Edição 504 (Outubro/2019)

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JORNAL DO CAMPUS SEGUNDA QUINZENA | MARÇO 2019

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ANO 37 – Nº 504 PRIMEIRA QUINZENA | OUTUBRO 2019 Produzido por alunos de Jornalismo da ECA-USP

USP trans formada

UNIVERSIDADE

Três histórias de estudantes trans sobre superação, força e resiliência

EM PAUTA

Parlamentarismos em crise

Dificuldades em formar governos afetam Europa p.12 UNIVERSIDADE

DANIEL TERRA

CAMPUS JORNAL DO

WWW.JORNALDOCAMPUS.USP.BR

p.8

ESPORTES

Passa a bola para mim

Times femininos e LGBTs cada vez mais em campo p.13

Show Medicina: isto não é uma publicidade p.3 HU contrata novos funcionários... temporários p.6 Nesta Edição: Suplemento claro!


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DIÁLOGOS

PRIMEIRA QUINZENA | OUTUBRO 2019 JORNAL DO CAMPUS

OMBUDSWOMAN

Inseguranças vividas e anunciadas DULCILIA BUITONI*

EDITORIAL

Bota a cara no Sol CHARGE BEATRIZ ASKASHITA

SIGA E PARTICIPE!

/jornaldocampus

Num Brasil cujo presidente já declarou que filho “meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele”, ser e estar são verbos de ordem. No microcosmos da Universidade de São Paulo – que pensamos ser tão inclusiva e prafrentex –, não é diferente. Não que ela não seja inclusiva e prafrentex, muito pelo contrário: aqui se respira coletivos feministas, negros e LGBTs, comissões de acolhimento e anti-opressões, escritos em banheiros de “liste aqui os boys machistas” e “cota não é esmola”. Nós uspianos vivemos em um antro de segurança e liberdade, em que a ameaça de um “homem de boné vermelho” gera assembleias, panfletos de alerta, mensagens encaminhadas em grupos no WhatsApp. Fora dos portões, o homem de boné vermelho pode ser qualquer um. Se bobear, ele é até chamado de comunista. A insegurança é latente, o medo estampa o rosto, a vulnerabilidade é regra. Mas, e para os trans? A insegurança é latente, o medo estampa o rosto, a vulnerabilidade é regra – dentro e fora dos portões. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, isso não é segredo. A Universidade de São Paulo é hostil, o próprio Jornal do Campus denunciou no meio deste ano. Isso ainda é um segredo? O que tem sido feito? Nós ainda discutimos questões tão básicas quanto nome social e banheiros adaptados quando deveríamos ser referência para escolas e outras universidades, como somos em tantos outros aspectos. Claro, avanços existem. A UFABC, por exemplo, reservou cotas para pessoas trans por meio do Sisu. A história de Jesus personificada por uma trans, na peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com certeza fez a família tradicional brasileira, da moral e dos bons costumes, ter uma síncope. Quando incomoda essa galera é porque algo de certo foi feito. Existem avanços e são importantes, mas em números são pequenos e deixam claro que ainda há muito a ser feito. E isso vale para todas as minorias. Saiamos dos armários, da cozinha, da costura, das caixinhas binárias de gênero. O ano é 2019, o presidente é um boçal e já passou da hora de termos nossos lugares assegurados, por lei ou por luta.

Nesta análise, começo por destacar o crescimento das visualidades. A matéria especial sobre segurança na universidade é aberta com uma reportagem visual em quadrinhos sobre “O grande furto da ECA”. Seguem-se mais três páginas com fotos e infográficos. A imagem da chamada de capa, que teve a inserção de elementos, não é de fácil apreensão, o que talvez pode combinar com a legenda que aponta “inseguranças que nem todos enxergam”. Torna-se necessária uma certa busca para descobrir as várias formas de insegurança que foram incluídas na montagem. Porém, a dimensão da imagem denota a importância da matéria, que, em quatro páginas, trouxe muita informação. As imagens das páginas 8 e 9 são um pouco pequenas e por vezes não remetem ao tema. As fotos do ato em frente à Unesp na matéria “Contra o desmonte da educação” estão numa diagramação que traduz a ideia de movimento e realmente apresentam o que chamo de “embrião narrativo”. São fotos mais “jornalísticas”. No entanto, a foto que mostra o texto de protesto formado por caixas está muito pequena. Por outro lado, o texto da matéria não faz nenhuma referência à manifestação de estudantes, funcionários e professores, nem menciona a data em que houve a manifestação tão bem documentada em fotos. Por sua importância, a possibilidade da reformulação de departamentos na Unesp e de fusões de cursos – propostas que talvez sejam adotadas pela USP e pela Unicamp – mereceria uma chamada na capa. Temas pertinentes e sensíveis foram bem explorados: a questão dos suicídios, pós-doutores dando aulas, a agência que substituiu o Sistema Integrado de Bibliotecas (SIB), falta de água na Letras, Eliel Benites, o professor indígena, a sobrevivência do museu do Ipiranga para pesquisas etc. A matéria sobre os dois jovens inocentes presos durante 29 dias é muito boa, transmite a vida e a vivência de Ytalo e Arlailson. Senti algumas faltas: as idades deles, onde estudam, o que fazem seus pais. Pequenos detalhes que acrescentariam ainda mais proximidade com essas injustiças estruturais tão recorrentes em nossos dias.

*Dulcilia Buitoni é jornalista, pesquisadora e ex-professora da ECA

JORNAL DO CAMPUS – Nº 504 – TIRAGEM: 8 MIL EXEMPLARES Universidade de São Paulo – Reitor: Vahan Agopyan. Vice-Reitor: Antonio Carlos Hernandes. Escola de Comunicações e Artes – Diretor: Eduardo Monteiro. Vice-Diretora: Brasilina Passarelli. Departamento de Jornalismo e Editoração – Chefe: André Chaves de Melo Silva. Chefe Suplente: Dennis de Oliveira. Professores responsáveis: Marcos Zibordi, Luciano Guimarães e Wagner Souza e Silva. Estagiária PAE: Gustavo Longo. Redação - Secretária de Redação: Tamara Nassif. Editora de Arte: Lígia de Castro. Ilustradores: Beatriz Askashita, André Capocchi. Editora de Fotografia: Christian Villaverde. Fotógrafos: Beatriz Cristina, Caio Santana, Eduardo Passos, Marcos Santos, Larissa Silva, Lígia Andrade, Maria Eduarda Nogueira, Gabriel Oliveira, Daniel Terra, Laura Scofield, Cecília Bastos, Michelle Hejazi. Editor Online: João Pedro Malar. Entrevista - Editor: Gabriel Araújo. Repórter: Amanda Capuano. Universidade - Editores: Carolina Fioratti, André Netto, Beatriz Crivelari, Guilherme Roque. Repórteres: Crisley Santana, Marcelo Canquerino, João Pedro Malar, Marcus de Rosa, Beatriz Cristina, Diego Bandeira. Em Pauta - Editor: João Vitor Ferreira. Repórteres: Giovanna Stael, João Pedro Malar. Cultura - Editora: Thaislane Xavier. Repórteres: Larissa Silva, Pedro Smith, João Gabriel Batista. Esporte - Editora: Mariah Lollato. Repórter: Lígia Andrade. Ciência - Editora: Maria Eduarda Nogueira. Repórteres: Lígia de Castro, Caio Santana, Isabella Velleda. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 433, bloco A, sala 19, Cidade Universitária, São Paulo, SP, CEP 05508-900. Telefone: (11) 3091-4211. Fax: (11) 3814-1324. Impressão: Gráfica Atlântica. O Jornal do Campus é produzido pelos alunos do 4° semestre do curso de Jornalismo Matutino, como parte das disciplinas Laboratório de Jornalismo: Jornal do Campus e Laboratório de Fotojornalismo.


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O Show tem que continuar? Fraternidade masculina existente desde 1944 se baseia no segredo e na hierarquia

Descendo a Avenida Brigadeiro Luís Antônio em direção ao centro de São Paulo, encontra-se o Teatro Bibi Ferreira, palco das edições 76ª (2018) e 77ª (2019) do Show Medicina. No dia 3 de outubro, a apresentação estava marcada para começar, pontualmente, às 20h. Já era 20h30 e nada. Bebendo na entrada do teatro, alguns jovens fantasiados ou vestidos de preto conversavam e cantavam hinos típicos da instituição. Por volta das 21h, a apresentação começou. Entrei. No palco, uma cena relativamente inédita: os estrelos – nome dado aos atores – estavam vestidos de personagens da Turma da Mônica. Era o primeiro dos muitos quadros de um show que só acabaria depois da meia-noite. O roteiro e técnica não eram admiráveis. A cena parecia bagunçada, quase improvisada. A plateia, entretanto, parecia se divertir. O Show Medicina é uma fraternidade pautada por normas rígidas de segredo, poder e hierarquia. Seu lema é “Ridendo castigat mores”, que significa “com o riso castiga-se a moral.” O grupo intenciona fazer críticas ao cotidiano da faculdade com pequenas esquetes. Sua existência, mesmo escancarada, procura ser sigilosa. Não se deve falar sobre. Não se pode falar sobre. E os motivos vão de medo de suicídio social até a noção de

que falar é dar palco aos integrantes – que, anualmente, contratam seu palco próprio. Os autoproclamados artistas criaram o hábito de responder às constantes denúncias envolvendo seu nome com a tentativa de taxar tudo que os cita como publicidade. Esta matéria, por exemplo, seria um anúncio gratuito. Mas por que tamanha defensiva? A história Nas paredes do subsolo do prédio da Faculdade de Medicina da USP, escrito e reescrito em tinta ou spray, está uma história de conflito e disputa. Entre denúncias a respeito do sucateamento do HU, posicionamentos políticos e desabafos juvenis, estão as pinturas enigmáticas da fraternidade. Na manhã do dia 30 de setembro, elas foram o foco de uma grande discussão no Comunicação CAOC, grupo de Facebook que agrega alunos do 1º ao 6º ano de Medicina. Um aluno alegava estar sendo censurado. “OH SEUS FILHOS DAS PUTAS, meus desenhos eu assino. Quem foi que fez essa merda? O PORÃO É DE LIVRE INTERVENÇÃO DOS ALUNOS CARALHO.” Ele estava falando sobre o fato de que, naquele dia, alguns desenhos relacionados ao Show acordaram pintados de tinta amarela. Nos comentários, existiu até quem comparasse tal acontecimento à censura da arte durante a sombria Ditadura Militar.

Isso não é publicidade para o Show Medicina Depois da CPI, as forças dentro da FMUSP mudaram. Mas o Show continua. Está marcado e materializado na Universidade – seja no porão, com as pinturas; na entrada do Teatrão, com uma escultura em homenagem; ou no 5º andar, com uma placa exibindo o nome dos ex-diretores. Tudo isso é publicidade para o Show Medicina, o que não significa que qualquer coisa que leve o nome do grupo também o seja. Não é. Hoje, o grupo se aproveita do medo de se falar sobre. Mas há quem tenha coragem de se manifestar. Felipe Scalisa, fundador do NEGSS, pontua que “o método de divulgação deles é a polêmica. É consciente.” Com um discurso irônico, comentam em

LAURA SCOFIELD

LAURA SCOFIELD

posts do Facebook e fazem chacota de discussões sérias. Na prática, entrevistas quase só são concedidas em off e existiu até uma declaração oficial de entidade estudantil contra a publicação desta reportagem. Uma matéria não é bem vista também pelo Show, que se negou a falar com o argumento de que seu posicionamento poderia ser tirado de contexto. Falta diálogo. Felipe, entretanto, fala. E é incisivo ao dizer que acredita na necessidade de se documentar a história da realidade. Quando questionado sobre o poder do grupo e a razão de tamanho sigilo – dentro e fora da entidade – ele responde: “é parte do delírio, da ficção.” L.S.

O desenho na parede do porão faz referência à 77ª edição do Show. A tinta de tom mais escuro por baixo marca que havia, antes, outra manifestação da fraternidade Para entrar para o Show, os interessados, somente homens, passam por um vestibular, composto por uma prova que tematiza cultura, teatro e arte. O edital para a seleção dos calouros de 2019 incluiu obras como 1984, de George Orwell, a 6ª temporada de RuPaul’s Drag Race e Introdução às Grandes Teorias do Teatro, de Jean-Jacques Roubine. A grande questão, e que rendeu ao Show a proibição da realização de suas atividades na FMUSP é o que acontecia no vestibular depois da prova. Eram trotes violentos e gravíssimos, regados sempre a muito álcool e com demarcações claras de poder. Era comum que, de tão bêbados, integrantes quebrassem membros, como costelas, dentes e cóccix. Na 77ª edição do Show, piadas sobre o tal dente quebrado foram constantes. Existiram também casos de simulação de estupro e diversos outros tipos de humilhação. A prova do vestibular, afinal, não servia para nada, era apenas uma etapa que antecedia a seleção – o critério era simplesmente resistir, se calar e se submeter. Outro ponto que torna o Show, no mínimo, questionável, é sua relação com as mulheres. O grupo é formado apenas por homens, mas as meninas interessadas podiam fazer parte de outra entidade: a Costura. A função: costurar as fantasias. Em 2018, a Costura divulgou, também no Comunicação CAOC, uma nota oficial anunciando sua saída do SM. Os motivos não foram bem especificados,

mas fontes afirmam que elas buscaram participar ativamente do Show e foram negadas. Em 2016, na 75ª edição do Show, o quadro misto – homens e mulheres atuando juntos – foi uma realidade. Porém, a participação feminina se reduziu apenas a quadros específicos, deixando de fora aqueles de maior credibilidade, como o coral e o ballet. Na última edição, mulheres participaram de dois quadros, o primeiro – vestidas de Mônica e Magali – e o último – interpretando as personagens de Friends. Porém, o elenco era majoritariamente masculino: apenas duas meninas participaram. A partir de 2013, com o fortalecimento do posicionamento de minorias dentro da faculdade e a criação de núcleos e coletivos, como o NEGSS (Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade) e o Coletivo Feminista Geni, o silêncio começou a se quebrar. Denúncias de estupro e dos trotes violentos fizeram com que fosse criada uma CPI na Alesp, a chamada CPI dos Trotes. Adriano Diogo, na época deputado pelo PT, foi o presidente, e conta que sofreu muitas ameaças por estar levando adiante a investigação. “Teve médico que se recusou a me atender.” A CPI durou três meses e gerou como resultado prático a criação, por parte da FMUSP, de uma ouvidoria e outros núcleos de apoio ao estudante, além da recomendação do Ministério Público que proibia o Show de ensaiar e se divulgar em espaços da universidade.


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A dificuldade de 11 empresas juniores funcionando sem sala para sede fixa Alunos reservam espaços ou pagam aluguel para empreendimento funcionar na EACH

Ter uma sala de trabalho é essencial para qualquer empresa, inclusive empresas juniores (EJs). Criar uma rotina, monitorar e controlar o que está sendo produzido e desenvolver projetos fica muito mais difícil sem uma sede fixa. Atualmente, essa é a realidade das 11 EJs da EACH. Michelle Hejazi, presidente da Marketing Jr., explica que o fato de não terem uma sala para trabalhar atrapalha muito, porque os projetos não saem com o nível de excelência que deveriam. Para conseguirem se reunir, ela acaba tendo que reservar salas da universidade. Outra solução encontrada foi alugar por R$ 400,00 uma sala na incubadora de startups que fica na EACH. O problema é que o espaço não resolve muito devido ao seu tamanho. “Cabem 6 pessoas sentadas para trabalhar em uma empresa de 30”, afirma.

A presidente da Geronto Jr., Ligia Cavallari, diz que, ao longo dos 10 anos da empresa, os membros aprenderam a trabalhar de forma mais remota. Uma das saídas foi explorar lugares em São Paulo para fazer reuniões e desenvolver projetos, como no Centro Cultural de São Paulo. Ela também ressalta o aumento da produtividade com uma sede fixa. “Vai agregar em uma cultura empresarial porque querendo ou não, a falta de uma sala atrapalha o modo de nos encontrarmos, de fazermos reunião e de deixarmos exposto o andamento da empresa.” A situação hoje em dia O que existe atualmente é um projeto para construção de um espaço colaborativo, onde ficava a antiga copiadora, para ser compartilhado entre as 11 empresas juniores da EACH. Um dos principais entraves para a realização desse projeto é

a questão financeira, pois a unidade não consegue arcar com todos os custos da obra. Uma das soluções propostas foi que as empresas juniores buscassem financiamento com empresas privadas. A Marketing Jr., mais à frente da proposta, está indo atrás desse financiamento, mas até agora não obteve ne-

A falta de espaço dificulta o trabalho dos membros da Marketing Jr.

MICHELLE HEJAZI

MARCELO CANQUERINO

nhum retorno. Das 15 empresas contatadas, nenhuma respondeu, e o problema persiste. “É interessante o esforço que eles estão fazendo para dar uma sala para as EJs, mas está longe de ser o suficiente”, contou Michelle. A proposta é de um único espaço dividido entre 11 realidades diferentes. Situações como conflito de horários, privacidade e falta de garantia da utilização do espaço por todas as empresas são problemas que devem ser levados em consideração. Esse tipo de impasse dificulta muito a vivência empresarial que as empresas juniores buscam proporcionar aos estudantes. Além disso, a falta de espaço transforma as atividades desenvolvidas no dia a dia em um desafio constante. Dentre outros benefícios, as empresas juniores ajudam a melhorar o ranking das universidades e muitas vezes também significam permanência no curso para os alunos.

A fome de empreender das mulheres Empresa Júnior da Faculdade de Saúde Pública (FSP) possui diretoria feminina CRISLEY SANTANA

entre pessoas com menos de 35 anos que possuem um negócio, 15,4% são mulheres, frente aos 12,6% de homens. Seguindo essa tendência, um estudo sobre o MEJ mostrou que, em 2018, a maioria dos membros que compõem as empresas juniores se reconhecem como pertencentes do gênero feminino. Foram 51,3% de mulheres, contra os 48,6 de homens. Os números foram expostos a partir de um censo produzido pela Confederação Brasileira de Empresas

Juniores, a Brasil Júnior, instância que representa as empresas juniores brasileiras.

“É uma super oportunidade de empoderar e encorajar mais meninas a empreender, a ter voz. Eu gostaria muito que outras mulheres tivessem a oportunidade que a gente tá tendo” — Elis Lima CAIO SANTANA

Foi pesquisando sites de empresas juniores da USP que algo chamou atenção: uma delas é comandada somente por mulheres. Trata-se da Nutri Júnior, empresa gerida por estudantes do curso de Nutrição e, atualmente, com 11 mulheres compondo o quadro da diretoria. O fato pode demonstrar que o Movimento Empresa Júnior (MEJ) reflete a situação atual da participação feminina no mundo dos negócios. Segundo descreve em seu site, a Nutri Júnior surgiu em 2001, fundada por Georgia Castilho Russo, uma ex participante do Conselho Regional de Nutricionistas (CRN) e dona de um restaurante na zona sul de São Paulo. O projeto foi levado adiante por estudantes do curso de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e permanece funcionando. Oferece serviços como coffee break em eventos e avaliação nutricional.

Mas por que só há mulheres atuando na diretoria? Para Elis Lima, presidente da Nutri Júnior, o fato está relacionado ao curso de Nutrição ser majoritariamente frequentado por mulheres. “Algumas salas chegam a ter 90% de meninas”. É uma forte evidência. Mas além disso, a empresa pode estar seguindo a atual tendência do mercado, no qual mais mulheres estão empreendendo. A pesquisa GEM Brasil 2015 (Global Entrepreneurship Monitor), por exemplo, mostrou que

Toda a diretoria da Nutri Júnior é composta por mulheres

Empoderar e empreender Em depoimento ao Jornal do Campus, a presidente da Nutri Júnior falou um pouco sobre como é estar em uma diretoria formada somente por mulheres. Para ela, estar inserida em um espaço como o MEJ, que possui expressivo número de homens, é uma grande oportunidade. “Eu me sinto privilegiada. Sinto que precisamos fortalecer a rede, com cada vez mais mulheres participando, especialmente em cargos de liderança”. “A Nutri Júnior é uma exceção por ter uma diretoria formada por mulheres. É uma super oportunidade de empoderar e encorajar mais meninas a empreender, a ter voz. Eu gostaria muito que outras mulheres tivessem a oportunidade que a gente tá tendo”, ressalta uma esperançosa Elis.


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Aposentadoria não afeta continuidade do ensino e pesquisa JOÃO PEDRO MALAR

É comum encontrar na sociedade a visão de que a aposentadoria representa o fim de um ciclo. Seja por necessidades econômicas ou motivos pessoais, é comum encontrar pessoas da terceira idade ainda trabalhando, e na USP não é diferente. Dos que escolheram continuar atuando, estão os professores seniores. São aposentados e fazem parte de um programa criado pela Universidade em 2012. A ideia é que o docente possa continuar a desenvolver suas pesquisas, projetos de extensão e continue a ministrar aulas na graduação e pós-graduação, além da orientação de TCCs e outras pesquisas. “Se eu me afasto dessa atividade, eu estou morta” É com essa afirmação que a professora Cremilda Medina explica porque escolheu continuar como professora sênior. Ela foi professora na ECA entre 1970 e 1975, sendo afastada devido à perseguição da Ditadura. Retornou à USP em 1986, onde continuou atuando até 2011, ano de sua aposentadoria. No ano seguinte, decidiu aderir ao programa de professor sênior. Sobre a mudança, a professora avalia que “para mim, não mudou nada”, pois manteve seus grupos e linha de pesquisa. Cremilda Medina, que possui o primeiro mestrado acadêmico em Comunicação da América Latina, pontua que a “cultura uspiana” não se baseia apenas no ensino, englobando também a pesquisa e a extensão. E é pensando nesse tripé que o programa de professor sênior permite a continuidade dos trabalhos, permitindo o desenvolvimento de novas descobertas e inovações. A atividade de professor sênior não prevê remuneração, mas Cremilda observa que o trabalho é “uma forma de pagar para a sociedade o que ela investiu em mim”. Sobre sua pesquisa,

diz que “nunca vou chegar em um resultado satisfatório”, e por isso mesmo quer continuar trabalhando até onde for possível. Hoje a professora ministra apenas aulas na pós-graduação, orientando pesquisas, mas também pode orientar TCCs e Iniciações Científicas. Perguntada sobre uma distância entre os graduandos e os professores seniores, observa que as relações na USP são cheias de muros, mas que ela sempre está disponível para orientar e conversar com os alunos. A busca, porém, depende deles. “Eu gosto do que eu faço, e isso é muito importante” A fala é do professor sênior Gilberto Kerbauy, do IB. É autor de um dos principais livros no ensino de fisiologia vegetal, produzido graças a sua experiência pedagógica, e, ao longo da sua carreira, sempre buscou unir teoria e prática. O professor iniciou suas atividades como docente em 1974, tendo se aposentado compulsoriamente em 2014 e ingressado no programa de professor sênior no mesmo ano. Kerbauy sempre ministrou disciplinas de anos mais avançados da graduação, mas, após a aposentadoria, foi convidado para assumir uma disciplina de primeiro ano. A nova experiência tem sido bastante positiva. “Eu tenho esse contato com eles, e me sinto bastante respeitado. Há algumas dificuldades, como usar uma linguagem mais próxima, mas mesmo assim eu gosto de ensinar”. Sobre orientações de pesquisa, Kerbauy observa que, no geral, os alunos preferem professores mais novos, que conseguem acompanhar melhor os avanços na área, mas está sempre disposto a orientar. A escolha de aderir ao programa de professor sênior envolveu o amor pela profissão. Sobre suas atividades, Kerbauy observa que “a idade é algo relativo. Você perde, mas ainda não é um inútil. A vida não acaba”.

Foto de arquivo publicada em 2011 em que mostra Cremilda Medina em Foro Permanente de Reflexão sobre a América Latina

Perda de orientandos custará cada vez mais caro, acumulando problemas para o futuro MARCUS DE ROSA

“Eu tenho esse contato com eles [alunos], e me sinto bastante respeitado. Há algumas dificuldades, como usar uma linguagem mais próxima, mas mesmo assim eu gosto de ensinar.” — Gilberto Kerbauy

Como funciona o Programa de Professor Sênior? JOÃO PEDRO MALAR

O programa foi estabelecido em fevereiro de 2012. Podem participar todos os docentes aposentados ou prestes a se aposentar, por meio do envio de um plano de trabalho, além de convite do departamento ao

qual está vinculado ou solicitação ao departamento para participação no programa. O plano de trabalho prevê a realização de atividades de ensino, tanto na graduação (como orientação de TCCs ou disciplinas optativas) quanto na pós-graduação, além do desenvolvi-

O “efeito retardado” do corte de bolsas

mento de atividade de pesquisa e extensão, com a possibilidade do docente desenvolver apenas uma dessas duas últimas. As atividades duram dois anos, com a possibilidade de renovações por mais dois anos, e assim sucessivamente, até o professor não querer ou não poder mais atuar.

Os cortes de bolsas Capes/CNPq não são preocupantes apenas da perspectiva dos alunos. Para todo pós-graduando que perde uma bolsa, temos um professor perdendo um orientando, além de uma pesquisa abortada. Mesmo com esse problema, coordenadores de pós da USP não veem um perigo imediato, mas o prejuízo a longo prazo será inevitável. Um dos temores — certeza, para alguns — é a demissão e o corte de salários. Essa última alteração, um direito adquirido, seria difícil ocorrer. Isso poderia diminuir as pesquisas, cuja continuidade não depende só da Capes e do CNPq, apesar do apoio dessas instituições ser vital. A Fapesp e, em menor número, empresas, financiam a pesquisa, além de projetos tocados por conta própria, como as iniciações científicas sem fomento. Essa situação não é ideal, mas poderiam ser os meios de manter a pesquisa viva. Professores ouvidos pela reportagem declararam que temem receber menos por não estarem orientando, passando a ganhar somente pelas outras atividades, como aulas na graduação, atendi-

mento a alunos e atuação em projetos de extensão, além das horas de pesquisa. Até agora, o cancelamento de pesquisas não afetou o valor dos salários. Mas são os danos a longo prazo que preocupam. A Universidade está tentando correr de muletas. A pesquisa e pós-graduação são elementos essenciais para manter a Universidade atualizada no cenário científico. O preço da publicação de um artigo pode chegar a 8 mil reais. Com o financiamento de pesquisa prejudicado, a USP se atrasa, por exemplo, a cada artigo que deixa de ser publicado. O mercado está se mostrando uma área muito mais promissora do que a academia. Com salários iniciais baixos para o cargo de professor, e a alta frequência de aposentadorias, a USP corre o risco de não ficar apenas sem novos pesquisadores, mas também sem quem oriente aqueles que decidirem seguir a área. É um erro pensar que só a Universidade perde com isso. A pesquisa científica é o maior meio que a academia tem para retribuir com seu conhecimento à população. Com a falta de financiamento, quem acaba pagando a conta da falta de pesquisa é a própria sociedade.

CECÍLIA BASTOS

Parar jamais, ensinar sempre


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HU contratará temporários por até dois anos Vagas são divididas entre nível técnico e superior e salários chegam a mais de R$ 7 mil DIEGO BANDEIRA

O Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP) publicou editais para contratação de 155 novos funcionários temporários, com contratos de duração de um ano e possibilidade de renovação por mais um ano. As vagas são destinadas a profissionais com nível técnico e superior, e os salários variam de R$ 4080,10 a R$7672,17. Os processos seletivos prevêm a contratação de 64 técnicos em enfermagem, quatro técnicos de laboratório, 24 enfermeiros, três nutricionistas, dois fisioterapeutas, dois terapeutas ocupacionais e mais três farmacêuticos. Os dois primeiros terão vencimentos de R$ 4.080,10, enquanto os demais receberão um total de R$ 7.672,17 mensais. As demais vagas são destinadas a médicos de diferentes áreas de especialização: ortope-

dia, anestesia, obstetrícia, ginecologia, cirurgia geral, pediatria, terapia intensiva infantil, neonatologia, radiologia e otorrinolaringologia, com remuneração de R$ 7.672,17. Temporário é paliativo Em crise há algum tempo, o HU terá um aumento de 40% em sua capacidade de atendimento com a entrada de 155 novos profissionais. Com essas vagas temporárias a solução pode durar, no máximo, dois anos. De acordo com nota da reitoria, “os R$ 40 milhões liberados por meio de emenda parlamentar da Assembleia Legislativa estão sendo aplicados para a contratação de pessoal e para as despesas de custeio, incluindo manutenção do hospital. As contratações estão sendo feitas de forma temporária, pois trata-se de verba extra-orçamentária concedida à Universidade. Com

“Essas contratações fogem do perfil do Hospital e não vão obter o mesmo resultado no tripé do HU: ensino, pesquisa e extensão. O ideal seriam contratações na carreira USP, por concurso público” — Santana Silva

a recomposição do quadro de profissionais de saúde o Hospital passará a atender com a sua capacidade plena”. O tema segue controverso. Para Santana Silva, membro e coordenador do Coletivo Butantã na Luta, essas contratações representam um importante avanço para o Hospital, mas também contam com alguns pontos negativos: “É um avanço extraordinário com relação a recomposição do HU. Entretanto, nós temos algumas restrições com as contratações temporárias. Essas contratações fogem do perfil do Hospital e não vão obter o mesmo resultado no tripé do HU: ensino, pesquisa e extensão. O ideal seriam contratações na carreira USP, por concurso público”. “Duzentena” Além dos problemas relativos ao tempo de contrato dos novos profisionais, há ainda uma cláusula de restrição

Cidade Universitária

nos editais chamada “duzentena”. Essa cláusula faz com que o HU tenha de esperar 200 dias após o término de contrato dos profissionais temporários para, se for o caso, efetuar a renovação por mais um ano, o que dificulta a permanência dos funcionários. “Isso é péssimo. É uma atitude da Reitoria que quebra uma possível continuidade desses profissionais e sua interação com o Hospital dentro desse tripé de ensino, pesquisa e extensão, que é o caráter efetivo e estatutário do HU”, explica o coordenador do Coletivo. “É um avanço, uma brecha que se abre dentro da conjuntura atual e da intransigência da Reitoria e do CO em não contratar. Também é um avanço na questão do desmonte dos hospitais universitários. Pois todos hospitais universitários vêm sofrendo com isso, não é apenas o HU”, finaliza Santana Silva.

esburacada

Ruas e bolsões têm irregularidades no asfalto e faltam obras de recapeamento

Raízes das árvores são apenas um dos problemas das ruas e bolsões da Cidade Universitária

BEATRIZ CRISTINA

Você já deve ter reparado que as calçadas e pontos de ônibus da Cidade Universitária estão passando por reformas. Tais medidas fazem parte de obras de manutenção e adequação aos padrões de acessibilidade e melhoria nos passeios nos quais circulam, aproximadamente, 100 mil pessoas por dia. “Olha isso aqui até que tá uma maravilha. As calçadas estão sendo feitas bem rápidas e está melhorando. Todo lugar que você olha eles estão fazendo”. A constatação é de Teresinha Antônia, cobradora na Linha 8012. Porém, enquanto presenciamos obras nos pontos de ônibus e calçadas, o asfalto de algumas ruas do campus está se tornando

uma prova de aventura para os ônibus, carros e caminhões. De acordo com os dados disponibilizados pela Prefeitura do Campus (PUSP-C), cerca de 50 mil veículos transitam diariamente pelos 60 quilômetros de vias que existem na Cidade Universitária. Um exemplo é a Avenida Prof. Mello Moraes, que serve de ligação do Portão 1 ao Portão 2. São visíveis pedaços sobressalentes de asfalto por causa do crescimento de raízes das árvores condicionadas ao espaço dos canteiros. Pedaços de diversas operações tapa-buraco que ocorreram também soltam. Jean percorre as vias do campus todos os dias da semana. É motorista da Linha 8022 desde que essa ela começou a circular na USP: “Quando eles fizeram a

BEATRIZ CRISTINA

BEATRIZ CRISTINA

Irregularidades no asfalto podem causar acidentes e danificar veículos

grande obra de recapeamento, várias ruas foram recapeadas. Agora, a da raia, nem fizeram. Até estranhei”. A questão não se restringe às vias: os bolsões de estacionamento apresentam problemas como asfalto quebrado e paralelepípedos sobressalentes. No caminho percorrido, descobrimos que isso não é problema só dos maiores estacionamentos, como os da Escola Politécnica e da Faculdade de Educação, mas de toda a chamada “parte baixa” do campus, região entre as avenidas

Prof. Luciano Gualberto e Mello Moraes e o portão principal. Sem uma resposta da Prefeitura do Campus sobre novas obras no asfalto, seguimos desviando dos buracos existentes e percebendo que há outros problemas mais sérios, conforme Antônia finaliza: “Nós que trabalhamos no transporte público todo dia vemos muitas coisas bem piores. Aqui é um lugar diferenciado, privilegiado”. Para ela, deveriam melhorar o “aluguel dos estudantes”, como ela se refere ao Crusp.


ENTREVISTA

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“A genitália não define meu gênero” Professora da EEL, Gabrielle Weber mostra como é ser uma docente trans na USP AMANDA CAPUANO

Não é de hoje que o Twitter é uma rede social que faz sucesso entre os alunos, mas foi uma professora que chamou a atenção por suas publicações no microblog no mês passado. Atendendo por @gbrlwbr, Gabrielle Weber, de 35 anos, compartilhou em poucos caracteres a experiência de uma professora trans dentro da USP. Gabi, como é carinhosamente chamada, leciona Matemática na Escola de Engenharia de Lorena (EEL), a 190 km da capital, e se descobriu trans ainda na infância, mas manteve-se “no armário” até o ano passado. A professora iniciou a transição hormonal há cerca de um ano, mas passou a viver definitivamente como Gabrielle em fevereiro deste ano. Agora, em entrevista ao Jornal do Campus, ela compartilha a sua vivência e desafios como uma mulher (e docente) trans na Universidade de São Paulo. Como foi o processo burocrático de se assumir como uma professora trans dentro da USP? Em maio do ano passado eu comecei os planos para a transição. Planejava ficar no armário por mais 6 meses ou 1 ano, mas isso estava me destruindo. Fui atrás de resolver a minha situação dentro da Universidade e esbarrei no diretório da

diversidade. Eles tinham muitas informações para alunos, mas nada para docentes. Encontrei algumas informações bem desatualizadas sobre nome social e resolvi mandar mensagem para eles. Isso foi no começo de janeiro deste ano. Duas semanas depois, eles me responderam dizendo que não sabiam exatamente o que fazer porque não havia um protocolo, mas que entrariam em contato com mais informações. Mais duas semanas se passaram e eles me mandaram o e-mail com um protocolo já formulado. Era tudo bem simples: comunicar o meu superior imediato para que ele marcasse uma reunião comigo e passasse as resoluções para o chefe da unidade. Com isso feito, o RH seria comunicado e retornaria para mim já com tudo resolvido. A reunião com a minha chefe foi em uma sexta-feira e uma semana depois os meus dados já estavam atualizados nos sistemas USP. Foi super rápido e eu fiquei impressionada com a eficiência e a transparência do processo.

o sistema atualiza automaticamente. Com as citações é mais complicado. O que você assinou com o nome morto vai continuar com ele. A maior parte dos meus artigos estava assinado como G. Weber, então escolhi meu nome levando isso em conta. Os diplomas eu ainda não tive tempo de atualizar, preciso ver ainda como vai acontecer. Como uma típica cidade do interior, Lorena é bem conservadora, e você dá aula em um curso de engenharia, que é visto por muitos como uma área masculina. Como foi a recepção dos alunos à sua transição? Eu fiz um post em um grupo LGBT no facebook explicando a minha situação. Eu sabia que havia alguns alunos no grupo, mas não tinha noção do alcance. Fiquei sabendo depois que virei pauta até do coletivo feminista da faculdade, de maneira positiva. Em nenhum momento algum aluno me destratou. Eu dou aula para o primeiro ano, então já me apresentei como Gabrielle, uma mulher abertamente trans. Nenhum deles falou nada, no máximo ouvi alguns comentários positivos. Os alunos que dei aula antes da transição trocaram os meus pronomes em um estalar de dedos. Alguns professores ainda erram, mas pedem desculpas logo em seguida. É como se nada tivesse acontecido, eu sou a Gabrielle, e isso é suficiente. Só houve um caso em que eu realmente me senti vítima de transfobia.

Você tem diversos títulos acadêmicos, como fica a situação do Lattes e das citações após a adoção do nome social? O Lattes é bem tranquilo. Na aba de identificação tem a opção de usar o nome social, e assim que você recebe o novo CPF, é só adicionar o nome completo que

“Em nenhum momento algum aluno me destratou... No máximo ouvi alguns comentários positivos” — Gabrielle Weber

Pode compartilhar essa história? Logo que eu saí do armário, fui explicar a minha transição para colegas em uma reunião do conselho. Um professor disse que eu não precisava esfregar isso na cara de ninguém, e que se eu quisesse ser mulher era melhor me esconder. Mas o que aconteceu em seguida foi muito legal. Todos os outros presentes rechaçaram a fala dele e o professor só faltou chorar na reunião. Ali eu percebi que existe preconceito sim, mas tem muita gente disposta a apoiar a minha luta e quem eu sou.

ARQUIVO PESSOAL

Você considera que a comunidade acadêmica está mais aberta para a diversidade do que imaginava? Toda a minha experiência diz que sim, pelo menos para a questão de gênero. Esses dias eu estive em um congresso e reencontrei diversos professores que conheci an-

tes de transicionar e não via desde então. Todos me trataram no feminino e tiveram comigo o mesmo tipo de conversa que tinham antes. Nenhuma porta se fechou e eu sinto que algumas até se abriram. Que tipo de portas se abriram? As pessoas me viam como alguém inacessível, agora me sinto mais próxima de todo mundo. Já ouvi alunos dizendo que sou uma inspiração, coisa que não ouvia antes. Sempre fui muito rígida, então era vista como a professora carrasca. Meu estilo de aula não mudou, mas a minha relação com os estudantes é muito mais próxima hoje em dia. Esse ano também recebi mais convites para palestras do que antes da transição. E para falar sobre temáticas do meu campo de trabalho, assuntos que não tem nada a ver com o fato de eu ser trans. Como parte da transição, você iniciou um processo de hormonização. A Universidade tem te apoiado nisso? Eles têm sido bem abertos. Tive uma conversa com a minha chefe e ela chegou a oferecer que eu tirasse algum tempo para me adaptar aos efeitos colaterais dos hormônios, mas não precisei. Senti algumas dores de cabeça, mas nada grave. Se eu optar por fazer cirurgia um dia, vou precisar me afastar, mas isso é algo para pensar mais para frente, a genitália não define o meu gênero. Você comentou que chegou a pensar em suicídio. Para você, era a transição ou a morte? No primeiro momento o suicídio era a única opção. E eu cheguei a fazer planos concretos para isso e cheguei muito perto de concretizá-los, mas percebi a tempo que poderia lidar com isso de outra forma. A partir daí, a transição virou o meu plano A. Se não desse certo, eu iria me matar, mas ela funcionou. Você já fazia algum terapia antes ou começou devido à transição? Foi exatamente por causa da transição. Eu criei um asco por terapia na minha infância e nunca quis ir atrás disso. Mas para você fazer a transição, precisa estar passando por um acompanhamento psicológico. Eu quebrei a cara porque eu vi que precisava muito de terapia. Faço há um ano e me ajudou a lidar com muitas questões, não só ligadas ao gênero, mas a quem eu sou e à minha história.


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UNIVERSIDADE

PRIMEIRA QUINZENA | OUTUBRO 2019 JORNAL DO CAMPUS

UNIVERSIDADE

JORNAL DO CAMPUS PRIMEIRA QUINZENA | OUTUBRO 2019

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Três trajetórias de resistência, sobrevivência e transformação Estudantes trans contam suas experiências para chegar e frequentar um espaço acadêmico, público e renomado DANIEL TERRA

“A mulher teve a pachorra de me responder: oi, fulana” Ao contrário de Dimitri que acaba de começar essa jornada no ensino superior, Guilherme formou em 2017 no curso de Biologia. Sempre soube que era um menino, mas foi no segundo ano da universidade que decidiu assumir sua identidade, contar para os amigos e

“Ter um diploma de graduação numa universidade com um nome tão grande como a Universidade de São Paulo é pensar uma questão da resistência” — Dimitri

Dimitri em frente ao prédio do curso de Letras, local onde estuda

familiares, e começar a transição. Em aspectos estruturais da faculdade, ele sentiu a assistência insuficiente. Teve sorte com os amigos e professores, mas ocorreram inúmeros incidentes quanto ao seu nome social. “Senti muita falta de apoio, muito descaso”. Quando ia comer nos restaurantes universitários, aparecia o nome de batismo e seu nome entre parênteses. Inclusive, ocorreu em diferentes ocasiões dos amigos de Guilherme riscarem esse nome da lista de chamada, não era o que devia estar ali. Guilherme reforça como os professores do Instituto de Biologia o respeitavam, tratavam pelo nome que assumiu e, se precisasse, também riscavam a lista para colocar o nome correto. Ainda falando de problemas envolvendo o nome, aconteceu de uma vez Guilherme enviar email para a seção de alunos. Seguindo os protocolos, inseriu o número USP, seu nome e ainda o nome de batismo, entre parênteses, na possibilidade da funcionária ficar confusa. Por fim, assinou. Depois recebeu de volta e-mail falando que o pedido

foi efetuado, mas usando o nome de batismo. “A mulher teve a pachorra de me responder: oi, fulana”. Além disso, no período em que estudou na USP o e-mail institucional continha o nome de batismo, o que gerava situações

GABRIEL OLIVEIRA

“Se eu não estiver nesses lugares, não vai ter mais ninguém” Aos 15 anos Dimitri foi internado em um hospital psiquiátrico, após se assumir como homem trans. Tinha terminado um relacionamento e enfrentava outros problemas envolvendo seu nome social na escola. “Naquela época, com 15 anos, eu nunca pensava que ia chegar aos 18. Pensava que teria me matado antes. Era um pensamento muito forte na minha mente e chegar à faculdade para mim foi um marco”. As aulas na Letras começaram exatamente quando completaram dois anos do internamento. Para Dimitri, foi um momento importante que o levou a refletir o quanto ele sobreviveu, tudo que teve de enfrentar para estar na universidade. Seus pais desejavam que o filho fizesse USP, independentemente do curso. Nesse quesito, teve muito apoio da família, mesmo tendo dificuldades com assuntos que tocavam a sua identidade de gênero. No final do ano passado, estava preparando-se para o vestibular, na mesma época em que o

Bolsonaro venceu a eleição presidencial. Atualmente ele afirma que sempre sentiu a USP como ambiente mais seguro do que o mundo lá fora, baseado mesmo no rótulo de que as pessoas da universidade são mais abertas. “É uma questão de eu aguentar esse ambiente tão hostil que vai ser o Brasil nos próximos quatro anos”. Dimitri é muito ativo nos movimentos estudantis dentro da universidade e mesmo com alguns questionamentos vindos de pessoas próximas do porquê se envolver tanto, ele reforça não só a causa política — ainda mais diante da conjuntura atual do país — mas sobretudo a causa trans. “Se eu não estiver nesses lugares, lutando pelas minhas causas, não vai ter mais ninguém.”

constrangedoras. “Às vezes eu estava conversando com algum professor e eles perguntavam meu email USP e eu falava que não estava conseguindo acessar, e então, passava um outro”.

Guilherme evitava usar o email USP, que continha seu nome de batismo, para evitar constrangimentos

FOTO: DANIEL TERRA

“Pessoas trans não tem nome social, tem nome. Qualquer um pode ter nome social, inclusive pessoas cis” — Luna

“É meu espaço aqui também, sabe?” Quando questionada sobre a sua experiência com a Universidade, Luna, estudante da Letras, gosta de pensar primeiramente como concebe esse lugar: “Feita pela branquitude e para branquitude, das pessoas cis para pessoas cis”. Nesse sentido, afirma que é um local violento para o seu corpo. Ela enxerga sua rela-

ARTES: BEATRIZ CRIVELARI

ção com a USP como um hackeamento, uma espécie de vírus dentro de um sistema, inserido para corrompê-lo. Mesmo querendo fugir da discussão da violência, Luna afirma que, querendo ou não, é um fator forte. Em menos de três anos na Universidade, sofreu uma violência física no bandejão central, onde foi deslegitimada por pessoas que presenciaram o ocorrido. “Um corpo trans, preto e periférico vai ser jogado à margem. As pessoas vão duvidar, vão te jogar no estereótipo”. Luna entende a sua rotina como uma forma de violência: estar na rua, no transporte público e lidar com a falta de dinheiro são agressões que vão além do ambiente da universidade. Luna não consegue pensar o que falta para ela, enquanto pessoa trans, sem pensar em mudanças nas estruturas que compõem a USP. Não consegue falar de permanência trans se não existe praticamente nenhum tipo de permanência; pensar em saúde mental trans se não há condições de saúde mental para todos os alunos. “Quando a gente pensa em universidade, a gente não pode pensar em uma universidade que é apartada da sociedade.

Ela é fruto da sociedade, ela está integrada à sociedade e ela precisa pensar o bem-estar da sociedade pelo viés do conhecimento, pesquisa, prática e educação”. Para Luna, há uma deficiência na organização das aulas, conteúdo e grade curricular. “O modelo francês daqui exclui as discussões de gênero”. Ela vê a necessidade da USP mudar a sua epistemologia, pois as aulas se tornam brutais por não agregar a sua vivência. O apoio que ela tem dentro da Universidade é dos amigos que buscam o conhecimento e das poucas pessoas trans inseridas neste local. Para Luna, os debates que começaram dez anos atrás sobre racismo, estão começando sobre gênero. “O que me mantém aqui, eu acho que é o ódio. Eu não acredito que essa galera toda tem privilégio a isso e eu não posso ter simplesmente pelo o que eu sou, simplesmente pelas questões

PARA COMPREENDER MELHOR O veículo online “Correio Braziliense” produziu uma série de matérias intitulada: Transexuais no Brasil: uma luta por identidade — Os desafios que travestis e transexuais enfrentam por viverem no Brasil, um dos países mais intolerantes do mundo. A série conta com 10 matérias separadas em 3 partes e passa por vários assuntos envolvendo a temática, incluindo: mercado de trabalho, direitos, violência e um glossário que explica as diferentes identidades de gênero. Para quem quer se familiarizar com o tema, é um bom panorama introdutório.

que me perpassam. É meu espaço aqui também, sabe? Eu também produzo conhecimento.” Luna alerta sobre a importância das pessoas saírem dos estereótipos, pois “às vezes as pessoas falam: ah, a causa trans, causa LGBT. O que ‘vocês’ chamam de causa é apenas a minha vida, sabe?”. Ela fala de fugir da concepção de que o cisgênero é

naturalizado e o trans, não. Acredita que, para haver o combate da transfobia, deve-se repensar essas naturalizações nos espaços. “A gente vive em uma sociedade transfóbica, racista, elitista. Logo, toda pessoa cis, vai ser transfóbica. Não significa que ela vai praticar a transfobia, mas a construção de subjetividade dela é transfóbica.”

DANIEL TERRA

O apoio de Luna vem dos amigos e das poucas pessoas trans que também ocupam a Universidade


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EM PAUTA

PRIMEIRA QUINZENA |OUTUBRO 2019 JORNAL DO CAMPUS

Parlamentarismo europeu em vertigem

por outro ângulo

Países enfrentam dificuldades inéditas para formarem governos e impedirem o avanço da extrema-direita GIOVANNA STAEL JOÃO PEDRO MALAR

Em um sistema parlamentar, a relação entre Legislativo e Executivo é essencial para o funcionamento do governo. Para governar efetivamente, o primeiro-ministro, eleito pelo Legislativo, depende dos encaminhamentos dos parlamentares, eleitos pela população. Esse modelo permite vantagens, como agilidade na aprovação de leis. Por outro lado, debates como questões de minorias tendem a ter menos espaço, já que o parlamento tende a ser formado por poucos partidos, com correntes de pensamento predominantes. Para um político assumir o cargo de primeiro-ministro é necessário que ele passe por uma votação no Parlamento. Os números necessários para essa aprovação variam de país em país. Caso obtenha essa maioria apenas com os membros do partido, possui um governo de partido único. Se precisar de outros partidos, segue duas possíveis vias: é formada uma coalizão oficial de partidos ou forma-se um governo minoritário, que conta com apoio esporá-

dico de partidos que aprovaram o governo, de acordo com cada projeto enviado para o Parlamento. Em última instância, é possível chegar a um cenário em que nenhum partido possui maioria, nenhuma coalizão consegue ser formada e nenhum governo de minoria é estabelecido. Nesses casos, o mais comum é que sejam convocadas novas eleições, e até que elas ocorram, é estabelecido um governo provisório. Esse governo provisório pode ser liderado por uma figura neutra, como um burocrata, ou o primeiro-ministro anterior às eleições. Esses governos provisórios permitem apenas o funcionamento regular dos países, sem realizar grandes projetos ou mudanças. No geral, quem determina qual político terá o direito de tentar formar uma maioria no Parlamento é o presidente do país ou, em países com monarquias, o monarca. Além disso, um primeiro-ministro pode sair do cargo caso perca o chamado voto de confiança, que também requer uma maioria do Parlamento.

Cenário do parlamentarismo europeu Coalizão

Um partido

Minoria

Minoria sem apoio suficiente para aprovar leis Governado por burocratas até a próxima eleição

Governo provisório desde a última eleição

IS

FI EE LV LT NL AL CZ

SK MD

CH HR SR

IT

ME

MK

BG

LÍGIA DE CASTRO

Recentemente, os países parlamentaristas espalhados pelo mundo, mas concentrados no continente europeu, vêm lidando com problemas referentes à formação de governo. Em entrevista ao JC, Kai Enno Lehmann, professor do IRI-USP, explica que essa dificuldade provém do declínio dos partidos antigos e do surgimento de partidos populista. “Historicamente, temos países com mais estabilidade política e menos estabilidade política. O que chama atenção no momento é a abrangência, o número de países passando por isso. Um exemplo é o Reino Unido, onde não havia tanta instabilidade política e agora temos um governo sem maioria no parlamento.” Os problemas envolvem não apenas o período pós-eleição, marcado por dificuldades na formação de coalizões, mas também o período de governo, com a instabilidade que os ameaça. Lehmann analisa que, além de travar a governabilidade dos países, o fato de os chefes de governo não conseguirem colocar em prática os programas para os quais foram eleitos “aumenta a insatisfação da população. Torna-se um ciclo vicioso de governos que não conseguem mudar o cenário político efetivamente, contribuindo para a fragmentação do sistema.” Um país exemplar é a Espanha, que terá, em novembro de 2019, a sua quarta eleição em quatro anos, exatamente pela dificuldade em formar governos. O resultado de 2015 foi inconclusivo e não formou nenhuma maio-

ria viável. O de 2016 permitiu que Mariano Rajoy assumisse o cargo máximo do país, mas foi derrubado por um voto de confiança em 2018. Em seu lugar assumiu Pedro Sánchez que, entretanto, não obteve maioria e acabou convocando novas eleições. Essas dificuldades envolvem fatores específicos de cada país, mas também possuem elementos comuns, em especial o surgimento de novos partidos, uma insatisfação da população com sistemas tradicionais e um crescimento da extrema-direita. Para Tanguy Baghdadi, professor de política internacional, esse cenário advém da crise de 2008, que gerou uma sociedade polarizada e reduziu “a capacidade de montar coalizões”. No contexto pós-crise houve um crescimento do nacionalismo, em especial com a extrema-direita, que “oferece soluções simples para problemas complexos”. Baghdadi observa que “dessa vez essa polarização não se dá entre partidos de extremos na política, mas entre a extrema-direita e um centro liberal em relação à visão democrática”. O Parlamentarismo expõe de forma rápida e pública as polarizações e crises, com a dificuldade em formar governos que excluam a extrema-direita, mas ache um meio-termo. O professor observa que, para evitar a chegada da extrema-direita ao poder há a demanda por “soluções institucionais” que atendam aos anseios da população enfrentando o cenário de polarização. Entretanto, “resta saber se essas soluções serão boas ou não”.

Entenda soluções e impasses do sistema parlamentarista europeu

Linha do tempo dos principais países parlamentaristas da europa 2015

2 tentativas falhas de formar governo

ELEIÇÃO NA ESPANHA

1 tentativa falha e 1 bem-sucedida de formar governo

2017 ELEIÇÃO NA SUÉCIA

3 tentativas falhas e 1 bem-sucedida de formar governo

ELEIÇÃO NA ALEMANHA

Setembro: não consegue formar governo durante esse ano

ELEIÇÃO NA ÁUSTRIA

1 tentativa bem-sucedida de formar governo

2018 GOVERNO ESPANHOL CAI Eleições convocadas p/ abril de 2019

ALEMANHA FORMA GOV. Março: Congresso consegue formar governo

2019 ELEIÇÃO NA ESPANHA 1 tentativa falha de formar governo

ELEIÇÃO EM ISRAEL Abril: 1 tentativa falha de formar governo. Setembro: ainda sem formação

ELEIÇÃO NA BÉLGICA Maio: ainda sem formar governo

ELEIÇÃO NA ÁUSTRIA Setembro: ainda sem formar governo

LÍGIA DE CASTRO

ELEIÇÃO NA ESPANHA

2016


ESPORTES

JORNAL DO CAMPUS PRIMEIRA QUINZENA | OUTUBRO 2019

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Esporte feminino cresce nas atléticas Times estão se firmando; nos depoimentos ao JC, mais que dificuldades, o tom é de inserção

Com a Copa do Mundo de Futebol Feminino deste ano, a participação da mulher no esporte começou a ser discutida com maior intensidade no Brasil. Embasada em reclamações que vão desde a falta de incentivo até a discriminação dentro de quadra, a classe feminina esportiva ganha força também dentro da USP. Colhemos dois depoimentos de atletas de cursos diferentes que contam suas atuações e perspectivas, destacando as dificuldades a serem enfrentadas nas modalidades femininas e o caminho que traçaram até chegarem nas Atléticas. Fernanda Ferrari, 22 Joga vôlei e handebol pela Atlética da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF-USP). “Na escola eu já praticava vôlei e joguei handebol por um tempo. Comecei a jogar vôlei em 2006 e não parei de

treinar desde então, sempre foi uma parte muito importante pra minha vida. Eu entrei na faculdade em 2015, comecei a treinar vôlei antes do Bichusp e só parei em períodos de lesão. Depois disso, participei de outras modalidades, no começo treinei rugby e agora voltei pro handebol. Os treinos costumam ser dinâmicos e contemplar temas diferentes para que todas as meninas (de níveis bem diferentes como é o esperado no ambiente universitário) consigam se desenvolver juntas. Hoje vemos uma quantidade muito maior de times e até o surgimento de modalidades que antes não existiam. Mesmo que tenha demorado um tempo grande, acredito que agora a mentalidade das pessoas está muito inclinada a aceitar e principalmente apoiar o esporte feminino, e isso vem de cima para baixo. O esporte de alto nível feminino vem sendo mais respeitado, então com o universitário não seria diferente.”

REVISTA BEAT / REPRODUÇÃO

LIGIA ANDRADE

Ana Fernanda (Felícia), 23 Joga handebol e vôlei pelo ICBIÓ. “Eu nunca fiz algum esporte por muito tempo. Eu sou do interior de São Paulo e onde morava não tinha oferta, a área de esporte era muito mal desenvolvida, embora eu gostasse de esporte desde pequena. Ao longo do primeiro ano do colégio fiz handebol, já no segundo ano as meninas iam desaparecendo, então acabava tendo só o masculino. Na apresentação da semana dos bichos, quando falaram que havia um ambiente para praticar esporte e times para aprender outras modalidades, eu surtei. Jogaria todas as modalidades no Bichusp se eu pudesse. Eu ia fazer algo que sempre quis fazer e nunca tive oportunidade, e foi uma das melhores decisões que eu fiz. Entrei em 2014 e esse é meu sexto ano. Pelo que vi, o esporte feminino nas atléticas se desenvolveu e cresceu. Como modalidade, o handebol em si cresceu absurdamente dentro da USP, o feminino desenvolveu muito.

Futsal, basquete, vôlei estão cada vez mais competitivos. Atletismo também cresceu, com muitas competidoras. É muito legal saber que apesar da tendência machista que o esporte tem no geral, aqui vemos muitas meninas procurando times para jogar, sem ter vergonha de ir para o esporte. Meninas vão atrás de esporte, e isso é ótimo.”

Time LGBT põe representatividade em campo Formado apenas por “não héteros”, primeiro time LGBT de futebol participa do Intereca LIGIA ANDRADE

No primeiro domingo de outubro, times femininos e masculinos de futebol da ECA participaram do Intereca, campeonato voltado aos alunos e ex-alunos da Escola de Comunicações e Artes da USP. O local escolhido para as partidas foi o Planeta Bola Esportes, no Morumbi. Até 10h30 da manhã, quando o evento começou, as quatro quadras de futebol estavam preenchidas por homens. Fora delas, também. Cenário corriqueiro em nossa sociedade, o futebol como espaço masculinizado passou a ser ques-

tionado por um grupo de alunos LGBT da Universidade de São Paulo. Alef Castro, aluno de Educomunicação e um dos fundadores do time, conta que o intuito do Don’t Call Me Hétero (nome baseado

na música Don’t Call Me Angel), além de revolucionar o Intereca, era também se divertir em campo e fazer do esporte, predominantemente “hétero”, um lugar acolhedor para as pessoas LGBT.

Foi assim que o time nasceu com 11 integrantes de diversos cursos da ECA, dos quais todos eram “não héteros” e a maioria era negra. Por fazerem parte de uma minoria social, a Ecatlética adotou a iniciativa de diminuir o valor da participação do Don’t Call Me Hétero na competição.

Apesar de não terem passado da primeira fase, os jogadores conseguiram atingir a meta de um gol na terceira partida, e receberam como prêmio uma dose para cada integrante. A perspectiva de Alef para o time é levá-lo para a Atlética da ECA, onde seria encaixado na modalidade masculina: “Infelizmente há essa segregação no esporte. Esperamos encorajar os não héteros a participar de um esporte predominantemente hétero e ocupar espaços”.

CATARINA COUTO


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CULTURA

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Infâncias roubadas

DIVULGAÇÃO

PEDRO SMITH

Nada representado por inteiro Eis o mérito do filme Thanatos, Drunk, que está na mostra de cinema de Taiwan no Cinusp LARISSA SILVA

Generosidade autoral PEDRO SMITH

Filme mostra manifestações estudantis de 2015

Sucesso de crítica, nem tanto de bilheteria, o documentário Espero tua (re)volta é um documento histórico. Mais do que o fervor das cenas, os angustiantes cortes e a temperatura da narrativa, o filme projeta-se como mais um daqueles clássicos que os professores de História do colégio indicam a seus alunos.

DIVULGAÇÃO

Ao encarar a câmera, o olhar de Rat (Lee Hong-Chi) transmite o caos que o personagem carrega – a expressão triste e o leve sorriso que aos poucos emerge em seu rosto são um convite para o público adentrar em sua história no filme Thanatos, Drunk, lançado em 2015 pelo diretor Chang Tso-chi. É fácil refletir durante horas acerca de qual é o objetivo central do drama assistido. O interessante dessa obra é que ela permite ser interpretada por diversas perspectivas – para mergulhar na narrativa proposta pelo diretor é preciso descalçar os sapatos e aceitar que toda atitude humana traz consigo uma bagagem de eventos passados. Rat e seu irmão mais velho Shanghe (Shang-Ho Huang) vivem na mesma moradia que a prima Da-Xiong (Ching-Ting Wang) e o gigolô Shuo (Cheng Jen-Shuo). Nesse ínterim, temas como família, orientação sexual, alcoolismo, prostituição e violência são núcleos que afetam de diferentes formas a vida dos personagens. Por mais conectados que estejam, cada um traz consigo uma narrativa distinta – suas diferenças os unem e os distanciam, causando o famoso efeito dominó entre todos os envolvidos, sem que eles percebam. Em alguns casos, como o da Da-Xiong e da garota muda (Ning Chang), o diretor não explora o passado delas. Mesmo assim, é possível sentir que muitas formas de violência vividas se refletem em suas atitudes e isso contribui na dimensão e complexidade de suas personagens. Esse é o maior ponto positivo do filme: nada é apresentado por

inteiro. Peças são deixadas pelo caminho e o público monta o quebra-cabeça com os elementos que considerarem mais importantes. Mas nem por isso o filme não é um enigma a ser desvendado, há momentos até que as falas dos personagens reafirmam informações sem necessidade, provocando certas redundâncias. As peças do quebra-cabeça são provocadas através da fotografia, tudo que é mostrado contém indícios do que está por vir ou confirmam o que foi revelado. Durante os 107 minutos do filme, fui conquistada pela relação entre a jovem muda e o personagem Rat. Enquanto ela é desprezada por outras pessoas, Rat encarna a figura de um fiel protetor. Essa relação quase inocente de amor não tem qualquer vínculo sexual, a sensação que fica é que um projeta no outro suas próprias necessidades – ela sente-se aceita e Rat tem alguém para cuidar, provando que não é um total imprestável como sua mãe dizia. Mesmo com suas frustrações individuais, eles me proporcionaram uma das cenas mais românticas do cinema, em um ambiente simples e sem qualquer palavra dita. Esse drama foi o primeiro a ser exibido na mostra Novos Olhares Sobre Taiwan, no Cinusp. Entre as onze opções de filmes do catálogo, cada um com uma vertente diferente, a escolha dessa obra para iniciar a exibição foi certeira. Ela consegue tanto entreter quanto transmitir para o público certas características do cinema taiwanês. Minha impressão é que o novo olhar não se detém apenas à ilha asiática, e sim às emoções expressas em uma cultura cinematográfica que, infelizmente, não é tão divulgada no Brasil.

“Vocês roubaram minha infância”. Uma das frases mais ouvidas, comentadas e compartilhadas das últimas semanas foi proferida por Greta Thunberg, uma jovem de 16 anos que não resistiu assistir às agressões contra planeta e foi até a Cúpula do Clima da ONU, em Nova Iorque, para esbravejar suas indignações, enquanto, segundo ela própria, deveria estar na escola. Do outro pólo do globo, em São Paulo, quatro anos atrás, outra jovem, Manuela, estava na escola, mas não estudando. Ela protestava pela melhoria do ensino, no que ficou conhecida com a “Greve dos colégios públicos de 2015”. Hoje, Manuela roda o país – e o mundo – como uma das protagonistas do aclamado documentário Espero tua (re)volta, da documentarista Eliza Capai. Apesar da distância de tempo e espaço, Manuela compartilha da indignação de Greta: ambas não deveriam ter que reivindicar tais pautas tão jovens. “É cruel botar esse peso nas crianças”, disse em apresentação do documentário organiza-

da por professores da ECA-USP no início de outubro. Além da generosidade, força e outras qualidades, o documentário projeta este olhar: colocar os jovens como futuro da nação é tão esperançoso, quanto cruel. A utopia de ver o mundo guiado pela pureza torna-se um pesadelo distópico quando estudantes são recebidos a cassetetes e gás lacrimogênios em manifestações. São infâncias perdidas em lutas desiguais, que não são provocadas por eles. Manuela conta que desenvolveu crise de pânico em consequência dos embates com a Polícia Militar durante as greves e sabe se lá como a jovem Greta irá reagir aos ferozes ataques que vem recebendo de todos os cantos do planeta – muitos deles de adultos, desqualificando-a por sua pouca idade. Evidentemente, uma população jovem, politizada e crítica é fundamental para comunidades democráticas, mas a grande questão é: até que ponto estar no fronte de batalha não é retrato de uma sociedade preguiçosa, alienada e pouco ativa, que empurra as mazelas do agora para o amanhã?

Sua materialidade historiográfica vai além do riquíssimo acervo de imagens recolhidos pela editora, Eliza Capai, e alcança sua generosidade na construção da narrativa. Eliza entende que a história que conta não é dela, não lhe cabe por sua marca, manchar as linhas de outros, qualquer intromissão autoral empobreceria a dramática realidade em que se incluem os personagens. Ao emancipar os três protagonistas a narradores, donos de suas falas e atores de sua voz, a obra ganha complexidade subjetiva que escapa às imagens e os registros do momento. Os dilemas, conflitos internos e inquietações – que vão muito além das pautas pela qual reivindicam – dos jovens personagens humanizam aqueles que são vistos como “heróis” – ou “vilões”. Como mediadora de discurso conflitantes, Eliza escorrega sobre os espaços, põe se invisível em meio multidão e se dilui entre os quadros. AÍ mora sua autoria, sua marca: fazer-se não ver. Tarefa árdua, em um meio que constantemente confunde-se autoria com exibicionismo. Traços de uma – brilhante – autora invisível.


CULTURA

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Futuro complexo cultural ainda não funciona completamente Apesar da inauguração oficial, ainda não houve transferência completa de equipamentos e funcionários JOÃO GABRIEL BATISTA

Fechado para reformas em 2011, o Anfiteatro Camargo Guarnieri passa despercebido ao olhar desatento de quem passa pelo corredor do Crusp entre os blocos A e C. Enorme prédio cinza cercado por grades brancas, o anfiteatro propõe ser um complexo cultural que abrigará quatro órgãos da PRCEU (Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária): Cinusp, Coralusp, Tusp e Osusp. Além do auditório principal, o prédio contém uma sala de cinema, uma de espetáculos e espaços de ensaio para o coral e a orquestra. A crise financeira que assolou a USP nos últimos anos justifica o atraso nas obras, que passaram por mais de uma construtora. Só no último contrato firmado, o valor destinado ao término do prédio foi de aproximadamente R$ 16 milhões e meio. Em dezembro de 2018, a estrutura física foi entregue, ao que prontamente a reitoria organizou uma inauguração. Essa cerimônia

foi noticiada no jornal da USP sob o título “Anfiteatro Camargo Guarnieri é reinaugurado após reformas e ampliação”. Pórem, a matéria não esclarece que o local na verdade não entraria em atividade a partir daquela data, já que, entre outros fatores, ainda estavam pendentes contratações de serviços como rede de telefone, internet, segurança e mobília. De fato, até o momento da publicação deste texto, o prédio ainda não está funcionando plenamente. Veja a seguir em que estágio está a transferência dos órgãos que farão dali sua nova casa. Cinusp Apesar de inaugurada com a mostra “Novos olhares sobre Taiwan”, a nova sala de cinema do Anfiteatro não está pronta para uso. Naquela mostra em que houve a exibição de três curta-metragens taiwaneses, os equipamentos foram alugados. Projetor, caixas de som, cabeamento, tela, amplificador, equalizador, entre outros, estão entre os materiais pendentes listados por Tia-

go, funcionário administrativo do Cinusp. A despeito do esforço, diz ele, os equipamentos ainda não foram comprados, o que incapacita a sala para receber uma outra exibição. “A USP já aprovou o gasto, mas é um trâmite que demora meses”, continua sobre a compra dos equipamentos. Não é possível cravar uma data para o início do funcionamento pleno do Cinusp no novo espaço. Antes sediado no favo 37, foi uma das primeiras organizações a se mudar para o complexo. O favo 4 continuará a exibir filmes mesmo com a futura sala do Anfiteatro. Além dessas, o Cinusp também conta com uma sala no Centro Universitário Maria Antônia. Coralusp Assim como o Cinusp, o escritório do Coralusp se mudou para o Anfiteatro há aproximadamente duas semanas. Localizados antes no favo 17, computadores e outros materiais ainda encontram-se empacotados, à espera de instalação.

Entre os vários grupos do coral, há os que estão ensaiando regularmente no novo espaço. A falta de um local próprio para as atividades é um problema recorrente na história do coral. Desse modo, coralistas relatam estarem felizes diante da perspectiva de transferência do Coralusp para o novo edifício. Dos que ensaiam no local e que foram abordados pela reportagem, nenhum apontou qualquer tipo de observação crítica.

Auditório inaugurado no final de 2018, hoje tem acesso restrito MARCOS SANTOS

Osusp A Osusp dividirá uma sala com o Coralusp, mas sua administração – até o fechamento desta reportagem – não sabia ao certo quando ocorrerá a transferência para o novo edifício. Atualmente, a administração da Osusp se encontra no CDI (Centro de Difusão Internacional). Neste mês, a orquestra realizará um ensaio aberto ao público no Anfiteatro. Porém, no mês seguinte, o ensaio voltará a ocorrer no CDI. Os ensaios abertos são realizados em locais da USP e precedem a apresentação mensal, na Sala São Paulo, no centro da cidade. Tusp O Teatro da USP, tal como a Osusp, não tem previsão de quando irá se transferir para o Anfiteatro. Até o momento, suas atividades – tanto a administração quanto as exibições teatrais – continuam no Centro Universitário Maria Antonia. “O espaço ainda precisa de algumas adaptações quanto a equipamentos”. É o que afirma Milton, funcionário do setor administrativo e financeiro do teatro, ao comentar a nova sala de espetáculos destinada ao Tusp. Resposta da PRCEU Em resposta ao questionamento do JC a respeito de uma futura programação de atividades para o espaço, a PRCEU afirmou “não é o caso em se falar em uma ‘programação do espaço’, pois é um prédio multiuso”.


CULTURA / CRÔNICAS

PRIMEIRA QUINZENA | OUTUBRO 2019 JORNAL DO CAMPUS

Ei, pode usar! ANA GABRIELA ZANGARI DOMPIERI

Ter um guarda-chuva não é exatamente um privilégio. Parece mais um interesse, parece apenas percepção de um sentido em tê-lo e, mais, carregá-lo consigo. Acho que o mais importante é realmente a parte do não esquecê-lo em casa. Guardado ou não, acho que quase todo mundo tem um guarda-chuva. Chovia quando a garota desceu do trem. A mesma jornada de todo dia. Mas diferente, porque, como dizia, chovia. Ela havia se precavido. Antes de sair de casa, olhou pela janela, pensou, procurou, achou lugar na mala, deu-lhe espaço e o carregou até ali, crucial momento. Um homem descoberto passa, na chuva, pelos olhos da menina. E não era banho de chuva, era a decadência. Não era aventura, era uma pena. Era o desabrigo, era só a falta... Logo, passava outro, e, agora, uma mulher. Algo se embrulhou dentro da menina. E não foi só o estôma-

go e a garganta. Mas o próprio guarda-chuva. Falando assim parece que foi de repente, mas o embrulho foi em camadas. A primeira era homem, celofane, suspeita; a segunda, também homem, era cartolina, confirmação; a terceira era mulher, e era papelão, resignação. A menina odiava ficar molhada e tinha o dia todo pela frente, mesmo assim inclinava-se contra a adequação do guarda chuva na situação. Não parecia bom estar ali como eles. Mas parecia mandatório, ou certo, ou ainda consensualmente inevitável. E ruim. Mas incorrigível. Ela seria tão diferente usando guarda-chuva. Talvez a chuva nem esteja tão forte assim. E estava. E ela via a chuva estando forte, e se conhecendo, ela não sabia quem estava soprando aquilo ao pé do seu ouvido. Era como se ela tivesse feito a equação inteirinha, até o fim, mas a pergunta “qual o valor de x?” a bloqueasse diante do próprio.

Ela lamentou, na voz que não era sua: “quem tá na chuva é pra se molhar…”. E deu o primeiro passo rumo à acidez. Não sei explicar bem como, mas a solução continuaria bem sequinha e amarrada. Se não fosse um último instinto que a fez voltar na conta. Conferiu cada linha da resolução que havia trazido de casa. Poxa, estava tudo certo. Já não lembrava o que tanto a dissuadia. E quem sabe. Quem sabe… aquelas outras pessoas não tinham todas guarda-chuvas em suas mochilas. Quem sabe não apenas estavam convencidas que daqui até ali dava pra ir sem? E se, depois de irem e virem sem consequências fatais, só se convenceram que tormentos são incontornáveis? E quem sabe só não precisavam ver alguém perder um minutinho para resgatar de sua mochila os dispensáveis. Guarda-chuva para chuva, calma para refeições, gentileza para convívio social, curiosidade para o mundo.

Sob o sol MARCUS DE ROSA

Eu venho de uma tribo de nômades que não busca nada além do que pode alcançar, e nós sabemos que o deserto é para sempre. Em nossa cultura só existem duas lendas: o começo e o fim do mundo. O mundo nasceu do Sol, de onde veio a areia do deserto, e dele veio todo o resto. E sabemos como esse mundo vai acabar, e onde estaremos quando isso acontecer. Nós buscamos o próximo mundo, que vem depois do deserto. Os anciões nos contam que há milênios atrás esse mundo era toda a terra que vagamos. Por isso andamos, em busca desta lenda. Os antigos dizem que, se olharmos com atenção, podemos ver no céu amarelo, ao anoitecer, uma cor esquecida, que chamam de verde, e que a veríamos de novo no próximo mundo. Eu e meu bando chegamos a uma ruína no deserto. Uma antiga grande capital. Viemos buscar aqui um oráculo, que dizem conter as respostas para tudo. Uma pequena construção era a única habitada. Em frente havia restos de animais do deserto, deixados lá para amedrontar forasteiros. Amarramos os camelos e entramos. Morava dentro uma mulher que, ao ver nossos trajes típicos, nos recebeu amigavelmente. “Queremos a resposta dos milênios, a resposta que trará o fim do mundo, o fim do deserto.” De um dos vasos pendurados, ela arrancou um ramo de erva seca e mascou; pausou, e retrucou: “O mundo deve recomeçar. Povos antes de vocês procuraram o ouro no barro. Vocês procuram o barro no ouro. Suas vidas são apenas o dourado da areia e do Sol. E é fugindo do Sol que vocês chegarão ao que buscam. O dourado manchou a terra e toda cor que existe nela.”

Só havia um lugar onde o homem conseguiu fugir do Sol. Uma caverna lendária, na qual uma tribo mergulhou e desapareceu, antes de meu povo sequer existir. Então partimos para encontrá-la, afinal. Ela ficava a oeste do deserto e, quando a encontramos, entramos sem saber se sairíamos. A luz do dia se perdeu lá dentro. Brilhou então uma luz azul no escuro, como nunca tínhamos visto. Então eles chegaram até nós, os portadores do fim do mundo. Uma mulher e varios homens saíram do clarão. “Bem vindos”, iniciou a mulher. Como sabia minha língua? “Esta é nossa casa”, continuou. Perguntei quem eram. “Somos como você. Nós vivemos aqui por gerações.” Eles nos levaram por uma ponte subterrânea, que desembocava em uma construção gigante, dentro de uma colossal cidade intraterrestre. Como chegaram ali? “Destruímos o mundo de cima. As florestas deram lugar ao deserto, e o céu azul foi tomado pelo amarelo poluído. Quando a vida foi varrida da superfície, construímos essa cidade dentro da terra.” Quem fez isso? “Nós. Era como vivíamos. Usamos o mundo de cima até o esgotarmos. E para cá vieram só os que tinham dinheiro o suficiente.” Não sabia do que ela falava. Maravilhados com a cidade dos deuses, contei a eles que voltaríamos com toda a tribo, para que pudéssemos finalmente viver no mundo além do deserto. Ela riu. “Sua busca acaba aqui. São nossas regras. Manter total sigilo e não se misturar com as raças da superfície.” Eu nem cheguei a ver o verde.

@VELARDE_CAPSLOCK

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