A arte brasileira

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A Arte Brasileira Gonzaga Duque edição crítica de

Paula Vermeersch Edição α São Paulo 2014


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I As causas que levaram a decadência a Portugal têm sido estudadas por notáveis escritores, e são conhecidas; não é este, portanto, o oportuno lugar para repisar o que já é sabido, e escrupulosamente contado. Essa decadência foi, naturalmente, transmitida ao organismo social brasileiro, além de nos enviar a metrópole uma colonização de judeus e degradados, sendo o Brasil “asilo, couto e homisio garantido a todos os criminosos que ali quisessem vir morar” (1). Colonizada a nova terra, o prometedor Eldorado, foi dividida em 12 capitanias (1530-35) “cujos donatários tinham poderes soberanos, salvo o de cunhar moedas” (2), e a doação foi partilhada, com regulada equidade, entre nobres e estimados súditos de El-Rei D. João III. Diz o notável historiador que me serve de autoridade nestes apontamentos: “Cada capitania devia corresponder a 50 ou 60 léguas de costa, podendo-se estender-se para o sertão à medida que se alargassem as conquistas dos donatários” (3). Porém, depois do jugo da Espanha, a obra do rei colonizador sofreu transformações tais que, o desmoronamento do que ele fizera, foi inevitável. As loucuras do prior do Crato, as dissoluções da duquesa de Mântua e de Miguel de Vasconcellos, fizeram de Lisboa um couto de tratantes, regidos pelas leis da política e da pilhagem, que corrompeu para sempre o nervo da força portuguesa. Prostituída Lisboa, degenerados os costumes do povo, apodrecida e viciada a sua nobreza, esquecida a glória das bandeiras que acenaram, triunfantes, transpondo os “mares nunca d’antes navegados”, não ficou do reino de Afonso Henrique mais do que os restos, devorados pelo jesuitismo crescente, como os sobejos de um jantar fidalgo lançado às matilhas famintas. Houve curto intervalo no desenvolvimento da desmoralização, em que pareceu paralisar-se o mal; e isto foi quando a enérgica e egoística altura política de 5


[1] As primeiras considerações de Gonzaga Duque são, de fato, citações diretas de Joaquim Pedro de Oliveira Martins (18451894), em O Brasil e as colônias portuguesas. Lisboa: Livraria Bertrand, 1880, p.19-20. O autor compara Dom Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (16991782), a uma província na Saxônia, denominada a partir do rio Lippe, e que foi alvo de disputa entre França e Alemanha por séculos. Gonzaga Duque também traça algumas linhas sobre a ação dos jesuítas no Brasil, a partir do Cônego Fernandes Pinheiro, destacando as iniciativas dos padres Manoel da Nóbrega (15171570) e José de Anchieta (1534-1597).

Sebastião de Carvalho, o famigerado Pombal, fez saber em todo o reino que havia um rei imbecil no trono dos Braganças, porém que o braço forte e autor de todos os movimentos pertencia a um outro homem, soberano mais soberano que o rei, e inf lexível, resoluto como Lippe. [1] No dia em que o corpo de Pombal foi dado à sepultura, correu pela sociedade portuguesa um suor frio, anunciador da enfermidade próxima: era o anúncio do mal que se julgava paralisado. Paralisado esteve enquanto a ditadura de Pombal durou, porém ainda seu cadáver não era devorado pelos vermes, já o jesuitismo procurava erguer a cabeça do abatimento em que jazera. Na colônia, os emigrados sustentavam uma guerra atroz contra os naturais, arredando o elemento nacional para o interior. Temendo a ferocidade dos gentios os capitães-móres armavam e sustentavam aventureiros, grupo cosmopolita de calcetas e trânsfugas, que dizimavam as tribos, e punham fogo às malocas. Tonrou-se cruenta essa perseguição. À ofensa respondia a reação do ofendido. Quando os índios podiam, ocultos nas f lorestas, soltar uma f lecha da entesada embira, e fazê-la atravessar, rápida, o corpo de um branco, não tremia-lhes a mão: era certo e fatal o golpe; ao sibilar da seta, a presa caía, ensanguentando o solo, a rugir na agonia da morte. Os brancos não poupavam, também, ao inimigo a vida. Tinham armas bem preparadas, para os ataques. Cada casa ou propriedade era um pequeno arsenal dirigido com saber, onde as espadas estavam sempre prontas e luzentes, e as colubrinas cuidadosamente escorvadas. Dessas lutas intestinas resultou o prisioneiro que, por sua vez, transformou-se em escravo; e como o trabalho do escravo parecia lucrativo, começaram, os colonizadores, a praticar o resgate dos índios. As missões de Nóbrega e Anchieta concorreram muito para esse fim. “Havia em São Paulo, a escolhida sede dos mis6


sionários”, diz o autor de As Colônias Portuguesas, “uma feitoria de onde as bandeiras saíam para o sertão a descer escravos; a crueldade desse comércio era feroz: a morte esperava os que resistiam à escravidão, a venda no curral era a sorte dos submissos. Tiveram então os jesuítas a ideia de criar aldeamentos, onde monopolizavam o trabalho dos índios em proveito próprio” [2]. Uma autoridade insuspeita, turibulando encômios aos jesuítas, confessa francamente que, da união dos jesuítas com os índios, resultou para aqueles um enorme comércio com a metrópole, donde provinham incalculadas somas [3]. Estreitados assim, índios e jesuítas, a classe mais forte pela inteligência e pelas armas garantidas pelos soldados da metrópole, que era a desses últimos, dominou a primeira, tomando o caráter de educadora, sendo, em 1609, época em que a condição dos indígenas foi equiparada à dos colonos, nomeada oficialmente curadora dos índios. Compreendem todos qual fosse a educação administrada pelos missionários aos selvagens. Eles que deslumbravam os selvagens com os esplendores do culto católico, e que os amansavam e domavam mais do que catequizavam; eles, os escravizadores que patrocinavam as bandeiras, os negociadores que monopolizavam o trabalho do índio; eles, os deuses, os sobrenaturais, os sobre-humanos, o grande Pagé (Anchieta) e Aboze-Bebe (Nóbrega); eles, de resto, que eram os peões dessa bestas bravias, ameigando-lhes a desconfiança em brando gesto, com deslumbrantes vestiduras, previdentemente compradas; estudando-lhes o movimento e a língua, para depois sujeitá-los a cultura nas aldeias, tal faz o peão para galgar a sela da indomada besta, - eles, digo eu, educariam-os na escravidão disfarçada, isto é, nesta vida de trabalho contínuo para lucros de alheios, em que o indivíduo julga-se livre mas que, de fato, é escravo. Falsos espíritos, educados no convencionalismo bíblico, acreditando piamente, ou hipocritamente, que o gentio, assim como o negro, eram descendentes da raça 7

[2] Oliveira Martins. O Brasil e as colônias portuguesas. p. 35. [3] Apologia dos jesuítas no Brasil, Fernandes Pinheiro Cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (1825-1876). “Ensaio sobre os jesuítas”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1855, tomo 18, p.163. O texto foi republicado nos dois volumes dos Estudos Históricos do autor. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1876


[4] Gonçalves Dias, A marabá (poesias líricas) Antônio Gonçalves Dias (1823-1864). Últimos Cantos. Rio de Janeiro: Typographia de Francisco de Paula Brito, 1851

condenada de Caim, os jesuítas procuravam dominar, porque os discípulos de Loyola punham em prática o plano de dominar o mundo em nome de Deus, não só com as armas espirituais, mas também com os instrumentos mundanos, a riqueza, a intriga e até a força. Os colégios, que fundavam, eram para os brancos ou para os mestiços, protegidos pelos brancos. O selvagem era a besta de carga, o braço para a cultura, o servo para os colégios, para as habitações. Mantê-los ignorantes, disfarçadamente civilizados, fazia-se preciso para o intuito das missões. A população indígena, desaparecia, rapidamente, dos centros em que os colonizadores brancos edificavam suas casas. O extermínio teve princípio no ano de 1531, quando Afonso de Souza fundara a capitania de São Vicente, batendo os carijós, na Bahia. Sucessivamente foram batidos os pitagoares, os tupiniquins, os caetés, os tamoios e os aimorés. As epidemias completavam o extermínio. A varíola dizimou a maior parte dos aimorés, que vendiam-se, famintos, para escravos, e abandonavam os filhos, fugindo à peste. Escasseava, por esta forma, o elemento indígena, do qual as gerações foram raríssimas, porque os mamelucos, nascidos do cruzamento do branco com o índio, eram tidos como entes desprezíveis. A índia marabá não tinha seduções nem encantos para os da tribo: era uma degenerada. Na cor de seus cabelos e de seus olhos, na delicadeza de sua pele, sentiam alguma parte do inimigo de todoso colono- e deixavam-na sozinha, sem amor, sem amizade, como a vergôntea criminosa de uma família ilustre. [4] Escravizados e batidos, os índios fugiam, sentindo a nostalgia da vida selvagem, deixavam-se morrer na sombra das f lorestas, ouvindo cantar passarinhos e murmurar cachoeiras. A sede da cobiça produziu a necessidade do escravo negro, porque os índios eram poucos; e como o continente africano era o grande armazém donde 8


saía para o mundo inteiro levas de escravos, lá foram buscar os negros. Os próprios jesuítas, missionários em África, fizeram-se mercadores de carne humana. Quando os míseros negros embarcavam, um bispo de Luanda, assentado numa cadeira de mármore, perto do cais, abençoava-os, porque hereges não podiam conviver com cristãos. Não foram só os portugueses que entraram em comércio com o armazém da África; ingleses, e estes foram os piores, franceses e espanhóis mercadejaram a mesma fazenda, a rendosa fazenda negra. Depois das terminantes leis de Pombal abolindo a escravidão dos índios, a exportação dos negros atingiu proporções extraordinárias. Diz o historiador de As Colônias Portuguesas que “nos primeiros anos da existência da Companhia do Grão Pará a importação no Brasil chegou a 100.000 cabeças por ano; das quais de 22 a 43.000 com destino ao Rio de Janeiro...” “De 1759 a 1803 os registros coloniais dão, saídos por Angola, para o Brasil, 642.000 negros, ou de 14 a 15.000 por ano”. [5] Em 1768, a enérgica política de Pombal expulsa da colônia os jesuítas; os índios despovoam as aldeias, fogem para o sertão, porém o negro ali está, mudo e obediente: máquina econômica, movida a chicote e concertada, em casos de desarranjado, sem dispêndios maiores. Assim se formava uma nação nova, obra de portugueses, nesta parte da América.

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[5] Oliveira Martins. Op. cit. p. 61, nota 1.


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