Revista Piriah - Edição 2 - Dezembro 2016

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REVISTA DE

ARTE E CULTURA



Governador Ricardo Vieira Coutinho Vice Governadora Ana Ligia Costa Feliciano Secretário de Estado da Cultura da Paraíba Lau Siqueira Secretária Executiva de Estado da Cultura da Paraíba Fernanda Norat Conselho Editorial Lau Siqueira, Milton Dornellas, Gregório Medeiros e Kennya Queiroz. . Jornalista Responsável Gregório Medeiros DRT 0003669/PB Secretaria de Estado da Cultura CNPJ: 05.830.824/0001-02 Espaço Cultural José Lins do Rêgo Rua Abdias Gomes de Almeida, 800, Rampa 3. Tambauzinho, João Pessoa/PB CEP: 58042-100 Telefones: (83) 3218-4167 Periodicidade: Semestral

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ISSN: 2448-0711

AUTORES&ARTISTAS: THAYRONI ARRUDA, SHIKO, JÚLIO CÉSAR CABRERA MEDINA, RONALDO MONTE, PEDRO ROSSI, MARIA VALÉRIA REZENDE, JAIRO CEZAR, SAULO MENDONÇA, MILENA MEDEIROS, PEDRO NUNES FILHO, LAURITA DIAS E ALEXANDRE SANTOS. PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO DE JOÃO FAISSAL/ IMAGINÁRIA. REVISÃO DE ANDRÉ AGUIAR. CONTATO POR PIRIAH.REVISTA@GMAIL.COM ARTE DA CAPA Shiko é ilustrador, grafiteiro, roteirista de cinema e autor de quadrinhos. Já expôs em Portugal, Itália, Holanda e França. Produziu nos quadrinhos - Marginal Zine, Blue Note e O Quinze - adaptação do Romance de Rachel de Queiroz. Com Lavagem (Editora Mino), foi premiado pela HQ Mix com melhor álbum de Terror, Aventura e Ficção, em 2016 .


NOSSO CAMINHO É O JEITO DE CAMINHAR Lau Siqueira Secretário de Estado da Cultura da Paraíba

ções e das invenções. O destemor pelo contraditório é a tônica do pensamento livre que nos permitirá encarar os maiores gargalos da cultura local que, na verdade, não diferem de outros estados e países. Vivemos sob dominação midiática e nosso grito não cruza assim tantos quarteirões. Mas demarca os espaços de resistência ao que se impõe pelo gigantismo. A conjuntura vivida atualmente difere e podemos até considerar que é consequ-

A revista Piriah chega ao segundo nú-

ência da conjuntura na época do primeiro

mero com a certeza de ter cumprido o ob-

número da revista. Naquele momento publi-

jetivo de provocar reflexões sobre a cultura,

camos uma entrevista com Francisco Bosco,

a arte e a sociedade paraibana. Na verdade,

então presidente da FUNARTE, onde vimos

de forma muito incipiente ainda. Mas, sobre-

progredir o projeto de circulação artística

tudo, com muita clareza de objetivos. Seus

nordestina nascida na Paraíba através de

textos repercutiram na UFPB, UFCG, muito

Milton Dornellas e Pedro Osmar. (O velho

especialmente na UEPB Campus V. Foi ain-

Musiclube da Paraíba e suas provocações).

da mais longe. Chegou nas salas de aula do

Levada ao centro dos debates da cultura no

IFRN em pleno Sertão Potiguara. Foi plena-

Fórum Nacional dos Secretários de Cultura,

mente compreendida a nossa proposta de

a Conexão tomou força e o Distrito Federal

não reproduzir textos acadêmicos. No en-

já encampou a luta num projeto chama-

tanto também foi compreendido o desejo de

do Conexão DF. Enfim, estamos vivíssimos

buscar as inquietações e investigações da

dentro de um tempo de tantas incertezas.

área acadêmica. A relação interinstitucional

As provocações de caminhar nascidas nas

transparente, entendemos, afirmou a revis-

comunidades ciganas da Paraíba continu-

ta como órgão da SECULT-PB. Entretanto,

am mais vivas que nunca.

como vetor e veículo do pensamento crítico contemporâneo na Paraíba.

Chegamos ao segundo número, portanto, com a sensação que a caminhada é muito

A razão de romper com o modelo das re-

mais longa que imaginávamos. Infinita, até.

vistas oficiais que limitam suas pautas na

Todavia, conseguimos consolidar parcerias,

prestação de contas da gestão foi compre-

estreitar as margens e construir as neces-

endida. O debate estético e o debate cul-

sárias pontes para que, cada vez mais, a arte

tural na sua maior amplitude está posto. A

e a cultura estejam no centro dos debates

ousadia de experimentar, seja na forma, seja

que organizam de certa forma a sociedade.

no conteúdo, também está posta. Marcar

Estamos fora das miudezas pessoais porque

presença num tempo de crise é, sobretudo,

sabemos que o nosso caminhar é coletivo.

buscar a superação através das provoca-

Enfim, “tanta coisa eu tinha a dizer...”

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PEDRO NUNES Texto

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PRODUÇÃO, CONSERVAÇÃO, ARMAZENAMENTO E COMPARTILHAMENTO DA MEMÓRIA EM TEMPOS DE


V

ivemos e experienciamos, na atual sociedade do conhecimento, uma lógica marcada pela predominância da dimensão imaterial dos sistemas digitais. Segundo o pensador Zygmunt Bauman, trata-se de uma contemporaneidade entrecortada por tempos líquidos, vida líquida e afetos líquidos, onde as práticas culturais e comunicacionais são tecidas

cos digitais, típicos da sociedade em rede, expandimos a nossa memória cultural graças ao aumento da capacidade de produção de signos, construção de narrativas, registros, documentação dos acontecimentos e, consequentemente, a ampliação da nossa capacidade de armazenamento do conhecimento por meio dos cérebros digitais, arquivos inteligentes, plataformas livres, repositórios com acervos públicos

pela velocidade dos fluxos de textos, imagens, sons, gráficos e documentos diversos compartilhados em tempo real (via rede), armazenamentos públicos ou de natureza privada. Por meio dos dispositivos tecnológi-

integrados, memórias paralelas, com estocagem de analógicos convertidos em digital, dentre outras possibilidades. Há nesse contexto da contemporaneidade líquida um crescimento da inteligência artificial que, de certo modo, favorece o processo de produção, tratamento, conservação e compartilhamento da nossa memória cultural.

Pedro Nunes é professor titular do Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, Pós-Doutorado. Trabalha com cinema, vídeo fotografia e pesquisa sobre a memória do audiovisual brasileiro.

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Através dos sistemas digitais, de políticas públicas e programas direcionados à cultura, podemos ampliar a nossa capacidade de produzir cultura, documentar os acontecimentos da realidade, elaborar conhecimento e, por conseguinte, consequentemente, dar complexidade a nossa capacidade de guardar e acessar a nossa memória cultural. Em tempo das tecnologias móveis, convergência das mídias, acesso aos equipamentos miniaturizados, existência dos avatares, realização de imersões interativas, viralizações de memes, adoção de fakes, distribuição excessiva de emojis, cultura dos autoretratos em forma de selfies, autoexposição em ambientes virtuais fechados ou abertos, envios de nudes, construção de mundos assépticos, hiper-realidades, câmeras de vigilância, circuitos internos no campo das artes, banalização da informação, ‘gamificação da vida’, liberação do polo de produção de informações e ubiquidades da rede, conseguimos, então, de forma concreta, transitar de uma era da cultura material de base analógica e eletrônica para um universo com a predominância do digital. Essa marca do digital, que absorve outras temporalidades, aumenta a nossa capacidade de comunicação instantânea e de armazenamento de conhecimentos, por meio das memórias digitais. Paradoxalmente, essa memória digital expandida, que imita a capacidade

L I K E

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S E M A A T R


S H A R E

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A N A S R Á S

de nosso cérebro, torna-se muito mais volátil com indícios bem visíveis que pode ser apagada, perdida ou simplesmente deletada. Mesmo com os avanços e aproximações intensas entre os campos da Arte, Ciência e Tecnologia e, deslocamentos do próprio conhecimento, constatamos que há múltiplas dimensões de precariedades quanto ao armazenamento da memória no âmbito dos sistemas digitais, frente à própria obsolescência dos artefatos tecnológicos que funcionam enquanto dispositivos de memória. Esses dispositivos, por vezes, possuem uma vida útil programada: envelhecem e se tornam incompatíveis diante das descobertas que se transformam em novos artefatos tecnológicos que, entre si, não mais se comunicam. Nesse contexto de um mundo dinâmico cada vez mais povoado pela complexidade, a memória torna-se frágil, tendo em vista as reconfigurações e avanços do conhecimento que deságuam em mudanças operadas no seio dos próprios dispositivos tecnológicos de captação, armazenamento e disponibilização de diferentes informações e expressões artísticas que compõem a nossa diversidade cultural. Os novos inventos tecnológicos são decorrentes dessa materialização do conhecimento, ou seja, fruto dessa lógica inerente à nossa própria cultura. Produ-

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zimos conhecimento. Produzimos cultura. A cultura é expressão plena de nosso conhecimento. Cultura e conhecimento são capazes de influenciar os produtores de cultura que, por sua vez, são afluentes de nossa cultura. As manifestações de nossa cultura no presente, passado ou futuro são expressões de um determinado tempo, no qual criadores se apropriam (ou se apropriaram) de dispositivos e linguagens (artesanais ou de ordem técnica), para produção de conhecimentos. Essas manifestações culturais podem ser expressões de uma ordem técnica (ou pré-técnica) que envolvem mediações, reprodutibilidades, transmissões, exibições, distribuições em rede e que também encampam lógicas artesanais. A oralidade é um dispositivo proveniente da cultura oral que precede a escrita e encampa a atualidade. Uma narrativa oral verbal pode ser registrada em dispositivos artesanais que envolvem o código da memória escrita. O código da cultura da oralidade associado à fala pode ser convertido ao sistema de codificação da escrita manuscrita, por vezes em cópias únicas, em papiro. Livros inteiros foram reproduzidos de forma manuscrita pelos copistas. Esses livros manuscritos, ou enciclopédias, da época, se transformaram em verdadeiros suportes da memória que implicavam em cuidados quanto ao acesso e métodos de conservação. Determinadas obras lite-

rárias, romances, contos da cultura oral e escrita que sobreviveram, de geração em geração, ganharam forças graças a publicação em forma de livros a partir de meados século XV com a imprensa, que inaugura a cultura do reprodutível. Alguns poucos livros dessa cultura do reprodutível só sobreviveram, até a nossa atualidade, face aos métodos de conservação e mais tarde, o processo de digitalização para o acesso público. Vale salientar que essa dinâmica de produção, editoração e veiculação de livros e jornais, que pertencem a uma lógica da cultura impressa, se transformou (literalmente) ao longo de décadas e séculos. Com o surgimento da imprensa, dos livros, dos jornais, folhetins e revistas, a própria cultura se desenvolveu enquanto mercadoria abstrata com fortes vinculações aos interesses políticos e econômicos explícitos da época, tendo como foco um público letrado. Nessa época distante, o acesso a esse contingente de informações por parte dos não letrados só foi possível mediante as “rodas de leituras” por letrados, que tiveram acesso às escolas e também o domínio da escrita. Percebemos que cultura de diferentes épocas é um bem social que sempre necessita do movimento de interpretação. Enquanto referência de um tempo necessita ser preservada, armazenada e disseminada para que possa ser conhecida por gerações futuras.


A edificação da cultura nesse período do surgimento da imprensa foi então sustentada, dentre outros fatores, pela predominância de uma cultura oral ainda com poucos alfabetizados, e a explosão da imprensa, livros e, mais adiante, folhetins, jornais e revistas. A emergência de produtos culturais que valorizaram o supérfluo, os clichês, as fantasias e a indução ao consumo foi o principal elemento dessa longa fase da cultura impressa que começa em meados do século XV. Muitas obras raras dessa cultura livresca atravessaram outras modalidades de culturas com seus outros dispositivos próprios. A imprensa, os livros, as revistas incorporaram as ilustrações, os desenhos e a própria fotografia – a qual nasceu e se desenvolveu enquanto dispositivo de registro e eternização da memória que prioriza o conhecimento visual. A imprensa encampa a fotografia e a própria fotografia avança enquanto dispositivo de captação de aspectos da realidade ou com a possibilidade de se recriar a própria realidade. Assim, a fotografia inaugura um novo paradigma exclusivamente das imagens técnicas, denominado de paradigma fotográfico que amplia o conceito de cultura visual incluindo as imagens de natureza técnica, obtidas através da fotografia. Os dispositivos de produção de memória visual que sucedem a fotografia, no caso, o cinema e a holografia, também integram o paradigma fotográfico. O cinema, en-

quanto dispositivo de produção, criação e documentação da memória, incorpora a fotografia e acrescenta um novo elemento que é a ilusão do movimento. O cinema, enquanto modalidade de produção de narrativas audiovisuais, provocou encantamento, fascinação e desejo. Avançou em relação aos sistemas de produção de memória predecessores e caminhou através de seus realizadores, principalmente do ponto de vista comercial, para a produção de narrativas ficcionais e, em menor grau, desenvolvimento de produtos culturais que valorizaram o processo de documentação de situações da realidade. Tanto o rádio como cinema, e mais adiante a televisão, mobilizaram um grande público que necessariamente não precisava ser alfabetizado. Trata-se de um contexto, cuja produção de memória está circunscrita a uma cultura das mídias, visto que envolve um grande público com características distintas para o cinema, o rádio e a televisão. Todos esses dispositivos de poder e memória se transformaram ao longo do tempo. Estabeleceram conversações entre si. Cada um deles ganhou autonomia de construção narrativa e especificidades técnicas. Cada um desses dispositivos técnicos de produção de arte, cultura e memória vivenciaram transformações endógenas e exógenas. Ou seja, se tomarmos como exemplo as transformações tecnológicas

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endógenas vivenciadas pelo cinema, observaremos que se tratam das mudanças decorrentes dos avanços do conhecimento e que se materializaram no seio do próprio dispositivo tecnológico, a exemplo da existência do cinerama, cinema em preto e branco, incorporação do som e da cor, bitolas 70mm, 35mm, 16mm e super-8. Trata-se do aperfeiçoamento desses dispositivos de produção de memórias quanto à sua capacidade de registro, documentação, edição, armazenamento e transmissão de mensagens, que mobilizam nossos sentidos e a nossa capacidade de interpretação. Da cultura das mídias onde identificamos a emergência de diferentes dispositivos tecnológicos de produção da memória a exemplo do livro, jornal, fotografia, cinema, rádio, televisão, holografia e vídeo, passamos à cultura digital onde todas essas mídias converteram em sistemas digitais com a possibilidade e se operar no universo das redes. Assim, respiramos um tempo em que identificamos os avanços do conhecimento associados às conquistas tecnológicas, dinâmicas da cultura e, como já afirmamos, interações entre Arte, Ciência e Tecnologia. Trata-se de um tempo em que se configura o derretimento dos sólidos e que metaforicamente possibilita a vazão dos líquidos. Observamos que cada novo paradigma trouxe consigo conflitos, contradições e situações inusitadas que reclamam dimen-

sionamentos. A cultura e os processos comunicacionais perpassam todos esses paradigmas que estão associados às dinâmicas da sociedade com seus dispositivos técnicos de produção de memória. O paradigma pós-fotográfico amplia a nossa de memória pela natureza do processamento das informações disponibilizadas em forma de fluxos interconectados em sistemas de redes. Essa lógica do paradigma digital - das temporalidades líquidas – proeminente nas quase duas primeiras décadas do século XXI é também atravessada pela existência de processos culturais cada vez fluidos, transterritoriais, com dinâmicas móveis e interativas que ainda convivem com ordens de natureza material (fotoquímica, analógica e eletrônica). Dizemos que essa passagem de uma lógica de base material para uma lógica com a predominância do paradigma digital pós-fotográfico revela uma temporalidade em que brota a cultura digital e que se apresenta de forma literalmente descentrada. Ainda nesse contexto complexo de nossa contemporaneidade nitidamente marcada pelos sistemas digitais, a cultura digital é então fruto de entremesclas, hibridismos, conectividades e recombinações de diferentes ordens de signos. Conforme observamos, as práticas sociais nesse cenário da cultura digital são habitualmente fugazes, contraditórias, por natureza supérfluas, guiadas por acontecimentos efêmeros que


evidenciam exposições narcísicas. Esse baú digital movente denominado ciberespaço é também um lugar de memória, de produção de experiências de arte colaborativa e de armazenamento de conteúdos culturais digitais provenientes de lógicas predecessoras vinculadas à cultura da oralidade, cultura da escrita, cultura da imprensa, cultura das mídias e culturas híbridas. Diante dessa cultura digital que reflete a atual sociedade em rede com seus vínculos voláteis, práticas sociais efêmeras, usuários ávidos pelo “novo” que atuam enquanto produtores dos próprios conteúdos e rearranjadores de modos de expressão, como pensar a memória da cultura nesse contexto das diferentes lógicas digitais com os seus paradoxos? Como conservar documentos digitais desatualizados e torná-los compatíveis com as plataformas livres? Como converter e produzir documentos digitais em formatos livres? Todas essas questões e várias outras permeiam todo processo de produção, conservação, armazenamento e compartilhamento da memória em tempos de CULTURA DIGITAL. PASSADO E PRESENTE: MEMÓRIA E DOCUMENTOS CULTURAIS PARA O FUTURO Determinados produtos culturais que tiveram importância em um passado recente não são acessíveis devido à natureza do suporte ou dispositivo tecno-

lógico em que foi produzido. Documentos fotográficos, negativos de filmes, textos, livros, filmes em super-8, vídeos em diferentes formatos, mapas, desenhos, cartas, registros privados, slides, áudios em fitas, vinis, cartas, manuscritos... que integram o nosso patrimônio cultural estão deteriorados e reclamam por processos conservação. Essas obras e produtos abandonados ou entulhados precisam ser recuperados e restaurados para depois serem digitalizados, remasterizados e disponibilizados por meio de política de democratização do conteúdo digitalizado. Esse quadro serve para evidenciar que esforços empreendidos para preservação da memória cultural em meios digitais ainda são extremamente incipientes enquanto política pública. Fazse necessário a materialização de uma política pública nacional de digitalização de documentos culturais e acervos artísticos articulada com todos estados brasileiros como forma de garantir a digitalização, o tratamento e a disseminação de nossa memória cultural. É interessante alertar para que essas iniciativas macro em forma de programas de governo não deságuem na construção de meros repositórios de conteúdos culturais em plataformas digitais. A nossa cultura reclama conservações de documentos e adoção de políticas de di-

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gitalização e remasterização de diferentes acervos audiovisuais: filmes, vídeos, programas de TV, documentações institucionais, registros em diferentes suportes, material fotográfico, entre outros. É imperativo que essas políticas públicas de conversão de documentos atendam critérios internacionais quanto a existência de uma infraestrutura tecnológica, recursos humanos especializados que dominem profissionalmente os procedimentos que norteiam todo processo de digitalização envolvendo estratégias de preservação de longo prazo, catalogação, indexação e metadados. É importante que essas políticas públicas para recuperar memórias passadas priorizem sistemas abertos, arquiteturas livres e adoção de softwares livres. Em escala micro, tem se ampliado o interesse de artistas, pesquisadores, historiadores, profissionais da arquivologia e grupos organizados preocupados em recuperar digitalmente documentos culturais de diferentes ordens. As ferramentas digitais, o ciberespaço com sua dinâmica fluida articulado com as redes sociais, a existência de diferentes aplicativos, espaço armazenamento de dados, armazenamentos em nuvens, existência de repositórios abertos, e a existência de processos colaborativos e de compartilhamento no âmbito

rede tem possibilitado o crescimento não só da memória digital que documenta essa dinâmica do cotidiano das redes como também tem propiciado que cidadãos digitalizem seus próprios acervos de arte, restauração de fotos familiares e documentos privados com co-resultados que apresentam níveis de qualidade. Essa prática de digitalização por iniciativa própria vem se ampliando na rede face às potencialidades inerentes as ferramentas digitais e formas distintas de armazenamento em rede. Essa compreensão deriva da perspectiva de cada cidadão poder delegar ao futuro documentos e registros da cultura de temporalidades passadas. Os documentos digitais que migraram de um sistema para outro através da conversão digital e os documentos construídos no próprio ambiente digital neste tempo presente também serão transmutados em documentos do passado. A nossa memória cultural deve permanecer viva através da existência documentos e acervos abertos do presente e passado como legado ao futuro. Compete principalmente ao Poder Público garantir, aperfeiçoar e executar políticas públicas voltadas para aperfeiçoamento do processo de digitalização e tratamento de documentos culturais nas diferentes regiões brasileiras.


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EU TE UM CÉU QUE NELE SOMOS E 16

Saulo Mendonça é poeta, cronista, ficcionista e crítico de arte de Alagoa Grande, na Paraíba.


AGRADEÇO NÃO VEMOS. AMANHECEMOS. Haikai de

SAULO MENDONÇA

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Jairo César Soares é Militante de projetos voltados a leitura exerce, atualmente, o cargo de Secretário Executivo de Cultura, Esporte e Lazer de Sapé.

MEMO DE AUG DOS AN


ORIAL GUSTO NJOS

Texto

JAIRO CÉSAR SOARES

PATRIMÔNIO IMATERIAL E A TRANSVERSALIDADE DA OBRA DE AUGUSTO DOS ANJOS 19


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Memorial Augusto dos Anjos foi criado em 2006, pelo governo do Estado da Paraíba, através do IDEME (Instituto de Desenvolvimento Municipal e Estadual), recebendo aporte financeiro do Fundo de Incentivo à Cultura Augusto dos Anjos (FIC). Desde sua abertura, o MAA, sigla pela qual é conhecido, é administrado pela Prefeitura Municipal de Sapé. Os bens culturais que compõem o núcleo inicial do museu fazem parte do complexo arquitetônico pertencente à família de Augusto dos Anjos, passando posteriormente para a família Ribeiro Coutinho, que perdeu parte das terras em pendências judiciais. Hoje, com exceção da sede do museu, localizado na antiga casa de Guilhermina, ama de leite do poeta, da capela, da casa onde nasceu o poeta (totalmente descaracterizada), do pé de tamarindo e do lago, tombados pelo patrimônio histórico e de propriedade da Prefeitura Municipal de Sapé, as terras pertencem ao Incra, que as cedeu para formação de assentamentos rurais. Em um espaço que comporta cerca de 70 pessoas são proferidas palestras, exibidos alguns pertences de Augusto e seus familiares. Além disso, é possível conhecer, através de painéis, aspectos da vida e obra do poeta. O MAA conta ainda com biblioteca voltada ao universo anjosiano, cópias e documentos originais pessoais, entre ou-

tras raridades. No mês de Maio de 2016, dez anos após a criação do MAA, uma parceria pública privada, entre Governo Municipal e o Grupo Energisa resultou com a reforma e adequação do Memorial, tendo como objetivo melhorar o atendimento aos visitantes. Hoje, ao visitar o MAA, o turista tem acesso a documentos raros e originais da família de Augusto, bem como a apresentações artísticas que retratam a vida e obra do poeta. A um primeiro olhar, as transformações se deram apenas no âmbito físico, mas por trás da reforma de pedra e cal, existe, em curso, uma política de inclusão e garantia de acesso ao espaço. Tudo começa pela equipe: atualmente o MAA possui Guias de Turismo Credenciados pelo Ministério do Turismo e Condutores do próprio MAA. Há ainda um grupo de teatro e bailarinos, que de forma transversal, cria apresentações que permeiam vida e obra do poeta. É importante salientar que tais profissionais são oriundos da própria cidade e os artistas da Escola Municipal de Artes. Além da atuação no Memorial em si, há nas escolas a execução do PILLE - Programa de Incentivo à Leitura Literária na Escola, que tem por objetivo inserir o hábito da leitura literária no cotidiano das unidades de ensino. Tal programa tem uma linha denominada “Augusto dos Anjos na Escola”, que propõe o diálogo da literatura anjosiana com as diversas artes.


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SOBRE O POETA A Paraíba é pródiga em parir, de seu pequenino ventre, mestres da arte em seus mais variados ramos. Este é o caso especialíssimo de Augusto dos Anjos. Poeta de verve singular e de uma popularidade acima da média. Augusto, apesar do vocabulário hermético e cheio de referências a obras da literatura oriental, faz uma leitura nua da alma humana, chocando e encantando tanto estudiosos da literatura quanto leitores menos atentos. Mas como explicar a popularidade de um poeta que morreu prematuramente aos trinta anos, nos deixando apenas um livro? Não são poucos os críticos que se debruçaram sobre a obra anjosiana buscando respostas a esse questionamento e a tantos outros que surgem mesmo com a leitura de apenas alguns versos. Profundo conhecedor da língua portuguesa, homem de erudição pouco comum e de leituras variadas, o

poeta de o “Eu”, combina elementos oriundos da Biologia, da Filosofia, da História e do cotidiano, criando assim, uma mescla de popular e erudito pouco vista na literatura nacional. Aliás, como disse Carlos Drummond de Andrade, Augusto é o caso singular da literatura brasileira. Há, no entanto, certa convergência de opinião entre boa parte dos críticos - a maioria classifica a obra dele como sorumbática, pessimista e cientificista. A força desse obscurantismo levaria, portanto, a fazer com que os leitores suscetíveis aceitassem o jugo como verdade absoluta. Todavia, apesar de ser possível encontrar elementos soturnos na obra de Augusto, não é essa a sua essência. Em primeiro lugar, não existe poesia cientificista. Não há escola literária com esse nome, como há, por exemplo, o Parnasianismo ou o Barroco. Augusto dos Anjos usa elementos oriundos da ciência com uma função específica e meta-


fórica, exercendo papel secundário ao lado de elementos da vida cotidiana. Trancafiar a sua poética em uns poucos adjetivos acaba, mesmo que sem intenção, afastando novos leitores, influenciando negativamente a autonomia de quem lê. Mas a força que esses estudos têm levaram o poeta paraibano a ser mais conhecido por “poeta da morte”, “poeta do infortúnio” e “´poeta do hediondo” do que por seu nome. Assim, ler Augusto dos Anjos seria mergulhar em um sorumbatismo profundo, ato que muitos optaram por evitar. Mas, em meio a tantas visões simplórias de uma obra tão profunda, eclode o ensaio magnífico de Ferreira Gullar (GULLAR, Ferreira. Toda a poesia de Augusto dos Anjos), que traz uma visão nova, desmistificando conceitos negativistas e trazendo elementos novos, como o fato de que a reflexão sobre as coisas mais ordinárias da vida é que agigantam a poesia do paraibano. Essa opinião vem ganhando adeptos

a cada dia, pois hoje já se é possível encontrar, até com certa facilidade, leitores, professores e curiosos que não mais comungam da opinião de que Augusto dos Anjos era o “poeta da tristeza”. Uma prova robusta disso é o trabalho da cantora e compositora brasiliense Marina Andrade. Marina, que musicou nove poemas do poeta, dando-lhes uma roupagem nova, fazendo deles o cd Versos Íntimos, título do mais famoso poema de Augusto. Rock, pop, bossa e até samba foram usados por ela para desflorar o que chamo de “invólucro místico” que envolve essa obra estupenda. Encontrar a música de Marina aliada à poesia de Augusto foi algo mágico. Marina presta, assim, um grande serviço aos futuros (e atuais) leitores de Augusto dos Anjos, revelando-lhes outra visão sobre a essência de sua poética, com ênfase de que a morte em sua obra nunca é definitiva, como de igual forma as opiniões sobre um livro imortal.

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AGLOMERADOS URBANOS Intervenção urbana realizada em fevereiro de 2016 dedicada à reflexão sobre as relações de pertencimento do Centro Histórico de João Pesssoa.

#CENTROPRAQUEM? Produção Pós Graduação em Design e Arquitetura de Espaços Efêmeros IESP Faculdades Coordenação de Projeto Javier Peña Ibáñez Pedro Rossi Fotos Iale Camboim Pedro Costa Pedro Rossi

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Pedro Rossi é Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba, UFPB (2007), Especialização em Design de Interiores pelo Instituto de Educação Superior da Paraíba, IESP (2012) e Mestrado em Teoria e História da Arquitetura pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, da Universidade Politécnica da Catalunha, UPC/ETSAB (2009). Atualmente é docente e coordenador dos Cursos de Arquitetura e Urbanismo e de Design de Interiores do IESP, onde criou e coordena a Pós Graduação em Design e Arquitetura de Espaços Efêmeros (Pós DAEE). Como arquiteto e urbanista, trabalhou na elaboração de projetos de requalificação urbana de centros históricos e de equipamentos públicos frente à Divisão Técnica do Espaço Público da Área Metropolitana de Barcelona, AMB (2008-2010). Atuou como pesquisador na área do Patrimônio Cultural e foi Coordenador Adjunto da Comissão Permanente para o Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba, IPHAEP, no qual, entre outras funções, elaborou planos de preservação e conservação.

P C


PARA QUEM AS NOSSAS CIDADES ESTÃO SENDO 25


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A QUEM ELAS ESTÃO SERVINDO?


QUEM TEM DIREITO À CIDADE? 27


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PÚBLICOS, PO E VIDA CULTUR


OLIFONIA RAL UMA POLÍTICA CULTURAL PARA AS PESSOAS DE JOÃO PESSOA

Arte

SHIKO Texto

ALEXANDRE SANTOS

Alexandre Santos é formado em Comunicação Social pela UFPB, atua como produtor cultural em João Pessoa há dez anos. É sóciofundador da Parahybólica Cultural, produtora que desenvolve projetos e ações nas mais diversas linguagens artísticas. É pesquisador vinculado ao Observatório de Políticas Culturais da UFPB (Observacult/NUPLAR/UFPB), onde pesquisa as áreas de produção cultural e públicos da cultura.

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VIVER A VIDA CULTURAL COMO FORMA DE VIVER A CIDADE Bares, cafés, pubs, teatros, museus, cinemas, saraus... A vida cultural de uma cidade é, em parte, um dos termômetros do seu cenário cultural. É ela que provoca a reunião da juventude, o encontro de gerações, tribos e pessoas de distintas idades e origens; ela que estabelece dinâmicas de fruição e consumo da cultura local e que leva as pessoas de canto a canto, à procura daquilo que o gosto mais lhe agrada ou ao encontro de seus pares e, por vezes, de novas experiências. A cidade, por sua vez, é um campo aberto, múltiplo, complexo, contraditório e combinado, cujas veias e artérias se ramificam, entrecortando bairros, comunidades, territórios criativos, desaguando diversos públicos em equipamentos culturais, casas de shows, praças e outros espaços de cultura. No ir e vir dos que vivenciam a cidade, esses espaços sugerem sentidos, provocam sensações e geram sentimentos, num constructo permanente de impressões, laços, afinidades e até rotinas - para os mais assíduos. Alguns ganham o público pela capacidade singular de se reinventar inúmeras vezes, apresentando novidades a cada visita - um lounge recém inaugu-

rado, um móvel transportado a outro lugar, ou mesmo a delicadeza da flor que resolveu desabrochar exatamente hoje, “o dia em que vieste”. Já outros, também podem ganhar seu público pela capacidade, igualmente singular, de manterem-se firmes ao que são desde sempre. E assim, cativar pelo ambiente que se torna comum, mas não banal. Um comum apreciado como se, afinal de contas, tudo estivesse em seu devido lugar. Entre espaços públicos e privados, centrais e periféricos, oficiais e alternativos existentes na cidade, não são raros os encontros de públicos diversos, tribos arregimentadas e reunidas para viver e erguer seus próprios modos culturais, suas maneiras de vivenciar a cultura e expressar-se na cidade. Nestes encontros, a iminência constante dos choques culturais entre grupos produz as formas de reagir ao outro, seja intercambiando, trocando as lentes pelas quais observam o território comum, seja por um olhar distanciado de outras práticas e estilos, ou mesmo no afastamento e, por vezes, no enfrentamento a certas narrativas e posturas, como parte da disputa para garantir seu espaço, sua presença ali. São grupos que constroem seus pró-


prios modos de ocupação cultural da/na cidade, e, ao mesmo tempo, coabitam-na e a disputam, assim como a seus espaços de cultura. É neste sentido que a vida cultural e seus equipamentos - dos bares às galerias, dos cafés às feiras, dos centros culturais aos espaços efêmeros - tornamse, de certo modo, ambientes de mediação dos fluxos entre públicos, à medida que estabelecem condições determinantes para excluir ou agregar a diversidade, o conjunto dos que vivem aquilo que a cidade apresenta em sua oferta cultural. OS PÚBLICOS URGEM, A CIDADE RUGE Em certa medida, somos a incontrolável soma das referências que chegam a nós ou que buscamos em meio à ecologia pluralista que se ergue entre o tangível e o intangível, entre o orgânico e o ciberespaço. É na sociabilidade forjada na vida cultural da cidade que o homogêneo e o individual dão lugar ao híbrido e ao plural, gerando ecos de uma polifonia que representa diversidade. Tensões e distensões são movimentos constantes, e materializam-se ou diluem-se no espaço-tempo, que se consolida como variante de uma intensidade de cidade, uma forma de atingir e ser atingido na medida exata em que se relaciona

com esta vida cultural, com seu locus. O que buscam os públicos? A questão aqui não se refere às demandas ou pautas de um determinado grupo, mas a busca comum que alinhava suas (re)existências diante de uma cidade que pode ser, ao mesmo tempo, acolhedora ou o ambiente hostil que impõe barreiras ao seu pertencimento. Num modelo de cidade pensado para a ampliação de carros particulares, a oferta de transporte coletivo é suficiente para suprir a vida cultural da cidade, com públicos que partem e transitam por todos os bairros? O aumento gradativo da passagem do transporte coletivo nos últimos anos tem sido barreira para o acesso a esta vida cultural? Numa cidade que deve ser pensada como um conjunto integrado, e não fragmentada, há territórios criativos privilegiados em detrimento a outros aos quais a política pública de cultura não atende? A política cultural chega aos bairros periféricos? E se chega, como permanece? Essa política ocupa praças? Convida os agentes locais a serem parceiros ou os ignora? Convida a população a participar dos processos decisórios? Há oferta cultural pública não só de eventos, mas também de formação? Finalmente, qual é o entendimento desses sujeitos de

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uma política pública para a cultura? A plena participação na vida cultural da cidade e do território é um direito cultural ainda a ser conquistado e garantido, e deve emergir como fruto de uma agenda que priorize a ampliação do acesso a partir de um modelo inclusivo de cidade. Uma política, portanto, que venha na esteira do que tem se erguido desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que em seu fundante Artigo 27 afirma que “Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”. Desde então, uma série de outros marcos foram elaborados e pactuados em diversas instâncias, com vistas a consolidar o papel central da cultura no desenvolvimento das nações e das localidades. Nesta baila, consolidam-se também os direitos culturais como direito da pessoa humana, e a participação cidadã como pressuposto para a garantia de uma cidadania cultural, somente possível quando inserida no âmbito da diversidade. É neste sentido que uma política que tenha os públicos como foco passa, necessariamente, pelo fortalecimento de uma

cidadania cultural e pela garantia dos direitos culturais, visto que ela só faz sentido quando construída com participação nos processos de decisão sobre a cidade. O público é vivo. Em seu vai e vem, ele vê e vive a cidade, sente-a, gera sentidos e a conhece com a palma de suas mãos. Por isso, na busca por constituir uma política que amplie a cultura de acesso, os públicos devem ser o alvo primeiro e o ombudsman principal. Ouvir os públicos com ouvidos de quem ouve uma sinfonia experimental, ora harmônica, ora atonal, mas com a devida atenção a todos os detalhes, é essencial. JOÃO PESSOA(S), UMA CIDADE EM BUSCA DE SUA POLÍTICA CULTURAL João Pessoa, capital do estado da Paraíba, possui 65 bairros e está inserida numa região metropolitana que abrange doze municípios. Dados do IBGE afirmam: em 1996, a população pessoense contabilizava 544.753 habitantes, evoluindo para 672.081 em 2006, e chegando a 801.718 em 2016. Em duas décadas, o crescimento populacional da capital chegou a 32%, ou um aumento de 256.965 habitantes. Neste ínterim, vemos passando toda uma geração que nasceu e cresceu imersa em realidades mediadas pelos meios de


comunicação de massa e pela internet, e cujos hábitos foram radicalmente transformados quando em relação a gerações anteriores. A velocidade com que a indústria do entretenimento e das comunicações transformou os modos, práticas e formas de consumo cultural nos últimos anos instauram enormes desafios para a política cultural que se queira conectada a seu próprio tempo. Às preocupações e questões formuladas a partir do boom do desenvolvimento da oferta cultural em domicílio, que somente ampliou desde os anos 1990, somam-se hoje as questões relativas ao consumo digital, uma modalidade que marca forte presença nos lares brasileiros e entre as novas gerações, mas da qual as políticas públicas ainda se mantém distantes. Como dialogar com uma população que cresce vertiginosamente, e cujo futuro previsto é de um adensamento ainda maior, diante do contexto de desenvolvimento regional que coloca a cidade como estratégica para o Nordeste? Por onde iniciar uma política que priorize a demanda, levando em conta um critério de equidade frente à diversidade geracional e suas questões específicas; bem como frente aos novos modos de sociabilidade e consumo

cultural via internet, redes sociais e outras plataformas? O desejo de cultura não é uma virtude nata dos indivíduos nem tampouco transferível ou efeito miraculoso. Como despertá-lo? Quais estratégias estão sendo elaboradas pelos poderes públicos, por gestores de centros culturais, por produtores e empreendedores criativos, a fim de atrair, ampliar ou manter seus públicos? A política para os públicos da cidade, ou seja, para a demanda em potencial existente, deve ser assumida como uma missão coletiva, em que diferentes agentes precisam desenvolver os seus devidos papéis. Portanto, deve vir como produto das conjunções entre poder público, gestores culturais públicos e privados, produtores, donos de casas de espetáculo, empreendedores criativos, pesquisadores, educadores, agentes participantes das cadeias produtivas da cultura, e, fundamentalmente, os próprios públicos. O esforço tem de ser não somente para a construção de um plano integrado, inserido num planejamento estratégico macro para a cidade, mas, em igual relevância, o apoio para que emirjam neste processo planos em menor escala, com os estabelecimentos e agentes a elaborarem também suas es-

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tratégias. Afinal, a questão dos públicos está diretamente ligada à sobrevivência e sustentabilidade dos que fazem o cenário cultural da cidade. Tudo isto prepara o terreno em que gestores e produtores atuarão em seguida, onde a maior missão é a de lançar-se ao mar da diversidade de públicos compreendendo, respeitando e dialogando com suas singularidades, sejam elas geracionais, étnicas, educacionais, estéticas, políticas, econômicas ou sociais. Elaborar políticas para a questão dos públicos é um deslocamento que visa o reequilíbrio de prioridades, o exercício necessário de sair da zona de conforto e do lugarcomum. Neste sentido, é como se fôssemos convocados a deslocarmo-nos do eixo historicamente privilegiado da oferta (criação, produção, distribuição) para o eixo urgente e estruturante da demanda (ampliação de públicos, fruição, acesso e consumo cultural). E, diante dos desafios de erguer políticas voltadas à questão dos públicos, é preciso mantermo-nos cuidadosos, a fim de evitar generalizações quanto aos contornos singulares que cada situação apresenta. Entre manter, ampliar ou renovar os

públicos, são requeridas estratégias distintas. E serão ainda mais distintas quando levados em consideração a amplitude da vida cultural e os elementos que a compõem, visto que as estratégias de uma casa de espetáculos não serão as mesmas de um festival, assim como as de um museu não serão as mesmas de um cinema ou de um arquivo público. Tomando como exemplo alguns poucos equipamentos culturais da cidade, perguntas saltam aos olhos para revelar questões pertinentes aos públicos dos espaços. Que leitura é possível fazer sobre os públicos a partir do livro de frequência da Igreja de São Francisco, um dos maiores patrimônios culturais do Brasil? Quais os impactos positivos e negativos ao território foram trazidos pela reforma do Parque Solón de Lucena, a Lagoa? Há setor específico que monitore e avalie a questão dos públicos do Espaço Cultural José Lins do Rêgo, tendo em vista o enorme desafio de gerir um equipamento com multiespaços, como cinema, sala de concertos, teatro, galeria de arte, etc.? Haveria este setor na Estação Cabo Branco, focado em pesquisar e identificar seus públicos e formular


estratégias direcionadas, com a finalidade de maior assertividade das ações? Esse movimento de escuta do agora, isto é, de leitura do que dizem hoje as ferramentas que possuímos para analisar questões pertinentes aos públicos, permite-nos preparar e programar o que vem num futuro em curto, médio e longo prazo. Dados, indicadores, perfis coletados em pesquisas qualiquantitativas, orientando políticas e ações, estruturando-as institucionalmente e potencializando seus efeitos. Esta deve ser a marca de um perfil contemporâneo de gestão cultural na cidade de João Pessoa, capaz de observar a cidade, ouvir as pessoas, e compreender e antever suas reais demandas. De maneira antecedente e concomitante a tudo isto, duas instâncias são fundamentais para essa construção do desejo de cultura no indivíduo: a casa, instância primeira do seu contato ou não com arte e cultura, o lugar do acesso cultural em domicílio, do acesso a ferramentas e dispositivos de mediação de fluxos culturais; e a escola, ambiente decisivo no despertar pedagógico do gosto, através da educação artística e cultural e da sociabilidade que

se exerce. A casa, a escola, a participação na vida cultural da cidade e o acesso ao conjunto das políticas culturais produzidas são dimensões que se conjugam para uma agenda política capaz de abordar a questão do público de maneira multidisciplinar e intersetorial, produzindo respostas à altura de sua complexidade. Diante disto, pode-se dizer que a questão dos públicos é uma das searas mais complexas do campo cultural. Dificilmente, suas políticas estruturantes virão de respostas fáceis ou que se encerram no curto prazo do tempo de vida de uma gestão governamental. Deverão emergir como desdobramento de um acúmulo coletivo e elaboradas para se consolidarem como políticas de Estado, bem como ação permanente dos equipamentos e produtores culturais em suas estratégias. Neste sentido, é importante que se inaugure um caminho sem volta, que somente se aprofunde e se desenvolva enquanto política fundamental para o desenvolvimento da cidade. Neste percurso, as respostas virão, sob o ritmo, a dinâmica e as identidades da cidade, virão com a cara das pessoas da cidade de João Pessoa.

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Texto

RONALDO MONTE

O FIL 36

Eles tinham um Filho. Cada um, a seu modo, cuidava do menino com todo carinho. Não. Não eram casados, nem moravam juntos. Mas se amavam muito e tinham aquele Filho como selo de um amor que já vinha de longe e prometia ir mais longe ainda. Queriam morar juntos, mas certas circunstâncias impediam. Um deles morava num pequeno apartamento, um quarto que mal dava uma cama e uma sala com uma mesa pequena para as refeições. O pouco que restava era abarrotado com uma prancheta, um cavalete, telas esboçadas e uma estante onde se entulhavam tubos de tintas, lápis, pastéis secos, dezenas de pincéis e papel, muito papel. O mínimo banheiro e a exígua cozinha suportavam o que transbordava da sala. O outro morava com a mãe, uma senhora saudável, num apartamento amplo deixado pelo pai, antigo fiscal da fazenda. Suíte só pra ele, varanda para o mar, comida na hora certa, roupa lavada e passada, carro para ir e voltar do trabalho no Patrimônio Histórico. Ele bem que pensava, de vez em quando, em sair de casa. Mas só em pensar nas lamúrias da mãe – o que te falta nesta casa, o que faço de errado para você querer me

abandonar? –, adiava a decisão para um dia mais propício. O Filho era o embaixador de um na casa do outro. Isto o fazia ainda mais amado. Quando estava no pequeno apartamento, se lambuzava de tintas e de cores. Adorava ficar por ali, rabiscando papéis, borrando uma pequena tela reservada só para ele. Comia cereais pela manhã, mastigava um sanduíche no almoço e saíam no fim de tarde para um passeio e um sorvete. Quem os visse de mãos dadas pelas ruas teria uma visão perfeita da amizade entre pai e filho. O grande apartamento à beira mar era um oásis de penumbra e silêncio. Sua minúscula figura no centro da cama de casal era o ponto para onde convergia toda a devoção de quem morava ali. Os desvelos do cuidado matinal, a água morna para o banho, a loção, o talco, a escova macia a deslizar sobre os poucos cabelos. Adormecia ainda sugando a mamadeira e não via o pai deixar o quarto na ponta dos pés saindo para o trabalho. Se acordasse, teria a segurança dos cuidados da avó, que o acalantaria até que voltasse o pai. Mas a partilha do Filho não bastava para suprir a necessidade que um tinha do outro. Não era devaneio de artista


Ronaldo Monte é poeta, romancista, contista, cronista, com 13 livros publicados, entre eles o poema “Cila”, financiado por edital do FIC da Secult. Doutor em teoria psicanalítica pela UFRJ. Coordenador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental – LABORE, do Espaço Psicanalítico – EPSI, de João Pessoa – PB

LHO querer se mudar para um apartamento de dois quartos, um só para o Filho, com uma sala maior onde pudessem acomodar todo o seu material de desenho e pintura. Já conseguia vender bem os seus quadros e desenhos. Vez por outra ilustrava uns livros para uma editora. Já sobrava alguma coisa para um aluguel maior. E o outro tinha um bom salário, tinha até mesmo um apartamento de três quartos que herdou do pai, podiam muito bem ir viver nele. Mas tinha a mãe e suas lamúrias - o que te falta nesta casa, o que faço de errado para você querer me abandonar? –, tinha o sol à beira mar, a boa comida na hora certa e pior, muito pior, tinha a alergia a tintas. Começou aos poucos, mas foi se agravando, se agravando, até não suportar mais de cinco minutos no pequeno apartamento. Por isso, na hora de pegar ou entregar o filho, sugeria sempre um encontro numa praça ou num shopping. Os encontros íntimos foram gradativamente rareando. No apartamento grande, fora dos olhos da mãe, que desconfiava do caso mas mantinha uma crença de conveniência sobre o teor daquela intimidade. Na casa dos amigos entendidos, sempre sujeitos aos comentários maliciosos dos mal resolvidos.

Um dia, esgotou-se a complacência do artista: só me encontro com você de novo num lugar que seja só nosso. Onde possamos viver juntos, eu, você e o Filho. O próximo encontro foi breve. O artista apareceu de repente sob as luzes do shopping e nem se sentou à mesa do café. Vim apenas para saber onde vamos morar juntos. Se você ainda não decidiu, desista de nós três. O outro sentiu o cheiro de tinta impregnado no corpo do pintor. Entre um espirro e outro, conseguiu perguntar: - E o Filho, porque não trouxe o Filho, ele está bem? - Mais ou menos. Ele está com um pouco de febre. Seguiu-se uma semana de silêncio e tinta escura. A vibração do celular estremeceu a cabeça tombada na prancheta. – Oi, resmungou sonolento. - Você não atende mais minhas ligações… - Acho que a gente não tem mais nada para conversar. - E o Filho, melhorou? - Não. A febre subiu e ele não aguentou. - Hein? - O Filho morreu.

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Foto

MILENA MEDEIROS

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Milena Medeiros é graduanda em Comunicação Social pela UFPB, é fotógrafa na cidade de João Pessoa, há 4 anos, trabalhando na área de produção musical.


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A CULTURA E O C O DESENVOLVIM Texto

JULIO MEDINA

Sonhar o sonho impossível, Sofrer a angústia implacável, Pisar onde os bravos não ousam, Reparar o mal irreparável, Amar um amor casto à distância, Enfrentar o inimigo invencível, Tentar quando as forças se esvaem, Alcançar a estrela inatingível: Essa é a minha busca.

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Miguel de Cervantes, Dom Quixote (1605)

A economia triunfa em todas as partes da vida social. Num ponto do caminho a humanidade errou o caminho. Num ponto do caminho situamos os bois na frente do carro. Num ponto do caminho o dinheiro situa-se como o maior e o melhor objetivo a ser atingido. Num ponto do caminho a cultura foi considerada secundária. Num ponto do caminho o mercado e o estado engoliram a cultura. Num ponto do caminho o fim principal da vida humana é o cresci- Julio Medina mento econômico e não o ésorprofesno curso de Relações desenvolvimento humano. Internacionais da Universidade De fato, a história do Estadual da Paraíba e no de Ministério da Cultura no Mestrado Desenvolvimento GraBrasil mostra esse papel Regional. duado e Doutor Sociologia, errático, nômade e subal- em Universidad de Granada – terno da cultura. No ano Espanha.


CAMINHO PARA MENTO HUMANO de 1953 foi criado o Ministério de Educação e Cultura; no ano de 1985, no governo de José Sarney, foi criado o Ministério da Cultura; no ano de 1990, no governo de Collor de Melo, este Ministério foi transformado em Secretaria da Cultura vinculada à Presidência da República; no ano de 1992, Itamar Franco reverte a situação e a cultura volta a ter status de Ministério; e ainda, no atual governo de Michel Temer, o Ministério é transformado em Secretaria no dia 12 de maio de 2016, mas, e devido à pressão popular, reconstituído como Ministério o dia 23 do mesmo mês. Ou seja, a cultura não é um projeto de Estado e sim de governo. No âmbito internacional, a cultura também é considerada tardiamente como o objetivo do desenvolvimento. Ainda que

a cultura esteja mencionada na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, no seu art. XXII e art. XXVII, reconhecendo o direito de toda pessoa a participar livremente da vida cultural da comunidade, só em 1982 foi celebrada no México a I Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais. Nesta Conferência se relacionou a cultura como uma das dimensões fundamentais do desenvolvimento, em oposição à perspectiva convencional de considerar o desenvolvimento em termos de produção e consumo e suas variáveis quantitativas, sem considerar o desenvolvimento na sua dimensão humana e qualitativa. A partir dessa perspectiva internacional o desenvolvimento procura humanizar-se, introduzindo a qualidade de vida e o bem-estar por meio de novas formas

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de mensuração. Em 1990 o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é proposto pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), introduzindo dimensões como expectativa de vida e a educação junto à clássica distribuição da renda. Ainda que o IDH signifique um passo importante no caminho para superar a onipotência da dimensão econômica na vida social, mensurar a dimensão cultural e seus efeitos sobre o desenvolvimento é uma questão a ser resolvida. Em palavras de Celso Furtado (2012, p. 57) o “sistema de valores, a cultura é da esfera dos fins, e a lógica dos fins escapa ao cálculo econômico em sua versão tradicional”. Devemos lembrar que a proposta do IDH vem de dois autores nascidos na periferia do sistema mundial: Amarthya Sen é de origem indiana e Mahhub ul Haq de origem paquistanesa. Também

devemos lembrar que Celso Furtado nasceu em Pombal – Paraíba, bem longe dos centros do poder no Brasil. Mas não é por acaso que estas três personalidades, dentre outras, iniciam e indicam o caminho para superar os equívocos de situar a economia, e o dinheiro, como objetivos centrais do desenvolvimento humano. Só os indivíduos inconformados com as normas e instituições estabelecidas têm a capacidade de inovar e, é bom destacar, que toda inovação é uma perturbação da ordem, uma irregularidade que deseja inverter a ordem. A inovação sempre vem da periferia, das margens, das fronteiras, dos arrabaldes, dos movimentos sociais alternativos, da clandestinidade e da juventude. Não em vão, no primeiro parágrafo do discurso de toma de posse na Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado declama:


“Chego à vossa ilustre companhia com a tranquila satisfação de ter sido intransigente adversário dessa instituição, naquela fase da vida, um que devemos ser, necessária e obrigatoriamente, contra o assentado e o definitivo, quando a nossa ânsia de construir encontra sua melhor aplicação na tentativa de liquidar, sem dó nem piedade, o que as gerações anteriores conceberam e construíram” (AMADO, 1993, p. 9).

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A inovação, as transformações do sistema sempre vêm das periferias, isto porque, o núcleo duro do sistema sempre é conservador. Um exemplo clássico que reflete o triunfo da economia sobre a cultura é a nomeada crises do petróleo dos anos 70. Em nossas escolas e universidades ensina-se que a crises dos anos 70 foi uma crise do sistema produtivo devido ao aumento do petróleo. Por outro lado, de forma isolada e separada, ensina-se que na década de 60 aconteceu a revolução cultural. Mas a tendência à fragmentação do conhecimento e da informação não revela as conexões entre cultura e economia. Se atendermos a uma análise histórica e holística, a revolução cultural precede à crise do sistema produtivo. Mesmo correndo o risco de uma simplificação, devemos ter em conta que na década dos anos 60 movimentos sociais, vindos das periferias do sistema, questionaram o modelo social em seu conjunto: os movimen-

tos hippies questionaram o modelo de produção e seus impactos ambientais; os movimentos feministas protestaram pelo papeis atribuídos às mulheres na sociedade burguesa; e os movimentos raciais negros questionaram as desigualdades sociais que tinham como base a raça ou cor dos indivíduos. Assim, a má chamada crise do petróleo é uma crise muito mais ampla que a simples subida do preço do petróleo. A crise começa com a revolução cultural dos anos 60 que questionou alguns dos valores fundamentais do modelo de produção a partir de coletivos que se situaram nas margens, nos arrabaldes ou na periferia do sistema. O papel dos movimentos sociais e culturais alternativos é inovar, estabelecer novas conexões; desconstruir o existente e reconstruir o novo; revelar as relações ocultas; transformar o sistema para reduzir desigualdades de gênero, raciais, ambientais, de acesso a recursos básicos como a saúde e a educação, dentre outras.


Em síntese, a função da arte e dos movimentos sociais alternativos é reorientar o caminho da humanidade, deslocar o dinheiro do centro da discussão e situar as mulheres e homens no centro do debate. A inovação é uma tarefa para vagabundos, para marginais, para os que se situam na periferia do sistema. O Carlitos, de Charles Chaplin, é o vagabundo cinematográfico por excelência, homem gentil, educado, mas que cria problemas com as pessoas da alta sociedade. Dom Quixote simboliza o andarilho que sai da cidade medieval, controlada pela igreja e a nobreza, em busca da liberdade, a razão e novos princípios éticos e morais. Só os nômades descobrem outros mundos, outras fronteiras... O sociólogo espanhol Jesús Ibáñez defende que o pensamento criativo “há que semear maus pensamentos nos bem-pensantes, há que assediar as sedes da verdade, do bem, do mal e da beleza. Só os malditos melhoram este mundo”, (1994, p. 212).

Mas como nos adverte o poeta Antonio Machado, “caminhante não há caminho se faz o caminho ao andar”. Assim, o pensamento criativo tem que inovar, desconstruindo e reconstruindo as formas de pensar, e fazer a realidade. Precisamos de políticas criativas, de economias criativas, de territórios criativos, de iniciativas culturais criativas que situem a cultura no meio e, ao mesmo tempo, no fim do caminho. Precisamos de políticas emancipatórias vindas de baixo e da periferia, que nos libertem das atuais estruturas econômicas excludentes e onipotentes; das atuais, porém arcaicas, estruturas políticas que impedem a liberdade e o desenvolvimento humano de criar suas próprias condições para a liberdade. Como o nome desta revista sugere, utilizando um termo vindo de cultura cigana situada histórica e mundialmente nas margens do sistema, precisamos de novas estratégias que reorientem o piriah, ou o caminho, para o desenvolvimento humano.

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MARIA VALÉRIA REZENDE Por

GREGÓRIO MEDEIROS E ANDRÉ RICARDO AGUIAR Produção

SAN VILELA E KENNYA QUEIROZ Transcrição

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GREGÓRIO MEDEIROS , KENNYA QUEIROZ E SAN VILELA


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esconstruindo boa parte dos perfis que existem na internet, Maria Valéria Rezende, escritora e atual ganhadora do Prêmio Jabuti de Literatura, fala sobre sua vida em Santos, sua militância dentro da Juventude Católica e sua produção literária ficcional que traz os invisíveis, enquanto meio de visibilidade. Nascer em Santos mostra uma imensidão de influências, em pleno pós guerra. Como era viver na cidade e como decidiu se tornar escritora? Nasci em meio à guerra. Naquela época, Santos era uma cidade pequena e todos se conheciam. O que tenho certeza é que viver em Santos, em pleno pós guerra era privilégio que poucos tinham. Era o meio do mundo. Por ali passavam portugueses, açorianos, ingleses, japoneses, árabes. Era uma animação só, você conversava com pessoas de todas as línguas. A casa onde morei era um lugar que se frequentava bastante. Minha tia, Maria José Rezende, poeta e jornalista, recebia escritores da cidade que se reuniam na casa da minha avó. Era uma casa com sala muito grande, lugar agradável, perto da praia e, muito

simples, mas acolhedor. Isso me permitiu conviver com muitos escritores. Na minha infância e adolescência, achava normal conviver com a Pagu, com o Cassiano Nunes, além do Plínio Marcos que são figuras importantíssimas na literatura, poesia e audiovisual. Tive oportunidade de conhecer Gilberto Mendes, injustamente pouco conhecido no Brasil, uma figura única! Eu até cheguei a cantar no madrigal música medieval e renascentista. Daí surgiu a poesia concreta, do Décio Pignatari, com a poesia Beba Coca-Cola. Era um escândalo! Gerava estranheza essa música nada tradicional. Meu pai era médico e trabalhava em uma enfermaria de indigentes, assim chamava a Santa Casa na época. Era obrigado a dar alta depois aos pacientes, quando passava suas crises, porque outras

Maria Valéria Rezende é nasceu em 1942, em Santos, SP, onde viveu até os 18 anos. Graduada em Língua e Literatura Francesa, Pedagogia e mestre em Sociologia. Dedicou-se desde os anos 1960 à Educação Popular, em diferentes regiões do Brasil e no exterior, passando com seu trabalho por todos os continentes. Vive na Paraíba desde 1976. Começou a publicar literatura em 2001, com o livro “Vasto Mundo”. Seu romance “O voo da guará vermelha” (Objetiva, 2005) foi publicado em Portugal, em França e teve duas edições em Espanha (espanhol e catalão). Ganhou um Jabuti em 2009, categoria infantil, com “No risco do caracol” (Autêntica, 2008) e em 2013, categoria juvenil, com o romance “Ouro dentro da cabeça" (Autêntica 2012). Escreve ficção, poesia e é também tradutora. Seu romance “Quarenta dias” (Alfaguara 2014) ganhou em 2015 o Jabuti de melhor romance e melhor livro de ficção. Seu livro mais recente é o romance "Outros cantos" (Alfaguara, 2016). A nova versão de Vasto mundo está sendo traduzida para o francês e será publicada no início de 2017 pela editora Anacaona, Paris.

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pessoas esperavam ser atendidas. Como não atendia pacientes particulares no domingo, ele subia o morro de São Bento, lá em Santos, e ia visitar as pessoas. Aos sete anos, quando aprendi a ler, ele dizia - “leve um livrinho de história para as crianças de lá. Porque eles não tem livro e não sabem ler”. Lembro a primeira vez que subi no morro… Não tinha um local para lê as histórias. O que tinha era o cemitério da filosofia. Uma coisa fantástica... Eu descia com a criançada, sentava debaixo das campas, embaixo das árvores, e lia as histórias. Tinha também um pescador que vinha pegar as crianças de canoa, para atravessar a Barra de Santos até a Barra do Góis, um povoado de pescadores. Meu pai sempre dizendo - leve os livrinhos. Era uma alegria só. Ou seja, cresci convivendo com todas as pessoas, de todas as idades, de todas as nacionalidades, de todas as classes sociais. Isso faz uma diferença enorme na vida da gente.

Como se desenvolveu a militância em espaços politizados na juventude?

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Quando terminei o curso normal, por não querer estudar Direito em Santos, fui a São Paulo. Nesse momento, tornei-me militante da Juventude Universitária Católica (JUC), que era o movimento

de ações juvenis de atuação católica, uma vanguarda da igreja de consciência social, que despertou nos anos 50 de maneira muito forte, e que rapidamente evoluiu e faz parte de toda a igreja na América Latina. Tinha uma articulação latino-americana e mundial com uma discussão estimulada devido a uma série de coisas que estavam acontecendo no mundo. Está findada num mundo pós guerra. Na militância dentro da Juventude Universitária Católica (JUC), em São Paulo, com esse pensamento de vanguarda, cresce de uma forma grande. A revolução Cubana já é um outro momento marcante na história. Em 61, uma cruzada de alfabetização de Cuba parou o país inteiro durante um ano. Todos os estudantes vão a campo alfabetizar o povo. Fiz um documentário bastante interessante sobre Paulo Freire e suas experiências. Quando Jânio renunciou e o Jango entra, chama o Paulo Freire para criar o programa nacional de alfabetização (1958). Quem participou de sua equipe foi o pessoal da JUC. Quando eu olho hoje, é claro que a gente articulava o movimento, mas não sabia do futuro. Eu podia aqui passar a tarde contando coisas assim desse tipo me vangloriando de coisas que não é glória minha, apenas aconteceu. Quem viveu esse período,


viveu, ou não se deu conta, mas eu tive sorte de nascer numa família de artistas que era muito aberta. Fui para São Paulo e, depois Paraná, ficar na equipe regional. Entre 1961 a 1964, assumi a equipe nacional. Imaginem como é que a gente viajava. Estava no Uruguai quando houve o golpe de 64, fui à reunião do secretariado latino americano e não pude mais voltar. Fecharam a fronteira e só chegava gente vindo do Brasil. Todo mundo dizia você tá louca. Ainda fiquei três meses zanzando pelo Uruguai, Argentina e Chile, na casa de colegas militantes. Para voltar, fiz uma enorme volta pelo Paraguai, entrando pelo oeste do Paraná. Nem fui pro Rio onde era a sede porque a gente não sabia como estavam as coisas. Nem fui pra casa da minha mãe, porque também seria bem complicado. Naquele momento ainda 64, os bispos ainda tinham condição de tirar a gente da cadeia. As meninas moravam numa república e os rapazes aos montes, num apartamento nas Laranjeiras. Já no convento em 68, quando a coisa ficou feia mesmo, o golpe do golpe, as coisas começaram a complicar. Não era só eu. Tinha toda uma turma que entrou pro convento naquele momento, sobretudo nos dominicanos, alguns nós jesuítas… então os companheiros nossos

que estavam em perigo vinham atrás de nós para ajudá-los.

Em um determinado momento de ditadura militar, com cerceamento de alguns direitos, a senhora passa a exercer uma militância voltada ao popular/social dentro da igreja porém, nas comunidades de base. Como foi esse período de formar a base? Já no Recife, trabalhei três anos montando o secretariado da pastoral da juventude que se desdobrou no movimento popular de juventude de base. Após equipe formada, voltei ao campo com a nomeação do Bispo Dom Marcelo [Carvalheira] para diocese de Guarabira, meu amigo de vários tempos, desde estudante. Fui morar primeiro numa cidade bem pequenininha Pilõezinhos, fiquei ali uns dois ou três anos, depois me mudei pra Guarabira, porque a gente criou o serviço de educação popular (1976-1978). Começou a ser um lugar que vinha gente do mundo inteiro fazer vivências. Aquele menino... o Sílvio Darin, fez um filme documentário chamado A Igreja da Libertação, grande parte dele filmado lá em Guarabira, e eu de assistente de produção. Eles ficaram lá quinze dias e a gente andando... as coisas iam acontecendo. O fotógrafo era o grande Walter Carvalho. Não apareci no filme, me recusei, apareço

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só um minutinho vestindo alguém que tava se preparando. Sem eu perceber eles me pegaram num canto. Guarabira passou a ser referência para quem apoiava e organizava movimentos populares. Em 1988, chegamos a conclusão que era preciso criar uma escola de formação de educadores populares para o Nordeste. Então cria-se a escola de formação Quilombo dos Palmares, e, nesse meio tempo, justamente com a revolução na Guatemala, educadores populares da América Latina eram originários, justamente dos movimentos de juventude da ação católica. Estou aqui sistematizando o pensamento das jovens lideranças dos movimentos de juventude de ação católica da América Latina, que foi dando fruto e criou muitos laços entre nós, desde o meu tempo de faculdade.

E com relação à própria teologia da libertação. Como é que se encara essa relação de ir para base, com um Papa que minimamente tem uma base franciscana, voltar-se para o pobre. Enfim, eu queria que você fizesse essa relação, esse paralelo.

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Ele viveu tudo isso também, tem toda uma história e algumas pessoas ainda dizem que o Papa não reagiu. Mas peraí! Percebo que a situação da igreja era complicada. Essa ambiguidade foi o que

permitiu a igreja proteger muita gente. Se a igreja rompesse essa ambiguidade completamente, o que é que aconteceria? Você poderia ter uma razia, Ela [a igreja] foi o guarda chuva de muita gente, de muita coisa, então hoje chegou lá onde tinha de chegar. Um homem que viveu tudo isso e que veio do terceiro mundo, a primeira vez de um Papa jesuíta. Eu acho que foi uma boa escolha. Ele tem respaldo de uma grande ordem religiosa que está no mundo para interpretar o que ele diz, mas se chama Bergoglio, então provavelmente é filho de imigrantes italianos, então ele é aceitável para os europeus e é um homem esperto, por exemplo, ele não foi morar nos apartamentos pontifícios, foi morar em um hotel, onde mora todo mundo e come lá embaixo no buffet comum, de maneira que ele está mexendo, está mexendo com o Vaticano, está recolocando as coisas no lugar, até onde vai ser possível. Quando você menos espera, as coisas mudam. Porque estamos aqui, tem sempre gente pensando, quando parece que está tudo completamente fechado, não está! Sou otimista, justamente porque já passei por guerras, golpes, etc… eu sou experimentada e nada dura para sempre, nem o bom e nem o mal.

E porque representar os invisíveis, da relação do excluído com


o mundo, que você reflete muito bem na Literatura? Nesse mundo, quando cheguei em João Pessoa, não conhecia ninguém. Ou melhor, só conhecia pobre. Além disso, não ficava muito aqui porque viajava para o Haiti. Aqui era a minha base que eu voltava para fazer relatório, preparava alguma atividade, já voltava para o Timor Leste, ou Maranhão, ou Pará, ou Argentina, para qualquer lugar do mundo. Eu dei três voltas ao mundo sem nunca pagar passagem, e nunca me hospedei em hotel, só na China que botavam a gente nos hotéis, por várias circunstâncias diferentes assim... Bom... não sei falar de outra coisa. Se fosse escrever um romance sobre intelectuais, ou a alta classe média, não sairia nada porque estou tão longe do cotidiano dessa gente. Muito embora, para dizer bem, na verdade já falaram demais, eles não precisam de visibilidade. Tem um texto de Santo Agostinho, meu patrono, no qual diz assim “Olha o bom educador é como alguém que faz um grande amigo visitar pela primeira vez a cidade que ele ama” então, para mim… eu escrevo literatura porque é uma maneira de fazer isso, com meu olhar, e só. As pessoas me perguntam qual era a mensagem que você queria passar? Não quis passar

nenhuma mensagem! Não é um livro de auto-ajuda, nem de romance catequizante. Eu só falo - olhe para isso e pense, ponha-se diante desta situação e não feche os olhos. Pronto! Aí cada um olha e lê uma coisa, eu sempre digo... eu sei o que eu escrevi nas linhas dos meus livros, nas entrelinhas é o leitor quem me diz e cada leitor interpreta do seu jeito. Isso que é interessante e divertido porque, cada vez que eu converso com alguém, muita gente me manda comentário por e-mail que leu no meu livro. O pessoal do grupo Leia Mulheres às vezes, me mandam gravação, discussão e é super interessante aí eu falei: Puxa eu disse isso aí? Eu não tinha me dado conta! Puxando um pouquinho pros contos.... Como passei a minha vida inteira, não só andando pelo mundo e olhando para tudo, usei bem os cinco sentidos. Fui capaz de comer escorpião grelhado na China, lagarta de fogo na África, muita tanajura em Pilõezinhos... tenho vivência de mundo acumulada. Essa experiência vem também dos livros. Para comprar livro, tinha que ir a João Pessoa ou Campina Grande, com uma ou duas livrarias e estoque reduzido. Já ficava aflita porque vivia no interior… Li umas cinco vezes os livros que tinha; cada livro que o Dom Marcelo tinha;

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os livros velhos da biblioteca do Padre Joaquim, já tinha lido tudo, não tinha mais o que ler. Lia os da banca de jornal que tinha a vantagem de trocar. Não tinha muito dinheiro, então o livro mais barato de comprar era pocket book, em inglês. Quando chegava ao Recife, já ia no aeroporto correndo, com meu dinheirinho, e comprava o livro mais grosso... Tenho vários deles! Coisas incríveis como os livros do James Michener, que escreve ‘romanções’ históricos com um montão de informação. Lí até há um tempo atrás, hoje não consigo mais por causa da visão. Não consigo mais segurar um livro de mil páginas por causa da minha artrose mas lia mil páginas por semana. Se provocar eu invento uma história agora. Invento, junto os pedaços e faço. Me dá um tema, é como puxar um cordãozinho, vai trazendo outras coisas grudadas, que é a graça do clube do conto, inclusive quanto mais você faz isso, mais você vai ter facilidade de fazer, ao menos para mim. O clube do conto já tem uma história... não é o clube do contista e, sim, o do conto. Imagina, depois de um mês, aparecer com o seu papelzinho enrolado e se por a escrever e realmente a imaginação é uma rearrumação daquilo que você recebeu e aí é que está, se você não lê, vai escrever o quê?

Em relação à tua família, eu ouvi uma vez um comentário de um irmão teu ... Já era a escritora da próxima geração. Quando jovem, participava de concursos de redação de escolas e depois do município. Sempre ganhava na escola, mas quando chegava na final, era desclassificada. Minha tia, poeta e jornalista, estava sempre no júri e eu ganhava, de consolação, um presente. Não sei o porquê era sempre um dicionário. Eu virei uma colecionadora de dicionários, eu tenho ali, dezenas de dicionários de tudo quanto é língua. Inclusive dicionários que eu não entendo, de uma língua que eu não entendo, para outras línguas que eu não entendo. Mas é uma coisa assim... Uma atração por dicionários que eu sempre tive. Tinha também o tio Arnaldo Vicente de Carvalho, jornalista e escrevia na revista Cruzeiro numa sessão chamada O impossível acontece. Era divertidíssimo… ele catava casos reais, viajava pelo mundo trabalhando. Tinha uma jaqueta daquelas de aviador, cheia de bolsinho. Viajava com a roupa do corpo, as cartas de crédito, pois não havia cartão de crédito; uma câmera fotográfica, Laica, e a roupa do corpo. Chegava no Cairo direto para cobrir o acontecimento, comprava uma muda de roupa, e mandava lavar no hotel. No


dia de ir embora, dava a roupa usada para camareira dar fim e ia embora. Ah! Me mandava ainda um cartão postal, de cada lugar por onde passou, que chegavam muito depois dele. Essa coisa do mundo muito grande, de não ter medo do mundo, isso me foi dado de presente. Então... ele escrevia peças de teatro, contos e mandava imprimir lá na gráfica do Senado e distribuía de graça aquilo ali. Eu cresci achando que escrever livro era uma coisa que acontecia na vida de todo mundo.

Só para concluir as inspirações. Além de reconhecimento sólido no país, você já havia ganhado alguns prêmios, inclusive este último Jabuti. Em relação a sua produção, nota-se muito jovens gostando de sua literatura. Como você encara isso? Me surpreende descobrir que a maioria dos meus leitores são jovens. Deve ser por isso que teve um jornal no Rio de Janeiro que diz assim: “Escritora juvenil derrotou Chico Buarque”. Em todas as notícias que eu ganhei o Jabuti foi assim. Não era sobre eu que ganhei, era sobre as pessoas que perderam. Achei deselegantíssimo, tanto com eles quanto comigo. Fico muito satisfeita pelos jovens me lerem. Os meus melhores amigos, aqueles com quem convivo,

com poucas exceções de amigos da minha idade, a maioria é gente 30 anos mais novos do que eu. Então eu me sinto contente que a meninada me lê, a turma gosta e eu não escrevi para que eles gostassem. Escrevo com sinceridade devido minha vida ter muitos recomeços. Faltavam dois anos para aposentadoria e tive que sair do emprego para assumir a direção da Escola Quilombo dos Palmares pois o estatuto proibia que funcionário fosse diretor geral. Fiquei desempregada. Imagina, quem vai dar um emprego a uma pessoa de cinquenta e oito anos que não tinha currículo vitae? Descobri, então, que passando para o mestrado tinha uma bolsa. Tive que articular o pessoal lá do Canadá, do Timor, do Haiti para que me enviasse uma carta dizendo que tinha trabalhado, realizado palestras que nem me lembrava mais. É uma dificuldade uma pessoa sem carreira. Eu acho engraçado quando fala “sua carreira”. Como, que carreira? Eu não tenho carreira. A carreira quando a pessoa começa uma coisa com sessenta anos não é mais carreira, é “devagarim”. Meus livros saem dessa necessidade de dizer “olha para isso”. Em relação ao livro “Quarenta Dias”, levou dez anos cozinhando na minha cabeça. Escrever ficção você toma um prejuízo

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danado, tem que ter fonte de renda. Como não tinha, fazia tradução, no entanto, é um serviço prestado. Entregou, pagou, acabou. Havia começado os romances antes, idealizando lá no Clube do Conto, só. Você entra em outro mundo, não se pode ficar entrando e saindo. Aí, em uma noite a faxineira daqui de casa me ligou. O marido dela sofreu um acidente de moto e estava no Hospital de Trauma. Quando cheguei lá, conversei bastante com todas as mulheres. Elas abriam mão de suas vidas e ficavam aguardando informações de seus filhos, maridos ou namorados, o que fosse lá, esfaqueado, baleado, porque eram pobres e só podiam ir para lá. Cheguei por volta das dez horas da noite. Aí pronto, fiquei quarenta e oito horas sem voltar para casa, ajudando essas mulheres. Até voltei para casa no mesmo dia, com duas que eu trouxe para tomar banho, trocar de roupa e comer alguma coisa aqui em casa. Quando, nesse processo, eu acabei voltando para casa depois de quarenta e oito horas, já que meu cartãozinho da Caixa Econômica não saia mais um tostão e não tinha nem gasolina no carro, fiquei parada no meio da rua sem gasolina. O que quero dizer é que passei quarenta e oito horas andando com essas mulheres e fui descobrindo que nessa cidade, que pensava conhecer tão

bem, existem outros mundos invisíveis. Esse negócio começou a mexer comigo... Ficou na minha cabeça. Primeiro a sensação que eu fiquei quarenta e oito horas ali, quarenta horas, sei lá, mas que podia ter ficado quarenta dias, quarenta anos, porque aquele povo continua lá precisando de ajuda, mas eu não tinha condições de fazer isso. Me mudar para o Trauma? E nem tinha condições de encher o tanque tantas vezes seria preciso. Fiquei como se estivesse em dívida com aquelas mulheres. Precisava dizer que isso existe e, o jeito melhor de dizer era escrever um romance. Eu já tinha “O Vôo da Guará Vermelha” que fez bastante sucesso, já tinha um caminho, e foi finalista de prêmio, já estava traduzido na França e Espanha. Tinha uma repercussão, mas que não eram milhares de leitores. A crítica era favorável e a ideia de que escrever um romance seria uma maneira de dizer “olha para isto”. Demorei muito porque eu estava traduzindo. É dureza essa vida. Escrevia outros romances, mas parava no meio. Quando uma ideia me pega, sou capaz, de ficar semanas sem dormir para não perder aquela voz, aquele narrador, aquele personagem. Escrevia feito uma doida, quarenta, cinquenta páginas e deixava lá, guardadinho. Então, tinha quatro romances inacabados, que eram


“Quarenta Dias”, os “Outros Cantos”, “A Carta À Uma Rainha Louca” que ainda não acabei. Adoro histórias de famílias. Não há uma família que não tenha uma história escabrosa para contar. Seja de um membro da família que sumiu e está combinado de não se falar nisso, mas às vezes as pessoas acabam contando e eu peço – Você me dá essa história? Juro que ninguém vai descobrir que é da sua família, mas que é impressionante Tenho um romance ainda com nome provisório “O Fotógrafo” que será inspirado no meu avô. Ele era fotógrafo ambulante no interior de São Paulo e Minas, entre 1915 e 1920. Tenho enorme vontade de fazer um romance do fotógrafo, que sai pelo mundo fotografando e descobrindo as histórias, porque o meu avô, era um fotógrafo especial, além de um grande contador de histórias. Um cara muito interessante, um artista. Aí pronto, quando abriu concurso de financiamento para escritores da Petrobras, fui selecionada. Assim, pude parar de traduzir e acabei o “Quarenta Dias” e “Outros Cantos”. Para conceber “Quarenta Dias”, queria uma cidade maior que João Pessoa para fazer a experiência de entrar em todas as frestas, rachaduras e buracos da cidade. Com o projeto “Expresso dos Amores”, me propuseram que eu fosse passar 15 dias em Porto Ale-

gre. Mesmo não dando certo o projeto, sai de férias e fui encontrar algumas irmãs que me deram apoio na congregação. Chegando em Porto Alegre fui conhecer a cidade de ponta a ponta. Fiz um sensacional roteiro para eu percorrer as frestas, as rachaduras da cidade. Nesse meio tempo, tive contatos com pessoas que procuravam gente sumida. E também, com as mulheres da minha geração, que criaram os filhos com todo sacrifício, agora aposentadas, finalmente poderiam fazer aquilo que elas adiaram toda uma vida, se defrontam com o fato de serem obrigadas a criarem seus netos. Entendi muito bem isso porque começar uma vida nova é revitalizante. Quando eu nasci a expectativa de vida era de sessenta anos. Eu nasci para morrer aos sessenta e ao invés de morrer, virei escritora. Comecei a perceber que nem todo mundo podia, porque os filhos estavam obrigando as mães a dizer – Oh, sua vida acabou, agora cuide do meu filho. Então juntou essas três coisas de gente sumida e fez assim “clack, clack, clack”. Diante disso, fui a Porto Alegre experimentar para ver como é. Como é que eu fiz para entrar em todo lugar, em todo canto e falar com todo mundo? Eu perguntava para todo mundo e o personagem eu inventei, que é a mãe do paraibano que foi trabalhar...

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YRONI RONI R O N I


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Thayroni Araújo Arruda, nascido em Campina Grande na Paraíba, teve o seu primeiro contato com a cultura “urbana” ainda na infância quando morava na cidade do Recife. Voltando a cidade natal, Thayroni Arruda ingressou na UFCG como estudante de Ciências Sociais e destacou-se como um dos pioneiros da street-art na cidade de Campina Grande. Unindo sua experiência com a arte urbana e sua formação em sociologia, ele desenvolveu projetos de inclusão social para jovens em situação de risco, utilizando o graffiti como ferramenta pedagógica. Trabalha no Centro estadual de Arte – CEARTE – desenvolvendo projetos ligados ao ensino e inclusão social através da arte. Atualmente, encontra-se de licença, realizando um doutorado em Antropologia social na cidade de Buenos Aires na Argentina, onde vive.


Portas, janelas, restos de madeira de demolição, colagem e graffiti. O trabalho do artista urbano e doutorando em Antropologia social Thayroni Arruda, destaca-se na produção e sobreposição de materiais reaproveitados e o graffiti criando um equilíbrio entre a matéria bruta e traços, detalhadamente pintados, ingênuos de seus personagens.

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TOM ZÉ E A ARTE DE SE PARIR

Texto

LAURITA DIAS

Naquele mundão o falar da gente assegura na mansa doçura outra cosmovisão

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(Marcha-enredo da creche tropical)


N

o ano 36 do século passado, Irará, pequena cidade do Recôncavo Baiano, pariu Tom Zé ao mundo. Sim, é justo atribuir a cria ao lugar, que deu-lhe as primeiras e decisivas referências para as expressões estéticas que o cantor, compositor, performer, arranjador e escritor vem desenhando desde 1968, quando começou a emprestar sua genialidade aos nossos sentidos a partir do lançamento do primeiro disco. Oitenta é um número graúdo para contar os anos. Sobretudo para um artista que escolheu uma via de expressão longe das convencionalidades, prezando por chacoalhar o cognitivo das pessoas, em detrimento de se forjar mais um que apenas faz música popular sofisticada. O ambiente essencialmente narrativo de Irará, segundo ele uma Idade Média nua e crua, de conhecimento fundado e perpetuado nas tradições orais, parece ser sempre o ponto de partida para sua criação artística, mesmo quando somada uma rigorosa formação na excepcional Universidade de Música da Bahia, na qual foi aprovado em primeiro lugar. O cotiLaurita Dias é historiadora, atua na diano, gatilho disparador Educação de Jovens e Adultos para sua arte, garante um e tem mestrado em Formação diálogo constante com seu de Professores. Poesia, Música, tempo. Amor e a Educação para a autonomia Aqui se trata, e é bom lhe botam na Vida com mais que o leitor não fique motivo.

desavisado, de um poderoso choque de concepções de mundo onde temos, por um lado, o universo cartesiano-aristotélico, da objetividade, das coisas estabelecidas, de regras que ditam comportamentos e padrões. Lugar onde se encontra a Razão moderna universalizante, o método de Descartes e o cientificismo nele pautado. E por outra via temos o conhecimento subjetivo, narrativo, da oralidade, aberto, não linear, pré-racional. Uma espécie de saber genuíno. Que é e inventa-se, mas não cabe nas fórmulas. Herança da cultura moçárabe, bandeiras que chegaram aos sertões e que lá na minha Monte Horebe, por exemplo, se perpetua nas figuras de Dona Ritinha rezadeira, do violeiro Levi Bezerra, de perguntar a Seu Antônio quanto mede uma corda e ele responder: “- é meu tamanho mais duas braça”. Colocada nos mapas criativos de Tom Zé, essa expressão outra de conhecimento que não a aristotélica, faiscou-se com o extremo domínio da técnica. Somada a uma conexão com cada tempo-presente, vem resultando uma vanguarda dos anos 60 até hoje e além. Desse modo, o artista, a cada desafiar-se, revela algo esteticamente novo, absolutamente original. Invencionice que pare palavras, instrumentos, modos de fazer música. Bendizer uma teimo-

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sia. Diz ele que é dessa maneira, na teimosia, que o nordestino analfabeto é um cientista. E esse é aquele homem descrito n’Os Sertões, que Tom Zé menino e em estado de êxtase, do choro aos arrepios, cara inchada de emoção, se afobava para disfarçar arrebatamento ao escutar as pisadas de sua mãe no assoalho, caminhando em direção ao seu quarto, ao mesmo instante em que, escravo daquelas páginas em sequência, tomava um choque ao compreender que era o homem do balcão da loja de seu pai ali descrito por Euclides da Cunha. Note-se que até aqui não se falou em Tropicália. Não à toa. É que Tom Zé já o era antes dela. Estávamos no Brasil da Bossa Nova, dos rasgos líricos bem arranjados, do nacionalismo, de uma música brasileiramente pura, medida, calculada e eivada de técnicas. Cartesiana, portanto. Não era de se surpreender a resistência de muitos ante guitarras elétricas e a influência do próprio rock internacional para o que se produzira musicalmente no Brasil. A Tropicália, por seu turno, foi um movimento artístico que, em vários planos do horizonte cultural brasileiro, congregou música, literatura, teatro, cinema, artes plásticas. Por assim dizer narrativa, ela não apenas não negou a presença marcante de elementos externos como a psicodelia, mas conjugou e equacionou o que se

apresentava de novo, com o desejo de renovação somado ao profundo espírito de liberdade que se tinha em âmbito individual. A um só tempo, no entanto, havia que se conviver com uma profunda repressão no campo social e coletivo, sob a égide da Ditadura Militar no Brasil. Talvez caiamos na extemporaneidade, mas causa no mínimo estranheza lembrar que no ano de 1967, com o slogan “Defender O Que É Nosso”, houve passeata da MPB contra a guitarra elétrica pelas ruas de São Paulo. Foi nesse mesmo ano que a Tropicália pôs-se de pé enquanto movimento de convergência de várias expressões artísticas, de inovações estéticas e comportamentais radicais, mas também com um viés social e político que deu a tônica em muito de seu corpo, sobretudo no campo da música. No ano seguinte, em 1968, Tom Zé ganhou o Festival da Record com a música São São Paulo e também integrou o repertório do simbólico disco Tropicalia ou Panis et Circencis​. Mas o fato é que ele não caminhou os passos da Tropicália. Não se continuou nela. Ela não continuou o que se propôs ser. No Documentário Fabricando Tom Zé​,


Caetano Veloso afirma que o gajo de Irará realizou as obras mais ambiciosas no sentido de caracterizar o movimento, ficando com as questões centrais, enquanto o próprio Caetano e os demais partiram para algo descolado do projeto inicial. Nas palavras de Neusa, sua companheira: “O Tom Zé já fazia um tipo de canção que não tinha abrigo na época, não tinha uma ficha classificatória (...) aí veio o Tropicalismo falando sobre modernidade, sobre cotidiano, assimilando linguagens. Ele já tava fazendo isso e ficou sob esse guarda-chuva, sob esse ponto de ônibus, sob esse abrigo do Tropicalismo um certo tempo e isso continua muito na linguagem dele. O Tropicalismo passou e pegou o Tom Zé no que ele já estava fazendo, por isso ele pode ser chamado de tropicalista. Mas é isso mesmo? Não é? Não sei. Isso é coisa pra críticos que fazem esse tipo de divisões classificatórias. É coisa para daqui meio século, por aí”. De modo que não era exatamente errado que ele não seguisse com aquele grupo, afirma o editor e músico Arthur Nestrovski, no mesmo documentário. No entanto, apesar de se afastarem da natureza efervescente e vanguardista do movimento, Gilberto Gil, Caetano e os demais tropicalistas a carregaram consigo como que

debaixo da barra da saia, ou seguiram debaixo da barra de sua saia, colhendo as honras que couberam ao movimento, apesar de livres do projeto inicial. Se o disco Araçá Azul, com canções de Caetano e arranjos de Rogério Duprat, lançado em 1972, foi sucesso de crítica por trazer possibilidades até então inexploradas, que vão de sons aleatórios de gravações de rua até a fusão de canções, expressando um marco no experimentalismo da música tropicalista, o que dizer dos discos de Tom Zé? Em suas próprias palavras, foi nessa mesma década de 70 que sua criação musical assumiu uma posição apocalíptica e radical, em detrimento de criar uma música popular apenas sofisticada. São desse decênio discos como Todos Os Olhos ​ e Estudando O Samba que, se mais tarde aclamados pela crítica, foram completamente incompreendidos ao seu tempo, colocando-o numa situação de ostracismo enquanto os demais tropicalistas seguiram com as expressões mais livres e, claro, mais comerciais.

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Tom Zé desalinhou-se mas continuou na vanguarda, debaixo ou não do véu da Tropicália, pela própria natureza de sua criação. Nesse caso, é de se pensar se quem partiu não foi a ferrovia, já que Tom Zé continuou inaugurando lugares, num movimento de ascensão estética em conexão permanente com sua raiz, dialogando cada vez mais com a semiótica, com o modo de percepção de seu público, na provocação do cognitivo. O indispensável é nunca perder de vista que mesmo chegando nos lugares criativos mais sofisticados, o que marca a diferença de Tom Zé dos demais tropicalistas é justamente manter vivo, pulsante e corporificado em si, como perene lugar criativo, um caldeirão de memórias afetivas do Recôncavo, aquele universo narrativo repleto de oralidade, da sabedoria que se afirma e se reinventa. Seguiu somando às memórias o estranho e experimental, onde palavras, entonações e fisionomias ganhavam cada vez mais sentido. Cabe aqui o reconhecimento de um mestre. O depoimento do maestro Hans Joachim Koellreutter, que foi seu professor, registrado no documentário Tom Zé, ou Quem Irá Colocar Uma Dinamite na Cabeça do Século?​, após a audição do disco Estudando O Samba​:

“Para mim ele é o representante de um novo pensamento cujas características talvez ainda não conheçamos. Alguma coisa que está prestes a chegar. Em primeiro lugar desenvolve um estilo muito próprio, isso para mim é um critério importante de um compositor. Realmente algo de novo que funde todas as características, pode-se dizer, que ultimamente surgiram na música. Por exemplo a superação de certos dualismos como consonância e dissonância, belo e feio. Principalmente também um novo conceito de tempo. O tempo que existe nesta música ainda porque é a característica do samba, mas que no fundo influente é um tempo que muda constantemente e transforma todos os outros parâmetros de acordo com este conceito de tempo que eu chamo um tempo quadrimensional, que não é mais o tempo de relógio rigoroso, mas é mais emocional. São acontecimentos musicais acausais. A gente sente uma fluência livre e emocional em tudo isso que ocorre na partitura. Eu sinto isso. E senti isso também. Eu fico muito impressionado com isso, fiquei arrepiado com a música que ouvi ontem. E para ser franco, não dormi a noite toda por causa da música TOC”.


Mais uma vez, há uma espécie de desconstrução do cartesiano e aristotélico, a partir do choque com a referência subjetiva e narrativa, intrínseca ao seu próprio ser, o que leva a uma sonoridade extremamente inovadora e sofisticada. Mas Tom Zé prefere dizer que sua música não é mais sofisticada, e sim mais deficiente:

“O que me salvou é que sou um péssimo cantor. Vocês não podem imaginar como é estreito o caminho entre o piano e a enceradeira quando se é péssimo músico. Aí como ninguém toca enceradeira, eu me tornei único”. No entanto, não se trata de buscar sintaxes aleatoriamente. Sua sonoridade não é linear, mas ele tem muita clareza de onde deseja chegar. Trata-se de inserir alma, mas regada a um senso de crítica e de organização extremamente rigoroso, quase que unindo fé e conhecimento, como ele definiria a Tropicália anos depois,

na faixa inaugural do disco Tropicália Lixo Lógico​. Por ironia, foi exatamente o destempero de fazer uma música hoje tida por genial, mas à época estranhíssima, que o colocou no ostracismo. Atravessou esse tempo batendo nos próprios limites: “eu fiquei doente, triste, fudido, invejoso, filho da puta, desgraçado. Aí essa doença veio pro estômago, intestino. Em 1985 eu tava tão mal que pensei que ía morrer. Eu levantava pra enganar Neusa, num tinha energia pra levantar um pé. Bicho, não ter energia é uma experiência fantástica. Não ter a energia prá suspender uma mão”, relata no documentário Fabricando​. Foi o disco Estudando o Samba, aquele que tirou o sono do maestro e ex professor de Tom Zé, H.J. Koellreutter, que fisgou os ouvidos de David Byrne no final da década de 80, após o cruel recreio no esquecimento. Mui respeitado mundialmente, o multiartista, ex-Talking Heads, em pesquisas sobre samba, deparouse com o disco e quis saber quem era aquele artista que o Brasil não conhecia. Veio conhecer o criador do que ele percebeu como experimentação radical e em tom de brincadeira.

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Percebendo também a imensa inovação intelectual diante de si, logo lançou a obra de Tom Zé nos Estados Unidos, com total sucesso de crítica e público. Reconhecida e apontada a singularidade de sua genialidade, o Brasil abriu-se para Tom Zé, mas por muito pouco ele não voltou à Irará para gerenciar um posto de gasolina da família, ante a dureza de sobreviver em São Paulo com a carreira estacionada, à deriva. O fato é que a coletânea Massive Hits The Best of Tom Zé​, lançada por Byrne, foi o primeiro disco de música brasileira a ficar entre os mais importantes da década nos Estados Unidos, conseguindo mostrar uma outra face da musicalidade do Brasil a pessoas que, ainda naquele tempo, conheciam somente a Bossa Nova. Do muito a se dizer sobre a década de 90 e o início dos anos 2000, é imprescindível mencionar o disco Estudando a Bossa (não deixe de ver um texto sobre a obra escrito pelo Maestro Júlio Medaglia), o instrumental Danç-ÊhSá​, o Com Defeito De Fabricação, o Imprensa Cantada, ​o No Jardim da

Política - c​ om sua “leve cor de documento” e com “a voz crua procurando o porto dos bordões lá onde se erguiam as canções desprotegidas em sua nudez”, conforme texto de apresentação no site do artista. Dizer também do DVD O Pirulito Da Ciência e das parcerias nas trilhas sonoras Parabelo e Santagustin para o Grupo Corpo, que recentemente apresentou-se com a música xique-xique no encerramento das Olimpíadas no Brasil. Esses registros, e toda sua obra, são verdadeiros documentários sonoros, termo que tomo emprestado do maestro Medaglia. Dois dos documentários sobre o artista já foram referidos ao longo desse texto: Tom Zé, ou Quem Irá Colocar Uma Dinamite na Cabeça do Século?​, de Carla Gallo (2000), Fabricando Tom Zé​, de Décio Matos Junior (2006). Tem também o mais recente Tom Zé – Astronauta Libertado​, por Igor Iglesias (2009), que foi concebido a partir de uma oficina de experimentação musical que ele ministrou em Astúrias, na Espanha. Em 2011 Tom Zé pariu o Tropicália Lixo Lógico​, para amarrar os pensamentos sugeridos em registros já de anos. Fazia tempo o escutávamos, em entrevistas, falar de analfatótes - os analfabetos de Aristóteles. O disco veio bagunçar as lógicas estabelecidas, trazendo vivências, identidades e raízes “preceptoras babás” profundas, para contrapor consensos e traçar um desenho


também profundo da Tropicália. Uma riqueza os suportes de sua expressão, da representação de seu pensamento e de suas experiências de conhecimento. Isso tudo nos provoca muita identidade, sempre naquele limiar entre o que é música ou ruído, dando um sentido de universalidade, para além de idiomas, de lugares pré-determinados, de soluções fáceis, de caixinhas etiquetadas. Uma genialidade meio inalcançável para a liquidez desses tempos. Mais que isso, o disco representa uma conexão profunda com o choque heurístico de sua natureza narrativa com o extremo domínio das técnicas cartesianas. Respaldado por estudos que vão da mitologia criativa, passando pela filosofia, pela história, psicologia, até a neurologia, e por autores como Euclides da Cunha, Pierce, Paulo Prado à Sérgio Buarque de Holanda, ele explica o surgimento da Tropicália a partir de uma série de confluências que apontam quão

decisivo foi o contato dos Tropicalistas com a cultura de oralidade antes de conhecerem o saber aristotélico. Diz no próprio encarte do disco que não é exato atribuir o surgimento do movimento apenas à poesia concreta de Oswald de Andrade e ao rock internacional, sendo, estes sim, parte do gatilho disparador para seu surgimento. Que Gil, Caetano e todos da “creche tropical” devem muito ao que ele chama de preceptores babás, herança moçárabe que no Recôncavo Baiano se revelou pelos cantadores de viola, pela dança dramática “chegança”, pelo cancioneiro popular urbano, pelo cantador nordestino. Este foi o insumo do Lixo Lógico que fez a Tropicália. Apenas aos 6 ou 7 anos, na escola, é que as crianças tinham contato com a organização do pensamento ocidental promovido por Aristóteles. Essas conexões, que podem ser melhor descritas noutro momento, fazem compreender a natureza profunda da arte de Tom Zé. Em mais um movimento de reinvenção, reafirmando a ligação com suas memórias afetivas, que não são lineares, mas recompostas numa espécie de origami, Tom Zé está lançando em 2016 o Canções Eróticas De Ninar - U ​ rgência Didática.

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Trata-se de um disco permeado de sua percepção sobre sexo na infância e juventude, mas com o cuidado de não reproduzir, com discursos agressivos, opressões sofridas pelas mulheres. Aliás, o ​disco Estudando o Pagode - N ​ a Opereta Segregamulher e Amor, de 2005, já trazia uma denúncia inflamada, mas também bem humorada, da segregação imposta à mulher na sociedade, das violências às quais estamos expostas. Importante pontuar que este texto não trata da crítica social muitas vezes presente em sua obra, que como já foi dito, está em diálogo permanente com seu tempo, sendo esta uma agenda para outra incursão. Tom Zé esteve em João Pessoa para uma apresentação em agosto desse ano de 2016 e, generosamente, aceitou uma conversa sobre a influência das tradições orais em sua música. Foi de uma riqueza ímpar juntar pessoas que partilham dos universos de resistência (que ele carinhosamente denominou de grupo Faísca) e têm identidade provocada por saberes genuínos, sertanejos, fora de padrões. São esses também os lugares afetivos de Guimarães Rosa, a poesia de Manoel de Barros, a

linguagem do cancioneiro de Elomar, e o juízo ligeiro e noutra órbita, presente na música de Totonho. Lugares que representam esse universo narrativo cujo eixo de perpetuação da cultura é a oralidade, tão cara para a arte de Tom Zé. Aqui o seguimos sentindo como o não-padrão, reinvenção, como a conexão com a gente brasilis e sua unimultiplicidade. Uma antropofagia de faminto, assimetria escolhida, tal qual artilheiro habilidoso que, diante do goleiro desarmado, entende que fazer o gol é fácil, mas a interessância é acertar a trave, como diz o Cabra de Monteiro. É a busca do inusitado, do caminho torto. Quando menciona os piores buracos nos quais já esteve, Tom Zé diz que “é à meia-noite que o dia começa. Ou é ao meio-dia que a noite começa”. Isso não deixa de ser uma inspiração profunda, nesses tempos de retrocesso que o Brasil vive, sobretudo para quem desalinha do establishment e segue teimando e tirando faísca, provocando luz mínima em seus micro-universos. Já Tom Zé é labareda. Em tempos sombrios, pensar que a felicidade pode, já já, desabar sobre nós, depois que acordarmos, é também um alento.


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SAULO MENDONÇA Haikai de

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A TINTA AZUL ESCREVEU NO UM BEIJO ESF


L, PERFUMADA O PAPEL FEROGRÁFICO. 73





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