar, e o corpo de Ulysses nunca foi encontrado. O retrato foi capa de Veja daquela semana e o diretor de redação na época, Mário Sérgio Conti, disse que a imagem era premonitória. “Não tem um explicação. Um bom fotógrafo precisa de um pouco de sorte”, resume.

TESTEMUNHA OCULAR Depois de Veja, Orlando ainda passou pelo Jornal do Brasil até montar sua agência em 1998. “O poder é um negócio muito dinâmico.

De repente, percebi que não estava fotografando para uma revista ou para um jornal, e sim para a história”. E com o objetivo de ser uma testemunha ocular privilegiada, Orlando editou seu acervo em diferentes livros: Perfil do Poder (1982); Senhoras e Senhores (1992); Poder, Glória e Solidão (2002); Iluminada Capital (2003); e Corpo e Alma (2006). Além de mudanças do cenário político, ele vivenciou formas diferentes de fotografar, trocando os filmes por arquivos digitais. “O digital trouxe um maior dinamismo para a fotografia. Hoje, você tem uma câmera no telefone. Isso faz parte do processo, porque não importa a técnica, o que importa é o conteúdo”, diz. E o olhar diferenciado e estético

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Ao lado, Ouro Negro, garimpeiro em Serra Pelada, no Pará, em 1983; abaixo, Cristalino, em Campina Grande, de 2003; as duas fotos fazem parte do livro De Corpo e Alma (2006)

que Orlando continua aplicando até mesmo nas campanhas institucionais que faz. Seu último grande trabalho foi encomendado pelo Ministério das Cidades para o combate de violência no trânsito, chamado Dores que o Tempo não Apaga.

HISTÓRIAS SOFRIDAS Ele relata que já passava das 22h, quando Cristina Maria da Silva, de 37 anos, saiu da igreja depois de assistir à missa. Ao notar uma aglomeração de pessoas na esquina, correu para ver do que se tratava. Abriu um espaço entre os curiosos e deparou-se com o marido morto. O garçom Gevanildo da Silva voltava para casa de moto quando um carro, em alta velocidade, chocou-se com ele. Gevanildo ficou três meses em coma, mas não resistiu. Além da mulher, deixou dois filhos. Essa é uma das histórias que Orlando retratou para o projeto que fez em 2013 para complementar uma campanha do Pacto Nacional pela Redução de Acidentes contra a violência no trânsito, que já era divulgada em rádios e tinha o objetivo de reduzir significativamente os números de vítimas em acidentes – apenas em 2012 foram 42 mil mortes. O fotógrafo selecionou 30 histórias, das cinco regiões do Brasil, para serem registradas para o projeto. Para conseguir essas personagens, escreveu um post no Facebook e rapidamente várias pessoas entraram em contato para contar suas histórias. Uma delas foi a pedagoga Rosmary Mariano, voluntária do movimento Não Foi Acidente – que pretende, por meio de um abaixoassinado que circula na internet, propor um projeto para mudar a lei n0 9.503, de 1997, criminalizando de uma forma mais severa moto-

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Fotos: Orlando Brito

ristas que dirigem alcoolizados e provocam acidentes. Ela ajudou o fotógrafo a mapear histórias das cinco regiões. Orlando diz já ter participado da cobertura de tragédias e clicado cenas fortes – como a que lhe rendeu o World Press Photo, de 1979, ao registrar a morte de dois soldados do Exército durante um treinamento –, mas ao fotografar as famílias para o ensaio Dores, sentiu-se profundamente tocado. “Estou acostumado a fotografar as mazelas do mundo. Mas esse trabalho mudou a minha vida. Me deparei com muita dor e sofrimento”, afirma. Segundo Orlando, o que lhe garantiu a tranquilidade para fazer o trabalho foi a leitura do livro Diante da Dor dos Outros, de Susan Sontag, em que a escritora e crítica de arte americana reflete a respeito das representações dos horrores da guerra, da dor e da catástrofe. Para representar esse sentimento e, ao mesmo tempo, chocar e alertar a po-

pulação sobre o risco que se corre quando se dirige embriagado, por exemplo, o Ministério das Cidades resolveu, em vez das tradicionais imagens de carros destruídos em uma batida, mostrar de forma mais delicada, mas não menos impactante, retratos de familiares que perderam parentes em acidentes de trânsitos. Quem fez contato com os parentes das vítimas foi o próprio fotógrafo. “Expliqueilhes sobre a importância de emprestarem sua imagem em benefício da causa. Para minha surpresa, nenhuma delas se opôs. Ao contrário, dispuseram-se a posar para uma foto expressando sua dor, sua revolta, o clamor pela punição dos culpados”, diz.

Imagem da série Dor que o Tempo não Apaga, feita para uma campanha contra a violência no trânsito do Ministério das Cidades (na foto, Michelle Nascimento, que perdeu a irmã e a mãe em um acidente de carro, ao lado de seu cunhado Marcus Klein, de Brasília (DF)

ESTÉTICA DO SOFRIMENTO Orlando passou noites sem dormir preocupado em dar um conceito para o conjunto de imagens que faria. Ele pediu aos familiares que lhe enviassem uma foto do parente que havia morrido. Depois,

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Michelle Martins, de Alagoas, com o filho e os sogros, relembra a dor de ter perdido o marido

Fotos: Orlando Brito

Acima, a família ainda sente a perda de Bruna, 15 anos, vítima de um atropelamento em Porto Alegre (RS), abaixo, os pais choram pela morte do jovem Daniel, 19 anos, morto em acidente de trânsito em São Paulo (SP)

mandou imprimir as imagens e as colocou em porta-retratos, para que também fizessem parte da cena. “Pensei em luz, ângulos, planos, objetivas. Queria que o rigor estético fosse de extrema importância para conferir emoção a cada imagem. Queria a marca do jornalismo presente em cada situação”, explica. Mas, na primeira sessão de fotos, ele percebeu que o que tinha à frente já era mais forte. “Pude ver que a força das lágrimas, da tristeza e, enfim, da dor de cada pessoa era imbatível”, conta. À princípio, ele pensou em fazer o ensaio todo em preto e branco, pois acreditava que a ausência de cor daria mais dramaticidade. Mas depois de ouvir uma senhora, ao receber a notícia da morte do filho adolescente, dizer que perdeu a noção das distâncias, a precisão dos aromas, a delícia dos sabores e a beleza das cores, o fotógrafo optou por tratar as imagens coloridas no Photoshop, reduzindo a saturação de cor e as deixando esmaecidas. Como viver longe da política não faz seu gênero, Orlando está envolvido nas eleições presidenciais de 2014 como fotógrafo da campanha de Aécio Neves, candidato do PSDB. Paralelamente, vai aproveitando seu riquíssimo acervo para bolar novos livros. Quatro estão engatilhados: Vitórias e Derrotas, que trará imagens de presidentes desde Castelo Branco a Dilma Rousseff (previsto para ser lançado ainda este ano); Povo e Poder, uma viagem ao Brasil para mostrar a visão dos brasileiros sobre a política; Índios, documentário a que se dedica há 30 anos sobre tribos brasileiras; e Com a Palavra a Fotografia, com textos voltados à fotografia para estudantes e profissionais de Comunicação.



VIAGEM FOTOGRテ:ICA

Diテ。rio de

bicicleta O catarinense Charles Zimmermann pedalou por 29 paテュses em cerca de dois anos e meio. E, durante os caminhos percorridos e pontos de paradas, fez retratos marcantes e registrou belas paisagens

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POR KARINA SÉRGIO GOMES

que viajavam mundo afora. Conforme o interesse pelas imagens ia aumentando, Charles procurava por livros sobre o tema e também trocava ideias com profissionais. Quando teve a chance de fazer uma grande viagem internacional, procurou ir se aperfeiçoando para, quem sabe um dia, ter suas imagens publicadas em uma revista ou em um livro. Para essa primeira experiência, em

Mulheres da etnia guambianos que vivem nos arredores da região andina de Popayán, na Colômbia

Charles Zimmermann

O

interesse pela fotografia veio na adolescência, quando Charles Zimmermann admirava as fotos das capas dos discos de vinil que tinha em casa. Os primeiros registros, porém, foram de natureza, feitos com uma reflex Minolta da família. Logo, passou a assinar a edição americana da revista National Geographic para acompanhar grandes fotógrafos internacionais

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VIAGEM FOTOGRÁFICA

Arquivo Pessoal

Fotos: Charles Zimmermann

No litoral do Camboja, mulheres usam a tanaka, cosmético feito artesanalmente à base de raízes para proteger a pele dos raios do sol

O viajante Charles Zimmermann e a sua bicicleta no litoral da Croácia

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2004, ele reservou o período sabático de um ano e aventurou-se pela Ásia, passando por Tailândia, Vietnã e China. O meio de transporte utilizado era basicamente ônibus e carona. Mas sentia que faltava algo. Enquanto rodava pela China, viu muitas pessoas usando bicicleta para viajar. E decidiu fazer parte do roteiro com uma magrela alugada.


“Percebi que era exatamente isso que procurava. Um transporte rápido e que ao mesmo tempo me colocasse em contato com as pessoas”, conta. Quando voltou ao Brasil, começou a fazer rotas de cicloturismo pela região sul e por Minas Gerais para se preparar para uma grande viagem de bicicleta pelo mundo. Depois de planejar o roteiro, juntou as

economias que tinha mais o dinheiro que conseguiu vendendo o carro. Esse professor de Comércio Exterior do curso de Relações Internacionais da Universidade Católica de Santa Catarina calculava que ficaria um ano e meio fora para pedalar pelos 29 países previstos. Porém, a viagem durou 747 dias. E ele registrou tudo com a sua Canon EOS 550D.

Vendedoras de legumes e hortaliças no mercado público da cidade de Kota Bharu, na Malásia

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Acima, camponesa cuidando da horta na região da Conchinchina, no extremo sul do Vietnã; ao lado, pescado na saulmora à venda em mercado no sul da Tailândia

Além da fotografia, o cinema foi uma inspiração para produzir imagens. “Durante as minhas viagens, sempre ansiava por fazer fotos de desertos, como as dos filmes de Abbas Kiarostami ou de Werner Herzog. Esses dois cineastas costumam explorar cenários exóticos em seus trabalhos, e isso me atraía”, conta. Em busca das paisagens intrigantes que via nos filmes, ele visitou, nessa longa viagem de bicicleta, primeiro a Nova Zelândia, seguindo para Indonésia, Cingapura, Malásia, Tailândia, Laos, Vietnã, Camboja, China, Índia, Nepal, Egito, Jordânia,

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Fotos: Charles Zimmermann

DIGA XIS A fotografia, de acordo com Charles, 40 anos, era uma forma de se aproximar dos habitantes, especialmente se no local houvesse muitas crianças, que logo se aproximavam e faziam poses para os re-

Acima, mulher carregando água na região desértica do Rajastão, na Índia; abaixo, Charles com sadhus, os homens sagrados da Índia

Arquivo Pessoal

Síria, Líbano, Turquia, Bulgária, Romênia, Croácia, Hungria, Alemanha, Costa Rica, Panamá, Colômbia, Peru, Chile, Argentina e Uruguai – ele usou barcos e aviões para os deslocamentos entre alguns países e continentes quando não era possível pedalar. A última etapa foi cruzar de bicicleta as planícies uruguaias até o Rio Grande do Sul e seguir para Jaraguá do Sul, norte de Santa Catarina, cidade onde nasceu e mora. No Chile, o brasileiro realizou um sonho: acampar no deserto do Atacama e dormir vendo as estrelas, que, segundo ele, é o céu mais lindo que já viu. Entre as paisagens e cenas que mais o impactaram estão as que aparecem na trilogia de O Senhor dos Anéis, gravado na Nova Zelândia – “país em que vi mais ovelhas do que pessoas”, diz. O cenário constante era os animais pastando num gramado verdejante com montanhas nevadas ao fundo. Em Bali, conseguiu fotografar camponeses trabalhando nas plantações de arroz; na Bulgária e Romênia, registrou os ciganos que se deslocam por esses países em carroças e automóveis russos Lada.

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Acima, cratera do vulcão Ijen, na ilha de Java, na Indonésia; ao lado, homens que extraem enxofre do local

tratos. “Foto é uma palavra universal. Às vezes, as pessoas me viam com a câmera e pediam para fotografá-las”, informa. Mas não foi em todos os lugares que a Canon EOS 550D foi bem-vinda. Em Sumba, isolada ilha na Indonésia, quando ele apareceu apontando a lente, os nativos acharam que era uma arma e saíram correndo. Com a ajuda de um ilhéu, o brasileiro conseguiu explicar que o equipamento não disparava tiros. Assim que viram seus retratos no visor, ficaram encantados e logo posaram para outros. Charles, no entanto, preferia

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Fotos: Charles Zimmermann

Carregador de folhas de chá das montanhas da ilha de Sumatra, na Indonésia

fotografar os distraídos. Às vezes, se escondia para pegar expressões espontâneas das pessoas. O professor anotou o endereço de alguns dos retratados e, quando regressou ao Brasil, enviou a foto impressa para eles. “Sonho agora em voltar para alguns desses lugares e visitar novamente essas pessoas para saber onde elas colocaram esses retratos”, afirma.

DESAPEGO O professor catarinense ensina que em uma viagem assim é preciso, primeiro, que a bicicleta seja boa mas simples, pois você terá de ser capaz de consertá-la e, no caso dele, nos países em que visitou talvez não houvesse condições de encontrar peças muito sofisticadas para bikes muito modernas.

Acima, vendedor de carnes na província de Yunnán, no sudoeste da China; abaixo, datilógrafo que presta serviços nas ruas de Calcutá, na Índia


Fotos: Charles Zimmermann

De cima para baixo: jovens em residências típicas da região central na ilha de Sulawesi, na Indonésia; adolescentes num povoado tibetano na província de Sichuan, na China; estudantes indonésias no templo de Borobudur, na ilha de Java

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Também é importante ter desapego, pois não dá para carregar muita coisa. O equipamento fotográfico, por exemplo, era simples: a câmera e duas lentes, uma 18-55 mm e uma 18-105 mm. Quando parava em vilarejos em que havia um computador, descarregava as imagens em um HD externo. Outra prática de desapego foi na hora de editar o material que trouxe: cerca de cinco mil imagens. Vendo a dificuldade que teria em selecionar o próprio material, pediu ajuda a dois amigos – um que tinha conhecimento de fotografia e outro leigo no assunto. Cada um deles deveria escolher 300 imagens, enquanto ele escrevia as memórias da viagem, com base nos diários que fez. “Esse processo foi bacana, porque eles apontavam fotos a que eu não tinha dado muita atenção, mas que depois comecei a perceber que eram interessantes”, relata. Dessas três centenas de imagens, Charles selecionou cem para o livro que pretende lançar em novembro, cujo título previsto é Travessia – 747 dias de bicicleta pelo mundo. Como parte da divulgação do trabalho, ele planeja algumas exposições em cidades do norte de Santa Catarina, como Joinville, Jaraguá do Sul e Blumenau. Para as mostras, selecionou 50 fotos. E quem pensa que o professor Charles Zimmermann já pedalou tudo o que as pernas lhe permitiriam está enganado. Já há data marcada para a próxima viagem: em dezembro ele embarca para as ilhas de Andaman, na Índia, com a bicicleta e a Canon 550D para percorrer e registar novas paisagens e pessoas durante dois meses.


NO 217 | Ano 19 | outubro 2014

TES TE

Fotógrafo roda por 29 países de bicicleta e faz imagens incríveis

EXCLUSIVO

Fotojornalismo Orlando Brito: há 50 anos com foco no poder

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Retratos

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Aprenda macetes de direção, luz e produção com Glória Flügel

d810 chega A substituta da D800 com mais recursos para fotografar e filmar. ela promete desbancar a rival canon 5D Mark III

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es As novidad age da PhotoIm Brasil 2014

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Livro discute a natureza fias das fotogra

fotógrafa Conheça a caçadora de americana es tempestad


PORTFÓLIO DO LEITOR

O GM Bel Air, de 1954, Daniel emprestou de um amigo que aluga o carro para casamentos

À moda vintage O paulista Daniel Gonçalves se inspirou no estilo retrô para fazer um belo ensaio. Acompanhe 30 Fotografe Melhor no 217

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paixonado por tudo que é vintage, o fotógrafo Daniel Gonçalves, 39 anos, planejava fazer um ensaio com um tratamento inspirado nos videoclipes da cantora Lana Del Rey, que têm esse ar sixty. Mas não imaginava que a produção de época daria tanto trabalho. Com tempo dividido entre seu estúdio de fotografia publicitária e as aulas de fotografia que ministra no Senac de Jaú, no interior de São Paulo, onde nasceu e mora, sobravam apenas

os fins de semana para pesquisar. “Em todo lugar que ia, procurava algum espaço que pudesse servir de locação e possíveis fornecedores”, explica. Foram quatro meses pesquisando cenários, roupas e acessórios que remetessem aos anos de 1960. O GM Bel Air, de 1954, foi emprestado de um amigo que aluga o veículo para casamentos. As locações escolhidas foram uma estrada de terra que dá acesso à Vila Ribeiro, em Jaú, e o clube da cidade, que tinham esse


Fotos: Daniel Gonçalves

A própria mulher do fotógrafo (à esq.) e uma amiga do casal, escolhida pelo estilo pin-up que tinha, posaram para o ensaio; Daniel afirma que prefere trabalhar com modelos não profissionais para aperfeiçoar suas habilidades na direção de pessoas

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Fotos: Daniel Gonçalves

PORTFÓLIO DO LEITOR

A primeira locação para fazer as fotos externas foi a estrada para Vila Ribeiro, em Jaú, interior de São Paulo

ar mais retrô que Daniel procurava. As modelos eram a própria mulher do fotógrafo e uma amiga deles, cujo estilo achou interessante, pois tinha um quê de pin-up por conta do cabelo vermelho e das tatua-

gens. “Prefiro fotografar mulheres comuns a modelos profissionais, explorar a beleza de cada uma e também busco me superar como diretor de modelos amadoras”, conta. As roupas e os acessórios Daniel não teve dificuldade de encontrar, pois há uma infinidade de lojas especializadas no estilo retrô. Com tudo alinhado, o fotógrafo marcou o dia da sessão.

DE VOLTA AO PASSADO Modelos, maquiador, fotógrafo e assistentes chegaram cedo na locação para se prepararem para o ensaio feito com uma Canon EOS D70; três lentes: 50 mm, 100 mm e 75-300 mm; um flash portátil com sombrinha; e um rebatedor. Ao longo do dia, foram feitas 400 fotos entre a sessão na estrada rural, pela manhã, e a no clube da cidade, à tarde. Para escolher quais entrariam no ensaio, o fotógrafo pré-selecionou 100 e as postou no Facebook. As 20 imagens com mais repercussão foram as eleitas pelo fotógrafo para compor o ensaio, que depois receberia o tratamento final. Daniel é um entusiasta da lomografia 4

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Fotos: Orlando Brito

FOTOJORNALISMO

Três dos réus condenados no escândalo do Mensalão: Delúbio Soares (à esq.), Simone Vasconcelos (centro) e Marcos Valério

Com o foco no poder POR KARINA SÉRGIO GOMES

Fotógrafo Orlando Brito registrou boa parte das mudanças políticas do País e agora se dedica a sua agência e a projetos pessoais 42 Fotografe Melhor no 217

O

ano era 1965, o Brasil vivia o começo da ditadura militar. Certo dia, soube-se que o presidente marechal Castelo Branco teria ido visitar o arcebispo de Brasília (DF). Assim que o editor do diário Última Hora, Alberico de Souza Cruz, tomou conhecimento do passeio do militar, disse: “Ah, manda esse menino lá”. O menino era o

fotojornalista Orlando Brito, 64 anos, que na época tinha apenas 15 anos e trabalhava como contínuo no jornal. Depois dessa primeira pauta, o adolescente descobriu a profissão a qual se dedica há quase 50 anos e já passou por grandes jornais. Depois do extinto Última Hora, trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil e revista Veja. Hoje, comanda a própria agência de


Retrato ic么nico de Ulysses Guimar茫es que foi capa da revista Veja, em 1992


Fotos: Orlando Brito

FOTOJORNALISMO

Acima, o cartunista e escritor Ziraldo, em 1971, protestando por liberdade em plena ditadura militar; na pág. ao lado, foto simbólica mostra o povo sob as botas dos militares durante a comemoração do 7 de setembro de 1971

44 Fotografe Melhor no 217

fotografia, a Obritonews, por meio da qual vende suas fotos, edita seus livros e realiza projetos institucionais, como Dores que o Tempo não Apaga, para o Ministério das Cidades. Mineiro de Janaúba, mudou-se para Brasília ainda criança, no fim de 1956. “Naquela época não havia faculdade de fotografia. Você começava por baixo nas redações”, conta. Orlando foi assistente de Roberto Stucker e trabalhou primeiro no laboratório de fotografia antes de ir para as reportagens. “Era ávido por aquele mundo que estava descobrindo por meio da fotografia. Não me fechava para pautas, tudo o que aparecia eu encarava”, lembra. Quando assumiu o posto de fotógrafo, aos 16 anos, não faltavam pautas para serem feitas no Palácio do Planalto e, aos poucos, começou a se especializar nos registros de imagens sobre o poder. E logo suas fotografias começaram a se diferenciar das dos demais.

“Sempre fui muito ligado em estética e decidi aplicar esse olhar para fazer fotos mais bacanas, com um novo visual para cobertura de política na época. Entendi que não bastava ser noticioso, precisava ser bonito. Tinha de ser atraente. Buscava por fotos que também sugerissem perguntas”, explica. Esse olhar mais aguçado também o ajudava a transmitir a situação que o País vivia sem ser censurado. Um exemplo é um registro de uma comemoração de 7 de setembro, feito em 1971, em que se vê as botas de um militar em uma espécie de guarita sobre a cabeça de várias pessoas. A foto foi feita para O Globo, jornal no qual Orlando trabalhou por 13 anos. Depois, seguiu para a revista Veja, onde permaneceu por 18 anos, e teve de apurar ainda mais o olhar. “Quando fui trabalhar em uma revista semanal, sabia que teria de produzir um material ainda mais diferenciado, pois



Fotos: Orlando Brito

FOTOJORNALISMO

só iria publicar a foto dias depois de o fato ter acontecido. Isso contribuiu para eu peneirar ainda mais o olhar”, conta.

RETRATOS PODEROSOS

O presidente Fernando Collor em cerimônia com a presença de militares

46 Fotografe Melhor no 217

Depois de um certo tempo de carreira, boa parte cobrindo pautas de política, Orlando percebeu que já tinha um vasto material sobre poder e que muitas cenas, como a solidão, se repetiam às vezes com personagens diferentes. Ele cobriu praticamente todos os 20 anos do período militar e a redemocratização, produzindo retratos icônicos de políticos brasileiros. “O fotógrafo deve cuidar bem de seu ofício e de seus personagens. Se fosse da área de esportes, faria o mesmo com os atletas. Mas eu sou um fotógrafo de poder, e o que faço é tentar retratar a alma dessas pessoas. Sempre digo que foto-


Sequência que registrou a queda que matou dois soldados durante o treinamento em Osório (RS), em 1979: com a série Orlando Brito (ao lado) se tornou o primeiro brasileiro a vencer o World Press Photo, naquele mesmo ano

grafia de política tem muito mais de futuro do que de passado ou presente”, ensina. E um dos exemplos de previsão é a famosa fotografia de Ulysses Guimarães, cujo perfil está contornado por um fio de luz que parece sobrenatural. Ele lembra que era uma terçafeira de setembro de 1992. Voltava para a redação de Veja sem ter feito uma única fotografia no Congresso. Uma luz suave do fim de tarde entrava pela janela. Ao sair do elevador, encontrou o então deputado federal Ulysses Guimarães, um dos mais importantes políticos brasileiros na época pela sua oposição ao governo militar. Da posição em que estava, via-se apenas a sua silhueta recortada pela contraluz.

Achou plasticamente bonita a imagem e fez a foto. Na hora, não deu muita atenção para o registro. Dois dias depois, ocorreu um acidente de helicóptero com o político, cujos destroços desapareceram no mar, e o corpo de Ulysses nunca foi encontrado. O retrato foi capa de Veja daquela semana e o diretor de redação na época, Mário Sérgio Conti, disse que a imagem era premonitória. “Não tem um explicação. Um bom fotógrafo precisa de um pouco de sorte”, resume.

TESTEMUNHA OCULAR Depois de Veja, Orlando ainda passou pelo Jornal do Brasil até montar sua agência em 1998. “O poder é um negócio muito dinâmico.

De repente, percebi que não estava fotografando para uma revista ou para um jornal, e sim para a história”. E com o objetivo de ser uma testemunha ocular privilegiada, Orlando editou seu acervo em diferentes livros: Perfil do Poder (1982); Senhoras e Senhores (1992); Poder, Glória e Solidão (2002); Iluminada Capital (2003); e Corpo e Alma (2006). Além de mudanças do cenário político, ele vivenciou formas diferentes de fotografar, trocando os filmes por arquivos digitais. “O digital trouxe um maior dinamismo para a fotografia. Hoje, você tem uma câmera no telefone. Isso faz parte do processo, porque não importa a técnica, o que importa é o conteúdo”, diz. E o olhar diferenciado e estético

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Ao lado, Ouro Negro, garimpeiro em Serra Pelada, no Pará, em 1983; abaixo, Cristalino, em Campina Grande, de 2003; as duas fotos fazem parte do livro De Corpo e Alma (2006)

que Orlando continua aplicando até mesmo nas campanhas institucionais que faz. Seu último grande trabalho foi encomendado pelo Ministério das Cidades para o combate de violência no trânsito, chamado Dores que o Tempo não Apaga.

HISTÓRIAS SOFRIDAS Ele relata que já passava das 22h, quando Cristina Maria da Silva, de 37 anos, saiu da igreja depois de assistir à missa. Ao notar uma aglomeração de pessoas na esquina, correu para ver do que se tratava. Abriu um espaço entre os curiosos e deparou-se com o marido morto. O garçom Gevanildo da Silva voltava para casa de moto quando um carro, em alta velocidade, chocou-se com ele. Gevanildo ficou três meses em coma, mas não resistiu. Além da mulher, deixou dois filhos. Essa é uma das histórias que Orlando retratou para o projeto que fez em 2013 para complementar uma campanha do Pacto Nacional pela Redução de Acidentes contra a violência no trânsito, que já era divulgada em rádios e tinha o objetivo de reduzir significativamente os números de vítimas em acidentes – apenas em 2012 foram 42 mil mortes. O fotógrafo selecionou 30 histórias, das cinco regiões do Brasil, para serem registradas para o projeto. Para conseguir essas personagens, escreveu um post no Facebook e rapidamente várias pessoas entraram em contato para contar suas histórias. Uma delas foi a pedagoga Rosmary Mariano, voluntária do movimento Não Foi Acidente – que pretende, por meio de um abaixoassinado que circula na internet, propor um projeto para mudar a lei n0 9.503, de 1997, criminalizando de uma forma mais severa moto-

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Fotos: Orlando Brito

ristas que dirigem alcoolizados e provocam acidentes. Ela ajudou o fotógrafo a mapear histórias das cinco regiões. Orlando diz já ter participado da cobertura de tragédias e clicado cenas fortes – como a que lhe rendeu o World Press Photo, de 1979, ao registrar a morte de dois soldados do Exército durante um treinamento –, mas ao fotografar as famílias para o ensaio Dores, sentiu-se profundamente tocado. “Estou acostumado a fotografar as mazelas do mundo. Mas esse trabalho mudou a minha vida. Me deparei com muita dor e sofrimento”, afirma. Segundo Orlando, o que lhe garantiu a tranquilidade para fazer o trabalho foi a leitura do livro Diante da Dor dos Outros, de Susan Sontag, em que a escritora e crítica de arte americana reflete a respeito das representações dos horrores da guerra, da dor e da catástrofe. Para representar esse sentimento e, ao mesmo tempo, chocar e alertar a po-

pulação sobre o risco que se corre quando se dirige embriagado, por exemplo, o Ministério das Cidades resolveu, em vez das tradicionais imagens de carros destruídos em uma batida, mostrar de forma mais delicada, mas não menos impactante, retratos de familiares que perderam parentes em acidentes de trânsitos. Quem fez contato com os parentes das vítimas foi o próprio fotógrafo. “Expliqueilhes sobre a importância de emprestarem sua imagem em benefício da causa. Para minha surpresa, nenhuma delas se opôs. Ao contrário, dispuseram-se a posar para uma foto expressando sua dor, sua revolta, o clamor pela punição dos culpados”, diz.

Imagem da série Dor que o Tempo não Apaga, feita para uma campanha contra a violência no trânsito do Ministério das Cidades (na foto, Michelle Nascimento, que perdeu a irmã e a mãe em um acidente de carro, ao lado de seu cunhado Marcus Klein, de Brasília (DF)

ESTÉTICA DO SOFRIMENTO Orlando passou noites sem dormir preocupado em dar um conceito para o conjunto de imagens que faria. Ele pediu aos familiares que lhe enviassem uma foto do parente que havia morrido. Depois,

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Michelle Martins, de Alagoas, com o filho e os sogros, relembra a dor de ter perdido o marido

Fotos: Orlando Brito

Acima, a família ainda sente a perda de Bruna, 15 anos, vítima de um atropelamento em Porto Alegre (RS), abaixo, os pais choram pela morte do jovem Daniel, 19 anos, morto em acidente de trânsito em São Paulo (SP)

mandou imprimir as imagens e as colocou em porta-retratos, para que também fizessem parte da cena. “Pensei em luz, ângulos, planos, objetivas. Queria que o rigor estético fosse de extrema importância para conferir emoção a cada imagem. Queria a marca do jornalismo presente em cada situação”, explica. Mas, na primeira sessão de fotos, ele percebeu que o que tinha à frente já era mais forte. “Pude ver que a força das lágrimas, da tristeza e, enfim, da dor de cada pessoa era imbatível”, conta. À princípio, ele pensou em fazer o ensaio todo em preto e branco, pois acreditava que a ausência de cor daria mais dramaticidade. Mas depois de ouvir uma senhora, ao receber a notícia da morte do filho adolescente, dizer que perdeu a noção das distâncias, a precisão dos aromas, a delícia dos sabores e a beleza das cores, o fotógrafo optou por tratar as imagens coloridas no Photoshop, reduzindo a saturação de cor e as deixando esmaecidas. Como viver longe da política não faz seu gênero, Orlando está envolvido nas eleições presidenciais de 2014 como fotógrafo da campanha de Aécio Neves, candidato do PSDB. Paralelamente, vai aproveitando seu riquíssimo acervo para bolar novos livros. Quatro estão engatilhados: Vitórias e Derrotas, que trará imagens de presidentes desde Castelo Branco a Dilma Rousseff (previsto para ser lançado ainda este ano); Povo e Poder, uma viagem ao Brasil para mostrar a visão dos brasileiros sobre a política; Índios, documentário a que se dedica há 30 anos sobre tribos brasileiras; e Com a Palavra a Fotografia, com textos voltados à fotografia para estudantes e profissionais de Comunicação.



VIAGEM FOTOGRテ:ICA

Diテ。rio de

bicicleta O catarinense Charles Zimmermann pedalou por 29 paテュses em cerca de dois anos e meio. E, durante os caminhos percorridos e pontos de paradas, fez retratos marcantes e registrou belas paisagens

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POR KARINA SÉRGIO GOMES

que viajavam mundo afora. Conforme o interesse pelas imagens ia aumentando, Charles procurava por livros sobre o tema e também trocava ideias com profissionais. Quando teve a chance de fazer uma grande viagem internacional, procurou ir se aperfeiçoando para, quem sabe um dia, ter suas imagens publicadas em uma revista ou em um livro. Para essa primeira experiência, em

Mulheres da etnia guambianos que vivem nos arredores da região andina de Popayán, na Colômbia

Charles Zimmermann

O

interesse pela fotografia veio na adolescência, quando Charles Zimmermann admirava as fotos das capas dos discos de vinil que tinha em casa. Os primeiros registros, porém, foram de natureza, feitos com uma reflex Minolta da família. Logo, passou a assinar a edição americana da revista National Geographic para acompanhar grandes fotógrafos internacionais

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VIAGEM FOTOGRÁFICA

Arquivo Pessoal

Fotos: Charles Zimmermann

No litoral do Camboja, mulheres usam a tanaka, cosmético feito artesanalmente à base de raízes para proteger a pele dos raios do sol

O viajante Charles Zimmermann e a sua bicicleta no litoral da Croácia

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2004, ele reservou o período sabático de um ano e aventurou-se pela Ásia, passando por Tailândia, Vietnã e China. O meio de transporte utilizado era basicamente ônibus e carona. Mas sentia que faltava algo. Enquanto rodava pela China, viu muitas pessoas usando bicicleta para viajar. E decidiu fazer parte do roteiro com uma magrela alugada.


“Percebi que era exatamente isso que procurava. Um transporte rápido e que ao mesmo tempo me colocasse em contato com as pessoas”, conta. Quando voltou ao Brasil, começou a fazer rotas de cicloturismo pela região sul e por Minas Gerais para se preparar para uma grande viagem de bicicleta pelo mundo. Depois de planejar o roteiro, juntou as

economias que tinha mais o dinheiro que conseguiu vendendo o carro. Esse professor de Comércio Exterior do curso de Relações Internacionais da Universidade Católica de Santa Catarina calculava que ficaria um ano e meio fora para pedalar pelos 29 países previstos. Porém, a viagem durou 747 dias. E ele registrou tudo com a sua Canon EOS 550D.

Vendedoras de legumes e hortaliças no mercado público da cidade de Kota Bharu, na Malásia

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Acima, camponesa cuidando da horta na região da Conchinchina, no extremo sul do Vietnã; ao lado, pescado na saulmora à venda em mercado no sul da Tailândia

Além da fotografia, o cinema foi uma inspiração para produzir imagens. “Durante as minhas viagens, sempre ansiava por fazer fotos de desertos, como as dos filmes de Abbas Kiarostami ou de Werner Herzog. Esses dois cineastas costumam explorar cenários exóticos em seus trabalhos, e isso me atraía”, conta. Em busca das paisagens intrigantes que via nos filmes, ele visitou, nessa longa viagem de bicicleta, primeiro a Nova Zelândia, seguindo para Indonésia, Cingapura, Malásia, Tailândia, Laos, Vietnã, Camboja, China, Índia, Nepal, Egito, Jordânia,

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Fotos: Charles Zimmermann

DIGA XIS A fotografia, de acordo com Charles, 40 anos, era uma forma de se aproximar dos habitantes, especialmente se no local houvesse muitas crianças, que logo se aproximavam e faziam poses para os re-

Acima, mulher carregando água na região desértica do Rajastão, na Índia; abaixo, Charles com sadhus, os homens sagrados da Índia

Arquivo Pessoal

Síria, Líbano, Turquia, Bulgária, Romênia, Croácia, Hungria, Alemanha, Costa Rica, Panamá, Colômbia, Peru, Chile, Argentina e Uruguai – ele usou barcos e aviões para os deslocamentos entre alguns países e continentes quando não era possível pedalar. A última etapa foi cruzar de bicicleta as planícies uruguaias até o Rio Grande do Sul e seguir para Jaraguá do Sul, norte de Santa Catarina, cidade onde nasceu e mora. No Chile, o brasileiro realizou um sonho: acampar no deserto do Atacama e dormir vendo as estrelas, que, segundo ele, é o céu mais lindo que já viu. Entre as paisagens e cenas que mais o impactaram estão as que aparecem na trilogia de O Senhor dos Anéis, gravado na Nova Zelândia – “país em que vi mais ovelhas do que pessoas”, diz. O cenário constante era os animais pastando num gramado verdejante com montanhas nevadas ao fundo. Em Bali, conseguiu fotografar camponeses trabalhando nas plantações de arroz; na Bulgária e Romênia, registrou os ciganos que se deslocam por esses países em carroças e automóveis russos Lada.

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Acima, cratera do vulcão Ijen, na ilha de Java, na Indonésia; ao lado, homens que extraem enxofre do local

tratos. “Foto é uma palavra universal. Às vezes, as pessoas me viam com a câmera e pediam para fotografá-las”, informa. Mas não foi em todos os lugares que a Canon EOS 550D foi bem-vinda. Em Sumba, isolada ilha na Indonésia, quando ele apareceu apontando a lente, os nativos acharam que era uma arma e saíram correndo. Com a ajuda de um ilhéu, o brasileiro conseguiu explicar que o equipamento não disparava tiros. Assim que viram seus retratos no visor, ficaram encantados e logo posaram para outros. Charles, no entanto, preferia

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Fotos: Charles Zimmermann

Carregador de folhas de chá das montanhas da ilha de Sumatra, na Indonésia

fotografar os distraídos. Às vezes, se escondia para pegar expressões espontâneas das pessoas. O professor anotou o endereço de alguns dos retratados e, quando regressou ao Brasil, enviou a foto impressa para eles. “Sonho agora em voltar para alguns desses lugares e visitar novamente essas pessoas para saber onde elas colocaram esses retratos”, afirma.

DESAPEGO O professor catarinense ensina que em uma viagem assim é preciso, primeiro, que a bicicleta seja boa mas simples, pois você terá de ser capaz de consertá-la e, no caso dele, nos países em que visitou talvez não houvesse condições de encontrar peças muito sofisticadas para bikes muito modernas.

Acima, vendedor de carnes na província de Yunnán, no sudoeste da China; abaixo, datilógrafo que presta serviços nas ruas de Calcutá, na Índia


Fotos: Charles Zimmermann

De cima para baixo: jovens em residências típicas da região central na ilha de Sulawesi, na Indonésia; adolescentes num povoado tibetano na província de Sichuan, na China; estudantes indonésias no templo de Borobudur, na ilha de Java

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Também é importante ter desapego, pois não dá para carregar muita coisa. O equipamento fotográfico, por exemplo, era simples: a câmera e duas lentes, uma 18-55 mm e uma 18-105 mm. Quando parava em vilarejos em que havia um computador, descarregava as imagens em um HD externo. Outra prática de desapego foi na hora de editar o material que trouxe: cerca de cinco mil imagens. Vendo a dificuldade que teria em selecionar o próprio material, pediu ajuda a dois amigos – um que tinha conhecimento de fotografia e outro leigo no assunto. Cada um deles deveria escolher 300 imagens, enquanto ele escrevia as memórias da viagem, com base nos diários que fez. “Esse processo foi bacana, porque eles apontavam fotos a que eu não tinha dado muita atenção, mas que depois comecei a perceber que eram interessantes”, relata. Dessas três centenas de imagens, Charles selecionou cem para o livro que pretende lançar em novembro, cujo título previsto é Travessia – 747 dias de bicicleta pelo mundo. Como parte da divulgação do trabalho, ele planeja algumas exposições em cidades do norte de Santa Catarina, como Joinville, Jaraguá do Sul e Blumenau. Para as mostras, selecionou 50 fotos. E quem pensa que o professor Charles Zimmermann já pedalou tudo o que as pernas lhe permitiriam está enganado. Já há data marcada para a próxima viagem: em dezembro ele embarca para as ilhas de Andaman, na Índia, com a bicicleta e a Canon 550D para percorrer e registar novas paisagens e pessoas durante dois meses.


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