Ficções 19

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braulio tavares cassiano vianna felipe pena ana dos santos livia garcia-roza aleks costa alessandro garcia ondjaki tiago montenegro clayton c. andré giusti claudia nina ana cristina melo maria alzira brum lemos henrique amud cristiane costa marcelo barbão graziella albuquerque nilton resende rodrigo de souza leão

ficções 19



Então você quer ser escritor?  Charles Bukowski

se não explode de dentro de você apesar de tudo não faça isso. a não ser que saia sem que se peça de seu coração e de sua mente e de sua boca e de suas entranhas, não faça isso. se você tiver que sentar-se por horas encarando a tela do seu computador ou debruçado sobre sua máquina de escrever procurando as palavras, não faça isso. se você estiver fazendo isso pelo dinheiro ou pela fama, não faça isso. se você estiver fazendo isso porque quer mulheres na sua cama, não faça isso. se você tiver que se sentar e reescrever de novo e de novo não faça isso. se só pensar nisso já seria um trabalho pesado, não faça isso. se você estiver tentando escrever como outra pessoa esqueça. se você tiver que esperar que venha aquele berro de dentro de você, então espere com paciência. se nunca vier o berro de dentro de você, vá fazer outra coisa

se você tiver que ler primeiro para sua esposa ou sua namorada ou seu namorado ou seus pais ou para qualquer um, você não está pronto. não seja como tantos escritores, não seja como tantos milhares de pessoas que chamam a si mesmas de escritores, não seja chato ou entediante e pretensioso, não se consuma pelo amor-próprio. as bibliotecas do mundo têm bocejado até a morte com gente como você. não aumente isso. não faça isso. a não ser que saia de sua alma como um foguete, a não ser que ficar quieto o levaria à loucura ou ao suicídio ou ao assassinato, não faça isso. a não ser que o sol dentro de você esteja queimando suas entranhas, não faça isso. quando for a hora de verdade e se você tiver sido escolhido, ele fará por si mesmo e vai continuar fazendo até que você morra ou que morra dentro de você. não há outro modo. e nunca houve.



A Ficções dezenove trata das buscas, das inquietações, da miríade de possibilidades do cotidiano e da frustração por não conseguirmos desfrutá-las à exaustão. Trata de Salinger atrás de novas verdades absolutas e deletérias, trata de Cortázar investigando novas veredas em Paris por onde enrodilhar seu novelo, trata da procura por redenção na palavra profusa de Rodrigo de Souza Leão. Trata do desprezo desesperado de Bukowski pelos autoproclamados escritores que tomam a escrita por conquista e não por retrato da perda, e que fazem as bibliotecas, abarrotadas, bocejarem até à morte. Trata daqueles que, ainda segundo Bukowski, trazem dentro de si uma vontade explosiva, que os compele à palavra (ou à loucura, ou ao suicídio, ou ao assassinato) e que os habilita a serem, enfim, escritores. Em dezenove contos e em dois ensaios, escritores tratam das angústias e dos deleites do ser: homem, mulher, criança; do nascer e do morrer. Do que é absurdo, e do que isso tem de raiva e de riso. Onze dos contos chegaram à revista entre os mais de oitocentos trabalhos enviados entre dezembro e março. Entre tantas expressões, aconteceu de acharmos justamente nesses contos o que Bukowski exigia dos escritores: o sol que lhes queimava por dentro.



A estética eliminacionista  Braulio Tavares Cortázar: passagens em Paris  Cassiano Vianna A invenção do cânon literário  Felipe Pena O que não é um morango  Ana Santos Princesa  Livia Garcia-Roza No dia do parto, o credo  Aleks Costa Finados  Alessandro Garcia A mosca e o ladrão Ondjaki Intervalo  Tiago Montenegro Machucados  Clayton C. Pedro e o sonho  André Giusti Gorda-de-repente (um episódio)  Claudia Nina A garrafa  Ana Cristina Melo Princesa  Maria Alzira Brum Lemos O caçador de crenças, o avatar bengalês e a filha do homem de aço  Julio Silveira Fogo-fato  Henrique Amud Numa cidade estrangeira  Cristiane Costa O carro  Marcelo Barbão A festa da menina morta  Graziella Albuquerque A ceia  Nilton Resende Me roubaram uns dias contados Rodrigo de Souza Leão


A estética eliminacionista  Braulio Tavares

A premissa estética da escola literária dos Eliminacionistas foi formulada por Abraham Soylent nestes termos: “É insensato produzir uma obra de arte a partir do Nada. A única trajetória possível é partir do Aléphico Todo e erodi-lo até deixar apenas a obra, a que chamaremos o Significante Resíduo.” Subsistem pelo menos três registros audiovisuais em que Abraham ilustra diante das câmaras o seu processo de trabalho. No mais explícito deles, o filósofo redige para os documentaristas a página 346 de sua Indagação sobre a epistemologia do parecer, popularmente conhecida hoje como “Falsa mimesis”. Abraham escolhe uma folha de papel em branco, besunta-a de tinta negra, com um pincel largo, e a põe para secar ao sol. Depois, mostra os doze estiletes, com finíssimas pontas de aço, que são seus instrumentos. Toma de um deles, e põe-se a trabalhar. Seu método (diz ele) é o de partir de fora para dentro, partir da zona de maior entropia linguística, que são as bordas da página, e ir gradualmente se aproximando da Área de Virtualidade Semântica. As margens são cuidadosamente raspadas, e nesses pontos o papel retoma sua brancura anterior. (Sabe-se que Abraham trabalhava, na confecção de seus manuscritos, com folhas de papel maiores e mais espessas do que o papel comum.) Essas franjas de brancura vão se alargando para dentro até demarcar de forma difusa a “mancha gráfica”, onde se dará a parte decisiva do trabalho.


O passo seguinte (explica a voz de Abraham em “off”) é avaliar quantos parágrafos serão necessários, depois sua ordem, e depois a extensão de cada um. A filosofia Eliminacionista tem como lema “Do todo para a parte”, pois é nesse trajeto que se dá a percepção humana, que intuitivamente percebe primeiro os blocos mais volumosos, e em seguida os decompõe em estruturas sucessivamente menores. Esboçados o tamanho e o formato dos parágrafos, cabe a Abraham sua subdivisão em linhas cuja espessura provisória deve preservar espaço suficiente para as possíveis letras maiúsculas, letras ascendentes (b, d etc.), letras descendentes (p, q etc.), bem como os acentos e os sinais de pontuação. Uma das principais contribuições técnicas de Abraham Soylent para a teoria estética foi seu axioma de que “a Arte é um equilíbrio final entre os equilíbrios e desequilíbrios parciais”. É esta concepção visual que o faz selecionar o desenho de cada linha (“o eletrocardiograma do texto”, diz ele, em um momento de descontração) e as letras que deverão concretizá-lo. A fase final consiste no minucioso desbastar das camadas de tinta até deixar somente as letras miúdas, serifadas, negras sobre fundo branco. “É o momento de maior concentração”, afirma Abraham, lupa engastada ao olho, estilete finíssimo escavando os interstícios de um “a” minúsculo ou o golfo delicado no interior de uma interrogação. “O que é extirpado não pode ser trazido de volta, e já houve casos em que a raspagem do ponto de um ‘i’ pôs a perder uma página quase pronta.”

7 a estética eliminacionista

Braulio Tavares ficções19


Cortázar: passagens em Paris  Cassiano Vianna Fotos  Sergio Werner

A cidade que Julio Cortázar encontrou, em 1951, foi a Paris pós-Guerra, a Paris do novo: nouvelle vague, nouveau roman e da antinovela, da reação contra o convencionalismo e da busca de uma literatura de novos temas e abordagens. Considerada sua obra mais importante, O jogo da amarelinha (1963) é a história de um homem que deixa sua cidade por outra. “Paris é uma mulher, e é um pouco a mulher da minha vida”, dizia. Tour recomendada aos leitores, é maravilhoso o volume de descobertas a cada página, capítulo, rua ou esquina atravessada. O arco da Quai de Conti, que Oliveira atravessa, por exemplo, logo na primeira página de O jogo da amarelinha, é uma singela passagem para a Pont des Arts sobre o Sena. Quantas vezes o próprio Cortázar teria passado por aquele vão do Instituto Francês, hoje um verdadeiro túnel, em um ritual de ligação entre seu presente e seu passado? O tempo regride a poder-se ter a impressão de que o encontraremos por ali, sentado no Old Navy, no número 150 do Boulevard St Germain, como sugeriu Gabriel García Márquez. Ou em alguma reunião do Clube da Serpente. Para Cortázar, escrever Rayuela foi uma espécie de superexorcismo: “Se não tivesse escrito Amarelinha, provavelmente teria me jogado no Sena”, brincava. A obra deu a Cortázar prestígio e projeção internacional, seus livros passaram a ser reeditados e traduzidos em vários países. Além do percurso de Amarelinha, são cenários/personagens de Cortázar o metrô parisiense, a Galerie Vivienne, o Jardin des Plantes, a cidade universitária, o Bairro Latino, o 9éme da Place du General Beuret, o 4éme Rue Martel, o Hospital Saint Lazare e o Cemitério de Montparnasse. A Galerie Vivienne é um dos cenários do conto “O outro céu”, de Todos os fogos o fogo (1966), o outro é também uma galeria, a Pasaje Güemes, em Buenos Aires. O personagem principal de “O outro céu” — um dos bons exemplos do virtuosismo de Julio Cortázar e de suas experiências com duas vozes — vive entre mundos, perambula por essas misteriosas galerias entre prostitutas (é apaixonado por uma delas), cafetões e assassinos. O metrô parisiense, outro lugar de passagem e de significado místico, surge em dois contos de Cortázar: “Pescoço de gatinho preto” e “Manuscrito encontrado em um bolso”, curiosamente, ambos de Octaedro (1980):


“…em dado momento tinha começado a sentir, a decidir que uma vidraça de janela no metrô podia me trazer a resposta, o encontro com uma felicidade, precisamente aqui, onde tudo acontece sob o signo da mais implacável ruptura, dentro de um tempo subterrâneo que um trajeto entre estações desenha e limita assim inapelavelmente embaixo.” Ambientado no Jardin des Plantes, no conto “Axolotl”, do livro Final de jogo (1956), o narrador, após uma constante observação dessa espécie de salamandra, troca de lugar com o animal: “Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotes. Ia vê-los no aquário do Jardin des Plantes e ficava horas olhando-os, observando sua imobilidade, seus imperceptíveis movimentos. Agora sou um axolote. […] Agora sei que não houve nada de estranho, que isso tinha de acontecer. Cada manhã, ao inclinar-me sobre o aquário, o reconhecimento era maior.” Encontraríamos Cortázar?

Perseguidor à maneira de Bruno (que tenta decifrar Johnny Carter/Charlie Parker no conto “O perseguidor”, de As armas secretas), ou Horácio Oliveira (que, em “O jogo da amarelinha”, no fundo não sabe lá muito bem o que persegue), Teseu (que vai ao encalço do Minotauro no poema “Os reis”) ou ainda do personagem de “Manuscrito encontrado em um bolso” (que buscava encontros em jogos subterrâneos no metrô parisiense) — todos alter-egos de Cortázar —, em junho de 2008, passei alguns dias em Paris, percorrendo a cidade, fotografando e travando conhecimento da cidade onde viveu o escritor, buscando entendimento, pistas, algo que fosse útil na fase final da biografia do escritor, projeto no qual me concentro desde 1996. Na volta, como faltassem vários lugares — e levando em consideração o pouco rigor das imagens de que dispunha — passei a buscar pessoas em Paris para colaborar comigo. Assim encontrei Sergio Werner, engenheiro e fotógrafo “autodidata diletante”, e com ele encontrei afinidade com as muitas maneiras de se combater o nada, como o próprio Cortázar definia: além da fotografia, a música, o cinema e, sobretudo e fundamentalmente, a literatura. Foram mais de seis meses percorrendo Paris em busca do autor de Amarelinha, enfocando os lugares citados ou habitados por Cortázar. A busca continua. Encontrar um cronópio em Paris — quebra-cabeças, lance de dados, labirinto de ruas e túneis — talvez seja mais difícil que encontrar a Maga, ou o próprio Horácio Oliveira.


“Encontraria a Maga? Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia na Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água.” o jogo da amarelinha Tradução de Fernando de Castro Ferro



“Agora que escrevo, para outros isto podia ter sido a roleta ou o hipódromo, mas não era dinheiro que eu procurava, em dado momento tinha começado a sentir, a decidir que uma vidraça de janela no metrô podia me trazer a resposta, o encontro com uma felicidade, precisamente aqui, onde tudo acontece sob o signo da mais implacável ruptura, dentro de um tempo subterrâneo que um trajeto entre estações desenha e limita assim inapelavelmente embaixo.” […] “Minha regra do jogo era maniacamente simples, era bela, estúpida e tirânica, se eu gostava de uma mulher, se eu gostava de uma mulher sentada à minha frente, se eu gostava de uma mulher sentada em frente a mim junto da janela, se seu reflexo na janela cruzava o olhar com meu reflexo na janela, se meu sorriso no reflexo da janela perturbava ou agradava ou rejeitava o reflexo da mulher na janela, se Margrit me via sorrir e então Ana baixava a cabeça e começava a examinar atentamente o fecho de sua bolsa vermelha, então havia jogo, dava exatamente na mesma que o sorriso fosse aceito ou respondido ou ignorado, o primeiro tempo da cerimônia não ia além disso, um sorriso registrado por quem o havia merecido. Então começava o combate no poço, as aranhas no estômago, a espera com seu pêndulo de estação em estação.” manuscrito encontrado em um bolso Tradução de Glória Rodríguez



“Agora sei que não houve nada de estranho, que isso tinha de acontecer. Cada manhã, ao inclinar-me sobre o aquário, o reconhecimento era maior. Sofriam, cada fibra do meu corpo entendia esse sofrimento amordaçado, essa tortura rígida no fundo da água. Espiavam algo, um remoto senhorio aniquilado, um tempo de liberdade em que o mundo fora dos axolotes. Não era possível que uma expressão tão horrível, que conseguia vencer a inexpressividade forçada de seus rostos de pedra, não levasse uma mensagem de dor, a prova dessa condenação eterna, desse inferno líquido que padeciam. Inutilmente queria provar a mim mesmo que minha própria sensibilidade projetava nos axolotes uma consciência inexistente. Eles e eu sabíamos. Por isso não houve nada de estranho no que aconteceu. Minha cara estava grudada no vidro do aquário, meus olhos tratavam uma vez mais de penetrar no mistério desses olhos de ouro sem íris e sem pupila. Via de muito perto a cara de um axolote imóvel junto ao vidro. Sem transição, sem surpresa, vi minha cara contra o vidro, em vez do axolote vi minha cara contra o vidro, eu a vi fora do aquário, do outro lado do vidro. Então minha cara se afastou e eu compreendi.” axolotes Tradução de Remy Gorga Filho



A invenção do cânon literário  Felipe Pena

O carro de luxo cruzou a avenida Saint Germain e dobrou na rua Monge. O motorista, vestido com um impecável terno azul e o indefectível quepe com bordas de acrílico na cabeça, olhou discretamente pelo retrovisor. O patrão admirava o bracelete de diamantes usado pela mulher, enquanto balbuciava algumas palavras sobre o tempob frio e seco do inverno local. A neve dos anos anteriores ainda não começara a cair. Talvez nem começasse. Efeito estufa. Gás carbônico. Sei lá! As questões ecológicas não interessavam à patroa. Nem ao chofer. As rotações do motor denunciavam a redução da marcha para a subida do antigo Monte Santa Genoveva. Passaram pela Rue des Écoles, pela praça Cardinal Lemoine e pela arena romana, um dos poucos vestígios da velha cidade de Lutécia. Ao chegarem à rua Saint-Médard, viraram à direita e pararam em frente ao que parecia ser um restaurante ou uma casa de vinhos. O atendente veio recebê-los à porta. — Bonjour Madame. Bonjour Monsieur. Vieram para a degustação? Madame e Monsieur se limitaram a balançar a cabeça positivamente. Atravessaram a porta de vidro e escolheram a mesa ao lado do longo balcão de madeira cujo brilho chegava a espelhar o revestimento do teto. O lugar era pequeno, mas o pé-direito alto dava a impressão de amplitude ao


espaço. Centenas de latas estavam arrumadas nas prateleiras espalhadas pela parede de seis metros de altura por doze de largura, onde também havia pequenos bules e xícaras de terracota. O garçom se aproximou e forneceu um cardápio para cada cliente. As outras mesas estavam vazias. O casal desfrutava de atendimento exclusivo, o que incluía não apenas a atenção completa como também explicações detalhadas sobre o menu, cujas dezoito páginas se limitavam a apenas uma iguaria. — Je voudrais... O garçom percebeu o leve sotaque latino do cliente que deslizava os dedos pelo cardápio. Não era francês, tinha certeza. O que, de fato, não fazia a menor diferença, já que o texto estava em mandarim. As únicas palavras que monsieur compreendeu foram as do título, referentes ao nome do estabelecimento: Maison des Trois Thés. Mesmo assim, fez sua escolha, envaidecido por demonstrar conhecimento do produto e pela pronúncia perfeita na língua de Mao Tsé Tung. — Wen Shan Bao Zhong. — O número quatro, por favor! É mais alegre do que o número três. — Perfeitamente — respondeu o garçom. O chá escolhido levava o nome da proprietária da Maison, Madame Zhong, uma chinesa de 37 anos cuja fama internacional devia-se à mistura de plantas na composição das infusões servidas em seu bistrô parisiense. Personalidades do mundo inteiro passavam pela rua Saint-Médard apenas para provar aquelas ervas banhadas em água quente. A casa não servia qualquer outro produto. Nem pequenos tira-gostos eram permitidos. Nada devia interferir na degustação do chá. O ritual também era importante. O garçom colocou um punhado da erva no pequeno bule de terracota, enquanto a água fervia no fogão de lenha ao lado. Cada cliente recebeu uma xícara e a explicação sobre o consumo, que era obrigatória mesmo para frequentadores assíduos. A água fervente foi colocada no bule até transbordar. Em seguida, o garçom tampou o recipiente e esperou durante exatos trinta e sete segundos, tempo ideal da infusão, para servir o casal, que precisaria esperar quatro minutos e meio para sorver o líquido. — Querido, a escolha foi perfeita. — Eu sei. Já tinha ouvido falar dessa safra. Ela tem substância. Causa um estranhamento, é inovadora, experimental, sensível.


— A erva pertence a que gênero? — É um gênero híbrido. Transita pelas margens. Rompe barreiras. Mas essa erva já pode ser considerada um novo clássico. — Por quê? — O New York Times deu o conceito máximo para a mistura. Não foi à toa que Madame Zhong colocou o próprio nome no chá. — E o que o crítico do Le Monde disse? — Nada ainda. Como o Times já publicou uma crítica, acho que ele não vai escrever nada. Pelo menos, por enquanto. Mas eu li elogios em jornais alemães, espanhóis e até ingleses. Todos falam em novo clássico. — Hummmm! Agora está ainda melhor. — É verdade. O aroma é ótimo. Há um buquê de sol poente, um gosto romântico, um sentimento de vanguarda. É a desconstrução dos chás anteriores. Uma nova tendência infusiva. — O palato fica encharcado. Sinto um antirracionalismo, uma extraterritorialidade bem pertinho da garganta. As estruturas estão bem delineadas. — Isso me lembra o Romané Conti que bebemos ontem. — O de ontem era 1956. Não era tão bom. — Como não? Custa mais caro que as safras da década de quarenta. — É mesmo? — Ééééééééééééééééééééééééé! — Incrível. Devo ter comido alguma coisa que interferiu no gosto. — Acho que foi o Manifesto. — Deve ter sido. O tempero estava muito forte. Não dá para comer Manifesto em qualquer lugar. — Não dá mesmo. E passaram a tarde na Maison des Trois Thés, degustando os cinquenta mililitros do melhor chá que podiam beber.

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O que não é um morango  Ana Santos

No banco Corina, ao lado dos balanços, sob a árvore de flores amarelas. É tão velha que obscena, nos moles, nas rugas, na lentidão dos gestos. O curvar lhe dá estatura de criança. Antes de vir penteou muito os cabelos, ajeitou os fios com óleo perfumado (ai que eu não fico sem meu óleo perfumado!). Fez com mão trêmula duas tranças magras e compridas, cada qual com um pequeno laço azul na ponta. Usa casaquinho também azul, sobre vestido floreado, e uns sapatos pretos, sapatos de rapaz. Tem no colo uma bolsinha de crochê, em que guarda lenço e balas de goma. Corina brinca com a ponta de uma trança. A praça é de crianças e de mães. Também ela tem filhos, que visitam nos feriados. Um bando de netos crescidos, de bis. Já lhes esquece o nome, o rosto, ah! Dá de ombros


e meio-sorri — a boca é um traço, e mesmo não precisa mais de dentes: gosta é de sopinha de bolacha, miolo de pão molhado no café, e ver filmes de amor muito... Em seu calar-se, ela atenta para o som do balanço, perto. Há dois, mas um deles feito inútil, quebrado como asa. No outro, menina que se voa toda, os pezinhos descalços e imundos. Tem tanto cacho negro! Tanta risada branca! Tanto vaivém de vertigem, apertar de pálpebras, tanto êxtase insuportável de fazer ah! e jogar a cabeça para trás, pendurada, macaca, ver a praça ao contrário, endireitar-se e lançar-se à terra dura. Corina sorri inteira quando a menina corre até a gangorra (ai que é a minha chance!). A manhã finda. A praça se faz vazia, aos poucos. Ela se ergue minúscula, vagarosa, na mão esquerda segura a bolsinha. Tem os olhos no balanço, suas correntes, seu verde assento, será que caibo? Ah se caibo, sim. Eu sento e o vento me voa, pra lá, pra cá, pra cá, pra lá. Caminha trôpega, seu sorrir tão nu, tão feio. Vai tocá-lo, o balanço, vai tocá-lo... E volta a menina, abelhíssima, ligeira ocupa seu trono. Encara Corina com odiozinho herdado. A velha imóvel em resmungos – tira da bolsa uma bala, vermelha, pensa no preço da menina e seu reinado. Mas a pequena já alto, já macaca, e Corina, Corina... Ela senta vencida no banco, suspira. Seca no lenço os salgados olhinhos, comprime entre as gengivas o que não é um morango.

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Princesa  Livia Garcia-Roza

Pode se chegar, gente boa, relax, não é assalto, é ensinamento dos brother. Vem, vem se chegando. E aí, meu chapa, se liga em cuspe à distância? Não é assim que fala, meu irmão? Vai pagar nada. Nossa parte é essa. Tamo aqui na diversão. Pelo jeito tu também. Pra andar com esse passo mole tu não é daqui, certo? Atenção, malandro, que tu dança. Tá falando fofo assim porque tomou umas, né? Se aproxima, princesa, vem arejar sua formosura. Tava faltando dama no pedaço, né, pessoal? Mas e aí, galera? Mando uma placa mortal, tão sabendo? Aditivada. Seguinte, meu irmão: atenção que não vou explicar duas vez, isso tem que ser pegado no jato. Na areação. De primeiro o cara tem que desligar, de repente a cara dele para, os olhos também dão aquela freada, tão acompanhando, pessoal? Aí, nessa hora o peito estufa, ele funga, cava lá no fundo da boca oval, e daí ele mira e lança com força e o cuspe sai tinindo em linha reta. Míssil da paz, mano, vindo do interior mais subalterno do indivíduo. Voo bonito pra caralho, e o cara sente aquela satisfação; e se a carga encontrou o anonimato, sem problema, ele mandou bem. Valeu. Rindo, princesa?... Se amarrou no vôo do caralho, né? Tô sabendo... Mas agora eu requero a vossa atenção, aí, gente boa, só macho domina essa modalidade de esporte!, desde a remoção da infância. A mulherada tá fora dessa jogada, me perdoe as dama, mas pontaria é fundamental, e é do que elas carece. É arremesso complicado porque num tem escola. Já escutei que até agora


não cuspi porra nenhuma, guenta aí, ô meu... tá com pressa, mané? Vê se se liga que aqui num tem nego correndo, num é assalto, já dei explicação. Cusparada é coisa de macho, o sujeito tá sempre mandando o que chega pelas borda do corpo até sair por algum dos orifício. Sempre assim, in puto e fora do puto. Tão entendendo a evolução? Acompanhando a ejaculação? Ninguém aqui é precisado de aula. É questão de pontaria, já disse. A primeira vez eu mandei legal, puta tiro, tão escutando? Virei macho com agá. E de lá pra cara é enxurrada a toda hora. Tão a fim da exibição? E o dinheiro, tá na mão? Então dão um tempo no lance, que eu vou dar um recado ali naquela formosura. Preparando a artilharia pessoal! Vamos lá, princesa, o ambiente aqui num tá prepúcio pra senhorita, que logo se vê que é dama de altas mansão e fidalguia distinta. Posso seguirvos alguns passos? Não sei se atinaste que o espetáculo era tão somenos pra chamar a atenção de vossa persona. Grata, sei que estás, vê-se o polimento do berço esplêndido. Peço perdão pelas palavras de calão baixo, porque só assim captam o proferido. Quando no outro sim divisei vossa visão, meus olhos faiscaram obnubilado, e assim estão até o momento desse passeio pela orla marítima e terrestre, e quem sabe — quem de nós saberão? — exorbital. Pensemo positivo que alcançaremo estrela, qualquer Ursa tá valendo, certo? Atenção, princesa, pedregulho à vista; não tropeçais, pelo amor deste servo encantado com sua formosura totalitária. Não são todas que desfilam com garbo e cortesia, repareis? Tarde amena e gentil, né? Talvez... Vejo um cúmulo à vista fina. Gostarias de uma estancadinha a fim de saborear um suco refrigerado? Concordais então? Quantos anos a jovem tem? Vinte e dois? Mas este é um sábado lotérico! Façamo então um pouso instantâneo. Qual é mesmo sua graça? Lenora? Leonora? Oh, claro, Heitora! Filha legitimada de Heitor, ora ora... Prefere ser chamada de Ôra, oh, claro, Ôra, com mucho gusto. E o suco, minha flor, também tá a su gusto? Quanto esplendor oferece essa orla coalhada de despelada que mal chega a seu calcanhar, não é mesmo, gente esbelta?... E se não for inconveniência intrépida, gostaria que a princesa, com sua altíssima presença, conhecesse os meus aposento. E já que tropecei no assunto, quantos metro a princesa disporá? Um e oitenta... Mas é uma manekan! São só poucos concretos à frente, alteza, mas não se distraia no calçamento pra cabrito, sempre traiçoeiro com a fineza dos sapatos das dama, de todas as maneira, aqui estou pra amparar queda súbitas, saca?


Caminhemos pois, princesa minha, com todos os passo que enlevam aos meu domínio, e ao abraço que certamente posso me permitir, correto? Que delícia o por arejamento da sua pele em contato com a epiderme do meu tórax... Posso, por ventura, enlaçar vossa cintura, minha dama da orla, e de outras afins, que de momento escapam num sem fim de pensamento de través. Pronto, eis-nos! Não repare na modéstia, princesa. Tudo aqui tá arrodeado de objeto de difícil captura. Estás um pouco cansada deveras? Podereis repousar no pufe ou no sofá. Ou quem sabe no leito. Gostaria deste último reconduto? Antes precisas ir à latrina? Peço então que se dispa de tudo, dos preconceito e das intimidade, e seja feita a vossa vontade e a minha, que sempre bradei aos céu! E ele disse: Vai que é tua!, Amadeu... Até agora não me apresentei: Amadeu Serafim, às suas ordens, princesa Ôra. Ôra Ôra... Mas tu é uma fragrante delícia, uma musse, manja?... Conheces essa iguaria da nossa famosa baixada fluminense? Que som perfurador foi este? Ah, o celular. Como não, a senhora sua mãe, a distinta pré-genitora. Os seios protuberantes possuem algum ingrediente, minha flor? Ah, são natureba... Não, não se aborreça, mãe são muita transtornação... Relax, princesinha. Elas existem em bando. Não sei se tiveste visto as mãe da praça de touro. Um porrilhão, não leva a mal a devida expressão. Temo mais mãe que filho em tudo que é parte da atmosfera terrestre, certo? A galera num guenta o repuxo do cuidado. Mas é tanta curva no aldelgaçado do teu corpo que me brotou uma leve tonteireza. Um repente, por sinal. Por que gritaste? Ah, com a tua mãe. Deixa os arrulho pra lá, princesa... Ai... ai... que penetração! Num chora, caralho... Perdão, minha princesinha... Mas que orifícius, preciosa! Tava morto de fome... Num grita, coração, calma com a mamãe, vai, remelexa, assim, estás puta, claro, então dês uma reboladinha, vai, entrementes acelero pra atingir o climatério desse mundaréu, vai, vai... Vamo que vamo, né, realeza?... Hein? Ela quer falar comigo? Agora? Mamãe!! Uiiffff... Quanto prazer!! A senhora nem imagiiina...

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No dia do parto, o credo  Aleks Costa Para Márcia T., que me deu o motivo

Três paredes baixas arranjavam sala, quartos cortinados e cozinha. Papai andava do corredor estreito para a sala magra, onde a máquina de costura governava com autoridade os outros móveis. Mandou ficar do lado de fora com a tia louca que me carregou nos braços e me sentou no parapeito da varanda enquanto pegava um banco. Voltou e deixou-se ali comigo. Nesse dia aprendi uma nova oração. Duas mulheres entraram. Panos brancos suspensos de uma bacia prateada e grande. Desconhecia tanta branquidão, embora soubesse que minha mãe era asseada, sempre tinha uma mancha descorada impregnando meu lençol. A doida me olhava atenta e preocupada. Quis descer, ela não deixou. Apertava e friccionava as mãos sem parar. Eu preso. Papai veio perguntar de alguém à minha guarda, que respondeu “não”, balançando a cabeça. Ele voltou-se calado para a galeria de cortinas floridas. Já era acostumado ao seu calar-pensativo; a inquietação daquele dia que era diferente. As mulheres continuavam com mamãe. Pude ver umas delas saindo com o branco do lençol humanizado, vermelho como a língua da titia. Uma lamentação aguda me espantou, pulei e fui aparado por ela. Vamos fazer uma oração. Fico olhando sua boca mole. Medo. Era dada a ataques de


fúria e brutalidade com os adultos que a insultavam rodeando o dedo indicador em volta da orelha. Sempre ouvi dizer de sua inteligência, aprendeu a ler sozinha e com a vovó aprendeu todas as rezas. Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, repeti. Ela parou e olhou para trás, de onde veio outro queixume. Continuei castigado por seus conhecimentos litúrgicos. Pelas costas senti próximo um vulto negro, vestindo branco, giboso. Que foi Concebido pelo Poder do Espírito Santo, reproduzia. Era quem meu pai esperava. Nas mãos uma sacola de feira. A pele coberta de caroços me assustou no mesmo instante em que despertou curiosidade. A catequista mostra o caminho e grita “Dona Maria-caroço veio”. Meu pai recebe a velha de aparência detestável como quem tem pressa. Ela responde baixando os olhos e encolhendo os beiços. Estranhei que tão feia mulher pudesse tranquilizar meu pai. Não tive sossego. Nasceu da Virgem Maria, foi Concebido pelo Poder do Espírito Santo, continuava. A dona-caroço agarrou o braço do meu pai e ele descortinou o quarto para ela entrar. Pude ver quando tirou da sacola uma tesoura maior que a minha da escola e muito brilhosa. Não podia descer dali e socorrer a minha mãe daquilo. Me desesperei repetindo Ressuscitou ao terceiro dia, foi Crucificado, Morto e Sepultado. O quarto gemia todo. Minha tia doida nada fazia, nem o pai. Queriam apenas que eu rezasse. O que eles iam deixar aquela mulher fazer? Donde há de vir a julgar os vivos e os mortos. Repeti rápido e pensei que não queria ser julgado pelo que não fiz. Escapei das mãos grossas da tia e corri para o quarto. O pai não me barrou, veio comigo. Não tinha mais gritos, nem gemidos. Puxei a cortina, segurado por meu pai e a escuridão pouco me deixou notar. Distingui primeiro a minha mãe cansada, coberta por um lençol sujo. Em seguida vi e ouvi a mulher bendizer com a “graça-de-nossosenhor-Jesus-Cristo” aquela criança que chorou alto, agoniado. “É magrinho e cansado, nasceu triste”, profetizou. Procurei a tesoura, não vi, fui chamado pela voz da minha tia. Amém finalizava da varanda a sem juízo.

25 No dia do parto, o credo

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Finados  Alessandro Garcia

A mãe pedia que rezássemos pelo pai. Nós não sabíamos onde o pai tinha ido, mas rezávamos, a mãe pedia e nós rezávamos. Nos dias em que tínhamos que acompanhá-la até o cemitério era pior. Comprávamos as flores, ajudávamos a mãe a limpar a sua sepultura, sempre tão cheia de inços, e nos púnhamos graves, tão sérios como seria estranho ser para a idade que tínhamos. Os anos de falta do pai já tinham passado. Nos primeiros tempos doía tanto que chegávamos a passar mal. A Marina ficou dias sem ir ao colégio, chorava noite e dia, chorava tanto que eu achava que ela ia morrer também. Como eu era o único homem da família então, devia me manter mais duro, ao menos tentar parecer mais sério, mesmo que me doesse até os ossos fingir retidão na frente da mãe e da mana e de noite chorar como um condenado a falta do pai. O bom é que éramos pequenos o suficiente na época, se fosse hoje talvez fosse mais dolorido, se o pai desaparecesse assim, e a mãe chegasse e nos dissesse que ele tinha morrido. Como não víamos corpo, não choramos o defunto, ficava ainda mais difícil se dar conta que o pai tinha mesmo morrido. Para a mãe, eu não sei bem como foi toda a função de provar que o pai morreu, éramos tão pequenos e ela tão só, correndo de um lado para o outro, toda a burocracia e a papelada para mostrar que sim, seu marido tinha morrido, mesmo não tendo corpo para enterrar ela queria uma cerimônia religiosa, e padre, e


toda a gente chorando em volta de um caixão que não tinha defunto dentro. Suas roupas, somente, acho que tinha umas roupas suas que a mãe colocou ali dentro, dizendo que eram parte do pai e que devíamos chorar também por que o pai tinha morrido e devíamos sentir a sua falta e agora eu era o homem da casa. Depois, mesmo com toda a catequese e a crisma e comunhão e tudo aquilo o que a mãe fazia questão que fizéssemos, por que se apegava demais a Deus e dizia que era devota de Virgem Maria, nem Marina e nem eu fazíamos de coração. Não queríamos aborrecer a mãe, então não tinha cabimento que nos colocássemos como um destes moleques mimados que tinha no colégio que recebiam tudo de mão beijada e ainda reclamavam para a mãe se ela não lhes dava a marca do tênis que haviam pedido. Eu nem conhecia as marcas de tênis. Vestia o que a mãe podia comprar para mim, da mesma maneira Marina e, hoje, pensando bem, até me surpreendo que fôssemos tão boas crianças, éramos sim. Somente quando eu cresci um pouco mais e comecei a trabalhar e pude comprar as coisas pra casa e continuar a pagar o aluguel da sepultura que era cara pra danar lá no cemitério do centro é que pude também comprar uns agrados pra Marina, pobre de Marina, sempre com seus vestidinhos remendados que herdava da mãe, e umas coisas pra mim, e então comprei um destes tênis bonitos porque as moças no baile gostavam, mas nem importa, porque no final das contas também não olhavam pra mim porque diziam que eu era filho do finado que não tinha. Finado que não tinha, por que não tinha o corpo, todos da cidade sabiam que enterramos o pai em espírito, que era como a mãe falava. Um enterro digno como bom cristão que era para ter um lugar no céu, e onde estivesse seu corpo, estaria na paz do Nosso Senhor. A mãe dizia paz do Nosso Senhor, e eu me lembro de Marina e eu repetindo ajoelhados ao seu lado, em suas orações compridas, especialmente no dia de Finados. Eu não sei lá por que inventaram um dia pros mortos, estes mortos que sempre é preciso acalmá-los, parece que sempre querem um agrado, que rezem por eles, senão se põem aborrecidos e acabam atazanando a paciência dos vivos aqui, mas se tem o dia dos Finados que seja, que façamos o que se tem de fazer, então, porque eu não discuto muito estas coisas de convenção que as pessoas inventam e se inventaram temos mais é que respeitar e cumprir. E que mal há de num dia só rezar por eles se eles ficam mais calmos assim? Depois, não custava nada, mesmo estando já mais velho, ainda que não quisesse sair de casa e me


juntar com Dora, por que a mãe já estava velhinha e queria ficar e cuidar dela antes que se fosse pra junto do pai. Podia ajudá-la a ir até o cemitério, limpar os inços com ela e deixar a sepultura do pai tão bonita, lustrar o vidro da foto dele já tão embaçada e trocar as flores com a mãe porque era o que ela mais gostava de fazer. E mesmo que eu já grande, agora sim que não acreditava mais nestas coisas da igreja e que as almas vão pra um lugar tão bom, eu acho que quando a gente morre já era e pronto, fazia o que a mãe queria porque ela ficava feliz, e se ela dizia que o pai tava nos olhando, tava num lugar melhor e ficava mais contente da gente limpar sua sepultura, eu fazia, o que é que eu não fazia para deixar a mãe feliz? Quando a mãe já na beirinha da morte juntou um monte de gente, porque a mãe era boa e todo o mundo gostava dela ali em volta e mesmo que falassem pelas costas que era viúva do finado que não tinha. Mas as gentes são tudo assim, o povo fala mesmo e que se há de fazer, se depois quando precisam da mãe pedem ajuda e fazem de conta que não falaram nada? Como a mãe era tão boa, fazia que não escutava, por isso ela nem gritou com ninguém quando ficaram tudo a sua volta rezando por ela, nem o turco que lhe cobrava o olho por qualquer fazenda que ela precisasse pras suas costuras, até ele tava ali, rezando, sei lá de que religião são os turcos, e se eles acreditam em Deus, ou ele só estava ali para fazer fita. E nesta hora era todo mundo amigo, mas só eu e a Marina que segurávamos a mão da mãe como ela queria, porque era só isso que ela precisava para morrer em paz, ela disse, de nós dois, os seus filhos, e que bom seria se nosso pai estivesse lhe esperando para recebê-la e ficarem juntos para sempre. Por isso é que eu não sei, não sei por que ele depois foi embora, se ela estava falando do pai que ia recebê-la lá no céu ou se ela começou a delirar e fitar o homem que entrava lá em casa, que nem eu nem Marina conhecíamos, mas que a mãe começou a chamar pelo nome do nosso pai, e como a mãe já estava delirando, nem ligamos, nem nós nem o homem também, devia ser um amigo de longe, já velhinho como a mãe, embora todo o mundo tenha achado tão estranho, e eu também, é verdade, que ele se parecesse tanto comigo.

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A mosca e o ladrão  Ondjaki Uma dessas noites tudo vai embora, leve-nos, ladrão  adriana calcanhotto, Noite

Uma mosca lânguida dançava. O som chegava libertino do mar — como um vento adocicado. A mosca exercitava movimentos concisos, rápidos, frenéticos. Transe ou passe desajeitado. O seu corpo obedecia a uma melodia ou a uma interferência magnética não perceptível. Mas que a mosca dançava — dançava. As nuvens embalavam a madrugada. A brisa fraca trazia em si restos de sal, e memórias, e sorrisos de vidro que a todo momento se podiam quebrar. Talvez o amor seja isto: restos de vidro e belas cicatrizes. Ele dormia no quarto. O aquário dormia na sala. Os peixes não. “Uma destas noites…”, dizia-lhe eu. Ele dormia, sob o mosquiteiro encarnado. “Quero que me ofereças um mosquiteiro, mas que seja encarnado.” Distingui com nitidez os passos do ladrão na cozinha. Calculei até o seu peso. Afligia-me não detectar nenhum odor. Pousou o que fosse um saco ou uma mochila pequena. Foi acumulando objectos. Talvez a minha colher preferida. O meu prato fundo trazido da Argélia com desenhos finos, feitos à mão, lembrando estrelas no céu do deserto frio. As minhas chávenas de todos os cafés tomados. Tudo o que ordenava a minha escuridão numa pauta de gestos quotidianos. A minha escuridão. A escuridão da sala. Era uma janela enorme. Cabiam nela a madrugada e a mosca. A mosca era, como outras, pequena. Outrora, o amor tinha sido enorme. Do tamanho de uma obsessão. “Uma destas noites tudo vai mudar.” Ele dormia sob a paz encarnada do mosquiteiro. Deslocou-se, o ladrão, da cozinha para a sala. Sem hesitação. A mosca parou a sua dança. Viu-me. Compreende que, não o tendo visto, eu já sabia da sua presença. Não tendo gritado, já não o faria. O ladrão não podia gritar. Pousou a mochila no chão, em gesto de entrega. Olhou a sala, o armário de madeira. Tocou os livros como se soubesse deles. Olhou a mulher na sala. Era eu. Viu a janela. A mosca ainda lá estava. A madrugada também. Trazia nos pés um par de sandálias dotadas de uma simplicidade comovedora, os pés limpos, e nem aproximando-se pude identificar o seu odor.


Algum resto de incenso. Talvez madeira já esculpida. — O que leva desta casa que não encontrou nas outras? O ladrão sentou-se no sofá comigo. Mas não chegou perto. — Comida. Cruzou as pernas como se não tivesse pressa. Eu olhava alternadamente o ladrão e a mosca. Ele dormia lá dentro, no quarto. A janela acolhia a mosca. — Também tem os livros de poesia reunida, isso poupar-lhe-á algum trabalho. Leve pelo menos a poesia oriental e a brasileira. Ele acedeu com a cabeça. Fechou os olhos, respirando fundo, libertando-se não do cansaço, mas de uma espécie de futuro. Olhou de novo para mim. O ladrão emanava uma certa culpa. Atrapalhado por não ter mais que dizer, sentia cada oferta como um dardo doloroso. — Leve-me consigo, ladrão. — Vou para muito longe. — Era esse o meu desejo. Levantou-se. Alcançou os dois livros de poesia reunida. — Levo uma vida já ocupada. Mulher e dois filhos. Não me leve a mal. Estendeu-me a mão. Tocaram-se os corpos. Era mão não de homem, mas de pessoa. Trazia nela, confirmei, um cansaço para além das actividades diurnas ou das coisas materiais. E, nessa proximidade, constatei, não possuía odor algum. A mosca voltou aos seus movimentos desajeitados. No seu bailado havia algo de caos organizado. Contudo, o tempo de exposição da dança não me permitiria detectar um padrão. O corpo do ladrão obedecia a uma melodia de retirada que não sofreria nenhuma interferência feminina. A madrugada continha em si restos de sal, sorrisos e memórias de vidro que a todo momento se podiam quebrar. Talvez o passado seja somente uma bela cicatriz. Regressei ao quarto. Havia um mosquiteiro. Era encarnado. No mosquiteiro, havia uma fresta aberta. Ninguém dormia na cama. Não houve, nunca, um homem adormecido na minha cama. Difícil é aceitar lembranças. Sei de um ladrão que não liberta odor algum. E (que) nunca tinha visto uma mosca dançar.

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Intervalo  Tiago Montenegro

Não importa quem sou. Ou até importa, mas não tem interesse. Não sou dado a formalismos. Por isso não me apresento. Só por isso. De qualquer modo posso falar de mim. Sempre me considerei uma pessoa simples. Nunca saí da minha cidade, mas sinto-me como se nunca a tivesse vivido. Paradoxalmente, já viajei por todo o mundo, mas sem sair do sofá. Naquele dia até estrelas vi. Mas isso já passou. Ou não passou, mas não quero falar nisso. Do que eu gosto mesmo é de filmes. No sofá sou vítima desses filmes. Nessas alturas as noites são mágicas. Quase não penso em nada. Esforço-me até por não pensar em nada. Limito-me a manter os olhos e os ouvidos abertos para absorver aquilo que me interessa e que verdadeiramente importa. Não penso em nada. Não penso em ninguém. Não penso em mim sequer. O que para um egocêntrico convicto é difícil de confessar. Limito-me a vegetar, com os olhos colados num quadrado pequeno chamado televisor e em que homens ainda mais pequenos se movem. Quando a luz vinda de fora me incomoda fecho as cortinas. Sentome. E então tudo para. Separo-me do mundo. Mas os homens no quadrado pequeno também param. Permanecem estáticos durante os segundos seguintes. Levanto a perna direita e a pausa extingue-se. Os pequenos homens recebem autorização para se moverem de novo. Com um gesto irritado atiro o comando do televisor contra a parede e rio-me sozinho. Os homens no quadrado pequeno voltam a parar. É a sua memória que falha. A memória que nasce como instrumento da consciência, mas que cai facilmente na armadilha do tempo.


Perdido o meu olhar na cortina, as duas personagens enfrentam-se dentro de uma sala. Apanhando-me distraído, um dos homens dispara dois tiros na zona do coração do outro homem. Silêncio. As balas ficaram a zumbir-me nos ouvidos. O televisor estava muito alto. As personagens dão lugar a um intervalo publicitário. Não tenho paciência para intervalos. Nessas alturas, deixo de escutar o mundo porque deixa de fazer sentido. E abro de novo as cortinas para perceber onde estou. O resto deixa de me interessar. Como não me interessa a família. Nem a religião. O futebol ainda vejo por vezes, mas não passo da primeira parte. Olho para baixo. Um copo de uísque numa mão e um copo de vodca na outra. Mais tarde decido qual dos dois irei beber primeiro. Sinto-me a melhor pessoa do mundo. E a mais inútil. Os meus olhos fecham-se durante algum tempo. Acordo com um barulho vindo da entrada da casa. A porta da sala abre-se. Entra um homem. Puxo da pistola escondida entre duas almofadas do sofá. Disparo dois tiros na zona do coração do outro homem. Ele cai no chão. Inerte. Com os olhos abertos virados para a janela. Ligo o televisor. Os anúncios não são assim tão aborrecidos ao final da tarde.

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Machucados

Clayton C.

Quando era adolescente, tomava coragem e ficava durante a noite em lugares sem luz e abandonados. Sentia minhas orelhas vermelhas, o suor nas costas descia e me incomodava. Ficava sem respirar o máximo possível. Nada acontecia, não ouvia nada. Em casa, deitado na cama, uma voz me falava algo que parecia lógico, sensato. Mas não conseguia entender. Minha angústia ficava insuportável. Isso acontecia na escola, o que me causava brigas e notas baixas, e devido a isso meu pai me tirou da escola e contratou um professor particular. O professor sempre aparecia machucado ou doente. Minha memória é muito viva quanto a isso, ele aparecia com curativos no rosto, uma vez até com o olho esquerdo tapado. Um dia um braço quebrado e pouco tempo depois, uns meses, o outro braço. A aprendizagem ia bem, de alguma forma me concentrava e melhorei nos estudos, porém meu comportamento social piorou e fiquei um mês inteiro sem ver ninguém exceto meu pai e o professor. Faltava meio ano pra terminar meus estudos e o professor repentinamente pediu demissão. Despediu-se; fiquei na escada, meu pai voltou minutos depois vermelho e afobado. — Chama a polícia!... não! Os bombeiros, emergência!, me inclinei um pouco e o professor estava do lado de fora na beira da porta, imóvel e pálido. Meu pai ligou, mas quando a


ambulância apareceu o professor já estava morto. Meu pai ficou abalado por vários meses. Terminei os estudos, com louvor, com uma professora muito habilitada. A professora tinha mais uma habilidade: fazer meu pai rir. As piadas bastante esparsadas e final astuto terminavam mesmo com meu pai rindo, muitas vezes às lágrimas. O nome dela era Inácia, levemente vesga. Meu pai também ficava vesgo vez por outra atrás dos óculos. Os dois tinham cabelo bagunçado e pareciam mais velhos do que eram. Meu pai menos, tinha 45 e aparentava cinco a mais; ela tinha 32 e parecia 40. Peguei os dois rindo um pro outro no sofá. — O refrigerante tá bom mesmo, disse ela. Ficaram noivos. Ela nos visitava todo dia, engraçado, na mesma hora que costumava vir pra me dar aula. Um mês para o casamento ela apareceu com o braço quebrado e uma pequena gaze na testa. O noivo ficou atônito, ela respondeu que foi uma queda de nada, nem doeu e a irmã insistiu no médico. Ficou surpresa, com o braço quebrado, mas nem doera. No final dessa frase ela colocou “amor”, ele até riu, esgarçado. Meu pai me arrumou um emprego num banco. Cheguei do primeiro dia do trabalho, não queria falar com ninguém, ele não me viu e estava sentado na cozinha bebendo vinho, sentei perto e só me ouviu depois de um tempo. Não me perguntou nada e só disse: — Hoje a Ná caiu da escada e quebrou o outro braço! Mas ela estava inabalável e quis casar mesmo assim, “sua Ná vai ficar bem graciosa, você vai ver!” Meu pai não acreditou e me confessou o seu temor, me pediu que não contasse mais nada sobre o professor, dos machucados. Confirmei que não iria e ele me pediu que repetisse. Ele a hospedou em casa, num quartinho no andar debaixo e cuidou dela. No meu diário meu pai era o “muletas”. E o muletas era todo automatizado, se movimentava bem, não escorregava, e agora dera pra beber. Dizia “cuidado!” várias vezes à sua noiva. Inácia, por causa dos gessos nos braços, parecia que queria abraçar todo mundo e dera pra se chamar “imbecil” (ou já era sua mania?), e ria quando fazia alguma imbecilidade. Faltando um dia pro casamento ela entrou no meu quarto de roupão, o tirou com manobras. Não fiquei constrangido porque um corte enorme nas costas deixava o sangue escorrer. Começou a falar rápido e só entendi a parte final: “Daí você vai ter que me costurar, quer dizer, suturar”, ela sabia da desconfiança do noivo e com ele bebendo vinho daquele jeito… Se fosse ao médico ele perceberia, “me ajude”, e ficou esperando minha resposta. A agulha era em forma de meia-lua, a linha, de náilon, estava


dentro de um pote com álcool (vinho?). Ela parecia não sentir dor, terminei a sutura e fui imediatamente tomar um banho frio e não a ajudei a se vestir, manobra que ela não dominava, ainda mais ferida. O dia do casamento chegou. Estava com meu pai ajudando-o com a gravata, ele com um cálice na mão, quando ouvimos um baque surdo que senti subir pelas pernas. Ele desceu correndo a escada, deixando a bebida na minha mão. Carregou a noiva pro quarto, mas ela quase gritava que estava tudo bem. Casaram-se. O vestido branco (nada mais justo) e o gesso contrastavam, esse último já estava amarelado. Alguém teve a ideia, ignorada injustamente, de passar uma mão de látex pra deixar tudo mais assim, parecido. Três dias depois atravessei a rua e entrei animado no banco. Uma senhora de vestido vermelho não teve problemas para passar pro lado de dentro com a permissão da porta giratória. Na minha vez, vi o chão chegar perto de mim, numa queda grotesca com um braço pra frente, preso na porta giratória. Um grandalhão que queria sair forçou a porta (eu era funcionário do banco, vingança?) e o meu braço direito quebrou, o braço de que mais gostava. Fiquei uma hora esperando num hospital que o gerente me levou. Algum idiota brincou comigo por eu ter chorado. Voltei pra casa mais cedo. A porta estava meio aberta, uma garrafa virada deixava vinho cair pelo sofá, isso já tinha acontecido outras vezes. Fui pro meu quarto. De lá ouvi uns barulhos, fui direto pro quarto dos casados. Abri a porta de um jeito que sabia que não faria ruído algum (vai saber o porquê). Meu pai estava em cima da esposa, a cabeça dela pendia pra fora da cama, não fiquei constrangido por que Inácia estava pálida, imóvel e seus olhos sem cor. As mãos do meu pai saíam agora do pescoço dela. Ele tremia, afobado. Inácia estava tão estrábica que parecia ter chorado pra cima, lágrimas ainda desciam dos seus olhos rumo a testa. Fechei a porta, “era a gravidade”, pensei. Entrei no meu quarto, minha cabeça girava. Risquei no meu gesso a data.

35 machucados

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Pedro e o sonho  André Giusti

Desceram correndo as escadas sete ou oito jovens enfileirados. Era bem dividido o grupo, três ou quatro homens, três ou quatro mulheres. Faziam algazarra, estavam felizes, leves como é a cabeça na idade que tinham. Os homens falavam graças uns para os outros e para as meninas, contavam também piadas, mas inocentes, aquelas bem bestas, sem palavrões ou indecências. Elas riam, achavam bobeira, como a vida toda acham que são as coisas dos homens e o que eles dizem. Pedro era o primeiro da fila. Ele não lembra se apenas ria ou se também dizia besteiras, mas percebeu que estava uns cinco degraus à frente de quem o seguia. Ela estava mais para o final, da metade da fila para trás. No último degrau, Pedro esticou a mão esquerda, segurou firme na curva do corrimão e deixou que o corpo fosse no embalo da descida até quase o primeiro degrau do outro lance da escada. Ali fincou a ponta do pé direito, fazendo-a de freio. Parou e voltou um tanto de nada, feito um carrossel que encerra a diversão. Plantou-se bem no fim do lance de escada que todos ainda desciam. Dali olhou para o alto, ria de algo que ainda dizia ou que ainda ouvia, mas sempre olhando para ela, vendo-a se aproximar. Passou por ele a segunda pessoa da fila, desviando em cima; a terceira também, a quarta, a quinta. Mas ela não desviou, e Pedro teve a certeza — feliz — de que ela não queria mesmo desviar. E quando já estava próxima, ele esticou para o alto a mesma mão esquerda que soltara do corrimão. Ela pegou com a delicadeza de quem toma um lenço e veio tal como paetê ao encontro de Pedro. Se ensaiado fosse, o movimento talvez não conseguisse tanta perfeição. Ela veio girando, enroscando no braço dele, parou enlaçada na cintura, agora pelos dois braços de Pedro (ele tão galante, tão jovem no sonho, uns 25 se tanto. Ah! Quantos anos atrás Pedro tinha 25 anos?). O último da fila passou também desviando em cima. “Olha isso aí vocês dois, hein?”, e a galhardia prosseguiu escada abaixo quando o grupo percebeu que os dois ficaram para trás, a sós. Pedro era um sujeito comum, e como tal não gostava das segundas-feiras. Mas naquela não lhe ocorriam temores e frustrações. Sentado na beira da cama às 6h30 da manhã, apenas uma angústia lhe assaltava: a de não lembrar do rosto dela. Este


fugira-lhe da mente, escorrera-lhe a lembrança feito água derramada de um baldinho de criança na areia da praia. Como são fugazes as memórias dos sonhos, era apenas o que Pedro lamentava naquela manhã em que o fardo de mais uma semana incrivelmente não lhe pesava nos ombros. Fixou algum ponto do quarto onde o dia claro ainda não alcançara. Dali, enovelou de volta o sonho. Tudo mais era nítido, feito a manhã anunciada há pouco. A algazarra na escada, a correria, seu gesto cavaleiro. Agora vinha a certeza de que até mesmo música existia, em algum lugar lá embaixo do prédio, onde certamente uma festa esperava aquele grupo feliz e em paz com a vida. Mesmo da cor dos cabelos dela, Pedro poderia afirmar com certeza: eram castanhos claros, anelados na ponta, chegavam no máximo aos ombros. Noite fria, céu cinzento, e Pedro lembra-se de mais esse detalhe recortado no basculante do corredor do prédio. Por isso ela vestia blusa de gola alta bege, talvez por cima estivesse um casaco pesado e marrom, Pedro acha que sentiu a textura do couro legítimo quando a enlaçou e ela sorriu seduzida. Havia um sorriso de sonho no rosto, mas do rosto Pedro não lembrava. — Pedro! Um avião caiu com duzentas pessoas! Todos mortos, uma catástrofe! — bradava o redator de notícias da pequena emissora radiofônica em que Pedro trabalhava. Mas, de olhos e ouvidos ausentes, Pedro adentrou a ampla sala como se os pés não tangessem o chão encardido. Cruzou mobília e computadores decadentes flutuando feito pena que se desprendesse do pássaro que mais alto voasse sobre a cidade. Sorrindo para o todo e para o nada, Pedro fustigava as imagens do sonho, tentando que se deslindasse a que mais ansiava lembrar: o rosto que sabia belo, mas que se quedava incógnito na distância das horas que separavam Pedro do que sonhara. O máximo a que conseguia chegar eram os olhos castanhos de penumbra e o sorriso de felicidade sincera, de alegria de festa, de euforia de conquista. Mas nada na lembrança de Pedro encontrava pouso na moldura de um rosto de mulher. — Pedro! Morreu o fabuloso astro da música pop! O mundo está abaladíssimo! — E o velho redator puxava cabelos ralos num ir e vir sem destino e objetivo. Enlevado pelo sonho, Pedro sentia-se balão de gás desprendido da mão de menino. No meio do dia, Pedro vagava pela avenida principal sem almoço e sem fome. Tão displicente sempre para quem passava ao lado, agora fitava to-


das as mulheres no caos da cidade sem coração e dó. Verificava que rosto seria possível sustentar o sorriso que só conheceu no mais belo dos sonhos que teve, de toda a vida de verdade que viveu. A estudante que abraçava os livros no ponto do ônibus; a mãe jovenzinha que afoita entregava o filho na escola; a modelo sorridente que anunciava creme dental no parabrisa do ônibus. O avião, o astro pop! E o mundaréu de gente se apinhava comovida na frente do magazine para ver as TVs ligadas na vitrine. Nem a moça que apresentava o noticiário nem a correspondente internacional, nenhuma delas. E o sorriso flutuava sem moldura nos flashes que sobraram da madrugada. — Pedro! Quebrou o poderoso banco estrangeiro! Faliu a grande fábrica de automóveis! O mundo vai à bancarrota, Pedro! — E os brados incansáveis do redator ainda eram ouvidos no fim do expediante, no corredor que recebia a noite, mas foram sumindo à medida que o elevador chegava à portaria que Pedro cruzou para pegar a avenida onde todos os rostos eram apenas confusão de sombras e luzes de neon. Talvez alguma ex-namorada, pensou sacolejando no ônibus, mas também o passado não lhe trouxe resposta. Torceu a fechadura da humilde quitinete e o peso de casa fechada o dia inteiro deu-lhe as vindas sem nenhum entusiasmo. Vizinhas, colegas de emprego que teve. Cruzou a passos curtos a sala e a solidão que por contigência há anos desposara; a professora do primário tão nova, e despejava a sopa de pacote na tigela de água morna; antigas colegas de ginásio, e partia cascas de pão de forma que sobraram; o banho pingado no chuveiro elétrico, ex-namoradas de amigos. Só que nenhum rosto capturava o sorriso do sonho na noite vazia de Pedro, no escuro do quarto em que ele chama o sono com esperança de que venha junto o mesmo sonho e o gosto de ser amado como nunca foi.

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Gorda-de-repente (um episódio)  Claudia Nina Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada? hilda hist, A obscena Senhora D

Quando me olho no espelho, o que vejo? Um rosto gordo que já deu cria no queixo — um papo enorme em cima do pescoço (gordo). O gran finale desta imagem são dois joelhos juntos que me deixam com os pés para fora como se eu fosse uma pata grávida. Bem que eu podia encontrar hora melhor para fazer este encontro frontal e imediato comigo mesma. Por que logo agora, neste maldito dia em que percebo que sobrei, resolvo me detalhar por inteira no grande espelho do quarto? Envolver-se com um homem casado quando se é jovem talvez não seja tão ridículo quanto o que acontece comigo: tenho mais de 60 anos (fica melhor do que dizer de supetão que tenho 65, o que de pronto faria de mim uma senhora de quase 70) e sinto-me absolutamente dispensável. Os filhos crescidos, cada qual no seu caminho; o homem, um amante breve, último e único namorado depois da separação, apenas dois anos mais novo, é ca-sa-do, e o mais aterrador é que prefere ficar ca-sa-do. Não larga a mulher. E eu? Sobrei. Quando se é dispensável, mas se é magra, tudo parece, literalmente, mais leve. Aliás, tenho a impressão de que as genuinamente magras nunca são dispensadas. Essa coisa de sobrar é para gorda. Talvez ser feia não seja tão lastimável quanto ser uma gorda-de-repente. Sim, porque quando se nasce gorda é outra coisa. Acostuma-se à realidade, e o corpo pesado passa a fazer parte da vida, podendo até virar ferramenta de sedução. Mas quando se fica gorda de repente, ah, isso é uma lástima. Ele não desapareceu de vez. Ainda me procura. Telefona, diz que precisa ouvir minha voz, que sente a minha falta. Não acredito, mas me encho de ilusão. O que não entendo em mim é: se tenho a nítida percepção de que sobrei, por que não pego os caquinhos, cato as sobras de dignidade e vou embora, parto pra outra? Mas partir para onde se tenho mais de 60 anos, estou gorda e sobrei? Então fico aqui, de pé, diante deste espelho enorme. E me vejo, assim, somando as impossibilidades de partida, olhando no closet as roupas que não me servem. Tento experimentar a calça roxa 46. Nossa, nem essa serve. Ficava larga e agora nem passa do joelho gordo pra cima. Pior do


que ter costas flácidas é ter joelhos gordos que empacam as calças. Se o telefone tocar agora eu juro que não vou atender. A mulher dele tem a pior de todas as qualidades que uma selecionada pode ter: é magra, magra mesmo, esbelta de nascença. Um dia ele mostrou a foto dela de corpo inteiro que carrega na carteira. Achei cafona à beça essa coisa de foto na carteira (inveja). Pessoas como ela não sabem o que é se olhar no espelho e ver aquele pedacinho de banha sair por debaixo da camiseta, do lado, sabe? E o joelho, ai, sabe a dor que é ter um joelho gordo? É uma dor que não cura nunca... Não adianta pensar que o rosto dela está caído de magreza, que as pálpebras de uma magra são mais envelhecidas do que as de uma gorda, como eu. Rostinho enxuto (e gordo) em cima de um corpinho de baleia. Quanta recompensa. Passaram-se dois anos desde a primeira vez em que nos encontramos. Desde então, foram visitas casuais a minha casa, encontros-surpresa. Tudo cena roubada, pois ele jamais arriscou um final de semana, uma noite sequer longe da esposa. Sempre me contentei com o que ele me dava; autoestima baixa, mirrada, sabe como é, 20 anos de análise ajudam, mas não me salvam. Até o dia em que ele finalmente disse que jamais deixaria a mulher. Eu, se quisesse, teria de me contentar em ficar com o que restava, migalhinha. Ele seria para sempre ca-sa-do. Não disse nada disso textualmente. Homens nunca dizem nada textualmente, mas a gente tem de entender o interdito se não fica posando de ridícula.

azeitonas graúdas O encontro brutal comigo mesma no espelho é interrompido pelo celular. Minha palavra não vale nada. Jurei em falso. Corro afoita para atender. É ele. Finjo uma voz blasé. Uma gorda-de-repente, 65 anos nas costas, sozinha da silva, não combina nada com uma voz blasé. Mesmo assim, ridiculamente, insisti no tom. E, ridiculamente, aceitei o convite para um jantar aqui na minha casa — onde mais? Ele não quer correr risco algum de ser visto. Ainda mais comigo. Por que aceitei, afinal, um novo encontro fortuito na minha casa que terei de arrumar às pressas, limpar o sofá e o carpete, enfeitar com flores, tudo para parecer que não ando na mais inútil miséria moral? Não suporto mais viver só. A solidão me apavora. Uma vez li a história de uma senhora


que passou a velhice no vão de uma escada, no meio do caminho, enquanto as pessoas, jovens em sua maioria, saíam e vinham de sua rotina de trabalho, amores, passeios. Ela sem ter para onde ir nem de onde chegar. A imaginária possibilidade de ser salva da solidão me anima subitamente. E, mesmo sabendo que ele jamais vai deixar a mulher, resigno-me à condição de gorda ridícula e saio para comprar o que falta para o jantar. Aceito gastar meu dinheiro na ilusão de fazer uma noite ridiculamente perfeita. Marcou para as sete horas. Cedo assim para poder inventar uma desculpa, dizer que ficou até mais tarde no trabalho, sei lá. Isso quer dizer que o encontro vai durar pouco, no máximo três horas. Depois ele vira abóbora e eu me desmancho no sofá, onde sou deixada, com minhas sobras. Foi assim das outras vezes e não deve ser nada diferente agora. Sobrando por dentro e por fora, sobrando em peso e sobrando como gente, saio à procura de pequenas delícias para antes do jantar. Não seja romântica, nada vai mudar nesta noite e, no final tudo, terá a mesma medida de quando se está sobrando. Deixo estendido na cama o pretinho básico que vou rechear com meu excesso de gordura e expectativa. monalisa Ele chegou. Vou correndo abrir a porta e só depois, no meio do caminho, é que percebo mais um momento ridículo do meu show de cada dia. O peito gigante apertado no pretinho arfando de ansiedade por uma campainha tocando. O quadro não poderia ser mais patético. Abro a porta com aquele sorrisinho bobo, Monalisa aposentada, e logo imagino que do outro lado de mim tem alguém que me sorri de volta. Ele nem me sorri nem me abraça e sequer me olha. Entra espavorido como se estivesse cumprindo um ritual. Ainda assim, deixo-o entrar. Não traz nas mãos vinho ou flores. A porta aberta, o homem dentro. Eu apertada. O peito pronto para um salto à distância. O xixi? Esqueci de fazer. A bexiga inchada. Inventar alguma desculpa agora mesmo e correr para o banheiro. De inchado chega este abdome espalhado pela cintura (que cintura?) que eu esmago no pretinho. Não, a bexiga tem que estar livre, ao menos a bexiga. Digo que vou abrir a janela do quarto para ventilar a sala. Ele me espera. Sentado, os braços alargados no sofá. Está de camisa branca listrada azul, calça jeans. Tênis branco. Tudo meio sem aprumo, a


cara é de amante amassado. Não perdeu tempo se arrumando para mim. E eu, de salto alto. Ainda bem que não gastei dinheiro com a escova. A timidez de gorda-de-repente atrapalha. Se eu fosse esta gorda que vos fala, mas articulada em minha opulência adiposa, não seria tão ridícula quanto me sinto agora. O que me esmaga é a timidez. Por que o recebo? Saio do banheiro tirando o excesso do batom. Se pelo menos a maquiagem parecer mais casual, talvez melhore a sensação de erro. Vou para a sala, tropeço ligeiramente no tapete. Só faltava essa. Imagine levar um tombo e cair direto com a boca no chão aos pés dele? Multiplico as situações em que sou uma palhaça perfeita porque é assim que me sinto. Entre o banheiro do quarto e a sala são alguns passos. Mas o trecho parece uma longa viagem. Não sei como vou chegar até o final e nem ao certo se ele ainda vai estar lá quando minha figura desabrochada em excessos aparecer.

lasanha dormida Ele foi embora sem comer toda a lasanha do prato. E de mim, quis bem pouco também. Um sexo rápido e sem desejo, feito pra acabar logo e depois me deixar na cama, pesada e em sobras, com o resto da noite para me arrepender de ter aceitado o jogo desigual. Ficou para mim o resto da lasanha que como agora, no dia seguinte, dormida e destroçada, as carnes moídas e alguns fiapos de queijo estraçalhado, tudo partido e sem gosto. Quando sobra bastante queijo, a lasanha que fica é saborosa. Mas restou só muita massa e carne com o molho já ressecado. Faço das sobras meu almoço de domingo. Amasso meu volume no banquinho mínimo da cozinha. Estou com a maquiagem borrada. Não tive coragem de encarar um nu frontal de rosto no espelho maldito. Tem gordinha pós-menopausa que é feliz. Mas duvido que consigam arrumar namorado. Ou seguram seus maridos e vedam os olhos para as traições, ou vivem de migalhas. Como eu. Penso em por que não falo mais do que aconteceu naquela noite. Falar do que não houve? Ah, mas talvez me faça bem, sabe? Botei uma vela ridícula no centro de uma mesinha que enfiei na varanda apertada. Ventava um vento arrepiado, o que deixou os “amantes” desconfortados, e o clima começou desagradável. O papo era aquela conversa mole, cheia de vazios no meio como um queijo suíço. “E aí?” “E


aí”, perguntávamos sempre que o assunto mirrava. Então ele colocava a mulher no meio em uma tortura odiosa. Eu desviava o assunto para lugar nenhum. Acho que perdi todos os assuntos. Depois fomos para o quarto. Lençol novinho, colcha de flores e a luz quebrada, porque meu corpo gigante não quer se visto. A trajetória lenta até o quarto: me arrastei, carregando, além do peso imenso que só a mim pertence, a vergonha de mim. E ainda por cima escolhi o sapato errado: um modelo preto apertado que deixa meu pé mais inchado. Chegamos na cama. Ele me beijando aquele beijo sem saliva, boca dura de ator velho. Eu tentando fingir que estava amando o que era tédio. Ele, certamente, entediado, me beijando o beijo duro. Foi neste clima que chegamos ao sexo. Claro, sem nenhum clima(x). Tudo programado para terminar em alguns minutos como micro-ondas. Passou tão rápido que, quando dei por mim, lá estava ele colocando às pressas a camisa e a cueca branca, subindo as calças e amarrando o tênis. Quase pronto para escapulir.

salvação Depois do almoço dormido, volto para a cama. A gordura pesa nas minhas pernas inchadas que doem. Não quero preencher a minha agenda da semana com médicos. Mas há pouco a fazer, a não ser procurar de algum jeito me salvar. Na minha idade, penso, só os médicos podem me resgatar — quem mais virá? Coitado do meu analista. Vai sobrar para ele. Preciso passar para alguém um tanto das minhas sobras antes que eu me sufoque nesta gordura quente, fervendo um salgadinho requentado que sou eu. Antes que eu vá para aquele vão da escada e por ali me espalhe, quieta e adiposamente, até morrer.

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A garrafa

Ana Cristina Melo

Aquela teria sido uma manhã como qualquer outra, se não fosse a primeira depois de Jussara me abandonar, de eu ter perdido meu emprego e de ter descoberto que eu estava preso dentro de uma garrafa. Não era somente eu que estava preso ali, mas todo o meu quarto. Abrindo a porta ou a janela, deparava-me com o vidro grosso, fumê, que me impedia não só o ir-e-vir, como me restringia a visão completa do mundo. Lamentei meu quarto ser de fundos, pois assim nem podia gritar a quem passasse na rua. Gritar poderia, e o fiz, mas me pareceu que as palavras batiam no vidro espesso e retornavam ecoando para dentro de mim mesmo. O teto não mais existia. Olhava para cima e encontrava o vidro se prolongando até se afunilar no gargalo, e bem lá no topo, uma rolha que o fechava hermeticamente. Não havia dúvidas, estava preso dentro de uma garrafa. Perplexo, sentei na cama. Olhei em torno. Nem meu quarto era o mesmo. Muitos dos meus móveis haviam sumido. A pequena estante com meus livros, o computador, o armário. Onde estariam minhas roupas? Mas se bem que pensei: o que faria eu com roupas, se nem podia deixar aquele lugar. Me sobrara a cama, uma mesinha de cabeceira e um pequeno sofá, colado à janela.


Tentei lembrar o momento em que me deitei, mas não consegui. A última lembrança que tinha era da vontade incontrolável que tive de dar fim ao sofrimento. Dos móveis da sala que arrebentei, tentando expulsar aquele berro preso no peito. De alguém tocando meu ombro... e de mais não me lembro. Vasculhei as gavetas na busca de uma chave, algum objeto cortante que pudesse arrebentar aquele vidro, mas estavam vazias. O sofá pesava muito e não conseguia erguê-lo a fim de jogá-lo contra a porta. Pouco adiantaria arremessá-lo contra a janela, que fiz questão de cercar com grades, trazendo para aquela cidade pequena o hábito de clausura impregnado em mim, fruto das mazelas da cidade em que nasci. O quarto também não tinha mais a cor salmão que havia sido escolhida por Jussara. Estava todo branco. As paredes, a cama, o colchão, os lençóis, a fronha, a mesinha, o interior das gavetas, o sofá... aquele excesso de claridade estava me sufocando, corri e grudei o rosto no vidro fumê, necessitando de alguma escuridão, para poder respirar, me salvar… Tudo começou quando, diante de uma crise de pânico, deixei o desvario do emprego no centro financeiro do país e me mudei para o interior. Não uma cidade completamente perdida no mapa, daquelas em que todos se conhecem, pois convergem a um mesmo ponto — a praça central, com o seu coreto. Não, uma cidade com carros, com pessoas, com ruas, com gente que se conhece e outras tantas que não, com novos ares, novas perspectivas. Ali, por sorte, consegui um emprego de vendedor numa concessionária de veículos. Logo me entrosei com os colegas e saíamos pelas noites, despejando o tempo livre e a cerveja nos bares que ficavam abertos até tarde. Foi num desses lugares que conheci Jussara. Ela chegou no banco de carona de um conversível, discutia calorosamente com o homem ao volante. Até que ele a esbofeteou. Não podia assistir, impassível, àquela cena. Fui tomar satisfações, apesar dos esforços de meus companheiros de que não valia a pena, de que ela não valia a pena. O cara, muitas mãos maiores do que eu, saiu do carro e mandou que eu não me metesse. Mas o sangue italiano, de muitas gerações atrás, não se conteve. Um soco foi suficiente para me deixar no chão. Não mais ele fez. Entrou no carro, e ouvi o cantar de pneus que o levou para longe. Eu é que deveria tê-la protegido e quando vi, ela é quem cuidava de meu nariz arrebentado. Meus amigos tentaram me resgatar do chão, mas preferi ficar nos braços daquela morena de olhos claros. Me deixei carregar para casa, onde, mal passando da porta, terminamos a noite em minha cama. No dia seguinte


eu era o mais feliz dos homens. Meus amigos alertavam-me que os poucos que a conheciam não deixavam que a fama de Jussara tivesse boa cotação. Achei que tinham inveja de mim, pois, ultimamente, sobrava para eles apenas algumas barangas que passavam à frente da loja, deixando cair lenços, carteiras e os decotes, ou as mulheres da Rua das Passadeiras, que aliviavam as aflições masculinas em troca das comissões que eles ganhavam na semana. Hoje vejo que me precipitei, mas não correram quinze dias, quando Jussara se mudou lá para casa, com mala e lingeries. Então, logo os problemas começaram. Diariamente, ao chegar em casa, não a encontrava. Ela voltava tarde da noite e quando eu ameaçava reclamar, alegava que eu a deixava sozinha o dia todo, que não lhe dava dinheiro, que lhe negava atenção. Tentava me defender, dizendo que pouco ganhava na loja, que precisava trabalhar para conseguir esse pouco e que poderíamos sair à noite — se eu a encontrasse em casa. Aquelas discussões eram vãs. E quando nos cansávamos, terminávamos na cama, e tudo mais era esquecido. Muitas vezes, eram madrugadas inteiras em que me via tentando lhe provar que ela era importante para mim. Madrugadas que me deixavam arrasado pela manhã e sem forças de convencê-la de que eu precisava ir trabalhar. Logo começaram os atrasos; muitas vezes, as faltas. Eu, que era um funcionário exemplar, comecei a ser advertido. Já não conversava com meus amigos, pois não aceitava que eles criticassem minha mulher. Já não saía aos bares, e quando o fazia, acompanhado de Jussara, podia sentir os cochichos às nossas costas. Sentindo-me um trapo que tentava se manter em pé, não tinha forças para convencer nenhum cliente. As vendas rarearam e com elas, as comissões. Claro que o dinheiro entregue à Jussara também rareou, o que não podia ser dito das brigas. Quanto menos dinheiro, mais discutíamos. Porém, em algumas vezes, Jussara não mais voltava tarde, simplesmente não voltava. Então, minhas madrugadas não eram na cama com ela, mas vasculhando a cidade à sua procura, até o amanhecer. Sentia-me satisfeito nas noites em que ela retornava e não mais perguntava onde estivera, querendo apenas senti-la entre os meus lençóis. Já não era ela que me pedia provas de amor, era eu que precisava dessas provas. Não sei quem causou o quê: se Jussara me fez perder o emprego ou se perdi Jussara porque fui posto na rua, mas tudo aconteceu no mesmo dia. Uma tarde fui chamado à sala de meu gerente e ele me comunicou que eu estava despedido. Minhas contas já estavam feitas e o pouco que eu tinha a receber, descontadas as faltas,


estava num envelope. Antes de chegar em casa, parei num bar, e acho que deixei boa parte daquele dinheiro em incontáveis copos de cerveja. Entrei em casa já com a lua alta. Era uma das noites na qual eu devia ter sido premiado com a presença de Jussara. Talvez por ser o dia do pagamento, ela me esperava com uma lingerie especial, pronta para me alegrar a madrugada. Mas quando viu meu estado, reclamou, talvez com razão. Brigamos feio. Eu não estava querendo conversa e muito menos transar. Mas Jussara não cedia, nem no desejo, nem nas cobranças. Queria sexo e o resto do dinheiro. Tanto ela me perturbou que, quando percebi, encerrava nosso ciclo da mesma forma que começou: dei-lhe um tapa no rosto, selando a violência do início de nossa história. Ela me devolveu o gesto com um empurrão e bati com a cabeça na estante. Tonteei e não conseguia me levantar, para impedi-la de passar por mim com a mala e com o envelope. Gritei seu nome e depois de muito tempo, quando consegui me colocar de pé, já era tarde. Sabia que ela não voltaria. Tive um acesso de fúria, passei pela cozinha, pela sala, quebrando os móveis e as louças. Acho que só não tive coragem de ir até o quarto. Ali era o nosso refúgio, o meu altar de sacrifícios. Em meio a essa fúria, que misturava meu sangue, meu suor e minha vida, senti que alguém entrava em casa e me tocava no ombro. Depois, nada mais me lembro. Deitado na cama, encarando sobre a minha cabeça aquela rolha, lembrei-me do amigo João, o primeiro com quem me entendi na loja. Em todos esses meses, ele foi o único que não me virou as costas. Apenas deixou de me dizer que Jussara não prestava, mas continuava a me sussurrar que contasse com ele, quando eu viesse a precisar. E agora precisava, mas não tinha como lhe pedir ajuda. Não havia telefones no quarto, eu estava apenas com um pijama branco, sem celular, sem nada. Podia jurar que a mão que me tocara o ombro no dia anterior havia sido a dele. Provável. Ao sair da loja, ele se mostrara preocupado com o meu futuro. Fiquei horas encarando a rolha, imaginando se eu teria alguma forma de chegar até ela, até que vi uma agulha transpassá-la, e do pequeno furo cair um líquido viscoso, transparente, que ia pingando, gota a gota, no centro do quarto. Levantei-me, agitado, e gritei, pois se algo era introduzido naquela garrafa, era porque alguém estava do lado de fora dela. Gritei, gritei, esmurrei o vidro da janela, o vidro da porta, mas não percebia nenhum movimento. O fumê parecia escurecer ainda mais, enquanto o quarto parecia ficar cada


vez mais branco. Esmurrei as paredes, desfiz o colchão, estraçalhei o travesseiro; lembrei de pegar as gavetas e as usei para esmurrar a porta, mas nenhum risco elas conseguiram fazer, e se desfizeram em minhas mãos, como se fossem feitas de papel. Os pingos que mal manchavam o chão começaram a criar uma poça, e eu fui me sentindo mais e mais sufocado, parecia que o ar ali rareava, e as paredes brancas, e a poça se tornando um pequeno rio, e as paredes começaram a se fechar, reduzindo o meu espaço, e as gotas pingando da agulha, e o chão se enchendo de líquido, subindo pelas minhas pernas, e as paredes diminuindo, e o líquido já na minha garganta, e eu submergindo... Abri os olhos e não pude me mexer. As paredes ainda eram brancas. Mas podia vislumbrar um raio de sol que vinha da janela e iluminava meu amigo João, parado ao lado da minha cama, junto de um enfermeiro.

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Princesa

Maria Alzira Brum Lemos Trecho de Novela suvenir

Anoitecia. Passeava pelo mole com outra Artista Residente. Havia ali casais de namorados, anciãos, mães com bebês, gente com pinta de turista e pescadores. A pesca é um esporte relaxado, combinava com a paisagem da qual desfrutávamos. Conversávamos sobre assuntos sem transcendência, quando avistamos uma coisa feita de carne se mexendo no piso de concreto. Era uma morena. Tinha a pele muito lisa e seus olhos ressaltavam. Estava morrendo. Retorcia-se e abria a boca em gestos tão rítmicos quanto inúteis em busca de oxigênio. Ninguém prestou atenção nela além de nós. A Artista perguntou a um dos pescadores para quê queria a morena. Ele respondeu que era para alimentar os gatos e voltou aos seus afazeres. A resposta não nos satisfez totalmente, mas era razoável e seguimos. Passados alguns minutos, voltamos pelo mesmo caminho. A morena continuava agonizando. “Parece uma princesa”, disse a Artista. Esta imagem, tão clara como eloquente, se apropriou de mim. A noite estragou. Um mole abafado e fedido, pescadores inconscientes da cruel matança a que chamam de esporte, uma civilização estúpida construída a custa de sangue e concreto, uma agonia. A agonia de uma princesa. Minha agonia. Tenho a pele muito lisa e meus olhos ressaltam. Retorçome e abro a boca tão rítmica quanto inutilmente em busca de oxigênio. Ninguém presta atenção. Preferem os gatos, as loiras, as respostas razoáveis. A alma das coisas

O ciclo de vida da morena permaneceu como um grande mistério durante muito tempo. Segundo os antiquii, nascia do Inframundo, brotava das vísceras do solo úmido”. Ninguém até hoje conseguiu provar que estavam errados. Descobriram, porém, que a própria vida da morena é um complicado ciclo migratório no qual segue rotas e conexões ainda não descritas. Sabe-se que em seu período de reprodução nada contra as correntes para desovar e que esse movimento é fundamental para a preservação de sua espécie. E também das dos gatos, pescadores e Artistas Residentes.

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O apanhador de crenças, o avatar bengalês e a filha do homem de aço Julio Silveira

Temos o caso de Salinger, que desapareceu até os 91 anos, morreu, e no entanto agora vai aparecer muito mais que se não houvesse desaparecido, porque vão publicar tudo o que encontrarem dele. E seu desejo de desaparecer produziu um efeito contrário — vai aparecer mais. enrique villa-matas

O escritor J. D. Salinger, que faleceu no começo de 2010, foi um homem de poucos livros (quatro publicados em vida) e muitas crenças. Nasceu de um judeu polonês, vendedor de queijos kosher, e de uma católica irlandesa convertida ao judaísmo, fato que J. D. só descobriu por ocasião de seu bar-mitzvah. (Uma mãe convertida ao judaísmo tende a mais dedicada das Yiddish mamas, e foi para sair de sua asa que J. D. entrou para a Academia Militar de Valley Forge, de onde foge, por sua vez, Holden Caulfield em O apanhador no campo de centeio.) À época de “Um dia perfeito para os peixes-banana”, quando surgiu o primeiro membro da família Glass, Salinger era entusiasta do zen budismo, opção que manteve até a publicação de O apanhador…, em 1951. No ano seguinte registrou em seu


diário que sobreveio-lhe “uma alteração momentosa” em sua vida: sua conversão ao hinduísmo Advaita Vedanta de Ramakrishna. As influências védicas na obra do autor transparecem, por exemplo, em “Teddy” (de Nove histórias), onde um menino de 10 anos expressa conceitos védicos e ainda em “Hapworth 16, 1924” (publicado na New Yorker), onde Seymour Glass, com apenas 7 anos, faz uma lista dos autores que gostaria de ler, e trata Vivekananda, o discípulo de Ramakrishna, como “um dos mais excitantes, originais e bem-equipados gigantes deste século”. Há quem culpe o hinduísmo Ramakrishna de Salinger, com seu apelo ao celibato e desligamento dos assuntos terrenos (tais como a família), pela opção do autor de continuar escrevendo — e de não publicar. Porém sua filha Margaret conta (em Dream catcher) da curiosidade do pai por todo tipo de nova corrente espiritual, incluindo a controversa Cientologia, baseada nos texto do escritor de ficção científica L. Ron Hubbard. Sua esposa Claire conta (no mesmo livro) que J. D. afastava-se de casa por semanas a fio, supostamente para terminar um conto ou artigo, mas quando voltava destruía o que havia escrito, para entrar de cabeça em uma nova doutrina ou mania: acupuntura, macrobiótica, jejum, vômitos induzidos (para remover “impurezas”), doses maciças de vitamina C, urinoterapia, glossolalia carismática e banhos de energia orgônica reichiana. O fato de Salinger ter deixado escrito que gostaria de ser cremado pode ser um indicativo de que o hinduísmo, no variado buffet das crenças de Salinger, foi a fé que mais se arraigou. E tudo começou quando lhe chegou às mãos o Evangelho de Sri Ramakrishna, traduzido pelo destinatário da carta aqui reproduzida, o …Swami Nikhilananda (1895-1973), discípulo direto de Sarada Devi, a Sri Maa ou Mãe Sagrada, mulher do líder espiritual e místico bengalês Ramakrishna Paramahamsa, um dos responsáveis pela Renascença Hindu e considerado por seus seguidores um avatar de Deus. Foi encarregado de propagar a mensagem de Ramakrishna no Ocidente, e para tanto fundou em 1933 o Centro Ramakrishna-Vivekananda em Nova York. Seu maior legado são as traduções do Evangelho de Sri Ramakrishna, dos Upanishads e do Bhagavad Gita. Embora tenha amealhado discípulos famosos como Margaret Woodrow Wilson (filha do presidente) e admiradores como o escritor J. D. Salinger, não há registro de que tenha conseguido efetivamente entrar em contato com…


…A filha de Stalin, Svetlana Iosifovna Alliluyeva, nascida em 1926, caçula e única filha mulher do líder soviético. Sua mãe morreu quando Svetlana tinha seis anos e, embora a explicação dada pela nomenklatura fosse peritonite aguda, especula-se que a causa mortis foi suicídio, instigado pelas constantes agressões de Josef Stalin. Casou-se pela primeira vez aos 16 anos, com um cineasta judeu de 40 anos. Enfrentando a oposição do pai, o casamento durou poucos anos — e o marido acabou exilado para as beiradas do Círculo Ártico. Em seguida passou por dois casamentos curtos, com filhos de figuras proeminentes do Partido. Após a morte do pai, estudou História Americana e trabalhou como intérprete. Apaixonou-se pelo comunista indiano Brasesh Singh, exilado em Moscou, mas o casamento não foi autorizado pelo Partido. Quando Singh morreu, consentiram que Svetlana fosse à Índia para entregar as cinzas à família de Singh, para que as depositassem no rio Ganges. Após passar meses morando com a família de Singh e absorvendo os costumes locais, Svetlana foi à embaixada americana de Nova Delhi solicitar asilo político, indo morar em Nova York (teria ainda mais um casamento infeliz, com um protegé de Frank Lloyd Wright, porque a viúva do arquiteto convenceuse de que ela era a reencarnação de sua filha morta, também chamada Svetlana, mas isso já é outra história). A deserção da filha de Stalin em plena Guerra Fria foi alvo de imensa publicidade, atraindo o interesse do Swami, que escreveu a Salinger, que por sua vez deixou esse documento que, como explicou Villa-Matas na epígrafe, vai ser publicado exatamente porque o autor se recusou a fazê-lo.


Fogo-fato

Henrique Amud

Essa é a minha história, não tem nada de mais. Começa de dia e termina de noite. Eu trabalho com cinema, acendo cigarros, todos os cigarros. Do diretor, das atrizes, do contrarregra. Eu acendo cigarros de nove da manhã até as três da manhã no dia seguinte. Isso pode ser bastante cansativo. E eu nem fumo. Minha mulher, eu a chamo assim, não faz nada o dia inteiro. Seu trabalho é ser minha mulher, o que ela faz muito mal. Meu motorista é o Joelson, mas de vez em quando é o Celso. Eles dirigem o 015, não tem ar-condicionado, chego todo suado no trabalho. Um dia, o fluído do meu isqueiro acabou, o do outro também e o do outro também. Na verdade, não acabou, falhou, mas pro meu chefe, quem falhou fui eu. Nem segurodesemprego eu tive. Em casa, os três funcionaram. Teria que procurar outro emprego. Minha mulher continuava deitada. O dia não terminava mais de noite, terminava comigo acendendo isqueiros que nunca mais chegariam perto de cigarros. Não era o sol, era a lua que me irritava, não tinha fumaça. Fui ser chapeiro, tinha fumaça, mas fedia. Fui trabalhar em tabacaria, mas não podia acender nada. Frustrante. Outro dia a mulher virou para mim com uma xícara de café, fiquei emocionado, ela fez algo. E cheirava bem. E tinha fumaça, mas durava pouco. Comecei a queimar sacos de café, o cheiro não era tão bom quanto eu imaginava, mas eu gostei. Comecei a queimar papel higiênico, jornal, cortinas e roupas. Hoje eu queimo casas abandonadas, fumaça suficiente pra me alimentar.

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Numa cidade estrangeira

Cristiane Costa

Nós já nos conhecemos? Tenho certeza que sim. Você até já me beijou. Então é você mesma. Boa memória. Inesquecível, diria. O beijo? Não. Ter 18 anos. Calma aí, nós ainda somos jovens. Somos? Você não mudou nada. Tanto que te reconheci assim te vi, numa hora inesperada, num lugar impensável. Sentada aqui na calçada deste café, no meio da tarde, no meio da semana, nesta cidade perdida no meio de lugar nenhum. Eu já deixei a fase do ainda sou jovem para entrar na começo a ficar velha. Isso te incomoda? Você não sabe como eu esperei por este momento. A hora em que as paixões estão saciadas, as angústias resolvidas, os filhos crescidos, os erros finalmente enterrados no passado, irremediáveis. Você chegou lá, no tal momento de maturidade. Qual é o gosto? De quem comeu e não gostou. Acho que, no caminho, perdi alguma coisa. O quê? Não sei dizer em palavras.


Eu também. O quê? Perdi alguma coisa que não sei o que é. Bem-vindo ao time. Que time? Seu pudesse dar um nome já seria quase uma solução, não uma questão. O que você faz aqui? Por que você não se senta? Está com pressa? Não. Pressa eu tinha, não tenho mais. Sabe, você continua tão bonita quanto antes. Só que com dez quilos a mais. Dez, eu disse? Eu devia ter uns 48 quilos naquela época, não mais. Hoje... deixa para lá. Você era magra até demais. E hoje estou gorda até demais. Não exagere. Não está nada gorda. “Nada” é exagero seu. Você continua morando na mesma cidade? Hum-hum. E você? Mora aqui? Onde mais? Não imaginava que fosse tão fácil te encontrar. Fácil? A gente não se vê há mais de 20 anos. Eu nunca mais voltei aqui. Minto. Muito tempo depois dei uma passada rápida, no meio das férias, a caminho de outra cidade. Ainda tinha a doce ilusão — tudo bem, sabia que era pura ilusão — de te encontrar na rua, por acaso, à toa. Por que você não me telefonou? Joguei fora seu telefone. Bem-feito. Foi melhor assim. Você também nunca me ligou. Para quê? Se mal começou já tinha acabado. Pelo menos nunca risquei seu telefone nem joguei fora seus contatos. Quer ver? Não acredito que você ainda tenha a mesma agenda de telefone! Não, está no celular. Mas nunca tive coragem de tirar seu nome da minha lista. Sim, vejo aqui, entre Carmens, Claudias, Cristinas. Cremilda? É minha empregada.


Se você colocasse um 2 na frente, ainda conseguiria me achar. É seu telefone? Dos meus pais. O que eu diria a eles? Oi, sou eu, lembram de mim? Eles me diriam: ah, ela mudou, se casou, teve dois filhos. Um. Não acho que gostariam de me dar o telefone de sua casa. Melhor afastar as tentações. Vai que seu marido atende. Não tenho mais este entrave. E, mesmo que tivesse, meus amigos ligam para minha casa sem problemas. Não sou nem nunca fui seu amigo. — — — — —

Pode dar a latinha? Hum? A latinha usada. Ah, sim, toma, moço. Deus te abençoe.

Adoro o sotaque de vocês. E eu ox essex de vocêx. Estamos ficando sem assunto. Por que eu nunca te esqueci? Por que eu beijo bem? Convencido! Você me cortou. Como assim? Eu ia completar, dizendo que a recíproca é verdadeira. Também, nunca passamos disso. E precisava? Para você, sim. Você tinha a mão mais boba que já vi em toda a minha vida. Eu tinha 18 anos! E agora? Agora só com Viagra. Sério?


Estou brincando. Fala a verdade. Mais ou menos. Digamos que estou mais calmo, menos afoito, um pouco mais preguiçoso. Até hoje você é meu beijo número 1. O que isso quer dizer? Número 1. Categoria beijo. Campeão. Uau! Ainda me lembro: você passou o dedo no vinho e molhou seus lábios. E depois os meus. E me beijou com o gosto doce e amargo de vinho tinto. Foi a primeira vez. O quê? Que usei esse truque. Faz de conta que acredito. Garçom, uma taça de vinho. Qualquer um, o melhor que tiver na casa. Para com isso. Não, eu tenho que testar a eficácia desse golpe. Comigo não vale. Por quê? Por que já conheço seus truques. E se não for um truque? E se nunca mais eu tiver feito isso na vida? Duvido. Prova. O quê? O vinho.

59 numa cidade estrangeira

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O carro

Marcelo Barbão

Era muito difícil saber há quanto tempo eu vivia ali, naquele carro. Eram anos, e dava para perceber pelas minhas pernas já quase sem movimento. Eu passava dias e semanas e meses sentado no carro. Dirigindo pela cidade, sem destino. Não, eu não sou taxista, tampouco trabalho com entregas ou algo do estilo. Sou um nada que dirige um carro velho pelas ruas da cidade. A loira magrinha já estava comigo há muito tempo. Sentada aí ao lado, nunca escutei ela falar mais do que três ou quatro palavras. Sempre as mesmas: fome, banheiro e algumas outras. Eu a encontrei um dia na avenida Belgrano. Fez sinal para mim, apesar de meu carro não ser um táxi, como já disse, e parei. Abriu a porta, sentou no banco do passageiro e continuei dirigindo. Parávamos em algum bar para usar o banheiro e era um dos raros momentos em que saíamos do carro. Uma vez ou outra, pegávamos uma estrada e, sem nos afastarmos muito da cidade, parávamos num posto para tomar banho, quando fazia muito calor. Sempre comíamos no carro. A gente gostava dos drive-thru, eram perfeitos. Conhecíamos todas as ruas mais importantes e menos importantes da cidade. À noite estacionávamos nas ruas. Além de dormir por algum tempo, transávamos no banco de trás. O melhor era estacionar perto dos parques, porque podíamos gritar quanto quiséssemos. Depois de um tempo, minhas pernas começaram a ficar flácidas, minha barriga foi crescendo e minha vontade envelheceu. Mas ela continuava


magrinha e jovem, algo que eu não conseguia compreender, mas também não dava muita bola. Eu nem me dava ao trabalho de pular para o banco de trás. Parava o carro e fechava os olhos. Nada mais. Ao contrário, ela ainda tinha muito tesão e algumas noites fui acordado pelo seu gozo solitário. Não me incomodava, eu só ficava esperando o fim para voltar a dormir. Nunca se queixou ou disse algo. Os dias passavam vagarosos e calorentos. O tráfego da cidade ia piorando com o avanço dos anos. Agora ficávamos parados por horas em congestionamentos com a fumaça de ônibus e táxis entrando pelas janelas. Continuávamos sentados, olhando as lojas e as pessoas nas ruas sempre apressadas. Pelo menos nos primeiros tempos nos olhávamos. Agora, cada um olhava para seu lado e pronto. Eu tentei lembrar os dias em que vivia sozinho no carro, mas faz tanto tempo que ela vive aí ao meu lado que os dias de solidão ficaram enterrados na memória. Coisa estranha essa memória, não consegui me lembrar de nenhum momento antes da loira. Era como se estivéssemos juntos dentro do carro desde sempre. Tive alguns dias de angústia por causa disso, mas depois me acostumei. Como a tudo, para falar a verdade. Os banheiros sujos, as pernas flácidas, o pinto atrofiado e outras coisas. Até o dia que, ao passar de novo pela avenida Belgrano, a loira magrinha disse: — Pare aqui! Eu parei, surpreendido. Desceu do carro e andou pela avenida em direção ao centro. Fez sinal para um carro. O cara parou e a loira entrou. Passou por mim sem olhar. Depois de uns vinte minutos em que cochilei sem perceber, voltei a dirigir pela cidade. Comi um lanche com uma Coca e fui ao banheiro num bar velho em La Plata. Faz tanto tempo que estou neste carro sozinho que já nem me lembro de como era antes de viver aqui. E sempre estive sozinho.

61 marcelo barbão

O carro ficções19


A festa da menina morta

Graziella Albuquerque

Não era acostumada a encarar os sentimentos e agora tinha que escrever de maneira crua. Tinha, não. Queria. Era essa a proposta. Não queria repetir as cenas prontas cheia de descrição que levam ao nada. Não estava a fim de escrever sobre comprar pão num dia chuvoso. Se estivesse escreveria: O dia era cinza, um cinza amargo. Mesmo assim colocou a jaqueta antiga e puída que ganhara do avô. A jaqueta que lhe trazia alguma alegria e era preciso ânimo para descer as escadas e enfrentar a rua. O elevador antigo fazia barulhos estranhos e sempre ameaçava parar de repente. Claustrofóbico, ele evitava o risco. Preferia encarar a solidão das escadas a arriscar uma possível companhia naquele quadrado velho que carinhosamente apelidara de bate-evolta. Enfim, preferia as escadas. Descia cada degrau imaginando as turras do dia: o chefe, a náusea, o trânsito. Mas, hoje era domingo. Vestia a jaqueta antiga dada pelo avô e já imaginava o cheiro do pão consolando suas dores. O milagroso cheiro do pão. Era domingo. Talvez, mesmo com a chuva, isso anunciasse alguma alegria.


Pronto, um parágrafo inteiro para comprar o pão. Estava fugindo. Isto não a levaria a nada. Onde estava o enfrentamento? A trama? Os personagens em conflito? Anos de redação e não matara ninguém no papel. O jornal era mesmo uma enganação. De nada lhe servira. Objetividade. Imparcialidade. Torpe a técnica que leva a firulas e a dissertações. Jamais escreveria como um russo, um daqueles romancistas. Jamais poderia escrever como um deles sem uma pena, um tinteiro e um pouco de sangue. Eles eram os senhores das tramas cheias de profundidade. Já ela não sabia fazer isso. Só sabia fazer o lide: Quem? Como? Onde? Por quê? Twittava. Frases rápidas cheias de sentido pretensamente universal. Escrevia e apagava. Ggftsssssdsdoj/[ççç[d´kiyu897j~çkopppo. Jamais a tecnologia lhe daria a chance de escrever tão definitivamente como quem escrevia no papel. Não esse papel bobo e reciclado. Mas o papel que não permite cortar as frases e refazer capítulos inteiros. Morreria de inanição sem o tanino para tal aventura. Era melhor conformar-se e escrever pequenos diálogos. Isso mesmo. Pequenos diálogos próprios da vida moderna: — Ana? — Oi, amor? [Cena 1: ela se volta para ele na mesa de jantar.] — Você conseguiu ir ao banco? [Ele pergunta molhando o pão no fundo do prato de sopa.] — Não, saí tarde do trabalho. Depois fui ao médico. — Hum… Mas, tá tudo bem? [Ele pergunta sem muito interesse; o foco da câmera agora é o vaso vermelho estilo oriental que está no console atrás da mesa.] — Tá. [Ela responde baixando-se para apanhar a faca que caiu no chão. Ela pensa na dor do gozo e morde o lábio.] Ele engole outro pedaço de pão e vê a mulher mordendo lábio. [A câmera com foco nele — ele pensa em como ela era gostosa quando se conheceram e pensa se vai conseguir pagar a conta pela internet.] Ela sente a boca salivar e fala: — Encontrei a Dona Lúcia no consultório. Ela se lembrou do seu pai, daquele cadilaque antigo… [Ela fala lembrando do sogro e do médico que sempre a bolina durante a consulta.] — Hum… E o que mais? [Ele fala enquanto dá um gole na água — foco no copo d’água.] — E mais nada. Aquela conversa de sempre. [Ela pensa em como é bom


fingir que não sabe que o médico a bolina durante o exame. Ela pensa no sogro e sente remorso — foco no rosto dela. Ela olha pro vaso vermelho estilo oriental que a sogra lhe deu e que ela acha horroroso — foco no vaso. Ela olha pro vaso e sente alívio no lugar de remorso.] — Nunca gostei daquela mulher. Vivia fofocando quando era nossa vizinha. [Ele fala lembrando da cara de enjoo da ex-vizinha.] — Credo, Antônio! [Ela fala fingindo compaixão e pensando nos dedos longos do médico.] — Credo, nada. Quando a gente namorava, ela ficava a espreita para ter o que falar depois [Ele fala lembrando das vezes em que namorava a mulher no antigo cadilaque.] — Você acha? [Ela pergunta lembrando das vezes em que namorava o marido no antigo cadilaque — de repente ela sentiu ternura pelo marido.] — Acho, não. Tenho certeza. [Ele falou enxugando a marca da sopa no bigode.] — Por quê? Na época ela falou alguma coisa? [Ela perguntou mirando o marido enxugando o bigode e pensando que aquilo era nojento.] — Lembra aquela vez em que a gente vinha do jogo e você saiu do carro toda molhada vestindo minha camisa? Pois então, na época ela falou horrores. [Ele falou lembrando do jogo – São Paulo 3 x Palmeiras 1.] Uma lauda de diálogo e mais uma vez ela ficou perdida. Quis mostrar o desencontro e ficou sem rastro. Afinal, aquilo era um conto? Mas, e as referências de câmera? Talvez desse um bom um roteiro. Talvez não desse nada. No máximo uma conversa que lembrava as pornochanchadas dos anos 80. O Nuno Leal Maia poderia fazer o marido e a Nicole Puzzi seria a esposa. Enfim, já não era tão moderno assim. Abordar o descompasso entre a fala e o pensamento parecia tão antigo quanto reinventar a roda. E a questão de gênero? Tão simples e batida que tinha mofo. Era isso: tudo estava embolorado. Tudo era verde-musgo da cor que vestia o quintal da sua infância. Aquele era um tempo bom porque quando era menina não queria analisar as coisas, não queria escrever. Seu sonho era ser médica. Uma maleta, a imaginação e só. Agora imaginar era sentir dor. Era expor as entranhas com nome de outros, mas com sentimentos tão seus. Poderia até criar personagens inominados. Isso mesmo! Seriam como os cegos de Saramago. Poderiam ser... Pena que não demoraria muito para ela perceber que isso não adiantava.


Não lhe era de grande serventia colocar o verbo no subjuntivo. Ela simplesmente não “estaria”, porque ao fazê-lo já estava escamoteando sua ideia de ser, seu desejo de enfrentamento. Pensou, então, em falar das coisas ásperas. Aliás, a mais dura de todas as ações: a morte. A morte, que escrita assim não é verbo e não é ação, mas é o próprio substantivo intransponível. Ninguém até hoje conseguiu enganá-lo. A mulher quis cobrir-lhe o rosto. Quis esconder os olhos esbranquiçados da criança morta. Era uma menina. Não deveria ter mais de 9 anos. Tão pouco e já sem vida. Estava ali na calçada. Com o corpo ainda quente era de se imaginar que morrera ali, ainda há pouco. Num eclipse ao avesso, talvez tivesse partido enquanto o dia nascia. Agora era só o corpo estendido na esquina do bar. A mulher ia lavar a calçada e servir os primeiros pingados quando viu a menina morta. Ergueu o portão de ferro e lá estava o susto e o corpo. Ao lado só um colchão rasgado e alguns molambos. Nem mais um mendigo dos tantos que costumavam dormir na porta do bar. Nenhum dos que se abrigavam da chuva e lhe pediam pão e cachaça. Nenhum cachimbo de crack. Nenhum brinquedo velho. Só a menina e os olhos cerrados. Era isso. Uma frase simples que dizia tudo: a menina e os olhos. Mas, de alguma maneira estava enganada. Não era a morte, era o abandono. Rodou, rodou e caiu noutro erro. Não importava mais o personagem. Não tinha mais as palavras. Ela só não podia abandonar a si própria.

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A ceia

Nilton Resende

Mordo o biscoito que levei vagaroso à boca, e ele quebrando-se é como ossos que se esmagam. Trituro-o e imagino desfazer-se a rede desenhada em sua superfície, lembrando-me do jogo que meu avô me ensinou e para o qual me convidou em tantas tardes. Biscoito, rede, ossos triturados. Mordo e sinto mastigar o velho, as migalhas saindo pelos cantos como se uns dedos tentassem escapar. Eu em cima da mesa me masturbava em frente à pintura da cigana seminua. Ela, deitada num divã, tinha uma das mãos acariciando o bico de um dos seios, enquanto a outra se enfurnava sob o pano púrpura, eu imaginando-a mexendo nos pelos até se umedecer. Eu me extasiava. Eu me masturbava e gemia, quando ele chegou à sala e gritou comigo, mandando-me descer. Retesei-me. E enquanto com uma das mãos segurava o pequeno pênis endurecido, com a outra fiz um gesto de dança no ar, baixando-a lento. Voltei-me para ele, numa continuação da dança, o olhar duro. Fiz um bico provocador, abotoando a boca. Lancei-lhe um beijo de deboche. E bruscamente puxei para trás a mão que segurava o pênis, exibindo-o duro e fremente. Ele me pegou pelo braço, fazendo-me descer da mesa. Apertou-me, empurrando-me para baixo, e disse que contaria a meus pais quando eles voltassem do cinema. Dizendo ainda que daquela vez eles iam saber a peste que tinham dentro de casa. Se você falar, vai se arrepender, eu disse entredentes e afastei-me de suas mãos, pegando o calção sobre a mesa. Levantei-me, indo rebolando ao banheiro, um sorriso estampado na cara e em todo o corpo que agora


gargalhava do velho que tremia. Pude ver que ele estava muito nervoso, quando passei pelo espelho e parei, fixando nele o olhar. Estático, apenas olhava-me com uma expressão que ainda hoje não sei precisar se era de ódio ou dó. Fixei-o e, dando um grito zombeteiro, corri para o banheiro. Permaneci lá dentro, em silêncio e na semiescuridão. Demoraram-se alguns minutos, e eu me vestia, quando ele veio à porta e falou, baixo: Hoje eu conto tudo. Nesse momento, tive medo. Por instantes, fiquei confuso. Mas logo me acalmei, acabando de me vestir em meio à minha brilhante ideia: encostei a face na parede e, com força, esfreguei-a em um movimento vertical até me ferir. Quando a pele começou a arder, prensei os dentes e esfreguei o rosto com ainda mais força. Por fim, joguei a testa contra o vaso. Sorri, quando senti o pequeno caroço se pronunciar. Limpei a parede avermelhada de um pouco do sangue dos arranhões, saí do banheiro, vesti-me e passei cuidadoso pelo quarto do velho, para ver se ele dormia. Voltei à cozinha, apaguei a luz e fui para a minha cama. Não sem antes me olhar no espelho, orgulhoso. Orgulhava-me; e um sorriso imperscrutável esboçou-se. Idêntico ao de quando joguei o rato na cama do velho, eu me contendo para não rir quando — eu já havia voltado para meu quarto — ele gritou, pedindo socorro porque alguma coisa o tinha mordido. Meu pai e minha mãe correram para ver o que havia acontecido, e precisaram abraçar o velho, quando o viram sentado na cama, os olhos esbugalhados olhando descrentes para a massa vermelha esmagada nas mãos. Eu apareci na porta e falei, quase inocente: Vô... O que foi, vô? Mas ele não respondeu; sentado nu sobre a cama, meu pai tentando fazê-lo parar de tremer, minha mãe cobrindo-o com um lençol, as pernas dele magras e negras, quase branco apenas o tufo de pelos que pude vislumbrar, um acinzentado emoldurando o sexo murcho. No outro dia, à mesa do café, ele segurou minha mão — minha mãe e meu pai estavam na cozinha —, segurou minha mão, apertando, e perguntou incisivo: Foi você? Mãe!, eu gritei. Assim que ela apareceu, ele me soltou. Foi quando me senti poderoso. O que foi?, ela perguntou, aproximando-se. E eu respondi, doce: Mãe, frita um ovo pra mim? Ela virou-se. E eu, olhando nos olhos dele, quis sorrir. Não sei o que se passou na cabeça dele nos outros dias, mas pareceume ter esquecido o rato. E também o escorregão que tinha levado uns dias antes porque eu havia passado cera na entrada do quarto, fazendo


ele tombar e bater com a cabeça no chão. E o rapé. Que eu tinha misturado com um pouco de pimenta-do-reino moída. Ele estava mais calmo. E ficávamos brincando à tarde. Ele desenhava as listras no papel, e colocávamos os caroços de feijão nos pontos até vermos quem conseguia trancafiar o outro. Mas na noite em que eu subi à mesa, percebi: ele estava decidido a falar. Fui à cama. Deitei-me e esperei meus pais chegarem e irem dormir, mas não preguei o olho. Pela manhã, ouvi os cochichos na cozinha. Ele não presta, escutei meu avô dizer. Respeite o meu filho, disse meu pai. Respeite o meu filho, ou você vai pra fora desta casa. Mas eu sou seu pai, o velho falou, a voz enrouquecida. E ele respondeu: Mas ele é meu filho. E nesse instante minha mãe gritou que não era possível ser verdade aquilo, eu era apenas uma criança! Chamem ele!, meu avô disse. Chamem, disse novamente, baixando a voz. Perguntem na minha frente se o que eu disse é mentira. Perguntem! Não é possível que ele vá mentir. Foi quando chorei. Dei um primeiro gemido bastante alto e depois baixei o som, tremendo o corpo sobre a cama, eu inteiro enrodilhado na coberta. Enrodilhado e soluçando, uns acessos de tosse ainda mais fortes quando meu pai chegou ao quarto. Entrou e retirou ríspido o travesseiro de sobre minha cabeça. Até hoje não esqueço sua cara de terror quando olhou para mim. Colocou-me nos braços, eu ainda chorando num exagero que aumentou ainda mais quando passamos pelo espelho e pude ver o rosto inchado, a testa arroxeada e a face cheia de arranhões. Ele me bateu!, eu gritei. Ele me empurrou, pai, e esfregou a minha cara no chão. Gritei ainda mais alto quando vi meu avô estarrecido, precisando apoiar uma das mãos na cadeira que estava atrás dele. Ele me bateu, pai. Tá doendo, pai. Ai, ai, pai, dói, dói. Horas depois, saí do hospital. No meio da confusão, minha mãe puxou meu pai pelo braço, e me levaram para fazer uns curativos. Saímos, e pude ver meu avô olhando para mim, numa expressão embrutecida, movendo a cabeça para os lados. Parece até que vi uma lágrima descer pelo seu rosto encovado. Após aquela manhã, meus pais não falaram mais com meu avô, que quase não saía do quarto, a não ser para ir ao banheiro. Ou para cheirar seu rapé, sentado no quintal. Passou-se uma semana e ouvi meus pais conversando sobre ele. Nesse mesmo dia, uma quinta-feira, convidei meu avô para jogar. Minha tia, que agora ficava em casa enquanto meus pais iam trabalhar, disse a ele: Tá vendo, pai...? O menino quer jogar. Tá vendo? Ele mexeu a cabeça. Foi ao quarto, pegou um pedaço de papelão


e levou-o à cozinha, com lápis e régua na outra mão. Sentou-se e fixou na mesa o rosto assombrado. Levantou-o, olhando-me enquanto eu me sentava, acompanhando meus gestos, acompanhando meu olhar sobre o pote de feijões que eu depositava sobre a mesa, ao lado do tabuleiro que eu já havia riscado. Olhei para ele, meneando a cabeça para que começasse a partida. Ele colocou no chão o papelão, o lápis e a régua. Tocou com as pontas dos dedos o tabuleiro que eu havia desenhado, forçandoas nas inscrições. Levou ao pote a mão em veias, retirou alguns feijões, colocou-os na outra mão e depositou um deles sobre a madeira entalhada do tabuleiro. Começamos o jogo de um tentar prender o outro. Percebi que ele não se empenhava em ganhar. Mas não dei valor a isso; com alguns lances, pude tê-lo entre meus feijões, meus grãos cercando-o. Coloquei o último deles com um gesto todo solene. E disse, baixinho: Ganhei. Quando vi seu olhar inexpressivo, meus olhos quiseram chorar. Eu digo: quase chorei. No entanto, contive-me. E tocando o último feijão que havia colocado, disse mais uma vez, agora me aproximando de seu ouvido: Ganhei. Foi quando meus pais chegaram em casa e se aproximaram da cozinha com um representante do asilo para onde iam levar o velho — eu tinha ouvido a conversa pela manhã. E outra vez articulei a palavra para ele, agora sem som, apenas movendo os lábios, afastando-me dele ao mesmo tempo em que abria os olhos como se para fazê-lo compreender melhor o que eu lhe dizia: Ganhei. E à frente de todos, lento e agora deixando os olhos se encharcarem, à frente de todos eu enlacei meu avô pelo pescoço, aproximei meu rosto lentamente e, fechando os olhos para que uma lágrima resvalasse, com aparente profundo amor beijei-lhe a rendida face.

69 nilton resende

A ceia ficções19



Eu espero viver pouco. Se eu conseguir viver até 50 anos ficarei contente. Porque viver muito é para quem não tem problemas. Quando a pessoa tem muito problema é até melhor morrer cedo porque se livra um pouco dos traumas e angústias. Sou uma pessoa muito traumatizada. Mas feliz! Eu sou feliz. Posso dizer que sou muito feliz, mais feliz que a grande maioria das pessoas. Eu sou feliz. Eu não estou realizado porque ainda estou no meu primeiro livro. Estou na batalha para publicar um livro há muito tempo, desde os 27 anos. Rodrigo de Souza Leão morreu aos 43 anos, em julho de 2009, menos de um ano após ter publicado Todos os cachorros são azuis, seu primeiro romance, pela editora 7Letras, e ser indicado ao Prêmio Portugal Telecom. O livro trata da trajetória de um homem em um hospício, com evidentes traços autobiográficos. De fato, o autor foi encontrado morto no quarto de uma clínica psiquiátrica, onde se internara ao ser acometido de graves surtos delirantes. Eu falaria que eu sou esquizofrênico. Isso quer dizer que sou uma pessoa que necessita de certos cuidados: preciso tomar remédios específicos, viver uma vida diferente das outras pessoas e conseguir viver dentro das minhas “noias”. Tenho que saber que a minha paranoia é paranoia e aprender a conviver com ela. A palavra-chave é convivência. É a convivência com a diferença. O meu ser é diferente dos outros. O esquizofrênico tem que ter uma sensibilidade para entender que é diferente. Foi na palavra escrita — fascínio iniciado em uma aula com Suzana Vargas na Estação das Letras — que Rodrigo encontrou mais do que formas de se expressar sua sensibilidade ou de lidar com as diferenças de sua condição mental.


Escrever foi o que me sobrou. De tudo que tive, foi o que me restou a fazer. […] A leitura me trouxe vida. Os depoimentos de Rodrigo são reproduzidos da entrevista concedida, por ocasião do lançamento de Todos os cachorros são azuis, a Ramon Mello, do site Portal Literal. Após a entrevista, Rodrigo e Ramon mantiveram diálogo constante e o poeta de Vinis mofados conseguiu autorização para adaptar Todos os cachorros… para o teatro. Com o falecimento do escritor, Ramon Mello foi convidado pela família a organizar a obra de Rodrigo de Souza Leão, no que teve a ajuda fundamental de amigos do autor, como Leonardo Gandolfi e Silvana Guimarães. Eu torço para que exista algo além. Gostaria de ver o que as pessoas achariam de mim quando eu estivesse morto. […] A reação das pessoas. Para saber se meu melhor amigo iria chorar, se alguma namorada ia lembrar de mim, se meu livro ia vender depois de morto… Me roubaram uns dias contados deve ser publicado no mês em que se completa um ano de sua morte. Estão no prelo ainda O esquizoide e Carbono pautado. O autor de 42 anos que dizia estar feliz, mas ainda não realizado “porque ainda estou no meu primeiro livro”, foi convidado por Ramon a dar o habitual conselho aos jovens escritores: Viva ao máximo! O que importa são os momentos. Se o livro for rejeitado, não desista! Se você gosta de escrever, então escreva para você mesmo. Eu só fui publicado quando escrevi para mim mesmo.

foto: Tomás Rangel/Manufatura.


Me roubaram uns dias contados (trechos) Rodrigo de Souza Leão Antes da crise: ruas em festa e bandeiras e creme de chantili, e um anúncio de uma mulher bonita rebolando as ancas dentro de um jeans apertado, e o Brasil vivendo a reconstrução da democracia, e alguns barcos voando, e pouca prosa de vida linear, e festas, e outro rock tocando alto, e a maconha, e primeiros passos rumo ao destino, e Hades longe, e golfinhos voando sem asas, e Disney, e Rio de Janeiro com sol e governos corruptos, e ele nem aí, e ele começando a vida e trabalhando e namorando meninas bonitas e cantando em uma banda, e felicidade extrema, e vacas gordas, e alguma vereda que era sempre florida, e alguma canção com três acordes, e acordar de manhã, foder e ir trabalhar, e beleza juvenil, e você sabe muito bem como é ser jovem, e riso eterno, e não engolir nenhuma baleia viva, e fazendo curso de jornalismo, e lendo Walter Benjamin, e lendo Nietzsche, e filosofia, e Cristina, e o primeiro beijo, e Leblon, e casa pequena e almoços na casa de seu Mário, e você sabe também o que é uma vida plena, e papai e mamãe, e vovô e vovó, e por parte de mãe e por parte de pai, e Adélia e Anália, e jogos de amor, e War e Detetive e amigo oculto, e flores para ela, e você não sabe, mas pode imaginar como tudo era bom, e cores e perfume e compreensão, e amor ao próximo, e ela nem eu (o seu espectro), e Corcovado, e praia de Ipanema, e corrida e triatlo e polo aquático, e Flamengo e Maracanã cheio de bandeiras rubro-negras, e ela não sabia como Rodrigo era bom de sexo, e vida, e vida, e vida, e vida, e fita Basf, e rádio Fluminense, e Circo Voador, e disco de vinil, e psicanálise, e tentando foder com a terapeuta, e o sol e dias de sábado no Estação Botafogo e Fellini, e muitas outras coisas infinitas e infindáveis que permanecem sendo as melhores coisas da vida porque o passado é também uma zona solar quando bom, mesmo que agora seja depois. Depois da crise: cigarro e internação e bomba na cabeça, e internet e email, e Piportil e tremendo e babando e Haldol, e uma vida ceifada aos vinte três anos, e muitos anos catatônico e sem falar e sem dizer nada, e nada, e nada de amor, e internação, e Seu Cid, e pintura e literatura, e Melopeia, e pouca compreensão do estado de coisa e confusão mental, e loucura, e Alfonso, e poesia, e você sabe que foi aposentado aos vinte três anos quando a família esperava muito dele, e Carbono Pautado, e Síndrome, e outros livros, e não se espera mais nada dele, e viver com o problema e conviver, e viver com ela e comigo e com você ainda não, e jornalismo na internet, e telefone, e música eletrônica e DJ Krâneo, e cachorro azul perdido em sua casa, e An-


tonio e Bruno e Sylvia e Marina e Dulce, e toda a família dando força, e muita tristeza e dores, e dor dentro da cabeça e dor dentro da alma, e amigos que continuaram amigos, e amigos novos que se foram e amigos novos que fez, e rancor e ódio e inveja e muito amor, e você entende que para ele nunca faltou amor, e alguma namorada, e infidelidade, e paixões platônicas, e tentativas de publicação de livros e cartas de recusa, e muito mais que está acontecendo agora neste instante. Assim foi o futuro e o passado e o presente. … Escrevo para esquecer. Para tirar você da minha mente. Exorcizá-la. Excomungá-la. Extraí-la. Já passei por muitos remédios. Remédios passaram por mim. Você não é um remédio. Amplictil. Fenergam. Haldol. Leponex. Bezetacil. Valium. Lorax. Sou uma farmácia ambulante. Tendo a tratar tudo como se fosse um remédio. Procuro a cura. Não a encontro. Tenho remédio para tudo. Gostaria de um remédio que me fizesse esquecer. Esquecer da bomba. De você. Dela. De Rodrigo. De tudo que me faz mal. Um remédio que me mostrasse o bem do mal que me foi feito. Todo o bem que vem do mal. Fui humilhado. Espezinhado. Maltratado por todos. Camisa de força. A vida é uma camisa de força. Não deixa a gente se mover. Crescer. Engordar. Parir. Ter um filho. Queria tanto ter um filho. Um filho que me continuasse. Mas eu não continuei meu pai. Não lhe dei uma alegria. Não fui médico como ele. Não sou amante de romances policiais. Não sei mais escrever uma história com história. Botar alguém neste mundo que me fez sofrer tanto ou não deixar para ninguém o legado de minha tragédia? O que está por trás do que eu digo? As entrelinhas são tão ferozes. Prefiro dizer tudo. Não dizer tudo. Dizer o máximo. O mínimo múltiplo comum que se multiplique em várias vozes. As vozes que eu escuto em meio ao silêncio das britadeiras. Aquela orquestra sinfônica. A sinfonia dos macacos. Das tartarugas. Das iguanas. Mudei de cor feito um camaleão. Estou vermelho. Fui à praia. Peguei sol. Vi você andando em outra. Todas que passavam eram você. E me olhavam. Não me tocavam. Como se eu fosse uma aberração da natureza. Eu sou uma aberração. Um animal enjaulado. Um homem elefante. Uma mulher gorila. Um homem que engole espadas. Endoscopia. Uma mulher barbada. Um circo. Um zoológico. Por que esta palavra zôo tem um sufixo lógico? Não é nada lógico ver os animais presos em cubículos. Você me prende todo dia aqui. Pode-se viver sem isso?

74 rodrigo de souza leão

Me roubaram uns dias contados ficções19



Braulio Tavares é paraibano de

Livia Garcia-Roza, carioca, publicou

Campina Grande, nascido em 1950,

Cine Odeon (2001), Era outra vez

e mora no Rio. Publicou A máquina

(2010), entre outros.

voadora (1994), Mundo fantasmo (1996), O homem artificial (1999),

Aleks Costa é cearense de Itapipoca

entre outros.

(1974) e mora em São Paulo.

mundofantasmo.blogspot.com

retalhodeprosa.blogspot.com

Cassiano Viana nasceu em São Luís,

Alessandro Garcia nasceu em

Maranhão, em 1974, e mora no Rio.

Porto Alegre em 1979. Participou de

Contribuiu para revistas como Bravo

antologias como Ficção de polpa

e Cult.

(2008-9). suburbana.blogspot.com

Sergio Werner, fotógrafo, nasceu em

Ondjaki é angolano de Luanda

1971, e mora em Paris.

(1977) e mora a maior parte do ano no Rio. Escreveu, entre outros, Bom

Felipe Pena nasceu (em 1971) e

dia, camaradas (2001), Quantas

mora no Rio de Janeiro. Publicou

madrugadas tem a noite (2004)

O marido perfeito mora ao lado

e AvóDezanove e o segredo do

(2010) e O analfabeto que passou

soviético (2008)

no vestibular (2008), entre outros.

Twitter @ondjaki

felipepena.com Tiago Montenegro nasceu em 1979 no Ana Santos nasceu em 1984, em

Porto (Portugal) onde também reside.

Porto Alegre. “O que não é um

É autor de De meu deus a teu

morango” integra um projeto

(2009) e A aresta que resta (2009).

contemplado pela Funarte no

jamesblackhill.blogspot.com

Programa de bolsas de estímulo à criação artística.


Clayton C. nasceu em Guarulhos, São

Henrique Amud nasceu em Manaus

Paulo (1988), onde mora.

(1984) e vive no Rio de Janeiro.

movimento1.blogspot.com

Twitter @porcoppc

André Giusti nasceu no Rio de

Cristiane Costa é carioca de 1964.

Janeiro em 1968 e mora em Brasília.

Publicou, entre outros, Pena de

Publicou Voando pela noite (1996),

aluguel (2005) e Coisas que eu

A solidão do livro emprestado

diria a minha filha (2005).

(2003) e A liberdade é amarela e conversível (2009).

Marcelo Barbão nasceu em São Paulo

andregiusti.com.br

em 1967 e vive em Buenos Aires. Publicou Acaricia meu sonho (2007).

Claudia Nina nasceu e mora no

cadernodeescritura.wordpress.com

Rio. Publicou A palavra usurpada e A literatura nos jornais. “Gorda-

Graziella Albuquerque é cearense

de-repente” integrará seu primeiro

de Fortaleza. Twitter @

romance.

grazalbuquerque

Ana Cristina Melo é carioca, nascida

Nilton Resende nasceu em Maceió

em 1972. Publicou Caixa de desejos

(1970), onde reside. Publicou O

(2010). anacristinamelo.com.br

orvalho e os dias.

Maria Alzira Brum Lemos nasceu em

Rodrigo de Souza Leão nasceu no

São Paulo. Publicou, entre outros,

Rio de Janeiro em 1965 e faleceu em

A ordem secreta dos ornitorrincos

2009. Publicou Todos os cachorros

(2008).

são azuis (2008).


participe da ficções 20 revistaficcoes.com.br

ficções 19 foi publicada em abril de 2010 e produzida por julio silveira [25], jorge viveiros de castro [7letras] e suzana vargas [Estação da Letras].



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Uma das principais contribuições técnicas de Abraham Soylent

para a teoria estética foi seu axioma de que “a Arte é um equilíbrio final entre os equilíbrios e desequilíbrios parciais”. •  Quantas vezes o próprio Cortázar teria passado por aquele vão do Instituto Francês, hoje um verdadeiro túnel, em um ritual de ligação entre seu presente e seu passado. • Já tinha ouvido falar dessa safra. Ela tem substância. Causa um estranhamento, é inovadora, experimental, sensível. • Em seu calar-se, ela atenta para o som do balanço, perto. Há dois, mas um deles feito inútil, quebrado como asa. • Quando no outro sim divisei vossa visão, meus olhos faiscaram obnubilado, e assim estão até o momento desse passeio pela orla marítima e terrestre, e quem sabe — quem de nós saberão? — exorbital. •  O quarto gemia todo. Minha tia doida nada fazia, nem o pai. Queriam apenas que eu rezasse. O que eles iam deixar aquela mulher fazer? Donde há de vir a julgar os vivos e os mortos. Repeti rápido e pensei que não queria ser julgado pelo que não fiz. •  Podia ajudá-la a ir até o cemitério, limpar os inços com ela e deixar a sepultura do pai tão bonita, lustrar o vidro da foto dele já tão embaçada e trocar as flores com a mãe porque era o que ela mais gostava de fazer. •   Ele dormia sob a paz encarnada do mosquiteiro. Deslocou-se, o ladrão, da cozinha para a sala. Sem hesitação. A mosca parou a sua dança. •  Perdido o meu olhar na cortina, as duas personagens enfrentam-se dentro de uma sala. Apanhando-me distraído, um dos homens dispara dois tiros na zona do coração do outro homem. • Quando era adolescente, tomava coragem e ficava durante a noite em lugares sem luz e abandonados. Sentia minhas orelhas vermelhas, o suor nas costas descia e me incomodava. Ficava sem respirar o máximo possível. Nada acontecia, não ouvia nada. •  Sorrindo para o todo e para o nada, Pedro fustigava as imagens do sonho, tentando que se deslindasse a que mais ansiava lembrar: o rosto que sabia belo, mas que se quedava incógnito na distância das horas que separavam Pedro do que sonhara. •  E o joelho, ai, sabe a dor que é ter um joelho gordo? É uma dor que não cura nunca... Não adianta pensar que o rosto dela está caído de magreza, que as pálpebras de uma magra são mais envelhecidas do que as de uma gorda, como eu.  • Fiquei horas encarando a rolha, imaginando se eu teria alguma forma de chegar até ela, até que vi uma agulha transpassá-la, e do pequeno furo cair um líquido viscoso, transparente, que ia pingando, gota a gota, no centro do quarto.  •  Conversávamos sobre assuntos sem transcendência, quando avistamos uma coisa feita de carne se mexendo no piso de concreto. Era uma morena. Tinha a pele muito lisa e seus olhos ressaltavam. Estava morrendo. •  Fui ser chapeiro, tinha fumaça, mas fedia. Fui trabalhar em tabacaria, mas não podia acender nada. Frustrante. Outro dia a mulher virou para mim com uma xícara de café, fiquei emocionado, ela fez algo. •  O que eu diria a eles? Oi, sou eu, lembram de mim? Eles me diriam: ah, ela mudou, se casou, teve dois filhos. • Eu tentei lembrar os dias em que vivia sozinho no carro, mas faz tanto tempo que ela vive aí ao meu lado que os dias de solidão ficaram enterrados na memória  •  Uma lauda de diálogo e mais uma vez ela ficou perdida. Quis mostrar o desencontro e ficou sem rastro. Afinal, aquilo era um conto? • Eu me masturbava e gemia, quando ele chegou à sala e gritou comigo, mandando-me descer. Retesei-me. • Para tirar você da minha mente. Exorcizá-la. Excomungá-la. Extraí-la. Já passei por muitos remédios. Remédios passaram por mim. Você não é um remédio. Amplictil. Fenergam. Haldol. Leponex. Bezetacil. Valium. Lorax.


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