#25

Page 1

Qu

ta n

?

a íci t o

lê t a m e

n

porto alegre out/nov. 2013

#25

Alminha do negócio • Nona Bienal • Zanotta • Ultimate Sutra



roteiro por Chico Guazzelli desenhos por Frederico Stumpf Podemos esperar uma boa trepada hoje,

Certamente!

Jonny?

Estamos diante de Scheila, que vem de três vitórias por gozo, contra

“Agora é com você: Braulio Vocal!“

Obrigado, Maylon, direto do Motel Chadaluz...

O Tabaré é uma delícia. Va Arduin, Estranha Ai flor, sei lá... Comê papel é coisa de traça. Mas cada um cada um, né. Pela volta das fotonovelas e promoções que até hoje tento compreender! Queremos mais... e mais... e mais… Não percam a glória humorística literária. Daniela Novaes, Saudosista Frankly, Dani… Glória? E quem precisa de Glória? Humpf.

Marcelão que está invicto há dez confrontos

“os adversários se estudam” ”No travesseiro vermelho ... a maravilha morena SCHEILA!”

“Scheila é muito boa na trocação!”

Quem diabos é Jader Tiago? Nunca entendi essa história de “encanador”, porra. Eu perco a edição e vocês a piada, assim não dá! Ô comissão do humour, vamo se organizá, que tal? Fabio Almeida, Indignado O Jader é um pônei pampeano que trabalha como encanador no norte do Peru e se apresenta como mágico aos domingos na Redenção. Att, a direção. Vamô botá as mulher do jornal nesse programa da rádio, faz o favor! Cláudia Abrantes, Feminista Todos os gêneros, todas as idades.

“marcelão tenta a lambida!”

“e no travesseiro azul, o incrível MARCELÃO!”

“Scheila esquiva”

“meu deus! Ela foi pra montada!”

“lembrando: três rounds,

"Fim do primeiro round"

já que não vale noivado!”

"Marcelão tentou a lambida, mas acho que a Scheila controlou o colchão e controlou a distância. foi 10 a 9 pra ela!"

"vamos ao round 2" “Uau Scheila tenta o dedo invertido!”

Entre o programa do Tabaré e a Voz do Brasil, eu prefiro a Voz do Brasil. Getúlio Vargas, Fã Tenta imaginar se a gente te prefere, assim, só tenta...Little try. Vocês são uns merda, parabéns! E eu que achava que não passariam da edição do Papagaio, ein. Sem palavras. Pedro Costa, Emocionado Ai, brigada bem. Um mimo da tua parte, tomara que tu viva bastante também. Beijos. Digo, parabéns. Após ter praticado todas as posições do Kama Sutra aguardo visita da redação no HPS, quarto 966. Falei com meu advogado e na indenização exigimos 2 anos de assinatura e a máquina de escrever da sede. Grato. Henrique Lemos, Fera Ferida A equipe deste jornal adverte: não nos responsabilizamos por atos cometidos fora do papel. Tabaré? Gurizadinha chapa branca!!!!!!!! Vão se fuder. Rafael Goulart, Invejoso Que nada meu amor, a gente é chapa roooooooooossssssa mehrrrrrmo. Vocês que curtem Affonso Romano Santana, coméque ele tá? Ignacio Dias, Engraçadinho Te mandou um beijo. Pô! Uma das coisas que eu mais curtia no Tabaré eram os manuais. Cade gente? O do atraque a gente mandou emoldurar aqui em casa, juro. Simone Chagas, Maconheira Oun, que linda. Logo voltam, calma! E assim, se eu fosse tu, guardava esses quadro. Agora que a polícia civil anda entrando nas casa tu nunca sabe, né.

“Eu sabia que ia ser difícil, estudei muito ele... agradeço aos meus treinadores e os ‘sparrings’! Obrigada a todos os meus fãs!”

A todos os amigos. Re-divulgando o show que farei nessa 5ªf, no Comitê. Aparece lá! Abraço! John Zabaleta, Inquieto Valeu o informe Zaba! Não esquece de avisar a gente quando trocá de telefone de novo, te amamos.

3


Obras de arte na 9ª Bienal do Mercosul | Porto Alegre propõem discussões políticas inclusive sobre o sistema em que a própria mostra está inserida. por Gaston Kremer e Paola Kremer A revolução começará quando nos apoderarmos dos nossos corpos como suporte de prazer, livre de restrições e copyright. Barcelona, 2005. Com esse argumento, a filósofa Beatriz Preciado apresenta o testogel, descrito por ela como droga política, que em contato com a pele introduz testosterona na corrente sanguínea. Vinte e cinco anos depois, em Porto Alegre, o robô responsável examina a última paciente do sistema público de mudança de sexo. Usando tecnologia analógica para fazer um filme de ficção científica, Luiz Roque contou, com lentes sensíveis à dicotomia entre força e vulnerabilidade que mora nos olhos de alguém oprimido pelo próprio corpo, a história do último tratamento realizado no Brasil antes da troca de sexo deixar de ser considerada um distúrbio psiquiátrico passível de regulamentação estatal. A partir de então, procedimentos relacionados a identidade de gênero seriam realizados em clínicas estéticas. Hoje em dia, a realização dos procedimentos depende de avaliação psicológica, médica e do governo brasileiro. O ano em que o indivíduo se tornaria o único responsável sobre o destino de seu sexo seria conhecido como o Ano Branco, título do filme que compõe a 9ª Bienal do Mercosul | Porto Alegre. Assim como Ano Branco, outras obras que integram esta Bienal refletem realidades políticas que podem inspirar discussões sobre necessidades coletivas e sobre seu próprio papel como mostra internacional de arte. Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais

suporte viver nesta realidade absurda, disse Glauber Rocha em 1971, no manifesto da Estética do Sonho. Na ultima Bienal de Berlim, o curador/artista Artur Zmijewski desenvolveu um espaço para a ação direta, pronto para a realização de projetos que “possuíssem o poder da política, e não o medo”, e que pudessem ainda “mudar aspectos específicos da nossa realidade compartilhada”. Também no ano passado, Porto Alegre teve no sexto andar da Casa de Cultura Mario Quintana, nas galerias reservadas ao Museu de Arte Contemporanea do RS, a exposição Sob Constante Ameaça, que teve como tema a instabilidade sociopolítica e econômica, a ameaça ambiental e o sentimento de insegurança do mundo contemporâneo. A 9ª Bienal do Mercosul | Porto Alegre, com o lema Se o clima for favorável, não aborda as relações entre arte e política de forma tão direta, mas contempla inquietações quanto às infinitas possibilidades do clima nessa interação. Tratados como “distúrbios atmosféricos”, esses desdobramentos podem ser vistos em alguns trabalhos, como no de Luiz Roque, que remete a manifestações populares, como as que tivemos em junho no Brasil. No sistema de arte contemporâneo dos grandes eventos, como as bienais, existe uma dificuldade gigante de enfeitiçar os homens a ponto da arte se tornar uma ferramenta de transformação social, como defendeu o expoente do Cinema Novo. O próprio modelo das bienais é fortemente criticado a ponto de que o medo (expectativa para alguns) de seu fim se torne uma preocupação real. O artista alemão Hans Haacke trabalha

tabare.net

refletindo a complexidade desse sistema. Com a obra Circulation, em que o fluxo da água circula por tubulações transparentes interconectadas, dá visibilidade ao movimento dessas construções sociais, desejáveis ou não. Com a seleção dessa obra, é possível que a Bienal proponha uma autocrítica enquanto mostra inserida dentro de um sistema e uma possível intenção de reconhecer os entrelaçamentos do mundo da arte e de sua responsabilidade perante outros sistemas, ocultada em parte por sua autonomia da forma. Autonomia de forma que o povo de Bougainville, uma pequena ilha no Pacífico, teve que reivindicar de modo imperativo: no conflito com o exército de Papua Nova Guiné e com a mineradora Rio Tinto Zinc, o Exército Revolucionário de Bougainville usou óleo de coco para alimentar seus carros e geradores de energia, superando o isolamento imposto. O artista australiano Nicholas Mangan transformou uma das galerias da Usina do Gasometro em uma refinaria de óleo de coco, onde um gerador é alimentado a partir do biocombustível para manter a sua videoinstalação escultórica Progress in Action. O vídeo exposto é uma edição de imagens de órgãos estatais australianos que mostram imagens da revolução de Boungainville. Tema do também reconhecido documentário Coconut Revolution, de 2001, a obra de Mangan estabelece uma relação direta com o espírito revolucionário dos ilhéus, utilizando o mesmo recurso natural que possibilitou a revolta popular para mostrar sua história. A primeira reapresentação de Monoblock, concebida por Juan José Gurrola , também trata,


de certa forma, da tentativa de isolamento por uma força beligerante. A encenação de 1971, mostrada durante o fim de semana de abertura da Bienal, é um poema que, combinado a performance e experimentação sonora, se refere ao Tratado de Bucareli de 1923, documento que buscava canalizar as exigências dos estadounidenses por danos causados a seus bens durante a Revolução Mexicana. Gurrola, dentro de seu universo criativo, especulou sobre uma possível proibição do México em produzir certos equipamentos, como o monobloco de motor seis cilindros em linha. Na incerteza, o conjunto de eloquentes textos fazem clara referência a uma dominação social dos Estados Unidos sobre o México. “A Duchamp le pasaste de noche. Era una fina persona/ nunca te entronaron found object/ porque nunca te encontraron. Te escondiste sabiamente./ Y aquellos imíos que hacian cubos de arte con las corrocerías/ contigo no pudieron.” Fragmento de Bucareli o El Taller, 1971. Começar do zero, como uma tábula rasa, as vezes parece a única solução para nos alinharmos como humanidade em uma nova experiência política mais igualitária e justa. A dupla holandesa Bik Van der Pol conduziu para esta Bienal uma pesquisa sobre a possível ocupação da Lua, com o intuito de buscar uma radicalidade democrática tendo como base o Orçamento Participativo. O resultado vem através da performance de trovadores, que em vez das vicissitudes do campo trovam sobre a privatização do espaço público, a Lua e a democracia direta, vestindo as vozes dos quatro dizedores do verdadeiro de Foucault: o professor, o parresiasta, o sábio e o profeta. Tanto a pesquisa quanto a performance fazem coro com a observação dos artistas sobre a crescente privatização do espaço público, que elimina possibilidades de compartilhamento e convivência democrática. Tema latente na nossa Porto Alegre. Ainda resultado dessa pesquisa, sai o dado de que desde 2004 menos de 50% dos projetos aprovados no OP foram desenvolvidos, e ainda cita outras razões para o esvaziamento desta tentativa de participação direta, como o sistema político no qual está inserida, chegando a conclusão de que o OP funciona quando é tratado como princípio e não como estratégia política. A uruguaia Ana Laura López de La Torre também reflete sobre espaços de convivência. Quando sentiu o calor de novembro em Porto Alegre, tranqüilizou-se ao ver a quantidade de água que costeia a cidade. Naturalmente vestiu

seu maiô e dirigiu-se à praia. Descobrindo a impossibilidade de desfrutar da orla próxima ao centro, Ana instalou uma piscina de 2 x 3 metros no centro da cidade. No dia 14 de setembro, propôs a apropriação da praia como praia pelas pessoas, o que integraria o projeto que procura discutir a relação aparentemente paradoxal dos porto-alegrenses com a água, e principalmente com o Guaíba. A ocupação chamada de Aguaíba se desenvolveu na intenção de apropriar a água como elemento político, democratizador e simbólico da cidade. Assim como as cidades, o espaço sideral acaba sendo controlado por poucos. Em 1998, um satélite artificial habitável que seria usado como laboratório de pesquisas em ambiente espacial e como base para testes em Marte e na Lua foi criado por uma associação entre agências espaciais dos Estados Unidos, Rússia, Japão, Canadá e do continente europeu. Na teoria, outras nações poderiam integrar o grupo inicial. No caso do Brasil, dificuldades em conseguir os 120 milhões de dólares em componentes para a estação que seriam pagos aos Estados Unidos para entrar no clube, combinado ao fato do único astronauta brasileiro a visitar a estação ter realizado o vôo numa nave russa, culminaram na expulsão do país. Críticos ao projeto que se intitula internacional, mas atende exclusivamente a interesses de nações poderosas, Allora & Calzadilla construíram a estrutura de Ten Minute Transmission: uma antena capaz de estabelecer comunicação com a Estação Espacial Internacional através de rádio amador, utilizando um meio informal, pirata, para criar acesso ao espaço sideral institucionalizado. Os índios rarámuri, de Sierra Tarahumara, em Chihuahua, México, vivem, assim como quase todos os povos que sobreviveram ao etnocídio dos índios, em condições de extrema pobreza e marginalização por motivos como o desalojamento de suas terras. Evidenciando a dor e o imensurável custo humano causado por interesses econômicos, a artista Fritzia Irizar convidou a comunidade rarámuri a doar cabelo para transformá-lo num manifesto que utiliza a própria linguagem exploratória: um diamante artificial, construído através da extração de moléculas de carbono realizada por uma empresa americana chamada Infinity Diamond. Fritza realizou o projeto Naturaleza de imitación em 2012, logo depois de uma nota na imprensa nacional anunciar o suicídio de rarámuris devido à “fome na região”. O diamante falso esconde seu processo assim como o sofrimento dos povos indígenas é invisível à memória coletiva da sociedade.

o material com imagens dos dois quilômetros de comprimento do glacial Exit Glacier, no Alasca, derretido pelo aquecimento global. Na mostra Matinês, que também integra a programação da 9ª Bienal, Otolith Group discute a construção da história através das imagens e sua carga ficcional. Principalmente através da pesquisa em arquivos visuais, o duo londrino formado por Anjalika Sagar & Kodwo Eshun realiza filmes que percorrem desde temas cibernéticos à ambientais. Cunhando termos como necropolitics, em The Otolith I os diretores discutem o regime nuclear global e suas nefastas conseqüências através de uma ficcção científica, tendo como ponto de partida o Grande Terremoto de Tohoku, de 2011, no Japão. Entender e flexibilizar os sistemas de crenças, avaliações de experiências e inovações são indispensáveis para o fazer e o pensar da política. Patrício Guzman, em seu documentário Nostalgia de La Luz, de 2010, aponta para a relação entre os observatórios astronômicos e as famílias que buscam por restos de desaparecidos da ditadura no deserto do Atacama. O grupo de curadores da Bienal deste ano, que pode ser visitada até 10 de novembro nos espaços da Praça da Alfândega e na Usina do Gasômetro, também parece apostar na contemplação e observação dos detalhes como forma de encontrar respostas, ou mais perguntas, no campo político, se o clima for favorável.

Resultados deploráveis da relação predatória do homem com a natureza também aparecem em algumas obras, como em Ano sem verão. Não bastasse a ironia de se construir um espaço de convivência com a natureza e encarcerar animais para isso, a construção de um zoológico em Chiang Mai, no norte da Tailândia, foi realizada de forma indiferente ao impacto ambiental que causaria. Para Ano sem verão, Pratchaya Phinthong fotografou a construção e contrastou out/nov. 2013 #25

5


Be

fotos por Ya mi ni

tes ni

por Luna Mendes e Natascha Castro

Conhecida por sua gargalhada estridente e presença marcante, Elke Maravilha é o reflexo de um caleidoscópio de estilos e referências montado pelas diferentes culturas com as quais conviveu. Talvez sua multietnicidade seja um dos seus atributos mais evidentes, algo que se reflete visualmente em sua excêntrica maneira de vestir e agir. Nascida na Rússia, Leningrado, em 22 de fevereiro de 1945, com cerca de oito anos Elke veio para o Brasil, interior de Minas Gerias, e deixou de ser Georgievna Grunnupp. No fatídico primeiro de abril de 1964 chegou ao Rio Grande do Sul onde estudou Letras com ênfase em Grego e Latim na Universidade Federal. Durante a ditadura militar voltou para a Alemanha, vagou pela Europa e até plantou fumo na Grécia. Sua itinerância lhe rendeu a habilidade de falar oito idiomas, além da fluência em duas línguas mortas. O gosto pelo diferente e a coragem de enfrentar valores conservadores da sociedade fizeram de Elke uma eterna personagem, comumente relacionada a escândalos, algo que lhe confere um ar de irrealidade mesmo agora nos seus 68 anos. Elke, uma das curiosidades maiores sobre a tua vida é essa itinerância, tu já moraste em muitos lugares e falas oito idiomas. Conta mais sobre isso. Eu sou uma vira-lata, né. Minha mãe era alemã, meu pai era russo, minha avó mongol, meu avô era mestiço de viking com azerbaijano. Na Rússia, a pessoa que fala menos línguas, fala quatro. Isso é

out/nov. 2


ele falou “por que, minha filha, você não gostou?”, eu falei “não”, então ele disse “não, minha filha, seja o que você quiser”. Aí eu resolvi não ser mais gênero. De que maneira? Simplesmente não sendo mulher. O que mulher faz? Fiscal de pica: nunca fui. Mantenedora da vida, mesmo que a vida seja um saco: não. Materialista, que matéria vem de mãe: não. Tudo que a mulher faz, eu não gosto. Porque eu não quis, eu quis ser gente, essa é minha proposta, e acho que eu estou conseguindo. Tu acha que o mundo é muito careta?

normal, meu pai falava quatorze. É louco, porque nossos vizinhos todos falam espanhol e nós não estudamos espanhol. Uma falta de educação, né? Na minha geração estudávamos, porque eramos atrelados à França culturalmente, então a gente tinha uma coisa mais ampla. Hoje é americano, né? Depois que a gente se atrelou culturalmente aos Estados Unidos, a gente caiu muito de qualidade. Na minha época a gente fazia português, francês, espanhol e inglês no ginásio, depois no clássico, estudávamos latim. Mas depois que a gente se atrelou aos estados unidos, eles acharam por bem que quanto mais idiotas nós ficássemos mais bois a gente ficava, né? Mais gado indo pro matadouro. É uma pena, chegamos ao ponto em que estamos. Na época que tu iniciaste, a carreira artística era cheia de preconceitos contra as mulheres, como era ser uma mulher artista e independente? Olha amor, eu nunca fui mulher, sempre fui uma pessoa. Nunca permiti ser chamada de mulher. Falei: não, não sou mulher, sou pessoa. Porque desde pequena eu percebi que o homem é melhor do que nós. Então eu resolvi não ser gênero. Quando pequena, meu pai me levava numa casa onde havia onze mulheres, eu olhava aquele movimento e depois saía com meus pais e os amigos dele pra caçar. Caçar era a última coisa que faziam, enchiam a cara, filosofavam, falavam merda, tinham afeto. E quando eu estava com as mulheres era tudo um maldizer. Até que um dia eu cheguei pro meu pai e falei: “pai, eu sou mulher, né?”, ele falou “é”. “E você é homem, né?”, ele disse “é”. “Aquelas que estão na casa conversando são mulheres? E vocês que estão na rua caçando são homens?”. Perguntei “pai, eu tenho que ser mulher? Eu tenho que ser como mulher?” e

2013 #25

O mundo não tá careta, o mundo tá muito ignorante. E a ignorância é mãe e irmã do preconceito. Quando eu tinha uns oito, nove anos morava na roça em Minas Gerais, e meu pai sempre falava: presta atenção na natureza, ela ensina tudo. Eu falava: mas você ensina. E ele dizia: eu faço parte da mãe natureza, mas eu erro, a mãe natureza não erra. Um dia ele falou, vem cá ver uma manifestação da mãe natureza que é importante que você conheça. Em Minas temos gado leiteiro, a topografia não permite gado de corte. E tinha uma vaca com um bezerro grande e ela queria dar para o touro. Mas eles não queriam que a vaca transasse, porque ela não daria mais leite por ficar grávida. Então o que faziam? Botaram um boi gay, o touro se satisfazia no boi gay e acabou o problema. Meu pai perguntou se percebi o que tinha acontecido, e eu falei “então a mãe natureza faz seres pra que não se procrie muito”. Depois ele me mostrava porco gay, pato gay, gente gay, normal. Mãe natureza fez, tá muito bem feito. Agora nós não conhecemos mais a mãe natureza. Hoje o ser humano olha pra mata e diz “como é bonita a natureza”, como se ele não fizesse parte. Como assim? Resultado disso é Feliciano, ou desinfeliciano, que é uma coisa horrorosa. Você sabe que essa foi a única vez que eu tive vontade de sair do Brasil. Quando as pessoas votaram nesse homem e ele falou em Cura Gay. Falei gente, nós chegamos ao cúmulo da ignorância, não vou ficar mais neste país. E ninguém fazia nada! E as pessoas que berravam eram usadas pelos calados. (sussurra) Os calados que são os piores. Agora, graças a deus, três dias depois começaram as manifestações de rua e eu falei então não preciso mais sair. Tu é anarquista? Eu não tenho lado político, o mais próximo do que se pode me chamar é anarquista. Mas eu não sou anarquista. As pessoas acham que eu sou de esquerda porque eu perdi a cidadania na época do Médici, fui pra cadeira – violação à lei de segurança nacional. “Você é de esquerda”, não. “Ah, mas você foi presa na época da ditadura”. Eu não sou de direita, nem de esquerda, talvez eu seja de banda. Porque eu não acredito, nunca acreditei em ideal fora do coração. Eu só acredito em ideal no coração, quando sai do coração e vem pra mente e vira uma bandeira, fudeu tudo. Seja comunismo, seja nazismo, seja PT, seja a puta que pariu... Porque de coração eu tenho que saber que eu não posso puxar teu tapete. De coração eu tenho que saber que eu não posso te explorar. De coração, de coração, de coração. De coração eu tenho que saber que eu não posso deixar você ignorante, que se eu tiver algum caminho pra alguma coisa eu tenho a obrigação de te contar. De coração. Saiu do coração, meu amor, nunca funcionou. Nunca! Meu ex marido Sacha, falou assim, Elke, você tem um carma. Eu falei “eu tenho vários, mas qual que você se refere?” E ele disse “você nasceu em leningrado, e vai morrer em lulagrado”. Que horror, Deus do céu, eu mereço. Eu tive que ver a dona Dilma na Europa

ensinando a Angela Merkel a governar, gente. O que tu achou disso? Eu fiquei morrendo de vergonha. O que tu acha da Angela Merkel? Não que eu ame a Angela Merkel, entende? Não é minha paixão, mas, porra! A mulher segura aquela porra com unhas e dentes e aí vem uma PAVERNI da América do Sul, onde não tem educação, onde estamos importando pedreiros, onde não temos médicos, onde não temos merda no cu pra cagar, onde somos roubados, e ela vem querer ensinar pra Angela Merkel a governar? Ai ai ai... Não. Gente, o que é isso? A que ponto nós chegamos? Tu é contra o atual governo brasileiro? O último governo que eu gostei foi do Jânio Quadros. Foi triste ele ter que sair, a primeira coisa que Jânio fez quando foi presidente da república foi devolver terra pra índio. Índio só tem terra por causa de Jânio Quadros, segunda coisa foi botar embaixador brasileiro pra nos representar lá fora. Primeiro mexeu com latifúndio, segundo com os racistas. Terceiro, foi pra Cuba, deixou bem claro que não era comunista, mas que queria que o Brasil fosse livre pra negociar com quem quisesse, inclusive URSS e Cuba, e que ele não ia participar de embargo de porra nenhuma e condecorou Fidel e Che. Deixando bem claro que o Brasil era livre. Livre? (Risos). No fundo realmente, meu amor, a única liberdade que todos têm, além de países, talvez a Mongólia seja livre, a Mongólia é. A única liberdade que nós temos é a de escolher a prisão que a gente quer ficar. Como foi ficar presa durante a ditadura? Fiquei presa seis dias. Foi ótimo (Risos). Foi mesmo. Olha, eu sou madrinha dos leprosos, dos loucos de hospício, dos gays, dos presidiários e dos lixeiros de Minas. Uma época, eu ia muito em um hospício, inclusive fui muito amiga de Nise da Silveira - doutora Nísia, alogoana, primeira psiquiatra mulher, era sujeito homem, tinha muita coragem. Se formou em 1934 e acabou com o choque elétrico, com drogas para os loucos, ficou amiga de Jung, tive o privilégio de ser amiga dela -. E os loucos sempre gostavam de mim, mas em um dos hospícios tinha um louco que não me suportava. Olhava pra mim, baixava a cabeça e saia de perto. Eu vi que ele não tinha nada de louco, ele incomodava muito a família e então prenderam ele no hospício e lá ele começou a incomodar mais. Então davam muita droga, muito choque elétrico, pra amansar ele, mas não tinha efeito. Ele era muito forte física e espiritualmente. Então botavam ele na solitária. Um dia eu passei na frente da solitária, e falei assim, “Domingos, vim aqui conversar com você. Olha pra mim, poxa. Não é melhor você amansar um pouco? Do jeito que você é as pessoas ficam muito incomodadas, e acabam te machucando, te dando drogas, choque elétrico, te botam atrás dessas grades, você não acha muito chato viver tua vida inteira atrás dessas grades?” Então ele me olhou, veio até mim. [Elke levanta da mesa e grita] “Quem é você pra me dizer o que eu tenho que fazer, hein?! Depois, é uma questão de perspectiva, meu bem, eu também estou te vendo atrás das grades!” Sentou [ela senta], baixou o olho e nunca mais olhou na minha cara. Peguei meu rabo, botei entre as pernas e fui pra casa ficar digerindo aquilo. Ele era bem mais livre que eu, não fazia concessões. Quando fui presa eu falei: ah, é só um prédio. É só um prédio. 7


Ser livre é uma coisa que incomoda? Não, porque ser livre é um trabalho de muitas gerações, não incomoda absolutamente. Mas nós não estamos prontos para isso. A gente tem liberdade de escolher a prisão que a gente quer ficar, tem gente que é até escravo da liberdade, procura tanto a liberdade que fica escravo dela. O que tu pensa sobre a criminalização das drogas? Sinceramente, não sei qual é a solução. Agora uma coisa eu sei, as campanhas que se fazem são completamente equivocadas, as pessoas não divulgam que a droga é gostosa. Se tua vida for preenchida de certas coisas você não vai precisar da droga, ou você vai usar a droga para encontro ou para ritual. Entende? Cada droga preenche alguma coisa que você não tem. Por exemplo, maconha é relaxante. Eu fumando maconha, já fumei muitas vezes, durmo, porque eu já sou relaxada, não é algo de que eu precise. A cocaína é uma droga de poder, dá a sensação de que você é poderosíssimo. Uma vez em Nova York eu estava numa festa, passou a bandeja, falei que não ia querer. Não, me disseram, cheira porque se não você vai ser execrada. Eu cheirei, meu amor, eu fiquei tão brilhante, tão poderosa que comecei a contar a história do Brasil de 22 de abril de 1500 até então, mil novecentos e oitenta e pouco, o pessoal parou de dançar pra ouvir a história do Brasil, e só tinha três brasileiros. Eu não preciso dessa sensação de poder, mas tem gente que se sente uma merda tão grande, que precisa dessa sensação. É como botar o pau na mesa: eu sou mais do que você, então você vai ter que me engolir. E o que é o máximo hoje em dia, não é o poder? Então pra você tirar a cocaína de uma pessoa você tem que educa-la de um outro jeito, não dizer que o máximo é o poder. Eu também fumei crack, o crack é uma euforia, eu não preciso, mas criança de rua não precisa? Precisa, amor. Pra você tirar uma pessoa do crack, além do problema físico, você tem que dar uma coisa mais gostosa pra ela. E outra coisa, droga não é pra fuga, é pra encontro. A minha geração tomou drogas pra autoconhecimento, agora eu não vejo mais gente tomando droga pra autoconhecimento, eu só vejo ou pra curtir, ou pra fugir. O poder é a pior droga e ninguém persegue o poder. Quem matou mais, a cocaína ou Medellín? Foi Medellín, não é? O que você tem que fazer? Educar bem as crianças. Eu tive consciência plena, não fiz filho porque eu não sei educar uma criança, e porque não posso ter âncoras, filhos são âncoras. Inclusive fiz abortos. Sem a menor culpa, porque, puta que pariu, eu não saberia educar uma criança. Quando você fizer um filho você tem que estar consciente de que você está dando a vida e está dando a morte. Os teus abortos foram públicos, nunca foi um arrependimento? Não, quanto mais velha eu fico mais eu acho que acertei. Depois, temos sete bilhões de pessoas no mundo e um bilhão e duzentos milhões no perrengue. Eu tenho muitos deuses, sou politeísta. Tem uma frase do Álvaro de Campos que eu acho que foi feita pra mim: ergo em cada canto de minha alma um altar a um deus diferente. Eu vejo que as pessoas tem uma ideia muito de gente de deus, “deus é fiel”. Fiel? Fiel é um adjetivo que fizeram pra gente, deus não cabe em um adjetivo que fizeram pra gente. Vai se fuder, deus é fiel. “Deus é bom”, não cabe. Não é. Deus é tsunami. Deus é geleira despencando, deus é tempestade de neve, deus é tempestade de areia. As religiões nos atrapalharam muito. O que essas religiões

fizeram? Fora o budismo. O cristianismo, eu adoro Cristo, mas Cristo só trata do homem. E a floresta, que é nossa irmã? E a pedra, que é nossa irmã? E o cavalo? E o rato? E o vírus da Aids? E o Tubarão? São todos nossos irmãos. Então na realidade o que nós fizemos? Botamos um monte de coisa pro homem fazer e esquecemos do tempo em que a terra era sagrada, do tempo em que a floresta era sagrada. Você pedia licença para tirar uma folha, nos tempos em que o mar era sagrado, para os gregos era Poseidon, para os romanos Netuno, para os africanos Iemanjá, você não poluía o mar, né? No tempo em que o raio era sagrado, para os africanos Iansã, o trovão, Xangô, na hora em que a deusa raia e o deus trovão se encontram tem a trepada do céu com a terra, e aí tem o orgasmo que é chuva e a terra germina. Isso é sagrado. Agora nós... no sábado não pode fazer isso, porque segunda não sei o quê, meu deus do céu! Esquecemos a mãe natureza e essa profanação, gente?

"filhos

são

âncoras Tu tem uma religiosidade própria, sem seguir nenhuma filosofia? Religar, a vida é sagrada. E ninguém tá tratando a vida como sagrada. Qual é a proposta? Casar, ter filho, ganhar dinheiro, deus é o dinheiro. Antigamente, Cronos na Grécia era o tempo, por isso falamos cronometragem, entre os africanos era Ludumaré, tão reverenciado que nem o nome diziam. Aí chega o americano e diz Time is Money. E o que fizeram? Não usam mais o tempo para ser, só para ter. Ter não é ruim não, mas você usar seu tempo todo para ter? Tem uma frase interessante tua, ‘a moral não está no meio das pernas’. Tu acha que a sexualidade deveria ser tratada de outra maneira? Eu nunca fui obediente, mas na minha geração você não podia trepar sem casar. Eu nunca fui mulher, então não tive esse problema, trepei e pronto. Só fazem com você o que você permite. Tem um texto que eu gosto muito, que eu faço no meu espetáculo, de Étienne de la Boétie:“Gostaria de entender, gostaria apenas de entender como é que pode ser que tantos homens, tantas cidades, tantos países suportem às vezes, uma tirania que tem apenas o poder que eles próprios lhe dão. O que faz com que uma nação trate as outras como escrava e as prive de sua liberdade? Será que não sabem que não é preciso combater essa tirania? Que não é preciso anulá-la, porque ela se anula a si própria. Basta que não se consinta em servi-la. Se nada se dá aos tiranos, se ninguém lhes obedece, sem lutar, sem golpear, eles ficam nus, ficam feridos e não são mais nada, são como o galho que se torna seco quando a raiz não tem nem umidade nem alimento. Decidam não mais

tabare.net

servir e estarão livres. Não mais o sustentem e verão como o grande colosso de quem se subtraiu a base pode desmanchar-se com seu próprio peso e desmoronar.” 1460 – etienne de la boetie. Só não obedecer, fácil. Como Gandhi? Como Gandhi, como Sócrates, como os bolivianos. Bolivianos da geração Morales? Antes e em Morales. Ele não é ditador, é um índio que quer proteger sua raça.O índio boliviano é o povo mais ético e honrado do mundo, junto com o Japão. Mas eu admiro mais o índio boliviano porque ser ético e honrado sem dinheiro quase nenhum é mais difícil. Uma vez eu cheguei para uma senhora da Bolívia, índia, né? Porque o branco boliviano é estragado. Eu cheguei para uma mulher lá e falei, “como vocês bolivianos são diferentes”. Ela falou, “como assim?” Ela tinha dois dentes na boca, pobre de marré deci. Eu falei o seguinte, “eu sei que vocês tiveram ditadores, mas do jeito que o ditador sobe, vocês fazem huelga general, nem mosquito voa, e vocês só voltam a trabalhar quando o ditador caiu”. Eu falei, “vocês não deixam a doença se instalar”. Por exemplo, eu nasci na Rússia: setenta anos de ditadura, minha mãe era alemã: vinte anos de ditadura, sou brasileira: vinte anos de ditadura, fora as que tiveram antes, Cuba: quarenta anos de ditadura, Argentina: vinte anos de ditadura, e Chile... E trinta e três anos de um homem só no Paraguai. E a gente que teve ditadura fica “ah, o que a ditadura fez... ah...”. Eu não reclamo, porque eu sou responsável, só fazem comigo o que eu permito, então quando falam pra mim “ah, e a ditadura?”, ótima, eu permiti. Então falei pra ela, “vocês são o único povo que não permitem isso”. Ela falou, “pois é, nós somos o povo mais pobre da América Latina, mas nós nunca remamos a favor da corrente, e a senhora há de entender, tem povos que ainda não são povos, ainda são gado”. Eu fiz mó três vezes: nasci na Rússia, móooo, mãe alemã, móoooo, sou brasileira móoooo. Eu cheguei a perfeição, três vezes gado! Não é uma beleza? Que maravilha aquela mulher, que lição!

Como tu definiria Elke Maravilha? Como nós todos, não temos definição. Somo tudo, somos santos e demônios, somos bonitos, somos feios, somos grandes, somos minhocas. Nesse ponto é muito bom ter nascido russa. Freud dizia, o russo e o irlandês são os únicos povos que não precisam de psicanálise porque não tem medo de mostrar sua sombra. Não tem medo de dizer “olha eu sou mau e eu sou bom”, não tem essa de ficar camuflando nada. Porque os outros povos tem medo, só querem mostrar o lado positivo. Eu lembro de quando era pequena, meu pai falou, “filha, o que você estudou hoje?”. “Estudei uma coisa maravilhosa, que o povo brasileiro não é um povo violento”. Ele perguntou,” onde é que você ouviu essa bobagem?”. “A professora que falou”. “A professora fala qualquer merda, você acredita?” Eu falei, “tá escrito aqui, olha pai”. Ele disse, “minha filha, o papel é muito paciente, você escreve qualquer merda nele, ele aceita. Pergunta amanhã se o que fizeram com os negros não foi violência, pergunta amanhã sobre o que fizeram com os índios, quando o português chegou tinha 22 milhões, agora tem uns 400 mil (agora então tem uns 100 mil), cadê? Pergunta se morrer na fila do INPS ( na época era INPS) não é violência? Pergunta se deixar uma pessoa analfabeta não é violência? Pergunta!” E eu comecei a perguntar. Aí virei uma pentelha.


O sucesso dos Fracassados

Zanota

por Marcus Pereira colaboração e fotos: Leandro Hein Rodrigues amizade com o dramaturgo e escritor Júlio Zanota Vieira, por vezes, me desperta a sensação de ter como amigo a Esfinge de Édipo: há sempre um enigma derradeiro a ser desvendado. Ele nasceu dia 18 de agosto de 1950, em Pelotas. Foi educado numa família religiosa. Cuspiu a hóstia depois do ritual da sua primeira comunhão, o que lhe rendeu a primeira grande surra da vida. Quase morreu quando tinha 18 anos, por conta da tuberculose contraída devido ao uso de drogas injetáveis. Fundou o grupo de teatro Ói Nóis Aqui Traveiz, junto com o ator Paulo Flores, fato que o tornou conhecido como artista em 1978. Escreveu as duas primeiras peças do grupo – A Divina Proporção e A Felicidade não Esperneia Patati Patatá – o que causou a perseguição dos integrantes da trupe pelas autoridades da ditadura militar. Exilou-se no Peru. Tornou-se empresário nos anos 1980 e, na década seguinte, dominou o ramo de vendas de livros usados. Chegou a acumular cerca de 30 mil livros na biblioteca pessoal. Foi presidente da Câmara Riograndense do Livro, sendo o responsável pela modernização da Feira do Livro de Porto Alegre. Descobriu que estava com uma infecção viral mortal em 2005, por isso, despediu-se dos amigos e se retirou ao litoral de Santa Catarina – para morrer. Não morreu, mas durante o tempo que passou isolado, escreveu quase 100 contos – um para cada pessoa que pudesse ter lhe passado a infecção. Daí surgiu o livro de contos O Caralho Voador e o conjunto de peças curtas Para Atores Libertinos e Diretores Licenciosos. Durante todo esse tempo, escreveu dezenas de peças de teatro, além de romances e historietas ainda não publicados. Hoje, dedica-se ao romance Colapso e Destruição de Porto Alegre que, segundo comenta, será a obra que perpetuará sua arte para as gerações futuras. Nesta entrevista, ele fala sobre alguns temas de sua vida e obra.

Tu achas que a arte imita a vida ou a vida imita a arte? Eu tento fazer com que minha arte viva a vida. Minha arte vive a minha vida. Minha vida vive a minha arte. Não faço essa distinção. Mas isso, para mim, sempre foi espontâneo. A literatura é uma maneira de registrar, de expressar esse delírio que tenho dentro de mim. A vida é a matéria-prima para a arte? Sim. Como fazer arte se não for com algo relacionado à vida?

O que tu consideras maior: a arte ou a vida? A vida.

enfermeiros tinham um esquema fantástico de remoção dos cadáveres: morria alguém de noite e, de manhã, quando a gente acordava, o corpo não estava mais lá.

Mas a vida vai acabar e a arte vai continuar... Por que tu usavas drogas? Mas, daqui a um milhão de anos, não vai existir mais nada. Nem Monalisa, nem Louvre, nem planeta, nem vida... nem nada. Mas vai haver vida em outros lugares do universo (risadas). Quantas vezes tu quase morreste? Várias. Duas vezes foram de overdose. Usei drogas pesadas dos 14 aos 18 anos. Em 1967, estava sozinho em casa, sentado no quarto da empregada, quando tive uma overdose, porque apliquei cinco ampolas de Perventin [famosa nos anos 1960, droga injetável cujo efeito se assemelha ao da cocaína]. O coração disparou e caí para trás. Achei que ia apagar. Depois, em 1968, quando contraí tuberculose por causa do uso de drogas injetáveis. Nessa ocasião, me levaram para o pavilhão de doentes terminais do Hospital Pereira Filho, que era uma ala que só atendia tuberculosos nos fundos do Hospital Santa Casa de Misericórdia. Um dos médicos falou que não tinha o que fazer. Aí, chamaram outro médico, que me fez a cirurgia de extração de um dos pulmões. Quando estava moribundo, vi o tal do túnel branco com a luz no fundo. Lembro de ter pensado: que legal, vou morrer! Mas aí o segundo médico me salvou e cortou o meu barato. Mas, cara, a experiência de quase-morte é gostosa. A sensação de estar diante do umbral da morte, se tu tens um pouco de consciência, é uma sensação de gratidão, de realização. Mais tarde, nos anos 1970, quando estava num bar dum povoado da Colômbia chamado Via del Leiva, havia um soldado bêbado com um Fal [abreviação para Fuzil Automático Leve]. Esse soldado estava dizendo que ia matar todo mundo. Continuei ali, curtindo, achei que ele não ia atirar. De repente, ele se virou para mim. Vi nos olhos dele que ele ia atirar e, aí, me joguei no chão e rolei para fora do bar. Lembro de sentir a saraivada passando atrás de mim. Cara, a sensação é aterradora. Bem mais tarde, já nos anos 2000, descobri que estava com uma doença infecciosa. Quase morri. Me trouxeram para ala de doentes terminais da Santa Casa. Só tinha cancerosos. Meu parceiro era um cara que tinha câncer nos ossos, de modo que os ossos estavam perfurando a pele. Lembro que ali, os out/nov. 2013 #25

Porque eram proibidas. (risadas). Descobri um cabaré perto do porto de Rio Grande, onde vendiam drogas por atacado. Aí, comecei a ir lá. Comprava um saco cheio com 400, 500 comprimidos de estanamina. A gente dissolvia as drogas com água bidestilada, ficava parecido com um leite. Cheguei a tomar uns picos de 70 comprimidos por dia. Tu não imaginas quanta droga o organismo consegue suportar... Se tu não tivesses vivido o que viveu, escreverias sobre os mesmos temas? Não. Porque minha literatura é a literatura dos meus fracassos, é a soma de todos os meus fracassos. É aquilo que deixa de ser fracasso mais adiante, quando se realiza numa série coerente dentro da literatura. O que é mais importante: o autor ou a obra? Depende do tratamento da mídia. Às vezes, é o autor. Hoje, temos visto um culto ao autor. É como no cinema: às vezes o ator, a estrela, é mais importante do que o filme. Aí, quando acaba o culto, morre a literatura deles, que de certa maneira sempre esteve morta. Por exemplo: Sartre, que era muito lido aqui no Brasil, era mais importante do que a obra; hoje, é lido muito pouco. Tu acreditas em inspiração?

Inspiração é um estado anímico que te condiciona à produção do texto. Hoje, tenho um processo que acontece no despertar. Acordo já anotando coisas, encontrando soluções que no dia anterior não consegui. Desenvolvi esse condicionamento ao longo de décadas. Então, para mim, não existe mais inspiração. Sou capaz de escrever em qualquer lugar, basta que haja silêncio. O que significa escrever? O nosso material são as palavras, as frases. Sempre, antes de escrever, procuro me cercar de muitas palavras 9


para ter uma abundância de material a minha volta. Dá para traçar um paralelo entre a literatura e a escultura. Os escultores antigos traziam aqueles imensos blocos de pedra e, às vezes, estava quase tudo pronto quando o escultor se deparava com um veio na pedra que rachava a escultura. O escultor em pedra tinha que escolher com grande precisão o bloco em cima do qual ia trabalhar, sob risco de perder a obra. O nosso bloco são as palavras. À propósito, acho que o português é uma língua limitada. Duas ou três vezes tive que inventar uma palavra, porque não encontrei uma que expressasse o que queria dizer. O inglês é muito mais simplificado, mas tem a vantagem de ser a língua universal. Quais as tuas influências literárias? Primeiro, temos que dizer que a grande literatura é venenosa, é corrosiva, te destrói. Pode até te elevar também. Mas, em geral, tu lês e termina decomposto. Mas nem todos têm a sensibilidade para isso. Só que, se tu mergulhas numa obra dessas e sai decomposto, é porque tu és capaz de assimilar aquele veneno que te contaminou. Dito isso, minha primeira influência literária foi Karl May e os livros do Tarzan do [Edgar] Rice Burroughs. Depois, saltei para os grandes romances ingleses, franceses e russos. Esses que me viraram a cabeça. Aí, entra o Charles Dickens, Vitor Hugo, Leon Tolstoi, Alexander Pushkin, Nicolas Gogol... Também li muito os poetas franceses: [Arthur] Rimbaud, [Paul] Verlaine, [Charles-Pierre] Baudelaire... E brasileiros? Nunca consegui ler a literatura brasileira. Sempre achei uma literatura menor. Tem exceções, claro. Por exemplo, Os Sertões, do Euclides da Cunha; Meu tio Iauretê, do Guimarães Rosa; os três grandes romances do Machado de Assis; Memórias do Cárcere, do Graciliano Ramos; Zero, do Ignácio de Loyola Brandão; O Caso Morel, do Rubem Fonseca. Gaúchos? Simões Lopes Neto é genial. Tudo o que ele escreveu é bom. Inclusive alguns trabalhos dele são precursores do formalismo do Guimarães Rosa. Tem alguns pontos de contato. E o Qorpo Santo, pela loucura, pela demência daqueles textos. O que ele escrevia não tem nome. Não é literatura, é um prontuário do Hospital Psiquiátrico São Pedro (risadas).

Sou apaixonado pelas mulheres dos meus textos. E eu tenho um personagem, um pirado, que aparece em diversas histórias com diversos nomes. É um delirante que se dá mal sempre. Esse personagem é algo que está dentro de mim. Nasci com ele. Ele poderia ter se expressado de outra forma. Através da música, por exemplo. Poderia ter sido um grande assaltante de bancos. Poderia ter sido um aventureiro. Poderia ter sido um militar genocida. Poderia ter sido um esquartejador de pessoas. O que ele nunca poderia ter sido é um homem de sucesso social. Tu és um homem de sucesso social? Não. Mas, duma certa maneira, o meu fracasso é o sucesso dos fracassados. O que é o sucesso dos fracassados? Quando sobrevivem, porque é difícil sobreviverem, é deixar o seu recado. E eu estou a um passo de deixar o meu recado. Acredito que se eu conseguir publicar o livro que estou trabalhando agora – Colapso e Destruição de Porto Alegre – e espalhar alguns exemplares numas cinco bibliotecas, acho que terei deixado o meu recado. A literatura vai te eternizar? Não sei. Mas gostaria de morrer com a sensação de que vai acontecer. Depois que morrer, tanto faz, porque não vou estar mais aqui. O que é ser eternizado? É ter uma rua batizada com meu nome? É ser citado por algum professor no colégio? (silêncio) A literatura que se foda, a sociedade que se foda, a arte que se foda. Vou chutar o balde. Estou indo morar no mato. Vou conversar com os caipiras. Os caipiras têm um humor que morreu na relação urbana. Ninguém mais faz humor nesta onda de politicamente correto. Esses dias, fiz uma piadinha no caixa de supermercado e quase apanhei da mulher que vinha atrás de mim. Quando estou numa bodega do interior e faço uma piadinha, o caipira responde. Essa picardia do dia a dia é muito interessante. As pessoas estão escravizadas pelas algemas virtuais. Nunca houve uma escravidão como a do século XXI. É curioso porque hoje as multidões se identificam com a imagem do zumbi. Por quê? Porque elas estão zumbificadas. É só ver essa marcha dos zumbis que acontece em Porto Alegre. As pessoas estão escravizadas. Talvez a escravidão das gerações futuras seja ainda pior, até porque não seremos mais humanos, seremos todos ciborgues (risadas). E quem tiver mais grana para implantar o melhor chip biológico vai viver melhor... até que tudo termine. Tu te consideras louco?

Tu lês os escritores da nova geração, como Daniel Galera, para pegar um exemplo local? Primeiramente, não sei se existe algum escritor gaúcho atualmente. Pelo menos, não existe nenhum escritor de ponta, capaz de abalar a estrutura mental das pessoas. Não aguentei ler o Galera. Tentei. Mas não é o tipo de literatura que eu gosto. Nem acho que seja um bom escritor. Para mim, aquilo ali está muito perto da tentativa de escrever um best-seller. Para mim, não acrescenta em nada a literatura dele. Acho que, aqui no Rio Grande do Sul, os escritores e aspirantes estão preocupados com um certo arribismo social. Tu tens algum personagem que reaparece na tua obra? Algum personagem que tu não consegue ter muito controle? Tenho alguns que estão sempre ali. Principalmente as personagens femininas, que são minhas melhores criações, até porque costumam nascer de paixões reais.

Com certeza.

Tu queres me complicar? Recém casei de novo (risadas). Bom, tive uma grande paixão na minha vida, que nunca realizei. Foi por uma garota ainda na infância. Brincávamos juntos, éramos apaixonados e sabíamos disso. Ela tinha oito anos e eu 12. A gente gostava de brincar de cabana, de esconde-esconde... A gente se esfregava, era muito intenso. Aí a vida nos separou. Mais tarde, a gente teve oportunidade de se encontrar. Mas, nessas ocasiões, eu estava comprometido com outras. Até alguns anos atrás, nos meus momentos de extrema frustração, escrevia algumas cartas para ela. Enfim, desencontros... Há algum tempo já perdi as esperanças de encontrar ela. Agora fala sobre algumas pessoas que tu odiaste ao longo da vida. Ah, o ódio é uma sensação muito gostosa, principalmente quando tu tens a oportunidade de quebrar uma cadeira nas costas da pessoa odiada. Já fui para cima, possesso, de muita gente. Cara, é tão gostoso... Já foste para cima do Paulo Flores, um dos teus maiores parceiros no teatro? Nunca. Mas, pelos anos 1970, lá na Terreira da Tribo, cheguei a levantar um banco que pretendia quebrar na cabeça dele. Foi durante uma discussão extrema que ocasionou o racha no Ói Nóis Aqui Traveiz. Mas ele me parou no olhar. Ele tem uma força psíquica muito poderosa. Aí eu respeitei. Depois dessa briga, ficamos anos sem nos falarmos. No ano passado, quando aconteceu a leitura dum dos meus textos para teatro [O Apocalipse Segundo Santo Ernesto de la Higuera], o organizador do evento me perguntou: “quem tu achas que poderia fazer a leitura?” Eu respondi: “o Ói Nóis Aqui Traveiz.” Aí eu fiz questão de ligar para o Paulo. Liguei. No encontramos lá na Terreira da Tribo e, quando nos enxergamos, foi muito estranho, mas percebemos que éramos amigos de novo. Tínhamos sido muito amigos antes da briga. E, nessa ocasião, voltamos à época em que fomos parceiros, quando desafiamos tudo por um ideal, junto com outras pessoas e tal... Foi interessante. Mas, se possível, a gente ainda finge que não se vê (risadas). Quem é o Paulo Flores para ti? É o Stalin de Bagé que faz teatro aqui no Rio Grande do Sul. E terminou fazendo um grande trabalho. Ele tem uma forte convicção sobre o que deve ser feito em teatro. Algo que, creio eu, nunca mudou. Alguns podem chamar isso de dogma. Mas, na minha opinião, ele realizou muito bem o seu trabalho.

Os loucos têm consciência da própria loucura?

Hoje, quem é o grande dramaturgo do Brasil?

Consciência e orgulho. Não sou mais inteligente do que os outros, sou mais louco. Tenho uma maneira de entender e de agir frente ao mundo que, quando me dou conta, a cagada já está feita. E isso não é niilismo. Isso é como vive o nosso mundo latino-americano: no limiar do lixão. Vivemos pirateando, contrabandeando, parodiando... A verdadeira pujança não está na Europa, que se tornou um museu asséptico, está aqui nesse lodo da América Latina. E acho que existem muitas pessoas como eu. Acho que ninguém é normal. A princípio, somos todos animais. Só que estamos em camisas de força, na coleira, tendo que desempenhar funções, papéis sociais, etc. No fundo, somos todos loucos.

Diones Camargo. Acho que ele precisa amadurecer seus textos. Mas tem um imenso potencial. Acho até que nem deveria estar mais aqui [em Porto Alegre].

Fala sobre as mulheres que foram grandes amores na tua vida.

tabare.net

Estamos desempenhando uma performance agora, durante esta entrevista? Acho que, diante do gravador, estamos mais preocupados com o que está sendo registrado. Tu estás preocupado como é que tu vais redigir a tua matéria. E eu estou preocupado em como ela vai ficar, em como vou recebê-la. Sei que tu és um cara crítico, por isso estou com um pé atrás, porque não sei se não vou acabar levando um malho (gargalhadas).


(por Marcus Meneghetti)

Não! A escrita não me surgiu por causa de Fulana. Jamais escrevi panegíricos, sonetos ou cartas inflamadas àquela mulher. Nunca me vali de lirismo para descrever seus olhos azul-esverdeados, onde o céu do Cone-Sul se funde com os gramados de Versalhes. Nunca flertei com a objetividade para atingir a realidade da sua boca delicadamente voluptuosa, sobre a qual uma pinta lhe enfeita os lábios com a elegância das moscas da belle époque parisiense. Nunca ousei traduzir em versos seu corpo alvo e macio que, por entre os seios, exala um perfume de Pagú – que inspira o erotismo em certos poetas modernos. Não. A escrita não me surgiu por causa de Fulana. Diante do golpe do destino que afastou Fulana de mim, em hipótese nenhuma, escrevi longos textos para tentar estancar o tempo que sangra e empalidece as lembranças daquele rosto cândido. Nunca utilizei as páginas do meu diário como bandagens para conter – em vão – a hemorragia de dias, meses e anos que escorriam na ausência dela. Jamais cometi o disparate de tentar mantê-la viva na memória. E, visto que não me dediquei a tal sina, não tive a oportunidade de aprender lições como esta: a memória é hemofílica e, uma vez que a vida nos golpeia uma ausência, a mente desata uma sangria que, por fim, acaba expirando as recordações da pessoa amada. Não existe quantidade suficiente de palavras para debelar as investidas de Cronos. Sendo assim, nunca me lancei a nenhuma Odisséia proustiana. Não imitei o escritor francês, que embarcava nas pequenezas do cotidiano, e navegava pelos mares vastos da lembrança. Diante dos objetos que passaram pelas mãos de Fulana – livros, discos, taças, roupas, fragrâncias... – jamais os converti em embarcações para empreender uma jornada de volta ao

passado. A despeito de Odisseu, Fulana não foi minha Penélope; e a pequena cidade de Passo Fundo não foi minha ilha de Ítaca. Não remei no sentido anti-horário no intuito de voltar e voltar e voltar aos dias de amor. Não me obcequei pela busca do tempo perdido. Não redigi, qual o talentoso Proust, frases intermináveis que começassem no presente e terminassem no passado. Da mesma forma, jamais levantei a Bandeira de Manuel: não registrei uma linha sequer sobre a vida que poderia ter sido e não foi. Não imaginei – nem em prosa, nem em verso – o que eu e Fulana poderíamos ter vivido, caso tivéssemos consumado nosso amor. Não registrei os jantares românticos que dividiríamos na sala à meia-luz, nem os brindes com uísque barato, nem a dança lenta sob as melodias de Chet Baker, nem os beijos de final feliz hollywoodiano, nem as roupas despencando pelo chão, nem o sexo urgente sobre o tapete, nem o orgasmo exaurindo os corpos, nem o sono confortável no calor dentro dela... e tampouco as conversas que teríamos sobre como foi penoso passarmos tanto tempo afastados. Não. Jamais fui escriba de ocorridos não-ocorridos. Não conjuguei uma vida feliz no futuro do pretérito, afinal, nosso pretérito não teve futuro. O papel também nunca serviu de palco para elucubrações sobre a vida de Fulana na distante capital paulistana. Ao contrário de Drummond, nunca escrevi especulações sobre a rotina e a intimidade de Fulana: não me perguntei por quais ruas caminhava, quais bares freqüentava, quem eram seus amigos, quais seus assuntos favoritos, como se comportava diante do espelho do banheiro. Jamais divaguei sobre os homens com quem se envolvia: não indaguei quantos foram, nem se eram fortes, se eram atletas,

por Gabriel Jacobsen

se eram artistas, se eram intelectuais, se eram bonitos, se a amavam, se a tratavam bem, se a satisfaziam sexualmente, se eram mais do que eu. Tampouco cogitei se ela, por ventura, os amava. Não imitei a empreitada do poeta itabirano: não transformei Fulana num mito. Não, não, não! A escrita não me surgiu por causa de Fulana. Eu nego Fulana. Nego cada um de seus traços divinos com a força de uma paixão escandalosa. Não descanso nem depois de inventar um milhão de maneiras maravilhosas para rechaçar aquela mulher. Contudo, mesmo que minhas negativas encham uma biblioteca alexandrina, ainda assim, não será o bastante para extirpá-la da ponta da caneta. E a culpa por este fado não é mais minha do que dela. Afinal, não é ela quem sempre arranja um jeito novo de se interpor entre eu e o papel? Não é ela quem sempre caminha pela minha memória rente à minha escrita? Não é ela quem sempre sugere novos louvores a seu respeito – que eu imediatamente converto ao negativo? A rigor, Fulana não esgota as facetas da sua exuberância infinita. E eu, por minha vez, me ponho a negá-las – miserável e indefeso – contra a eterna primavera que insiste em florescer nas lembranças. Não, a escrita não me surgiu por causa de Fulana. Então, por que meus punhos não abandonam a inesgotável tarefa de negá-la? Não seria mais proveitoso afirmá-la? Não. Não posso afirmar Fulana, pois, todas as afirmações acerca da sua formosura caberiam no seu nome de batismo. Qualquer afirmativa sobre suas dádivas não seria suficiente, nem conveniente. Afinal, não existe outro meio de afirmar com plenitude todos os encantos de Fulana senão escrevendo-lhe o nome próprio: Caroline Donato. E não há mais nada digno de nota.

Esta fotografia te ofende?

Ao Facebook, ofendeu.

A internet é mais livre que o papel impresso?

Depende. out/nov. 2013 #25

11


TABARÉ

desconfiai do mais trivial [Pepe Martini]


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.