#27

Page 1

lá vem pedrada


arte // Marina de Moraes & Martino Piccinini ilustração // Marina de Moraes Ariel Engster, Chico Gua zzelli, Gabriel Jacobsen, Jonas Lunardon, Jessica Dachs, Leandro Rodrigues, Luísa Santos, Luna Mendes, M arcel Hartmann, M arcus Pereira , M artino Piccinini, Natascha Castro, Pepe M artini, Rodrigo Isoppo e Yamini Benites

projeto gráfico_ Martino Piccinini diagramação_ Johannes Kolberg & Martino Piccinini capa_ Jessica Dachs colaboradores_ Alexandre Nadal, Antonio Felipe Purcino, Fabiano Gummo, Evaristo Rodriguez, Guto Leite, Iuri Müller, Johannes Kolberg e Marina de Moraes tiragem_ 3 mil exemplares Contatos: comercial@tabare.net * tabare@tabare.net * facebook.com/jtabare


Do obscuro anonimato que habitam algumas seções do Tabaré, se ouvia, na redação, uma voz feminina e rouca que chiava: “Emma Bovary c’est moi! Emma Bovary c’est moi...” e em seguida um tap tap tap seco da máquina de escrever que parecia concordar. C o u s a e s t r a n h a pensamos. Em outra oportunidade, diagnosticaríamos facilmente a situação c o m o : I. Integrante em crise, II. Falta de medicação, ou III. Síndrome do poliglotismo patologias batidas no meio jornalístico. Erramos. Incógnitos, decidimos ligar ao “0800- Xamã” para resolver o enigma, e ele tirou de letra adivinhando: a morocha respondedora se revelará. É o fim do mistério e de toda impessoalidade da voz-do-além que conversava com o leitor. Não falamos da encarnação austral de Tavares (Pasquim), nem de uma releitura de Odette de Crecy (Pato Macho). Hablamos de Jessica Dachs e dos muitos litros de vinagre rio-platense transformados em caracteres na página três deste jornal. Portanto, pedimos encarecidamente ao leitor que, a partir de agora, todos os xingamentos e declarações sejam direcionados à nena.

Tabaré é tipo deus, né? Eu não vejo em nenhum lugar, mas sei que existe. Karina López, Leitora Tuduntssssssss. Pô, nega, tô precisando de estagiária aqui nas Cartas ein. Manda teu curriculum anexado na próxima. Bejo Pessoal, ando muito deprimida com a cena cultural de Porto Alegre e mais deprimida ainda por vocês não se manifestarem em relação a isso. Pô, pro veículo de vocês tá tudo bem? Mesmo? Tá legal do jeito que tá? A única matéria que vi chegar perto do tema era aquela da Cidade Baixa. E a emigração de artistas? E a qualidade das produções feitas na cidade? E essa publicidade nojenta e escancarada que as pessoas andam chamando de obra/performance/ intervenção? Eu quero prozac! Eu quero prozac! Andrea Gomez, Incompreendida Dame dos, Andrea. Dame dos. Vamos nos pautar com relação ao tema, pois acredito que o jornal compartilhe deste teu inconformismo. Gracias! Não vai ter Copa! Não vai ter Copa! Não vai ter Copa! José Fagundes, Blackblock da Serra Afuder, Zé, tu adivinhou que eu sou vegetariana? Andaimes, tapumes, lonas, uma cidade que para às seis horas da tarde, um ôni-

bus com gente comprimida, saúde em greve, educação em greve, corte de árvores, ampliação de rodovias, morte de ciclistas, machismo, feminismo, nazismo, ocupação, desocupação, niilismo: desce do altar o Laçador e caminha perdido no parque da redenção à noite, procurando a Porto Alegre que conhecia. Marcelo Freitas, Voyeur Marcelo, my darling... Sejamos sinceros: o Laçador foi fazer outra coisa na Redenção à noite, né. Tss, gurizadinha sempre jogando na licença poética. Dá licença... Ô Tabaré, coméque tira mancha de tomate da roupa mesmo? Matheus Guimarães, Dono de Casa Teteu, vou ser franca contigo: esse lance de tirar mancha de roupa tá por fora, o negócio é se adaptar a um jeito meio “bienal” de ser. Mancha o resto da roupa com café, cola umas rodelas de pepino e sai pra rua. Sucesso na certa, contratação imediata da Milka e braço direito do Rui Spohr. Gente, tô pensando em me converter aos Amish, tirando o troço bizarro da religião. Só vejo zumbis ao meu redor... E deixo um aviso: se continuar do jeito que tá, esse “lance bonitinho” de “jornalzinho impresso” vai virar peça de museu. Natália Oliveira, Antropóloga Nati, pilho certo, partiu comunidade Amish em Poa!


texto // Luísa Santos e Rodrigo Isoppo arte // Johannes Kolberg

S

eria sensacionalismo tratá-lo enquanto lenda? Talvez. Fato é que Roberto de Melo Santos, mais conhecido como Di Melo, carrega uma iconicidade que vai além de sua qualidade enquanto músico: uma narrativa particular surpreendente. Um alguém que quis mostrar seu talento ao mundo, mas que teve de ter o seu desejo desviado. Contudo, por ironia do destino, esse mesmo mundo acabou por lhe dar um privilégio ainda maior: o título de Imorrível. Um sujeito que foi redescoberto nos confins do ostracismo. Di Melo é um dos tantos que teve a arte renegada na porta das grandes gravadoras, ao mesmo tempo é um dos poucos que ressurgiram das cinzas muitos anos depois . Ele é a marca de que o sucesso não depende apenas do talento, mas também da estratégia frente à concorrência do mercado, que ele próprio chama de “desleal”.

Autointitulando-se como “O Imorrível”, Di Melo está de volta na cena musical brasileira. Muitos diriam que por fruto do acaso, ele diz “tudo tem sua razão de ser, tudo é tempado e tudo é prazado”. Hoje ele protagoniza shows para cerca de 85 mil pessoas com seu groove e swing inigualáveis, e foi numa dessas, em fevereiro de 2014, no festival Psicodália, que tivemos a possibilidade de tê-lo frente a frente para nos contar um pouco de sua trajetória: desde a gênese até a ressurreição e o retorno ao “mundo dos vivos”. Tomado pelo êxtase do resultado tardio de seu sucesso, ele mal olhou pra nós - efêmeros repórteres - e confabulou sua autobiografia mergulhado em superação e satisfação, como se recebesse, com atraso, o quinhão pela árdua experiência.

O pernambucano Di Melo chegou em São Paulo no fim dos anos 60 trazendo uma materialização do soul, algo até então pouco explorado no solo tupiniquim. Em 1975, lançou seu consagrado disco pela EMI-Odeon. Apesar de compor ao lado de Jorge Ben, Hermeto Pascoal e Jair Rodrigues, Di Melo não teve o mesmo reconhecimento. Nos solavancos do tempo e espaço, ele se envolveu com a noite paulistana, trocou shows por migalhas e se apagou aos poucos da possibilidade de crescer profissionalmente na carreira. Na década de 90, já de volta a Recife e desacreditado do sonho de artista, recebeu a notícia de que havia sido descoberto na Europa por DJ’s ingleses que o colocaram em uma coletânea de música brasileira. O curioso é que, em meio a esses 30 anos, contava a lenda que Di Melo havia morrido em um acidente de moto.

Eu fui pela primeira vez para São Paulo com Vanderlei, organista de Roberto Carlos. Fiquei durante um tempo, mas eu estava meio que me sentindo nulo-crudo e voltei para Recife. Fiquei um tempo amadurecendo ideias, criando e recriando e recriando, até que encontrei o Jorge Ben. Ele me deu um cartão e disse: “Velho, procure este cara: Roberto Colossi”. Até então, ele era o maior empresário (ele e Marcos Lázaro) do Brasil. Tava todo mundo com ele - de Chico Buarque e Jô Soares a Paulinho da Viola. Procurei ele, e quando ele largou todo mundo pra ficar com o Jô Soares, eu passei a trabalhar na noite. A noite adere a ideia do manha, maçanha, maranha, mamunha e tramoia. A noite te dá isso, esse campo de vivão. E depois você tem que sair fora porque, se você persistir, você vai se queimar, vai dar com os

Tua carreira musical teve um início conturbado. O que te fez cair no ostracismo?

tabare.net

burros n’água e virar carne de vaca. Então eu acho que tudo tem que ser dosado e não esclerosado. Eu tinha um disco tocando. Saía de uma rádio tocando noutra. Eu tinha música no disco do Wando, aquela “moça, me espera amanhã...” que estourou e todo mundo sabe. Tinha a música “Abra o sorriso novamente” no disco do Jair [Rodrigues]. E fui receber um direito autoral, trimestral, de 11 cruzeiros. Aí eu disse “porra… faz tempo que foi descoberto que a real burrice não tem transplante. O que eu tô fazendo aqui!?”


Passado isso, o que tu tem a dizer sobre o papel da indústria fonográfica no Brasil?

co pela EMI Odeon e morreu de desastre de moto”. “Porra, morri e esqueceram de me avisar!”, respondi.

Eu costumo dizer que o Brasil possui uma gama frequente de pessoas fazendo coisas belíssimas e que muitas vezes não têm recebido espaço ou reconhecimento. Mas de alguma forma isso se sobressai. Tem coisas muito boas, coisas razoáveis, coisas passáveis e coisas descartáveis. Então o que ocorre: você estourar, você acontecer - isso pode ser. Agora, o difícil é permanecer. A permanência é um tanto quanto difícil porque a concorrência é crudelíssima e muitas vezes desleal. Minha incredulidade se encontra no mercado da música e pô… você fazer alguma coisa que valha a pena, que você gosta e que você consiga sobreviver dela, da tua arte, até hoje, é meio ingrato no Brasil. Você vê muita gente que não tem tais valores. Mas isso tambem se vê na pintura, tambem nas várias artes, atores... quer dizer, você tem que tá com tudo em cima no momento exato.

A história começou com os DJ’s do mundo todo aderindo ao som e tocando. E a coisa foi se avoluman-

Independentemente do balanço, do swing, da malemolência, da jocosidade, da malandragem, há tambem o trabalho gritante, sério e de cunho politizado. Na época, eu fazia questão de executar esse tipo de trabalho que também estava em voga. Não que eu atacasse de maria-vai-com-as-outras, não é bem isso. É que eu sou muito brincalhão, mas também falo sério. Pode ser que eu esteja no momento exato agora. Eu gostaria de ter tido essa experiência no passado. É que quando você é jovem, você acha que o mundo não vai acabar nunca. Você se dá o direito de quebrar regras. Em meio ao teu desaparecimento da cena musical paulistana, acreditaram que tu havia morrido. Como foi receber a notícia? Eu sofri um desastre de moto e, como eu saí do ar, todo mundo passou a dizer: “Pô, o cara morreu”. Aí começou aquele papo de que morreu. De repente, um amigo meu liga assim, às 8 horas da manhã: “Di Melo, ta de pé?”. “Sempre”. “Não me deu mais notícias. Foi feita uma pesquisa a nível mundial e chegou-se a conclusão de que você está entre as 10 melhores vozes do planeta, mas que, infelizmente, você fez um único dis-

Wando e duas com Jair Rodrigues. Recentemente, também com o Emicida e outra com Rashid. Pretendo, na sequência, gravar essas músicas que tenho com outras pessoas. Tenho outro disco: o “32 de Fevereiro”. Todo mundo acha que o Di Melo só tem o disco da EMI-Odeon. Mas não. Existem 10 CDs gravados. Assim, pegando por baixo, mais de 100 músicas gravadas, 400 inéditas, outras esquecidas. Mas isso é legal, esse é o verdadeiro pagode de tudo, a satisfação plena. Como tá se dando esse contato com um público que não foi contemporâneo ao processo de criação das tuas músicas? Onde eu tenho ido, graças ao Todo-Poderoso, o acesso, a festividade e os depoimentos das pessoas têm sido incríveis. Eu me sinto honrado, felicitado e às vezes nem acredito no que tá acontecendo. Parece um sonho que eu não quero que termine tão cedo. Eu me entrego a isso de corpo, alma e divindade. Por ter muita música guardada, acho que agora tem muita gente vindo e gravando, muita gente groovando em cima. Onde vai, o som é uma festa de cores, luzes e sabores.

do e pegando um pedal incredulidável, haja vista que nada acontece por acaso. Tudo tem sua razão de ser. Como eu tava falando, tudo é tempado e tudo é prazado. Então, eu tô colhendo frutos que plantei no passado. Di Melo, o imorrível. Di Melo, se deixar, pula de avião sem paraquedas e cai intacto. Tem sete vidas feito gato. A partir desta surpresa, como tu te reorganizou no cenário musical? Eu havia perdido a vontade de fazer as coisas. Mas surgiu uma nova razão que me move. Tô com uma filha de sete anos que me impulsionou a isso. Faço isso em grande parte por ela. Ela é um gênio, linda ela. Ela canta, abre e fecha o show. Ela é do caralho, o povo pira com ela. Ela diz “meu pai é um cremopempolho: junção de cri-cri, morcego, pentelho e piolho”. Ela é foda.

Tô viajando. Se eu marcar comigo eu furo. O público adere, compra os discos, compra as camisetas. Tá virando uma corrente positiva, um respeito ao trabalho. O que é inegável é que tem algum valor. Se não tivesse ou houvesse tido, não tava rolando essa onda. Entendeu? Meu espírito continua jovem. Disso, nada mudou. Cresci, a voz tá melhor ainda, tenho voz de criança e cabeça juvenil. Inclusive, transo feito jovem, o tesão prossegue, tá tudo em cima. Se marcar comigo, eu furo. Me apaixono todo dia, gostaria de ser mil homens pra namorar mil mulheres ao mesmo tempo. É um barato! Pintou mulher bonita, eu me apego fácil. Pintou marido nervoso, me desapego. Mas gosto dessa safadeza toda.

Tenho 400 musicas inéditas, das quais doze com Geraldo Vandré, uma com Baden Powel, uma com

FESTA DE ANIVERSÁRIO

abril/maio 2014 #27

12


texto // Natascha Castro fotos // Jonas Lunardon & Yamini Benites

O

R E F L U X O

D A

L U T A

A G R Á R I A

M o v i m en to S o c i a l i cô n i co n o B r a s i l , o M ST r ef o r m u l a s u a m e tO d o lo g i a e r ed i r ec i o n a s u a s tát i ca s d e lu ta e m m ei o a c r í t i ca s e a b a n d o n o s

É

da natureza de uma organização classificada como movimento social o estabelecimento de objetivos específicos, assim como de estratégias e táticas para alcançar suas metas concretas. No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), hoje com 34 anos, ficou conhecido como a organização social mais relevante na luta pela terra. Ao longo da sua história, se espalhou por 24 estados brasileiros e conquistou mais de 300 mil hectares de terras para a reforma agrária em todo o país. O MST começou a ser gestado em 1979 na região Sul, mas só foi fundado oficialmente em 1984. Da gestação à fundação, centenas de camponeses montaram uma organização sui generis, pois levantava bandeiras não apenas de luta pela terra, mas pela Reforma Agrária e pelo Socialismo. O lema “terra para quem nela trabalha” conquistou corações tanto nos campos quanto nas cidades. Por tal razão, o MST adquiriu três características essenciais: tornou-se um movimento popular que valorizava sua amplitude, na qual, além de todos os integrantes das famílias camponesas, qualquer cidadão que se interessasse pelo tema poderia participar; transformou-se em uma organização de massa, com caráter sindical e uma pauta específica; e virou uma entidade que relaciona interesses particulares e de classe, na luta pela terra e pela reforma agrária. Em meados dos anos oitenta, o fim da ditadura militar (1964-1985) já indicava a forte crise econômica que o regime deixaria de herança para o país. No campo, a

situação era ainda mais precária, porque a miséria, a migração forçada e o latifúndio eram três constantes de Norte a Sul. Junto com o ressurgimento da democracia, renasceram os movimentos sociais e as entidades trabalhistas, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT). No campo, os Sem-Terra articularam a luta: coordenavam ocupações, acampamentos e marchas, que resultaram no assentamento de milhares de famílias e deram vida a terras improdutivas. Posteriormente, os núcleos familiares começaram a organizar suas cooperativas e associações. As medidas tinham grande impacto no começo dos anos noventa, auge do Movimento, em virtude da radicalidade inesperada dos movimentos sociais. Se por um lado o MST era odiado pelas elites agrárias, por outro, era apoiado por uma ampla correlação de forças. “Tínhamos um leque grande que nos defendia, desde a Universidade, os professores, os partidos de esquerda... Todo mundo defendia que, entre o latifúndio improdutivo e os sem-terra, era melhor os sem-terra”, comenta o assentado e dirigente nacional do MST, Cedenir de Oliveira, Entre os governos de Fernando Collor de Mello (19901992) e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), o Movimento dos Sem-Terra provou sua força ao se transformar em uma das maiores organizações populares do país, capaz de pressionar o governo por políticas de expropriação de terras improdutivas mesmo durante os anos mais intensos do delírio neoliberal. Enquanto o PT se adaptava ao jogo político-eleitoral, o que lhe rendeu o governo tabare.net

federal em 2002, o MST manteve a firmeza ideológica e pautou a Reforma Agrária e o Socialismo no debate público brasileiro. Passados trinta anos, nem o país, nem o movimento são os mesmos. A conjuntura política e econômica é outra: uma democracia representativa estabelecida, ainda que muito questionada, e uma economia em crescimento sustentada com mão forte pelo governo do Partido dos Trabalhadores. O campo também passou por transformações, refletidas nas mudanças táticas e estratégicas do MST. Nova política Desde 2005, o Movimento investe mais nas cooperativas já estabelecidas do que em novas ocupações. O direcionamento da luta foi criticado por parte da militância do MST – tanto é que um grupo escreveu uma carta de saída da organização na primavera de 2011. A “Carta de Saída das Nossas Organizações (MST, MTD, Consulta Popular e Via Campesina) e do projeto estratégico defendido por elas” é bem explícita nesse ponto, até mesmo porque, dos seus 51 signatários, 35 pertenciam ao MST. “Nossas organizações, cada uma a seu tempo e não sem contradições, estão dependentes do capital e de seu Estado. As lutas de enfrentamento passaram a ameaçar as alianças políticas do pacto de classes, necessárias para manter os grandes aparelhos que conquistamos e construímos... Com a expansão e o fortalecimento do agronegócio, evidenciaram-se os vínculos dos governos


do PT com os setores estratégicos da classe dominante... Nesse sentido, enfrentar as forças do agronegócio seria uma crítica direta ao governo petista”. Mesmo ao afirmar que o MST não tem vínculos tão estreitos nem com o PT, nem com o governo, Cedenir reconhece as dificuldades atuais e defende a Nova Política. “Nos constituímos ao longo da história como um movimento autônomo. Evidente que a constituição do MST faz parte de um ciclo histórico, e esse ciclo produziu várias organizações de classe, tanto do ponto de vista do mundo sindical quanto da disputa do processo partidário. Sempre tivemos uma boa relação política não só com o PT, mas com vários partidos de esquerda”, justifica Cedenir. O MST se manteve disposto a fazer parcerias com os governos que se comprometem a atender a alguns interesses da organização - uma característica do movimento sindical. “É melhor fazer luta com o Tarso Genro do que com a Yeda Crusius, mas isso não resolve o problema da questão agrária. Muito pelo contrário, se você verificar no cenário nacional um dos piores períodos da história do campo, da reforma agrária, da obtenção de terra, é o do governo Dilma”, salienta o dirigente. Dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) de 2012 endossam a acusação de Cedenir, segundo a instituição o governo de Dilma Rousseff contabilizou a pior marca de assentamentos de famílias dos últimos 17 anos. Em carta entregue à presidenta em fevereiro de 2014, o MST acusou o Governo de ser “incapaz de resolver o grave problema social e político da reforma agrária." No texto também indicaram que, por ano, o atual governo assentou apenas 13 mil famílias em terras desapropriadas – menor média desde a ditadura militar. Essa é a principal justificativa apontada por militantes do MST para o refluxo da luta e a mudança estratégica da organização. Anderson Girotto, uma das lideranças da Juventude Sem-Terra, afirma que o MST é “um movimento social que pressiona o Estado através da luta, para que se garanta o direito à terra. Só que, quando o Estado toma uma decisão de não fazer mais assentamentos, automa-

ticamente o movimento fica numa situação delicada. Se tu não tens mais conquistas, a luta vai refluindo. Com essa luta refluindo, a decisão política do MST foi de fortalecer as famílias assentadas e de construir um plano camponês alternativo ao agronegócio”. O atual sistema hegemônico de agricultura – o agronegócio – é caracterizado por uma elevada concentração de terras nas mãos do capital financeiro, que domina toda a cadeia produtiva. Tal modelo modificou não apenas a situação do campo, mas fez a luta pela terra se adaptar a uma nova conjuntura. Cedenir afirma que o agronegócio alterou a correlação de forças que dava suporte ao Movimento dos Sem-Terra. “Quem apoiava antes a ocupação das terras improdutivas já não apoia hoje a ocupação de terras do agronegócio. Perdemos aliados. A situação ficou difícil porque a sociedade não acha que a ação se justifique”. A organização vem ao longo dos últimos anos repensando seus métodos, já que parte da militância considera as antigas e tradicionais formas de luta, como a marcha e a ocupação, pouco eficientes na atual conjuntura. “Na medida em que enfrentávamos o latifúndio improdutivo, a ocupação, a marcha e o discurso político de direitos tinham consonância e nos faziam avançar. Hoje, para enfrentar o agronegócio, precisamos de um modelo que o supere. Esse modelo é o das associações e cooperativas. Não é só discussão ideológica, afinal temos que demonstrar na prática que é possível construir outro modelo de produção. Assim, temos um mecanismo de fazer política e também de melhorar a renda das famílias”, argumenta o dirigente nacional do MST. Um segundo ponto crucial é destacado para justificar o retrocesso da luta que o Movimento vivencia: o enfraquecimento da mobilização social como consequência das politicas econômicas e assistencialistas do governo. Ainda que as políticas públicas não sejam consideradas ineficazes, mas insuficientes, os militantes defendem que a classe foi anestesiada há muito tempo e que tal anestesia ainda não acabou: “É uma consequência do governo Lula, de acomodar, comprar e corromper a luta. Hoje, as pessoas que estão nas vilas não querem acampar [porque],

ficam pensando que vale mais morar em um barraco, mas ter uma TV de plasma. Mesmo que ela nunca vá pagar, mesmo sem ter o que comer", conta a militante Aline de Souza. Cedenir concorda: "Entre a pessoa ir para o acampamento e esperar cinco ou seis anos debaixo de lona ou fazer algum trabalho temporário, é claro que ela vai buscar uma situação mais imediata". A perspectiva de ciclos históricos compreendida pelos dirigentes aponta para um futuro de contradições do atual modelo político e econômico e o MST aposta na ruína dessa conjuntura. A necessidade de se manter preparado e forte e de incentivar aquilo que já está estabelecido - a produção cooperativada – também justificaria a adoção da nova política. Ao investir nas associações e cooperativas, o Movimento dos Sem-Terra teria optado por construir uma alternativa econômica ao sistema ou teria se rendido a ele? Como expresso na carta, os dissidentes acreditam que "essa estratégia não leva ao Socialismo. Ao contrário, transforma as organizações da classe em colaboradoras da expansão e acumulação do capital. Agora, o que as organizações necessitam é de administradores, técnicos e burocratas, e não de militantes que exponham as contradições e impulsionem a luta.” Para priorizar a criação de alternativas ao agronegócio, o Movimento passou a limitar internamente as ações mais radicais ao agir dentro de limites legais e firmar acordos com os governos. Segundo o dirigente do MST, essa mudança tática não contraria os objetivos concretos e históricos da organização. A nova diretriz seria uma maneira de resistir em um período de refluxo e construir uma possibilidade de alternativa no campo. “Isso não quer dizer que abandonamos a ideia do conflito agrário, da ocupação. Se faz movimento com a realidade, não somente com as ideias. Estamos convencidos de que organizar assentamentos, produzir e disputar o processo de organização da produção é também enfrentar o capital. Uma organização social precisa de elaboração política e de firmeza ideológica, mas também precisa demonstrar para a sociedade que é possível fazer diferente. Nossas ideias têm que se transformar em ações reais.”

*Dados do INCRA sobre assentamentos no país. A pesquisa não contabiliza apenas os assentamentos em terras desapropriadas, foco do MST.

abril/maio 2014 #27

47


E N T R E a teor i a e a pr á t i ca Com o propósito de reportar as condições dos terrenos ocupados pelo Movimento, acompanhei o último ano de um acampamento na cidade de Charqueadas, o atual assentamento Nova Esperança. As terras ocupadas eram parte da Colônia Penal de Charqueadas, área de responsabilidade da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). O terreno destinado à reintegração dos penalizados pelo trabalho era utilizado para outros fins através de arrendamentos ilegais. O grupo que iniciou o acampamento em Charqueadas já havia mobilizado ocupações anteriores em Viamão, Vacaria e Sananduva. O objetivo das primeiras ações era pressionar o governo estadual a cumprir um acordo assinado em abril de 2011, que garantia o assentamento de 100 famílias naquele mesmo ano. Do acampamento em Viamão foram retirados três grupos encaminhados para Charqueadas, Eldorado do Sul e Taquari. As famílias realocadas ainda tiveram de esperar cerca de três anos até que os assentamentos prometidos fossem efetivamente concretizados, um longo período de espera para a média das ocupações próximas a Porto Alegre. Em Charqueadas, a declaração oficial do Departamento de Desenvolvimento Agrário do Rio Grande do Sul foi assinada no dia 13 de março de 2014. Apenas quatorze das dezenove famílias que iniciaram a ocupação foram assentadas, e os melhores lotes da região permaneceram como propriedade da Susepe. As dificuldades vivenciadas durante os três anos acampados debaixo de lonas, sem luz, sem água e sem o apoio do MST não se limitavam à ilegalidade e à falta de condições básicas de moradia. Os moradores de Nova Esperança também viviam ameaçados pelos presos da Colônia Penal. Para os militantes acampados, esses conflitos teriam sido resolvidos se o Movimento Sem-Terra tivesse pressionado o governo para acabar com o presídio. “Agora não tem mais liderança no movimento para botar pressão no governo ou aparecer na mídia. Hoje isso acabou”, lamenta Neli da Silva, assentada em Charqueadas. Aline de Souza, militante assentada, conta que o Movimento “já tinha decidido não abrir mais acampamentos. A gente fazia parte da direção, então eles eram obrigados a nos apoiar, mas era um apoio político. Fizemos a luta

na raça, com pouca grana, era contrariado.” A situação do grupo ficou ainda mais fragilizada quando o racha do movimento se efetivou e a Carta de Saída foi publicada. Parte da militância que encabeçou as últimas ocupações de terra no Rio Grande do Sul deixou a organização na primavera de 2011. “O pessoal que saiu do movimento era mais respeitado. Eles conseguiam garantir estrutura para as ocupações. Depois que entrou essa nova política do MST, de não fazer ocupação, de não ter acampamento, isso acabou com a gente”, declara Marcos Antônio. Nova Esperança pode ser considerado um caso atípico por relacionar três fatores: a saída dos militantes; o conflito com a Susepe na região; e a oposição da nova política do MST às ações de ocupação. O resultado desse imbróglio foi a fragilização das famílias acampadas, a desilusão com os rumos do Movimento e o sentimento de abandono. Questionado sobre a situação dessa militância, encurralada entre a crítica teórica e as novas práticas do MST, o dirigente nacional da organização argumenta que o que aconteceu em Charqueadas foi uma situação isolada: “Do ponto de vista do Movimento não houve abandono. Tanto é que o movimento deu sequência ao processo de mobilização. Às vezes, nem é uma questão política, mas afetiva. O que acontece é que no processo de transformação do que é um acampamento para o assentamento ocorre uma grande mudança“. O comentário do dirigente faz referência ao processo de estruturação de um assentamento. O método empregado pelo MST ao ocupar um terreno passa por etapas: a ocupação é seguida pela formação do acampamento, momento em que as famílias se organizam coletivamente para garantir que o Estado reconheça e registre a terra como um assentamento legalizado junto ao INCRA. Após a declaração firmada pelas entidades responsáveis, é feita a divisão de lotes, e a área passa a configurar um assentamento. Com a divisão de lotes por famílias, a dinâmica de organização se modifica. Cada núcleo familiar é responsável por sua produção, podendo firmar associações e cooperativas com os demais assentados. Os militantes de Nova Esperança rejeitam o modelo de organização proposto pela cúpula: “As cooperativas têm vários problemas: monocultura, cultivo de soja transgê-

tabare.net

nica, exploração dos funcionários, individualismo...”. Eles também indicam que, além da relação que mantinham com os dissidentes, a recusa à formação da cooperativa motiva a negligência do Movimento. “A prioridade do MST são as cooperativas. Os assentados seguem com grande carência” aponta Marcos. O dirigente da organização não encara o problema da mesma forma. Cedenir reconhece na conquista da terra de Charqueadas o resultado do trabalho da entidade, o que refutaria a alegação de abandono: “Todo mundo tem sua liberdade de militar e fazer aquilo que achar necessário. Com dissidência ou sem dissidência, todo assentamento que sai de um acampamento passa por um processo doloroso de adaptação. Mas o que vai acontecer? Se eles quiserem vender sua produção para o governo, terão de formar uma associação. É uma questão de lógica de mercado, não é de gostar ou não da cooperativa. Encarar essa realidade te deixa mais conservador - essa é uma questão levantada pelos novos assentados que têm origem urbana. Evidentemente que deixa, mas a vida é assim. Se você não quiser lidar com a contradição, monte uma seita religiosa”. A conquista da terra em Charqueadas é considerada uma vitória parcial para os assentados, principalmente porque nem todas as famílias receberam seus lotes e o governo não fechou a Colônia Penal. Contudo, a legalização da terra permite que as famílias estruturem suas áreas e comecem a produzir e se organizar. “A partir de hoje, as coisas vão começar a andar, a estrada vai sair, a luz vai vir e os recursos também. Será que vamos ser mais um grupo de colonos individualistas? Em minha opinião, não. Ter um lote individual não significa que vai ser assim, acho que este vai ser um assentamento fora do comum” declara Aline. Seria este o começo de algo novo? Estaria o MST em seus últimos anos? As apostas da cúpula estão certas e é o agronegócio que conta seus últimos dias? As contradições, as fissuras e os rachas são sintomas de transformações. Sem poder indicar o que virá, parece possível afirmar que mesmo em um período de dificuldades, o Movimento Sem-Terra mantém sua grande contribuição política para a sociedade: a exposição da realidade do campo no Brasil.


SEM TÍTULO EVARISTO RODRÍGUEZ

ÁGUA MORNA IURI MULLER

Nem bem entrou no banheiro feminino, foi olhado por duas mulheres que antes buscavam encontrar a própria imagem no espelho descuidado. Da torneira, jorrava uma água morna, fruto do verão intratável que esquentava as caixas d’água. O espelho só era menos sujo do que o

chão, superfície que não via o pano e a vassoura há uns quantos dias. Mas as condições de higiene nunca surpreenderam ninguém que entrasse à tarde no banheiro da estação rodoviária de Caçapava do Sul – ao contrário da presença daquele homem no lugar, esta sim nitidamente anormal. A primeira mulher, a que estava mais perto do homem

ilustração // Fabiano Gummo

De un beso envuelve La más fría de las caricias Entre coordenadas y policías Ventanas y celosías El pato y la espátula El entramado inescrupuloso de las olas rompiendo en la punta de tu lengua Y... sin ir más allá de preámbulos y parábolas... El ángulo que traza la intersección de tu sonrisa Se evaporiza Y sin prisa Se deja ahogar en agua, sal y dinero Entre diálogos inconexos Entre vos y yo hay todo eso Copa, basto, entrevero Océanos de desapego

que agora a mirava com olhos de espanto, não reagiu com palavra alguma. Assustou-se ela também, terminou de lavar o rosto e ergueu rapidamente as duas sacolas do chão. Ao passar pela porta, desajeitada, esbarrou sem força nos ombros do homem, que permaneceu impassível, em pé. Em frente à segunda pia, um pouco mais distante da entrada, a outra mulher (jovem e bonita, ao menos em relação a primeira) mostrou-se corajosa: - Eu não vou sair, não adianta ficar me olhando assim. E não abril/maio 2014 #27

vou parar de fazer o que estou fazendo. Tu é que vai sair daqui, e é bom que saia antes que eu grite. O homem, que vestia uma camisa manchada pelo suor daquela tarde quente, não demorou sequer um momento para ruborizar-se. Já havia aberto a boca para tentar justificar a sua permanência ali, imóvel, como se estivesse a espiar as mulheres, quando uma das portinholas internas se abriu. Amparada pela bengala azul e de óculos escuros, Maria deixou o espaço de banho e caminhou em direção ao espelho, tateando as paredes brancas com as mãos. - Estou aqui, querida. Pode vir devagar, disse ele, olhando para o chão. O homem então enganchou o seu braço no de Maria, e os dois saíram do banheiro em silêncio. Minutos depois, estavam em frente ao único guichê aberto, onde compraram duas passagens para o ônibus que sairia no fim do dia em direção a Bagé. No quarteirão da estação rodoviária de Caçapava do Sul, há sete bares que vendem pratos-feitos, frituras, cervejas e cachaças. Mas isso aconteceu num domingo, de modo que apenas um deles estava aberto, e a cidade quase que vazia. 0


texto // Antonio Felipe Purcino foto // Yamini Benites

Pioneira ao levar a sexualidade para o meio do futebol, a Coligay é uma página do Grêmio que poucos conhecem bem. Uma história que deveria ser motivo de orgulho, mas que segue envolta em preconceito.

U

m dos principais tabus no meio do futebol é a questão da sexualidade. Nas redes sociais, termos como “viado” e “bicha” são utilizados de forma pejorativa entre os torcedores para se referir aos adversários. O jogador Richarlyson é apontado como homossexual por onde passa. No ano passado, um selinho do atacante Emerson Sheik, do Corinthians, em um amigo, gerou uma revolta intensa de parte dos torcedores do clube. Enquanto na Europa há uma inclinação maior à abertura – em janeiro, o ex-meio-campista da seleção alemã, Thomas Hitzlsperger, assumiu sua homossexualidade –, no Brasil há um silêncio quase absoluto sobre o tema. Mas o que poucos sabem é que, na década de 1970, uma torcida do Rio Grande do Sul ousou colocar a sexualidade de forma transgressora nas arquibancadas. Domingo, 10 de abril de 1977. No Estádio Olímpico, em Porto Alegre, o Grêmio venceu o Santa Cruz por 2 a 1, em mais uma rodada do Campeonato Gaúcho. Poderia ser uma partida como qualquer outra. Entretanto, algo diferente surgiu naquele dia. E não estava dentro de campo. Vinha das arquibancadas do ainda inconcluso estádio. Um grupo de torcedores chamava a atenção. Não era uma torcida comum. Algo histórico estava nascendo: a torcida Coligay. Antes de falarmos da Coligay, é preciso recuperar a história de Volmar Santos. Nascido em 1948, na cidade de Passo Fundo, Santos vivia em Porto Alegre

em 1977. Era gerente da Boate Coliseu, referência no cenário gay, localizada na Avenida João Pessoa. Gremista “desde sempre”, ele estava incomodado com as torcidas da época. “As torcidas eram muito frias, não incentivavam como deveriam”. Em uma noite na Coliseu, decidiu criar um grupo próprio para torcer. O nome escolhido foi Coligay, remetendo à boate e a seus frequentadores. A torcida começou com cerca de 40 pessoas. A estreia foi contra o Santa Cruz, já contando com a faixa e as características que tornariam a Coligay tão marcante: a animação dos integrantes, as danças, os cantos e figurinos incentivando o Grêmio o tempo todo. “Tínhamos a melhor charanga, comandada pelo Neri Caveira, da Imperadores do Samba”. A cada partida do clube, a Coligay estava presente “Não perdíamos um jogo. Fomos para o interior, Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo”, conta Volmar. O número de torcedores só crescia, chegando a mais de cem. E não precisava ser gay para fazer parte. O único requisito era ser gremista. A novidade nas arquibancadas tricolores logo chamou a atenção de todos. Até a mídia do centro do país esteve em Porto Alegre para conferir o grupo, que foi tema de matéria na revista Placar. “Não tinha noção de que a torcida teria uma proporção tão grande”, diz Volmar. Inclusive, a Coligay foi convidada à partida que decidiria o Campeonato Paulista de 1977, entre tabare.net

Corinthians e Ponte Preta, apoiando o time da capital. O convite partiu do presidente do clube paulistano, Vicente Matheus. Dezenas de torcedores foram a São Paulo, onde acompanharam a vitória de 1x0 do Corinthians, pondo fim a um jejum de quase 23 anos sem títulos do clube. Do lado do Internacional, alguns torcedores aproveitavam a torcida para tentar incomodar gremistas. Já outros desejavam fazer parte da Coligay. “Alguns queriam se entrosar, mas não permiti. Sugeri que criassem a Intergay ou a Inter-Flowers”, afirma Volmar, em referência à Boate Flowers, outro famoso reduto gay da capital gaúcha. Apesar de surgir em meio a um contexto de ditadura militar, período no qual não se discutia a sexualidade, o criador da torcida garante que o grupo nunca sofreu nada grave nem foi impedido de estar nos jogos. “Nunca fomos agredidos. Sofremos algumas ameaças, mas nada aconteceu”. De parte da direção do clube, havia respeito. “Hélio Dourado [presidente do Grêmio na época] é uma pessoa fora de série. Ele sempre me recebeu e nos tratou bem”, diz Volmar. Já entre os jogadores, alguns não gostavam, outros apoiavam - como Tarciso, ex-ponteiro-direito e atualmente vereador em Porto Alegre: “Setenta por cento [dos jogadores] não gostava. Eu era muito querido pela Coligay. Fazia gol e ia lá vibrar com eles”. Volmar credita o êxito à presença de “pessoas de bem” na torcida. Tudo era feito “com muita responsabilidade”.


O sucesso da Coligay na época incentivou o surgimento de outras torcidas compostas por homossexuais no país. No Rio de Janeiro, torcedores de Flamengo e Botafogo tentaram criar a FlaGay e a FoGay. Tentativas semelhantes ocorreram entre apoiadores do Cruzeiro e Sport. Somente a Coligay resistiu, até 1983. Volmar teve que deixar Porto Alegre para voltar a Passo Fundo a fim de cuidar de sua mãe. Sem seu idealizador, a Coligay não conseguiu mais se estruturar. Após seis anos, a torcida deixava de existir. Volmar ainda reside em Passo Fundo, onde assina uma coluna social no jornal O Nacional. Desde então, a Coligay se tornou um assunto pouco discutido, sendo hoje lembrado, na maioria das vezes, em piadas feitas por colorados contra gremistas. Para mudar esse quadro e resgatar a história da torcida, será lançado pela Editora Libretos um livro contando essa história: Coligay – Tricolores e de todas as cores, do jornalista Léo Gerchmann. Ao longo de cinco meses, Léo conversou com ex-integrantes da torcida, jogadores, dirigentes e outras fontes para trazer à luz uma história da qual pouco se fala atualmente. “O livro é sobre a Coligay, mas é também sobre diversidade. E

a Coligay é uma página muito bonita da história do Grêmio”, diz Léo. Se na década de 1970 a torcida era vista de forma respeitosa por parte dos torcedores e também pelo próprio Grêmio, hoje ela faz parte de uma história que poucos têm coragem de relembrar. E que traz à tona o debate sobre a inserção da sexualidade no futebol. Para Bernardo Amorim, coordenador jurídico da ONG Somos, que discute questões de sexualidade, é preciso que alguém abrace tal causa. “Seja clube, federação ou jogador, alguém tem que fazer algo para que o assunto chegue à torcida”, diz. Ele cita como exemplos a declaração do goleiro Lindegaard, do Manchester United, que declarou que “o futebol precisa de um herói gay”, além da torcida do St. Pauli, da Alemanha, que faz bandeiras contra a homofobia e todas as formas de discriminação. Amorim considera que o Grêmio deveria reservar um espaço para falar da

TARCISO: Eu era mui t o querido pela Col i g ay. Fazia g o l e ia lá vibrar c o m eles

Coligay. “O reconhecimento é importante, pelo contexto histórico e pela coragem. Não se pode apagar isso”. Ele afirma ainda que a discussão no Rio Grande do Sul somente daria certo se fosse feita tanto pelo Grêmio como pelo Inter. “As coisas aqui não funcionam por um lado só. O ideal seria uma ação conjunta. Ninguém teria como acusar o outro”. A reportagem entrou em contato com o clube para saber qual o posicionamento oficial em relação à Coligay, mas não recebeu resposta até o fechamento. E se a Coligay ressurgisse hoje, poderia dar certo? Volmar acredita que sim. “Com certeza, se for sério, com responsabilidade e com alguém sério na liderança”. Ele acrescenta que, se morasse em Porto Alegre, “ajudaria a Coligay a se estruturar de novo”. Amorim opina que uma nova Coligay geraria briga entre as torcidas. “Mas se um coletivo de pessoas se junta para ver o jogo, daria mídia e o clube não poderia mandar tirar. A proibição seria pior do que permitir”. Entre todos, permanece o sentimento de que a Coligay deveria ser reconhecida como merece. Uma torcida pioneira, transgressora, que enfrentou o conservadorismo e deixou sua marca na história. Afinal, acima de suas cores, sexualidades e ideologias, todos são torcedores do Grêmio.

1

9

Melhor ser um jogador famoso, se não ninguém da bola. E mesmo assim vão dizer que tu “ganha uma fortuna pra jogar bola e ainda reclama”...

Se você for zagueiro, abra o olho, ou pode ter que se ‘exilar’ na China que nem o ex-corintiano Paulo André.

2 Defenda os interesses dos jogadores desempregados e de times pequenos. Mas não erre o pênalti no fim de semana.

3 Confronte os interesses dos dirigentes propondo mudanças radicais, mas cuidado: não saia à noite, não beba, não vá ao cinema, nem ao parque... e se for homossexual ou bissexual, CUIDADO, aparentemente é o único no futebol... o ‘pessoal’ não aceita!

Manual do Jogador de Futebol Exigindo seus Direitos 1 4

5

2

8 Reúna-se com outros jogadores famosos e os menos famosos, mas não se intitule “Sindicato” - crie outro nome. Até hoje parece que não deu muito certo se chamar de sindicato no futebol. Ah, e não erre o pênalti.

6

Defenda Discuta os interesses ser um jogador Cuidado com seu joeas desproporcionais diConfronte asMelhor concentrações, dos jogadores desemfamoso, se não ninguém lho, sua canela… talvisões de dinheiro das federaos calendários excessivos dos e de para timesos clubes. Cuidado se da bola. E mesmo os ções times grandes e precários dosassim vez seja melhor ouvirpregados pequenos. Mas não vão dizer que tu “ganha conselhos dos médicos você tem alto salário - as pessopequenos, mas se prepare paerre o pênalti no fim uma fortuna pra jogar em vez dos locutores, as se importam demais com isra ser responsável por todos de semana. bola e ainda reclama”... 3e torcedores. cartolas so e pouco sobre quem paga e de os problemas do futebol, como Confronte os interessAfinal, o corpo é seu, onde vem esse dinheiro... não er“mas e a Copa?” ou “o que vão es dos dirigentes apesar de não parecer... re o pênalti no meio da semana. fazer sobre a Portuguesa?”. propondo mudanças radicais, mas cuidado: não saia 2014 à noite, abril/maio #27 não beba, não vá ao cinema, nem ao

7 Se voce tem férias, cuidado para não comer, beber, sair em festas, ir à praia… apesar de parecer, publicamente voce não é um ser humano. E se tiver um pênalti na pelada com os amigos, melhor não errar!

6

Discuta as desproporcionais divisões de dinheiro das federações para os clubes.

8 84

Reúnajogador menos


TABARÉ

Genesis

Jessica Dachs & Martino Piccinini


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.