Tertúlia

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ALEXANDRA MAIA

T E R ANA KEMPER

ANDRÉ TARTARINI

CAROLINA NEVES

T Ú J U L I O S I LV E I R A

RODRIGO VIANA

L I A VERA ROCHA

ZÉ McGILL



TertĂşlia


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ALEXANDRA MAIA ANA KEMPER ANDRÉ TARTARINI CAROLINA NEVES

T E R T Ú L I A J U L I O S I LV E I R A RODRIGO VIANA VERA ROCHA ZÉ McGILL



9 “Texto com um abraço dentro dele” 11 Tertúlia 23 No nosso táxi éramos três. Ção, Chimbó e eu. 31 Olho no olho 37 O Dinei 39 Sono 41 Um bicho secreto 49 Putaria para fins de reprodução 51 Duas semanas 57 A soma dos dias 59 Portões celestiais 63 Soraya, 16 65 Ausências 75 Carne moída


83 Ai, se pega no olho! 85 Café com leite 87 Xico caiu no mar 89 Crônica 91 O bilhete 95 Castanho 101 Discromatopsia 115 Duas mortes 117 Alguns fragmentos, que talvez somem uns instantâneos 119 Corpo-coisa 121 A verdade, esta mitômana (Paulo Mendes Campos) 123 Pés


Tertúlia Acepções substantivo feminino 1 agrupamento, reunião de parentes ou amigos 2 (1881) palestra literária 3 pequena agremiação literária, menor do que as academias e arcádias E o primo do Houaiss, o Aurélio, exemplifica: “de regresso às reuniões de quinta-feira no habitáculo desarrumado dos ficcionistas[…] Naturalmente, nessas tertúlias,[…] os censores à Pontmartin e Planche eram desancados.” (Agripino Grieco, Estrangeiros) — Morte aos censores de Pontmartin e Planche! Vida longa ao nosso habitáculo desarrumado!



“Texto com um abraço dentro dele”

No dia 25 recebi um email do Julio dizendo seguinte: não se é (bom) professor impunemente. O pessoal da Tertúlia fez um livro e gostaria de convidá-lo para prefaciar. Ou orelhar. Ou epigrafar. Qualquer coisa.

Eu que nem costumo prefaciar, eu que nem sei bem “orelhar”… Mas eis-me sentado, em busca das palavras que vão de encontro ao desafio. Na realidade, o material é bom. Muito bom. Há pessoas que a gente lê com a confiança de vir a encontrar um bom texto. Este grupo de pessoas une isso às verdades internas, ao ritmo solto, a uma criatividade que se veste de estéticas muito arejadas. Escrever, no fundo, talvez não passe de seguirmos uma espécie de instinto. A vontade de contar. A necessidade de registrar. Contos, pensamentos, emails, recados, outros formatos que as “tertúlias” encontram para celebrar o encontro humano. Se fiz parte de algum início de algum lugar desta aventura, fico satisfeito. Chamam-me, às vezes (e até hoje), muito delicadamente, “professor” (alguns) e “mestre”, outros. Se há coisa que não existe é “ensinar a escrever”. Disponho-me, na vida, a partilhar momentos, exercícios, lugares de provocar a sensibilidade a ver se ela nos dá algo em troca. Apenas isso. Algo que nos faça crescer, algo que nos faça expressar. 9


Penso que esta reunião de momentos-escritos é uma dessas celebrações, onde as urgências, as amizades, as permutas, são aqui entregues em formato de livro. O ganho é muito esse: há que ter coragem para se mostrar assim, em estado de nudez literária. Íntimo, dizia um amigo meu, não é mostrar partes do corpo. Íntimo mesmo é mostrar, seja em que formato for, o que nos vai na alma. Outro amigo tinha ciúmes das palavras que saíam da boca dos outros, como se muitas delas fossem apenas dele, ou se, saída da boca de outrém, determinada palavra praticasse assim um acto de verdadeira traição. Este texto é, portanto, um abraço de parabéns. Pelos (vossos) textos, híbridos, maliciosos, divertidos, humanos e literários; e pela cadência humana, que fica lá perto de um lugar de sinceridade e arejamento. Há que continuar, dizem os mais-velhos, em busca do sonho – ele anda escondido de nós porque se quer em busca, porque se pensa sempre novo, especial e adornado de futuros… “A vida é feita de pequenos nadas” (segundo a canção de Sérgio Godinho); nós também. A literatura também. Pequenos nadas que, descobertos, dão tom às cores e brilho aos olhos. Continuem perseguindo todos os pequenos nadas, tertuliando, abraçando, sorrindo — e escrevendo. A vida é só celebração, afinal… Obrigado então. E parabéns pela coragem de escrever – e dar a conhecer. Um kandandu,

Ondjaki.

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Tertúlia

What’s he building in there? What the hell is he building in there? He has subscriptions to those magazines… He never waves when he goes by. He’s hiding something from the rest of us… He’s all to himself… I think I know why… He took down the tire swing from the Peppertree. He has no children of his own you see… He has no dog and he has no friends and his lawn is dying… And what about all those packages he sends. What’s he building in there? With that hook light on the stairs. What’s he building in there? I’ll tell you one thing: He’s not building a playhouse for the children. What’s he building in there?

“What’s he building”, Tom Waits

Passadas as primeiras semanas, decidimos nos reunir na casa da Sra. Wittman para uma deliberação informal a respeito de nosso misterioso e incivil vizinho, o Sr. Schwytzestein, ou “Stein” — conforme referimo-nos a ele, atualmente. Estávamos todos lá, exceção feita a Jack Gunther, morador da última casa da nossa rua. Jack reprovava abertamente nossas investigações e conjecturas, chegando mesmo a acusar-nos de “desocupados e petulantes”. Tinha problemas com a bebida. Mas, afora Jack, estávamos todos reunidos naquela noite invernal de meio de semana. Éramos nove, ao todo, 11


se não contabilizarmos a presença de Chelsea, a cadela da anfitriã. Lá fora, a neve caía macia e muda sobre a calçada, e o frio era sugestivo para confabulações. Nossa rua comportava oito casas grandes, quatro de cada lado do asfalto. Era uma típica rua sem saída dos subúrbios norte-americanos, onde famílias de classe média se empenhavam em manter as aparências, a começar pelos jardins. No verão e na primavera, a competição beirava o ridículo: adultos e crianças trabalhavam regando a grama, podando flores, lavando a pista de entrada das garagens e, quando parecia não restar o que fazer para vencer a concorrência, apelava-se para as caixas de correio, que eram enfeitadas e pintadas com as cores da nossa pátria. A maioria dos moradores vivia ali havia mais de uma década, a não ser pelo novo e enigmático vizinho, e Doris, uma viúva de setenta e poucos anos que há três viera do Wisconsin, após a morte do marido. Diziam que sofria de demência. Doris era minha vizinha de porta e sua simpatia me conquistou de imediato. Naquela noite, bati à sua porta imaginando que estaria pronta para sair, mas ela me recebeu vestindo um pijama listrado, com a TV ligada no último volume e um copo de chocolate quente na mão. Ela não se lembrava de nossa reunião, marcada na véspera, e demorou-se para vestir o sobretudo e encontrar as luvas e o cachecol. Chegamos atrasados. A Sra. Wittman serviu o chá acompanhado de bolinhos de canela, deliciosos. Ela costumava presentear os amigos com fitas de áudio da Bíblia no Natal e, também viúva, vivia ar-

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rumando desculpas para receber-nos em sua casa. Da janela de sua sala de estar era possível enxergar a luz azul de algum programa de TV no andar de cima da casa de Stein. Walter, o mais alto e obeso entre nós, inaugurou a discussão, falando pausadamente enquanto mastigava um bolinho de canela. — Ontem… Escutei um som agudo vindo de lá. Acho que ele estava martelando pregos num chão de madeira. E eu poderia jurar que escutei alguém gemendo baixinho. — Tem certeza, Walter? Isto talvez fosse o suficiente para chamarmos a polícia — sugeriu Howard, imediatamente apoiado pela esposa, Sarah. Howard e Sarah Robertson formavam um casal apático. Ele era gerente de uma loja de departamentos, e ela, dona de casa. Falavam pouco e suas opiniões raramente causavam algum impacto sobre o grupo. Sabendo disso, contentavam-se acatando e apoiando a maioria de nossas decisões. Ao lado deles, no sofá, estava Roy McIntyre, uma espécie de líder intelectual entre os nossos. Aos sessenta e cinco anos, Roy era engenheiro recém-aposentado, veterano da Guerra da Coreia, e alimentava uma obsessão admirável pelo caso do novo vizinho. Expressão sempre grave, sobrancelhas e cílios grossos, ele impunha respeito, e interferiu: — Não, não é o suficiente. Precisamos pegar este sujeito com alguma coisa grande, definitiva — decretou, batendo com a ponta do dedo indicador na própria coxa. Meu estilo era diferente do de Roy e dos demais. Apesar de compartilhar de toda a desconfiança que pairava sobre o Sr. Schwytzestein, eu preferia a cautela. Achava estranha a forma como Stein agia, jamais cumprimentando seus vizinhos

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de rua, deixando o jardim morrer daquele jeito, e o barulho que ele fazia! Mas, chamar a polícia… Tomei um gole de chá e decidi ponderar. -— Alguém aqui já parou pra pensar que podemos estar exagerando? — Exagerando?! — devolveu Roy, inflamado. Você prestou atenção ao relato do Mr. Sticha, ainda ontem? Ele afirma ter encontrado, no latão de lixo da rua, uma garrafa com o endereço de Stein e um adesivo onde estava escrito “veneno”, em letras muito legíveis. Ainda achou uma meia-dúzia de frascos de formol que seriam o suficiente para engasgar um cavalo! E você acha que estamos exagerando? — Vá com calma, Roy. Estou apenas tentando colocar outro ponto de vista sobre a mesa. — Ponto de vista, o cacete! Esse sujeito pode estar construindo alguma arma de destruição em massa, pode estar planejando um ataque terrorista, um genocídio, bem debaixo dos nossos narizes! De fato, o depoimento de Sticha fora decisivo para que resolvêssemos marcar a nossa reunião. Mr. Sticha era um senhor do leste europeu (nunca soube se ele era búlgaro ou romeno, ou sei lá o quê) e há anos era o responsável pela limpeza da rua. Duas vezes por semana, recolhia o lixo acumulado que os moradores depositavam no latão e não raro levava consigo itens considerados obsoletos, como antigos aparelhos de fax, TVs e videogames, entre outros. Ouvi dizer que ele costumava frequentar a casa da Sra. Wittman no silêncio da noite. Mas isto nunca foi comprovado. Mais duas mulheres completavam nosso grupo: Margaret

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Wilson (38) e Tiffany Nichols (45). A primeira era mulher de Walter, e o marido da segunda pedira o divórcio no último verão. Maggie era linda e extrovertida, usava os cabelos finos e louros bem curtos, fazendo uma pequena curva logo abaixo das orelhas. Ela tinha os olhos mais azuis que já vi e confesso que muito de minha presença ali era devido à presença dela. Tiffany era bonita também, mas isso, antes do divórcio. Depois, engordou demais, os cabelos começaram a cair e ela passou a exagerar no perfume. As duas repetiam sempre a mesma pergunta a respeito de Stein — era como um mantra: — O que diabos será que ele está construindo lá dentro? — perguntou Maggie, pela centésima vez. — Nós temos o direito de saber! — completou Tiffany. — Mais do que isso… Temos o dever de descobrir o que se passa ali dentro e informar as autoridades — disse Roy, tirando do bolso do casaco uma caneta e um pequeno bloco de papel. Eu sugiro que façamos uma ata para anotar tudo o que sabemos sobre o tal Schwytzestein. Sabemos que ele mora só, não tem crianças nem amigos, mas recebe e envia muitas correspondências. Ouvi dizer que tem uma ex-mulher numa cidade chamada Mayors Income, no Tennessee. E parece que ele comandava um negócio de consultoria na Indonésia… — Posso perguntar como é que você sabe de tudo isso? — interpelei. — Tenho fontes confiáveis e… Digamos que fiz uma visitinha à caixa de correios dele. Você já notou a quantidade absurda de pacotes que ele envia toda semana? — Notei, sim. E todas aquelas revistas que ele recebe…

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Não cheguei a vasculhar a caixa de correios do homem, mas as revistas ficam jogadas ali na entrada da garagem dele, impossível não notar — aleguei. — É horrível! Toda aquela pornografia! — exclamou a Sra. Wittman, que até então havia permanecido calada, sempre indo e voltando da cozinha, servindo os convidados. A anfitriã parecia divertir-se com a nossa reunião. Colocou um vestido longo florido e sapatos de salto alto que disfarçavam a pequenez de seu metro e meio. — Não é apenas pornografia… Antes fosse. Ele recebe revistas sobre química e engenharia também — observou Roy, enquanto tencionava acender um cigarro, que foi prontamente retirado de sua boca pela Sra. Wittman. — Na semana passada entregaram um serrote na casa dele. Não pude deixar de notar, afinal, sou sua vizinha de porta. Foi impossível dormir com aquele barulho de serragem durante toda a madrugada! — contou Maggie, cobrindo as bochechas com as mãos. — Eu escutei também, Maggie. Terrível! — concordei. — O que ele está construindo ali dentro? — perguntou Howard, para ninguém. — Aposto que ele passou algum tempo na prisão — disse Tiffany, contorcendo os lábios, impregnados com um batom roxo. — Este homem definitivamente já esteve na prisão! — corroborou Sarah. — Vai ver que é comunista! — disparou Doris, manifestando-se pela primeira vez. — Oh, que saudade dos Edwards… — lembrou a Sra. Witt-

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man, de repente. Os Edwards eram um casal jovem e agradável que vivera na casa onde agora mora o abominado vizinho novo. Eles haviam se mudado para Nova York com as crianças, assim que o pai foi transferido pela multinacional que o empregava. Os churrascos no quintal deles eram os melhores e a boa lembrança que todos guardávamos daquela família servia como um obstáculo, mesmo que inconsciente, à sociabilidade com qualquer novo morador da casa com a vizinhança. — Vocês sabem que música é aquela que ele vive assobiando? Isso me perturba há dias… Tenho me esforçado para lembrar que música é, mas não consigo — disse Walter, batendo de leve sobre a mesa com a palma da mão, antes de tentar reproduzir a música, assobiando. — Parece Beethoven — chutou Maggie. — Acho que é a Canção da Terra, de Mahler — arrisquei, tentando impressioná-la. Fez-se silêncio por um instante, até que Doris, que passara o tempo todo acariciando Chelsea, chamou nossa atenção para a inquietação da cadela. Ela havia se levantado e agora estava latindo e ganindo, agitada, em frente à janela da sala de estar. Chelsea era um animal corpulento, da raça Golden Retriever, e parecia intrigada com algo que vinha lá de fora. Roy foi o primeiro a levantar-se. Caminhou com cautela até a janela e, sem expor o próprio corpo, espiou, com metade da face. — Oh, meu Deus! — clamou. Na mesma hora, todos se levantaram e partiram em direção à janela. Eu permaneci sentado por alguns segundos,

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sorvendo o último gole do chá, e fui o último da fila. Antes que pudesse enxergar qualquer coisa, escutei o assombramento nas vozes de meus vizinhos. — Jesus Cristo! — bradou a Sra. Wittman, fazendo o sinal da cruz. — O que diabos é aquilo? — perguntou Walter, com os olhos arregalados dentro dos óculos de grau. Não pude decifrar imediatamente o que vi pela janela. A neve havia cessado, mas o vidro estava embaçado pelo frio e pela respiração de todos. Ainda assim enxerguei uma pequena luz redonda, de uma lanterna, talvez, acendendo e apagando em ritmo frenético, apontada para a janela da Sra. Wittman. A luz vinha do telhado da casa do Sr. Schwytzestein. — Vamos até lá! — convocou Roy. — Eu não vou a lugar nenhum, estou muito bem aqui — agradeceu Doris, e voltou a sentar-se. — Eu também não vou — concordou a Sra. Wittman, que andava de um lado para o outro, visivelmente alterada. — Pode ser perigoso, Roy. Aliás, se eu fosse você, sairia de perto dessa janela agora mesmo — aconselhou Maggie. Assim que Maggie terminou a frase, Walter puxou Roy pelo braço e fechou a cortina. Virou-se para o grupo, pediu calma e sugeriu que eu fosse buscar um calmante para a Sra. Wittman, na gaveta do banheiro. Quando retornei, Howard tentava tranquilizar a esposa, envolvendo os ombros dela em seu braço esquerdo. Walter estava de pé, no centro da sala; os outros estavam todos sentados. Ele encheu o peito de ar e começou a falar:

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— Concordo com o Roy. Deveríamos ir até lá para resolver esse assunto de uma vez, mas acho que você deveria ficar aqui, Roy. Você está nervoso demais, poderia atrapalhar. — Atrapalhar, eu?! Quem você pensa que é? — reagiu o veterano. Coloquei meu corpo entre os dois, na intenção de evitar a briga, e acabei por conseguir dissuadir Roy da ideia, falando-lhe ao pé do ouvido. — Eu me prontifico a ir até lá, mas não vou sozinho. Howard, você vem comigo — convocou Walter. — Eu? — devolveu Howard, prolongando a pronúncia do pronome. — Sim, você! Roy e Miles ficam aqui tomando conta das meninas. — Querido, esqueça isso, vamos pra casa. Já é tarde e as crianças estão sozinhas — apelou Maggie. — Ele tem razão, Maggie. Alguém precisa ir até lá. Não se preocupe, vai ficar tudo bem — intercedi. Roy, agora um pouco mais calmo, mas ainda contrariado, levantou-se do sofá e sacou algo que estava escondido dentro do casaco. — Leve minha arma — disse, para a surpresa de quase todos. Walter não respondeu, mas aceitou a oferta e prendeu o revólver entre o cinto e a calça. Antes de sair, beijou a testa de Margaret e despediu-se dos demais, não sem alguma carga de dramaticidade. Howard repetiu o gesto e seguiu o primeiro pela porta. Ficamos os outros em silêncio, cabisbaixos, apreensivos. Inseguros quanto ao que afinal havía-

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mos permitido. Pouco depois, Maggie e Sarah correram para a janela e tornaram a abrir a cortina, a fim de testemunhar a missão dos maridos no outro lado da rua. Foi impossível não imitá-las. Se alguém passasse de carro pela rua naquele momento, ficaria no mínimo intrigado com a visão da janela da Sra. Wittman: havia sete cabeças humanas e uma de cachorro espreitando através do vidro. A luz da lanterna não estava mais no telhado do vizinho. — Eles já tocaram a campainha, mas até agora nada — disse Maggie. — Ele não vai abrir — resmungou Roy. Com alguma dificuldade, era possível avistar os dois homens parados em frente à porta do vizinho. Vimos quando Walter virou-se para a nossa janela e abriu os braços, prestes a resignar-se. Foi justo neste momento que a porta se abriu. O Sr. Schwytzestein era alto, careca e mais magro do que julgávamos. Os três permaneceram na entrada, conversando por alguns minutos, até que o vizinho os convidou para entrar. Não podíamos fazer mais nada, a não ser sentar e esperar. Roy sugeriu que esperássemos por não mais que vinte minutos antes de tomarmos qualquer atitude. Concordamos. Enquanto isso, tentei puxar assunto com Maggie, perguntando a ela sobre as crianças e sobre sua prima, Jennifer, que era atriz na Califórnia. Mas Maggie estava aflita demais para falar. Os vinte minutos passaram como trinta e, apesar de aflitos, decidimos esperar por mais dez. Espiei mais uma vez

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pela janela e a única luz acesa na casa de Stein era a mesma luz azul de sempre, no andar de cima. — Preciso de uma bebida — pediu Tiffany. — Eu também — disse Doris. Bebemos todos. Uísque sem gelo. E, finalmente, quarenta minutos depois de sair, Walter entrou pela porta da frente trazendo seu peculiar sorriso fraternal, mas sem dizer nada, criando suspense. — Graças a Deus! — festejou a Sra. Wittman, ao mesmo tempo em que Maggie corria para os braços do marido. — E então? — perguntamos. — Calma, calma, está tudo bem. — Onde está Howard? — quis saber Sarah. — Ele ficou lá na casa do Stein. Jack Gunther também está lá. — Jack Gunther? — questionou Roy, surpreso. — Isso. Foi Jack quem subiu no telhado com a lanterna. Ele disse que queria mexer com a gente. Eles estão lá no andar de cima jogando baralho, bebendo cervejas. E o tal Stein é bem simpático, na verdade. Ele disse que andou meio deprimido porque recentemente perdeu muito dinheiro num investimento. Convidou a todos para uma visita agora mesmo, inclusive Doris e a Sra. Wittman. — Esse Jack é um bêbado filho da puta! Eu não vou a lugar nenhum — rosnou Roy. — E quanto ao veneno e o formol? Como é que ele explica isso? — desafiou Tiffany, largando o copo sobre a mesa. — Isso mesmo! E o que acontece com toda aquela pornografia e aquele monte de pacotes? O que ele está construindo

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lá dentro, afinal? — perguntou a Sra. Wittman. — Eu não sei — respondeu Walter, seco. — Nós temos o direito de saber! — protestou Roy, antes de completar: — Eu vou para a minha casa, não confraternizo com bêbados. E saiu pela porta dos fundos, sem se despedir. — Eu também vou. Estou morrendo de sono — disse Doris, que bebera apenas um gole do uísque. — Eu levo a senhora — ofereci. Walter, Maggie e Sarah foram até a casa do novo vizinho. Tiffany, Roy e a Sra. Wittman se recolheram. Eu acompanhei Doris até sua porta e depois fui até a casa de Stein, onde fui bem recebido. Bebemos algumas cervejas e combinei de ajudá-lo com a grama do jardim. Ainda hoje existe um constrangimento velado entre os vizinhos, inclusive do próprio Stein, com relação àquela nossa reunião invernal.

Zé McGill

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No nosso táxi éramos três. Ção, Chimbó e eu.

Tinha também o motorista, mas ele não é de importância nesta história. O nome dele era Seu José Salvador Dourado e ele era bem mais velho que a gente. Era tão velho que se juntasse nós três ainda faltava era um bocado pra tanta velhice, apesar que de número não sei, que fiquei de recuperação em matemática. Pois mãe meteu a gente no táxi, que Chimbó que ia pagar, e falou pra mim: — Menina, tu vai no meio que este daí nasceu foi cheio de mão. E bobinha do jeito que a outra é… não quero saber de confusão! Sentei no meio então, apesar de que eu queria mesmo era sentar do lado de Chimbó. Até que eu tava do lado dele, mas queria era ser um lado só. Ainda mais que minha irmã tava me embolotando o estômago de tanta água de cheiro que se besuntou. Seu José Salvador Dourado foi seguindo pra igreja de São Judas Tadeu, eu acho que nem conheço nada aqui, nem Ção. Só Chimbó. É que ele chegou aqui antes, já se acostumou com essas ruas grandes. A gente ia bem devagar que Seu José Salvador Dourado andava bem devagar mesmo. Achei que se fosse eu andando de pé já tava era longe, mas aí não ia poder fingir canseira e me escorar no ombro grande de Chimbó. Escorei e fingi dois fingimentos. O outro era que nem notava minha irmã se piscando de um jeito abestalhado e rindo mole de dente ariado. A pessoa quando fica boba o riso sai de frouxo. Mas eu é que não sou boba e mãe tem é razão, deus 23


dá dividido pra ninguém ficar na precisão. A gente ia do jeito que eu queria, que é aquele jeito de não chegar nunca. Porque lá ia ser um negócio de dividir maçã do amor, ririri, trololó e eu atrás, de esquecida. De repente Ção ia gritar — Ande, Maria Aparecida! Ô leseira. Se eu tivesse a perna comprida que nem ela tinha num ficava pra trás. Num ficava pra trás mesmo. Andava era muito na frente, cheia de ririri e trololó com o Chimbó. E nem ia cansar minha voz chamando: Ô, Maria da Conceição, ande leseira! Largava era a leseira fazendo companhia pro lesmento do Seu José Salvador Dourado. Mas bem que foi bom, bem bom eu ter tido aquela ideia. E nem sabia que era o Seu José Salvador Dourado que ia me ajudar. Ô dó. Vai ver que foi cansaço de tanta devagarzidão. Mas calma que cheguemos no São Judas foi é agora. E antesmente da brincadeira, tem que agradecer o padrinho, foi o que mãe disse, eu falei para Ção, nem sei porque é que eu disse porque mãe não tava nem ali para ver que eu sou boazinha e se tivesse nem ia me dar uma maçã do amor inteira porque eu não fazia mais que minha obrigação. Mas até que eles nem não se incomodaram de ir para lá para a gruta dos votos porque estalou uma ideia safada na cara de Chimbó e ele olhou para Ção e ela riu boba depois entendeu a ideia safada e aí riu esperta, apesar de que eu mesma já tinha apercebido de muito antes dela, tô falando! Mãe tinha dado a foto da Dinda para Ção, mas para mim ela confiou a linda fita de cetim purinho purinho cor do céu bem comprida que tinha os dizeres de “São Judas, glorioso aposto sérvio amigo do traidor em que a igreja vozonra e se

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invoca”, não sei: tava meio apagado e eu também nem sei ler assim com essa letra cheia de pontinha. E fui eu quem decidiu em que lugar na grade que ia ficar a foto da Dinda com a fita do aposto. Um lugar bem alto no meio das graças alcançadas. Tinha um menino que não ia precisar mais de emodiar-se ou algo assim e do lado tinha o escudo do Botafogo dizendo que bom que não nos deixou cair em tentação ou na segunda divisão, ou algo assim. A Dinda ficou bonita dependurada na grade e ela quase que pôde vir mas o São Judas ainda não terminou de curar ela e ela continua gorda inchada entalada na poltrona. Tá bom, agora eu ia querer minha maçã do amor ou um algodão-doce com um balão colado no plástico. Cor-de-rosa, que é a cor que eu mais gosto. Mas cadê Ção? Cadê Chimbó? Sumiu tudo na desobrigação. Ficou só o Seu José Salvador Dourado que ficou só fumando um cigarro e olhando para o lado para ver se movia a rua que tava parada que é só carro só. E aí o lesmento virou e me disse que o moço (que era Chimbó) e a mocinha (que era Ção) tavam era na gruta dos milagres. E que o dinheiro tinha não, tava com eles lá. Nesse momento passou uma menina com o cabelo assim desescovado e ela comia a maior maçã do amor que eu tinha visto na minha vida e aí me desculpe Seu São Judas, eu sei que estou na sua casa e que é dia de festa, mas eu fiquei é com muita raiva de minha irmã. O senhor é padrinho de minha mãe, então é como se fosse meu sogro ou algo assim, então sabe como Ção fica lesada quando tá com Chimbó, apesar que Ção tá meio sempre lesa mesmo, parece que nem aquele povo velho de Macambira quando

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encontra a gente quando a gente visita e faz que nunca viu e fica lambendo nosso rosto com a mão e dizendo babando “mas que nunca vi, minhanossasenhorajesuscristino que menina graciosa de bonita”. Eu fui mais Seu José Salvador Dourado atrás dos dois bestados na gruta mas a entrada tava entalada de mulher gorda de xale e Seu José Salvador Dourado nem conseguiu entrar. Eu me enfiei pelas pernas das mulheres gordas de xale e cheguei no corredor que era assim uma quitanda, sabe, só que em vez de sabão e de inhame tinha figo, olho, perna e umas coisas de testinho que eu nem sei. Tudo de cera. Você não sabe e eu também não sabia, porque acho que nesse dia não fui para escola fiquei de gripe, é que tem que dar para o santo o pedaço do seu corpo que ficou curado, e já que cê não pode dar o verdadeiro, cê dá um de cera. Eu não sei para que diabo (desculpa, não pode falar diabo, benzadeus!) São Judas vai querer tanta cera, essa cerâmica toda, mas é melhor do que ficar com um bando de carne, olho, cabelo de verdade, não é? Ainda mais de gente doente. Fede que só. Então eu olhei um olho e botei uma orelha de cera em cima da minha e escutei mal Seu José Salvador Dourado gritando: ô menina, vocês são todos doidos e somem da vista sem nem dizer nada e sua mãe vai me matar! E afe, afe, afe. Seu José Salvador Dourado tava com a mão espremendo o peito do lado e ele arfa e arfa e caiu de bunda no chão e eu só “que foi isso!” e só umas velhas gordas se benzendo “vixemaria!”. E Seu José Salvador nem Dourado mais, tava é da cor direitinha dos coisas de cera. É o… coração…, menina…, me dá um… susto vez… em

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quando…, foi o que ele falou fatiando as palavras devagarzinho para poder falar a frase toda. E foi levantando escorado e derrubando uns testinhos pelo chão. Mas Seu José Salvador Dourado, veja só, o senhor é homem de sorte, o senhor está na casa de São Judas Tadeu, o padrinho de minha mãe, quase meu cunhado. Tenha fé Seu José Salvador Dourado, que eu aposto que o aposto São Judas há de lhe valer. Foi isso o que eu disse para Seu José Salvador Dourado, mas eu nem sei aí se eu já tinha tido a ideia ou não. Acho que não, mas eu queria que sim. Você acha mesmo menina?, fez Seu José Salvador Dourado, ajeitando os fiozinhos de cabeça que teimam na sua testa e respirando fundo no meio daquela inhaca de cera queimando e velha se benzendo. Ôxe, Seu José Salvador Dourado, olhaí onde o senhor tá se apoiando. Os corações! Seu José Salvador Dourado, os corações! Isso é um sinal, um sinal! (Uma mulher gorda até concordou e levantou os braços [cada pernil!] para o céu) Pegue um coração de cera e dedique de coração ao meu tio-avô seu Judas Tadeu que ele há de lhe valer. Então Seu José Salvador me deu os dois reais (duas moedas!) e eu comprei o coração de cera mas era tão bonito o coração que eu já tinha imaginado minha maquinação. O senhor fique aí descansando Seu José Salvador Dourado, que eu vou lá e acendo o coração para o senhor, lhe encomendo e ainda rezo uma reza forte toda a vida que vó me ensinou lá em Macambira. O senhor vai ver só. Se descuide! Então deixei Seu José Salvador entre as velhas olvidado e entrei na gruta, tava uma escuridão vermelha e um cheiro

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de arreganhar nariz, não sei como é que aguentavam ficar ali mas Ção e Chimbó tavam de cochicho atrás da fogueira, ou sei lá como é que chamam aquele lugar que eles acendem os olhos, cabeças, pernas (deus me livre, pensei agora em falar “churrasqueira”). Puxei Ção pro lado e ela nem gostou, ficou falando comigo mas com os olhos arrastados para Chimbó que ficou lá rindo que nem. E eu puxei ela pelo braço e falei no ouvido dela que se ela desse seu coração para São Judas Tadeu ele ia deixar o Chimbó mais amarrado nela e ainda de brinde o aposto ia deixar mãe anuir com namoro e até fazer gosto. E como é isso de dar o coração? duvidou Ção, e eu expliquei que não era nada não nem doía, era só acender um coração especial de cera e pronto. Ôxe, então é agora! falou Ção e eu falei que agora agora não era não, tinha que dar primeiro quatro reais porque o santo dá a graça mas não dá de graça. E ganhei quatro reais! Depois puxei Chimbó que veio comigo mas parou de rir na hora e disse o que é menina, fala logo! Eu ia falar do coração queimando e ia até inventar que era uma prova de amor que ele tinha que fazer para ela, mas ele me cortou e perguntou quanto é e eu só de birra (porque ele tinha cortado meu plano) disse que era cinco reais. E ele deu cinco e disse para eu riscar dali e não aperrear mais. Nem me aperreei. Fui muito desaperreadamente colocar o coração, entre um nariz e um pé (eu acho que era, não sei, os dedos já tinham derretido) e uma daquelas mulheres gordas acendeu para mim. Ela perguntou para quem é esse coração, meu bem, e eu bem disse que era em nome de Seu José Salvador Dourado, de Maria Aparecida Jesus Oliveira dos Anjos,

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que era a minha própria pessoa e de Chimbó (que o nome outro dele sei não) e que a graça alcançada que era pra encomendar era o nome todo do Seu José Salvador Dourado e o matrimônio de coração pra contrair eu mais Chimbó, para a data do dia depois da recuperação de matemática que é pra não me atrapalhar nos estudos, que mãe fala que se eu me atrapalhar nos estudos eu vou me lenhar. Então apertei os olhos e pedi por minha própria conta mesmo pra num ter número grande na prova porque eu mereço que Judas Tadeu é padrinho de minha mãe e então nós somos compadres. Já que eu tava lá pedi pra Ção também que é pra ela arrumar outro namorado e não ficar de pecura pela casa que mãe se avexa e também que ela é um pouco abestalhada mas meu querer dela é de coração. Saí da gruta e conferi que Seu José Salvador Dourado estava bem. Tava deitado na grama com um bando de gente em volta. Pelo menos não estava sozinho, né, e também o São Judas já ia chegar para cuidar dele logo logo e nem precisava se preocupar com a rua entupida de carro porque ele mora lá mesmo dentro da igreja. O moço da maçã do amor disse que a maçã era três reais mas ele foi legal e me vendeu três maçãs por nove reais. Eu ia comer duas e levar a outra para minha professora da recuperação de matemática. Mas eu comi foi as três mesmo.

Carolina Neves e Julio Silveira

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Olho no olho

Não, Carmem, o começo não foi assim como você insiste em contar para os outros. Eu sei que ele era considerado um cara pedante, mas se aproximou de mim de forma muito curiosa, num sábado, durante um pôr do sol na praia, depois de me ver brigando com o Pedro, e se ateve a falar de marés, do vento, das ondas, do melhor pedaço da praia para surfar. Não tocou no nome do Pedro apesar de serem amigos. Eu até querendo, poderia, assim, destilar um pouco da raiva que sentia na hora. Muito tranquilo fez a previsão de mais um dia de sol para o domingo e se foi. Depois nos encontramos algumas vezes, você sabe, Carmem, somos trezentos. Na feijoada da Mirtes lá no Horto, sempre muito discreto, ininterruptamente bebendo e nunca ficando alterado. Um homem bonito, você há de convir. Depois naquela festa chatíssima do Carlos, aquela mania cafona do Carlos de dança de salão. Ele chegou, me tirou para dançar um samba de gafieira e deu um show. No meu ouvido sussurrou que gafieira era coisa muito antiga, mas o Carlos, tão legal, merecia que a gente se divertisse na sua festa. Admite, Carmem, atitude elegante, não? Daí, uma cumplicidade já estabelecida, conversamos saindo da casa do Pedro. Eu chamando o táxi e ele se oferecendo: Te levo. Levou. Na porta da minha casa, o assunto eram os arquétipos, o tarô, as entidades da umbanda, o horóscopo chinês. Convidei para entrar. Tinha cerveja e um terraço. 31


No meu terraço, junto à encosta da Tijuca, da pedra úmida coberta de musgo e hera, eu conseguia ter a vista do centro da cidade. Ali, no canto molhado pelas gotículas que escorriam das folhas, armamos as cadeiras de praia, aquelas de estrutura de alumínio e tecido de plástico, aquelas com três regulagens, da cadeira à espreguiçadeira. E nós dois, sem combinarmos, armamos as cadeiras na posição do meio. Nem tão deitada que não pudéssemos nos olhar, nem tão em pé que nos deixasse numa posição de enfrentamento. Na posição mediana, enrolamos a lombar e nos encaramos. Olho no olho. Falando amenidades. Pense, Carmem, o assento quase rente ao chão deixa os joelhos em uma posição acima dos braços das cadeiras e precipita as pelves para o alto e para a frente. Ficamos ali falando da posição geográfica do terraço, tão inusitada, tão na floresta, tão perto do centro da cidade. E falamos de insolação e da posição de Vênus no céu naquela noite, mas em nenhum momento despregamos os olhos de dentro dos olhos do outro, sequer para confirmar a posição anunciada de Vênus. E, conversando, olho no olho, eu podia ver, não me pergunta como, Carmem, mas eu podia ver o corpo dele crescendo dentro da calça branca. E pude ver, ainda olho no olho, quando o meu pé direito, também tão branco, com as unhas pintadas de vermelho, pousou sobre o corpo dele inchado sob a calça branca. Impassivelmente, continuamos conversando, olho no olho, sobre amenidades. Até que a cerveja acabou. Primeiro despreguei o pé da calça branca e só depois tirei o olho do olho e me ergui dizendo: Vou buscar mais cerveja. E ele: Vou com você. Descemos as escadas estreitas, eu na frente, um suave calor nas entranhas

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contrastando com a garrafa vazia, ainda gelada, na mão. No caminho até a cozinha, um sofá, e, sem combinarmos, a parada, as roupas no chão e o sexo. O sexo, Carmem, foi absolutamente certo. Sem preliminares, sem beijos apaixonados, sem arranhões, foi um sexo preciso. Depois, as roupas de volta, o caminho, de novo, até a geladeira, e mais amenidades olho no olho, até a hora do boa noite. Selinho. Tchau. Eu sei, Carmem, você não gosta dele. Eu também não gostava, te juro. Mas das outras vezes que eu o encontrei, não podia deixar encostar o olho no olho, senão não descolava mais e aí, você sabe. E foram muitas vezes assim. Começamos a adormecer depois do sexo e das amenidades e acordávamos juntos, às vezes mais sexo, sem preliminares tão dispensáveis numa relação que era só amenidades que valiam preliminares. Aí passamos a passear juntos, mas sempre por acaso e não regularmente. E a coisa só começou a mudar num dia em que, depois do sexo, ali, na hora de mais amenidades, a gente olho no olho, ele viu alguma coisa no fundo de mim e disse assim como diria a posição de Vênus no céu naquela noite: Eu não te amo. E desviei pela primeira vez os olhos e percebi que eu mesma havia me armado uma armadilha e que nunca mais as amenidades seriam as mesmas. Ali, Carmem, eu tinha que ter sumido. Mas não sumi. Você sabe como a gente é. Continuei querendo aquele sexo certo e preciso que me plantou um anzol do lado de dentro do peito e, fisgada, fui arrastada para aquela zona do mar onde a luz não penetra. E eu, Carmem, meio mulher meio peixe não tenho antenas

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e nem radar, mas quis nadar por ali, porque a gente é meio assim mesmo. Você sabe, Carmem, mulher perde a hora de emergir. E ele foi repetindo — Eu não te amo, eu não te amo — e eu aceitando mesmo não querendo, eu me desculpando afinal o sexo era tão bom e tão descomplicado, as preliminares agora me doendo durante as amenidades na espera da hora de ele me puxar pelo anzol e me arrastar. Tá certo, Carmem, quatro anos foi demais. Foi demais vê-lo com outras e não me achar no direito de reclamar, afinal, ele me disse tantas vezes eu não te amo eu não te amo eu não te amo. Foi demais passar noites e noites no terraço, a cadeira de praia vazia na frente, atrás as gotinhas escorrendo pela hera, e o único calor era das lágrimas e da garrafa de cerveja esquecida no chão. E depois ouvir a voz no interfone de novo: Tá sozinha? Posso subir? Assim, sem avisar, mas, também, sem querer atrapalhar, tão respeitoso da minha individualidade e da minha autonomia, afinal ele não me amava não me amava não me amava, não queria ocupar espaço na minha vida, uma mulher tão inteligente. Só queria conversar amenidades que eram preliminares porque depois eu já sabia e ele sabia, sem combinarmos nada, no sofá ou na cama desarrumada. Quatro anos, Carmem, foi você quem contou. Eu já nem sabia, me perdi e contava o tempo pelas pequenas conquistas, antes daquele beijo mais demorado, depois do chupão que me manchou o pescoço por dias, ou quando achei que seu abraço ficou mais íntimo… Bobagens, Carmem. Um dia, acordei. Depois dos quatro

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anos que você me repetia, repetia, repetia. Eu não quis amenidades, nem saber a posição de Vênus, nem ficar no terraço, não quis beber. Quando ele chegou, agarrei-o imediatamente, abracei-o como fazem as esposas, com os antebraços sobre o pescoço, enfiei a língua na sua boca a perna subindo pelas pernas dele e abrindo caminho entre as pernas dele e puxando-o para a cama com todas as preliminares possíveis. Pela primeira vez me coibindo o prazer e segurando o dele, até doer, e depois os dois gozando muito e muito e depois um intervalo, sem amenidades, fica quietinho, por favor, agora vem pro chuveiro e sob a água e sôfregos, Carmem, pela primeira vez, sôfregos, descontrolados, ele me rasgando e eu o arranhando, e ele arfando, quase caindo, as pernas trêmulas, senta aí no chão, o chuveiro nas costas, agora deixa eu te enxugar, vem descansar, vem, e na cama depois do cigarro, o céu tá nublado, deixa Vênus em paz, subi nele e ele me pegando toda, e sorrindo, Carmem, ele dentro de mim e sorrindo, um sorriso lindo e depois o rosto desfigurado pelo prazer e depois muito sério, caindo em si, tarde demais, olho no olho, e eu dizendo: Eu não te amo mais.

Vera Rocha

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O Dinei

E agora minha vida está enlaçada na do Dinei e ele me dá engulhos. Não que ele seja feio, longe disso, mas mão suada, Deus que me perdoe, ninguém merece. É que carinho feito com a ponta de dedos suados tira a concentração de qualquer filme. É um sobe e desce pelo braço parecendo lagartixa. E o Dinei ainda quis dar pipoca na minha boca. Quem inventou que é sensual enfiar o dedo sujo — e suado — na boca da mulher pra ela chupar? Você não sabe se lambe, mastiga a comida ou morde o dedo do desgraçado. Mas essa é outra história. O Dinei é um cara bacana, trabalha na fábrica há muitos anos, me explicou com paciência o funcionamento das máquinas todas quando eu entrei. Ele sempre me paquerou. O diabo é que a gente gosta de quem não presta. E o Dinei presta. Escolhi o Vitor. O danado me comeu toda, prometeu um monte de coisas e só esqueceu de dizer que estava noivo da minha colega de máquina, que estava de férias. Só depois ele lembrou de contar que nem dava para se separar, que ele até queria, mas tinha acabado de saber que ia ser pai. Todo mundo soube, até a noiva, que ria com o canto da boca ao me encontrar na troca de turno. Eu saindo, ela entrando. Ela entrando, eu saindo. Um dia, ela entrando, eu saindo, parei a máquina e disse que estava com um barulho estranho, que ela tinha que subir na placa para conferir antes de começar o serviço. Quem mandou ser burra. Foi o tempo de o Dinei entrar e ver a prensa se fechando sobre a cabeça da maldi37


ta. O primeiro a quebrar foi o pescoço que partiu ao meio deixando a cabeça bamba pro lado. Isso foi um segundo antes de a prensa achatar o resto do corpo. Disseram que ficou igualzinho a uma barata esmagada, com as perninhas ilesas para fora. Parece que a mão direita sobrou também, o que não serviu para nada. Pena que eu já estava longe da sala e não deu para ver a cena, nem a cara do Vitor. O Dinei prestou depoimento. Descuido da funcionária, concluíram. O Dinei não presta, foi o que eu pensei antes de aceitar o convite para o cinema. Pena que a mão é suada.

Alexandra Maia

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Sono

Nos dias de sol intenso, quando as telhas de amianto tornam o salão ainda mais quente, ligam-se os irrigadores. O telhado recebe uma camada cristalina e contínua de água que supostamente alivia o calor. E tem um burburinho calmo, inebriante. Dentro do salão os funcionários cosem calados. Um deles tem os olhos caídos, amortecidos sobre bolsas inchadas cheias de álcool e insônia. Com a roupa encharcada ele meneia a cabeça bruscamente como uma marionete enroscada. À sua frente, preso à parede, Jesus crucificado. O ar está carregado. Mil fantasmas de lesmas preenchem o ambiente como mercúrio em um termômetro inflamado. As agulhas não param. Penetram antes o ar e depois os tecidos. Agulha e dedos, touro e toureiro despido. Aos poucos o álcool evapora. As lembranças não. São pastosas, mas fundem-se fácil ao sono. Ele ainda escuta a mulher reclamando das noitadas e da bebedeira. Explicar o quê? Ela nunca entenderia… Apesar disso, ainda lhe resta uma antiga e leve lembrança, lembrança de quando brincava livre em frente àquela mesma fábrica. As crianças choram. As agulhas tecem. Suturam tecidos às lembranças. As olheiras circulam os olhos em uma espiral sufocante. Demoradamente, ele pisca. Nas espessas paredes do sono finca-se na mente a cruz e o crucificado. Súbito, as bolsas explodem e o sono invade as vistas. Ah, 39


como dormir liberta! Como é bom dormir e esquecer! Lá fora o menino brinca. Ele se equilibra no pequeno abismo do meio- fio, acalentado pelo burburinho doce das águas escorregando no telhado. Por um instante ele oscila em desequilíbrio, desconcentrado por um ruído abafado parecido com um grito. Só por um instante.

Rodrigo Viana

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Um bicho secreto

Eu seguia o Azulão porque não havia outro caminho a seguir. Meus sete anos faziam parecer que toda a verdade do mundo estava contida nos atos dele, que, apesar de mais velho, me deixava falar palavrão e dormir sem tomar banho alguns dias. Diferente dos meus pais, que pareciam não conhecer nada das coisas que o Azulão conhecia. Ele fumava e beijava mulheres na boca na minha frente, e elas riam quando ele se virava para mim dizendo: vai aprendendo, pirralho. Era a única pessoa que me chamava de pirralho sem que eu ficasse irritado. Um dia, me acordou com um tapa na testa. Falou que eu ia aprender a caçar. Caçar o quê? Bota o sapato, pirralho. Às vezes parecia que era errado repetir quando ele ignorava minhas perguntas, falando outra coisa, como se eu não tivesse perguntado nada. Eram perguntas que não deviam ser feitas. Saímos cedo, estava escuro ainda, ele me deu uma mochila pesada que segurei com dificuldade antes de colocar nas costas. Se reclamasse, ele diria que eu tinha que me acostumar e que um homem não pode atrasar o grupo por causa das suas fraquezas, ele vivia repetindo isso. Quando chegamos ao pé do morro, a trilha ficou mais fechada e já começava a clarear. Ele me ofereceu água. Tá com sede, pirralho? Peguei a garrafa e dei um gole grande. Sempre que eu dava grandes goles, ou grandes gritos, ou fazia qualquer coisa de maneira exagerada, ele parecia ficar orgulhoso, dizia que é assim que se faz, fosse o que fosse, gri41


to, arroto, pisada no chão, qualquer coisa. Quando devolvi a água, ele olhou a garrafa, medindo o nível de bebida restante e disse, é isso aí, pirralho, Deus te aumente, moleque. Guardou a água na mochila e seguiu em frente. Quando eu andava com outros adultos, eles sempre me davam a mão, ou me mandavam ir na frente, ou se eu estivesse atrás, viravam-se a toda hora para me olhar. Com o Azulão, não, ele seguia em frente e nunca se virava para trás nem perguntava se estava tudo bem. Seguia rápido, e eu tentava fazer com que minhas pernas pequenas dessem conta de segui-lo. Isso fazia com que eu o admirasse ainda mais. Tentei perguntar novamente o que a gente estava indo caçar. Ele pareceu não ouvir. Insisti, falei mais alto. Ele então se virou e abaixou para ficar da minha altura. É um bicho grande, um bicho secreto. Você não pode contar para ninguém que a gente veio caçar esse bicho, entendeu? Entendeu? Achei muito estranho, fiquei olhando para ele. Entendeu, pirralho? É um bicho que ninguém conhece, e se você olhar para ele, vira areia na mesma hora. E ninguém pode saber. Ninguém. É o bicho mais secreto do mundo. Mas como a gente vai pegar ele sem olhar? O Azulão parecia saber de tudo sobre aquele bicho. Respondeu já seguindo em frente: Vou dar um jeito. Fiquei pensando em como a gente poderia pegar aquele bicho se só de olhar para ele a pessoa vira um monte de areia. Mas nada que eu pensava era muito fácil de manter na mente, porque precisava me ocupar em manter o ritmo da caminhada, ele acelerava conforme subíamos o morro numa

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trilha cada vez mais fechada. Nunca entendi por que meu pai confiava tanto no Azulão, a ponto de viajar com a minha mãe e deixar que eu passasse todos aqueles dias lá com ele. Mesmo sabendo que eles se conheciam de longa data. Meu pai tinha amigos antigos e não confiava neles. O Azulão não frequentava a nossa casa como esses outros amigos, mas mesmo assim, parecia desfrutar de vantagens especiais com meu pai. Os dois me repetiam, com uma frequência maior que a natural, que eram amigos desde muito pequenos e um ajudava o outro sempre que havia necessidade. Eu às vezes via meu pai dando dinheiro ao Azulão, eles conversavam em voz baixa e meu pai tirava uns bolos de notas amarrados com elástico do bolso e entregava a ele. Paramos na beira de um córrego e ele perguntou se eu queria lavar a cabeça. Enquanto me molhava, vi que ele tirou uma corda de dentro da mochila e a enrolou no braço, olhando em volta, parecia mais desconfiado que de costume. Achei que se eu perguntasse se ele estava nervoso, ouviria uma resposta agressiva, e me limitei a lavar a cabeça. Mal pude me secar com a toalha que ele me passou. Corre, pirralho, vamos em frente. Pra que essa corda? É pra amarrar o bicho. Não disse mais nada. Seguiu morro acima, já não havia mais trilha. Andávamos no meio do mato, e comecei a ficar com medo. Ele não estava mais tão brincalhão. Perguntei se estava zangado, e ele não respondeu. Perguntei mais alto. Respondeu com agressividade, me segurando com força: Fala baixo, moleque.

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Ninguém tinha me segurado daquele jeito. Quis chorar, mas era a única coisa que ele não gostava que eu fizesse. Chorar é sinal de fraqueza, e o mundo engole os fracos. Homem que chora, o mundo devora. Homem que chora, o mundo devora. Homem que chora, o mundo devora. Repetia isso três vezes quando eu ameaçava chorar. Engoli o choro. Tentei caminhar mais rápido, mas ainda sentia a pressão das mãos dele sobre os meus braços pequenos e isso parecia dificultar meus passos. Ele se afastava mais e mais até que fiquei com medo de perdê-lo de vista no meio das árvores. Gritei, me espera!, mas ele continuava rápido e se afastando de mim. Eu morreria devorado por um bicho, ou com fome, ou simplesmente morreria de medo. Apressei-me ao máximo, os galhos me cortavam as pernas mas eu ignorava, a única coisa que fazia sentido era não perdê-lo de vista, custasse o que custasse, mas nem todos os meus esforços em ignorar os cortes nas pernas foram suficientes para manter o Azulão por perto. Gritei bem alto procurando por ele, gritei umas dez vezes, mas os barulhos da floresta pareciam dizer que era melhor desistir, que eu era menos que um grão de areia e de nada adiantaria correr, gritar ou fazer o que fosse. Mesmo assim, continuei e, quando dei por mim, ele estava me segurando forte de novo com a mão na minha boca. De uma hora para outra, eu era carregado pelo Azulão morro acima, ele tapando a minha boca e dizendo, que escândalo, pirralho, não te disse para ficar quieto? Ele não tinha dito para eu ficar quieto, a ordem era não falar com ninguém sobre o bicho, apenas isso, mas o medo e o alívio simultâneos eram tão intensos que não tive a menor vontade de argumentar, e

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me mantive calado. Ele tirou a mão da minha boca e me pôs no chão, assim que chegamos próximos a uma pedra grande. Fica aqui, pirralho. Passou para o outro lado da pedra e ficou lá um bom tempo, até que voltou arrastando um saco preto grande, todo amarrado, com alguma coisa comprida dentro. Perguntei o que era aquilo. É o bicho secreto, garoto. E vinha arrastando o saco com dificuldade por cima dos galhos. Como você não virou areia? Eu fechei o olho na hora de bater nele. Tu é cheio de pergunta. Ajuda aqui, pirralho. Segurou o bicho por um dos lados e pediu para eu pegar a outra ponta. Achei pesado demais, mas ele reclamaria da minha fraqueza se eu não insistisse. Tive a impressão de que eram dois pés o que eu segurava, mas eram muitas camadas de saco plástico e não dava para perceber direito. Cheguei a perguntar se o bicho secreto se parecia com gente, mas ele ignorou minha pergunta, e eu não me atreveria perguntar de novo. Por mais que eu tentava, não conseguia levantar a minha parte do bicho secreto. Ele percebeu meu esforço, mas não se sensibilizou e falou que eu não conseguia levantar porque devia ser mulherzinha e acrescentou que homem fraco não merece nem viver. Comecei a chorar. Ele soltou o saco plástico e veio para perto de mim. Olhou bem nos meus olhos e falou sério, mas dessa vez sem agressividade: não chora. Engole esse choro. Não pode chorar. Quem chora, o mundo devora. Quem chora o mundo devora. Quem chora, o mundo devora. Fica repetindo isso. E lá fiquei eu, repetindo, quem chora, o mundo devora,

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quem chora, o mundo devora, enquanto ele cavava um buraco do lado da pedra, para jogar o saco plástico com o bicho secreto lá dentro. Quando terminou, pediu para eu ajudar a jogar a terra de volta. No final, tínhamos coberto o bicho todo com a terra, e ainda jogamos bastante mato em cima. Parecia que ninguém tinha cavado nada ali. O mato rapidamente engoliu o bicho secreto. Para dizer a verdade, me pareceu muito sem graça aquela caçada. Ninguém deu tiro ou jogou uma lança, nem teve armadilha nem nada. Foi só andar, andar, andar e esconder um bicho em um buraco. Mas quando ele me perguntou se eu tinha gostado da caçada, disse que sim, não sei se para agradá-lo ou por medo de ser repreendido de alguma maneira. Ele já parecia bem menos preocupado na volta, dando tapinhas na minha cabeça e me oferecendo água de novo. Dessa vez, não consegui beber grande quantidade, e isso fez com que ele reclamasse. Mas mesmo assim, não insistiu para eu continuar a beber, como faria em outra situação. Ele estava diferente. Nem agressivo nem bem humorado como de costume. Percebi que a nossa descida ia por um caminho diferente do que tínhamos seguido na subida. Era uma trilha mais aberta. Pude ouvir o barulho de água caindo e, de repente, de surpresa mesmo, uma cachoeira apareceu na nossa frente. Era como as que eu via nos filmes, eu nunca tinha estado em um lugar como aquele, a água caía do alto, e o lago em volta parecia uma piscina de água verde no meio da mata. Tive vontade de entrar na água imediatamente. Vi que ele já tirava a roupa. Falou para eu tirar também. Ficamos pelados.

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Foi a primeira vez que fiquei pelado sem ser dentro de casa, e aquilo foi bom e estranho ao mesmo tempo. Mergulhamos na água e ele não gargalhava nem praguejava como sempre, parecia que estava meio triste. A água era gelada, mas não me incomodei com isso, era bom estar ali, dentro daquele lugar que parecia ter sido descoberto naquele momento, eu quase me esqueci do bicho secreto. Queria ficar ali até a noite, nadando na cachoeira, mergulhando, esquecendo de tudo, rindo. A única coisa estranha era o Azulão. Ele estava pensando em alguma coisa. Não ria nem praguejava. Estava em algum lugar entre as duas emoções. Triste, talvez. Falou que teríamos que ir embora. Em vez de pedir para ficar mais, perguntei: Você está triste por causa do bicho secreto? Ele não respondeu, e soluçou de um jeito que eu achei que fosse chorar, mas segurou rapidamente e virou o rosto para o outro lado. Respondeu que não era para eu ficar perguntando besteira. Então se vestiu e passou a arrumar apressadamente as coisas nas mochilas. Foi mais ou menos nessa hora que apareceram uns três ou quatro homens, não davam a impressão de estarem ali para tomar banho de cachoeira, estavam apressados e sérios demais. Perguntaram ao Azulão há quanto tempo ele estava ali. Eu ia me meter na conversa e dizer a eles que a gente tinha acabado de caçar um bicho secreto, e que a gente tinha enterrado ele do lado da pedra, mas lembrei que não podia contar a ninguém. Deixei que ele falasse. Chegamos aqui cedinho, vim trazer o pirralho, mas já estamos voltando. O que aconteceu?

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Os homens só deram bom dia e foram embora. Quando ficamos só nos dois de novo, perguntei por que ele tinha mentido para os caras. Quis saber se a gente tinha feito alguma coisa errada quando matamos o bicho secreto. Ele respondeu quase chorando que ninguém podia saber do bicho, que era um segredo meu e dele, e que se eu contasse para alguém eu também poderia virar areia, que o bicho secreto morreu porque mereceu, que o bicho secreto não era bom para ninguém e quem é mau assim acaba morrendo mais cedo ou mais tarde. Quando terminou de falar, não conseguiu prender o choro, e uma lágrima saiu de um dos olhos. Depois outra e mais outra, e logo o Azulão estava chorando sem poder disfarçar ou inventar desculpas como cisco no olho ou coisa parecida. Perguntei por que ele podia chorar se homem nenhum pode. Ele respondeu que homem pode chorar sim. Mas não a toda hora. Chorar pouco pode? Pouco pode. Voltando pela trilha, ele ainda estava triste. Isso me fez ficar com pena dele, mas mesmo assim, sem perceber, eu me vi sorrindo, e meu sorriso involuntário era por saber que eu também podia chorar.

André Tartarini

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Putaria para fins de reprodução

Meti-lhe dois dedos buceta adentro. Nem precisa mais medir, tá lá, dá pra sentir o quase centígrado a mais. E ver que ela está molhada, molhada-molhada. Porra! Como ela consegue, sempre, parece máquina de abrir. Conseguir eu também consigo. Quer dizer, o fisiológico, corpos cavernosos e a porra toda. E haja porra. A cabeça é que é foda, quer dizer, é foda manter a foda na cabeça. Imaginação, cadê? Tem que pensar, pensar num enredo novo, historinhas, pra essa novela que é das seis, das oito, das nove, das dez e que é de dar duas, dar três, dar quatro, de quatro, de frente, de baixo. E haja vamos-lá. Isso porque também fica duas semanas de nem adianta período infértil. Não adianta para quem? E eu só naquela de engrossa a gala, engrossa a gala rala. Não fazer, nem pensar. Agora tem que fazer, e muito. Papai e mamãe pra gente virar papai e mamãe. Papai e mamãe e no máximo um pernas pra cima, posição do frango assado, né, unha na bochecha, por cima que é mais garantido pra porra da porra chegar lá. Meti, meti! Meter é fácil, manter é foda. Minto: manter duro é duro. Meter na obrigação só, haja imaginação. Viajar, para canoa não virar, não virar miojo. Viajar que papai e mamãe é de repente papai aqui papando mamães muitas mamas de mamães e meninas e moças e madames e modelos e mordidas nos mamilos e grelos de chiclete e bucetas espalhadas e espalmadas e palmadas nas bundas escancaradas sobre joelhos. E naquela mulata que baixou a calcinha 49


do biquíni na praia na Bahia e tinha o cu cheio de pentelho e a pousada era uma merda e choveu. Para, aí não, volta, volta, E mãos pelo alto, pelo saco, pela vara pela peraí! Volta. Volta. Volta. E filme, pensa em filme. Isso. Naquele das moças plantadas, sentadas nas varas parecendo aquelas bombas de tirar petróleo, sabe? Isso: cu. Cu cu cu cu cu. Tá funcionando. E aquele filme de gangbang, aquele com a mulher do peito imenso e aquele cara do pau torto fazendo espanhola e o outro vem e epa, tem outro e mais outro. May day may day! Já sei: cu cu cu cu cu. Cuzinho arrebitado, cuzinho rosado, cuzinhos cruzados lambidos metidos. É vamu-lá, vamu-lá. E porra na cara. E cabra. E jegue. E menina com roupa de escola. Pera lá, aí não. Fudeufudeufudeu: volta cu cu cu cu cu cu pra boca pra cu pra boca pra cu pra boca. E cu de cavalo de carrossel! Afe! Deu! Agora vai. Meus últimos bilhõezinhos de espermatozoides. Tô seco estrupiado, mas um vai chegar lá. Eu não chego nem no banheiro, tô morto, mas fiz um filho, velho, ah se fiz. Fiz um filho com essa mulher. Porque eu amo ela. Porra.

Julio Silveira

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Duas semanas

O homem que sai de casa às pressas não está indo a lugar nenhum. Você o vê determinado, sério, cheio de propósito, e o caminho a sua frente está repleto de certezas e obrigações. Mas isso é um teatro interpretado para o resto do mundo. Sua vida está cheia de tempos vazios, de um passado que não foi o que poderia ter sido, de um futuro que não é nada além de uma página em branco. Não pense que a liberdade de uma página em branco à frente o excita. A liberdade o assusta, ele não sabe para onde ir. Talvez ligue para algum amigo, talvez compre um salgado e um refresco na lanchonete adiante, e pegue o celular fingindo falar com alguém. Já faz dois ou três dias que seu telefone não toca. Ele tem sessenta anos e um cansaço de quem tem cento e vinte ou mais. Olha para o passado e se vê aos quinze, imaginando um futuro mais calmo, menos atormentado, uma velhice de mãos dadas e sol nascendo num lugar onde faz frio na sombra, mas sob o sol fica um quentinho gostoso. Talvez um frango grelhado com batatas assadas na churrasqueira, mas não um salgado com refresco amarelo e sem gosto de fruta. O homem come o salgado apressado sem se dar conta de que não precisa correr porque não tem nada para fazer o dia inteiro. Simples efeito da ansiedade permanente, ou uma tentativa de fazer com que o mundo imagine que ele só está se permitindo engolir aquele salgado massudo, com os cantos de queijo endurecido, porque tem compromisso agendado para daqui a trinta minutos e alguém o espera para 51


umas cervejas, ou para assinar um contrato, ou para uma reunião com o pessoal do escritório de São Paulo, beijos na boca, uma ida ao parque onde serão comprados algodões-doces, pipocas, fichas de fliperama, uma boneca, uma bola. Passa um ônibus amarelo e ele decide entrar só por causa da cor. Faz sinal decidido, limpando a boca com um papel acinzentado que apenas espalha o ketchup pelo seu bigode grisalho. O celular finalmente toca, e ele chega a sentir um leve arrepio, como se aguardasse a ligação de uma nova namorada ou uma notícia certamente agradável, algo que mudaria sua vida para sempre, como naquelas propagandas de planos de capitalização em que do outro lado da linha alguém diz: ”Dona Fulana, a senhora foi sorteada no Cap show do banco tal, e estamos depositando trinta milhões de reais na sua conta”. O frio na barriga do homem não durou mais que dez segundos, tempo em que o aparelho permaneceu tocando, e ele poderia atender mais rapidamente, mas era bom que o mundo dentro do ônibus soubesse que há quem ligue para ele, e era bom prolongar a expectativa, a sensação de que algo melhor poderia acontecer nos próximos segundos, imaginou um velho amigo dos tempos da firma de congelados chamando para um encontro no fim de semana, ou a filha que teria voltado dos Estados Unidos, arrependida, pronta a fazer as pazes. E ouvir o sotaque telemarketiniano oferecendo um novo plano para a conta de telefone fez com que o homem pensasse em pegar o pouco dinheiro que lhe restava no banco e comprar uma passagem para um lugar muito longe, onde ele viveria numa casa bem humilde, pescando para sobreviver, vivendo com muito pouco, sem

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televisão, sem cinema, sem encher a cara aos fins de semana. Um lugar onde o sol batesse mas não torrasse os miolos como exatamente agora, dentro do ônibus amarelo, mas ele só sente a brisa do mar gelar as têmporas salgadas do mergulho que ele acabou de dar. A areia mole sob seus pés e os eventuais amigos estariam sempre por perto, sem pressa, sem raiva, sem medo. Apenas peixe, salada e mar. Longe das coisas que fazem o mundo ser complicado. Ou na serra, num lugar de neblina constante, onde ele usaria um casaco confortável, plantaria tubérculos e criaria porcos, vendendo artesanato de qualidade duvidosa mas que daria para pagar as contas, e a mulher que se apaixonaria por ele seria uma mulher sem nada especial, e por isso mesmo seria uma mulher especial, e ele viveria sem precisar fugir tanto das horas. Parar em vez de correr. Mas o ônibus não para. Ele salta em frente a um hospital e atende uma ligação inexistente. Faz que espera por alguém que não chega. Contabiliza minutos. Pensando em como fazer para ultrapassar as horas seguintes, os dias, as semanas, os meses. Anos, talvez. Ele não sabe de mais nada. Sente o tempo escapar em gotas. Em casa, planeja sistemas para fazer o tempo passar sem ser visto, tenta prolongar as horas de sono, fazer coisas que acelerem a passagem do tempo até o sono seguinte. É o que faz no momento. Pensa no arsenal de subterfúgios que possui e tenta montar uma estratégia para os próximos dias. Chega a sorrir, falando coisas que sugerem haver alguém do outro lado da linha. Não há ninguém. Ouve alguém chamar seu nome. Você não faz ideia da dificuldade que é para ele não olhar imediatamente e correr

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para abraçar essa pessoa qualquer que o chama e talvez o salve da solidão estarrecedora de atravessar o dia sem saber como chegar ao minuto seguinte. O homem finge que não ouviu, espera que repitam o chamado. Segundos vazios se passam e ninguém chama. Ele continua esperando por alguém, e chega ao ponto de olhar o relógio com cara de impaciência, como se alguém o observasse e precisasse daquele gestual. Nesses microssegundos, ocorreu-lhe que talvez ele estivesse interpretando para si mesmo, fazendo um teatro particular, como se dissesse a si mesmo que alguém está chegando, garotinhos de cinco anos brincando com seus bonecos fazem a mesma coisa, só que de uma maneira mais sutil, e isso também lhe ocorre, tudo em microssegundos, até que alguém chama por ele de novo e ele se permite olhar, mas esforça-se para que seja sem pressa, e vira o rosto com tranquilidade. Não reconheceu a pessoa, um sujeito de cara estranha, boca meio mole. Talvez coincidência, desculpa, pensei que o senhor fosse outra pessoa, mas não, aquele garoto meio abobado o conhecia, o senhor me ajudava quando eu morava na rua, o senhor levava o meu almoço, e o homem lembrou do filho da mendiga, o moleque que fedia. Por causa do fedor foi que o homem resolvera levar a comida. Sentiu pena por causa do cheiro. O garoto trabalha no hospital varrendo os corredores e está na sua hora de almoço. Os dois seguem caminhando juntos, e o homem acredita que os próximos momentos podem ser menos dolorosos, mesmo que depois do retorno do garoto ao trabalho ele saiba que o dia voltará a esfregar mi-

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nutos intermináveis e calorentos na sua cara. Mas o homem está acostumado a driblar essas sensações e faz esforço para se concentrar no momento. O garoto percebe a tristeza do homem e o convida para o aniversário do filho. O homem aceitaria convite para qualquer coisa, e a perspectiva de chegar à festa apresentado como aquele que levou o alimento do pai do aniversariante por mais de dois anos, essa perspectiva sacodiu uma área tão adormecida em sua autoestima que ele nem reconheceu o sentimento de alegria que o revisitou; parecia que era a primeira vez que sentia aquilo. Quando o garoto se despede para voltar ao trabalho, o homem justifica que também precisa correr para buscar uma encomenda ali perto. O garoto sorri, talvez saiba da mentira, os dias na rua renderam-lhe uma sensibilidade para coisas das quais o homem não faz ideia. O garoto conhece o desamparo de longe, e sente-se pronto a retribuir de alguma maneira, a vida tem dessas coisas, mas amizade não se conta em moedas de gratidão ou em justiças do tipo “vai e volta”, sente-se, age-se com o coração, e foi assim, sem se preocupar em fazer um pagamento afetivo, que o garoto convidou o homem para o aniversário do filho, onde o homem será recebido com tanto carinho que passará duas semanas sem pensar em fugir para a praia ou para a serra. Duas semanas sem querer fugir de tudo, sem sofrer para planejar como fazer o tempo passar sem ser percebido, duas semanas com a certeza de que é preciso muito pouco para ser feliz. Duas boas semanas.

André Tartarini

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A soma dos dias

Falta pouco, pensa Catarina ao olhar para o céu que começa a revelar seus azuis. Hora de fechar a casa, trancar portas e janelas. Catarina coloca a comida no fogo, e mexe lentamente a colher de pau no fundo da panela. Seu pensamento se perde no movimento circular, anti-horário, com uma lembrança que submerge com a fervura da sopa. Ela não quer lembrar, desliga o fogo. Senta-se para comer ainda com um calorzinho a incomodar-lhe o peito. Liga a televisão. Desliga a televisão. Hora de se recolher. Atravessa o corredor comprido que liga a cozinha aos quartos, sem deixar de conferir o relógio de pé ao lado da porta. Enquanto roda a manivela, ela se pergunta se realmente quer dar corda ao tempo, mas já é tarde demais. Amanhã talvez não dê. O pêndulo mantém o ritmo. Catarina segue para o quarto, senta-se na poltrona e pega o controle remoto. Oito. Nove. Onze. Uma da manhã. Catarina cochila sentada quando resolve ir se deitar. Os dias recomeçam cedo para Catarina, que sem pressa se dedica a pequenos rituais matutinos. Ao esticar ao máximo as rugas do lençol da cama, ela se dá conta de que já é domingo. No domingo, as janelas não se fecham com a chegada da noite. A casa cheia subverte os horários da casa. Logo depois do almoço, Catarina confere cada canto deixando tudo no seu devido lugar: a mesa de centro cheia de cinzeiros de cristal; a outra coberta de prataria; os sofás e as almofadas de veludo grená; e principalmente a estante de bibelôs de porcelana reunidos ao longo da vida. Catarina gosta de pas57


sar a ponta dos dedos sobre eles, numa espécie de jogo, até que um deles a segure pelo fio da memória. Ela nunca sabe quem aparecerá para visitá-la ou que lugar irá rever, mas a mágica sempre acontece. Quando percebe, já está de volta, novamente a passear. Uma vez checada a geladeira — pudim e coca-cola não podem faltar — com tudo arrumado, Catarina espera. No final da tarde, seu filho, invariavelmente o primeiro a chegar, entra acompanhado da mulher. O outro filho a beija apressado. O jogo está começando. Em seguida, sempre de surpresa, aparecem uma ou outra neta e bisnetos. Um falatório difícil de acompanhar toma conta da sala. São apenas duas ou três horas de visita e está ficando tarde, temos que ir andando, até semana que vem. De saída, Mariana segura as mãos de Catarina e repara nas unhas por fazer de sua avó. Não diz nada, mas Catarina percebe. Depois que estive doente, não voltei mais à manicure. Mas, vó, por que você não chama uma para vir aqui? De olhos postos nas mãos, Catarina sorri. Não precisa. Agora falta pouco.

Alexandra Maia

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Portões celestiais

Desculpe-me deus que te rogo de alma limpa que já lavei em quatro banhos só no dia de hoje, na intenção desta confissão. Lavei pé e unha, lavei o canto da orelha, lavei umbigo, lavei meus beiços, esfreguei, lavei lavei louvando ao senhor meu deus que me desculpe que eu peço perdão com mais sinceridade do que me acometo do pecado. Porque no pecado me desfaço, senhor, então não sou pessoa inteira. No perdão desenho os portões celestiais, não perco uma dobrinha, um pivotado e me ajoelho diante do que está detrás deles. Desculpe-me deus que te rogo, o senhor não deve estar vendo, mas juntei minhas palmas perfeitinho em linha reta. Sei que o caminho da minha absolvição é mais longo que longe é esse lugar daqui e o senhor deve observar meus desacertos de luneta. Seja como for, o caso é que o senhor deve ter visto, mas se estava ocupado eu trouxe esta fotografia para te mostrar porque a visão junto com o meu explicadinho, se o senhor é imagem e semelhança, senhor, sem querer ofender com o meu mal-apessoamento, o senhor há de me acudir. Senhor, por caridade, volte vossa atenção, repare neste retrato que expõe algumas partes e o que se vê não são impudicícias, é mais uma questão sacrocientífica, senhor, que o senhor já deve ter debatido sobre uma mesa excelsa entre desenhos e esboços sobrenaturais, com os engenheiros anatômicos de existência que te auxiliam. Pois aqui, tinha gente que chamava esta vossa criação de doença, tinha gente de virar a cara, eu mesmo a primeira vez que lhe bati à porta foi 59


por comiseração. Mas quando vi tanta fartura… ah, entenda minha situação, que foi o senhor que me existiu nesta carestia. Repare no entendimento que tomei de que havia de ser uma coisa divina, que era como se naquele corpo um pouco de homem existissem tantas mulheres que chegava a descaber. O senhor deve estar observando que cada seio é maior que a cabeça que mais abarrota pensamento no mundo. O sexo que diziam que era masculino e um pouco reduzido, não senhor. Percebe a flor de algodoeiro depois da chuva de outubro? É um sexo de mulher, grande e explicado. Ah, senhor, se o senhor me fosse, compreenderia. Da minha visita de comiseração, só saí seis dias depois. E não saí sozinho. Então meu pecado de começo foi nunca mais querer morrer de sede, nunca mais ceder de fome, frio inédito nesta caatinga não ia ser coisa de me estrear no céu. A pessoa que é ordinária nos escassos se afoga até em copo d’água, senhor. Não sei se já teve a oportunidade de atentar à senhora minha esposa, ela te intenciona uma reza todos os dias, uma não que só anda com o terço na mão no pulso no pescoço. Pessoa de fé, que nunca jamais azeda pensamento, tudo nela é retificação. Mas é só isso que nela resta que a carne já secou, o ventre, a pele, o corpo todo dela imita a caatinga, senhor. Foi nessa situação de ausência que o pecado de começo veio em meu prejuízo. Pois bem, vamos juntar as pontas a começar pelo meio, quando eu ainda podia com a minha esperança. Tirei essa fotografia na infâmia do plagiato, meu pecado do meio, a ser realizado em meu próprio leito sempre que eu me forçava a sair do cagatório, com minha própria senhora subtraída a quem eu somava esta imagem no intuito da

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falsificação da pessoa dela, a ver se minha apetência carnal fraudada me reencaminhava para o conforme. O desígnio de mostrar o cromo para o senhor veio depois, não posso te faltar com a verdade nesta hora de sem tirar nem pôr. Senhor, se pensamento for só coisa da imaginação, o pecado de fim é o mais grave, mas ainda não foi cometido. O pecado derradeiro… Senhor misericordioso, devo anunciar com a voz embargada no silêncio o meu pecado último: o suicídio. Assim, me prostro aqui, senhor, a rogar de alma asseada, que me dirija a destrancar esta criatura copiosa de meu cagatório, que me desobrigue a obrigar minha esposa a dar-lhe de comer a própria comida, que me deixe com a visão enxuta e que a minha avidez vire pedra, que eu volte a viver saciado no meu bochecho de vida. Te suplico, senhor, que não me deixe suicidar sufocado entre os peitos dela, que é pra onde eu corro quando cai a noite e só saio se é dia, a esperar que vire noite, querendo mais é me sufocar no escuro. Sei que suicídio é coisa de fechar com tranca os portões celestiais e isso, te imploro, não senhor! Que atrás deles devem viver todos os anjos e, se o senhor é imagem e semelhança, sem ofensa com a minha estampa, deve ter feito todos os anjos à imagem e semelhança da criatura divina dela. Amém.

Carolina Neves

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S o r aya , 1 6

Soraya, 16 anos, corpo curvado e a face encostada sobre a mesa. Testa novamente queimada porque o ferro, a 80°, encostou em sua pele. É necessário aguardar alguns segundos para que o calor faça efeito. Ela espera que os cabelos fiquem paralelamente alisados e, que, paralelamente, não chova. E paralelamente ela sai com Wesley, para quem contará que espera um filho. Paralelamente as ânsias crescem, os cabelos esticam tensos e desidratados, estressados como as nuvens bojudas lá fora. Há um leve cheiro de queimado no ar. Soraya se apressa. Nos olhos de Soraya Procurei o filho da puta do Wesley na casa do Jéferson mas ele não tava lá e eu não sei onde ele tá mas preciso encontrar ele pra dizer prá ele que eu me (a gente?) fodi porque agora eu tô grávida dele e eu não sei o que vai acontecer porque o meu pai é bravo e bateu na cara da minha irmã quando ela contou a mesma coisa e eu não tenho coragem e ele não gosta do Wesley porque ele fica o dia inteiro empinando pipa na laje será que meu cabelo tá bom porque a Jéssica tava na casa dele ontem e a minha testa tá ardendo e o cabelo dela não é alisado será que vai chover e ela é bunduda porque eu não posso pegar chuva ai minha testa a minha barriga tá estra63


nha meu piercing no umbigo machucado meu peito vai cair ai minha porque a gente ele e eu não sei… Com Wesley Wesley, 23 anos, experiente. Rosto queimado pelo sol da laje. Corpo espichado, entregue à calçada em frente ao bar. Os dedos cortados pelo cerol envolvem um copo de cerveja já quente. É preciso que se beba com calma porque a noite é sempre mais longa que o dinheiro. Aos poucos ele vai esquecendo da mãe gritando: sai da laje e vem cuidar do William! Este é seu filho de dois anos com Karina, coisa do passado… Ele ainda não sabe que novamente será pai e neste momento está com Jéferson, 22, que lhe arrumou um esquema com Jéssica de 15. Wesley saía com Soraya, 16, mas isso foi até a semana passada quando soube que Jéssica estava a fim dele. Por enquanto, Wesley se concentra em Jéssica e na cerveja quente. Soraya Durante a caminhada à procura de Wesley, a chuva caiu paralela e obliquamente sobre a cidade, sobre o corpo e os cabelos de Soraya. Ela espera muitas coisas. Mas nesta noite chuvosa, ela espera apenas que Wesley se depreenda de algum lugar do meio da noite.

Rodrigo Viana

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Ausências

Na hora exata em que Marta ia me mostrar o que havia acontecido com Laura, o despertador tocou. Abri os olhos. Era a terceira vez que o alarme interrompia o sonho que se repetia. E interrompia sempre na mesma hora: a hora exata em que Marta ia me mostrar o que havia acontecido com Laura. Levantei e desci para o café da manhã como todos os dias e lá encontrei com Marta, Paulo e mamãe. Como todos os dias, eles acordavam antes de mim e esperei que me recebessem com sorrisos e os habituais “boooom diiiiaaaaa” exagerados de antigamente. Mas apenas Paulo me olhou como antes e me chamou para sentar ao seu lado, me estendendo o jornal na página das palavras cruzadas que ele sempre guardava para mim. Antes de Laura desaparecer, as manhãs eram mais alegres. Depois, eu passei a surpreender mamãe chorando muitas vezes pelos cantos da casa. Claro que era por saudade de Laura, mas quando eu lhe perguntava respondia sempre com um “não é nada”. Eu não acreditava. Não sou boba. Laura era a preferida de mamãe. Mamãe dedicava muito do seu tempo a Paulo por causa da sua deficiência. Paulo não andava desde os cinco anos e, com poucos recursos, mamãe, Marta e Laura se revezavam nos cuidados com a casa e com Paulo. A mim nada pediam embora eu me esforçasse para ajudar. Mais até que a Marta, que tinha sempre um ar de revolta. Marta era uma moça bonita, mas não tanto quanto Laura. Acho que era 65


por isso a preferência de mamãe. Tomei café completando as horizontais e verticais e com Paulo tentando dar uma dica ou outra quando me faltavam os sinônimos. Depois do café, fui para sala de visitas, onde me esperava o Dr. Abílio. Como sempre, me propôs alguns jogos e exercícios de desenhar. O Dr. Abílio era muito bom comigo e me lembro de ficar com a sensação de ele ter me defendido de algo ruim quando aquele moço usando colete esteve em aqui em casa, na noite do dia em que Laura sumiu. Até então eu só via o Dr. Abílio de vez em quando. Depois de conversar com ele pude ir até a horta, onde colhi um pouco de camomila para fazer um chá para mamãe, que parecia estar muito nervosa. Eu entendia que ela sentisse falta de Laura, eu também sentia. Na hora do banho eu tinha dificuldade de lavar com xampu e depois desembaraçar o meu cabelo, grande até a cintura. Mamãe mandava Marta me ajudar, mas ela não conseguia fazer a trança como Laura fazia e puxava meus cabelos com força. Terminava por me fazer chorar e eu via que ela chorava também, mais pelo nariz que pelos olhos, com os dentes trincados. Eu passei a fugir de Marta, ficando mais tempo junto de Paulo, o único que não mudou nada desde o sumiço de Laura. Ele diz que ela foi embora porque quis, porque cansou de nós dois. Eu não sei por que ela se cansaria de nós dois. À noite, antes de deitar, eu me perguntava se sonharia de novo com Marta e com o dia do sumiço de Laura. Mas eu não conseguia nunca prever. Contei o sonho ao Dr. Abílio, que

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escutou atentamente e me fez descrever detalhes e tentou que eu fizesse associações. Percebi que o sonho começava sempre do mesmo ponto e terminava sempre na mesma hora: Na hora exata em que Marta ia me mostrar o que havia acontecido com Laura. E essa hora coincidia com o despertar do relógio, marcado sempre para as oito horas da manhã. Na noite de quarta-feira eu sonhei novamente o mesmo sonho. E na sexta-feira seguinte e no sábado. Na noite de sábado para domingo, eu me deitei mais cedo, pois pensei que se começasse a sonhar mais cedo, daria tempo de ver o que Marta ia me contar antes de o relógio marcar oito horas e o despertador tocar. Então tive um sonho mais comprido. Sonhei comigo e Marta, juntas, vestidas para ir à missa, mas não era domingo. E com Paulo na cadeira de rodas ao nosso lado. Sonhei com o olhar de mamãe e papai. E depois Paulo ficando na soleira da casa, e nós quatro saindo à rua a caminho da igreja. Marta e papai um pouco atrás e mamãe de mãos dadas comigo. Depois eu via a igreja e, ao meu lado, mamãe chorando e alguns parentes que eu só via raras vezes, mais nas festas e nos dias de Natal. E eu perguntava à mamãe porque chorava e Marta me puxava com certa rudeza e me levava para a rua e quase me arrastando tomava o caminho do rio, para o ponto aonde ia me mostrar o que havia acontecido com Laura. E novamente o despertador me acordou. Aos domingos o Dr. Abílio não vinha conversar comigo e pensei em anotar o sonho para contar-lhe na segunda-feira, mas Paulo me distraiu de manhã e perdi a vontade. Que diferença?

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Depois de tomar meu café só com Paulo, mamãe me pediu para ir ao mercado comprar farinha de trigo e leite e eu pensei se ela ia fazer o bolo de chocolate que era o meu preferido e também o de Mateus. Fui correndo, só pra voltar rápido e poder perguntar-lhe. Ela estava na cozinha e não ouviu quando eu entrei por trás, pela porta do quintal. Não ouviu porque Marta gritava e seus gritos podiam encobrir os ruídos normais da casa e seu ódio podia cobrir o céu e suas lágrimas cobriam já a toalha da mesa da cozinha. Eu pude ouvir pouca coisa antes que me vissem: — Ela é a culpada de tudo, mamãe, desde o Paulo na cadeira, foi ela que o empurrou. E mamãe com as lágrimas controladas: — Era muito pequena… Foi um acidente. E Marta engasgada: — Não foi, não foi, você sempre a protegeu e agora isso… Eu fiquei paralisada. Elas falavam de Laura! Do sumiço de Laura, que fazia mamãe sofrer de saudade e fizera papai partir, eu acho que foi procurá-la. Larguei as compras no chão, interrompendo a discussão, e ignorando os chamados de mamãe corri até perder o fôlego, sair do quintal e parar só na beira do rio. Laura fora embora, causara dor a todos e ainda por cima, era a culpada da invalidez de Paulo. Minha cabeça doía e tive medo daquilo que o Dr. Abílio chamava de “ausências”. O esforço dele era para me fazer lembrar do que eu pensava nas minhas “ausências”. Mas dessa vez não aconteceu. Ao contrário, comecei a lembrar de muitas coisas de muito antigamente. De Laura. Principalmente, do meu sentimento por Laura.

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Na verdade, desde a minha infância, a pessoa mais presente em minha vida fora ela, mais que mamãe ou papai, mais que Marta ou Paulo. O meu prato feito, a roupa escolhida sobre a cama, a hora de cortar as unhas. Laura, sempre Laura. A boazinha. Laura, mais velha que eu, me defendendo das outras crianças na escola. Me pegando na mão para atravessar a rua. Ajustando os cordões para a mochila pesar menos nas minhas costas. Laura inteligente. Descobrindo maneiras de me explicar os pontos mais difíceis, e eu me negando a entender até o que já havia aprendido, para vê-la se empenhar com mais desvelo e sem nenhuma impaciência. Laura prendada. Ajudava a mãe na cozinha e insistindo em fazer, sempre, o bolo de chocolate, porque era o meu preferido. E arrumando a minha cama quando eu me recusava a fazê-lo. E a Laura misericordiosa. Essa me fazia mal. Eu via nos olhos dela uma nuvem cinza que era uma mistura de amor, de dor e de pena. De pena. Não, isso eu não queria ver. Eu quase não pude suportar quando Laura resolveu namorar o Mateus. O Mateus que chegou lá em casa e sem pena nenhuma me olhou com um olhar curioso. Curioso. Sem pena. E nos entendemos. Não do jeito que a Laura me entendia. Nem do jeito da mamãe ou do Paulo. Muito menos do jeito que ouvi mamãe contar a Marta, que foi o jeito que meu pai me olhou pela última vez, depois daquela missa, pela primeira vez sem Laura, e com os parentes dos dias de festa, todos tão tristes. Com os olhos no chão, me disse: “me desculpa, eu não consigo”. A mãe não contou a Marta porque ele se desculpou comi-

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go e, assim, fiquei sem entender. Acho que pediu desculpas porque ia embora, ia procurar Laura. Mas o que ele não conseguia? Chorei muito porque nunca desconfiara de Laura e de sua disponibilidade, de sua generosidade. E agora, eu sabia que era ela a culpada de tudo. No almoço, Paulo observou que estávamos todas tristes e caladas. Disse que precisávamos superar o sumiço de Laura, ele estava certo de que ela mesma quisera ir embora. À tarde, sem que eu sentisse o cheiro do bolo de chocolate, Mateus apareceu lá em casa. Mais magro e sem jeito. Tinha os olhos pisados e me olhou com um olhar vazio. Continuava sem sentir pena, mas também não tinha mais curiosidade. Veio se despedir, ia partir da cidade, pegou minhas mãos e beijou de leve, como se fossem frágeis, como se fossem as xícaras porcelana fininha da mamãe, eu me quebrando mais era dentro do peito, um nó mais embaixo na barriga e mantendo a atenção em ter os olhos secos, não fosse ele pensar que eu chorava também por Laura. Na segunda-feira, tive que dizer ao Dr. Abílio que não me lembrava de nada desde o momento em que Mateus me beijou as mãos até a hora em que o despertador tocou me acordando de novo na hora exata em que Marta ia me mostrar o que havia acontecido com Laura. Mas dessa vez, ao abrir os olhos ainda estava escuro. Olhei o relógio e vi que eram três horas e quarenta minutos. Eu acordara e não tinha tocado o alarme e me assustei até perceber que o alarme estava no sonho. O alarme do sonho tocara mais cedo e me impedira de saber o que Marta ia contar, o que havia acontecido com Laura.

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O Dr. Abílio falou de subconsciente e de negação e outras coisas difíceis de entender, como falou naquele dia do sumiço de Laura com o homem que usava um colete e que também tinha uma arma na cintura. O Dr Abílio falou de inimputabilidade e juízo da realidade. E isso foi antes de eles me levarem a um hospital grande onde eu passei algumas horas fazendo exames e mais testes daqueles de desenhar e jogos de memória, que tantos, eu fiquei cansada e entrei em “ausência” e ouvi depois o Dr. Abílio dizer que eu tinha um disjuntor na cabeça e que ele desligava quando a carga era excessiva. Naquela segunda-feira, o Dr. Abílio conversou com mamãe e Marta na cozinha antes de ir embora e percebi que elas ficaram agitadas e que, à noite, Marta fechou a porta de seu quarto e de Paulo com chave. No dia seguinte, quando o Dr. Abílio chegou, eu me queixei que desde que Laura fora embora, eu nunca mais comera bolo de chocolate. A última vez tinha sido num piquenique de que eu me lembrava, e que eu nunca tinha contado a ele, por causa de Laura, mas agora que ela se fora e que eu sabia que ela era má, eu podia contar. Nós fizemos um piquenique na beira do rio e Laura fizera o bolo que era o meu preferido, e depois de jogarmos bola eu resolvi comer o bolo e tomar um refrigerante dos que a gente tinha levado num isopor azul claro, cheio de gelo. Laura e Marta foram nadar e só Mateus quis comer alguma coisa, mas pegou um sanduíche, dizendo que o bolo de chocolate era para as crianças. Encarei o Mateus com um olhar provocador e lhe disse que eu não era mais criança, já tinha feito quinze anos e já podia

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até mesmo namorar. Ele assumiu uma expressão ao mesmo tempo de galhofa e curiosidade. O olho curioso vagou pelo meu corpo de cima a baixo e se concentrou na minha boca. Depois olhou para o alto da escarpa de pedra ao nosso lado, de onde caía uma pequena cachoeira, e de novo olhou nos meus olhos e era um olhar de desafio. Sem dizer nada se encaminhou para as pedras e começou a subida. Não era muito alto nem difícil de subir. Eu fui seguindo, ele não olhava para trás, Laura chamava lá do rio. Lá no alto era bonito e, lá de baixo, eu nunca tinha visto aquelas pedras todas e o limo em volta do riacho que desaguava lá no rio onde ficaram Laura e Marta que a gente não via mais. Mateus segurou meu rosto e me beijou. A minha cabeça girou e girou. Depois, a gente estava lá embaixo, e voltei para casa sozinha, os outros continuaram no rio e devem ter comido todo o bolo de chocolate e também todos os refrigerantes porque eu nunca mais achei aquele isopor azul-claro lá em casa. Deixei o Dr. Abílio sozinho porque o Paulo me chamou e fui correndo atendê-lo, pois podia estar com sede ou fome e o degrau da porta da cozinha não permitia que entrasse. Peguei sorvete para nós dois e ficamos na varanda, e da varanda vi mamãe e Marta se despedindo do Dr. Abílio que me acenou de longe. Naquela noite, eu fiquei observando, e vi que Marta depois de discutir com mamãe só foi se deitar depois de fechar a porta dela e de Paulo a chave. Fiquei um pouco incomodada e custei a pegar no sono e vi as horas girarem no mostrador do relógio e mergulhei num

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sono estranho em que comecei de novo a sonhar e era Marta de novo, me puxava da cama e me dizia que hoje sim, ela me diria. Eu não queria saber? Não a procurava em sonho todas as noites para saber o que havia acontecido com Laura? Me arrastou porta afora e o sol ainda estava nascendo, hoje daria tempo sim, eu pensei no meu sono, e fui correndo, caindo e levantando. Pés descalços atrás de Marta, pela rua até a beira do rio e o sol nascendo e o tempo passando, e eu seguindo Marta até o alto da cachoeira, e lá estava Mateus. Mateus me beijando e a minha cabeça girando e agora Laura, o grito de Laura, o olho envergonhado de Mateus, e Marta ao lado na expectativa, e eu com raiva de Laura que socava o peito de Mateus e eu tomando impulso e Laura caindo. E, de novo, só eu e Marta que me dizia o que havia acontecido com Laura, o que eu fizera com Laura, e eu, de olhos fechados, e vendo o corpo de Laura estatelado nas pedras e o rio manchado de sangue. E Marta me mostrando o que acontecera a Laura e eu contando os minutos e os segundos que faltavam para tocar o alarme do despertador que não tocou nunca mais.

Vera Rocha

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Carne moída

A maneira tranquila com que Bernardo caminha não transmite seu real estado de espírito. Isso é um pouco estranho, já que não se esperaria essa capacidade de dissimulação de um garoto de nove anos. E ele sabe que, mesmo tentando parecer calmo, a única coisa que poderá eliminar a razão do seu estado de nervos é comprar de uma vez no açougue um quilo de patinho bem limpo, moído na hora e duas vezes. O andar estudado e calmo é uma tentativa de enganar a si próprio, ele talvez não se dê conta disso, ou talvez se dê, mas é certo que ainda não tem autoconhecimento suficiente (talvez nunca venha a ter) a ponto de isso estar claro na sua cabeça, e acho que ele nem quer que a ideia fique tão clara. Por isso mesmo, repete em silêncio as especificações da carne que a mãe mandou buscar. O passo arrastado tenta fazer com que o percurso demore mais. O Zé estará lá, com as munhequeiras de couro, a careca com a cicatriz no meio, a cara de maluco, esperando para meter a faca. Qualquer palavra mal empregada pode ser fatal, e sua tarefa não se resume a pagar e receber. É preciso pedir que o açougueiro limpe bem o patinho, que tire todas as partes brancas, que moa a carne na hora e que moa duas vezes. Duas vezes, a mãe repetiu. Bernardo não sabe se terá coragem de fazer todas essas exigências quando estiver frente a frente com a cara de maluco do Zé, cuja fama pode ser mentira, como a mãe sempre diz, mas não é ele – Bernardo – que se arriscará para saber. Melhor manter-se alerta. E a mãe parece querer jogá75


-lo aos leões a todo instante, vá no açougue comprar isso, vá no açougue comprar aquilo, passe no açougue e leve isso, peça aquilo no açougue. E então tem que enfrentar sozinho o Zé com as munhequeiras de couro e a cicatriz no meio da careca. Como se não bastasse, Boca Roxa atravessa a rua correndo, porque avistou o amigo, se aproxima e pergunta se ele quer ir ver a perna. E quando Bernardo responde que não pode ir ver a perna porque tem que ir ao açougue, o sorriso do outro parece dizer que ele talvez esteja com medo. E é por isso que então diz que sim, quer ver a perna sim, mas antes tem que ir ao açougue. E novamente o sorriso de Boca Roxa deixa transparecer a ideia de que Bernardo também talvez esteja com medo de ir ao açougue. Vai comigo no açougue? Depois a gente vai ver a perna. Boca Roxa, surpreendido pelo convite, deixou sua reação entregar que estava com medo de chegar perto do Zé. A réplica inteligente e rápida do mais novo o surpreendeu – é preciso tomar cuidado com Bernardo, pensou –, o desafio de levar o amigo para ver a perna agora depende de sua coragem para encarar o açougueiro. Pensou por poucos segundos, tentou inventar alguma desculpa minimamente plausível, mas a mera hesitação já o faria perder pontos. Aceitou o convite no reflexo e agora já não pode voltar atrás. Seguem em silêncio. A mim, parece que buscam alguma coisa a dizer, algo que provoque o outro de maneira sutil, mas nada lhes ocorre, e o desafio se limita a apressar o passo, provavelmente para que fique claro que ninguém ali está de moleza, com medo de encarar o Zé. Nem a perna. Quando entram no açougue, ele está sentado do lado de

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dentro do balcão e mexe sozinho em um tabuleiro de xadrez. Com uma das mãos move as peças e, com a outra, gira lentamente a faca. Sangue pingando da faca. Fala. É ele. E Boca Roxa aponta para o outro. Um quilo. Um quilo de quê? Esqueceu o nome da carne. Veio repetindo para si mesmo durante boa parte do percurso, mas não consegue lembrar. O tipo de carne não vem à memória, apenas as exigências (bem limpo, moído na hora e duas vezes) e uma saída lhe parece duplamente conveniente: voltar para casa, fugir, mesmo que momentaneamente, da vista do Zé e talvez se livrar do amigo (e da obrigação de, depois, ir ver a perna). Tenho que perguntar à minha mãe. Vou lá em casa perguntar e volto. Vira-se de costas para correr, mas o Zé o interrompe. Você não é filho da Matilde? Sou. O açougueiro ri um riso de maluco, ou de mau, e gesticula com a mão que segura a faca. Vamos ali dentro que tem um telefone. Liga daqui e pergunta. O Zé, sorrindo, conduz Bernardo através de um corredor na parte de trás do balcão e os dois entram por uma porta. Do lado de fora do balcão, Boca Roxa está apreensivo. Não sabe se a fama do Zé é verdadeira, mas ele, como todos os outros garotos, espalha histórias das coisas que o açougueiro faz com meninos no terreno baldio que fica atrás do açougue, e

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pode ser que agora mesmo, neste exato momento, o Zé esteja fazendo alguma coisa com Bernardo, e o amigo até cogitou a possibilidade de atravessar os limites do balcão para ajudar o outro, ou apenas matar a curiosidade e olhar o que eles estão fazendo. Vontade rápida. Boca Roxa se mantém no mesmo lugar, nervoso, apenas esperando, porque está com medo. Na sala, há um frigobar velho e uma mesa com um telefone em cima. Na parede, um calendário com foto de mulher pelada e uma janela gradeada de onde Bernardo vê um terreno abandonado com uma árvore meio seca. Nada mais. O telefone da Matilde eu sei de cabeça. Senta-se na mesa, e disca com um sorriso besta na cara. Alô Matilde? Qual é a carne que você quer? É. Ele tá aqui, sim. Esqueceu o nome da carne. Um quilo? Tchau. O Zé desliga o telefone, abre a geladeira, pega um saco plástico com uma carne não muito vermelha, entrega a Bernardo e fica esperando o dinheiro com cara de má vontade. Não há a menor condição de pedir para moer na hora, nem duas vezes, nem nada. A carne já estava no saco. E voltam os dois pelo corredor, o Zé com a faca numa mão, o dinheiro na outra, o garoto sem coragem de pedir o troco — a mãe deixou explícito que é para esperar o troco. Mas o Zé não vai entregar o troco, e os garotos vão sair sem olhar para trás, os dois se cagando de medo, um sem querer demonstrar isso ao outro, em silêncio, passos apressados, e saem dali. Bernardo deixa escapar um “Caralho…” e o outro ri amistoso, porque não consegue vestir armaduras com o medo que está sentindo e, de qualquer maneira, sempre poderá se valer dis-

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so mais tarde. Por ora é melhor manter as armas baixadas, estão os dois no mesmo barco, o mais velho riu relaxado, e emendou sem dar tempo para o amigo respirar: agora vamos lá ver a perna? Bernardo percebeu o momento de erguer as armas novamente. Vamos. E enquanto dão a volta no quarteirão para chegar ao terreno baldio, Boca Roxa fala da perna, tentando tratar o episódio do açougue como coisa banal, que já estava esquecida, apesar de suas pernas ainda não estarem muito firmes. No dia em que a encontrou, passou mal, chorou. Isso ele não conta a ninguém. A perna fedia. Mas agora, já não lhe causa espanto nenhum. Jogou um plástico preto em cima dela e um pouco de mato em cima do plástico. Agora, leva os amigos ao terreno baldio para mostrá-la, tratando o assunto como segredo de Estado. Leva um por um. Enquanto o amigo se assusta com o membro em estado inicial de decomposição, ele se mantém calmo, sorrindo até. Isso vem lhe garantindo mais autoridade entre os outros garotos, e foi por essa razão que levou Bernardo até a perna, no fundo do terreno baldio, mesmo apesar do lusco-fusco do fim de tarde, que não permitiria aos dois observar com clareza o pedaço do corpo de alguém que tinha sido largado ali, sabe-se lá por quê. Quando Boca Roxa tira o plástico de cima da perna, o que se vê é uma nuvem de moscas levantando voo. Bernardo está tenso, Boca Roxa percebe, e parece que começa a vencer finalmente a disputa que se iniciou no momento em que se encontraram, uns quarenta minutos antes, a caminho do açougue. A cara do mais novo deixa claro que a imagem da

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perna, meio rosada, cheia de moscas em cima, mexeu com ele. O que Boca Roxa não sabe é que o espanto no rosto do amigo não é só por causa da perna, meio dobrada, com uma ferida estranha na panturrilha, onde se vê uma carne não muito vermelha. Bernardo reconheceu a árvore e a janelinha com grades do muro dos fundos do terreno baldio. Ele consegue ver dentro da janela: a luz está acesa, o telefone em cima da mesa toca. O Zé aparece para atender. Boca Roxa também se dá conta de que o terreno baldio onde eles estão é o mesmo em que o Zé supostamente faz as coisas com os garotos. Os dois não precisam trocar palavras sobre isso. Por um instante, os dois têm a impressão de que o açougueiro os viu mexendo na perna, e isso faz com que desembestem numa carreira desesperada, Bernardo tropeça, o saco com a carne cai no chão e se abre. Ele empurra mais ou menos a massa amolecida e meio rosada para dentro do saco, e isso gera um enjoo azedo. Levanta-se rápido, o amigo já está lá na frente e se esqueceu de cobrir a perna com o plástico – mas só se dará conta disso mais tarde. Estão correndo de volta para suas casas e quando passam em frente ao açougue, o Zé grita chamando os dois. De início, fingem que não perceberam, indecisos, sem saber se olham para trás ou continuam correndo. Quando se dão conta, o açougueiro está correndo atrás, gritando, chamando, e continuar correndo agora seria fazê-lo perceber que estão descaradamente fugindo dele. Param. O açougueiro também para de correr e vem andando com a faca na mão. Sangue pingando da faca. Vamos ali no açougue rapidinho.

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Só ele? Boca Roxa tentando fugir. Não. Pode ser os dois. Bernardo tentou sair correndo, mas o Zé estava andando atrás, com a faca – pingando sangue – na mão. A sua mãe tá preocupada com você. Ligou para o açougue te procurando. Pode entrar. Levanta o balcão para o garoto passar. Só ele? Boca Roxa tentando fugir de novo. Os dois, responde de má vontade. Da sala, os amigos olham pela janela, mal veem a árvore meio seca, está quase totalmente escuro lá fora, olham um para o outro ao mesmo tempo e não comentam nada. O açougueiro pega um saco de carne no frigobar e entrega a Bernardo. Entrega mais esse saco a sua mãe. Fala que é cortesia da casa. O teu troco. O mesmo sorriso besta de antes. Enfia a mão no bolso e pega uma nota de cinco. Eles não têm mais pressa, Boca Roxa comenta da perna, dizendo que o amigo não precisa ter medo, que se ele chorar de medo, os outros vão saber e ele vai levar porrada. Mas é melhor não comentar sobre o que acabou de acontecer. Você não pode falar disso com ninguém. Vai à merda, Boca Roxa. É preciso tomar cuidado com Bernardo, ele pensa outra vez, sem saber como responder ao que o outro disse. A mãe está no muro esperando, nitidamente contrariada. Faz questão de que o filho perceba. As razões são várias. Bernardo só agora se dá conta de que já está escuro (e não era para ele estar fora de casa) e de que está sendo visto ao lado de Boca Roxa (apesar das ordens explícitas para que não andasse mais com o amigo, porque ele é mau elemento).

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Entra em casa sem se despedir do outro e finge não perceber o olhar reprovador que o espreita. Entrega a carne à mãe e segue andando. Que carne é essa? A que a senhora falou. Ele moeu na sua frente? Moeu. Eu vou perguntar mais uma vez: ele moeu essa carne na sua frente? Moeu, mãe. E esse outro saco? Ele disse que é cortesia da casa. Matilde permanece séria. Vai até o telefone e percebe que o filho a observa enquanto disca. Vai pro teu quarto. Bernardo está no quarto, tentando ouvir a conversa da mãe no telefone, mas só ouve as risadas dela. Boca Roxa entra em casa sem que a mãe o recrimine por chegar tarde, e isso o incomoda. Lembra-se de que deixou a perna descoberta. A perna ficou lá, cheia de mosca em cima.

André Tartarini

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Ai, se pega no olho!

Era uma tia, não importa bem de quem. Sempre tinha uma por perto para contar as histórias terríveis. Nessas histórias não variavam nem personagem, nem o final: Uma criança desconhecida pelas outras presentes acabava morta. O motivo é que convenientemente mudava: Tivesse pipa, a tal criança morreria eletrocutada ao tentar resgatar a sua nos fios de alta tensão. Fosse dia de piscina, a criança morreria ou depois de pular do último andar da plataforma de saltos ornamentais ou por mergulhar com a barriga cheia do almoço. Também tinha a do sufocamento com bala soft, a da queimadura por abrir a lata de leite condensado cozida na panela de pressão ainda quente e a mais assustadora, a do suicídio após incorporação do espírito do copo (aquele mesmo do jogo). O tom era sempre solene, algumas vezes a tia lamentava a perda de tão bom menino por uma besteirinha. Acreditava-se, sempre. Pois quem iria duvidar daquelas que sabiam deixar a morte assim tão perto?

Ana Kemper

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Café com leite

Éramos umas 5 crianças brincando de pique-pega naquela tarde na fazenda. Tirando o caçula, de 2 anos, girávamos em torno dos 7 anos de idade. E ele só tinha entrado na brincadeira, óbvio, como café com leite. No início, ele ficou todo feliz de ter sido admitido no grupo. Mas, depois de uns quinze minutos, o moleque que mal tinha controle das consoantes ainda, começou a se irritar por não ser pego ou por não aparentar nenhuma ameaça. Ninguém corria dele, em algum momento ele reclamou, alguém disse que ele era café com leite, que não valia correr dele, que era covardia porque ele era pequeno. Eu tinha duvidado que tivesse entendido o café com leite, quando o pirralho enfurecido olhou em volta, meteu as duas mãos num monte de bosta que estava ali ao lado e, com um grande sorriso no rosto rubro de raiva, disse: — Quero ver quem não corre de mim agora! Foi a primeira e única partida de pique-bosta que a gente teve na vida. E nunca corremos tanto naquele campo.

Ana Kemper

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Xico caiu no mar

— É agora, Filhão. Dá tchau pro Xico. “Não, eu não quero ir!” — Ele não quer ir, Papai. O homem olhou para o horizonte para que o filho não testemunhasse seu longo suspiro. — Mas ele tem que ir, filho. A gente já conversou sobre isso… “Não. Não e não. Não quero ir, quero brincar mais.” — Por quê? O menininho contraiu o rosto tentando espremer algumas lágrimas à guisa de argumento, isso de ter porquê era coisa de adulto e era muito triste. O pai se agachou e apontou lá para o fim, onde o que era mar se borrava com o que era céu. — Tá vendo, o sol está indo embora. É a hora dele. Tem hora para acabar tudo. Agora está acabando o sol. E é hora do Xico ir embora. Xico não olhou para o horizonte, não disse nada, mas discordou profundamente. O terral começou a varrer frio naquela beira de mar. O homem sentiu no filho a falta de agasalho, franziu os olhos para tentar ler a hora nos relógios digitais lá do calçadão e achou que já era demais. Negociou. — Vamos fazer um acordo? Tá vendo o sol? Ele já está na metade, quando ele sumir e ficar tudo escuro, a gente vai embora e deixa o Xico ir também. — O sol quando cai no mar vai embora? 87


— Não, filho, ele se esconde do outro lado do mundo e volta amanhã. — O Xico pode voltar amanhã também? O tom ríspido do Papai abreviou suas esperanças, e assim Xico, tombou, derribou, caiu para trás. Ainda não tinha certeza de que queria ir. Papai e Filhão seguiam negociando a continuidade de sua existência, e, à medida que Filhão desamarrotava a cara e ameaçava sorrir, Xico percebia suas chances minguarem. Soprou a Filhão as brincadeiras que eles poderiam fazer; cobrou os abraços cerrados e todas as confidências guardadas. Filhão nem ouvia Xico. As gaivotas zuniam e barulhavam a tarde que se extinguia. Filhão já não fazia bico: catava conchinhas. Papai selou a derrota de Xico com uma promessa: McLanches felizes. Com o êba do menino, Xico entendeu e se entregou. Não podia mais. Não queria ficar entre Filhão e a McFelicidade. E achou-se acima e além de Papai (e suas chantagens alimentares), das gaivotas e dos banhistas retardatários. Aproveitou um terral misericordioso e se despregou do chão de pedra, cambaleou, ziguezagueou pelas gretas de arenito e deixou-se cair peluciosamente no mar, junto com o sol, só que sem se esconder, nem voltar amanhã. …Filhão nem notou direito a partida de Xico, (seu lugar na estante logo trocado por uma surpresa plástica) — mas nessa noite teve que dormir na cama de Papai.

Julio Silveira

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Crônica

Desci a Marquês de São Vicente em direção ao Leblon. Parei no mesmo sinal de todos os dias, fechado. Bartolomeu Mitre com Rodrigo Otávio. O boneco vermelho piscava em ampulheta néon a pressa dos carros já engrenados. Neste dia quem avultava o cruzamento não eram eles. Crianças. Muitas crianças. Uma dúzia de crianças talvez, de todas as idades, crianças, mais de dez, talvez quinze crianças que não tinham pressa, ocupavam a calçada, o asfalto, costuravam as primeiras quatro filas de carros com suas bolas de tênis a girar no ar, a cair no chão e suas mãos a catá-las, a bater nos vidros escuros dos carros blindados ofertando a palma. Dez, talvez doze, talvez quinze crianças que abrangiam uma vasta gama de habilidade circense e uma reduzida variação fenotípica. Os desempenhos não interferiam no preço de mercado de suas exibições, baixo, menor que os resquícios católicos dos motoristas, menor que os adesivos nos vidros fumês sobre a fidelidade divina. Sinal verde. As crianças se juntaram numa das calçadas, a oposta a minha. Se agruparam erráticas, desordenadas, como o resto da cidade. Emaranharam-se em suas poucas roupas, úmidas as peles, dez ou doze ou quinze crianças carecas ou desgrenhadas, e sujas, como o resto da cidade. Empurravam-se no meio-fio entre festivas e violentas, como o resto da cidade. Uma e outra se desequilibrando, caindo petulantes e frouxas no asfalto, assustando os motoristas, como a cidade. Uma esbarrou num retrovisor a 60 km/h, abriu um sorriso banguela, um sor89


riso de criança banguela, nada definitivo, largo, espaçoso, bonito, inconsequente, preguiçoso, como o resto da cidade. Num canto, duas maiores averiguavam o ganho de três pequenas, lhes zombavam baixando os shorts de malha gastos além do possível, lhes saquearam com a autoridade de sua condição, como o resto da cidade. Uma das pequenas chorou, chorou alto, bateu o pé, xingou, reclamou sua moeda, gritou, impotente, como a cidade. Outra se encostou num poste de iluminação apagado, quieta, esquecida, como o resto da cidade. Cabisbaixa, doente, encostada num poste da cidade doente, cabisbaixa. O boneco vermelho acendeu em ampulheta néon a pressa dos carros ainda engrenados, a pressa dos transeuntes, atrasados. As crianças desenharam sua cama de gato entre os carros obrigados a parar. Elas não tinham pressa, tinham bolas e a pele úmida, como a cidade. Eu atravessei, segui meu caminho, como o resto da cidade.

Carolina Neves

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O bilhete

Ainda era noite quando Tito foi acordado por seu primo, que o sacudiu nervoso e apressado. Levanta, moleque, levanta. Eu tenho um serviço pra você. Tô te esperando lá fora. Anda logo. Tito pulou do colchonete, mas demorou para encontrar seu caminho dentro do barraco escuro e abafado. Saiu todo suado ao encontro do primo, que lhe entregou lápis e papel. Escreve aí. Tito o interrogou com o olhar. Desde novo aprendera que ficar calado nunca causava problema. Escreve. Anda, moleque, que eu tô com pressa. Tito saiu em disparada estrada afora, noite adentro. A pouca iluminação da rua não o incomodava. Estava acostumado. Mas as palavras do bilhete, sim as palavras que havia escrito não saíam da sua cabeça. Preferia empinar pipa, o que lhe garantia um troco sem maiores confusões e ainda ajudava nas compras da casa. Se sentia orgulhoso quando entregava à mãe um quilo de arroz ou feijão, um saco de pão fresquinho e, certa vez, até um frango de padaria. Mas desta vez, sei não. Não parecia certo. Assim que encontrou um poste, tirou o papel do bolso, desdobrou com cuidado e voltou a ler o que tinha escrito. Dobrou novamente, as mãos tremendo, e correu o mais que pôde para deixar para trás os pensamentos. Quanto mais apertado ficava seu coração em disparada, mais rápido repetia: Não tenho nada com isso. Não tenho nada com isso. Se sentiu orando com o mesmo fervor das senhoras do culto que a mãe o obrigava a frequentar. Lembrou das palavras do pastor Osório e prometeu aju91


dá-lo dois domingos se acordasse daquele sonho. No rastro do primeiro rabisco de luz no céu, Tito chegou ao endereço que procurava. Ele parou, olhou a casa que parecia insone, com suas luzes acesas àquela hora, apertou o bilhete no bolso assegurando-se de que não havia caído pelo caminho, respirou fundo, atravessou o portão e cruzou o quintal em silêncio, devagar. No beiral, por impulso, fez o sinal da cruz, antes de seus dedos de menino empurrarem o bilhete por debaixo da porta, até não senti-lo mais nem nas pontinhas. Levantou-se, bateu com força na porta três vezes e correu sem olhar para trás. D. Mercedes ainda viu o pequeno vulto correndo longe quando se abaixou para pegar o papel. Não o abriu, palavras nunca lhe disseram nada, em vez disso, apertou a folha numa tentativa de apagar o que de mais escuro havia na mensagem. No fundo, sabia, nem era preciso ler. E assim ficou, o olhar perdido no fogo a esquentar a chaleira que começou a apitar baixo e depois um pouco mais alto e mais alto até Rosa entrar e desligar o botão. Mãe, o fogo. Assim queima o cabo. D. Mercedes estendeu o bilhete à filha e, de costas, como um bicho sendo marcado, ouviu as tais palavras, que não se apagariam nunca mais. As notícias correm rápido. Assim, quando D. Mercedes saiu de casa, uma onda de silêncio pareceu abrir alas no morro para sua passagem. Com vestido de domingo, finamente penteada, um embrulho em uma mão e a bengala na outra, D. Mercedes subiu com vagar as ruas de terra, coisa que há muito não fazia. Desde que os médicos a proibiram de andar por causa das varizes que consumiam suas pernas prestes a

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explodir. Ela continuava fazendo os melhores doces da comunidade, mas não os entregava mais, tarefa da filha a quem ensinava seus segredos. No dia de Cosme e Damião, a casa de D. Mercedes era uma alegria só, cheia de crianças à procura de guloseimas. Todo ano, uma semana antes da data festiva, ela parava todas as encomendas para colocar em pacotinhos coloridos, fechados com laços, bombons, cocadas, carinho e brigadeiros para a meninada. A senhora atravessou vagarosa as ruelas sob o olhar solene da vizinhança. Não se sabe onde, nem quem começou o canto, mas o que se viu foi D. Mercedes a arrastar consigo muitas vozes em prece, numa oração que subiu o morro, tirando Bené de casa antes do café. O tom das indistintas palavras pesavam como densa nuvem a apagar o sol. D. Mercedes viu Bené, que a esperava do alto de seu posto, do alto dos seus 20 anos, e viu nele apenas a sombra do menino que jogava bola na praça. Subiu os últimos degraus com dificuldade e, quando enfim chegou, recusou a cadeira que lhe ofereceram. Queria estar de pé. Benedito, eu trouxe este presente para você. Por favor, aceite esta cocada, sua preferida, e me dê meu filho. Eu não preciso saber o motivo, só quero meu filho pra poder… As palavras se embolaram em sua boca, mas engoliu o choro que D. Mercedes não era mulher de quebrar na frente do inimigo. Bené assentiu com a cabeça e entrou. D. Mercedes ficou esperando. Para não cair, ela apertou com força a bengala, quando viu o corpo aparecer carregado por dois rapazes. Empurrada por suas lágrimas que caíam, numa enxurrada de derrubar barraco e arrasar vidas de um momento para outro, desceu a ladeira de volta até em casa. D.

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Mercedes na frente, o filho morto atrás, um cortejo. O enterro foi naquele mesmo dia, para poucos, que morte assim não pede formalidades. Ao cair da noite, mãe e filha fecharam-se em casa. E mesmo exausta, antes de deitar, D. Mercedes ainda se lembrou de guardar o vidro de chumbinho, que esquecera na cozinha, de volta no armário.

Alexandra Maia

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Castanho

Eu li outro dia: ao acordar, escreva. Antes de falar com qualquer pessoa, antes de se levantar. Deixe que o fluxo do seu subconsciente se derrame sobre as teclas do computador. Na verdade não foi isso que ele disse no livro, ele é uma pessoa antiga, talvez já até tenha morrido, o livro é antigo. Ele escrevia à mão. Talvez escrevesse numa máquina de escrever. Talvez tenha comprado uma daquelas máquinas de escrever silenciosas, que custavam muito caro, caso fosse casado e não quisesse acordar a esposacom seu subconsciente, porque aí teria que dizer — bom dia para você também, e o antifluxo do consciente veria a folha de papel em branco e entenderia a necessidade das letras se agruparem em palavras e buscaria as palavras que são boas palavras para formarem frases que são boas frases e formam bons parágrafos e os parágrafos são bons quando têm mensagens e querem dizer alguma coisa ao mundo. Isso é muito diferente de se dizer o que verdadeiramente se quer dizer. Ele era, ou é, se ainda estiver vivo, um escritor. Escritores às vezes querem passar uma mensagem. Pastores também. Padres e políticos também. Professores. Pais e mães querem passar uma mensagem. Então certamente ele comprou uma dessas máquinas de escrever silenciosas que custavam muito caro na época dele, para usar quando não desejava passar uma mensagem. E também, antes de dormir, acredito que ele preparava um café e colocava numa garrafa térmica, porque ele queria mais dizer que não convinha fazer um café porque para tal, teria 95


que se pensar se a água já ferveu e quantas colheres para que o café não fique nem forte demais nem fraco demais e isso já é um antifluxo per se. Mas tenho certeza de que ele é, ou era, caso já tenha morrido, uma pessoa que aprecia muito um café forte e sem açúcar logo que acorda. Eu apreciaria se fosse autorizada. Mas eu não era autorizada a algumas apreciações antes. Agora eu praticamente não sou autorizada a nada, a diferença é que agora ninguém dá a mínima. Inclusive porque eu não sou uma escritora, nem pastora, nem mãe, nem professora. Portanto, deve ter um capítulo no livro onde ela faz a exceção para o ato de abrir a garrafa térmica e despejar o café na xícara, sem, naturalmente a distração antifluxo que seria adoçar o café, porque então, teria que se pensar quantas colheres de açúcar seriam necessárias para que o café não ficasse nem doce demais nem amargo demais. Desta maneira, ao acordar, imediatamente derrama-se o café na xícara. E nas teclas, as comportas do subconsciente que foram abertas pelo sono para descobrir-se o que verdadeiramente se quer dizer, sem que isso seja uma mensagem. Não acho que dizer o que verdadeiramente se quer dizer seja uma mensagem, como um sermão é uma mensagem. As notícias dos jornais são mensagens. Nas que falavam sobre mim diziam: perversão de raciocínio, sofisticação, ilação contida nas premissas, humanidade manca, causa antipática, subterfugio, repúdio, orfandade, abominação, repúdio, repulsa, repúdio. Mas para acordar e abrir as comportas do subconsciente, tem-se que dormir e dormir é uma questão de fé. Como nas mensagens dos pastores. Tem uma mulher que dorme aqui que acredito que seja pastora por causa das mensagens

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e porque ela é sempre a primeira a dormir. Para dormir tem que se acreditar que nada de terrível irá acontecer no meio da noite. Nenhuma catástrofe natural, como um tsunami. Não se abaterá a ira dos céus nem de nenhum conhecido ou desconhecido armado com uma faca ou um revólver ou uma AR-15, caso tenha acesso a uma. Mas eu exercito a minha fé de outra forma, porque fé para mim é conformar-se. Tomar a forma que algum sistema tem, por exemplo. Sistemas são maiores que pessoas. Por isso não penso muito em Hitler, penso em Newton e na Bíblia que estava certa — todos os males vem da maçã. Porque se a gravidade é uma lei, a verticalidade é um sistema natural. E dormir na parte de baixo do beliche é uma forma de estar conforme, mas eu não sabia nada de Newton até outro dia e neste dia eu já estava aqui. Antes de estar aqui eu confundia a palavra horizontal com a palavra vertical. Todas as vezes que era obrigada a usar uma dessas palavras, tinha que pensar, assim como tenho que pensar um segundo antes de dizer: isso é direito, isso é esquerdo, porque preciso escrever discretamente no ar com as duas mãos para saber de qual mão é a natureza de escrever e então saber que o lado direito é o da desnatureza, então todas as vezes que tinha que dizer vertical ou horizontal, tinha que pensar na linha do horizonte e o ângulo desta linha queria dizer horizontal. No horizonte, o natural é que cada ponto de uma linha fique ao lado do outro ponto. Na vertical, o natural é em cima, ou embaixo. É por isso que as pessoas olham para o horizonte e acham poético. Um ponto ao lado do outro um ponto ao lado do outro colado a outro e outro e outro. Foi por esta poesia que aquele dia eu levantei e antes

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de falar ou fazer qualquer coisa que interrompesse o fluxo do meu subconsciente, mesmo que eu ainda não soubesse nada sobre o fluxo do subconsciente, resolvi preencher uma página em branco com vermelho que é a minha cor favorita desde sempre, mesmo quando as minhas amigas mudavam de ideia e trocavam o rosa pelo amarelo e depois pelo azul, eu sempre preferi o vermelho e ainda prefiro, mesmo que não goste de poesia. Vermelho sangue. É estranho este jeito de chamar o vermelho, porque vermelho sangue é a cor do sangue que fica dentro da gente, vermelho brilhante. Mas o vermelho brilhante é um segundo de visão porque quando sai do corpo, muito rápido vira castanho. Castanho sangue, que já não é bem minha cor favorita, porque eu gosto de vermelho e não de sangue. Isso eu descobri depois que entrei no quarto deles e atravessei o peito dela com a lâmina, que entrou muito macia, sem encontrar nada no caminho. Não sei se fui eu que fiz barulho ou ela ou se a lâmina não era como as máquinas de escrever antigas, que custavam mais caro, mas não faziam barulho, e ele abriu os olhos e tirei a lâmina devagar para fazê-la atravessá-lo no mesmo lugar, mas ele devia ter mais ossos por dentro e a lâmina parou no meio do caminho e eu tive que tirá-la e enfiá-la de novo, acho que ele puxou meu cabelo, e mais uma vez tinha um osso ou alguma coisa no meio do caminho e fiz com mais força, não me lembro quantas vezes e ela gemeu alguma coisa e fiz a lâmina atravessá-la verticalmente mais uma vez, mesmo sem pensar verticalmente, e nela sempre com suavidade porque não encontrava obstáculos, a lâmina simplesmente atravessava e atravessaria quantas vezes eu quisesse, mas não pre-

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cisava, foi por isso que comecei por ela, porque ela era mais suave e tão suave que não entenderia porque eu tinha que fazer aquilo com meu pai e era melhor que ela não estivesse ali para tentar entender e só por isso a atravessei com a lâmina, porque ela sempre tentaria entender, como tentava entender quando via meu pai na minha cama e éramos como pontos de uma linha do horizonte, colados um no outro, que era o que acontecia sempre que ele acordava no meio da noite e não interrompia o fluxo do seu subconsciente e podia verdadeiramente me dizer o que queria dizer.

Carolina Neves

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Discromatopsia

Sou uma aberração. E tenho orgulho disso. Quando me convidaram pra fazer aquelas fotos na África, não pensei no perigo. Pensei na beleza da savana. Pensei nas luzes e nas novas cores que só eu poderia registrar. E pensei também no dinheiro, que era bom. Tentei me organizar depressa. Em dez dias, cancelei alguns compromissos, consegui que minha mãe ficasse com a minha filha e comprei calcinhas novas. Tanzânia era o destino. Fui informada pelo pessoal da revista que o resto da equipe me encontraria no Parque Nacional do Serengueti; antes disso, um guia chinês me receberia no aeroporto de Dar es Salaam. O nome do sujeito era Li Ming e ele estaria segurando uma plaquinha com o meu nome: Débora. Já viajei muito a trabalho e isso me ensinou a suspeitar de propostas que envolvessem chineses na Tanzânia, mas o que eu estava ganhando com as aulas na universidade, naquele tempo, era o bastante para sobreviver, e só. A maioria dos trabalhos que surgiam por fora eu topava, desde a separação. Tinha trinta e seis anos e era verão de janeiro quando embarquei no aeroporto de Guarulhos. Era verão na Tanzânia também. No ar, enquanto sobrevoávamos o Atlântico, com aquele imenso céu cor de abóbora me olhando pela janelinha do avião, lembrei das viagens que já tinha feito à África. A primeira vez que coloquei os pés no continente foi via Marrakesh, em lua-de-mel com meu ex-marido, treze anos antes. 101


Fiquei deslumbrada com a Praça Jemaa El Fna, a maior praça pública africana, tomada pelos encantadores de cobras, os vendedores de chás e o colorido das frutas. Mas a vida era outra, eu era uma menina. Não sabia nada sobre o contexto político-social marroquino e só fui descobrir que aquilo fazia parte do mundo árabe quando pisei lá. Cheguei a ser expulsa de uma mesquita depois de tentar fotografar os fiéis em momento de oração. Quase apanhei. Mas, fora isso, fomos muito bem tratados durante os dez dias da nossa viagem. Dizíamos que éramos turistas brasileiros e as pessoas sorriam, para, em seguida, emendar com o nome de algum jogador de futebol famoso. Três anos depois, desembarquei em Joanesburgo, África do Sul, para um trabalho como assistente de fotógrafo, no início da carreira. Completamente diferente, em quase todos os sentidos. Entre as feridas ainda abertas do Apartheid, vi muito sangue negro escorrer pelas ruas de terra, muita miséria, e muita gente boa também, como o Sibaya, um jovem do gueto que salvou nossas vidas quando fomos cercados por uma gangue de Soweto. Aquela experiência de três meses me fez crescer como profissional e como pessoa, por mais piegas que isto possa soar. Passei a compreender melhor a realidade de um continente relegado aos porões do grande navio capitalista mundial, senti a força dos laços que amarram a cultura deles à do Brasil, especialmente na música, e, claro, entendi que não é prudente viajar a trabalho sem antes fazer uma pesquisa sobre o contexto geral do país. Foi o que fiz na maior parte da semana que antecedeu a partida: pesquisei tudo o que pude sobre a Tanzânia em livros e na

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internet. Hoje, sei que minha pesquisa não foi suficiente. No saguão do aeroporto, lá estava Li Ming à minha espera, conforme combinado. O chinês era uma figura. Sempre mastigando chiclete, falava um inglês escalafobético, e, depois de cada frase pronunciada com velocidade perturbadora, olhava pra mim e ria, ajeitando com as mãos o boné que tinha NY bordado na frente, o qual eu nunca o vi tirar da cabeça. Eu dizia que o boné era roxo, ele dizia que era azul. Li carregou minhas malas até o estacionamento e entramos na van que me levaria para o hotel. A viagem para o acampamento seria no dia seguinte. No caminho, o chinês me contou que seus pais viviam na África do Sul havia muito tempo e que ele se mudara para a Tanzânia cinco anos antes, depois de receber uma oferta de trabalho irrecusável: ganhava menos de mil reais por mês e tinha mulher e quatro filhos para sustentar. Nossos diálogos eram curtos e eu não sei se ele entendia tudo o que eu dizia. Dar es Salaam não é a capital, mas é a maior cidade da Tanzânia. O nome, de origem árabe, significa “Casa da Paz”, o que não parecia muito apropriado, tendo em vista a violência do calor que fazia ali. Cheguei ao hotel e, apesar do cansaço, desci direto para o restaurante, que tinha uma vista linda do Oceano Índico. Como a revista pagaria a conta, escolhi um daqueles pratos sofisticados que sempre tive vontade, mas nunca coragem, de pedir. Tomei um vinho tinto sul-africano que me fez sentir alguns centímetros acima do nível do mar e fiquei ali degustando a paisagem, sozinha. Mais tarde, subi para o quarto, tomei um banho frio e comecei a organizar o material para a viagem do dia seguinte.

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Coloquei os papéis e documentos em ordem sobre a mesa. As câmeras, lentes, filtros e filmes, ficaram espalhados em cima da cama para o meu pequeno inventário. Separei três teleobjetivas e uma olho-de-peixe para as fotos de fim de tarde. Passei a flanela nas duas Olympus de guerra e guardei os filmes E-6 num compartimento especial da mochila. Tenho o fetiche justificável de revelar os filmes E-6 como C-41 – gosto de ver como as cores se transformam na revelação. Roupas, barras de cereal, protetor solar, hidratante, modess, óculos escuros, laptop, uma caixinha de Buscopan, o tocador de MP3 com quase toda a discografia do Fela Kuti e o anel da minha mãe, meu anel da sorte, completavam a minha bagagem. Fui contratada por uma famosa revista inglesa, com escritório em São Paulo, para esse projeto que consistia em produzir uma coleção de fotos baseada nas migrações anuais da fauna do Parque Nacional do Serengueti, o maior santuário de vida selvagem na Terra. Já havia trabalhado para a tal revista, como freelancer, no Pantanal e na Amazônia, e o diálogo era sempre transparente e objetivo, os prazos eram razoáveis e o pagamento não falhava. Claro que pensei nos leões. Afinal, trata-se de um clichê africano, mas eu sabia que estaria trabalhando no território deles justamente no período de clímax das atividades predatórias. No entanto, leões, leopardos, elefantes e rinocerontes nunca habitaram meus pesadelos. O animal que sempre me meteu medo é o tubarão. Acho que assisti filmes demais quando era criança, tanto que cheguei ao ridículo de nadar mais rápido dentro de piscinas, imaginando que o terror dos mares me perse-

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guia dentro de águas cheias de cloro. Quando eu pulava ofegante pra fora d’água, minha mãe perguntava se havia algo errado e eu disfarçava, dizendo que estava apostando corrida comigo mesma. Já perdi alguns trabalhos envolvendo a fauna marítima por causa dessa minha fobia. No Serengueti, porém, não existem tubarões. Li passou cedo no hotel e me deixou no aeroporto, onde um pequeno avião fretado me aguardava. Antes do meio-dia, chegamos à região do parque nacional, no noroeste do país. Pousamos numa pista de terra próxima ao acampamento oficial da cratera de Ngorongoro, onde me apresentei às autoridades e resolvemos os trâmites legais que dariam acesso irrestrito para trabalhar em toda a região. Vinte minutos depois, surgiram os três homens com quem eu dividiria os próximos três meses da minha vida. Roger, um pesquisador e biólogo inglês de pele muito branca com quem eu já havia me comunicado algumas vezes, fora contratado pela revista para liderar a equipe. Ele, que vivia há muito tempo trabalhando por ali, tinha a barriga saliente e uma expressão permanente de cansaço que tornavam carregadas as suas feições, mas esforçava-se para manter o bom humor e uma atitude sempre proativa. Roger seria o motorista da Land Rover e, caso necessário, serviria como meu tradutor na comunicação com os dois masai que completavam o nosso time e falavam inglês precário: Kipiko e Masudi. De acordo com a pesquisa que fiz na internet antes de conhecê-los, os masai são um povo nômade que vive basicamente entre o Quênia e a Tanzânia há mais de dois mil anos, e o conhecimento dos dois nativos era fundamental

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para a execução do projeto e para minha sobrevivência. Eles iriam nos guiar pelos locais mais remotos da região e eram encarregados de levantar os acampamentos, e, eventualmente, carregar o equipamento, além de garantir comida e segurança. Era para esta última tarefa que levariam facas e rifles, conforme explicou Roger. A primeira coisa que me chamou a atenção em Kipiko e Masudi foram os tamanhos de suas mãos e pés. Roger dizia, brincando, que as pegadas deles poderiam ser confundidas com as de um hipopótamo. As cabeças bem arredondadas, os corpos esguios e cheios de pequenas cicatrizes sobre a pele negra eram comuns aos masai. Kipiko era dono de traços mais delicados e olhar menos desconfiado. Os dois vestiam calças jeans, botas de couro e camisetas e não pareciam muito preocupados em viver de acordo com os costumes de sua gente. Haviam convivido por muito tempo com o homem “civilizado” e com os milhares de turistas estrangeiros que invadem o parque atrás dos safáris todos os anos. Ambos eram mais altos e mais jovens do que eu. Aliás, esqueci de dizer que sou uma balzaquiana de pele clara e cabelos curtos e escuros, descendente de portugueses e de olhos verdes que às vezes são castanhos. Minhas formas, naqueles dias, já não eram as mesmas dos velhos tempos, mas posso dizer que era e ainda sou uma mulher cheia de saúde. Janeiro é o mês em que normalmente as grandes manadas de herbívoros se deslocam para as planícies do sul do Serengueti em busca de alimento na grama baixa que surge logo após as chuvas de novembro. Atrás deles, vêm os predadores. E, atrás de todos eles, partiu a nossa Land Rover

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assim que amanheceu o dia em Ngorongoro, nosso acampamento-base. Roger ao volante, eu no banco do carona e os dois masai com toda tralha nos bancos de trás. Viajaríamos nessa formação por muitos dias e noites, a maior parte do tempo numa harmonia memorável. Eu socializava o afrobeat dos meus headphones e ganhava em troca as fitas cassete de Bongo Flava, música contemporânea da Tanzânia, que Masudi insistia para que Roger tocasse no som do carro. Na primeira semana, nos embrenhamos algumas vezes entre aqueles milhares de zebras e gazelas que, numa fila quase organizada, me faziam lembrar o caos do trânsito de São Paulo. Comecei a capturar as imagens tentando moderar o consumo dos filmes e quase me arrependi por não ter trazido minhas câmeras digitais. Naquele tempo, eu me recusava a fotografar profissionalmente com as digitais, mas a abundância de cenários e luzes e personagens era tão absurda que cheguei mesmo a sentir raiva quando notei a quantidade de cliques esbanjados pelo aparelho portátil que Roger trazia pendurado no pulso. Até ali, eu não estava satisfeita com os meus resultados e suspeitava que o culpado fosse o fotômetro. Houve um final de tarde, na segunda semana, em que o breu desabou sobre a savana numa velocidade descomunal. Comboios de nuvens negras se amontoaram de repente sobre as nossas cabeças e tivemos que interromper o trabalho do dia antes do horário previsto a fim de voltarmos ao nosso pequeno acampamento improvisado enquanto ainda existisse alguma claridade que pudesse nos guiar. Rodamos com ajuda do GPS por alguns minutos, mas ninguém conseguiu

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avistar as tendas. Pouco depois, consegui enxergar de muito longe um objeto de um azul quase fosforescente que só podia ser uma das barracas. Gritei apontando a direção e logo em seguida chegamos ao tal azul. Entre alívio e euforia, os rapazes me cumprimentaram e Kipiko segurou minhas mãos para dizer que eu tinha “olhos mágicos!”. Mal sabia ele que meus olhos não eram nada mágicos, e que, na realidade, eles carregam uma disfunção genética muito pouco comum entre as mulheres: eu sou daltônica. E, por ser fotógrafa, jamais revelei o segredo a pessoas envolvidas no meu trabalho. Sempre tive medo de que isso pudesse me prejudicar profissionalmente, o que seria uma estupidez, visto que conquistei vários prêmios importantes por fotografias registradas com estes mesmos olhos. O fato é que os daltônicos possuem uma facilidade comprovada para enxergar no escuro o que as pessoas “normais” não conseguem ver. E foi dessa vantagem que me aproveitei para salvar a nossa pele naquele fim de tarde. Sempre tive orgulho de ser daltônica. Descobri que era quando comecei a tirar notas vermelhas nas provas de geografia do colégio, onde os alunos eram obrigados a colorir mapas. Minha mãe me levou ao oftalmologista e fiz alguns testes que comprovaram essa perturbação visual que, no meu caso, resulta na incapacidade de diferenciar algumas cores, especialmente o azul do roxo e o verde do amarelo, eu acho. Não é uma doença. Na verdade, considero um dom. Tanto que passei a tirar nota dez em todas as provas de geografia depois que apresentei o atestado médico ao professor. Acho que ele sentiu pena de mim. Fora isso, cansei de ganhar

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a atenção dos meninos que viviam brincando ao meu redor na adolescência, perguntando quais eram as cores das camisas deles e fazendo inúmeros testes sem sentido. E fiquei ainda mais empolgada quando soube que 8% da população masculina são portadores deste distúrbio, enquanto menos de 1% das mulheres é atingida. Enfim, de alguma forma, ser daltônica, sempre fez com que eu me sentisse especial. E foi assim, me sentindo especial e sem revelar o meu segredo, que caí no sono naquela noite enquanto Kipiko e Masudi armavam o arame farpado em torno do nosso acampamento improvisado. Os dias passavam depressa nas planícies e as chuvas desciam com força no início de fevereiro, um pouco antes do previsto para a temporada de tempestades. Grande parte da fauna local estava em período de acasalamento, a grama começava a crescer e a qualidade das fotos também. O perfume da vegetação da savana impregnada com a água da chuva é quase hipnótico, e, talvez por isso, não me incomodassem tanto as condições precárias de higiene da nossa equipe. Passadas duas semanas, o automóvel estava cheio de lama, as barracas sujas de terra, e o corpo do inglês começava a exalar uma fedentina crônica, uma vez que nossos banhos eram improvisados com a água que Masudi coletava nos rios e córregos, mas Roger nem sempre se lavava. Nossa reserva de gasolina e comida também escasseava e, portanto, decidimos que iríamos passar os dois próximos dias no acampamento de Ngorongoro, onde poderíamos planejar com calma os próximos passos da expedição, que incluíam uma maior aproximação dos leões, sempre protagonistas em projetos

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de registro da fauna africana. E, fora as hienas, que rondaram nosso acampamento uma noite, nosso contato com os grandes predadores até então se resumia a uma distância de pelo menos quinhentos metros e nenhuma foto satisfatória. Em Ngorongoro, Roger reuniu a equipe após o jantar para uma conversa sobre os leões. Começou dizendo que eu não tivesse medo durante os encontros porque as feras raramente atacam humanos no Serengueti, onde a imensa quantidade de presas é suficiente para saciar o apetite de todos eles. Era mais ou menos o que dizia o manual de sobrevivência que eu havia encontrado na internet. Ele contou ainda que participou de vários grupos de caça legal e ilegal na Tanzânia e na África do Sul e explicou que estaríamos seguros se ficássemos perto da Land Rover e nunca a menos de trinta metros de distância dos animais. É ilegal matar leões na Tanzânia, e nós faríamos o possível para evitar o uso dos rifles, disse ele. Kipiko e Masudi tinham orgulho de suas cicatrizes. Passaram o resto da noite contando estórias sobre seus confrontos e lendas envolvendo leões possuídos por espíritos maus que invadiam as aldeias e arrastavam criancinhas para o mato no meio da escuridão. Disseram que nem sempre é fácil avistar os bichos pelo parque, mas que conheciam alguns truques e o lugar certo para encontrá-los. Partimos antes do amanhecer. O plano era aproveitar a luz das primeiras horas do dia para fotografar e o destino era a área nordeste do parque, próxima à fronteira com o Quênia, conforme as indicações dos masai. Depois de algumas horas de viagem, alcançamos uma região em que a grama às vezes ultrapassava dois metros de altura e o sol forte fazia

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emergir do solo um vapor denso que dificultava a visão na altura dos nossos narizes, mas que não impediu Kipiko de localizar, a cerca de um quilômetro de distância, um bando de urubus que voava em círculos. Era um bom sinal. Nós sabíamos que os leões têm o costume de seguir os urubus na expectativa de encontrar alimento já abatido. Masudi sugeriu que saíssemos da estrada oficial do parque e tomássemos uma estradinha de terra que nos levaria até o local. Enquanto nos aproximávamos, notamos que os urubus começavam a se dispersar lá no alto e Roger acelerou. Na descida de uma ribanceira, demos de cara com um leão macho que se deliciava sob uma árvore com os restos do que parecia ser um gnu. Estacionamos a uns cem metros do banquete e fiz a foto que saiu na capa da revista, alguns meses mais tarde. Incrível como o leão, absorto na tarefa de devorar a carne e com a juba balançando pra frente e pra trás a cada mordida, ignorou a nossa presença. Foi uma leoa, quando o sol começava a sumir atrás de uma colina, quem se interessou por nós. Atingimos um trecho esburacado da estrada de areia que era estreita a ponto de permitir que tocássemos com as mãos a grama amarelada da savana pela janela do carro. Entre os solavancos, Kipiko avisou que precisava saltar para fazer xixi e Roger brecou ali mesmo. Eu estava fazendo algumas anotações quando olhei distraída pela janela em direção à grama alta e notei uma mancha cinzenta e estática no meio da vegetação, do lado oposto da pista onde Kipiko se aliviava. Fiquei mirando aquele contraste por um instante antes de me dar conta da ameaça. Apontei a mancha com a mão esquerda e pergun-

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tei a Roger se ele estava vendo aquilo, se ele sabia o que era. O inglês girou o pescoço para vasculhar o terreno e Masudi logo aderiu à inspeção. Concluí, pelos olhares perdidos dos dois, que somente eu conseguia enxergar que alguma coisa estava ali. E, já suspeitando do que poderia ser, reagi tocando a buzina e gritando: “Leão, Kipiko, leão!”. O barulho da buzina fez o mato se mover. Não fui a única a testemunhar o corpo imenso da leoa se levantando devagar pra mostrar os dentes. Isso tudo se passou em meio minuto, mas foi o tempo certo para que Kipiko botasse o pinto pra dentro da calça e pulasse para o interior do veículo, apavorado e com a calça jeans encharcada de mijo. Quando bateu a porta, a leoa já esfregava o focinho no vidro da janela, a um palmo do meu nariz. Logo em seguida, duas outras leoas saíram de dentro do matagal e uma delas pulou em cima do capô da Land Rover, depois ficou ali parada, rosnando e encarando a gente através do para-brisa enquanto uma baba grossa escorria de sua boca e sobre o vidro. Masudi, que na noite anterior gabava sua impavidez nos encontros com as feras, agora soluçava de nervoso e agarrava os ombros de Roger, que estava sentado à sua frente, petrificado, incapaz de girar a chave pra ligar o motor. A primeira leoa continuava ali, do meu lado, com aqueles olhos gigantes grudados nos meus. Pode parecer absurdo, mas, apesar da tremedeira que distribuía o medo pelo meu corpo, não consegui desgrudar os olhos dos olhos dela. Ali estava um ser de visão acromática (dizem que os leões enxergam tudo em preto e branco) encarando um ser daltônico. Esquisito, mas ela

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parecia ter entendido que naquela ocasião a vantagem era minha. É que, além da visão noturna apurada, o daltônico geralmente supera o obstáculo da camuflagem, uma das artimanhas favoritas dos leões quando estão preparando o ataque. Aquela leoa faminta havia sido desmascarada e eu era a responsável pela privação do seu jantar. A troca de olhares só foi interrompida quando Roger finalmente ligou a ignição e os pneus voltaram a girar. O ronco do motor ajudou a espantar os bichos e o caminho estava livre. Quando penso no episódio das leoas na Tanzânia, reafirmo o apreço pela minha anormalidade e sou grata pelo momento que dividi com a tal leoa camuflada. Aquilo serviu de inspiração para uma coleção de fotografias chamada “Descamuflagem”, que teve como mote a inversão das cores nas imagens reveladas sobre o papel. A coleção foi exposta em São Paulo e as ampliações ficavam sempre lado a lado – na esquerda, a foto original; na direita, a imagem com as cores invertidas, desvendando os disfarces coloridos dos animais. Fez o maior barulho. E, além disso, posso dizer que salvei a vida do doce Kipiko. “Magic eyes”, dizia ele, apertando minhas mãos contra o seu coração, enquanto voltávamos para o acampamento… Olhos mágicos.

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Duas mortes

Não posso mais. Morro hoje como ato de liberdade, escolho o único caminho possível para calar esse sofrimento que carrego como um tumor maligno feito de vazio. Chega desse quase afogamento seco que me dizem vida, já não quero estar em nenhum lugar amanhã, salvo-me de sofrer já que nada mais é eficaz, nunca nada foi, tantas tentativas. Já não me julgo covarde, a morte aqui não é fuga, é escolha, não me importa o que pensam, eu que não deixo carta ou bilhete, deixo só esse pulo, essa queda de dez andares, a certeza que tudo acabou.

Ela morreu antes de bater no carro, você sabe, dez andares… Eu sei, eu saberia, não fosse o susto violento: a mulher espatifada no capô do carro, o estrondo, o pavor estampado no rosto dela, o pavor dela decalcado no meu rosto. Um corpo no carro: choque. Se jogou contra mim, choque. O grito nunca saiu, preso me deixa mudo. E sabe-se lá de alguma coisa quando se é atropelado pela morte? Barulho, impacto, pavor. É o que resta nos tantos segundos de perplexidade seguidos. A mulher no meu capô está morta. O grito ai não sai. Ainda impacto. Tanta dor naquele rosto. Fantasma. Ser o carro debaixo do suicídio. Azar. Merda. O desespero dela. Herança.

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Alguns fragmentos, q u e t a lv e z s o m e m u n s i n s t a n t â n e o s

Despedida

Você diz que é como se te faltasse um braço. Eu sigo de alma desabrigada. E para legitimar essa taquicardia, eu corro. Assim sem método ou meta, o meu esforço é ignorar qualquer linha de chegada. E scrito em azul

Aprendeu, então, a chorar ao contrário. Lágrima a lágrima pingando para dentro, o peso líquido preenchendo seus pulmões. Sem nunca transbordar seu pinga pinga, afogava-se em suspiros. S obre encostas

Um toque seu que me desfaça salina e líquida. Morna e confortável. E o seu corpo continente para minha alma marinha. E scrito em vermelho

O almoço ainda entalado pelo peso do peito. Dói, ela pensa, como um esmagamento forte e lento. Como se uma mão apertasse seu coração na pressão exata, 117


e a substância do coração carne-gelatina começasse a escapar entre os dedos em pequenas bolsas, mas sem arrebentar-se. Era isso que chamavam de mágoa? B ilhete

Chegou em casa ainda meio alta e escreveu num caderno aberto em cima da mesa: A música que era você tocou por toda a noite. E me deixou na pele a saudade de tudo o que é seu. Foi dormir sozinha, cheirando a cigarro. S em título

Coleto pistas que o futuro deixou pelo presente e chamo isto de pressentimento. Ou sou eu que vejo coisas que ainda não existem? Mas se ver é que faz existir… Ai, esta minha tristeza! Olho Roxo

Um olho tão roxo que podia ser de soco. Culpa-se a o ritmo da cidade, mas o nocaute foi outro, meu bem. Levanta. A cólica espremendo o incômodo antes abstrato dos últimos dias. O desconforto, violento, ganhando corpo. E cor: vermelho. Um certo alívio.

Ana Kemper

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Corpo-coisa

Mamãe achou uma rodela de cebola para ser meu olho e eu olhei mamãe chorar. Depois esse olho ficou murcho e eu fui olhar mamãe através do buraquinho da tampinha do meu olho novo. Mas mamãe não tinha ainda achado a vassoura velha da cabeça então eu nem entendi. Depois ela fez o meu corpo com uma linda caixa de sabão e no meio da caixa de sabão mamãe pôs um coração de galinha e aí eu me senti muito feliz por estar perto da mamãe mas me senti muito triste quando escutei com minha orelha de casca de ovo o Coiso batendo na mamãe. O Coiso não gosta de mim, não gosta quando pisa em mim quando se levanta troncho da esteira da mamãe e diz pra mamãe parar de brincar com lixo e bate na mamãe e manda mamãe me varrer pra fora! e eu fico despedaçada e cada despedacinho meu fica triste… Mas não faz mal: depois mamãe sempre me conserta e eu ganho uma florzinha no meu cabelo de piaçava e ela conversa comigo até de noite, que é a hora em que o Coiso chega. Mamãe me ama e diz que eu sou igualzinha a ela, só tem que eu sempre estou sorrindo com minha boca de flor ou de casca de melão que murcha e seca e ela nunca sorri com a boca de carne que ela tem cheia de sangue. Mamãe hoje me costurou um vestido de cacos de vidro brilhantes e enfeitou com um laço de arame farpado e brocado de gilete. Fiquei linda e mamãe até sorriu e aí me senti mais linda. Ela disse que o Coiso volta essa também, mas que 119


eu não tenho que ficar triste porque amanhã de manhã mamãe vai cuidar de mim e não vai me faltar mais nenhum pedaço.

Julio Silveira

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A verdade, esta mitômana (Paulo Mendes Campos)

Eu, em seu lugar, não me desculparia. Por quê, amigo? Esse teu coração abstruso, confuso, é uma questão de fisiologia. Tens um septo, camarada, sabes? Um septo que te divide o coração. Uma parte direita. Uma parte esquerda. Até os irmão brigam, como não? O problema de comunicação é um agravo mundial. Só as bolsas de valores se comunicam. E tu és um coração, meu amigo. Se até as bolsas oscilam… Tanto remordimento, a culpa não tem função social, não paga imposto predial, que que há? Tua parte direita ama, irmão. Tua parte esquerda também. Todo mundo cumprindo a sua função. As mulheres têm este problema, esta dificuldade de entender o oco órgão central de circulação. Querem o oco cheio, como o ventre realizado. Querem do oco ser o recheio, como o filho mais amado. Mas isso é da fisiologia feminina, quem as criou é que tem que se sentir acuado. Não inventaste nada novo, amigo. A vida veio antes de ti. Então como podes deixar a cava esquerda a palpitar e a direita, menoscabada, a soluçar? O problema está em outro lugar. És um homem que ama. E o amor acaba, eis a grande verdade sobre a qual te enganas. Acaba a qualquer momento, em qualquer lugar. Hoje, aqui, na china, uma tereza, uma cristina, daqui a dez anos, tomando picolé em paquetá. Quanto a amar, amigo, ame até o amor acabar. Decisão? Quem pede isso do teu coração? A decisão é um desacato! Um ato eutanásico! A garantia de um infarto! Olha que nem chamei a 121


esta mesa nossos ancestrais com suas justificativas de flecha e arco. Para um minuto, escuta a tessitura desse teu incauto coração. As mulheres querem sempre mais, precisam de mais, por isso às vezes exageram na simetria ventricular. Se calhar, companheiro, quem sabe as tuas duas já aprenderam, quem sabe também dividiram seus cavos músculos inteiros e nem estão pra se incomodar?

Carolina Neves

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Pés

O olhar dele perdido em seus pés. Responderia assim se lhe perguntassem sobre um gesto de amor, decidiu, enquanto vestia-se para sair do apartamento. Riu, pensando se não era hipocrisia escolher algo assim quase casto. Talvez. Lembrava bem da primeira vez que o flagrou nos seus pés. “Sandália moderna”, ele disse, desconcertado, no meio de uma loja no centro da cidade. “Todo mundo deveria usar tênis. Por que não compra um Adidas?”. Isso foi antes mesmo de serem amigos, anos atrás. E combinar palavras para definir o que eram agora era impossível. Eram um conjunto extenso delas, sempre sem ordem para formar qualquer definição. Deste conjunto, ela detestava “adúlteros”. No caminho até a porta, ele lhe deu um beijo no pescoço e um arrepio atravessou seu corpo quase como ele antes havia atravessado. Tinha pressa, mas o corpo a lembrou que queria ficar mais e num beijo ansioso a roupa recém vestida foi parar no chão de novo, enquanto ela era espremida ali em pé contra a parede da cozinha. O dedo dele a encontrou bastante úmida. O sexo foi um talento que ele revelara nela. E mesmo depois da tarde na cama, a urgência de um pelo outro deu o tom aos movimentos. Então eram encaixe e fluxo. Foi tudo um tanto brusco, um tanto sôfrego, um tanto ágil. Foi fantástico, mais uma vez. 123


JĂĄ no elevador lembrou da sua palavra preferida do conjunto: ImpossĂ­vel. O tempo-testemunha, ainda duvidava. Mas, vinha sendo delicioso desfazer as previsĂľes daquela palavra.

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Tertúlia : Alexandra Maia, Ana Kemper, André Tartarini, Carolina Neves, Julio Silveira, Rodrigo Viana, Vera Rocha, Zé McGill — Rio de Janeiro : Motor : Ímã Editorial, 2012, 128 p; 21 cm.

isbn 978-85-64528-14-7

1. Contos. I Autores. II Título. cdd bisac

869.3

FIC003000, FIC048000 regional 5.0.3.0.0.1.0

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