REVISTA ORIENTE OCIDENTE - N.33, II SÉRIE, 2016 (ANUAL)

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Número 33/II Série - 2016

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Índice 03 | Editorial Jorge H. Rangel 04 | O universo da língua e cultura lusófona, a “Nova Mundialidade” e o papel de Macau no intercambio sino-luso-brasileiro Severino Cabral 10 | Independência dos tribunais e dos juízes António Santos Carvalho 16 | Álvaro Semedo – Relação da Grande Monarquia da China (Percursos de uma Obra) Maria Pinto Pereira Romana 26 | Identidade macaense: retratos impressionistas de espaços e ambiências em “Os Dores” de Senna Fernandes Margarida Conde

98 | A (re)emergência da China na equação do poder mundial: considerações geopolíticas Paulo Duarte

42 | Diáspora macaense Celina Veiga de Oliveira

106 | Recordar na China: o duelo entre o Silêncio, a Nostalgia e a Utopia Beatriz Hernández

49 | Instituições macaenses de matriz portuguesa Alexandra Sofia Rangel

115 | O legado de Agostinho da Silva e o futuro da lusofonia Renato Epifânio

54 | Macau de 1557 a 2014: a coexistência de duas culturas e de duas civilizações Ana Carolina Monteiro Fernandes

121 | Nova Águia 16 – um apontamento Renato Epifânio

60 | António Manuel Couto Viana e Padre Manuel Teixeira: o Natal em verso António Aresta 64 | A questão da emigração chinesa via Macau nas páginas do Diario do Rio de Janeiro a partir da década de 1850 Julianna de Souza Cardoso Bonfim 76 | O Sonho Chinês o Novo Normal e Uma Faixa Uma Rota Fernanda Ilhéu 84 | Imagens na poesia clássica chinesa: um estudo de caso: Chang Hen Ge de Bai Juyi em português Li Cong

122 | Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo Oriente António de Abreu Freire 139 | A Casa de Macau do Rio de Janeiro na XI Reunión de Antropología del Mercosul em Montevidéu, Uruguai Paloma Augusto 140 | Os nossos parceiros: CCCM - Centro Científico e Cultural de Macau (uma breve apresentação) Luis Filipe Barreto 142 | IIM – 2015: um ano de actividades 154 | Edições IIM – 2015

Ficha técnica

ORIENTEOCIDENTE – N.º 33/II Série - 2016 (publicação anual) Director: Jorge H. Rangel | Coordenação: José Lobo do Amaral | Editor e proprietário: Instituto Internacional de Macau Sede: Rua de Berlim, Edifício Magnificent Court, 240, 2º (NAPE) – Macau – Tel: (+853) 2875 1727 / 2875 1767 | Fax: (+853) 2875 1797 Site: www.iimacau.org.mo | Email: iim@iimacau.org.mo | Delegação em Lisboa: Palácio da Independência, Largo de São Domingos, 11, 1150-320 Lisboa | Tel: (+351) 21 324 1020 | Fax: (+351) 21 324 1029 | E-mail: iimlisboa@iim.com.pt | Tiragem deste número: 1.000 exemplares | Ilustrações: Versos de capa e contracapa: Carlos Marreiros – Pormenores dos desenhos de Carlos Marreiros, Macau Urbanidade, 500x330cm, 2012; Colecção da Galeria da Macau Creations Ltd, 2014; Cortesia da Macau Creations Limitada / 馬若龍畫 作詳情,“澳門文明”,500X330 cm,2012,澳門佳作藝廊系列,2014,澳門佳作贈 | Design e produção gráfica: Maisimagem II Impressão e acabamento: Gráfica Maiadouro | Depósito legal: 377103/14 - Os números anteriores ao n.º 31 foram produzidos e distribuídos na RAEM.

O Acordo Ortográfico é usado ou não pelos Autores segundo o seu próprio critério. Com o apoio da

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Editorial

Este 3.º número da nova série da revista Oriente/Ocidente é revelador de que a opção oportunamente feita pelo Instituto Internacional de Macau foi correcta: publicar com regularidade e maior frequência os boletins informativos, em português, chinês e inglês, e produzir uma vez por ano uma revista que pudesse ser marcante, pela qualidade, bem como na forma e no conteúdo, como órgão de difusão cultural, cujo âmbito fosse a expressão dos próprios objectivos e propósitos que presidiram à criação do nosso Instituto e que justificaram o seu positivo funcionamento ao longo de quase 17 anos.

este projecto consiga a continuidade desejada.

As reacções e expressões de apreço que nos chegaram de variados quadrantes, especialmente de instituições académicas e culturais, muitas das quais estabeleceram connosco parcerias úteis, compensam plenamente o esforço feito por uma pequena equipa de colaboradores, coordenada pelo vice-presidente do IIM, José Ângelo Lobo do Amaral, e constituem incentivo bastante para que

Damos também atenção a um dos nossos parceiros – o Centro Científico e Cultural de Macau – e às principais realizações do IIM, de que se oferece um resumo, o qual é complementado com a apresentação das nossas novas edições, sendo esta, certamente, uma das áreas de intervenção de que nos podemos orgulhar, pelos resultados alcançados. O IIM já é a entidade que mais publica em Macau.

Aceitar uma nova missão é, para nós, assumir a responsabilidade de a realizar integralmente. É esta a certeza que sempre demos a quantos nos quiseram acompanhar desde a primeira hora. Os temas deste número são, tal como nos anteriores, muito diversificados, cobrindo matérias de natureza cultural, literária, jurídica, política e sociológica, com o enfoque em Macau, na China, na memória de Portugal no Oriente e nos valores da lusofonia.

É também de salientar o valor das contribuições de vários novos colaboradores que vieram enriquecer o qualificado elenco que tão bem soube garantir a feitura dos dois primeiros números. Queremos continuar a contar com a preciosa colaboração de todos. Há pouco tempo, o Diário do Povo (“Renmin Ribao”) de Pequim, que deve ser o jornal com maior tiragem no mundo, surpreendeu-nos com a ampla divulgação de um longo artigo sobre o IIM, em que se sintetiza o seu percurso ao serviço de Macau e na promoção de relações académicas e culturais com muitas instituições do exterior. Gestos como esse, que entendemos como sendo de reconhecimento da obra realizada, fazem-nos abraçar renovados desafios.

Jorge A. H. Rangel

Presidente do Instituto Internacional de Macau

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O universo da língua e cultura lusófona, a “Nova Mundialidade” e o papel de Macau no intercambio sino-luso-brasileiro

Severino Cabral Diretor-Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de China e Ásia-Pacífico-IBECAP

“Há lugares que surgem à nossa atenção como topologias privilegiadas, no Mundo e na História. E são, muitas vezes, aqueles pequenos pontos no mapa favorecidos pela sintonia do factor geográfico com o factor político. Macau foi, e continua a ser, um desses pontos.” A Direção do IIM, in “Macau – puente entre China y America Latina”.

quista só é comparável, pelo efeito de transformação nos destinos de todos os povos e todas as nações

Camões: "Já no largo Oceano navegavam,/ As inquietas ondas apartando; "(Os Lusíadas, I, 19). Agostinho da Silva: "Creio, por mim, que o fará; mas que o vai fazer na própria vida: não teremos desta vez páginas de livros, mas tipos humanos: o que vai dar uma oportunidade única a povos para os quais foi a vida sempre o mais importante: China, Índia, Península (Ibérica), América do Sul" ("Filosofia Nova", Convergência Lusíada, p. 361). O acontecimento da abertura das rotas oceânicas do comercio e da navegação mundiais, com o feito épico lusitano do domínio do Atlântico e do Índico, inaugura uma nova época para o conjunto da humanidade. Sob inequívoca liderança lusa foram construídas as bases do mercado mundial ao universalizar-se a troca e o intercambio de bens e cultura entre o Novo e o Velho mundo. Essa con-

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Nau portuguesa.

do mundo, ao que se passa em nossa época com o fenômeno da soi-disant “globalização econômica e financei-


O universo da língua e cultura lusófona ...

ra”, ao mudar em sua totalidade o ambiente social, político, econômico, tanto quanto científico e cultural da humanidade hodierna. Vivemos a grande transformação da cena mundial contemporânea decorrente entre outros fatores, de um lado, da continuidade da Revolução Cientifico Tecnológica – da idade atômica à era espacial, e da revolução da comunicação até o desenvolvimento das ciências da vida –, de outro, da emergência de grandes espaços continentais e populacionais no Oriente – China e Índia – e, no Ocidente extremo, da América Lusa. Neste horizonte do começo de século e de milênio sobreleva o extraordinário crescimento e desenvolvimento da China que, por sua dimensão particular de um “megaestado” continental e marítimo – como centro mundial de poder – não só instaura uma nova realidade econômica e política internacional, como aponta para a emergência de uma nova ordem mundial multipolar. A ascensão da China no mundo de hoje não surpreende quem conhece a história da civilização e da nação chinesa. Como também não surpreende que a relação da China com o Ocidente moderno tenha sido inaugurada pelo encontro com a Nação Lusa, sua língua e cultura. Como é conhecida, a saga da aventura lusitana se estendeu a todos os mares e todos os continentes.

Estátua de Jorge Álvares, em Macau.

Hoje, distanciados no tempo, podemos ver que a viagem do navegador Jorge Álvares ao estuário do Rio Pérola, a mando de Afonso de Albuquerque, faz parte da extraordinária epopéia Lusa de redescoberta do mundo pelo Extremo Ocidente. Esta viagem inaugura o dialogo Ocidente e Oriente pelo lado português.

a vir, com a fundação de Macau. E, assim, por cinco séculos, Portugal – a Grande Potência Marítima do Ocidente –, inseriu-se na paisagem chinesa. Misturou-se a ela, em cultura e afeto, com um laço por todos os tempos jamais desfeito: um pequeno rincão da China foi e permanece definitivamente marcado pela luz da civilização lusitana.

Pouco mais adiante, em 1557, seria cristalizada, esta relação, pelos séculos

De tal maneira que, como um fato gerador de futuro, no dia 20 de

dezembro de 1999, nascia a Região Especial Administrativa de Macau, na China; pequeno acontecimento altamente significativo do final do século XX. A partir dele muitas transformações adviriam no contexto internacional, desafiando a capacidade e o talento inovador do homem de Macau para gerir com autonomia, e criar um ambiente único de encontro do Ocidente com o Oriente.

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universal a qual, como os padres da Companhia de Jesus revelaram ao mundo, formava um par criador com a outra língua universal da cultura humana: o idioma chinês. A aventura lusa abriu o caminho das rotas oceânicas do mundo, gerando o mercado universal contemporâneo; tal feito está na origem do fenômeno da soi-disant “globalização”. Esse fato está definitivamente retratado na imortal epopéia camoniana. A poesia de Camões, autor maior da língua portuguesa é testemunho vivo da trajetória seguida pela gente lusitana, que construiu o Brasil, a África e a Ásia como pátria humana comum. A literatura de língua portuguesa independente do acento que exiba – metropolitano, americano ou ásio-africano – representa, ontem como hoje, o que de melhor o mundo lusitano e a sua cultura integradora e universalista inspirou, em diferentes épocas da história, à humanidade ocidental.

de significado especial para o Brasil, porque baseadas na extensão universal das línguas de cultura chinesa e portuguesa.

O começo dos tempos modernos assistiu ao povo lusitano inaugurar uma época da história da humanidade baseada no sistema internacional fundado no comércio e na interação entre povos e civilizações: os descobrimentos das rotas oceânicas do mundo, a unir pela primeira vez todos os continentes e todos os meios de riqueza e poder do homem, fruto da grande aventura marítima de Portugal, talvez só tenha símile na conquista do cosmos da nossa época.

Mas a língua portuguesa não teria essa dimensão se não fora o reconhecimento do fenômeno ao qual, um dia, o gênio de Fernando Pessoa denominou “o grêmio da língua portuguesa”: o fato de que o Brasil e os países que compõem a Comunidade da Língua Portuguesa têm uma mesma língua de cultura e basicamente formam um mesmo processo civilizatório. Uma língua de cultura

Quando brasileiros exaltamos a grande conquista do povo português é porque ela não pode ser esquecida pelo que significou para o destino nacional do Brasil. Sem a epopéia portuguesa dos Descobrimentos não haveria a nação brasileira tal como é conhecida de seus filhos e de todos os demais povos do mundo contemporâneo. Só por isso se justificaria a grande aventura do espírito luso.

Luís Vaz de Camões.

Ambiente único de encontro da cultura singular do Ocidente Latino, baseada na língua do povo português; e, no mesmo sentido, com a cultura mater do Oriente Sínico, baseada na língua do povo Han. Acontecimento histórico que se amplia a uma dimensão global, dado o tamanho da população de 260 milhões de luso-falantes, que integra a comunidade de países de língua portuguesa, presente em todas as regiões do mundo, e, de outro, a língua chinesa e o maior ecúmeno nacional do mundo. Lugar, pois, nuclear do encontro de duas culturas

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O universo da língua e cultura lusófona ...

Ela pode ser inda hoje medida pela construção ainda incompleta do outro Brasil – o Brasil africano – legado a ser realizado no futuro pelos países que formam a Comunidade de Língua Portuguesa na África. Além da África, a Índia e a China foram também tocadas pela presença lusa na língua e na cultura. Desse modo podemos dizer que todo o mundo civilizado foi unido pela língua portuguesa: uma língua universal pela riqueza de sua expressão e pelo âmbito que ela criou. A importância da conquista lusa das passagens do Grande Oceano, que banha o Hemisfério Ocidental, a África e a Ásia, residiu, sobretudo, na aventura de levar aos continentes mais distantes a fé cristã e a nova ciência da natureza, que veio a substituir o cosmos do mundo antigo pelo universo infinito da era moderna. Foi essa passagem do Ocidente ao Oriente que permitiu a Índia e a China se integrarem ao mundo da modernidade e se introduzirem no sistema industrial e urbano que da Europa se estendeu a todo o mundo. Um símbolo vivo dessa relação do mundo lusófono com o Oriente tem sido a cidade de Macau que, fundada em 1557, permaneceu administrada por Portugal até 1999, num arco de tempo que foi dos começos da época dos descobrimentos até ao término do segundo milênio da era cristã. No momento em que a China inicia nova e decisiva etapa de sua modernização, orientada pelo sonho chinês da revitalização nacional, ao construir as bases da retomada do crescimento da economia global, com a criação da gigantesca infraestrutura a ser gerada pelo projeto do “Cinturão e da Rota Marítima do Século XXI”, assistimos à reconstru-

Vasco da Gama.

ção estratégica das rotas antigas do comércio do Velho Mundo. Esta é uma grande e inovadora iniciativa chinesa que motiva e inspira a todos os países do Velho Mundo a reconstituírem a antiga rota do comercio mundial que uniu outrora o Império Romano ao mundo Sino e Indo-Persa. No entanto não se pode deixar de pensar que a economia global não se sustentará apenas na reconstrução dessa antiga rota do comercio internacional, mas sim irá necessitar da complementação pela reassunção do mundo criado pela abertura da

rota do Cabo, por Vasco da Gama, e da Circunavegação pelo Sul do continente americano, empreendida pelo navegador português Fernão de Magalhães, a serviço de Espanha. Essas duas épicas viagens, na aurora dos tempos modernos, estabeleceram a ligação Pacífico, Atlântico Sul e Índico, no conjunto denominado por Sir Halford Mackinder de “Grande Oceano”. Parece que, se vier a se estruturar esta segunda grande rota de comercio internacional – a Carreira das Índias e a Carreira do Pacífico –,

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ela deverá tornar-se essencial ao reerguer-se da Economia Global. Como também deverá se tornar por meio dos múltiplos pólos de poder um sustentáculo do equilíbrio do poder numa época de intensas mudanças na ordem mundial.

Pedro Álvares Cabral.

O começo do século XXI e do Terceiro Milênio está a configurar o nascimento de nova e complexa ordem mundial, na qual a parceria estratégica de dimensão global dos países lusófonos dará caráter de sustentáculo, pilar, socle, ao sistema internacional multipolar. O poder meridional que emergirá com a integração do espaço sul-americano mais o cone austral africano tornará o Brasil, país central do mundo lusófono, o primeiro estado “tri-oceânico”, que deverá, junto com a China

e Índia ser um dos pilares da nova ordem mundial (global). A realização desses projetos nos revela também o fato de que Macau não só deverá acompanhar o ritmo acelerado de desenvolvimento chinês como vir a se tornar uma plataforma de cooperação e intercâmbio da China com o mundo de fala portuguesa em todos os continentes. Caberá aos outros membros da comunidade de língua portuguesa um esforço a mais, na linha antecipada pelos clássicos eternos da língua portuguesa para ampliar essa plataforma ligando todos os “lusitanisados” do mundo ao universo cultural sínico, e assim abrir o passo para entrada da humanidade do terceiro milênio na era da “nova mundialidade”.

Bibliografia Alves, Jorge Santos (Coord.). Portugal e Indonésia: história do relacionamento político e diplomático (1509-1974). Macau, IIM, 2013. Cabral, Severino. Brasil megaestado: nova ordem mundial multipolar. Rio de Janeiro, Contraponto, 2004. Cabral, Severino. O Brasil e a China: relações de cooperação para o século XXI. Macau, IIM, 2005. Cabral, Severino. As relações Brasil-China e os desafios do século XXI. Macau, IIM/IBECAP, 2009. Cabral, Severino. China: uma visão brasileira. Macau, IIM/IBECAP, 2013. Cabral, Severino. Das covas de Viriato ao mundo global: o caminhar da Lusitanidade e o V Seminario “O papel de Macau e o Intercâmbio Sino-Luso-Brasileiro”. Macau, Revista Oriente/Ocidente-IIM, nº 31, 2014. Camões. Les Lusiades/Os Lusíadas. Paris, Robert Laffon, Édition Bilingue Portugais Français, 1992. Freyre, Gilberto. China tropical. São Paulo, UNB, 2003. Freyre, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1953. Freyre, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1953. Gary Ngai (org.) Macau-Puente entre China y America Latina. Macau, MAPEAL/IIM, 2006. Li Jinzhang & Reis, Maria Edileuza Fontenele. O Papel de Macau no Intercambio Sino-Luso-Brasileiro. Macau, IIM/IBECAP, 2013. Martínez, Pedro Soares de. História Diplomática de Portugal. Lisboa, Almedina, 2010. Pessoa, Fernando. Mensagem. Edição clonada da biblioteca nacional de Portugal. Babel, 2010. “Revista Convergência Lusíada, nº 23: Centenário de Agostinho da Silva”. Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 2007. Selvagem, Carlos. Portugal Militar: Compêndio de História Militar e Naval de Portugal. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2006. Silva, Agostinho da. Condições e Missão da Comunidade Luso-Brasileira e Outros Ensaios. Brasília, FUNAG, 2009. Tang Yijie. Valeur du principe: “Être en harmonie sans être identiques”. Paris, Alliage/Dialogue Transculturel nº 1, 2001. Ye Zhiliang. O papel do ensino da língua portuguesa na China para as relações Sino-Lusófonas. Macau, Revista Oriente/Ocidente-IIM, nº 31, 2014.

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Independência dos tribunais e dos juízes António Santos Carvalho Juiz Conselheiro

1. A independência dos Tribunais pode ser concebida de um ponto de vista estritamente formal, coincidindo com a simples obrigatoriedade das sentenças, ficando os Juízes acorrentados a um certo número de constrangimentos de carreira os quais permitem a suspeita de que as decisões possam vir a ser tiradas sem a liberdade intelectual correspondente a um verdadeiro exercício de um poder do Estado, isto é, viciadas no crédito de imparcialidade, afinal de contas, aquilo que as torna típicas no conjunto ordenador de um Estado de Direito. 2. Por isso mesmo se diz que não há verdadeira independência dos Tribunais sem independência dos Juízes, sendo traços característicos da independência judicial a admissão na carreira a partir de regras objetivas e ordenadas a aferir do mérito profissional, em suma, a exclusão de critérios políticos na nomeação, a inamovibilidade, a irresponsabilidade pela decisão, e segundo alguns autores, a submissão a foro especial (dotadas as instâncias das características de independência e imparcialidade reforçadas) da responsabilidade civil e criminal dos magistrados judiciais, por dolo (ou negligência grosseira) na condução do processo. Mais do que um problema jurídico, que o é, sem dúvida, trata-se também

de uma questão cultural, reportada a uma determinada tradição e a um modo de encarar o valor Justiça, abrindo um confronto onde será possível elencar proximidades e pontos de fuga no debate jus-cultural. 3. Apenas por influência da doutrina de separação dos poderes, surgiu uma primeira, e apesar de tudo meramente formal, afirmação da independência dos juízes.1 Assim, Hegel, já teorizador do moderno Estado burocrático, colocava o poder judiciário ao lado do poder de polícia, no quadro do poder governamental. Muito lucidamente, Kock, contemporâneo do filósofo, afirmou: «os juízes têm uma relação muito forte de subordinação pessoal, articulada através de toda uma série de vantagens e desvantagens pessoais, diretas, ou indiretas, quer através de penas disciplinares, de injunções rígidas e intoleráveis e da sujeição aos superiores mais próximos; quer através das transferências; ou por meio das nomeações precárias, simplesmente por destituição». Focou o autor do mesmo modo a subordinação dos juízes por meio da seleção, no momento da nomeação e pelos prémios e recompensas, num cenário, porém, de não terem direito às promoções, nem a serem colocados nos lugares de preferência, ou de não verem reconhecidos o longo

tempo de serviço cumprido segundo o dever ou outros méritos. 4. Entretanto os modelos distintos de organização judiciária, segundo as diferentes óticas dos sistemas, desenharam conceitos de independência e responsabilidade judiciais que vão mudando de sentido se relativizam. O modelo da legal profession, próprio da common law , aproximanos da ideia de professio jurisprudentiae: o papel da carreira é nele praticamente desconhecido. Em Inglaterra, por exemplo, a justiça de I Instância é confiada, na maior parte das vezes, a juízes sem formação jurídica Lower Judges que, por isso, se não destinam a exercer funções nas instâncias últimas, preenchidas por juízes escolhidos de entre os advogados com percurso prestigioso e longo tempo de exercício. Persistem portanto as mesmas relações e modos de ver tradicionais entre the bench e the bar, entre os advogados e juízes, que têm a mesma formação, pertencem à mesma corporação profissional, falam uma linguagem comum. O princípio da independência judicial, que não é de direito constitucional escrito, em Inglaterra, mas sim nos

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O poder judicial dizia-se, até então, exercido em nome do Soberano, por tribunais independentes, não sujeitos a outra autoridade que não a da Lei, mas tal não correspondia à realidade vivida.

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Independência dos tribunais e dos juízes

USA, decorre duma miscelânea de regras legais, jurisprudênciais e costumeiras, reforçadas by professional tradition and public opinion (Smith). É um facto cultural mais que um facto institucional. Os Juizes não são considerados Crown Servants (Holdsworth): se por um lado não estão sujeitos ao controlo da Coroa, tendo em vista a forma como desempenham as funções, por outro lado, e porque o Soberano está sujeito à lei, os juízes aplicam-na mesmo contra ele. O exercício da judicatura não tomou assim a fisionomia do emprego público, antes representa o desenvolvimento natural do exercício da advocacia. A independência dos juízes ingleses correspondeu, antes de mais, a um longo processo em que acabaram por libertar-se de qualquer dependência do poder político. Manifesta-se também na inexistência de qualquer controlo disciplinar ou hierárquico sobre eles. A independência dos juízes no modelo de legal profession é, portanto, uma independência em sentido forte. Não sendo um valor em si mesma, serviu e serve ora para garantir a imparcialidade do juiz no processo, ora para favorecer, principalmente nos USA, a afirmação de um verdadeiro poder judicial2. É que o sistema político americano, potenciando controlos recíprocos dos poderes do Estado numa perspetiva que vem de Locke3 (que não distinguia poder judiciário do poder executivo), mediada por Blackstone, exige um funcionamento conjunto dos poderes do Estado. Cada um deles requer o

concurso de um ou dos outros, sem que se subordinem ou anulem. 5. Em oposição aos valores tradicionais da professio jurisprudentiae, uma organização burocrática da magistratura que se manifesta no juizfuncionário e na separação entre juízes e advogados, surgiu nos países de Lei escrita. Teve influência decisiva no modelo a experiência francesa entre o século XVIII e o princípio do século XIX. Em primeiro lugar, a Assembleia Constituinte aboliu a patrimonialidade e comércio dos cargos judiciais, a transmissão destes por herança, como era permitido no Ancien Régime, e transformou os juízes franceses em assalariados do Estado4. Em segundo lugar, a tripartição dos poderes do Estado, consagrada na Constituição de 1791, visava não uma limitação recíproca, mas uma sintonia dos poderes executivo e judicial com o poder legislativo, este legitimado por delegação do povo. Em terceiro lugar, a Revolução, introduziu, para evitar que o poder judiciário pudesse invadir o legislativo, as instituições do referé legislatif, obrigando o juiz na ausência de texto de lei explícito a dirigir-se, previamente, ao corpo legislativo para obter uma interpretação autêntica, e da Cour de Cassation, tribunal criado junto do Parlamento para anular os julgamentos que contivessem «uma contravenção expressa ao texto da lei». Seguindo Montesquieu, se o juiz é a boca que pronuncia as palavras

da lei , o princípio da separação de poderes não podia ser acolhido, na verdade, senão no sentido de não lhe reconhecer outra posição que subordinada ao poder legislativo. Entretanto, as ordens dos advogados foram suprimidas, e o título proibido. Todavia, reconstituídas por Napoleão, breve levaram a um exercício liberal e livre da advocacia, com a consequente retomada da independência por parte dos advogados. 6. Enquanto isto, o modelo do juizfuncionário institucionalizou-se, após uma muito curta experiência de juiz eletivo. A legislação napoleónica5 estruturou a magistratura de forma hierárquica, análoga à do exército. No cimo da pirâmide está o Grand Juge Ministre de la Justice, Presidente da Cassação e gestor da Organização Judiciária: apesar da separação posterior das suas funções, certo é que o Ministro da Justiça permaneceu a chave do sistema. E foi concebido e criado o Ministério Público, como um dos principais instrumentos de controle dos juízes, magistratura movível, a do Ministério Público, dependente e rigidamente organizada. Ao mesmo tempo, foi estabelecido um controle disciplinar severo dos juízes, e foram centralizados os mecanismos de acesso e progressão na carreira. Assim, a legislação revolucionária, separado o poder judicial do poder executivo, subordinou-o ao poder legislativo, enquanto a legislação imperial permitiu a intervenção do poder executivo na administração da justiça.

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A explosão do poder judicial nos USA reverteu porém na crítica do Government by judiciary.

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Locke, John, Two Treatises on Government / Book II: An Essay Concerning The True Original, Extent And End Of Civil Government [The Second Essay ] (1680-1690).

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Art. 2º da Lei de 16/24 de Agosto de 1790.

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Lei de 20.4.1910, sobre Organização Judiciária.

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Toqueville criticou com agudeza: A intervenção da justiça na administração não prejudica senão o comércio, enquanto a intervenção da administração na justiça deprava os homens e tende a torná-los ao mesmo tempo revolucionários e servis. 7. Pelo menos a imagem da imparcialidade é prejudicada pelo sistema da burocracia judicial, e dando-se conta disso o subsequente movimento liberal propôs garantir a independência dos juízes perante o poder. No século XX, já, inicia-se por fim um movimento, lento e por vezes conflituoso, que a par da inamovibilidade se dirige para a consagração constitucional da independência da magistratura. Apesar de tudo, uma certa independência do juiz, por confronto com os outros funcionários do Estado, foi conseguida através da elaboração de estatutos específicos, com garantias suplementares, onde foi prevista uma responsabilidade disciplinar rígida em troca de uma certa imunidade no plano patrimonial6. Mas trata-se de uma independência em sentido fraco por contraposição com o sistema de independência dos juízes da common law. E mantido, por inércia, nas Constituições, o conceito de «poder judicial», certo é que as magistraturas continentais, menos que constituídas por juízes politicamente estéreis, foram envolvidas numa operação que visou colocá-las ao serviço dos governantes por oposição aos governados. Faz sentido portanto falar-se não em poder judicial mas em serviço de justiça ou em autoridade judiciária, englobada num serviço público de justiça.

9. É neste contexto e sob este foco que a preocupação pela independência dos tribunais e dos juízes da RAEM se cruza com o texto seminal da Declaração Conjunta:

Macau. Os Tribunais são independentes no exercício do poder judicial, livres de qualquer interferência e apenas sujeitos à lei. Os juízes gozarão de imunidades apropriadas ao exercício das suas funções. Os juízes da Região Administrativa Especial de Macau serão nomeados pelo Chefe do Executivo sob proposta de uma comissão independente a integrar por juízes, advogados e personalidades de relevo locais. A sua escolha basear-se-á em critérios de qualificação profissional, podendo ser convidados magistrados estrangeiros em quem concorram os requisitos necessários. Os juízes só poderão ser afastados, com fundamento em incapacidade para o exercício das suas funções, ou por conduta incompatível com o desempenho do cargo, pelo Chefe do Executivo, sob proposta de uma instância de julgamento constituída por pelo menos três juízes locais nomeados pelo Presidente do Tribunal de Última Instância. O afastamento dos juízes do Tribunal de Última Instância será decidido pelo Chefe do Executivo sob proposta de uma comissão de julgamento composta por membros do órgão legislativo da Região Administrativa Especial de Macau. Das decisões de nomeação e de afastamento dos juízes do Tribunal de Última Instância da Região Administrativa Especial de Macau será notificado para registo o Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular».

«o poder judicial da Região Administrativa Especial de Macau será atribuído aos Tribunais da Região Administrativa Especial de Macau. O poder de julgamento em última instância na Região Administrativa Especial de Macau será exercido pelo Tribunal de Última Instância da Região Administrativa Especial de

10. Vejamos então: a independência dos tribunais, considerados como elementos constitutivos do poder judicial, deriva da conceção liberal da tripartição e separação dos poderes do Estado. Mas a questão da independência dos Tribunais retomou uma relevância acrescida com a afirmação paulatina do Estado de Direito

8. Entretanto, num sentido evolutivo novo, surgiram os Conselhos Superiores da Magistratura. Tem havido experiências díspares: umas vezes o Conselho tem atribuições tão só disciplinares, outras consultivas, mas também se lhes tem atribuído todas as medidas que direta ou indiretamente podem enfraquecer a independência judicial tais como as nomeações e promoções, as transferências, que são por isso subtraídas ao Ministro da Justiça, do governo. O dinamismo dalguns dos Conselhos tem favorecido uma progressiva expansão dos poderes que lhes são atribuídos pelas Constituições em direção a um autogoverno dos juízes, garantia da independência e do bom funcionamento da magistratura. A concentração de poderes nos Conselhos Superiores da Magistratura corresponde a um aumento de poderes dos juízes e a uma independência no sentido forte do termo. De qualquer modo, a ausência de meios financeiros à disposição dos Conselhos Superiores da Magistratura arreda-os de um papel decisivo perante a atual crise da justiça e a eficácia do sistema judicial.

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A responsabilidade civil do Juiz, prise à partie, tem sido, a maior parte das vezes, vista como um remédio a ter em conta com precaução.

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Independência dos tribunais e dos juízes

tural ou socio-política. Podem Incidir sobre um juiz em concreto, ou sobre a magistratura no seu conjunto. Àquele cercam-no emocional e pessoalmente, a esta é caso de lhe ameaçarem um futuro de desrespeito e dureza social. 12. Independência e imparcialidade serão aspetos de uma só realidade? Os juízes são independentes para que possam ser imparciais? Ou, são independentes para que possam ser livres, sendo a imparcialidade apenas um dos critérios métricos da referida liberdade de decisão?

Edifício dos Tribunais de Segunda e Última Instâncias, de Macau.

Social, isto é, com a submissão e auto limitação dos poderes do Estado pelo Direito como sistema ordenado à concretização dos direitos humanos (liberdades individuais, direitos económico-sociais, das minorias, da mulher e da criança, da ecologia). 11. A independência dos Tribunais consiste basicamente na possibilidade de decidirem com liberdade e imparcialidade. E sendo os juízes, que os constituem, titulares da função de julgar, que lhes cabe, a independência dos juízes é a situação que se verifica quando no momento da decisão não pesam sobre o julgador outros fatores que não os juridicamente adequados a conduzir à legalidade e à justiça da decisão. Mas, como ensinou o Prof. Doutor Castro Mendes7 a independência dos tribunais, como órgãos de soberania, não coincide necessariamente com a independência dos seus titulares. Na verdade, aquela pode ser vista apenas de um ponto de vista estritamente formal tendo como conse-

quência jurídica o acatamento obrigatório das sentenças independentemente das características do processo decisório. Sob o ponto de vista de um Estado em que as instituições sejam regidas pela preocupação de eliminar o arbítrio, fazendo coincidir a obra do bem comum com a afirmação de pontos de vista plurais num confronto regulado, as coisas não se passarão assim, e à independência dos tribunais corresponde a liberdade no processo decisório, logo a verdadeira independência dos juízes. Anotemos que os fatores suscetíveis de afetarem a liberdade de julgamento podem existir no confronto do juiz com os demais poderes públicos; com certos movimentos de opinião quer de origem nos grandes meios de comunicação social, quer nos grandes grupos económicos; com uma, outra ou ambas as partes. Têm frequentemente natureza afetiva, ou intelectual e ideológica, cul-

Se partirmos do princípio de que os juízes devem ser livres para ser imparciais, a questão de responsabilidade do juiz decairá necessariamente em aspetos disciplinares ou de avaliação deontológica. Na verdade, segundo este ponto de vista, a imparcialidade estará em linha com os valores que estruturam o paradigma ético-profissional, isto é, a imparcialidade, para concretizar-se, depende do modelo donde emerge, do modo característico do seu próprio exercício: saber o que seja ou não a imparcialidade será assim assunto do colégio dos que elegem e escolhem esse objetivo de vida (profissional): serem imparciais. Se partirmos do princípio de que a independência potência a liberdade de decisão, e que a imparcialidade é critério da medida dessa liberdade, a questão de responsabilidade do juiz derivará necessariamente para um plano onde terão de ser considerados modelos de responsabilidade civil. Em todo o caso, aquilo a que se poderá chamar prerrogativas da magistratura, como a inamovibilidade e a irresponsabilidade pelas decisões,

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Mendes, João de Castro, Nótula Sobre o Artigo 208º da CRP, in Estudos Sobre a Constituição, III vol., 1979, pp. 635/660.

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são medidas de proteção dos juízes que se propõem remover do processo de juízo fatores eventualmente condicionantes da liberdade de despacho e julgamento quer provenham do aparelho de Estado, quer provenham do concreto destinatário da justiça, quer difusamente da própria comunidade. 13. De qualquer das formas, pode avançar-se, desde já, um quadro conceptual de independência da magistratura judicial distinguindo entre independência substancial; independência pessoal; independência coletiva ou externa; independência interna. Por independência substancial, entende-se a circunstância de um juiz, no exercício das suas funções, estar submetido apenas à Lei e à sua consciência. Por independência pessoal, entende-se a circunstância de um juiz ter garantida a inamovibilidade e a perpetuidade do cargo. Por independência coletiva ou externa, entende-se a subtração ao controlo do executivo dos mecanismos de transferências, de fixação das retribuições e reformas e da concretização da disciplina. Por independência interna, entende-se que o juiz não tenha que obedecer direta ou indiretamente a pressões vindas de outros juízes, tendo em vista o exercício jurisprudência. Os sistemas jurídicos contemporâneos, segundo uma perspetiva comparatística, garantem em maior ou menor medida estes quatro tipos de independência, nos já referidos dois modelos fundamentais da organização da magistratura judicial existentes: O sistema da «legal profession», próprio dos países da Common Law; O sistema de carreira judicial, próprio dos países de Lei escrita.

O primeiro caracteriza-se, como vimos, por uma garantia-extensa da independência dos juízes, não havendo distinção entre juízes e advogados, nem carreira judicial. Os magistrados estão subtraídos ao mecanismo da responsabilização civil, antes se submetem a regras deontológicas e a uma concretização da responsabilidade disciplinar igual para todas as profissões da comunidade dos juristas. O segundo caracteriza-se por uma garantia-fraca da independência dos juízes, pela diferença profissional entre juízes e advogados, pela existência de uma carreira judicial, estando normalmente os magistrados judiciais submetidos às regras da responsabilidade civil. A responsabilidade disciplinar segue-lhes modelos e procedimentos paralelos aos do funcionalismo público: não têm verdadeira proeminência os juízos de valor deontológico, a disciplina ordena-se pela noção de regularidade do serviço público e menos pela adesão do comportamento às boas normas do exercício profissional. Em suma: a Lei determina os requisitos e as regras de recrutamento dos juízes dos tribunais de I instância; no recrutamento dos juízes dos tribunais judiciais de II instância releva o mérito curricular; o acesso ao Tribunal de Última Instância, faz-se nos termos que a lei determina. E um dos requisitos de qualidade científica, para o exercício das funções de juiz de Direito, é o da frequência, com aproveitamento, de cursos e estágios de formação. Há uma supervisão do mérito dos juízes de Direito, frequente, que influi na progressão da respetiva carreira profissional. Não sem que este último aspeto do modelo traga problemas práticos para a ordem do dia: longe de ser

no sistema um fator de correção de desvios funcionais, de otimização dos serviços ou de unificação tendencial da praxis judiciária pode muito bem ser, antes pelo contrário, um sinal de contradição no seio do próprio poder judicial – «elemento de pressão (nuns casos); freio à independência (noutros); estímulo às mais variadas rivalidades (sempre)». 14. Não sofre dúvida estar em vigor em Macau um catálogo de direitos, liberdades e garantias, e direitos análogos, de última geração, com regime e severa força jurídica. Mas nem é preciso ir por aqui para se defender um perfil de independência judicial, em Macau, radicando-o no direito ao juiz pois decorreria sempre do suposto básico do Estado de Direito que o ordenamento aqui acolhe, sem contradição. Em todo o caso, a Lei-Básica consagra expressamente a independência dos Tribunais, garantida pela inamovibilidade dos juízes e pela sua não sujeição a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever lógico de acatamento das decisões judiciais proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores. Também os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões salvo as exceções consagradas na lei, isto é, a título de dolo na condução do processo.8 Estão fixadas as áreas de recrutamento e as qualificações profissionais, quer para os magistrados de primeira, quer de segunda instância, como já vimos, e em moldes que podem considerar-se revestidos de objetividade. Porém, será de diagnosticar um risco de peso externo excessivo nas nomeações ainda que sejam marcadas por uma tradição de leal-

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A ação deve ser proposta contra o Estado (RAEM), que acionará, de regresso o magistrado, se assim o entender.

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Independência dos tribunais e dos juízes

dade ao foro. Esta resulta dos objetivos político-sociais da Declaração Conjunta, Anexos e Lei-Básica. E se na verdade é inconveniente um orgão de gestão da magistratura de raiz corporativa, que não salvaguarda a independência interna dos juízes, também uma influência exterior excessiva, por exemplo, do executivo, prejudica a independência externa da magistratura. 15. No elenco dos défices de independência que fomos apresentando, não se vislumbra nenhum maior entrave à independência substancial porém que o de soluções contrárias à perpetuidade do cargo. Que será, com efeito, uma inamovibilidade de curta duração? Não corresponderá mesmo a algo vazio de conteúdo? Podemos aceitar que o juiz de Macau tem a garantia de ser independente

perante os demais poderes públicos, os movimentos de opinião, pressões sócio-económicas e as partes litigantes; que a magistratura no seu conjunto é basicamente independente, mas podem ser de recear certos casos singulares, onde não deixe de haver risco da perda da liberdade de decisão. É que as características de uma independência judicial em sentido fraco, amarrada à tradição em que radica, podem e devem ser corrigidas, garantindo-se aos juízes de Macau o direito a uma carreira, à tranquila e segura perpetuidade do cargo, eliminadas assim interferências negativas de fatores culturais de peso, difíceis de contornar. 16. Entretanto, se uma dinâmica social fabricada impuser uma reclamação pelos residentes de um sistema de tribunais regido pelo modelo e critério do custo-benefício e não pela

– digamos assim – madura duração da liberdade de julgar, o ordenamento jurídico de Macau sofrerá as consequências da atracão inevitável pelo modelo da legal profession, que permanece na vizinha Hong Kong. O que possa significar uma saída deste tipo para a manutenção da tradição jurídica da RAEM que, quer se queira quer não, é o principal fator da sua autonomia, é de todo imprevisível. Espero, portanto, que venha a consolidar-se no ordenamento e na cultura jurídica de Macau uma verdadeira e forte independência estatutária dos juízes, a que está aberta a Lei-Básica: o alargamento das modalidades de responsabilização civil dos juízes, como válvula de escape ao excesso de sentido do controlo disciplinar, caracteristicamente burocrático, pode contribuir, em definitivo, para a perfeição do edifício legal9.

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Santos Carvalho, António A.P., Crítica da Responsabilidade Judicial, ISCTE-IUL, Lisboa 2008, https://antoniosantoscarvalho.files.wordpress.com/2009/04/asc_slides_190409_vrucha_v42.ppt.

Bibliografia AAVV, El Tercer Poder: Hacia Una Comprensión Historica de la Justicia Contemporánea, Ed. Johannes-Michael Scholz, 1992. Atas do IX Congresso Mundial de Direito Processual, Relatórios Gerais. Raport General Sur L’Independence et la Responsabilité des Juges et Advocats: Aperçue Historique par Nicola Picardi; Aperçue Comparatif par Shimon Shetreet, 1991. Capelletti, Mauro, Le Pouvoir des juges, Economica, Presse Universitaire d’Aix-Marseille, Paris, 1990. Chen, Albert, The Modernization of Traditional Chinese Legal Culture, Seminário Globalização e Diferença Faculdade de Direito da Universidade de Macau/Fundação Macau, inédito, 1996. Hespanha, António Manuel, O Direito e a Justiça num Contexto de Pluralismo Cultural, in Administração, nº 23, vol. VII, 1994. Holdsworth, W., The Constitutional Position of the Judge, in Law Quartely Review (1932), pp. 28 e ss. Locke, John, Two Treatises of Government. Laslett, P. [ed.], Cambridge: Cambridge University Press, 1988; id., The Works of John Locke. London: Printed for T. Tegg (10 volumes), 1823. Mendes, João de Castro, Nótula Sobre o Artigo 208º da CRP, in Estudos Sobre a Constituição, vol. III., 1979, pp. 635/660. Munro, Colin, Martin Wasik, Sentencing, Judicial Discretion and Training, Sweet and Maxwell, Londres, 1992. Santos, Boaventura de Sousa, A Justiça e a Comunidade em Macau: Problemas Sociais, a Administração Pública e a Organização Comunitária no Contexto da Transição, in Administração, nºs. 13/14, vol. IV, 1991. Santos Carvalho, António A.P., Crítica da Responsabilidade Judicial, ISCTE-IUL, Lisboa 2008. Smith, S. A. de, The Constitutional and Admnistrative Law, London, 1971. Welsley-Smith, Peter, Judges and Judicial Power under The Hong Kong Basic Law, in Guenther Doeker-Mach and Klaus A. Ziegert (Eds.) Law, Legal Culture and Politics in the Twenty First Century, Franz Steiner Verlag: Stuttgart 2004, pp. 465-486.

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Álvaro Semedo

Relação da Grande Monarquia da China (Percursos de uma Obra)* Maria Pinto Pereira Romana Doutorada em Sociologia com especialização em Sociologia da Literatura

A Relação da Grande Monarquia da China, da autoria do padre Alvaro Semedo, foi, talvez, a segunda obra vivêncial escrita por um missionário português, sobre o Império da China, se considerarmos como primeira O Tratado das Coisas da China do frade Gaspar da Cruz. O jesuíta português entendeu escrever uma história da China e a história dos primeiros momentos da evangelização do extremo Oriente, partindo da sua vivência e experiência de vinte e dois anos nesse reino. Não se sabe a certeza de ter perdurado um manuscrito1 e, embora havendo a notícia de uma primeira edição, de 1641, em português, intitulada Relação de Propagação e Fé no reino da China e outros adjacentes2, a sua existência passou, ao longo dos tempos, quase despercebida em Portugal.

O padre Álvaro Semedo terá escrito a sua Relação na viagem que efectuou à Europa, entre 1637 e 16443, assinalando, na obra, o ano de 16404 como momento de elaboração. Durante esta sua estadia dá à estampa, em 1642, a primeira versão, em castelhano, desta obra sobre a China, com o título: Imperio de la China i Cultura Evangelica en èl por los Religios de la Compañia de IESVS, preparada por Manuel de Faria e Sousa5. Um ano depois, em 1643, é editada em Roma a versão italiana, com o título: Relatione della Grande Monarchia della Cina6. Sendo a sua estrutura muito semelhante a outras obras congéneres da época, a obra de Semedo está dividida em duas partes: a primeira trata do Estado Temporal da China, e nela se percorre o Reino da China, os espaços e as vivências. A segunda parte aborda a evangelização jesuíta da China,

desde as tentativas de S. Francisco Xavier até ao momento da viagem à Europa do padre Semedo; esta parte da obra tem um cunho relatorial semelhante ao das cartas anuas, sendo o objectivo, provavelmente o mesmo, relatar as actividades da Companhia, progressos e vicissitudes, e inclusive justificar algumas situações. Algumas questões se levantam relativamente ao documento primeiro que consubstancia as edições da Relação da Grande Monarquia da China; o facto de não haver conhecimento do manuscrito na língua materna do padre e a possível existência de um manuscrito em italiano7 corrobora a ideia dos que consideram ter Semedo escrito na língua do Vaticano. Poder-se-á, ainda, aventar a possibilidade de o jesuíta ter escrito em castelhano, dado que era a língua

_________________ *Artigo adaptado de parte de um capítulo da dissertação de mestrado da autora, com o título «Da Relação da Grande Monarquia da China». 1

O padre Manuel Teixeira refere a possível existência do manuscrito da primeira edição italiana na Wason Collection da Universidade de Cornell, USA. Contudo esta informação carece de confirmação; Manuel Teixeira (1996) - A Igreja em Cantão e Macau; Macau, ICM; p. 184.

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Segundo Agostin e Aloys de Backer, o título original da obra de Semedo seria Relação da Propaganda da Fé no Reyno da China e Outros Adjacentes. Agostin e Aloys de Backer, Bibliothéque de la Companhie de Jésus, Tomo VII, Col. 1114. Nomeado Procurador das Missões da China em 1636, Semedo sai de Macau em 1637 rumando a Goa, onde permanece algum tempo, chegando a Lisboa em 1640. Em 1642 estava em Roma e em 1644 retoma o caminho do Extremo Oriente. Álvaro Semedo (1643) - Relatione della Grande Monarchia della Cina; p. 75. Os apontamentos biográficos das várias fontes consultadas que nos referem a sua chegada a Portugal no ano de 1640, e que Semedo teria passado por Madrid em 1642. Contudo alguns autores indicam outras datas, cf. Horácio Araújo in António Gouveia - Asia Extrema (edição, Introdução e Notas), pp. 63-54. No Prólogo da edição em castelhano, de 1642, Faria e Sousa faz-nos um retrato de Álvaro Semedo: “(...) es sugeto verdaderamente apostolico, lheno de Espiritu para aqellas Santas occupaciones: aqui le vi con el cuerpo, que el alma allá la tenia en ellas: de rostro venerable; casi todo cano; y de sinceridad singular: y finalmente en todo benemerito dee ser Hijo de la Compañia de Jesus (...)”, p. 8. “(...) a qual, segundo alguns autores [Paul Pelliot, p.e.], fora previamente revista pelo próprio Semedo (...)” in: Horácio P. Araújo, op. cit., p. 159. Cf. Pe Manuel Teixeira, S. J., op. cit.

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Álvaro Semedo - Relação da Grande Monarquia …

da corte de Lisboa na altura da sua redacção8. Contudo a afirmação de uma edição primeira em português, de 1641, e reiterada por David Mungello, levanos a propor o entendimento de a segunda edição ser o Imperio de la China (1642) e a terceira a Relatione della Grande Monarchia della Cina, do ano seguinte (1643). Mungello refere que esta última edição teria sido impressa a partir da edição em castelhano9; atrevemo-nos a não concordar com esta opinião dado que fizemos o cotejo das duas edições e são muitas as dessemelhanças encontradas, não só na sua denominação, mas, sobretudo, na estrutura e conteúdos. Consideramos, por bem, fazer algumas transcrições elucidativas do diferente, não podendo contudo, em consciência, considerar uma delas como a cópia de um manuscrito primeiro, dado a ele não termos tido acesso. Ponderamos a pertinência deste cotejo no sentido em que nos poderia elucidar se Álvaro Semedo teria acompanhado a composição destas duas edições, e porventura conseguirmos percecionar a edição que serviu de hipotexto a todas as outras que percorreram a Europa nos séculos seguintes. No entanto estamos convictas que, sem aceder ao manuscrito, qualquer juízo sobre estas edições terá sempre um cariz especulativo. No que concerne à estrutura da obra, a edição castelhana saiu a pú-

Álvaro Semedo.

blico com a seguinte forma, tendo como folha de rosto: «Imperio de la China i Cultura Evangelica en Él, // por los Religios de la Compañia de Jesus // Compuesto por el Padre Alvaro Semmedo de la propia Com-

pañia, natural de la Villa de Nisa en Portugal, Procurador General de la Provincia de la China de donde fue embiado a Roma el Año de 1640. // Publicado por Manuel de Faria i Sousa // Cavallero de la Orden de

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Mas também a sua língua de criação, dado que Semedo nasce cinco anos após a subida ao trono de Filipe I. Talvez, para o seu caso, se possa parafrasear Lúcio de Azevedo (1953), quando a propósito de um coevo deste jesuíta, o padre António Vieira, também ele jesuíta, referiu “(...) nesse tempo ainda o sentimento português não tinha despertado (...) Nascera súbdito de rei estranho, e não lhe repugnava achar-se tal (...)”. História de António Vieira, vol. I, Clássica Editora, p. 36. Contudo, também se pode dar o caso de o padre português ter realmente escrito em italiano o seu manuscrito.

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Segundo Mungello: “Semedo wrote such a report in 1640 in Portuguese intitled ‘Relaçao de propagaçao de fé regno da China e outros adjacentes’. He apparently handed the manuscript over to a printer while passing through Lisbon and Madrid in 1642 and the work was published in Portuguese in Madrid in 1641 (...)”. “It was translated into Spanish , then rearranged and given an historical style by Manuel de Faria i Sousa and republished under the title Imperio de la China (...)”. “It was in this form that the text was translated and published in Italian (...)”: In: David E. Mungello (1989) - Curious Land; Honolulu, Univ. Hawaii Press, p. 75.

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Christo i de la Casa Real. // DEDICADO // Al Glorioso Padre S. Francisco Xavier, // Religioso de la Compañia de IESUS i Segundo Apostol de la Asia. // Impresso por Juan Sanchez en Madrid // Año de 1642. // A Costa de Pedro Coello Mercader de Libros.». Traz-nos esta edição, na segunda e terceira folhas, as licenças então necessárias para a sua impressão. A primeira licença, a “licencia del ordinário”, passada pelo Inquisidor, e o respectivo despacho, constituise num texto onde são nomeados os censores e respectivos cargos e o seu parecer sobre a obra. Assim, referem que da leitura atenta não foi detectado algo que pusesse em causa os bons costumes e os princípios da religião. Os inquisidores consideram a obra importante não só pela informação contida mas por ser, também, um testemunho fidedigno do trabalho de evangelização do Oriente. Também, na licença emitida pelo Conselho Real, na terceira folha, são elogiadas a clareza de estilo e elegância narrativa do nosso padre. É, ainda, referido que nada, no conteúdo da obra, impede a sua impressão, constituindo-se até como a mensageira do muito que os missionários da Companhia estavam a conseguir no longínquo império (refira-se que não encontramos licença idêntica na edição italiana). «Licencia i Privilegio del Consejo Real, que remitiendolo al licenciado Francisco Carode Torres dixo assi: // M.P.S.// He visto este libro de las cosas de la China como V. alteza me lo ha mandado. Hallo que en el na ay cosa que pueda impedir su impression, i que sera de gran cõsuelo a los Catolicos, el ver lo mucho que allà esta fundada la Religion Religion Christana en virtud de las eficazes dili-

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gencias de los Religiosos de la compañia Iesus. La disposicion es clara el estilo lleno de elegancia, i de Juizio: las materias raras, y al fin a poco volumen reduzido quanto ay en aquel Imperio digno de memoria, i de que lo entiendam todos. Este es mi parecer // salva en Madrid 12. de Deziembre de 1641.// Francisco Carode Torres.// Suma del Privilegio // Con esta aprovacion se concedio Licecia i Privilegio por quatro años, despachado en el oficio de Diego de Cañizarres i Arteaga.// En 18. de Diziembre de 1641». Ainda, na terceira folha, encontramos a “Fede Erratas” e a “Tassa” “Con esta Fè de erratas se tassò este libro por los señores del Consejo a quatro maravedis el pliego (...)” datada de 3 de Março de 1642, correspondendo, possivelmente, com a data de saída do livro; e, já na quarta folha, é feita uma advertência sobre o conteúdo da página 222, onde consta o expedimento, feito por Sto. Inácio, de seis religiosos com a embaixada enviada por D. João III, relato que contrasta com as memórias da Companhia que dão conta somente de dois enviados. A quinta e sexta folhas contêm o texto da Dedicatória a S. Francisco Xavier assinada por Álvaro Semedo, e que se constitui como um laudo ao Santo, o grande empreendedor da evangelização do Extremo Oriente, que morreu às portas da China, sem nela conseguir penetrar, e cuja obra de evangelização foi a regis ad exemplar dos missionários no oriente; tudo isto deixou expresso Semedo ao dedicar ao seu mestre o livro, para o qual pede protecção. Dedicatória [edição espanhola 1642], quinta folha. «Al Glorioso Padre S. Francisco Xavier, Resucitador de Muertos,

Norte seguro de vivos, segundo apostol de toda la Asia, i segundo Cõpañero de S. Ignacio de Lyolla fundador de la religion de la Compañia de IESUS // Espiritu verdaderamente Apostolico! O Hijo Grande de nuestro Gran Padre Ignacio! O Padre zelosissimo de inumerables hijos de la Iglesia Catolica! A ti solo busco yo por mi Mezenas, i por mi amparo, i por norte mio. Yo indigno deste Habito Sagrado que professaste, i de los intentos soberanos que tuviste, he conseguido fin mertos, lo que tu con tantos acà deseavas conseguir. Yo vi aquellas anchurosas Provincias de la China, que tu tanto pretendiste ver en este Mundo, i que aora estàs viendo, i a mi en ellas, desde essas eternas fillas a donde descansas de tus trabajos, i adonde trabajas por nuestro descanso. (...) tu solo nuestro Caudillo en estas peligrosissimas empressas, ampara el libro; favorece el zelo, i dirige mis passos a seguirte de modo, que si no mereci verte en esse, que es el colmo de todos los Imperios. A ti lo ruego. // Ruegalo a Dios.// Alvaro Semmedo.» As folhas sexta e sétima contêm o Prólogo, que corresponde ao Proémio da edição italiana, com excepção do último parágrafo. A oitava folha contém uma pequena biografia de Semedo, em tom laudatório, dirigida aos leitores e assinada por Faria e Sousa. A seguir a esta nota aos leitores, inicia-se de imediato, sem índice, a primeira parte do livro designada por «Parte I – Que contiene lo General del Reyno i de sus Provincias, en sitio, i calidades.» Consideremos agora a edição italiana, também nas primeiras folhas que introduzem a obra. Na folha de rosto consta: «Relatione // Della Grande // Monarchia // Della Cina // Del //


Álvaro Semedo - Relação da Grande Monarquia …

P. Alvaro // Semedo Portughese // Della Compagnia // Di Giesu. // Con Privilegio. // Rome // [ilegível] // M. D. CXXXXIII.»; na primeira folha encontra-se a Dedicatória, não a São Francisco Xavier, mas, ao Cardeal Francesco Barberino, Vicecancelário do Vaticano. Dedicatória [edição italiana 1643], primeira folha. «All’ Eminent.mo e Reverend.mo // Prencipe // Francesco// Barberino// Della Santa Romana Chiefa Cardinale // Vicecancellario // Tra tante erudite penne, che non solamente nell’Italia, mà per l’Europa tutta sollo il suo propitio nome, Eminentissimo Prencipe, hanno consecratto all’imortalità le loro honrate fatiche, e gli ammirabili sforzi di chiarissimi engegni, non credo se negaràinfimo luogo a questa mia, che dalli confini dell’ Oriente venuta sul merigoio de della Romana Pietà, bench e squallida, e rozza, brama com’ellà può, descrivere li primi alboredella evangélica luce nel vastissimo Regno, ò come essi dicono mondo della Cina risorti. Parmi che l’ampiezza dell’ animo e l’ardentissimo zelo dell’Honor Divino, con quali l’e v. è devenuta non dilo protettrice, ma quasi debitrice à qual si sia opera, e magnanima empreza (...)Suplico humilmente la Divina Maesta, che la protegga e prosperi alla pubica felicità. // Di Vostra Eminenza // humilis Servo // Alvaro Semedo Pri.» A segunda e terceira folhas apresentam os títulos das partes em que se divide a obra, a quarta folha, desta edição, contém a autorização da Inquisição que contrasta com a versão espanhola pela brevidade do parecer do inquisidor como se poderá constatar de seguida:

[edição italiana, 3ª folha, verso]

«Ho con attentione letta la Relatione del regno della Cina scritta dal padre Alvaro Semedo Procurador de’ padre della Compagnia di Giesu in quel Regno. Descrivi egli con accuratezza il paese, esprime esattamente i costumi, riti, el governo de’ popoli habitanti, e minutamente racconta i proresse della Religione Christiana in quelle parti. Non vi hò trovata cosa che repugni alla verità della Fede Cattolica, nè alla purità de’ costumi; e perciò non potendo apportar al lettore se non notitie curiosi, e utili, la stimo compositione degna d’esser data alle stampa. // il Di 8. Decembre 1642 //Pier-Battista Borghi». [edição espanhola, 2ª folha]

Licencia del Ordinario «De comission del Vicario General desta Corte, i su partido, vio este libro el R.P.M. Manuel de Avila de los Clerigos Menores; Consultor de la conmgregacion de los Eminentissimos Señores Cardenales de Indice, Calificador del Consejo de la Inquisicion, i dixo. De Comission de Señor D. Lourenço de Iturrizarra Vicario General desta Corte, he visto cõ particular atencion este libro de las cosas de la China ordenado por el Padre Alvaro Semmedo de la misma compañia. En el no ay cosa cõtra nuestra Fé, i buenas costumbres: antes es una Gustosa, in importanta Relacion, no fabulosa como suelen ser algunas, mas verdadera de las cosas abmirables de aquel estendido i remoto Reyno; como seguramente se puede creer de la religion de su Autor, i de su larga assitência en aquellas partes, trata tambien de los principios, i progressos que ha tenido hasta oy la Predi-

cacion Evangelica allá; (…)Luzgo es obra muy digna de la estampa, i de que se le dè al Publicador della licencia que pide.// En Madrid, i nuestro cõvento del Espiritu Santo de los Clerigos Menores, à 18. de Otubre de 1641 años. Manuel de Avila.// Con esta aprovacion dio su licencia el Ordinario, despachada en el oficio del Notario Ivan Diaz Navarro a 2. de Noviembre de 1641. // Ivan Diaz Navarro.» A folha contém, ainda, o nome do impressor “Imprimatur: // Fr. Reginaldus Luccarinus, Sacri Palatij Apostolici Magister»; e a quarta folha tem a gravura do Padre Álvaro Semedo. As duas folhas seguintes constituem o Proémio, e a sétima folha contém o índice das duas partes em que se divide a obra. Num primeiro momento constatamos as diferenças esperadas em duas edições feitas em línguas diversas e em países diferentes, e essas prendem-se com as autorizações de impressão e a organização das páginas iniciais. No que concerne às dedicatórias, a escolha de um destinatário/paradigma da Companhia de Jesus – S. Francisco Xavier, o Apostolo das Índias – na edição espanhola, pode ser entendida como a necessidade de justificar à própria Companhia a elaboração da obra, almejando aprovação, na medida em que o livro deveria ser entendido como o testemunho da continuação de uma obra que só foi possível graças aos esforços do mestre. Relativamente à edição italiana, torna-se, para nós, natural a escolha de um alto dignatário da Ecclesia, como destinatário da dedicatória, congregando simultaneamente as funções de mecenas e approbatore. Não são, contudo, estas matérias o cerne da diferença; cotejando o

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último parágrafo do prólogo 10 e o penúltimo do proémio 11 , partes do texto onde é apresentada a estrutura da obra, verificamos que na impressão castelhana, o livro encontra-se dividido em três partes: Prólogo [edição espanhola de 1642] fls. 6 e 7, (último parágrafo): «[...] Abreviarèmos lo possible este discurso, fim que dexemos confusa la noticia.// Dividimosle en tres partes. La primera ceñira lo material del Reyno; como Provincias, Tierras, Frutos. La segunda, como formal, Gente, Letras, Costumbres. La tercera el como tuvo principio La Christandad, sus progressos (...)»12. Na versão italiana, contudo, a matéria da obra está estruturada em duas partes tal como nos diz o seu Proemio: Proémio [edição italiana de 1643] pp.1-4 (penúltimo parágrafo): «[...] Trattanto abbreviando al possibile questa informatione, senza però render confusa la notitia che si pretende, dividiremo l’opera in due Parti. La prima conterrà il materiale del Regno cio è le Provincie, Terre, e Frutti; e per così dire, il Formale ancora, cioè le Genti, le Lettere e li Costumi. La seconda, il Principio della Christianità (...)».

A primeira Parte da versão castelhana titulada: «Parte I – Que contiene lo General del Reyno, i de sus Provincias, en sitio, i calidades» está subdividida em três Capítulos, sendo o primeiro «Del Reyno en comun», o segundo «de las Provincias en Particular, i primero de las Aquilonares» e por fim «De las Provincias del Norte». As designações dos três primeiros Capítulos, da primeira parte em italiano, denominada «Dello Stato Temporale della Cina», têm correspondência imediata com a impressão castelhana, pois, intitulam-se «Del Regno comune»; «Delle provincie in particolare, e prima di quelle di Mezogiorno» e «Delle provincie di Tramontana». Contudo, o cotejo da segunda parte da obra em castelhano, e da sequência dos capítulos na versão italiana, leva-nos à constatação que a edição de 1642 amálgama matérias que se encontram separadas na edição de 164313: Como pudemos verificar: em castelhano, a matéria de conteúdo do sétimo capítulo com o título de «De Sus Libros i Ciencias» corresponde em italiano a dois capítulos (X e XI) denominados, respectivamente, «Delli Libri e Scienze delli Cinesi» e «Delle Scienze e Arti Liberali in particolare»; o mesmo se constata no capítulo seguinte, o oitavo, da

versão castelhana, que tem por título «De sus Cortesias, presentes, e Vanquetes» e aparece-nos tripartido em italiano nos Capítulos XII «Delle cortesie de i Cinesi»; XIII «Delli Banchetti» e XIV «Delli Givochi». Também o capítulo nono que trata «De los casamientos, i de los entierros» tem a correspondente bipartida italiana nos capítulos décimo quinto «Degli accasamenti» e no décimo sexto «Delli funerali e Sepolture»; assim como, o décimo primeiro capítulo da tradução castelhana «De las setas, de los sacrificios, i de las supersticiones» congrega dois capitulos italianos «Delle sette della Cina» e «Delle Superstitione e Sacrificÿ»14. Constatamos, também, que o último capítulo da primeira parte da Relação italiana inicia a terceira parte do livro castelhano. Refira-se, ainda, que ambas as edições em apreço contêm no final um índice por assunto15. Mas as diferenças não dizem respeito, somente, à estrutura geral das obras, também, se verificam na divisão dos parágrafos e ao nível dos conteúdos, onde se detectam omissões ou expansões nos textos comparados. São vários os exemplos constatados dos quais retiramos alguns que consideramos pertinente transcrever. Assim, verificamos, a título meramente exem-

_________________ 10

Edição castelhana.

11

Edição italiana.

12

Este parágrafo continua com o texto do último parágrafo da tradução italiana.

13

Em Castelhano, os seis primeiros capítulos da segunda parte têm correspondência com os capítulos IV, V, VI, VII, VIII e IX da versão italiana: «Parte - II - Que contiene lo tocante a la Gente de la China, i de sus Costumbres, i Govierno; Cap. I - De las Personas de los Chinas i de su ingenio, i de algunas inclinacion; Cap. II - De su modo de vestir; Cap. III - De la lenga i Letras; Cap. IIII - Del modo de Estudiar, escrivir, i admitir a examen; Cap. V - Como se hazen los examenes, i dàn los Grados; Cap. VI - Del Grado de Doctor.»; (Em italiano) «Cap. IV - Delle persone Cinesi, della loro naturalezza, ingegno e inclinatione; Cap. V - Del modo di vestire; Cap. VI - Della Lingua e Lettere; Cap. VII - Del modo di studiare Scrivere e ammettere, all’ esame; Cap. VIII - Come si faccia L’esame e si conferiscano li gradi; Cap. IX - Del Grado di Dottore.»

14

Para não tornar muito exaustivo o texto consideraríamos apenas os números dos capítulos na Relação castelhana e os correspondentes na italiana; assim, o cap. XV (cast.) contém os caps. XXIII e XXIV; o cap. XVI (cast.) contém os cap.XXV, XXVI e XXVII (ital.).

15

Na tradução italiana «Tavola delle cose piu Notabilis»; na castelhana: «Tabla de los mas notable contenido en esta Historia de la China».

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ORIENTEOCIDENTE


Álvaro Semedo - Relação da Grande Monarquia …

plificativo16, as seguintes diferenças nos conteúdos das duas edições: No capítulo II17, da edição italiana encontramos a descrição geográfica, com indicações muito pormenorizadas sobre a fauna, flora, e dos povos que habitavam as ilhas Formosa e de Liqueu, e, ainda alusões à ocupação espanhola e holandesa. O padre Semedo refere que esta descrição se fundamenta nas informações do padre Alberto Miceschi, que ali viveu sete anos18. Sobre esta temática não encontramos nenhuma referência na edição espanhola de 1642. De igual modo constatamos que, no capítulo III da edição italiana há uma referência a Bento de Goes, cujo texto ocupa quatro parágrafos19, constituíndo-se como um breve resumo da viagem deste jesuíta, ao tentar encontrar o reino de Cataio. Na edição espanhola, no capítulo III, a mesma referência constitui cerca de quatro linhas de um parágrafo: Edição espanhola (1642), 1ª Parte, cap. III, p. 27: «(...) Este es el camino que llevò Benito de Goes, Hermano nuestro,al ir buscando el Catayo, i parar en la China, porque no ay otro. Todo es de tiesa, i de marisma, menos los ultimos onze dias dèl, distancia poblada de Tartaros.» [...] Edição italiana (1643), 1ª Parte, cap. III, pp. 24, 25 e 26: «(...) qui peruenne il nostro fratello Benedetto Goes, cercando il Regno del Cataio, il qual altro non è che la China stessa. Il cui

viaggio qui breuemente riferiremo. § Partì egli la Quaresima dell’anno 1603. per inuestigare il netto quel che si diceua del Regno del Cataio (...) § In questa città, nobilissima scala di quelli Regni, termina la carauana de Mercanti (...) § Dunque al suo tempo si partì con dicci caualli (...) § Qui mentre si apparecchia al viaggio (...) Tutto il resto del viaggio son paesi di Mori.§ Também, ao cotejar o capítulo III da 2ª Parte da edição castelhana «De la lengua e letras» e o capítulo VI da 1ª Parte da edição italiana «Della lingua e lettere» encontramos uma pequena expansão no texto castelhano; estes segmentos narrativos de carácter explicativo ou valorativo são mais frequentes no texto castelhano do que no italiano no qual se constatam mais expansões de cariz informativo: Vejamos, pois, os exemplos seguintes: Capítulo III da 2ª Parte da edição castelhana de 1642, p. 54. «(...) porque siendo la de acà moldes, que a cada pliego impresso se deshazen, es de allà cortada en tablas con que los libros se quedan siempre vivos en las propias oficinas de que salen, para poderse stampar, sin nuevo dispendio de composicion, todas las vezes que se necessitare dello. Estas oficinas son tantas que hazen parecer a Anvers qualquier ciudad: pero en la bondad no igualan a la de Venecia. Es tierra maritima (...)»

Capítulo VI da 1ª Parte da edição italiana de 1643, p. 47. «(...) perche essendo quella di qua in forma, che ad ogni soglio si disse, quella di là è intagliata in tauole, con le quali i libri restano sempre viui nelle proprie officine; onde ne vienne che si possono stampare senza nuoua spesa di compositione qualunque volta ocorre il bisogno. È paese maritimo (...)». No capítulo XI «Delle Scienze, & Arti Liberali in particolare» da primeira parte da edição italiana encontramos um segmento textual, no fim do último parágrafo, que não tem correpondência no capítulo VII «De sus Libros i Ciencias», da segunda parte da edição castelhana, onde é tratada a mesma temática; assim como, no capítulo XII «De lo Tocante a la Milicia» da segunda parte da edição castelhana, o oitavo e nono parágrafos, e no correspondente capítulo XX «Della Milicia e dell’Armi de Cinefi», primeira parte da edição italiana, parágrafo décimo quinto, não existe uma completa concordância de conteúdo. Pela comparação de excertos na tradução espanhola encontramos referências que não encontramos na versão italiana e, por seu lado, nesta existem informações que são omissas na primeira; no entanto, não nos atrevemos a afirmar qual a mais próxima de um original manuscrito. Edição castelhana, 1642, 2ª Parte, cap. VII, p. 84. [último §] “Agua no prohiben al enfermo, però serà cozida, o chà: el comer si: de modo que si tiene

_________________ 16

Optamos por referir só os exemplos que consideramos de maior pertinência informativa, pois de outra forma correríamos o risco de quase transcrever as duas obras.

17

Nas páginas 16 e 17 deste capítulo.

18

“Racontò il P. Alberto Miceschi, il quale ui dimorò sechianno (...)”; op cit., p. 16.

19

Não faremos a transcrição completa dos parágrafos da edição italiana para não alongar demasiado o texto.

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hambre, le dan dieta ligera: i si no, nadanle dan. Dizen, que estando el cuerpo enfermo, el estomago no està sano: i que la decocion de entonces toda es maligna, i contra la salud. 2ª Parte, cap. XII, pp. 134 e 135. «(...) Pues por qualquier yerro los açotan como niños de escuela. En los exercitos và un letrado, con titulo de Generalissimo sobre todos los Generales. (Nuestra Europa ha bien experimentado, quantos Martes se perdieran desde que les pusieron al cuello los Bartulos) 20. (...) Despachan una compañia; (...) vencem siempre los chinas: i acabou-se la comedia, adonde siempre es vitorioso el casamiéto gran lastima para los chinas: Mayor para los Principes Christianos, que tan facilmente pudieran dominar tanto Imperio: que tã. Mas para que es perder el oleo, i la obra?» 21 Edição italiana, 1643, 1ª Parte, pp. 74 e 75. [último §] “Non prohibiscono l’acqua, però ha de esser corta, ò vero chà: prohibiscono si bene il mangiare; di modo che si l’infermo há fame, há de mangiare leggiermente, e com molta dieta: se non há fame, non si ammazzano che mangi: dicono che stando il corpo infermo, lo stomaco no fa bene l’officio suo, e così la concottione, che all’hora fà, tutt’è maligna, e contro la sanità. La visita gli è subito pagata com prezzo molto moderato, nè ritorna senon lo richiamano, restando così la libertà agli infermi per mutar medico, e chiamarne altri, come

molte volte fanno sino al terzo e quarto giorno, se no veggono effetto delle medicine prese.” 1ª Parte, cap. XX, pp. 126 e 127. “(...) l’educatione manco che meno, perche così bastonano un soldato per qualche errore, come un fanciullo che và alla scuola. La quinta perche negli eserciti sopra tutti li capitani, etiandio Generali va un Generalissimo e officiale di lettere, il quale va sempre ritirato dal nervo dell’esercito, e dal luogo della bataglia, almeno una giornata di camino: si che per dar ordini sta lontano, e per fuggire in qual sivoglia caso pericoloso sta prontissimo 22 (...) Mandano poi li cinesi soldati incontro: incontrandosi toccano le Lance e spade come si fuoli in una comedia; nè si fa più di questo, poco più ò meno.» 23 De igual modo se verifica, na edição castelhana, a integração de pequenos segmentos textuais com função de conectores discursivos permitindo assim uma coerência textual entre capítulos amalgamados. No sentido de um melhor entendimento, permitimo-nos apresentar alguns exemplos. No primeiro capítulo da primeira parte da edição italiana, Semedo faz uma descrição geral do reino da China, e quebra o texto para realçar algumas das suas particularidades. No correspondente primeiro capítulo da primeira parte da edição castelhana, a referida quebra não foi feita, mantendo-se o texto cursivo, sem qualquer destaque. Também, entre os temas cortesias e banquetes que na edição italiana são

tratados em capítulos distintos, na edição castelhana integram um único capítulo assegurando-se a coerência e coesão textual com um pequeno segmento textual. O mesmo se verifica na amálgama dos casamentos e enterros em castelhano, matérias que são tratadas separadamente em italiano, conforme se poderá constatar na seguinte transcrição: Edição castelhana (1642), 1ª Parte, cap. I, p. 6. “(...) En todas, pero, se vive poco mas amenos, sin que falten largas i felizes vidas, porque ay muchos i vigorosos viejos. Digamos algo en particular. Es tan copioso este Reyno (...)”. 2ª Parte, cap. VIII «De sus cortesias, presentes, e vanquetes», p. 91. [fim do § do tema cortesias] “(...) se há de dar al criado un real. De modo, que para llevar èl pocos, seria menester que su amo despendiesse muchos. [texto de ligação (sublinhado) e inicio imediato da matéria dos banquetes] “Entren aqui los vanquetes que son presentes de que se logra algo com màs seguridad el que dà. Gastate en ellos mucha hacienda (...)”. 2ª Parte, cap. IX «De los casamientos, i de los entierros», p. 104. [fim do § do tema casamentos] “(...) como son los Infantes Que cum , Chu Hui , Heupe , Chei , Hei.” [texto de ligação (sublinhado) e início imediato da outra temática] “Si al casar se sigue el nacer, i al

_________________ 20

Esta parte do texto, que está entre parênteses no original, não se encontra na edição italiana. [sublinhado nosso].

21

Edição espanhola, p. 135. [sublinhado nosso] omissa na edição italiana.

22

Esta última parte do texto é omissa na edição espanhola. [sublinhado nosso].

23

Edição italiana, p. 107.

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Álvaro Semedo - Relação da Grande Monarquia …

nacer el morir, màs indubitablemente que el nacer al casar: sigase la relaciõ de la muerte e la de la vida. Puesto que los chinas en mucho coincidieron (...)”.

felici vite ritrouandouisi molti e vigorosi vecchi. Dichiamo qualche Cosa in Particolare E si copioso questo regno (...)”.

No que se refere aos capítulos XVIII e XIX, respectivamente «Delle sette della Cina» e «Delle superstitione e sacrificÿ», que têm a sua correspondência em castelhano no capítulo XI «De las setas, de los sacrificios, i de las supersticiones», as matérias encontram-se de tal modo misturadas, na edição de 1642, que a visualização da diferença passaria pela transcrição integral dos referidos capítulos, o que consideramos pouco viável; assim, optamos pela simples menção.

1ª Parte, cap. XII «Delle cortesie di Cinesi», p. 83. [fim do último §] “(...) dicono douersi dare al seruitore vn giulio, e cosi à proportione del resto.”

Gostariamos, ainda, de referir que o capítulo XIV «Delli givochi, che vsano li Cinesi», que consta da edição italiana, e cujo tema é desenvolvido em onze parágrafos, não figura na edição castelhana, nem a esta matéria é feita qualquer alusão; também não existe na edição castelhano qualquer referência ao “Testamento del nostro Imperatore Vanlio il quale obedendo al Cielo, he dato il suo Imperio in mano de’Posteri”24, texto que finaliza o capítulo X «Del entierro de la Reyna Madre» da edição italiana. Edição italiana (1643), 1ª Parte, cap. I, p. 6. “(...) In tutte però si viue ò meno senza mancarui delle lunghe e

Cap. XIII «Delli Banchetti», p. 84. [Inicío do 1º §] Molto tempo e robba si consuma nelli banchetti (...)”. 1ª Parte, cap. XV «Degli accasamenti», p. 90. [fim do capítulo] “(...) Cosi sono gl’Infanti chiamati Que Cum, Chu Hui, Heupe, Chei, Hei.” Cap. XVI «Delli funerali e sepolture», p. 90. [Início do 1º §] “Quantunche i Cinesi in molte cose, di quelle che toceano alla vita (...)”. Embora não tivessemos esgotada toda esta temática, entendemos que era importante considerar alguns exemplos, ainda que aleatórios, demonstrativos de uma certa singularidade em cada uma das edições. Se considerarmos, no contexto geral da obra, a maior pertinência textual, poderiamos sugerir, a título pessoal, que a forma de estruturação discursiva da edição italiana permite uma melhor

organização temática da obra. Por outro lado, o facto de a edição castelhana conter mais ápartes discursivos de cariz valorativo e omitir segmentos significativos de informação sobre os costumes chineses, poderá indicar que se intentava alcançar públicos diferentes. Este ponto de vista não deixa de ser, por enquanto, uma mera especulação. Após a publicação das duas edições a Relação de Semedo alarga o seu percurso Europeu, mas tendo, sobretudo, como hipotexto a publicação italiana de 1643; uma tradução francesa surge, em 1645, com o título de: Histoire Universelle du Grand Royaume de la Chine e cujo rosto refere: “Composée en italien par le P. Alvarez Semedo, Portuguais, de la Compagnie de Jésus. Et traduite par Louis Coulon, P. Divisée en deux parties. À Paris, chez Sebastien Cramoisy et Gabriel Cramoisy, 1645”25. Em 1667 é feita, ainda em língua francesa, uma nova edição da obra com o título: Histoire Universelle de La Chine, em cuja folha de rosto consta: «Par le P. Alvarez Semedo, Portugais. Avec l’Histoire de la Guerre des Tartares, Contenant les Revolutions arrivées en ce Grand Royaume, depuis quarante ans: Par le P. Martin Martini. Traduites nouvellement en François. A Lyon, chez Hierosme Prost [...] MDCLXVII»26. No atinente à tradução francesa, consultamos a edição de 166727, e ve-

_________________ 24

Este texto, originalmente em chinês, foi vertido para italiano por Semedo, segundo o próprio. Cf. Edição italiana, p. 108.

25

Segundo Louis Pfister, SJ, “Le P. De Semedo à composée (...) Relatio de Magna Monarchia Sinarum ou Histoire Universelle de la China, in-4º, Paris 1645. Elle avait été composée en Portuguais. Voici le titre de l’edition Portuguese: Relação da Propagação da Fé no Regno da China e outros Adjacentes, in-4º, Madrid, 1641- Manuel de Faria y Sousa a revu cet ouvrage, l’a disposé dans un outre ordre, et l’a publié sous le titre de: Imperio de La China i Cultura Evangélica en él por los Religiosos de la compañia de Jesus, in-4º, Madrid, Jean Sanchez 1642. Cette Histoire a eu plusieurs éditions et diverses traductions. (...)”. Notices biographiques et bibliographiques sur les jésuites de l’ancienne mission de Chine 1512-1773. Nendeln, Kraus – Thomson org. 1971, 2º vol, reimpressão da edição de Chang-Hai, 1932; p. 41.

26

Esta Edição serviu também como referência ao presente trabalho; encontra-se na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, com a cota [UCBG V.T. -8-2-5].

27

Editada em Lyon.

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rificamos, que esta é uma tradução feita a partir da primeira edição italiana, contudo, contém uma terceira parte sobre a guerra dos Tártaros, da autoria do padre Martin Martini. A obra denomina-se, conforme a folha de rosto: «Histoire Universelle de la Chine // Divisée en trois Parties// Histoire Universelle de la Chine, par le P. Alvarez Semedo, Portuguais // avec l’ Histoire de la Guerre des Tartares, contenant les revolutions arrivées en ce grand Royaume, depuis quarant ans: Par le P. Martin Martini // Traduits nouvellement en Français // A Lyon // Chez Hierosme Prost, Rüe Merceciere, au Vase D’or // M.D.CLXVII//». A Dedicatória é do impressor, Hierosme Prost, e tem como destinatário, Monsieur Jaques Gayot, conselheiro do Rei. Esta edição não tem o proémio, nem índice final, tendo, contudo, o índice geral e uma pequena nota aos leitores, na quarta página. De um modo geral, pareceu-nos estar, esta tradução, conforme a edição que lhe serviu de base, mantendo na primeira parte, os trinta e um capítulos correspondentes à descrição do Estado Temporal da China e, na segunda parte, os

treze capítulos que referem os percursos de evangelização naquele império. Também se conhece uma versão em língua inglesa da obra do Jesuíta, publicada em Londres, em 1655, onde aparece na folha de rosto: « The History of that Great and Renowned Monarchy of China . Lately written in italian by F. Alvarez Semedo, a Portuguese. Now put into English by a Person of quality (...) to satisfy the curious, and advance the trade of Great Britain». De outros percursos dão-nos conta as várias edições ou reimpressões que continuam a surgir na Europa: a versão italiana da obra de Semedo teve uma reimpressão em Roma, em 165328, e outra em Bolonha em 1678. A tradução castelhana teve no mesmo ano uma segunda impressão29 e foi reimpressa, em 1731, pela Officina Herreriana em Lisboa30. Durante quase um século a divulgação e a recepção da Relação foi uma realidade31, tendo em conta as notícias de várias edições e reimpressões e, por isso, prova-

velmente tenha servido de fonte a posteriores obras sobre o Império do Meio, nomeadamente no que concerne à obra de António Gouveia, dada à estampa em 1644, e à do Padre Gabriel de Magalhães de 1668, cumprindo simultaneamente algumas das finalidades que consubstanciaram e motivaram a sua feitura: – Dar a conhecer o trabalho de missionação que a Companhia de Jesus estava a desenvolver no Oriente, informação pertinente se tivermos em conta a pressão que as outras ordens religiosas mantinham no Vaticano para retirar aos Jesuitas a evangelização da Ásia; – Dar o testemunho real das terras chinesas, repor algumas verdades, completar outras e confirmar a veracidades do que poderia ser tido como fantasia; neste sentido é o seu conhecimento da realidade, a sua vivência de vinte e dois anos na China, a sua fonte preferencial, aquela que o autor referencia explicitamente como substância do narrado.

_________________ 28

Existe na Biblioteca da Ajuda um exemplar desta reimpressão titulado: Historica Relatione del Regno della Cina, Roma, 1653.

29

Existe um exemplar desta reimpressão na Biblioteca da Ajuda, com a seguinte folha de rosto: «Imperio de la China i Cultura evangelica en él por los Religios de la Compañia de Jesus Compuesto por el padre Alvaro Semmedo, Procurador General de la propia Compañia de la China embiado desde allà a Roma el año de 1640. Publicado por Manuel de Faria i Sousa. Cavallero de la Ordem de Christo i de la Casa Real. Ofrecido a D. Marcelino de Faria i Guzman, del Consejo de su Magestad, i su Alcalde de Corte de la Real Audiencia de Sevilla, i Visitador general de las minas de España. Segunda Impression. impresso por Juan Sanchez en Madrid. Año de 1642 [...]».

30

Encontra-se um exemplar na Biblioteca Nacional: Imperio de la China y Cultura Evangelica en Él [...]. Lisboa Occidental, Officina Herreriana 1731. Com a seguinte folha de rosto: «Imperio de la China// y Cultura Evangélica En El,// Por los Religiosos de la Compañia de JESUS,// Sacado de las noticias del Padre Alvaro Semmedo de la propia Compañia,// Por// MANOEL DE FARIA Y SOUSA,// Cavallero de la Orden de Christo, y de la Casa Real,// DEDICADO // a la Magestad Augusta DelRey // D. JUAN V.//Nuestro Senor. // Lisboa Occidental // En la Officina Herreriana. // M. DCCC.XXXL.// Con las lisencias necessarias.»

31

Segundo Inocêncio Francisco da Silva: “Foi tão bem aceite esta relação, que todas as nações da Europa se apressaram a transportá-la para os seus idiomas; o que prova pelas traduções que d’ella se fizeram, a saber: Em italiano, com o título: Relazione della grande monarchia della Cina, Roma, 1643, adornada com o retrato do auctor, e reimpressa ibi, 1653; Em Francês, com o título: Histoire Universelle du Grand Royaume de la Chine, composée en italien par le P. Alvares Semmedo, et traduit en notre langue par L. Coulon, Paris, 1645, reimpressa em Lyon, 1667; Em inglez: History of the grande and renowed monarchy of China, London, 1665, fol. illustrada com mappas e retrato do auctor, da qual Barbosa declara ter tido um exemplar, reimpressa ibi, 1665, (...)”. [o título está conforme o texto]. Diccionario Bibliographico Portuguez, Lisboa, ICNM, 1973 [25 Volumes]; Tomo I, p. 50.

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Identidade macaense:

retratos impressionistas de espaços e ambiências em “Os Dores” de Senna Fernandes Margarida Conde Mestre em Língua e Cultura Portuguesas, na variante de Estudos Linguísticos pela Universidade de Macau

I. PROPÓSITO

“O lugar onde está a família é o sítio de onde se é.” In, O Olhar de Henrique de Senna Fernandes: Fragmentos Levando em conta o enorme sucesso que Senna Fernandes obteve primeiro em Macau, posteriormente em Portugal e no exterior mundo lusófono, nomeadamente no Brasil, pretendemos, com este trabalho, destacar alguns pontos centrais da identidade macaense concebida pelo romancista, através da construção de personagens e de espaços e ambiências de Macau que servem essencialmente de pano de fundo aos percursos das personagens centrais – Leontina das Dores e Lucas Perene –, e ao estatuto social de duas famílias de relevo, protagonizadas nesta narrativa. As conjunturas ambientais, que destacamos no romance “Os Dores”, evidenciam o aspeto económico e sociocultural das personagens e, por contiguidade, as vertentes por que tem passado a sociedade macaense, protagonizada através das figuras

em questão. O enfoque do nosso trabalho tem como propósito o esboço de um retrato da comunidade e simultaneamente da própria cidade que, com os seus macros e micros espaços, permite ser apontada como uma real protagonista. Entendemos que estudar as questões inerentes à significação do espaço pode levar também ao delineamento, mesmo que de forma não factual, de um panorama histórico da realidade social do início do século XX, que Senna Fernandes recria de uma forma artística, configurando espaços anteriores aos atuais ou, ainda, o retrato de alguns aspetos de Macau que têm prevalecido perante a modernidade. Adotamos o conceito de Lins na distinção entre espaço e ambiência: “Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos a nossa experiência do mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa.” 1 Seguimos António

_________________ 1

LINS, Oman. Lima Barreto e Espaço Romanesco. 1976, pág. 77.

2

DIMAS, António. Espaço e Romance. 2ª ed., São Paulo: Ática, 1994, pág. 20.

3

SENNA FERNANDES, Henrique de.2012. Os Dores. Fundação Oriente, pág. 18.

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Dimas na elucidação sobre o conceito de Lins quando diz que “o espaço é denotado; a ambientação é conotada. O primeiro é patente e explícito; o segundo é subjacente e implícito. O primeiro contém dados de realidade que, numa instância posterior, podem alcançar uma dimensão simbólica.” 2

II. RETRATOS DE UMA COMUNIDADE 1. Espaço e condição social das famílias protagonizadas Macau aparece retratado em microcosmos sociais onde as personagens e respetivas famílias são neles distribuídas segundo dois princípios de diferenciação: o económico e o cultural. A relação entre espaço e a condição social é bem notória, logo no início da obra, quando a protagonista, Leontina, é descoberta por Policarpo e pelo seu filho, Floriano: “Que mistério, aquele, o de uma garotita de traços caucásicos, no meio da petizada chinesa?”; para mais adiante se vincar a urgência de “Tirá-la daquele ambiente” 3 e integrá-la num espaço adequado à sua natureza étnica.


Identidade macaense ...

Salientamos que o tempo histórico é o da época em que a cidade se dividia em duas zonas: a cristã e a chinesa, com contornos físicos bem delineados, assim como as ambiências humanas e culturais bem definidas. As duas comunidades habitavam espaços próprios que não se cruzavam, mas que no decorrer da narrativa se vão entrelaçando conforme a miscigenação vai sucedendo, situação de Angélica, irmã de Lucas Perene, que desapareceu na cidade chinesa com um jovem violinista chinês; e nas situações de marginalização de personagens, caso de Lucas Perene e Leontina das Dores. Do mesmo modo, as famílias macaenses são integradas também num espaço condizente ao seu status económico e social.

Igreja de Santo Agostinho.

1.1. Nesta sequência, o lar da família Policarpo, para onde foi levada Leontina, protagonista central, na condição de crioula da casa, aparece-nos situado na Calçada do Tronco Velho e a descrição dos trajetos diários, efetuados em espaços circundantes da cidade, como a Rua Central, a zona dos Mouros e a Igreja de Sto. Agostinho, indicia que os Policarpos são delineados pelo autor como uma família de classe média. Assim

Rua do Padre António.

o revela também a descrição da sua habitação constituída por rés-dochão e primeiro andar, com pedra de granito à entrada, indicadores de certa abastança e posição social.4 E dentro de casa, tal como na sociedade, perduram as hierarquias. Na casa de dois pisos dividida em duas alas, o narrador focaliza a ala das mulheres, com destaque para o quarto das filhas, o quarto de costura, a cozinha, o quintal e um quarto de arrecadação paredes-meias com a dependência das criadas, o grupo habitacional mais baixo. O quarto de Leontina, cubículo, onde cabia uma cama de ferro estreita e um armário diminuto, localiza-se numa divisória à parte, não se enquadrando em nenhum dos grupos sociais que a habitam: ”A única diferença que tinha dos verdadeiros criados, era de comer na cozinha, numa mesinha à parte, os restos da comida dos patrões, porque era uma crioulabranca.” 5 1.2. A mansão dos Madrugas, situada na rua do Padre António,

zona de macaenses enriquecidos, chama a atenção pela beleza arquitetónica como convém a uma classe de estirpe superior. É a propósito do convite para jantar de D. Emília Madruga, feito ao casal Policarpo, que o narrador nos descreve a habitação com os mais ínfimos detalhes: toda ela era branca, uma imitação vaga da casa minhota, com três pisos e muitas janelas pintadas de verde-azeitona, sendo o último um terraço, onde se situam os aposentos do casal e da filha Elfrida – personagem dotada de intervenção mínima na ação –, mas que vai ocupar alguma relevância na estrutura narrativa por funcionar como um impedimento à realização dos sonhos de Floriano. A representatividade histórico-social desta família macaense é assinalada pela existência de um brasão a meio do jardim, por um portão de ferro forjado, escadaria de granito, reveladora de opulência e riqueza, e alpendre suportado por duas pedras também de granito. A porta de entrada de teca lavrada e uma aldrava na porta, à semelhança das casas senhoriais

_________________ 4

Ibid., págs. 29-31.

5

Ibid., págs. 33-34.

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portuguesas, constituem símbolos de um elevado estatuto social e económico que se enaltece através da arte de bem receber de que a família fazia apanágio: “Isto aumentava-os em prestígio, pela maneira calorosa e hospitaleira como sabiam ser anfitriões. Uma vez penetrados nos domínios da casa, quebravam-se as distâncias de classe e ficava-se com a grata sensação que eram todos iguais.” 6 Através dos olhos extasiados dos Policarpos – Remígio, Glafira e Floriano – pouco habituados a tanto requinte e luxo, porque provenientes de uma classe mais baixa, é-nos dado conhecer o ambiente interior da sala dos Madrugas: sala vasta, com sofás e poltronas luxuosos e pesados, mesinhas que se espalhavam, ostentando ornamentos de porcelana valiosos; retratos a óleos, nas paredes, dos pais dos donos da casa; outros quadros de paisagens e naturezas mortas; uma falsa lareira com pratos da Companhia das Índias, colocados em cima; abatjours junto dos sofás e lustres de teto.7 A entrada na alta sociedade começava a esboçar-se e o tão desejado sonho de Elfrida e Remígio começava a concretizar-se, devido ao declarado namoro de Floriano e Elfrida Madruga.8

2. Construção das personagens e suas ambiências. Consideramos os elementos das famílias protagonizadas – Policarpos e Madrugas – de personagens _________________ 6

Ibid., pág. 108.

7

Ibid., ibidem.

8

Ibid., pág. 113.

9

Ibid., pág. 29.

10

Ibid., pág. 30.

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planas, por incidirem nos mesmos gestos e comportamentos, enunciarem discursos que variam pouco, suscetíveis de serem entendidos como marcas manifestadoras. Nesse sentido, revelam uma certa tendência para se identificarem com tipologias humanas de certa representatividade social. Na diegese, revelam-se previsíveis quanto ao seu comportamento, intermediando as ações e girando ao redor das personagens principais como seres complementares, dando suporte à continuidade da história. 2.1. Remígio Policarpo e Glafira

i. “Repugnava-lhe dar o passo fatal para o casamento e assim se passaram alguns anos. Numa festa de Carnaval, encontrou Glafira, encantou-se com ela, com quem dançou praticamente toda a noite. Seis meses depois, com vinte e quatro anos e ganhando ainda modestamente no Tribunal, casou-se com ela.” 9 Remígio Policarpo e Glafira incorporam uma classe média com pretensões de ascensão social, através do casamento dos filhos. Como escrivão de Direito, Remígio é caraterizado como uma figura do Tribunal, trajando sempre de preto nas horas de serviço, estatura mediana, cabelo empoado de grisalho com ar austero. O narrador releva na sua educação, adquirida no Seminário de S. José, o domínio perfeito do português; o conhecimento do latim e francês; a aquisição linguística em inglês. Acentua no patuá o traço denotador

de iliteracia, e ao chinês confere-lhe um estatuto de menorização por o considerar apenas necessário a uma comunicação elementar com os criados. Focalizado como homem bom, caridoso e de magnífico coração no resgate de Leontina, vem posteriormente a ser caraterizado de covarde e fraco perante a obstinação da mulher em expulsá-la de casa. Na época existia um preconceito em relação às crianças enjeitadas, as bambinas, que eram recolhidas pelas madres canossianas – este preconceito é suportado através da oposição aguerrida dos elementos femininos desta família à protagonista. Salientamos a forma de apreciação do narrador sobre as mulheres da família Policarpo, nem deslumbrantes nem tão pouco inteligentes, descritas de acordo com o estatuto médio da classe social a que pertencem: Alzira, a filha mais velha da família tornou-se uma jovem obesa, sem cintura, nem elegância no andar e, mais ainda, preguiçosa. Feliciana, vistosa e vaidosa, com vontade de aprender, essencialmente o inglês, enlevava os pais que sonhavam para ela um casamento de conveniência com algum rapaz da Praia Grande para, deste modo, poderem frequentar os espaços e ambiências que lhe estavam interditos.10 Remígio era um homem ambicioso que mantinha um desgosto secreto, o de nunca ter sido convidado pelo governador para as festas do Palácio do Governo.

ii “A prima Glafira fora uma desilusão, tão diferente (...) Cada vez mais magra e aguda, era irritadiça,


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consumida de ciúmes imaginários, corroendo a paz do marido.” 11 D. Glafira é formatada segundo os moldes de uma mulher de igreja que se dedica, em pleno, a várias obras assistenciais. De interesse referir que a sua instrução não foi além da terceira classe, visto na época ser prioritário a formação de boas donas de casa e “mães de família” para assegurar descendência e perpetuar os apelidos dos maridos.

O narrador realça um aspeto negativo na religiosidade de Glafira: a falta de caridade em relação à criança enjeitada, evidenciando uma prática religiosa de ocasião, muito comum nos dias de hoje e de antigamente.

“Batem o peito diante dos altares e têm certamente calos nas rótulas de tanto ajoelharem. Você, Glafira, pratica ostensivamente a caridade, mas, pelos vistos, ela é só para o Governador e o Bispo verem.” 14

Mulher de preconceitos, vivia sob o estigma de falta de beleza e de cultura, pois apenas falava o patuá, sentindo-se, por isso, inferiorizada. Vemos o seu comportamento social acompanhar a ascendência profissional do marido quer a nível de vestuário, quer a nível de postura física: “Quando o marido se elevou para a categoria de Escrivão de Direito, a mulher modificou-se. Fora do círculo íntimo dos parentes e dos amigos, passou a exigir o tratamento de D. Glafira. O pescoço tornou-se mais duro no cumprimento e melhorou na apresentação.” 12 Apesar dos esforços, Glafira não consegue atributos suficientes para ser apreciada no seio da comunidade macaense; teria de falar corretamente o português, mas apenas falava o patuá; tinha de possuir alguns atributos físicos e esta revelava uma magreza excessiva, uma vez que “Nem medicamentos, nem fortificantes ou mezinhas chinesas alteraram o seu perfil de “tábua andante.” 13

mem macaense. Senna Fernandes, através desta personagem, enobrece-o no empenho do cumprimento de promessas feitas:“– Prometo-te filho.”; “Se ninguém a reclamar, tenho direito para isso, não sairá desta casa que pode manter mais uma boca.” 15 Atos de honradez, caridade e amor ao próximo eram sintomas de bons princípios morais de que um macaense se orgulhava e que transmitia aos filhos. É através desses valores que Remígio convence as mulheres da casa, argumentando: “– Podia deixá-la neste estado de miséria e virar-lhe as costas? Que homem seria eu então?” 16 Deste modo, Leontina permanece no lar dos Policarpos de acordo com a promessa de Remígio ao filho, sob a condição de “crioula”, mas este facto não a vai impedir de ser maltratada e espezinhada, acabando por ser expulsa passados seis anos.

2.2. Sebastião e Emília Madruga

i. “Sebastião e Emília Madruga, altos, entroncados, soberanamente chiques sem espalhafato, ele meio palmo mais alto, ambos emanando a força que a saúde e o dinheiro conferem.” 17 Seminário de S. José.

Neste contexto, é valorizada a palavra dada por Remígio ao filho Floriano; e a não cedência à execução da vontade da mulher e das filhas mostra um pouco da idiossincrasia do ho-

Ao representante de uma classe social elevada, de macaenses endinheirados, com prestígio e influência em Macau, Senna Fernandes traçalhe o perfil de uma forma muito singular: fisicamente com cinquenta anos, alto, entroncado, soberana-

_________________ 11

Ibid., pág. 39.

12

Ibid., pág. 29.

13

Ibid., pág. 30.

14

Ibid., pág. 22.

15

Ibid., pág. 26.

16

Ibid., pág. 22.

17

Ibid., pág. 108.

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mente chique sem espalhafato com nariz aguçado e boca prognata que se evidenciam negativamente num rosto harmonioso. Mas é na sua força de caráter que o narradorautor primazia, como convém a um perfil de aristocrata “(...) era um perfeito cavalheiro. Maneiras distintas, que lhe saíam naturais, afável com as senhoras que se deliciavam da sua palavra, bom conversador, genial no bridge e no póquer, aparentemente sempre bem-disposto, cultura amassada pela experiência e pela boa leitura, era um marco na sociedade local.” 18 O perfecionismo no domínio da língua portuguesa, adquirido através do Seminário de S. José; uma educação inglesa, adquirida em Londres e, finalmente o casamento com a bela e orgulhosa Emília Albuquerque, dos Albuquerque da Praia Grande, zona em que residia a classe mais fina da comunidade macaense, são traços relevantes de Sebastião Madruga. A acrescer o desprendimento de cargos e honrarias, porque o seu berço não exigia mais demonstrações de poder, como bem dizia a sua mulher: “– Nós somos. Os outros pretendem ser ou nunca serão.” 19

ii. “Não gozava de simpatias, o seu porte altaneiro, insuportável de soberba.” 20 Emília Madruga aparentada com algumas casas fidalgas de Portugal, pertencia à aristocracia do bairro de S. Lourenço. Descrita como perigosa no seu ódio, mas boa e generosa para quem gostasse, impunha-se perante as outras mulheres que a respeitavam pelo seu ar altaneiro e _________________ 18

Ibid., ibidem.

19

Ibid., pág. 93.

20

Ibid., pág. 92.

21

Ibid., pág. 94.

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Praia Grande.

pela sua posição social. Ao contrário de Glafira, Emília era uma mulher culta, falava inglês, francês e tocava piano, falando apenas o patuá com as mulheres de Macau e o português com os metropolitanos. Glafira soube atrair as atenções desta aristocrata, fazendo-se notar pelo trabalho e eficiência no desempenho das funções relativas à paróquia de Santo António. Admitida no círculo restrito de Emília Madruga, Glafira torna-se seletiva na escolha das amigas numa atitude ofensiva, esquecendo as amigas de infância e de escola, com o propósito de ascensão no meio social e religioso. Sem diferenciação de género, na sociedade macaense descrita em “Os Dores”, interessava a uma família de classe média a integração e aceitação numa classe social mais elevada que, por vezes, era conseguida através de laços de amizade ou de casamento entre filhos. Emília gostou de Floriano, do seu porte de gentleman, com qualidades e postura

para furar barreiras e casar-se com a sua filha Elfrida. Por sua vez “No fundo, Remígio lisonjeava-se com aquela amizade, um trampolim para, mais dia, menos dia, se aproximar do grande Sebastião Madruga.” 21 E tudo era programado em função do prestígio social e ingresso na dita aristocracia da época.

3. Configuração de tipologias modeladas Pelas suas potencialidades psicológicas, pela representatividade no universo diegético encontramos tipologias modeladas nas seguintes personagens: Floriano, Leontina e Lucas Perene. O fator mais distintivo destas personagens é o facto de elas se revestirem de complexidade suficiente para constituírem personalidades bem vincadas, às quais se dá relevo pela sua peculiaridade. A sua imprevisibilidade permite revelar gradualmente os seus traumas, vacilações e obsessões, que constituem


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os principais fatores da sua configuração.

3.1. Floriano

i. “Falhara nas esperanças duma licenciatura, falhara na futura esposa ao aceitar uma noiva que, no fundo não desejava, como moeda de troca, e falhara na confiança e na ternura fiel dessa moça (…) e só tivera o defeito de ser pobre e filha de ninguém. Nitidamente, lembrava-se agora que jurara protegê-la.” 22 Aos onze anos de idade, é delineado com características psicológicas bem marcantes na sua personalidade. Vemo-lo atuar maduramente, durante as negociações com a velha chinesa no resgate de Leontina. A força psíquica e de carácter é visível através da forma como a mãe o admira e respeita. Sabe argumentar de forma convicta, falar ao coração e evocar a devoção de D. Glafira pela Nossa Senhora das Dores para a fazer fraquejar, na rejeição obstinada à crioula.

“Nós não somos gente sem coração, mamã. Somos pessoas de bem. A Nossa Senhora das Dores por quem a mamã tem grande devoção – as mais belas flores da casa ornamentam a sua imagem – não aprovaria certamente um ato tão cruel.” 23 E o esboço de herói romântico começa a definir-se, quando num

gesto de carinho, Floriano lhe pega na mão peganhenta com o intuito de a confortar e proteger, surgindo a personagem que ocupará na obra um papel fulcral em relação à intriga. A atração do homem macaense pelas mulheres de traços orientais está bem configurada nesta passagem: “Examinando-a assim de perto, como prometia ser formosa! Lábios cheios, docemente simétricos, (…), malares suavemente salientes, olhos, quando abertos, de amêndoa grande. Rosto em oval, sobrancelhas arqueadas muito espessas.” 24 À semelhança das personagens masculinas desta obra, nomeadamente do pai, de Sebastião Madruga e de Lucas Perene, Floriano teve uma excelente formação, adquirida no Seminário de S. José, que sempre incutiu nos jovens uma forte ligação a Portugal: “Com onze anos apenas, já alimentava ambições. Uma delas era de ir estudar a Portugal, país de que os padres mestres tanto falavam exaltando o amor pátrio.” 25 Esse amor a Portugal, traço identitário dos macaenses, encontrado nos protagonistas masculinos, é defraudado perante a obstinação dos pais em casá-lo com Elfrida, a filha dos Madrugas, inviabilizando este anseio antigo: “– Deixemo-nos de romantismos. O melhor curso que podes tirar é casares-te com Elfrida Madruga.” 26 Dentro de Floriano ruiu o pedestal de nobreza e honestidade e o pai transformava-se num vendilhão que o vendia a ele, im-

pulsionado pelas melhores intenções. A relação entre ambos foi afetada, criando-se um clima de mágoa e retraimento. Salientamos que esta meta de vida dos jovens macaenses, a de irem para Portugal para se licenciarem é um denominador comum nas personagens masculinas de “Os Dores”. Encontramo-la em Lucas Perene, obstruída por oposição do seu pai; e em Remígio por falta de meios económicos, devido à morte do seu progenitor e à obrigação de angariar o sustento da família. Floriano não luta pelos seus ideais, de cabisbaixo, perante o pai, conforma-se com o casamento de conveniência; também não reagiu, com medo de se denunciar, quando a mãe acusa injustamente Leontina de ter seduzido o irmão Marcolino: “O coração doía-lhe. Mas, com toda a crueza, a realidade era esta. Se ela não podia aspirar a mais, era melhor sair mais cedo que tarde demais.” 27 Por sua vez Remígio, para não contrariar a mulher Elfrida e ter paz em sua casa, faz cedências de que se sente culpado e “sente-se envergonhado pelo procedimento ignóbil”28 por ter consentido um tratamento injusto e empedernido em relação a Leontina. Destacamos nestas personagens a fraqueza e covardia por desistirem perante os obstáculos, aceitando os factos adversos como irreversíveis.29

_________________ 22

Ibid., pág. 121.

23

Ibid., pág. 22.

24

Ibid., pág. 50.

25

Ibid., pág. 31.

26

Ibid., pág. 105.

27

Ibid., pág. 53.

28

Ibid., pág. 68.

29

Idem, ibidem.

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3.2. Leontina “Filha de ninguém, crioula rejeitada de uma casa farta, bambina de convento …”30 São estes os ingredientes com que o narrador apresenta a sua heroína que ocupará sistematicamente a nossa atenção ao longo da diegese. Abandonada pelos progenitores e entregue a uma velha chinesa que habitava uma cabana perdida em Coloane, surge-nos, no início da narrativa, incrivelmente suja e esfarrapada, exibindo maus-tratos nas pernas e braços com chagas, quando descoberta por Floriano, após um dia de pesca. O narrador debruça-se particularmente atento sobre estes elementos psicossociais que justificarão o comportamento futuro de Leontina, no que concerne à sua relação com os vários espaços e ambiências e irão constituir prova da sua centralidade cuja existência diegética se distribuirá por fases bem definidas.

i. Na Calçada do Tronco Velho, nunca aceite, vive diariamente sob o estigma da rejeição, tendo alguma proteção de Floriano e Remígio que impediram que fosse enviada para a Casa de Beneficência. Através da configuração desta personagem, o autor dá-nos a conhecer uma questão de relevo da comunidade macaense do século passado – a de uma geração de “filhos da terra” desprovidos de ancestrais históricos, filhos ilegítimos, de mãe chinesa e pai Kuai lou, sem o passado identitário encontrado nos Policarpos ou Madrugas. _________________ 30

Ibid., pág. 210.

31

Ibid., pág. 37.

32

Ibid., pág. 47.

33

Ibid., pág. 58.

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Coloane.

As repercussões do fenómeno da ilegitimidade na sociedade encontram-se configuradas na atitude de Glafira e na secura de trato de Remígio, comportamentos denunciadores dos preconceitos da época.

ii. Apesar de sobrevivente numa casa hostil, o autor sobrevaloriza no desenho da sua heroína o traço principal da identidade macaense: a língua portuguesa. Primázia Crescência, prima de Glafira, “puxando pelos colarinhos da família” e argumentando que “era inconcebível que na casa de um escrivão de Direito existisse uma crioula-branca completamente analfabeta”31, conseguiu pô-la a falar e a escrever corretamente português, estabelecendo um contraste com as filhas da família. A reprimenda do puxão de orelhas, as vergastadas e a recomendação: “– Afasta-te do meu filho … Percebeste?”32 não a impediram de viver com Floriano no coração; e na formação da sua personalidade, começa a esboçar-se uma mulher determinada. iii. O desígnio de ir para a Casa da Beneficência das Madres Canos-

sianas cumpriu-se. Devido a uma maldade de Marcolino, filho mais novo, de treze anos e estragado de mimos, tornou-se bambina ou “rapariga de convento” a palavra tão terrificamente tenebrosa com que foi amedrontada durante todos aqueles anos. Remígio entregou-a às madres sem um beijo ou o mais pequeno carinho, mas com um camuflado sentimento de culpa: “Encontrara-a abandonada e sozinha numa praia obscura e agora abandonava-a, também sozinha, a descartar-se duma responsabilidade, apenas para ter paz no seu lar e livrar um filho endiabrado de tentações pecaminosas.”33

iv. Saiu do convento aos dezasseis anos, mulher feita, de beleza acentuada e porte esbelto, mas amargurada e revoltada com uma sede de vingança que irá acentuar-se através do relacionamento com Lucas Perene, outro “filho da terra” com uma vida denegrida, ostracizado pela família e sociedade. O meio em que fica inserida, no final da narrativa, é um determinante para explicar o seu desejo de um ajuste de contas com Flo-


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riano e respetiva família, embora não materializado por a obra estar inacabada. Estas são as facetas da sua existência diegética suportadas pelas relações de afinidade e rejeição com o espaço em que foi inserida.

3.3. José Lucas Perene “(…) filho desprezado, a quem o progenitor infligia monstras sovas com o grosso cinturão de couro, para dominar a sua rebeldia.”34 Numa outra situação, surge a focalização interna de Lucas Perene, filho de um funcionário das Obras Públicas e de uma mãe macaense da Taipa de personalidade fraca, marcado para sempre pelas memórias da agressividade do pai. O meio familiar surge na condição de determinante fundamental para explicar o seu comportamento. Caraterizado de rapaz atraente e de feitio envolvente, o narrador referencia-lhe a mesma educação no Externato do Seminário de S. José, evidenciando mais uma vez o cariz da formação católica nas personagens masculinas. Como Floriano pretendia tirar um curso superior, desta vez no Estado da Índia, em Goa, por ser menos dispendioso do que em Portugal. A recusa do pai marca-o para o resto da vida, tal como ficou marcado Floriano. Enjeitado e odiado pelo pai, em virtude da tez escura da sua pele, e tratado de forma desigual em relação ao seu irmão mais velho, torna-se num ser rebelde, inconformado, de uma grande densidade psicológica, ocupando um lugar central a partir do capítulo XI. O pai, funcionário das Obras Pú-

blicas, ciumento em relação à mulher, espancava os elementos familiares, com exceção de Joaquim, o seu filho predileto, de tez clara como ele, em quem punha grandes expetativas. A morte da mãe e o segundo casamento do pai são fatores determinantes para ser expulso de casa, tendo como principal pretexto a defesa da irmã Angélica, quando o pai a esbofeteava. Após estes indicadores, o autor integra-o num ambiente acentuadamente chinês, a nível de trabalho: um dos cais no Porto Interior e posteriormente na Capitania dos Portos.

poeira acumulada, denuncia modos degradados de uma existência socioeconómica – a de “homem sujo, camisola que fora branca, barba por fazer, ar decadente e arroto fétido.”35; e um espaço e ambiência não condizente a um filho da classe média que tinha uma certa educação e estudos, sendo o espaço configurado como uma projeção do estado da personagem.

III. RETRATOS IMPRESSIONISTAS DE ESPAÇOS E AMBIÊNCIAS

“Descrevo o meu Macau, o meu património, o que eu conheci. Só me lembro desta terra como ela era há anos atrás. Falo dela mantendo-a intacta no meu imaginário.” In, O Olhar de Senna Fernandes: Fragmentos, pág. 5

Porto Interior.

O abandono de Evandolina, prometida de Joaquim, com quem se casara por hostilização ao irmão, vai conferir-lhe o traço acentuadamente identificador de rejeitado pela família e marginalizado pela comunidade macaense, porque apelidado de mulherengo e de outros vícios condenáveis. E a sua inserção num cubículo, na Travessa de Sancho Pança, a dois passos do Hospital de S. Rafael, com cheiro a azedo e bafio, roupa suja espalhada por todo o lado, teias de aranha nas paredes, roupas e sapatos atirados pelo chão e muita

Macau antigo.

Senna Fernandes, ao estilo de uma montagem cinematográfica, por cenas ou quadros, descreve de forma fiel a realidade que observou quando criança mas, por outro lado, embeleza-a através da fantasia e da imaginação, tornando-a ainda mais fantástica – uma vez que considera que não basta descrever pormenorizadamente, mas também manifestar o sentimento sobre essa mesma observação. Os espaços e ambiências

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Ibid., pág. 186.

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Ibid., pág. 202.

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descritos são respeitantes a Macau, como refere, constantemente, o autor “Cantar Macau é a minha paixão”. Através do seu talento e sensibilidade pinta-nos autênticos quadros da sua terra e das suas gentes, com luz, cor, movimento, pois ele próprio considera a sua escrita como uma arte de pintar / filmar a realidade.

“Salgari teve muita influência em mim. (…) Escrevia um livro com muita facilidade, parece que eu estava a ver um filme. E esta minha maneira de escrever numa linguagem fílmica foi de Salgari, muito mais do que de Verne.” In, Memórias e Testemunhos, pág. 198 “Na infância, foi Salgari e na adolescência Júlio Verne (…) Marcaram a minha juventude autores como Aquilino Ribeiro, Eça de Queirós, Jorge Amado e Camilo Castelo Branco, de quem gostava especialmente.” In, O Olhar de Senna Fernandes: Fragmentos, pág. 11 No início da obra “Os Dores”, capítulo I, o narrador situa-nos numa tarde outonal de 1908, 15 anos antes do nascimento do autor e 105 anos antes da publicação desta obra. Os dezassete capítulos que a constituem são pródigos em descrições sobre ruas, avenidas e paisagens num emaranhar de factos verídicos e imaginativos, sempre num pulsar de vida e ritmo caraterístico de Macau de outrora, visualizadas através dos percursos efetuados pelas personagens e através dos olhos das mesmas. Através dos seus relatos coloridos e _________________ 36

Ibid., pág. 15.

37

Ibid., pág. 57.

38

Ibid., pág. 21.

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Idem, ibidem.

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cheios de vida como só o autor sabe fazer, somos integrados numa viagem no tempo, tempo do início do século XX. A atmosfera nas redondezas de Macau era de verdadeira acalmia com temperatura amena, arvoredo luxuriante e gorjeios de pássaros, um autêntico ambiente bucólico tão a gosto de Bernardino Ribeiro: “No ar, espalhavam-se os gorjeios da passarada. O resto, uma paisagem imóvel, escalavrada, pesadas rochas graníticas e vegetação maninha.”36 Esta paisagem colocada ao olhar dos cinco passageiros de uma embarcação de pesca à linha é completada com a referência a um espaço territorial, que abrangia um canal entre as ilhas da Taipa e Coloane, atualmente desaparecido, e a enseada de Seak Pai Ván: “Recolhida a vela, a embarcação de recreio deslizou na enseada de Seak Pai Ván, para fundear na linha da praia, onde as águas subiam e desciam mansamente.”37 Dentro da realidade sócio histórica, o autor refere um passatempo macaense da época, a pesca de nairos e asas amarelas, efetuado por Remígio Policarpo, o seu filho Floriano, José Lucas Perene, personagens fulcrais desta narrativa. Com a entrada em cena de Leontina, personagem principal, e através do percurso de regresso até à Calçada de S.to Agostinho, o leitor é levado a visualizar uma ambiência de fim de tarde, denotadora do sentir das personagens, fazendo convergir a sua maneira de agir com esse ambiente e, deste modo, propiciar o cumprimento da ação central. Assim, as personagens agem de determi-

nada maneira porque o espaço lhes é favorável “diferentes espaços engendram diferentes atitudes” 37, configurando-se uma analogia entre o espaço e o estado de espírito.

“A tarde morria, a água do canal avermelhara-se com os doirados do crepúsculo. A vela enfunada impelia a embarcação para a frente, afastando-se da ilha, para sossego da tripulação.” 38 “Sob o embalo da água marulhenta e os estalidos da vela barriguda, cabeceou e adormeceu, totalmente à mercê daqueles que a conduziam. Assim se rumava o destino de uma vida.” 39

Calçada de Santo Agostinho.

Esse destino teve como ponto de partida o lar dos Policarpos, na Calçada de S.to Agostinho. É através dessa localização e da curiosidade de Leontina em saber o que o que se passava para além do mundo restrito em que vivia, que o narrador nos descreve o movimento dessa rua – uma ambiência chinesa de onde extraímos uma fusão de impressões visuais, auditivas, olfativas com referência às tipicidades da cidade.


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“Leontina sabia da sua existência, por algumas vezes espreitar o que se passava. Havia muitas pessoas que desciam por ela, pessoas variadas que não eram só os da casa. Ouvia os pregões matinais e nocturnos dos vendilhões ambulantes de canja e sopa de fitas, do padeiro de pão quente, do amolador de facas, do remendão de sapatos e do homem dos tin-tins.”40 E, quando Leontina sai de casa pela primeira vez, através da mão de D. Crescência, subindo a calçada para ir à missa, à igreja de S. Lourenço, a focalização acentua-se não só em relação ao aspeto físico da zona, mas também a toda uma ambiência humana citadina. Através de “gradientes sensoriais”, em que Senna Fernandes é exímio, é demonstrada a relação da protagonista com o espaço circundante, uma relação de total exclusão e de não pertença.

Vendilhões. Largo de S. Domingos.

sentimento telúrico que produzem uma visão edénica da cidade e consagram a secular presença portuguesa em Macau. Os locais históricos vão desfilando durante o percurso de Leontina como marcas de uma identidade, referenciando-se os monumentos de cariz religioso, nomeadamente as igrejas, símbolos da identidade católica da comunidade macaense: igreja de St.o Agostinho; de S. Lourenço; de S. Domingos; ruínas de S. Paulo e igreja de St.o António.

“Viu as lojas e as caras morenas dos “mouros”, ladeou de perto os vendilhões ambulantes, ouviu vozes, risadas, gesticulações dos transeuntes e ninguém se referia a ela. Espreitou o poço público perto da escadaria para a igreja, donde se tirava uma água cristalina.”41 A informação sobre Macau antigo prossegue, quando da expulsão de Leontina do lar dos Policarpos, como se de uma montagem de quadros impressionistas se tratasse, onde vemos gravados a memória do tempo perdido, a lembrança do autor sobre a terra que iria deixar de ser sua e que, por certo, iria perder a sua peculiaridade. Esta sucessão de quadros, de um realismo documental, está imbuída de um

Ruínas de S. Paulo.

Igreja de S. António.

Igreja de S. Lourenço.

O cenário que serve o percurso da Calçada de St.o Agostinho para o Convento das Canossianas, junto do Jardim Camões, é pormenorizado até à exaustão pelos olhos da protagonista, espantada perante a visão de um mundo que sempre lhe fora interdito.

Para trás vai ficando a rua Central, a igreja de St.o Agostinho e de S. Lourenço: de riquexó, o padrinho à frente e ela atrás, descem para a Praia Grande com grandes casarões e de pouco movimento, contornam o labiríntico bazar, entram no burburinho do Largo de S. Domingos. E, na passagem estreita pela rua da Palha, a descrição da ambiência humana prossegue, revelando mais um aspeto de um pitoresco dia-a-dia

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Ibid., pág. 39.

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Ibid., pág. 40.

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cumprimento da ação – ser bambina, ou seja uma enjeitada da rua, sem pai nem mãe e sem família.

“(…) deparou com um largo sombreado, todo ele dominado por um casarão enorme de fachada sombria e triste.”43

Rua Central.

domingueiro. As inferências socioprofissionais detetáveis nesta descrição, conferem riqueza e dão dinamismo à narrativa, constituindo o cenário de uma realidade social do território, dos inícios do século XX.

“(…) na apertada artéria, onde se atravancavam vendilhões de comidas, acepipes e fritos, penteadeiras com os seus apetrechos, o barbeiro e o dentista ambulantes, com as suas clássicas cadeiras de ofícios, riquexós aos gritos dos condutores e muito povo que ia e vinha nas compras nas lojecas e nos recantos da rua, ou a caminho do Mercado.”42 E o contraste de ambiências inerentes aos espaços físicos de Macau é notado através da entrada do riquexó na calma rua de S. Paulo, para depois se visualizarem os casarões assobradados dos mamões de St.o António, classe enriquecida através do comércio. Entre o cimo da Calçada do Botelho e o muro da igreja, aparece o Convento das Canossianas – o novo destino de Leontina – num largo sombreado que hoje é denominado “Largo de Camões”. A utilização dos adjetivos na descrição do edifício, confere uma analogia entre o espaço a habitar e os sentimentos a vivenciar nesse local adequado ao _________________ 42

Ibid., págs. 57-58.

43

Ibid., pág. 58.

44

Ibid., pág. 64.

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Selara-se o destino de Leontina. E um novo percurso a partir do convento é delineado pelo autor, através dos passeios semanais das órfãs, para perpetuar zonas famosas de Macau tais como o Jardim Camões, a cem passos do convento; a Praia Grande; o Jardim de S. Francisco; o jardim Vasco da Gama; a Estrada da Vitória e o bairro da Flora – espaços físicos simbólicos que consagram, ao território, um passado português. O contraste entre a ambiência das órfãs e a das crianças dessas zonas, com aspeto de bem alimentadas e vigiadas por criadas, testemunha as diferentes identidades étnico-culturais e as consequen-

Colégio das Canossianas.

tes relações entre espaço e vida social.

“Viam de longe as manifestações de riqueza, gente bem vestida, crianças bem alimentadas, vigiadas pelas criadas, outra vida que não a existência triste e confinada do convento.”44 E a ambiência edénica de Macau continua a ser retratada, retrato que acompanha a vida de Leontina. Primeiro, quando da saída do convento, o narrador regista a impressão que a realidade provoca no espírito do protagonista, com destaque para a tipicidade das profissões, hoje extintas, devido ao crescimento habitacional e ao desenvolvimento económico, provocado pela indústria do jogo que não permitiu que as mesmas perdurassem até aos dias de hoje.

“O sol da manhã ofuscava, o amolador de facas gritava as suas virtudes


Identidade macaense ...

de profissional, ao som dos ferritos do homem dos tin-tins ou ferros velhos. Acudiram ao chamamento vários riquexós desgarrados no Largo de Camões.”45 Seguidamente, situa a heroína na rua do Hospital, relativamente perto da Rua do Campo, do Largo de São Domingos e do Senado. Nos seus passeios domingueiros com Eunice, o narrador fá-las deambular pelo Jardim Público de S. Francisco para ouvirem a música da Banda Municipal no coreto; visualizar as pessoas bem vestidas de outra classe social que frequentavam a casa de chá; descrever a Baía da Praia Grande, digna de destaque através da descrição do quotidiano nesse local. Nestes quadros citadinos, a realidade comum é retratada como uma linguagem bastante exata, porém de forma artística e numa tentativa de “figurar” o subtil estado de alma da personagem, associado aos estados subtis de uma ambiência envolvente.

“A Baía da Praia Grande recobriase de oiro e sol que declinava atrás da Ilha da Lapa. A água da enchente reverbava em cintilações resplandecentes, murmurava em soliloquies junto da muralha de granito, mas ao longe batia forte nas pedras extremas do fortim 1 de Dezembro. Juncos preguiçosos nos ancoradouros recolhiam as velas. Lorchas e sampanas balanceavam ao sabor da maré. Tancares diminutos, em labor incessante de vaivém, riscavam em tiras de espuma o manto esverdeado da água dos princípios de Setembro. Nos cais de pedra, em plano incli-

nado, desembarcava-se o pescado do dia, em cestas de vime.”46 E a descrição minuciosa, captação sensível da realidade, continua como evocação de uma identidade macaense, expressa na cor local, na conclusão harmoniosa da história e nos elementos autobiográficos do autor para registo dos vindouros – edifícios simbólicos do tempo em que a cidade era administrada por portugueses. A personagem fica arrebatada com a contemplação da paisagem que desconhecia, porque tinha adquirido o sentido de pertença à terra, uma portugalidade incutida através do esmerado domínio do português e de uma educação culturalmente católica transmitida por D. Crescência e pelas irmãs canossianas.

Praia Grande e Penha.

“(…) a orla do casario da Praia Grande, em curva graciosa, duma ponta à outra, desde o Grémio Militar à arruinada Fortaleza do Bom Parto resplandecia, ornada de árvores frondosas (…) Identificou alguns edifícios, a ermida da Penha, o Hotel Bela Vista, o Palacete de Santa Sancha, o Palácio do Governo, o Tribunal,

Igreja de S. Lázaro.

os contornos superiores da Igreja de S. Lourenço, do Seminário de S. José e da Sé Catedral.” 47 Num final de domingo, assistimos ao toque das trindades e ao final das atividades. O regresso a casa das gentes macaenses, demonstra uma sintonia entre o meio ambiente e aqueles que nele vivem: “A banda municipal tinha já terminado o seu concerto e o “picadeiro” esvaziara-se de gente.”48; ajuda também à criação de atmosferas especiais de carácter identitário, dando informações sobre a religiosidade, traço destacável da comunidade.

“Abandonaram o Jardim, subiram depois a Travessa dos Anjos, para se separarem na Rua de S. Domingos (…) Quando rolavam os ecos dos sinos das Trindades da Igreja de S. Lázaro, entrou em casa.”49 O ambiente serve como pano de fundo ao desenrolar dos acontecimentos fulcrais do ponto de vista da ação central. Assim, o narrador através do dia-a-dia de Leontina leva-nos a percorrer as ruas da zona

_________________ 45

Ibid., pág. 73.

46

Ibid., págs. 82-83.

47

Idem, ibidem.

48

Idem, ibidem.

49

Ibid., pág. 84.

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cristã. Situa-nos na Rua da Palha, onde ainda, há pouco tempo, encontrávamos os carrinhos de linha, botões e tudo o mais relativo à arte da costura, para depois passar a descrever a fascinante ambiência desta rua concorrida, do início do século XX.

“(…) desfilavam os transeuntes apressados que se acotovelavam, os mendigos com choradas litanias, os vendilhões berrando à compita, o cheiro de alcaçuz, de cânfora e de ervas medicinais duma farmácia tradicional chinesa, o aroma de sândalo duma loja de pivetes, a zorra vergada de lenha que subia a caminho da Rua de S. Paulo”50 Contígua à rua da Palha, a Rua dos Mercadores, aparece-nos também caraterizada como rua de grande movimento “Na Rua dos Mercadores, na hora buliçosa das três da tarde, a artéria cheia de transeuntes, ao parar diante do balcão da loja do vendedor de pato assado.”51 O autor, através da descrição dos locais e das ruas da cidade, fornece elementos para entendermos a lógica do comportamento das personagens e, simultaneamente, localizar as atividades humanas, assim como os fluxos de pessoas, as mercadorias e várias informações que se conectam a esses lugares. José Lucas Perene pelo seu carácter híbrido é a personagem através da qual o autor nos dá outra visão do espaço e ambiência de Macau: a rua da Felicidade, com destaque do restaurante Fat Siu Lao, é descrita de forma aprimorada, rele_________________ 50

Ibid., pág. 87.

51

Ibid., pág. 119.

52

Ibid., pág. 174.

53

Ibid., pág. 171.

54

Ibid., pág. 205.

55

Ibid., pág. 235.

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ORIENTEOCIDENTE

vando toda a boémia inerente a essa rua, denominada de “rua do amor”.

“Todo o burburinho, em baixo, da famosa artéria do amor trepava até eles. As vozes falsetes das cantadeiras no casario vizinho, os acordes lamentosos do alaúde e do pei-pá, os estalidos dos tamancos, os gritos dos condutores de riquexó e outras vozes, risinhos esparsos de mulher.”52 O percurso efetuado por Leontina e Lucas Perene em espaços próprios da comunidade chinesa – a rua do Hospital, e a rua de Sancho Pança – completa o quadro sobre a toponímia de Macau com uma ambiência sui generis.

“Da janela subiam os ruídos do tardoz da casa. Gorjeios e risada de criançada, vozes de mulherio em palreio fiado, alguém a soprar num

Ilha da Lapa.

trombone, em desconjuntado esforço de harmonia.”53 ; “Galos crocitavam na vizinhança, e das janelas vinha o ruído de uma rua calma, vozes esparsas e pregões de vendilhão de comidas.”54 Os espaços marcadamente chineses de Macau são uma constante presença no discurso narrativo. O cais do Porto Interior aparece como refúgio de José Lucas. Neste local ganha a vida, isolando-se do resto da comunidade.

“O cais era dos mais movimentados do Porto Exterior; por ele passavam mercadorias, géneros alimentícios e contrabando que escapavam à fiscalização da polícia marítima. As ligações de exportação e importação com os portos fluviais da “terra china” circundante ativavam o cais, desde manhã cedo até a noite fora.” 55


Identidade macaense ...

E as referências à labuta marítima da personagem, desta vez na Capitania dos Portos, prosseguem para demonstrar como “o ser humano se relaciona com o espaço circundante através de seus sentidos”.

“Gostava do rio e do mar, do cheiro a maresia, dos acenos dos Pescadores dos juncos, da nostalgia dos longos e rubros crepúsculos que cobriam os cimos da Lapa e doutras ilhas circundantes duma auréola cegante e doirada.” 56

Segmentação do espaço em macro espaços Em contraste com a vida citadina, aparece-nos outro tipo de espaço, que denominaremos de geográfico/ /territorial, acentuadamente bucólico possuidor de um passado histórico. A visão é um dos sentidos que o autor mais destaca nesta abrangência espacial, pois é através dela que as personagens o captam num máximo distanciamento. Atualmente, transformado pelas instituições governamentais que dão aval às realizações humanas, vários edifícios gigantes brotaram nas costas da Península de Macau, tapando a linha do seu horizonte.

“As raparigas do atelier aproveitavam para passeios à Montanha Russa, ao pinheiral da Guia, à aprazível estância da Flora de vivendas elegantes e fora de portas, espreitando o conjunto harmonioso do Palacete de Verão do Governador e o seu pejado de canteiros e de chafarizes. Ou então iam aos miradouros da Estrada de S. Francisco e da Estrada de Cacilhas, de calma idílica, contemplando

Macau antigo.

os longes do mar mosqueado de juncos e ouvindo em baixo os murmúrios ou os regougos do mar, ao encontro de rochas escavaladas.” 57 Para o autor, a topo-análise também contempla analisar a posição em que os sentidos atuam na relação entre personagem e espaço. Nesta passagem percebemos a relação entre Leontina e a paisagem, perpassando os gradientes sensoriais num esquema de menor e maior distância respetivamente entre visão, olfato e audição. Entendemos, porém, que num texto literário, como na realidade, não há perceção de espaço que contemple apenas um dos sentidos. É a conjunção de gradientes sensoriais que faz com que se perceba o todo, formando assim infinitos efeitos de sentido.

“Era na contemplação da paisagem, sob a umbela das árvores de pagode e o cheiro da resina dos pinheiros, embalada pelo chilrear da passarada

irrequieta que vinha à tona a dor pungente dos arcanos do coração.” 58 Dentro deste tipo de paisagem, surge-nos o Ramal dos Mouros, a Praia de Cacilhas como locais aprazíveis para um passeio e para a pesca, passatempo muito comum na época. E a influência da paisagem no estado de espírito da personagem central feminina é notória: ”A pureza do ar lavado dispersava a tristura, renovava o prazer de serem jovens.” 59 Visão e audição são sentidos importantes para a produção do significado espacial na narrativa de Senna Fernandes, dando ao leitor uma visão panorâmica dos macros espaços circundantes que constituem muitas memórias coletivas da cidade.

“Não se saciava da contemplação do mar pontilhado de revérberos do sol, dos juncos que singravam ao largo, rasgando sulcos broncos na massa líquida e movediça. As ilhas distantes

_________________ 56

Ibid., pág. 238.

57

Ibid., pág. 142.

58

Idem, ibidem.

59

Ibid., pág. 152.

ORIENTEOCIDENTE

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azulavam a linha do horizonte. Por trás, algures, estava Hong Kong (…)” 60 Vemos que o Ramal dos Mouros era um local bem conhecido de Senna Fernandes pela forma pormenorizada como é descrito, como também outros locais circundantes, conhecidos do autor.

“O campo de ténis, não muito distante, ocultava-se por detrás da Cortina dos bambuais (…). Outro caminho dirigia-se para a zona militar interdita da Fortaleza de D. Maria II. Mais além estendia-se o morro pedregoso da resting de Macau-Seak, guardando os marulhos do mar das Nove Ilhas.”61

CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta narrativa, publicada postumamente em 2012, revela-se como composição das reminiscências do autor, que recupera, retrata, inventa e reinventa espaços e ambiências de Macau situadas na primeira década de 1900. Macau aparece retratado em microcosmos sociais onde as personagens e respetivas famílias são neles distribuídas segundo dois princípios de

diferenciação: o económico e o cultural. A família Policarpo, pertencente a uma classe média, é situada junto à igreja de St.o Agostinho, na Calçada do Tronco Velho; a família Madruga na rua do padre António, porque de estatuto social e económico mais elevado – Emília Madruga proveniente da aristocracia do bairro de S. Lourenço, próximo da Praia Grande; Leontina e Lucas Perene, amancebados, são inseridos na Travessa de Sancho Pança, numa zona tipicamente chinesa, porque marginalizados devido a atos ou ocorrências condenáveis aos olhos da comunidade. De salientar que Angélica e Wai Hong têm como primeira residência a Rua da Erva, ruela perto do hospital chinês, para depois serem colocados como moradores na zona do Tap Seac, um bairro onde se misturavam as casas de famílias chinesas e portuguesas, de acordo com o seu status social. Conforme a configuração das personagens apresentadas, detetamos traços marcantes da identidade macaense que consistem, essencialmente, numa formação académica e religiosa adquirida no Seminário de

S. José; no brio e orgulho no domínio da língua portuguesa; na transmissão aos filhos de atos de honradez, caridade e amor ao próximo; numa forte ligação a Portugal que os padres mestres incutiam através do estudo; na prioridade de uma formação universitária adquirida na mãe pátria. Os resultados do nosso trabalho demonstram que, neste romance, o enfoque não reside apenas nas personagens especiais, mas também na retratação da própria cidade que, com seus macro e micro-espaços, permite ser apontada como uma real protagonista. Além disso, realçamos também a influência recíproca entre sujeitos e espaço, destacando como os indivíduos podem ser afetados pelo espaço circundante. Portanto, este estudo não somente analisa o espaço literário no romance, mas discute seus efeitos e influências no comportamento e posição social das personagens. Focamos aspetos da geografia, da toponímia, tais como a baía da Praia Grande, o Largo Camões, Jardim de S. Francisco, Calçada de St.o Agostinho e, sobretudo, do ambiente humano e paisagístico que tão bem Senna Fernandes soube eternizar.

_________________ 60

Ibid., pág. 154.

61

Ibid., pág. 158.

Bibliografia Bachelard, Gaston. A poética do espaço. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução de Joaquim José Moura Ramos (ET AL.). São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores). Cabral, João de Pina & Lourenço Nelson (1993). O Macau Bambu: Um estudo sobre a Identidade Étnica Macaense e a Sucessão das Gerações. Revista da Administração Pública de Macau, n.º 21, vol. VI, 1993 – 3º, pp. 523-558. Imprensa Oficial da Região Administrativa Especial de Macau. Dimas, António. Espaço e romance. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1994. Fernandes, Henrique de Senna. Os Dores. 1ª ed., Instituto Cultural do Governo da R. A. E.M., 2012. Lemos, Lúcia & Jingming, Yao. 2004. O Olhar de Senna Fernandes: Fragmentos. Instituto Internacional de Macau / Fundação Jorge Álvares. Lins, Oman. Lima Barreto e o Espaço Romanesco. 1976. Simas, Mónica. Identidade e memória no espaço literário de língua portuguesa em Macau. In Oriente, engenho e arte. São Paulo: Alameda, 2004.

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ORIENTEOCIDENTE



Diáspora macaense

1 Celina Veiga de Oliveira Investigadora

Que eu, desde a partida, Não sei onde vou. Roteiro da vida. Quem é que o traçou? Camilo Pessanha, Clepsidra

As questões da diáspora, palavra de origem grega que significa dispersão, têm merecido o interesse, entre outros intelectuais, de sociólogos, historiadores e antropólogos, que procuram entender as causas e os efeitos das migrações históricas ou actuais nas comunidades que a elas tiveram de recorrer. No seu ensaio “Diasporas”2, o antropólogo e historiador americano James Clifford interroga-se sobre se os discursos pós-coloniais da diáspora representam experiências de deslocamento, de construção de casa longe de casa, e quais as experiências que rejeitam, substituem ou marginalizam. O autor constata não só a ambivalência política das visões da diáspora, sempre enredadas em poderosas histórias globais, como a realidade de as

histórias de deslocamento mostrarem somente particularidades ou momentos de diáspora. A História da Humanidade inclui, em todos os tempos, ondas de deslocamento de populações. Macau não foi excepção. O século oitocentista daquele pequeno enclave do sul da China presenciou os primeiros movimentos migratórios da sua população macaense.

Se exceptuarmos África, em todos os outros continentes há representações de Casas de Macau e de Centros Culturais ligados a Macau, que testemunham a diáspora macaense3. Esta diáspora global de Macau é tanto mais impressionante quanto exíguo o espaço geográfico que lhe deu origem. Macau teve sempre,

Canadá EUA

Lisboa Hong Kong

Brasil Sidney

Casas de Macau no mundo.

_________________ 1

Conferência proferida no Primeiro Congresso da Sociedade Civil da Diáspora Lusófona, realizado no Salão Nobre da Academia das Ciências de Lisboa, nos dias 20 e 21 de Novembro de 2015. O tema aqui versado refere-se unicamente à diáspora dos portugueses de Macau.

2

James Clifford, “Diasporas”, in The Predicament of Culture: Twentieth Century Ethnography, Literature and Art (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1988), 244–77.

3

Casas e Centros de Macau no mundo: EUROPA - Casa de Macau, com sede em Lisboa; Fundação Casa de Macau, com sede em Lisboa; Centro de Documentação de Macau da Fundação Casa de Macau. ÁSIA - Club Lusitano de Hong Kong, a mais antiga Casa da Diáspora; Clube de Recreio, com sede em Kowloon. OCEANIA - Casa de Macau, com sede em Sidney, Austrália. AMÉRICA - Brasil: Casa de Macau do Rio de Janeiro; Casa de Macau de São Paulo, ambas com sede própria. Canadá: Casa de Macau no Canadá (Toronto); Casa de Macau Vancouver; Macau Cultural Association of Western Canada; Club Amigu di Macau, com coro e orquestra de instrumentos musicais chineses. Estados Unidos da América: União Macaense Americana (UMA), a mais antiga Casa; Casa de Macau de Califórnia; Lusitano Club of California; Macau Cultural Center - MCC (Centro Cultural de Macau, Fremont, California), sede recreativa e social das 3 Casas; Macau Heritage and Cultural Institute, centro de estudos que promove seminários e exposições ligadas a Macau. As Casas estão ligadas a Macau através do Conselho das Comunidades Macaenses, com sede em Macau, e de parcerias com outras instituições, como o Instituto Internacional de Macau.

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ORIENTEOCIDENTE


Diáspora macaense

ao longo da História, uma relevância política, diplomática e civilizacional sem correspondência com a sua irrelevância territorial. Desde o estabelecimento dos portugueses em meados do século XVI, a pequena península, encravada no sul do império chinês – esse império sem necessidades, muito fechado sobre a sua auto-suficiência –, foi sempre um 'cais' de chegada e de partida de populações variadas, facto que lhe imprimiu a característica de se sentir confortável com a diversidade. Cantão, situada no delta do rio das Pérolas e único porto da China aberto ao mundo, adquiriu, por esta razão, importância estratégica dentro do Império, com reflexos no quotidiano do estabelecimento português. Era nesta metrópole que se realizavam, em épocas pré-determinadas pelas autoridades imperiais, os negócios com os estrangeiros de diversas nacionalidades. Findo esse tempo, os comerciantes eram obrigados a sair, retirando-se para Macau, onde viviam e geriam as suas firmas comerciais4. Esta situação alterou-se no século XIX, após a derrota da China nas Guerras do Ópio. A primeira guerra, disputada com a Inglaterra (1839-1841), permitiu o estabelecimento britânico na ilha de Hong Kong e impôs a assinatura do Tratado de Nanquim, em 1842, que obrigou o Celeste Império a abrir ao comércio internacional os chamados Cinco Portos do Tratado: Cantão, Amói, Fuchau, Ningpó e Xangai. A segunda, entre 1856 e 1860, de novo entre a Inglaterra e a China,

Casa Garden, actual sede da Fundação Oriente, que pertenceu à Companhia Britânica das Índias Orientais.

mas com o apoio de outras forças – França, Estados Unidos da América e Rússia –, vergou o Império a aceitar outras medidas: abertura de mais portos ao comércio internacional, liberdade de movimentos para comerciantes e missionários cristãos e criação de legações estrangeiras em Pequim (Tratado de Tianjin). O ano de 1842, assinalando o triunfo do poder inglês, consagrou uma viragem estrutural na história da região, com reflexos directos no território de Macau, tornando-o dispensável enquanto espaço a partir do qual se estabeleciam os contactos com a China, e iniciando o correlativo movimento das migrações. A dinâmica suscitada pela proximidade da poderosa Inglaterra e de outras potências estrangeiras e o enfraquecimento económico do enclave português estimularam os macaenses a procurarem alternativas

de vida em cidades portuárias vizinhas, quer como opção para estender negócios familiares, quer pela necessidade de acompanhar as estratégias de expansão de casas comerciais pertencentes a terceiros, normalmente britânicos ou americanos, quer ainda como resposta a períodos de crise económica5. Estas migrações macaenses tiveram como palco espacial o triângulo formado por Macau, território administrado por Portugal, Hong Kong, colónia resultante de um conflito militar, e Xangai, cidade internacional governada por três poderes: a Concessão Internacional, gerida pela elite económica das potências estrangeiras, a Concessão Francesa, administrada por um cônsul francês, e a Cidade Chinesa, sob a tutela do poder mandarínico6. Hong Kong e Xangai emergiram rapidamente como centros do comércio internacional na Ásia Oriental.

_________________ 4

A Casa Garden, que foi sede da Companhia Britânica das Índias Orientais, é um exemplo da opulência que alcançaram muitas dessas firmas estrangeiras. No jardim que a ladeia, diz a tradição que Luís de Camões escreveu parte de Os Lusíadas. Ainda continua a ser um local de celebração do nosso poeta épico.

5

Alfredo Gomes Dias, Diáspora Macaense, Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952), 241.

6

Idem, 133.

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Mapa do Delta do Rio das Pérolas, vendo-se a proximidade entre Macau e Hong Kong.

O primeiro destino da diáspora de Macau foi a colónia britânica do outro lado do delta, acompanhando a instalação dos ingleses na ilha. Transferiram-se, para o novo empório ocidental, empresas, funcionários e dinheiro. As firmas comerciais inglesas de Macau e de Cantão, uma parte da população marítima e muitos comerciantes hong mudaram de residência, devido à força centrípeta exercida por Hong Kong na dinâmica comercial. Foi uma considerável san-

gria a que se verificou em Macau, segundo o testemunho de D. Jerónimo José da Mata, bispo de Macau entre 1845 e 1862. Observava o prelado em 1846 que (...) o triste estado, em que se acha este Estabelecimento, cuja riqueza consistia unicamente no comércio, e cuja decadência cresce em proporção do progressivo aumento, que se observa em seu rival, o novo Estabelecimento Inglês em Hong-Kong. Acresce que para lá vão emigrando quotidianamente, e até alguns com as próprias famílias, muitos mancebos de Macau, que acham emprego ali em casas comerciais, e noutros ofícios e mesteres, porque não encontrando, nem tendo aqui meios de vida, vão procurar o pão em país estrangeiro7. A experiência secular de negócios com a China, o conhecimento da idiossincrasia chinesa (sobretudo mandarínica) e o domínio do cantonense e do inglês constituíram factores determinantes do sucesso dos portugueses de Macau em Hong Kong. Esta comunidade, sedimen-

tada por casamentos entre si, e com fortes vínculos familiares – aqui teem elles paes, maes, irmãs e esposas8 –, nunca se desligou culturalmente dos valores lusitanos, como atestam as celebrações do Tricentenário de Camões, em 18809, uma celebração cultural que serviu para vincar a sua identidade em confronto com o peso esmagador da supremacia inglesa. Xangai foi o destino seguinte da diáspora de Macau. Os primeiros macaenses chegaram a este porto no final da década de 1840, atraídos pelo seu crescente dinamismo económico10. Dotado do estatuto privilegiado de cidade internacional, este porto incluía uma área concessionada às potências ocidentais, governadas por uma autoridade consular, com grande autonomia em relação ao poder de Pequim, nomeadamente o direito de extraterritorialidade. O espaço das concessões em Xangai ficou localizado na margem esquerda do rio Huangpu, onde se instalaram os cais e as alfândegas que passaram a centralizar a actividade comercial da cidade.11 Os

_________________ 7

Idem, 258.

8

Idem, 330.

9

A nossa communidade elevou-se no conceito dos estrangeiros com a celebração do Tricentenário de Camões. A imprensa local elogiou a festa, Sir John Pope Hennessy escreveu ao nosso estimado compatriota o sr. José Antonio dos Remedios, presidente da Commissão do Tricentenario, pedindo um exemplar da Memória dos Festejos, para ser enviado ao Conde de Kimberley, Ministro das Colónias, a fim de fazer vêr ao Governo Britannico o que póde e val a communidade portuguesa de Hongkong. O sr. Gedeco Nye, que cultiva as letras, pediu quatro exemplares [da Memória dos Festejos] para serem enviados a litteratos seus amigos. O sr. Frederico Degenner, socio correspondente de Anthropologia e Geografia de Stockholmo, pediu tambem um exemplar para aquella sociedade scientifica. – In Defeza do Darwinismo, P. A. da Costa, Hongkong, 1880.

10

Entre 1919 e 1927, Xangai atingiu o seu apogeu económico, usufruindo do dinamismo das concessões estrangeiras, do enfraquecimento do poder central de Pequim, da fragilidade da República chinesa, da divisão da sociedade chinesa, que enfrentava agitados movimentos sociais, sobretudo no sul da China, e da I Guerra Mundial (1914-1918), que enfraqueceu as potências estrangeiras, in Alfredo Gomes Dias, 156.

11

Sobre este assunto, ver Diáspora Macaense, Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952), de Alfredo Gomes Dias, 143-146. O 1.º consulado a instalar-se foi o inglês (George Balfour), em 1843, numa casa alugada a um rico chinês com interesses também em Hong Kong. Seguiu-se o consulado francês, em 1847 (Charles de Montigny), para a formação da Concessão Francesa em 1849. Criou-se uma municipalidade, que incluía britânicos, americanos e franceses. Em 1863, americanos e ingleses acordaram na constituição de uma concessão única, a Concessão Internacional, de que Paris não fazia parte. A Concessão Francesa era uma área residencial por excelência, sendo considerada a Avenue Joffre, com os seus cafés, boutiques e restaurantes, os Campos Elísios de Xangai. O governador de Macau João Maria Ferreira do Amaral escolheu os representantes da firma britânica Dent, Beale & C.ª, a mais respeitada da China, para serem os nossos cônsules de Xangai, tendo nomeado Mr. Beal (sem pagamento), dando aos macaenses a protecção de um Cônsul pertencente a uma prestigiada casa comercial. Isidoro Francisco de Guimarães, governador de Macau entre 1868 e 1872, informava num ofício para o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar o seguinte: Os Cônsules de Portugal na China são empregados que não recebem soldo algum, que poucos ou nenhuns emolumentos disfructam, no mesmo tempo que têm muito trabalho e que frequentissimas vezes se acham envolvidos em questões desagradaveis com os muitos subditos portuguezes que residem nos differentes portos da China, porque todas as cauzas crimes ou civis relativas a estrangeiros são tratados nos respectivos Consulados, e não nos tribunaes do paiz, como acontece na Europa e America (cit. por Alfredo Gomes Dias, 152).

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ORIENTEOCIDENTE


Diáspora macaense

Mapa da China, assinalando o porto de Xangai (Shanghai).

portugueses, que ali viviam com as famílias, foram, sobretudo, empregados de comércio e tipógrafos que trabalhavam para patrões estrangeiros. Segundo Alfredo Gomes Dias, a dependência política e económica que caracterizava as relações entre Portugal e a Inglaterra daquele tempo espelhou-se nos estatutos sociais adquiridos pela comunidade britânica e macaense de Xangai. Essa diferença de estatuto social afastou a comunidade macaense dos centros de decisão política e governativa da cidade, ao contrário do que sucedeu em Hong Kong, onde se verificou uma participação relevante de muitos migrantes de Macau em algumas das estruturas administrativas da colónia britânica12. O termo da Guerra do Pacífico em 1945 e a implantação da República Popular da China em 1949 determinaram o fim das concessões estrangeiras em Xangai, o que provocou uma autêntica debandada, o mesmo sucedendo com Hong Kong após a invasão japonesa em 1941. O número de refugiados acolhidos em Macau foi enorme. A partir de então, a diáspora macaense dispersou-se por todos os

continentes, rompendo com a tradição que tinha como destino as cidades próximas da China. Foram outros os locais escolhidos para uma nova vida, outros os continentes, onde nasceram as comunidades macaenses que ainda hoje, no início do século XXI, continuam a tentar preservar a sua identidade e os vínculos ao seu território de origem: Macau. Assim, os EUA, o Canadá e o Brasil; Portugal e a Grã-Bretanha; África Lusófona e Austrália foram os principais entre muitos territórios por onde se dispersaram as comunidades macaenses13. Ao longo do movimento migratório, muitos foram os que adquiriram, pela sua personalidade, considerável protagonismo, quer na vizinha colónia britânica, quer na cidade internacional de Xangai. Alguns exemplos: POLICARPO ANTÓNIO DA COSTA (1837-1884), um macaense pouco conhecido dos manuais de História de Macau, evidenciou-se pela posição profissional que alcançou em Hong Kong e pelos seus escritos reveladores de um espírito livre, crítico e empenhado na defesa dos avanços científicos de Oitocentos. Foi secretário da Hongkong, Canton & Macao Steamboat Co., cavaleiro da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa (1883) e membro da Sociedade de Geografia e Antropologia de Estocolmo14. O elitista Club Lusitano de Hong Kong, símbolo da comunidade macaense e que tanto contribuiu para a sua afirmação na estrutura social da colónia, escolheu-o para elaborar as Memórias dos Fes-

Policarpo António da Costa (1837-1884).

tejos, uma compilação das intervenções do programa do Tricentenário de Camões, momento alto de afirmação identitária da comunidade portuguesa na ilha britânica. Policarpo da Costa revelou-se um conhecedor das teses darwinistas, que criaram o contexto para uma outra compreensão da longa caminhada da vida e colocaram em questão pontos fundamentais da compreensão cristã da Criação. Entre os seus escritos, deixou-nos a obra Defeza do Darwinismo, que, como o título sugere, evidencia um alinhamento com as correntes científicas do século XIX. CARLOS MONTALTO DE JESUS (1863-1927), um grande e injustiçado historiador de Macau, nas palavras do investigador António

_________________ 12

Idem, 173.

13

Idem, 302.

14

In Famílias Macaenses, de Jorge Forjaz, Volume I, A-F, Fundação Oriente/Instituto Cultural de Macau/Instituto Português do Oriente, Macau, 1996, 850.

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Carlos Montalto de Jesus (1863-1927).

Aresta 15 , foi o autor de Historic Macau (1902), uma das mais conhecidas obras sobre a História do território. Na introdução à versão portuguesa, com o título de Macau Histórico, o historiador Carlos Estorninho classificou-a como a glória e o martírio de Montalto de Jesus16. Glória, porque constituiu a sua consagração como historiador e como macaense, granjeando-lhe o respeito da crítica e das autoridades de Macau, que consideraram o livro como o melhor trabalho de conjunto sobre o estabelecimento português na China Meridional.17 Em versão inglesa para garantir uma maior divulgação internacional e o conhecimento do seu conteúdo pelas numerosas comunidades portuguesas de Hong Kong, Xangai e de outras cidades

portuárias da região, o livro foi um best-seller e a edição esgotou-se em pouco tempo. Martírio, porque a 2.ª edição, publicada em Macau em 1926 e igualmente em inglês, incluía uns capítulos com críticas a um regime colonial míope e alusões à trágica situação em Portugal, defendendo o autor que Macau fosse colocado sob a tutela providencial da Liga das Nações como salvaguarda contra mais ruína18, o que provocou o repúdio dos que consideraram esta proposta como uma grave ofensa aos valores pátrios. As autoridades de Macau ordenaram a apreensão e a destruição pelo fogo dos exemplares existentes no território. Outros ventos, que não os da República que ele tanto prezava – apesar da decepção que sentiu quanto ao rumo que este regime tomou em Portugal e na China –, sopravam então em Macau, como consequência do novo quadro político saído da revolução de 28 de Maio de 1926. Montalto de Jesus, que viveu em Hong Kong e em Xangai, escreveu, entre outras obras, The Rise of Shangai (1906) e Historic Shangai (1909). Homem culto, tornou-se sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa a 9 de Novembro de 189619 e foi um activo militante do Partido Republicano.

ROGÉRIO HYNDMAN LOBO, conhecido por Sir Roger Lobo (19232015), veio a afirmar-se, já no nosso tempo, como uma das mais proeminentes personalidades da comunidade macaense em Hong Kong, como empresário, político e filantropo. Foi membro do Conselho Executivo de Hong Kong, (19671985), do Conselho Legislativo (1972-

Rogério Hyndman Lobo (1923-2015).

1985), do Urban Council, presidente da Caritas, presidente do comité consultivo da Independent Comission Against Corruption, e conselheiro honorário de várias instituições. A rainha Isabel II fê-lo “Knight Bachelor” em 198520, com o seguinte brasão de armas para si e seus descendentes: Argent, three wolves passant in pale sable langued and

_________________ 15 16

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“Eça de Queiroz e a emigração chinesa de Macau”, de António Aresta. Carlos Augusto Gonçalves Estorninho, “Em jeito de Introdução”, in C. A. Montalto de Jesus, Macau Histórico, Livros do Oriente, Macau 1990, 7. A 1.ª edição, de 1902, por Kelly & Walsh. Printers and Publishers, foi escrita em língua inglesa. In ob. cit. 7, 8. In ob. cit. 334. Na proposta de admissão, constam as seguintes personalidades: Lourenço Pereira Marques, macaense, médico e filantropo, que, durante 16 anos, exerceu medicina em Hong Kong, e em Macau, após a reforma (onde trabalhou gratuitamente em prol da população macaense), autor, entre outros escritos, de A Validade do Darwinismo, publicado em Hong Kong, em 1882; Luciano Cordeiro, escritor, historiador, geógrafo e político, um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa e um dos representantes de Portugal na Conferência de Berlim, em 1884/1885; e Alfredo Jorge Vieira Ribeiro, negociante de Hong Kong, sócio ordinário n.º 2508 de 1895 - in Relação Nominal dos Sócios desde a Fundação, em 10 de Novembro de 1875, Precedida de Alguns Documentos Que Interessam à História da Sociedade, ed. Sociedade de Geografia de Lisboa, 1900, 10. Esteve ligado a importantes firmas de Hong Kong: P. J. Lobo & C.ª, Ltd, Associated Liquor Distributors (HK) Ltd, Hong Kong Macao Hidrofoil Co., Ltd, Johnson & Johnson (HK) Ltd, Martell Far East Trading Ltd, Seagram Far East, Somec Group of Companies, Kjeldsen & Co. (HK) Ltd., Perrin Cooper & Co. Ldt., e Pictet (Asia) Ltd.) – In Famílias Macaenses, de Jorge Forjaz, Volume I, A-F, Fundação Oriente/Instituto Cultural de Macau/Instituto Português do Oriente, Macau, 1996.

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Diáspora macaense

cloawde Gules between two pales wavy Azure all between four Bauhinia flowers proper; crest upon a Helm with wreath Argent and Sable two demo wolves couped Sable langued and clawde Gules supporting between them a Bauhinia flower proper. Mantled Sable – doubled Argent as are in the margin.21 ARTUR JOSÉ DOS SANTOS CARNEIRO (1905-1963), “Art”, para os amigos e admiradores, filho de um rico comerciante de Xangai, cuja vida

gou-o a voltar ao seu périplo asiático: Hong Kong, Singapura e Cochim, na Índia. Em 1947, veio com a família para Portugal, tocando no Casino Estoril e no American Club, na base aérea das Lages, nos Açores22. Músico de grande qualidade, era pai de Roberto Carneiro – professor da Universidade Católica, ministro da Educação, presidente do Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, e presidente da Fundação da Escola Portuguesa de Macau, entre 1998 e 2004 – e avô da maestrina Joana Carneiro, a quem legou o gosto pela música. DEOLINDA DA CONCEIÇÃO (19141957), escritora e jornalista, autora do livro de contos Cheong-Sam, a Cabaia, que elegeu como tema central a situação da mulher chinesa, é um exemplo carismático da triangularidade relacional entre Macau,

Há ainda quem neste século das luzes ignore a personalidade do macaense. Descendente daqueles primeiros filhos de Portugal que aqui vieram estabelecer-se, o macaense tem, é certo, nas suas veias sangue de outras gentes (...), mas, longe de o depauperar, esta circunstância valorizou-o grandemente. No campo cultural o macaense tem-se mostrado duma admirável capacidade de assimilação. Raro é aquele que, além da sua, não fale mais duas línguas. Todo o macaense fala o chinês e o inglês, sendo ainda muitos aqueles que manejam com facilidade o francês. Fora de Macau, espalhados por este vasto Extremo Oriente, os macaenses, formando importantes comunidades, contribuem com o seu esforço e trabalho para a valorização das terras onde foram conquistar o pão de cada dia23.

Artur José dos Santos Carneiro (19051963).

esteve ligada à música em permanente sintonia. Virtuoso violinista, fez parte da Orquestra Sinfónica Municipal de Xangai. Enveredou depois pelo mundo do jazz, tocando outros instrumentos, como o saxofone-tenor, o clarinete, o acordeão-piano. Viveu e trabalhou como músico em Singapura, Londres, Monte Carlo, Hong Kong (onde esteve até ao início da Guerra do Pacífico) e Macau. No fim da Guerra regressou a Xangai, mas a instabilidade que se vivia obri-

invasão da colónia britânica pelo Japão, onde trabalhou como jornalista no jornal Notícias de Macau. Curiosamente, numa das suas crónicas do jornal, Deolinda da Conceição reflecte sobre a idiossincrasia do macaense e, igualmente, sobre o macaense da diáspora:

Deolinda da Conceição (1914-1957).

Hong Kong e Xangai. Nasceu em Macau, viveu em Xangai e em Hong Kong e regressou a Macau após a

Por último, um macaense nascido em Macau, cuja família é originária de Portugal, Goa e Alemanha, mas com três gerações em Xangai: JORGE RANGEL, ex-membro do Governo de Macau, fundador e presidente do Instituto Internacional de Macau, grande dinamizador da ligação entre as diversas Casas de Macau através de iniciativas que alicerçam e mantêm a identidade dos seus membros. Sobre as suas origens, são de Jorge

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Carta de brasão de armas, de 9.1.1987, in Famílias Macaenses, de Jorge Forjaz, Volume II, G-P, Fundação Oriente/Instituto Cultural de Macau/Instituto Português do Oriente, Macau, 1996, 357.

22

In Famílias Macaenses, de Jorge Forjaz, Volume I, A-F, Fundação Oriente/Instituto Cultural de Macau/Instituto Português do Oriente, Macau, 1996, 671-672.

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“Macau e os Macaenses”, de Deolinda da Conceição, in Notícias de Macau, 1950.

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lhidos – Macau foi sempre a terramãe dos portugueses do Oriente Extremo –, deixando em Xangai para sempre praticamente todos os seus bens. A família de Jorge Rangel tem dez gerações de continuada presença em terras do Extremo Oriente.24.

Jorge Rangel (1943 -).

Rangel estas palavras: O meu avô paterno, António Maria Óscar Rangel (...) nasceu em Xangai e era filho de Ildefonso Rangel, conhecido jurisconsulto, natural de Macau e radicado naquela cidade internacional. Foi ali que também nasceu o meu pai, filho de Marianne von Hartwig Hagedorn, uma baronesa de nacionalidade alemã. (...) Com a queda de Xangai [o meu avô] seguiu para Macau como refugiado, na companhia de muitos portugueses ali generosamente aco-

A China viveu no século XX grandes transformações políticas: a queda da dinastia Cheng, a implantação da República e as turbulências que se lhe seguiram, a invasão japonesa, a guerra entre as forças nacionalistas e maoístas, a implantação da República Popular da China, em 1949, a Revolução Cultural maoísta entre 1966 e 1976, e a política de abertura ao mundo, com o restabelecimento das relações diplomáticas e a aplicação do célebre conceito “Um país, dois sistemas”, que possibilitou a recuperação da soberania sobre Hong Kong em 1997 e sobre Macau em 1999. Macau assistiu a estas transformações, ora como um espectador atento, ora sofrendo as suas ondas de choque,

como sucedeu com os acontecimentos do '1, 2, 3' em 1966, ora como protagonista, durante o Período de Transição entre 1987 e 1999. Tanto os acontecimentos do '1, 2, 3' como a incerteza sobre o futuro de Macau durante o período de transição foram responsáveis pela partida de muitas famílias macaenses, que procuraram refúgio junto de familiares e de amigos já emigrados, em diversas partes do mundo: Austrália, Canadá, Estados Unidos da América, Inglaterra, Brasil e Portugal. Daí, a existência de Casas e Centros Culturais de Macau em quatro continentes. Por seu lado, a República Popular da China soube dar crédito aos seus compromissos internacionais. Macau, agora uma Região Administrativa Especial da RPC, continua a ser um território de paz, de procura e de construção de futuro, onde recorrentemente os macaenses da diáspora se reencontram com familiares, amigos, costumes, festividades e memórias.

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Entrevista a Jorge Hagedorn Rangel em Macau, Setembro de 2013.

Bibliografia Aresta, António, “Eça de Queiroz e a emigração chinesa de Macau” (a sair). Clifford, James, “Diasporas,” in The Predicament of Culture: Twentieth Century Ethnography, Literature and Art (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1988). Conceição, Deolinda da, “Macau e os Macaenses”, Notícias de Macau, Macau, 1950. Costa, Policarpo António da, Defeza do Darwinismo, Hongkong, 1880. Dias, Alfredo Gomes, Diáspora Macaense, Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952), Centro Científico e Cultural de Macau/Fundação Macau, Lisboa, 2014. “Entrevista a Jorge Hagedorn Rangel”, Macau, Setembro de 2013. Forjaz, Jorge, Famílias Macaenses, Fundação Oriente/Instituto Cultural de Macau/Instituto Português do Oriente, Macau 1996. Jesus, Carlos Montalto de, Macau Histórico - Primeira Edição Portuguesa da Versão Apreendida em 1926, Livros do Oriente, Setembro de 1990. Rangel, Jorge Hagedorn, Falar de Nós - I, Macau e a Comunidade Macaense - Acontecimentos, Personalidades, Instituições, Diáspora, Legado e Futuro, Instituto Internacional de Macau, Fundação Jorge Álvares, Macau, Dezembro de 2004.

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Instituições macaenses de matriz portuguesa Alexandra Sofia Rangel Investigadora

16 anos após a transferência do exercício da soberania, muitas instituições macaenses de matriz portuguesa continuam a desenvolver uma intensa e eficaz acção em diversificadas áreas, ao serviço das comunidades locais. Algumas dessas instituições, pela sua antiguidade, reportam-se quase ao início de Macau, tendo sobrevivido, pela sua capacidade de afirmação, até aos nossos dias, como é o caso da Santa Casa da Misericórdia, fundada em 1569 pelo Bispo D. Belchior (Melchior, na forma erudita) Carneiro e ainda agora em funcionamento, cumprindo a missão de apoio social que presidiu à sua criação. Esta foi a segunda mais antiga Misericórdia ultramarina, estabelecida

Largo do Leal Senado.

logo a seguir à de Goa (Provedoria da Santa Casa da Misericórdia 1969: 10-14). Ainda hoje, os macaenses sentem-se muito identificados com este organismo, e os seus órgãos sociais são constituídos por personalidades destacadas da comunidade, tendo muitas delas uma intervenção cívica importante. A Igreja Católica, por seu lado, com o seu conjunto de congregações, irmandades e outros organismos associados, conseguiu ser a mais perene e consequente de todas as instituições, realizando objectivos de natureza social e educativa, para além do apostolado. Comunidade ligada aos valores cristãos desde os primórdios, os macaenses identificaram-se largamente com a acção

missionária e envolveram-se, ao longo da história, no funcionamento desses organismos, participando nas actividades religiosas e colaborando na sua obra social. A Diocese de Macau teve à sua frente prelados portugueses até vésperas da transição, quando foi designado o primeiro bispo de etnia chinesa, D. Domingos Lam, natural de Hong Kong e formado em Macau, no Seminário de S. José, sendo fluente na língua portuguesa. Coube-lhe preparar a Igreja e os fiéis para a nova situação político-administrativa de Macau. Substituído depois por D. José Lai, natural de Macau e formado no Seminário de Leiria, a Igreja continua a ter um papel de maior relevância na sociedade de Macau, com uma intervenção muito significativa no ensino e através de organismos de solidariedade social, não tendo sido colocado nenhum obstáculo ao seu funcionamento pelas novas autoridades. Desde Janeiro do corrente ano, é bispo de Macau D. Stephen Lee, anterior bispo auxiliar de Hong Kong. No âmbito político-administrativo, a instituição considerada a mais genuína da comunidade foi o Senado de Macau, criado em 1583, vinte e seis anos após a data da fundação de Macau (1557). Nasceu de uma assembleia de moradores que escolheu para sua administração a forma senatorial, baseada nas franquias municipais outorgadas pelo Rei a

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algumas cidades de Portugal, adoptando, no ano seguinte, o nome de Senado da Câmara, composto por dois juízes ordinários, três vereadores e um procurador da cidade, escolhidos, anualmente, por eleição popular (Gomes 1997: 15). A denominação de “CIDADE DO NOME DE DEUS, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL” foi conferida em 1654 por D. João IV “(…) em fé da muita lealdade que conheceu nos cidadãos dela” e, a 13 de Maio de 1810, D. João VI concedeu o honroso título de Leal ao Senado de Macau (Gomes 1997: 114-115). Este organismo – Leal Senado de Macau – ostentou com o maior orgulho esta distinção real e foi sua responsabilidade a gestão da cidade até ao fim da transição. Macau adoptou, desde os primeiros tempos da sua história, o sistema municipal para gestão dos negócios públicos, e nem sempre foi pacífica a articulação de poderes entre o Senado, eleito localmente, e o Governador, designado pelo poder central em Lisboa (Gomes 1997: 110-114). Logo após a transferência de administração em 1999, a primeira lei publicada pelas novas autoridades, conhecida por Lei da Reunificação, definiu no seu artigo 15.º, que “(…) os órgãos municipais de Macau previamente existentes são reorganizados para órgãos municipais provisórios sem poder político”, passando o Leal Senado a denominar-se Câmara Municipal de Macau Provisória, o mesmo acontecendo com o outro município de Macau, a Câmara Municipal das Ilhas, a que se acrescentou a designação “Provisória”, deixando os seus símbolos, carimbos e bandeiras de ser utilizados. Pôs-se fim, desta feita, a uma prática longa de participação cívica e de envolvimento directo dos cidadãos na vida pública. Um ano depois, a Lei n.º 17/2001

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de 17 de Dezembro acabaria mesmo, para surpresa geral, por extinguir essas câmaras municipais provisórias, criando, em sua substituição, um instituto público denominado Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (Rangel 2004: 255-256). Os responsáveis por este novo organismo deixaram de ser eleitos pela população e passaram a ser designados pelo Chefe do Executivo da Região, o que não foi bem recebido pelos segmentos mais esclarecidos e activos, quer da comunidade macaense,

Sé Catedral.

quer da comunidade chinesa local. A cidade de Macau ficou, assim, sem Câmara Municipal e o velho Senado – Leal Senado – deixou definitivamente de figurar entre os órgãos de gestão político-administrativa de Macau. Na área da educação destaca-se a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), instituição centenária fundada em 1871 e vocacionada para o desenvolvimento da educação da comunidade ma-


Instituições macaenses de matriz portuguesa

gua veicular é a portuguesa. A APIM tem, entre outros, os seguintes objectivos: conceder bolsas de estudo, facultar material escolar a alunos carenciados e desenvolver outras acções em prol da juventude local. A APIM também mantém em funcionamento uma biblioteca cujo acervo é, na sua maioria, em português e é responsável pela gestão directa e funcionamento do Jardim de Infância D. José da Costa Nunes, igualmente em língua veicular portuguesa. Outras instituições educativas que não podem ser olvidadas, dado que lhes coube a responsabilidade de formar gerações de macaenses, tendo o português como língua de ensino, foram o Liceu Nacional Infante D. Henrique e a Escola Primária Oficial Pedro Nolasco da Silva, extintos, juntamente com a Escola Comercial, no momento da criação da Escola Portuguesa de Macau, e ainda o Colégio D. Bosco (escola industrial salesiana) e o Seminário de S. José, com internato e externato.

Santa Casa da Misericórdia.

caense. Foi criada após a ordem vinda de Lisboa, em 1870, de expulsão de todos os estrangeiros que lecionavam em Macau, tornandose, pois, necessário que a comunidade macaense tomasse medidas para que a juventude de Macau não ficasse prejudicada com esta decisão. Através do esforço da Associação, a

Escola Comercial Pedro Nolasco foi fundada em 1878 e durou até 1998, ano em que a Escola Portuguesa de Macau foi instalada nesse complexo escolar. A APIM tornou-se, então, membro da Fundação Escola Portuguesa de Macau, tendo, por isso, responsabilidades de gestão deste estabelecimento de ensino cuja lín-

Muitos organismos recreativos foram criados ao longo dos tempos, funcionando como “(…) centros de convivência, conforme as categorias sociais, de frequência diária (…)”, estando a vida clubista no apogeu a meados do século XX, destacandose então o Clube de Macau, o Grémio Militar (actualmente denominado Clube Militar) e o Ténis Civil, ainda agora em actividade. Além do ténis, a modalidade desportiva com a qual a comunidade macaense mais se identificou foi o hóquei em campo, muito intensamente praticado através do prestigiado Hóquei Clube de Macau. Outras agremiações foram sendo extintas com o passar dos anos, como por exemplo o Clube Desportivo Argonauta, a União Recreativa, o Clube de Caçadores de Tiro aos Pratos e o Ténis Harmonia (Fernandes 1999: 62-63).

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a participação em acções de beneficência.

Casa de Portugal em Macau.

De natureza sindical, merece referência a Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM), fundada em 1987, que congrega os funcionários públicos e pugna pelos seus direitos, estando hoje também aberta à participação de outros trabalhadores. Entretanto, foram criadas novas associações identificadas com a comunidade, como o grupo de teatro Dóci Papiaçám di Macau (fundado em 1993 com o propósito de apresentar peças em patuá, o crioulo português de Macau, e manter vivo este dialecto), o Conselho das Comunidades Macaenses, a Associação dos Macaenses, a Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau e o Instituto Internacional de Macau. O Conselho das Comunidades Macaenses entrou em funcionamento em Novembro de 2004, sendo uma instituição de direito privado cujo objectivo principal consiste na integração dos interesses e anseios da comunidade macaense da diáspora

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e a sua articulação com organismos locais da mesma comunidade. O Conselho integra organizações macaenses não-governamentais da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) e as Casas de Macau e organismos similares no exterior. Cabe-lhe igualmente a organização dos Encontros das Comunidades Macaenses.

Em 1999 foi criado o Instituto Internacional de Macau (IIM), uma organização não-governamental que promove a nível internacional a identidade cultural, económica e social de Macau, tendo como objectivo contribuir significativamente para o desenvolvimento cultural da Região Administrativa Especial de Macau. O IIM veio complementar as áreas de intervenção dos organismos macaenses, adicionando-lhe a dimensão académica e intelectual, realizando estudos sobre Macau, articulando o seu funcionamento com universidades e outras instituições de ensino superior locais e do exterior, e mantendo uma relação activa com a Europa e o mundo lusófono. Ao longo da sua primeira década de funcionamento, editou largas dezenas de títulos, em resultado dos seus trabalhos de investigação académica. São de referir também pela relevância da sua actuação, como instituições de matriz portuguesa, a Casa de

A Associação dos Macaenses (ADM), instituição sem fins lucrativos fundada em 1996, tem os objectivos de estabelecer e promover a solidariedade entre os macaenses, defender a identidade cultural e dignificar a presença da comunidade macaense, no território e fora dele, e a realização de acções de beneficência. A Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC), constituída em 2001, organiza convívios, palestras, excursões e visitas, e faculta exames médicos e tratamentos destinados a idosos. Também se ocupa de questões relacionadas com pensões e reformas dos seus associados junto dos serviços oficiais competentes e promove

Igreja de São Domingos.


Instituições macaenses de matriz portuguesa

peração Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, cujo secretariado tem sede no território.

Associação dos Macaenses.

Quer antes, quer depois da transição, o Governo de Macau, reconhecendo a importância das instituições macaenses, tem apoiado financeiramente o seu funcionamento e desenvolvi-

cionam em Macau, onde opera a Associação Empresarial Internacional para os Mercados Lusófonos, sendo esta ligação assegurada, de forma permanente, pelo Fórum para a Coo-

mento. É muito positivo constatar o dinamismo e a afirmada utilidade destas instituições, que souberam sobreviver e crescer para além da transferência do exercício da soberania.

Escola Portuguesa de Macau.

Portugal em Macau, criada em 2001 e com resultados muito positivos no domínio da promoção cultural e na formação, através de uma escola de artes e ofícios, e o Instituto Português do Oriente (IPOR), fundado na fase final da administração portuguesa, como centro cultural e de ensino da língua portuguesa, fazendo a coordenação pedagógica de leitorados e organismos congéneres no Extremo Oriente. Na área económica, além do Banco Nacional Ultramarino, que ainda é banco emissor, outras instituições bancárias portuguesas fun-

Clube Militar.

Bibliografia Fernandes, Henrique de Senna (1999). “Macau de Ontem” in Luís Sá Cunha (org.) (1999). Macau di nôs-sa coraçám – Memorandum afectivo para os participantes no III Encontro das Comunidades Macaenses. Pp. 51-69. Macau: Fundação Macau. Gomes, Luís Gonzaga (1997). Macau – Um Município com História. Macau: Leal Senado de Macau. Provedoria da Santa Casa da Misericórdia de Macau (1969). IV Centenário da Santa Casa da Misericórdia da Macau 15691969. Macau: Imprensa Nacional de Macau. Rangel, Alexandra Sofia (2012). Filhos da Terra – A Comunidade Macaense, Ontem e Hoje. Macau: Instituto Internacional de Macau. Rangel, Jorge A. H. (2004). Falar de Nós: Macau e a Comunidade Macaense – acontecimentos, personalidades, instituições, diáspora, legado e futuro. Volume I. Macau: Instituto Internacional de Macau.

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Macau de 1557 a 2014:

a coexistência de duas culturas e de duas civilizações

Ana Carolina Monteiro Fernandes Bolseira do Instituto Internacional de Macau / Real Gabinete Português de Leitura

O tempo: ontem, hoje e amanhã Ao findar do século XX e do segundo milênio da era cristã (dezembro de 1999), macau veio a tornar-se uma região administrativa especial da china, após quinhentos anos de presença portuguesa, fato que em si mesmo teve e tem imenso significado histórico e cultural. Algumas notas breves sobre o que isto significa para a história da humanidade lusa e chinesa no dealbar do século XXI e do terceiro milênio da era cristã, constitui o cerne deste pequeno ensaio. Desde os primórdios da idade moderna, séculos XV e XVI, quando se abriu o ciclo das grandes navegações marítimas lideradas pelos povos ibéricos de Espanha e Portugal, não se tem visto transformação tão significativa na ordem mundial como a emergência da China como potência econômica global na primeira década do século XXI. Nessa caminhada para o novo século, desde a reforma e abertura, em 1978, a China encontra o desafio da sua reunificação que, iniciada pelo retorno de Hong Kong à soberania chinesa, tem na recuperação de Macau uma simbólica marca da emergência de uma relação harmoniosa da China com o mundo da lusofonia. Exatamente há quinze anos, no dia 20 de dezembro de 1999, nascia a Região Especial Administrativa de Macau, na China; pequeno aconte-

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cimento altamente significativo do final do século XX. Desde então muitas transformações ocorreram na economia e na vida mundial, pondo à prova a capacidade e o talento inovador do homem de Macau para gerir com autonomia, e criar um ambiente único de encontro do ocidente com o oriente. Ambiente único de encontro de uma cultura singular do ocidente latino – a lusitana, baseada na língua do povo português; e a cultura matriz do oriente sínico, baseada na língua do povo han. Acontecimento que se amplia a uma dimensão global, dado o tamanho da população de 260 milhões de lusofalantes, que integra a comunidade de países de língua portuguesa, presente em todas as regiões do mundo. Em Macau, portanto, se encontraram duas culturas de significado especial para o Brasil porque baseadas na extensão universal das línguas de cultura chinesa e portuguesa.

(1498), e inaugurou a presença lusitana na Ásia, que os primeiros contatos se deram com comerciantes chineses que vendiam porcelana e seda aos portugueses. Mais tarde Afonso de Albuquerque pode realizar seu sonho visionário da conquista portuguesa de Malaca, conseguindo com este feito fazer do índico, tal como o oceano atlântico, um mar português. Toda uma grande estratégia imaginada por Afonso de Albuquerque para que Portugal se tornasse a potencia maritima do ocidente começou a dar seus frutos. Mais adiante, ele enviou o navegador Jorge Álvares ao estuário do rio pérola, a inaugurar um ciclo de viagens que iriam durar séculos e perpetuar a presença lusitana em terras do oriente. Pois, na sequencia, o Japão e a Coreia também seriam visitados por navegadores e missionários a serviço do rei de Portugal; e assim foram sendo demarcadas as fronteiras da lusitanidade.

Trata-se neste ensaio de abordar uma questão sensível ao universo do que Fernando Pessoa um dia denominou de “o grêmio da cultura portuguesa”: o fato de que o Brasil e Portugal têm uma mesma língua de cultura e basicamente formam um mesmo processo civilizatório.

Como assinalou Fernando Pessoa em seu livro “Mensagem”, o intérprete dos símbolos e rituais que iluminam o desenvolvimento dos destinos nacionais tem que possuir cinco qualidades ou condições para que esses símbolos e ritos tenham vida para ele: simpatia; intuição; inteligência; compreensão; e a graça, ou, talvez, a mão do superior incógnito.

Desde quando o grande navegador Vasco da Gama chegou a Calicute

Essas qualidades ou condições estavam presentes em Luis de Camões,


Macau de 1557 a 2014 ...

quando escreveu “Os Lusíadas” no auge da epopéia marítima portuguesa, como também se apresentaram em Fernando Pessoa, de forma inigualável no começo do século XX, quando este produziu “Mensagem”, onde encontra-se o poema segundo /o das quinas: – “ Os deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória com desgraça./ Ai dos felizes, porque são/ só o que passa!/ Baste a quem baste o que lhe basta/ o bastante de lhe bastar!/ a vida é breve, a alma é vasta:/ ter é tardar./ foi com desgraça e com vileza/ que deus ao cristo definiu:/ assim o opôs à natureza/ e o filho o ungiu”. Neste livro que o autor queria chamar de Portugal, encontramos como uma síntese poética e filosófica da nação portuguesa e do povo luso desde sua mais remota origem. Assim vemos no poema sobre Viriato: “Se a alma que sente e faz conhece/ só porque lembra o que esqueceu,/ vivemos, raça, porque houvesse/ memória em nós do instinto teu./ nação porque reincarnaste,/ povo porque ressuscitou/ ou tu, ou o de que eras a haste –/ assim se Portugal

formou./ Teu ser é como aquela fria/ luz que precede a madrugada, é já o ir a haver o dia/ na antemanhã, confuso nada”. Noutro poema sobre o Conde D. Henrique dirá: “Todo começo é involuntario./ deus é o agente./ o herói a si assiste, vario/ e inconsciente./ À espada em tuas mãos achada /teu olhar desce./ “que farei eu com esta espada?”/ Ergueste-a, e fez-se.” E sobre D. Tareja: “as nações todas são misterios./ Cada uma é todo o mundo a sós./ Ó mãe de reis e avó de impérios,/ vela por nós!/ teu seio augusto amamentou/ com bruta e natural certeza/ o que, imprevisto, deus fadou./ por ele resa!/ dê tua prece outro destino/ a quem fadou o instinto teu! O homem que foi o teu menino/ envelheceu./ mas todo vivo é eterno infante/ onde estás e não há o dia./ No antigo seio, vigilante,/ de novo o cria!” Finalmente D. Afonso Henriques: “Pai, foste cavaleiro./ Hoje a vigília é nossa./ Dá-nos o exemplo inteiro/ e a tua inteira força!/ dá, contra a hora em que, errada,/ novos infiéis

vençam,/ a benção como espada,/ a espada como benção!”. A aventura abriu o caminho das rotas oceânicas do mundo gerando o mercado universal contemporâneo; e tal feito está na origem do fenômeno da soi-disant globalização. Esse fato está definitivamente retratado na imortal epopéia camoniana, sobretudo nos versos que fecham o grande poema, no canto x, 152.: “fazei, senhor, que nunca os admirados/ alemães, galos, ítalos e ingleses,/ possam dizer que são para mandados,/ mais que para mandar, os portugueses ”. A poesia desses dois autores maiores da nossa língua portuguesa é um testemunho vivo da trajetória seguida pela gente lusitana, que construiu o Brasil, a África e a Ásia como pátria humana comum. Os dois poetas representam o que de melhor a lusitanidade inspirou, em diferentes épocas da história, a saga da humanidade ocidental nascida do genio do infante, e mais profunda, se faz presente na poesia de Pessoa: – “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce./ Deus quis que a terra fosse

Sé Catedral de Macau.

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toda uma,/ que o mar unisse, já não separasse./ Sagrou-te, e fôste desvendando a espuma,/ e a orla branca foi de ilha em continente,/ clareou, correndo, ate ao fim do mundo,/ e viu-se a terra inteira, de repente,/ surgir, redonda, do azul profundo./ Quem te sagrou criou-te português./ Do mar e nós em ti nos deu sinal./ Cumpriu-se o mar, e o imperio se desfez./ Senhor, falta cumprir-se Portugal!” O sonho universal da humanidade una e da pátria grande, nos versos de Fernando Pessoa, mostra o horizonte imenso que descortina do mar português: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ são lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/ quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas ficaram por casar/ para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena./ Quem quer passar além do Bojador/ tem que passar além da dor./ Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ mas nele é que espelhou o céu”. Os poemas de Fernando Pessoa fazem, pois, ecoar, séculos decorridos de sua criação, os versos de abertura do poema épico “Os Lusíadas”, de Luis de Camões, em suas estrofes iniciais (1,2, 3):

“As armas e os barões assinalados,/ que, da ocidental praia lusitana,/ por mares nunca antes navegados,/ passaram ainda além da taprobana,/ em perigos e guerras esforçados/ mais do que prometia a força humana, e entre gente remota edificaram/ novo reino, que tanto sublimaram;” “e também as memórias gloriosas/ daqueles reis que foram dilatando/ a fé, o império, e as terras viciosas / de áfrica e de ásia andaram devastando,/ e aqueles que por obras valorosas/ se vão da lei da morte libertando:/ cantando espa-

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lharei por toda parte,/ se a tanto me ajudar o engenho e arte.” “cessem do sábio grego e do troiano/ as navegações grandes que fizeram;/ cale-se de Alexandro e de Trajano/ a fama das vitorias que tiveram,/ que eu canto o peito ilustre lusitano,/ a quem Netuno e Marte obedeceram./ Cesse tudo o que a musa antiga canta,/ que outro valor mais alto se alevanta.” O alto valor literário do legado de Camões para a literatura portuguesa e mundial inaugurou uma época da história da humanidade em que as bases de um sistema internacional eram lançadas pelo comércio e a interação entre povos e civilizações: os descobrimentos das rotas oceânicas do mundo, a unir pela primeira vez todos os continentes e todos os meios de riqueza e poder do homem, fruto da grande aventura marítima de Portugal, talvez só tenha símile na conquista do cosmos da nossa época. Quando brasileiros exaltamos a grande conquista do povo português é porque ela não pode ser esquecida pelo que significou para o destino nacional do Brasil. Sem a epopéia portuguesa dos descobrimentos não haveria a nação brasileira tal como é conhecida de seus filhos e de todos os demais povos do mundo contemporaneo. Só por isso se justificaria a grande aventura do espírito luso. Mas pode ser inda hoje medida pela construção ainda incompleta do outro Brasil – o brasil africano – legado a ser realizado no futuro pelos países que formam a comunidade de língua portuguesa na África. Pois além da África, a Índia e a China foram também tocadas pela presença lusa na língua e na cultura. Desse modo podemos dizer que todo o mundo civilizado foi unido pela língua portuguesa: uma língua universal

pela riqueza de sua expressão e pelo âmbito que ela criou.

I - O interregno: promessa e realização Mas com a mesma força com que se ergueu a nação lusa, ela também declinou e deixou de guiar e comandar a história ocidental. A morte de D. Sebastião e a absorção pela Espanha filipina retirou dos portugueses a liderança ibérica, mas não decretou o fim da independência do primeiro estado unitário europeu. A “restauração bragantina”, em 1640, daria uma nova vida ao mundo português, dando a Portugal sobretudo os mitos do sebastianismo e do quinto império. “E assim, passados os quatro/ tempos do ser que sonhou,/ a terra será teatro/ do dia claro, que no atro/ da erma noite começou. Grécia, roma, cristandade,/ europa – os quatro se vão/ para onde vai toda idade./ quem vem viver a verdade/ que morreu D. Sebastião?” O sonho do quinto imperio um dia animou o imperador da língua portuguesa, Padre Antonio Vieira: – “no imenso espaço seu de meditar,/ constelado de forma e de visão,/ surge, prenuncio claro do luar,/ el rei D. Sebastião./ Mas não, não é luar: é luz e etereo./ É um dia; e no céu amplo de desejo,/ a madrugada irreal do quinto império/ doiro as margens do tejo”. Talvez a história tenha acelerado o processo de construção do Brasil, com as reformas pombalinas que determinaram que a língua portuguesa se implantasse na América lusa. Logo, de província de ultramar que era, ver-se-á guindada à condição de reino unido a Portugal e algarves pelo principe regente e, logo, rei do Brasil, D. Joao VI. A sua obra


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Templo de A-Ma, em Macau.

como rei de duas pátrias unidas pela língua e cultura comum foi decisiva para a unidade e integridade do Brasil e para a sorte de Portugal. Assim, em manifesto à nação portuguesa, ao justificar sua partida para outras terras portuguesas para preservar sua real pessoa da vassalagem a Napoleão, sabia mais do que declarou, pois manteria não somente a chama votiva da independência lusa nas terras brasílicas como lançaria as bases permanentes do Brasil como maior estado ocidental e meridional do mundo. Finalmente, quando veio acontecer a separação dos dois lados do oceano, com o grito do Ipiranga em sete de setembro de 1822, a casa de bragança se parte em duas: com o rei de Portugal, em Lisboa, e o seu filho imperador do Brasil, no Rio de Janeiro. Logo se veria que se perdera alguma coisa de importante com a separação entre lusos dalém e daquém mar: o controle do atlântico sul, outrora um mar português, tornava-se agora um domínio franco-inglês. Esta situação deverá marcar toda uma época da

história do Brasil e da sua relação com o continente africano.

“lícita e honesta é a guerra, ainda que seja entre cristãos e puramente humana, se nela concorrerem quatro condições a saber: autoridade legítima, causa justa, intenção boa e devido modo”, assim Manoel Bernardes conceitua a guerra puramente humana no seu clássico “Nova Floresta”. Não é preciso muito refletir sobre a história para compreender que a herança lusa faz parte do que podemos chamar de autoridade legítima e de uma causa justa. O século dezanove em seu final, e o vinte em seu começo, viu os dois países mudar de regime político e se tornarem repúblicas com características comuns a todas as repúblicas originárias de estados regalianos ancien régime. Assim como o Estado Novo de Oliveira Salazar, o Estado Novo de Getulio Vargas baseava-se no principio da ordem e da forte autoridade estatal para comandar o grande país luso-americano no meio da grande crise mundial. Na nova era – o novecento – a presença portuguesa no mundo se des-

cobre e se apresenta com especial e inegável luz para orientar o destino do Brasil na sua trajetória de potência tropical e meridional sul-americana. Trata-se da identidade lusa do brasileiro, que se mostra complexa e densa desde os movimentos iniciais do modernismo literário, artístico e cultural. Sendo a obra de Gilberto Freyre, talvez, o mais importante testemunho da universalidade da cultura lusitana. No livro intitulado “Um brasileiro em terras portuguesas”, assim como o fizera no clássico “Casa grande e senzala”, Freyre assume a defesa da miscigenação imposta pelas condições do povoamento e colonização do Brasil e lhe confere um caráter emblemático de resgate histórico da presença portuguesa na formação do homem brasileiro. A nova compreensão antropológica e cultural de Freyre desencadeará uma série de conceitos positivos sobre a influência lusitana no universo antropológico brasileiro. Dela se segue a revisão da forma oitocentista que se pusera a pensar o Brasil mestiço – formado pela fusão do português com o negro africano e o indígena ameríndio – como um Brasil menor frente ao conceito

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disputa da ordem mundial gestada pelas navegações ibéricas terminou com grandes perdas portuguesas, mas com uma grande e decisiva vitória: a permanência da província do estado do Brasil, indiviso e íntegro, sob o domínio português, depois da gloriosa jornada de Guararapes. Foi essa resistência heróica da população luso-americana que permitiu a continuidade da presença portuguesa em todo o território, mais tarde acordado com o tratado de Madrid, que sancionou o uti possidetis e com ele a extensão do espaço brasileiro além Tordesilhas.

Fernando Pessoa.

da superioridade da raça caucásica européia. O conceito de Freyre do mestiço lhe dá, senão inegável igualdade na sobrevivência no meio tropical, uma capacidade maior de adaptação e de manobra na lide quotidiana com a natureza e outros grupos humanos. O processo de formação histórica do homem brasileiro revelou essa peculiaridade de desenvolvimento de uma cultura integradora capaz de amalgamar diferentes fatores étnico-raciais – brancos, pretos, indios e amarelos – sob a inspiração do grupo luso. Foi sob este signo que nasceu a terra brasílica e o povo brasileiro; e assim se fez respeitar frente aos pares formado por franceses, ingleses e holandeses, contestadores de Tordesilhas. O império luso, a cavaleiro do atlântico e do índico, quando associado à Espanha, se estendia por todo o grande oceano, pois adentrava o pacífico pelos portos hispânicos. A primeira epopéia de

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A guerra entre Inglaterra e França trouxe para a realeza portuguesa um grande desafio: a necessidade de transposição da corte para o Brasil. Esta grande mudança se deu em 1808 tendo como culminancia do processo a elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves, vale dizer, aquela altura à condição de sede de uma monarquia universal presente em todos os continentes. A elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e algarves se faz seguir da aclamação de D. João VI e a partir de então o brasil se junta ao mundo das nações imperiais com toda a gravidade dessa condição. A separação de Portugal e das regiões africanas e asiaticas que formavam uma única comunidade de nações se fará por um tempo historico que se abrevia à medida que se avança na construção da comunidade dos países de língua portuguesa. E de novo o épico de Camões serve de inspiração: “Para servir-vos, braço às armas feito,/ para cantar-vos, mente às musas dada;/ só me falece ser a vós aceito,/ de quem virtude deve ser prezada./ se me isto o céu concede, e o vosso peito/ digna empresa tomar de ser cantada, como a pres-

saga mente vaticina/ olhando a vossa inclinação divina” canto x, 155.

II - O hoje e o amanhã: o esperado e o desejado A grande epopéia portuguesa de conquista das rotas oceânicas do mundo na virada do século XV para o século XVI fez mudar a história do ocidente e do oriente. Mais uma vez recordemos os versos de Fernando Pessoa na “Mensagem”, vii. Occidente: “Com duas mãos – o acto e o destino –/ desvendámos. No mesmo gesto, ao céu/ uma ergue o facho tremulo e divino/ e a outra afasta o véu./ Fosse a hora que haver ou a que havia/ a mão que ao occidente o véu rasgou, foi alma a sciencia e corpo a ousadia/ da mão que desvendou./ fosse acaso, ou vontade, ou temporal/ a mão que ergueu o facho que luziu,/ foi deus a alma e o corpo portugal/ da mão que o conduziu.” A importância da conquista lusa das passagens do grande oceano que banha o hemisfério ocidental, da áfrica e da ásia residiu sobretudo na aventura de levar aos continentes mais distantes a fé cristã e a nova ciência da natureza, que veio a substituir o cosmos do mundo antigo pelo universo infinito da era moderna. Foi essa passagem do ocidente ao oriente que permitiu a Índia e a China se integrarem ao mundo da modernidade e se introduzirem no sistema industrial e urbano que da Europa se estendeu a todo o mundo. Símbolo vivo dessa relação do mundo lusófono com o oriente tem sido a cidade de Macau que, fundada em 1557, permaneceu administrada


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mino do segundo milênio da era cristã. Ao concluir este ensaio passo a avaliar o papel especial de Macau na situação internacional contemporânea. A região administrativa especial de Macau/China é também um lugar de grande importância para o observador internacional pela aplicação prática de um conceito de alcance universal, criado pelo arquiteto geral da reforma e abertura da China: Deng Xiaoping. Trata-se do conceito de “um país, dois sistemas” que, aplicado a Macau, tem se revelado exitoso ao longo de quinze anos de duração da região especial administrativa de macau. Luis de Camões.

por Portugal até 1999, num arco de tempo que foi dos começos da época dos descobrimentos até ao tér-

A partir desse conceito pode ser dado à gente de Macau, como também já o fora para os habitantes de Hong Kong, total autonomia administrativa nos planos econômicos, po-

líticos e financeiros, cabendo ao governo central de Beijing a direção da politica externa e da defesa nacional. Suas diretrizes se fizeram presentes na declaração conjunta sino-portuguesa sobre a questão de Macau, de 13 de abril de 1987 e se tornaram o núcleo da lei básica que governa a região especial administrativa de Macau da R. P. China desde 1999. Os quinze anos decorridos desde o retorno de macau ao seio da nação chinesa demonstraram o acerto da politica e a importância crucial do conceito de “um país, dois sistemas” para a direção e orientação dos novos dirigentes de macau. Esses anos revelaram também que Macau não só acompanhou o ritmo acelerado de desenvolvimento chinês como se tornou uma plataforma de cooperação e intercâmbio da China com o mundo de fala portuguesa em todos os continentes.

Bibliografia Alves, Jorge Santos (Coord.) PORTUGAL E INDONÉSIA: Historia do relacionamento politico e diplomático (1509-1974). Macau, IIM, 2013. Bernardes, Manuel. NOVA FLORESTA. Rio de Janeiro, Clássicos Jackson, 1950. Cabral, Severino. O BRASIL E A CHINA: Relações de Cooperação para o Século XXI. Macau, IIM, 2005. Cabral, Severino. AS RELAÇÕES BRASIL-CHINA E OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI. MACAU, IIM/IBECAP, 2009. Cabral, Severino. CHINA: UMA VISÃO BRASILEIRA. MACAU, IIM/IBECAP, 2013. Camões, Luis de. Les Lusiades / Os Lusíadas. Edition bilingue portugais-français. Paris, Robert Laffont, 2001. Camões, Luis de. OS LUSÍADAS. Rio de Janeiro, Bibliex, 1980. Carreira, Ernestina. “Globalising Goa (1660-1820): Change and exchange in a former capital of empire”. Goa, Goa 1556, 2014. Freyre, Gilberto. China tropical. São Paulo, UNB, 2003. Freyre, Gilberto. UM BRASILEIRO EM TERRAS PORTUGUESAS. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1953. Gary Ngai (ORG.) MACAU-PUENTE ENTRE CHINA Y AMERICA LATINA. MACAU, MAPEAL/IIM, 2006. Li Jinzhang & Reis, Maria Edileuza Fontenele. O papel de Macau no intercambio sino-luso-brasileiro. Macau, IIM/IBECAP, 2013. Pessoa, Fernando. Obra completa. Rio de Janeiro, Aguilar. Pessoa, Fernando. MENSAGEM. Edição clonada da Biblioteca Nacional de Portugal. Babel, 2010. Tang, Yijie. Valeur du principe: “Être en harmonie sans être identiques”. Paris, alliage/dialogue transculturel n. 1, 2001.

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António Manuel Couto Viana e Padre Manuel Teixeira: o Natal em verso

António Aresta Professor e investigador

No antigo jornal Gazeta Macaense, então dirigido por Leonel Borralho, na edição de 24 de Dezembro de 1987, exactamente há 28 anos, foi publicado um poema de António Manuel Couto Viana, “Natal de Exílio” e um outro, como a “resposta” que lhe deu o Padre Manuel Teixeira, sob o título, “O Amor é Universal”. O Padre Manuel Teixeira (1912-2003) foi, décadas a fio, a figura tutelar da vida cultural de Macau, fecundo cronista e laureado historiador com largas dezenas de títulos publicados em vários idiomas, destacando-se Galeria dos Macaenses Ilustres (1942), Toponímia de Macau (1979), Camões Esteve em Macau (1981) ou Macau no Século XVIII (1984). António Manuel Couto Viana (19232010), poeta consagrado e premiado, teve uma passagem episódica pelo Território [veja-se O Poeta no Oriente do Oriente, edição do Instituto Internacional de Macau, 2007], mas não obstante isso, devemoslhe o mais genuíno lirismo de feição aristocrático e orientalista, onde a palavra se entrelaça em vigorosos

António Manuel Couto Viana. (Desenho de Carlos Marreiros).

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António Manuel Couto Viana e Padre Manuel Teixeira: o Natal em verso

contornos épicos e éticos [No Oriente do Oriente, 1987; Até ao Longínquo China Navegou, 1991]. Macau emerge assim com uma insuspeitada pulsão existencialista, ansiando responder à pergunta que Camilo Pessanha inscreveu na Clepsidra: “Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos, porque não vos fixais?”. À superior oficina poética de António Manuel Couto Viana, oferece o Padre Manuel Teixeira uma tocante simplicidade e um humanismo real e lhano. Para não correr o risco de ficar perdido, resgato do esquecimento este invulgar momento poético digno da melhor tradição do jornalismo literário dos fins do século XIX. Ao que tudo indica, ambos os poemas não foram recolhidos em volume pelos seus autores. O Poeta residiu em Macau num contexto histórico especial, onde as comunidades estavam muito expectantes quanto ao verdadeiro significado da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o futuro do Território.

Padre Manuel Teixeira.

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Recorda com alguma nostalgia, numa conferência proferida em 2007, na Delegação Económica e Comercial de Lisboa, “que recebeu, do Instituto Cultural de Macau, o honroso convite de se deslocar ao ainda português território oriental do rio das Pérolas, para estruturar-lhe toda a actividade teatral, quer portuguesa quer chinesa; de colaborar na criação de um Conservatório de Música, Dança e Teatro; ministrar um curso intensivo de arte dramática a quem, de expressão portuguesa, o pretendesse frequentar, e, finalmente, organizar o espectáculo de 10 de Junho de 1986, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. O poeta, também mestre de Teatro, aceitou, com prazer, as difíceis mas aliciantes incumbências”. A aceleração da História chegou com o tempo da transição, para uns uma realidade ornada por uma sofrida nostalgia e para os outros uma época de inominável exaltação e patriotismo. A maioria, expatriada e ultramarina, essa celebrará o espírito de Macau no continente que profissionalmente a acolheu. O Padre Manuel Teixeira foi determinante para a integração e ambientação de António Manuel Couto Viana a Macau. Com efeito, “dois dias após, refeito da longa viagem, o poeta teve o privilégio de fruir de um passeio pela cidade e pelas ilhas da Taipa e Coloane, na companhia apaixonante de Monsenhor Manuel Teixeira, o sábio historiador daquelas paragens, solícito em realçar as belezas da terra e o valor dos seus faustos”. O Padre Manuel Teixeira muito mais ciente dessa nova realidade ontológica, retorquiu deste modo:

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Natal de Exílio Vai nascer-me o Menino no exílio. (Nenhum riso a rosar-lhe a palidez?) Como louvá-lo, então? Como pedir-lhe auxílio? Não chega a tanto o meu chinês. Vou olhar-lhe no olhar oblíquo e grave A censura à saudade e ao desejo De me evadir em voo, como íntima ave, Rumo ao Norte de mim, com a prece e o beijo? De me sentir seguir na caravana De algum rei oriental que leu a luz nos céus, Pra adorar o presépio da infância de Viana E em Sintra consoar na comunhão dos meus? Acaso entenderá que eu não entenda, não, Que o Menino nascido aqui é igual Ao nascido onde tenho o coração? E que sem coração eu não tenha Natal?

Cidade do Nome de Deus de Macau 29.10.1987 António Manuel Couto Viana

O Amor é Universal Ao Poeta Couto Viana, que soltou este lamento: “Vai nascer-me o Menino no exílio (Nenhum riso a rosar-lhe a palidez?) Como louvá-lo, então? Como pedir-lhe auxílio? Não chega a tanto o meu chinês.”


António Manuel Couto Viana e Padre Manuel Teixeira: o Natal em verso

RESPOSTA Não tenha pena, afinal, De não chegar-lhe o chinês: O Amor é universal, Jamais teve palidez. De Macau até Pequim, De Nova York a Lisboa, Retine como um clarim, Por todo o mundo ressoa. É a eterna melodia Que alegra a terra e o céu, É a mais bela harmonia Que pelo mundo irrompeu. Que sinfonia tão bela A sinfonia do Amor! Todos se reveem nela E lhes dá vida e calor. O Menino entende a peça Desta alegre sinfonia, Inda que ela seja expressa Numa infinda algaravia.

Nessa mesma edição da Gazeta Macaense aparece uma pequena notícia intitulada “Cânticos de Natal em Patois”, informando os leitores que “poderão ser escutados no próximo domingo, dia 27, através da Emissora da Rádio Macau, durante a transmissão do programa dominical Macau ao Vivo, co-produzido pela TDM e ICM e apresentado por Luís Machado e João Manuel”. Já então se dizia que os “entusiastas do patuá terão, assim, a oportunidade rara de escutar um programa de agrado certo, no mavioso dialecto macaense, hoje em vias de completa extinção”. Como se nota, e apesar das adversidades, a defesa do patuá foi sempre uma preocupação sentida pela comunidade. A imprensa escrita continua a ser uma fonte contínua de cultura, de história e de memórias. Uma parte significativa da identidade cultural de Macau está registada e documentada na imprensa periódica dos últimos duzentos anos.

Amo – diz o português Ich libe – o germano Ngó hói nei – cá o chinês Te amo – canta o italiano. Je vous aime – o bom francês Yo ti amo – o espanhol I love you – repete o inglês, Do nascer ao pôr do sol. Cada língua é diferente, Mas o Amor é sempre igual. Jesus acolhe-o contente, Ou na China ou em Portugal.

Macau, Natal de 1987 Padre Manuel Teixeira

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A questão da emigração chinesa via Macau

nas páginas do Diario do Rio de Janeiro a partir da década de 1850 Julianna de Souza Cardoso Bonfim Bolsista pelo Instituto Internacional de Macau/Real Gabinete Português de Leitura Doutoranda pela UERJ A emigração de chineses para as Américas, no século XIX, ocorria tanto pelo deslocamento autônomo de indivíduos quanto por ações dos governos locais que os receberiam. No Brasil, entre a vinda experimental de chineses para o cultivo de chá, durante o governo de D. João, e a efetivação da imigração, o assunto suscitou debates tanto no governo quanto na imprensa, que, em grande parte, entendia esse trâmite como um novo modelo de escravidão. Principalmente a partir da década de 1850, o assunto tomava as pautas brasileiras, e os fazendeiros das áreas cafeeiras começavam a se convencer da inevitabilidade da abolição após as diversas ações da Inglaterra em prol da erradicação do tráfico negreiro. Esse fato, juntamente com o temor da miscigenação entre brasileiros e orientais – assim como a diferença cultural entre esses povos – constituiu-se uma polêmica nos jornais da época. São reconhecidas as opiniões de literatos brasileiros e portugueses

que trataram do tema, sobretudo a partir da década de 1870, como Visconde de Taunay, Eça de Queirós, Joaquim Nabuco e Machado de Assis1.

brancos, que por todos esses nomes vão ali conhecidos estes emigrantes livres, os quais lançaram fogo à embarcação, sendo vítimas quase todos do seu desespero.2

O viés interdisciplinar do tema da emigração chinesa lança luz sobre um importante aspecto das relações históricas entre Brasil e China, tanto pela questão político-econômica quanto pela cultural, destacando-se o papel de Macau como ponto de partida dessa questão, já que as transações para a vinda dos trabalhadores chineses passavam pelo porto macaense, conforme se verifica em trecho do Diario do Rio de Janeiro:

Apesar de a emigração de trabalhadores da China ser legalizada e entendida como de trabalhadores livres, as condições a que esses colonos – chamados à época de coolies – estavam sujeitos lembravam o tráfico de escravos negros, prática comum à época, porém em vias de extinção. Além disso, alguns deles eram forçados a emigrarem contra a vontade, outros enganados por falsas promessas, e havia enorme preconceito da sociedade branca em relação aos asiáticos.

A emigração chinesa feita pelo porto de Macau continua a dar motivo a cenas horríveis, demasiadamente repetidas... A última catástrofe de que em Lisboa há noticia, é a do navio D. Juan saído de Macau a 4 de Maio com um carregamento de mais de 650 emigrantes chins, chuchaes, coolies, ou escravos

A partir das palavras dos colaboradores do Diario, foi possível recompor os discursos da época a respeito dessas questões que atravessam aquele momento histórico, com base em verdadeiros testemunhos sobre sociedade e cultura no Rio de Janeiro encontrados nesse material3.

_________________ 1

OLIVA, Osmar Pereira. “Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Eça de Queirós e a Imigração Chinesa – qual medo?”. In: Revista da Anpoll. Vol. 2. N. 24. 2008.

2

Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 07 ago. 1871, p. 3. Itálicos do original. Informamos que, em casos de citação direta, optou-se pela modernização do português empregado no século XIX, quando a modernização não gere alteração fonética. Mantiveram-se as grafias de nomes próprios, para facilitar consultas posteriores em bancos de dados. Alertamos de antemão que muitas das seções não trazem indicação de autoria, a qual será feita, sempre que houver.

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A questão da emigração chinesa via Macau ...

O periódico O Diario do Rio de Janeiro é um periódico carioca, com circulação entre 1821 e 1878. Foi fundado pelo português Zeferino Vito de Meireles que, no primeiro momento, foi também seu redator. Foi o primeiro jornal informativo do país, pioneiro também na frequência diária de sua tiragem e na publicação de anúncios de toda a sorte. Entretanto o jornal se mantinha longe de questões mais espinhosas: segundo Nelson Werneck Sodré, “a folha era deliberadamente omissa nas questões políticas”4. Em relação à escolha do periódico, além de o Diario do Rio de Janeiro ter sido um dos mais importantes jornais brasileiros, tendo, como já dito, começado a circular ainda em 1821, foi um dos que maior relevância deu à questão da emigração chinesa, debatendo o tema, sobretudo a partir da década de 1850, trazendo as opiniões diversas sobre essa problemática, as quais, como analisaremos adiante, alteraram-se pouco com o passar dos anos. A questão migratória tomava espaço no periódico tanto quando se tratava de chineses vindo para o Brasil quanto da ida de trabalhadores da China para outros países. No levantamento prévio realizado durante nossa pesquisa, identificou-se que o assunto é pauta do Diario do Rio de Janeiro desde pelo menos a edição de 8 de junho de 1852, em que se comenta a notícia de uma leva de oito mil chineses para Cuba: “Não há dúvida que esta experiência pode dar em todos os sentidos muito importantes resultados”5, em que se nota certa expectativa de que os colonos chineses sejam uma alternativa para

Planta da Península de Macau, cerca de 1890.

quando ocorresse a abolição da escravatura. Além das notícias do exterior em geral, apesar de se tratar um jornal brasileiro, fundado no Rio de Janeiro, o Diario trazia constantemente informações sobre o que se passava em Portugal, indício evidente de que seu público-

alvo incluía a colônia portuguesa no Rio de Janeiro. Ao longo de suas quatro páginas em tamanho grande, como a maioria dos jornais atuais, o Diario do Rio de Janeiro tratava de grande sorte de assuntos, como o movimento

_________________ 4

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 50.

5

Diario do Rio de Janeiro, 8 de junho de 1852, Rio de Janeiro, p. 1.

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das marés, o preço de alguns produtos de consumo, anúncios dos mais diversos comércios (incluindo espetáculos e reclames de escravos fugidos), notícias criminais, sem abandonar o tradicional folhetim ao pé de página e, o que mais nos interessa a princípio: a seção Exterior, que concentra grande parte das referências à emigração chinesa para o Brasil e, na década de 1870, uma seção dedicada aos discursos na Câmara dos deputados. Além da seção Exterior, é possível encontrar o tema da emigração em outras seções, como Agricultura , Variedades e Publicações a pedido. Na década de 1850 houve, inclusive, uma seção especial com o nome de Notícias de Macau, o que mais uma vez sublinha a importância desta província portuguesa para o Brasil. Ao contrário do que se pensou inicialmente na pesquisa, essa seção pouco ou nada dá conta da emigração, preocupando-se exclusivamente em dar notícias de conflitos ocorridos em Macau a essa época. Figura 1 – Diário do Rio de Janeiro, 6 abr. 1857, p. 3.

A situação dos macaenses A década de 1840 foi uma época de grandes mudanças e insatisfações em Macau. A inclusão de Macau como um província ultramarina de Portugal trouxe alterações pouco satisfatórias aos nativos. Não bastasse a perda de poder de seu porto, com a ascensão do porto de Hong Kong – então colônia britânica –, Macau foi declarado por Portugal um porto franco, teve seus impostos reduzidos e a abolição de sua alfândega. Acrescenta-se a isso a morte do governador João Ferreira do Amaral, em 1849, pelos chineses. É possível imaginar a crise que ali se instalava. A seção Notícias de Macau, portanto, aparece em alguns momentos, so-

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bretudo os de crise, na década de 1850, dando notícias da situação nessa localidade, principalmente no tocante à resistência dos macaenses em aceitar o governo imposto por Portugal. Em várias seções do Diario do Rio de Janeiro, expunham-se as relações de trabalho dos chineses, não só em Portugal como nas Américas, crimes cometidos devido a hostilidades ocorridas envolvendo os chineses, bem como toda a sorte de notícias que dava conta desses trabalhadores. Havia, inclusive, na seção de anúncios, alguns que davam conta de fugas (v. figura 1) que em nada se diferem dos que procura-

vam escravos negros fugidos, também comuns na mesma seção do periódico, o que corrobora a ideia de que os coolies eram, apesar de tratados de “trabalhadores”, na verdade, escravos, conforme analisaremos adiante neste trabalho. Com o fim do tráfico negreiro cada vez mais iminente, o Brasil pensava em novas fontes de mão de obra. Os chineses foram os primeiros trabalhadores estrangeiros trazidos para trabalhar na agricultura, ainda no início do século XIX. Uma colônia de chineses, ou chins, como o jornal por vezes chama, veio de Macau para o Rio de Janeiro com intervenção do Governo Real Português,


A questão da emigração chinesa via Macau ...

nas primeiras décadas desse século, com o objetivo de cultivar chá em terras brasileiras. Como havia crises internas ocorrendo em Macau, alguns chineses viam na emigração uma oportunidade de melhoria de vida, já que em sua terra natal chegavam a passar fome. Entretanto o cenário que encontravam ao chegar no Brasil era bastante diferente de uma terra prometida: tratados como escravos – provavelmente única relação de trabalho conhecida pelos donos de fazenda brasileiros – os colonos não aceitaram as condições e houve fugas e mortes. Os asiáticos eram comparados aos negros no que tange aos estereótipos raciais e, da mesma forma, por suas diferenças em relação aos ocidentais, sofreram preconceitos, sendo também acusados de preguiçosos e propensos aos vícios e crimes. Assim como os escravos negros, os chamados coolies 6 recebiam nomes portugueses, sendo obrigados, logo de partida, a abandonar sua identidade nacional. Havia uma tentativa de encarar a vinda dos chineses como uma migração espontânea, usando termos como “colonos”7 ou “trabalhadores para a lavoura”8, mas, em alguns (não raros) momentos, fala-se em “importação”9 e em “fuga” (v. figura 1). Ora, importação é um termo em-

pregado para mercadorias e, se o trabalhador é livre, por que encarar sua desistência como fuga? Percebe-se, então, que o discurso não se sustenta. Como prova da afirmação de equiparação dos chineses com os escravos africanos, podemos citar um anúncio do Diario do Rio de Janeiro, destacando a grande circulação deste – ou seja, nada havia de fora do comum em “caçar” coolies, dando recompensas por isso (v. figura 1). Há muitas notícias também de prisões de chins, assim como de escravos negros. Em geral, essas prisões ocorriam por “desordem” ou “ferimentos”, chegando a haver, inclusive, o emprego do termo “escravos” para se referir aos chineses, assumindo-se que, na verdade, eles de fato não eram trabalhadores livres como se queria fazer parecer. Uma dessas citações com o emprego de “escravo”, referindo-se a trabalhadores chineses, encontra-se na edição de 29 de maio de 1862, seção Estatísticas da corte – fixa no jornal –, que trazia diariamente uma lista com as prisões ocorridas por aqueles dias: “Foram presos à ordem das respectivas autoridades no dia 27 do corrente, (...) dous chins, Vicente e Rosa, escravos, por desordem” (grifo nosso)10. Ainda que houvesse esse grande e notório preconceito contra os asiáticos, em alguns momentos, o jornal

trazia informações sobre a cultura chinesa, com algum reconhecimento da sabedoria oriental, como em artigos sobre a produção da seda, sobre a alimentação ou o próprio cultivo de chás e até o modo como educavam suas crianças. Consideremos um trecho que trata da frenologia11 chinesa, segundo o Diario, diferente da praticada na Europa: “Os chins têm a sua frenologia particular, porque não fazem do crânio o objeto das suas investigações; julgam pelo desenvolvimento maior ou menor de qualquer parte do corpo humano. Assim, para eles as orelhas grandes são sinal de larga vida. Uma frente ampla manifesta uma vida satisfeita e o mesmo indica uma barriga avultada (...)”12. Antes da análise do periódico proposto, vale ressaltar, também, que outros periódicos da época abordaram a temática da imigração chinesa, como a Revista Illustrada, que trazia, inclusive, em uma de suas capas, uma imagem que representava a opinião daquela publicação a respeito da imigração chinesa. Abaixo do desenho de duas cabeças (a de um negro e a de um chinês), acima das quais se encontra um fazendeiro branco, como se as estivesse montando: “Preto e amarelo. É possível que haja quem entenda que a nossa lavoura só pode ser sustentada por essas duas raças tão feias! Mau gosto!” (v. figura 2).

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A palavra coolie, utilizada para designar esses trabalhadores chineses, atualmente é um termo pejorativo, posto que empregado nesse contexto tão preconceituoso do século XIX.

7

“Entrou ontem de Singapura, com 81 dias de viagem, a barca americana Eliza Ann, trazendo a seu bordo 303 colonos chins” (grifo nosso). Diario do Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1855, Rio de Janeiro p. 3.

8

“Trabalhadores para a lavoura” foi o nome dado a um artigo publicado na edição de 24 de maio de 1878 do Diario do Rio de Janeiro, p. 3.

9

“Em consequência do bom resultado que têm dado os trabalhadores chins, vindos há três ou quatro anos, efetuou-se um contrato por uma casa inglesa desta cidade para a importação de 8.000 chins” (grifo nosso). Diario do Rio de Janeiro, 08 de junho de 1862, Rio de Janeiro, p. 2.

10

Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 mai. 1862, p. 3. Teoria científica, muito popular no século XIX, que pretendia determinar características da personalidade e propensão ao crime pela forma e tamanho da cabeça. Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 09 jan. 1867, p. 2.

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clusive, protestos contra a imigração. A Revista Illustrada publica, em 1880, na seção Bibliografia, notícia do livro de Salvador de Mendonça13, que estudou o trabalho dos chins nos Estados Unidos. Segundo a Revista, o autor defende a colonização chinesa como “a única salvação do país”, mas considera os chineses como “uma raça fraca, sem independência, física e moralmente anêmica”. Salvador de Mendonça, por sua vez, recomenda a colonização chinesa, porém chama os chins de “suspeitosos, desleais, mentirosos e “dados ao latrocínio” 14 . Essa visão dos asiáticos assemelha-se em tudo à que a sociedade tinha dos escravos negros, baseada no mesmo preconceito: a diferença de cor da pele. Vale destacar que os mesmos que bradavam contra a vinda dos chineses eram totalmente favoráveis à colonização europeia: italianos, alemães e holandeses, com sua pele clara, cabelos loiros e olhos azuis eram muitíssimo bem-vindos, ou seja, o problema não estava no fato de o governo acabar com a escravidão, ou na qualidade do trabalho na lavoura ou em adotar mão de obra estrangeira. A questão era a procedência desse estrangeiro, mormente a cor de sua pele, mas era o que se podia fazer, já que as condições do país não eram favoráveis para atrair a colonização europeia, conforme assevera Seyfert: Figura 2 – Revista Illustrada, jul. 1881, Rio de Janeiro, p. 1.

A Revista passa a tratar desse assunto já no fim da polêmica, na década de 1880, já quando o Diario do Rio de Janeiro não estava mais

em circulação (lembremos de que sua última edição saiu em 1878). Mantendo-se sempre contrária ao trabalho chinês, a revista cobre in-

A inquietude com a situação do país expressa a dificuldade de atrair a imigração espontânea de europeus e, principalmente, a falta de mobilização do poder público para a questão indígena

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MENDONÇA, Salvador de. Trabalhadores Asiaticos. Nova Iorque: Typographia Novo Mundo, 1879. A obra em questão, segundo a Revista Illustrada, foi encomendada por Thomaz Coelho, então ministro da agricultura, para estudar a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre nos EUA.

14

Revista Illustrada, mar. 1880, n. 199, Rio de Janeiro, p. 3.

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e algumas posições favoráveis à vinda dos coolies, claramente influenciadas pela presunção da inferioridade dos asiáticos, incluídos no mesmo tipo racial dos índios. Insinua-se, aí, a imagem negativa de um aumento da população a ser civilizada à maneira ocidental-cristã, tornando a serventia futura dos chineses uma dissimulação apensa à maior regularidade de entrada de gente da Europa15. Houve, no Rio de Janeiro, já no fim da década de 1879, quando o Diario não mais estava em circulação, protestos contra o processo de colonização dos chins. Esses foram registrados pela Revista Illustrada, que sempre se mostrou contrária à causa (v. figura 3). Na mesma edição supracitada, em página dupla no meio da Revista, uma série de desenhos critica o emprego dos chineses da lavoura, representada pela figura de uma jovem triste, cercada por um escravo negro e um coolie. Na legenda da imagem, é possível ler: “Pobre lavoura! Já não bastava o preto, vais ter o amarelo! Com o auxílio de duas raças tão inteligentes, ela há-de progredir de um modo espantoso!” (v. figura 4). A legenda irônica representa bem o estilo da Revista, que costumava trazer ilustrações irreverentes sobre os temas em voga.

Figura 3 – “Grande protesto contra a colonização chinesa, como perturbadora da paz doméstica dos galinheiros desta Corte e subúrbios”. Revista llustrada, ago. 1879, Rio de Janeiro p. 1.

Para a elaboração deste ensaio, após identificar os textos referentes à emigração chinesa publicados no Diario do Rio de Janeiro, 50 artigos, tomamos por base para nossa discussão aqueles que representavam mais claramente os pontos da

polêmica em relação à temática da imigração chinesa. Chegamos, desse modo, a um total de 25 textos do Diario para um estudo mais minucioso. Por meio desses, inten-

cionamos compor um panorama geral do tratamento da emigração chinesa no Brasil no século XIX, sob a perspectiva do periódico eleito.

_________________ 15

SEYFERTH, 2002, p.124.

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inglês, chamando de Constitucional pelo Diario, com notícias de Havana, que diz: Em consequência do bom resultado que têm dado os trabalhadores chins, vindos há três ou quatro anos, efetuou-se um contrato por uma casa inglesa desta cidade para a importação de 8.000 chins. Já se acham todos contratados para a sua chegada, ao preço de 125 pesos: vêm justos para trabalharem por 5 anos, recebendo o jornal de 7 pesos fortes por mês. Se este ensaio provar bem, como aconteceu com o primeiro, será sem dúvida repetido16. Figura 4 – Revista llustrada, ago. 1879, Rio de Janeiro p. 4.

A imigração dos coolies: uma questão controversa A ideia da imigração chinesa, de início, desagradou bastante à sociedade e aos políticos brasileiros. Imbuídos de preconceitos de raça, sonhavam com uma imigração europeia, mas, ao mesmo tempo, admitiam que o país não estivesse pronto para receber aquele povo, que consideravam muito civilizado e, portanto, exigente em relação às condições de trabalho, à locomoção (não havia ainda muitas estradas) e aos valores – já que nada se pagava aos escravos negros. É interessante notar que, na década de 1850, não havia ainda a ocorrência do termo coolie no Diario do Rio de Janeiro; os colonos chineses eram referidos sempre como chins. Havia, à época, grande resistência da sociedade em relação à

emigração desses trabalhadores para o Brasil, mas a opinião do jornal, de modo geral, era favorável à contribuição de mão de obra chinesa. O jornal, que já acompanhava a experiência da emigração para outros países – sobretudo Cuba e Estados Unidos – já entendia o trabalho dos chineses na lavoura como boa alternativa em falta da mão de obra escrava negra. Influenciados pelas potências do mundo oitocentista, é interessante notar que o jornal apresentava uma forte preocupação com a repercussão da emigração nos outros países, como meio de conferir a eficácia do trabalho do colono chinês nestes. Notícias davam conta dos chineses em Cuba, nos Estados Unidos... A edição de 08 de junho de 1862 traz uma tradução de artigo do jornal

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Diario do Rio de Janeiro, 08 de junho de 1862, Rio de Janeiro, p. 2.

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Já em 1867, o Diario noticiava o endurecimento das leis antiescravistas em vigor nos Estados Unidos, para combater a exploração de mão de obra, iniciativa que certamente amedrontava mais os fazendeiros brasileiros, que já esperavam o fim do trabalho escravo: Os Chins nos Estados Unidos – Por circular da repartição de fazenda, em Washington, ordenouse aos inspetores das alfândegas, no Atlântico e no Pacífico, que tratem de averiguar todos os casos de violação das leis relativamente no tráfico de coolies (chins) e deem imediatamente conta à referida repartição, notificando ao mesmo tempo o juiz mais próximo do distrito acerca de tal violação. Terá por origem este aumento de vigilância os projetos dos puritanos de New England para introduzir coolies no serviço de suas fábricas, que protegidas pelas tarifas quase proibitivas que estão em vigor nas alfândegas,


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não querem todavia pagar os salários que pede a gente branca que nelas trabalha, e procuram no trabalho desses coolies o aumento dos dividendos, como no tempo da guerra procuraram remédio contra a conscrição importando alemães?17 Entrando enfim na década de 1860, encontramos um relatório de Teófilo Ottoni, que demonstra satisfação com sua experiência de alguns anos no emprego de chineses em sua empreitada no Vale do Mucuri, em Minas Gerais, contrariando o que afirmava o senso comum da época. Apesar de um discurso ainda carregado de preconceitos, Ottoni demonstrava preocupação em pagar pelo trabalho e em dar – sobretudo se considerados os padrões da época – um mínimo de dignidade aos colonos: Contratei o serviço de cerca de 100 chins há três para quatro anos. Foi uma excelente aquisição, de que tenho tirado vantagem. O segredo que dá este resultado é simples, – pontualidade no pagamento do salário estipulado e exatidão no fornecimento dos víveres, na forma de contrato18. São da década de 1860, quando o Diario do Rio de Janeiro ainda mantinha sua linha avessa à política, a maioria dos textos instrucionais, a respeito do cultivo de chá, café, algodão e outros produtos da lavoura, que tinham os chins como seus (potenciais) cultivadores. Cabe aqui destacar, pelo teor desses textos, como era incipiente o conhecimento a respeito desses gêneros de plantio. Por vezes, aparecia a seção

Avenida Central do Rio de Janeiro, no início do século XX.

Agricultura, com informações bastante detalhadas e descritivas. Em trecho de uma edição de 1861, na seção Agricultura, é possível ler uma descrição minuciosa das condições de trabalho dos coolies no transporte de chá depois de já negociado pelo mercador, relatando todo o processo e o modo como era tratada a mercadoria ainda na China: Cada ano, por ocasião de fazer as competentes compras, os mercadores de chá vão às pequenas cidades dos países produtores; compram os produtos obtidos pelos rendeiros ou sacerdotes cultivadores, porque os templos chineses são muitas vezes os centros do comércio de explorações agrícolas. A máxima parte das herdades são de medíocre extensão para produzir um lote, ou, empregando a locução chinesa, um chop, representando 600 cai-

xas de cada sorte. É pois necessário que o mercador se dirija a um certo número de produtores. Realizadas as compras, tratam de esvaziar as caixas e combinar as sortes diversas, a fim de obter certas qualidades distintas de chá, reunindo os produtos que oferecem entre si maiores analogias. Muitas vezes o mercador alterava os produtos com o fim, às vezes, de ajuntar às folhas dessecadas substâncias colorantes ou cristalinas. Para isso dispõe o mercador de uma oficina completa; ele é, pois, ao mesmo tempo, debaixo de certo ponto de vista, negociante e preparador de chá. Cada chop formado desta mistura recebe um nome, designando a qualidade e por consequência o valor comparativo do chá que contém. As caixas são então metidas em coolies e transportadoras assim às costas de homens, através de vales até os rios, que co-

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Diario do Rio de Janeiro, 01 de novembro de 1867, Rio de Janeiro, p. 2. Diario do Rio de Janeiro, 26 de maio de 1860, Rio de Janeiro, p. 2.

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municam com as cidades onde os espera o comércio europeu. Cada coolie só pode levar uma caixa quando a qualidade é superior. Essa caixa acha ponto de apoio nos ombros, com o auxílio de duas camas de bambu que tornam o transporte fácil. Em caso nenhum essa caixa vai ao chão e quando há necessidade de parar nas hospedarias da estrada, fica ela suspensa pelo coolie ao longo de uma parede ainda com a ajuda dos bambus que servem para fazer carregar19. Na mesma seção Agricultura, no dia seguinte, o Diario traz um verdadeiro tratado sobre os cuidados com a higiene na preparação do chá, tecendo elogios à forma chinesa de fazê-lo: “Como exemplo da feliz influência alimentar do chá[,] é ainda a China que se oferece na primeira linha, da mesma maneira que nos ensina os melhores métodos de preparação e cultura”20. F. A. de Varnaghen, enviado aos países vizinhos ao Brasil, a fim de avaliar os proventos da emigração chinesa, escreve, em carta publicada no Diario do Rio de Janeiro, ao Ministro das obras públicas, recomendações, reconhecendo que o emprego do trabalho chinês é efetivamente uma boa opção, mormente em vista da falta da mão de obra que acometia certos locais: Pouco a pouco (...) me abalava a lembrança de que em Lima escasseariam demasiado os criados (...) e ao entrar na ilha de Cuba,

em vários engenhos, e ao ver tantos [chins] trabalhando ativamente não só no campo, como ainda melhor na casa das caldeiras, etc., tinha momentos de chegar a desejar, à custa de quaisquer sacrifícios, ver as cidades e os engenhos do Brasil povoados de tais entes de raça malaio-mongólica21. Já em 1868, na seção Exterior, o correspondente do Porto, em Portugal, dava conta de que

a usual, argumentando que “na Califórnia, o europeu americano ganhava de quatro a cinco dollars em ouro por dia, pelo mesmo trabalho executado pelo chim, com igual perfeição, por um a dous dollars”24. Mais uma vez destacamos a importância da influência estrangeira nesses trâmites emigratórios. O papel dos correspondentes foi de grande relevo para a formação das opiniões internas, que, como podemos observar, começa a ser ainda mais favorável.

a questão da emigração dos coolies, pela colônia de Macau, não oferece já aos mandarins a antiga repugnância, em face dos regulamentos ultimamente adotados, e que regem a saída daquela gente do seu país para procurar trabalho no estrangeiro, por meio de contratos de locação22

Na década de 1870, sobretudo do meio para o fim, é reforçada a postura positiva do jornal em relação à adoção do trabalho chinês na lavoura. A pressão para a abolição da escravatura aumentava e, na mesma medida, aumentava a pressa em substituir os escravos negros nas plantações.

e prossegue, informando que medidas já são tomadas em caso de coolies enganados com falsas promessas, pois “os emigrados iludidos pelos especuladores são restituídos aos seus lares pelo superintendente da emigração dos colonos”23.

O subtítulo do Diario do Rio de Janeiro na década de 1870 – “Folha política, literária e comercial” – nega, então, que essa folha seja isenta de política. Das três décadas em análise, esta é, indubitavelmente, aquela em que o jornal se debruça mais sobre os aspectos políticos. O periódico passa a ter inclusive, uma seção dedicada a Câmara dos Deputados, com transcrição de discursos. “Literária e Comercial” justifica a prevalência dos assuntos comerciais e de produção nas páginas do jornal, cuja preocupação com a questão chinesa era marcadamente voltada para esses aspectos, sobretudo em relação aos processos de comercialização e produção do chá.

Em 1869, em artigo chamado “Trabalhadores para a lavoura”, na seção Colaboração, louva-se o trabalho chim como única salvação possível para o problema da falta de mão de obra, antecipando, inclusive, que os filhos dos chineses consolidados no Brasil seriam de muito proveito futuramente para o plantio de algodão. O correspondente do Jornal do Comércio em Nova Iorque defende a mão de obra chim, mais barata que

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Diario do Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1861, Rio de Janeiro, p. 2. Diario do Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1861, Rio de Janeiro, p. 2. Diario do Rio de Janeiro, 07 de setembro de 1863, Rio de Janeiro, p. 2. Diario do Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1868, Rio de Janeiro, p. 1. Ibidem. Diario do Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1869, Rio de Janeiro, p. 1.

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Em 1870, na seção de Publicações a pedido, um leitor discorre longamente sobre a necessidade de empregar mão de obra chinesa no Brasil, apesar de seu descontentamento a respeito do assunto, chamando os coolies de “classe mais inferior da China” e, ao contrário do que defendem os correspondentes nos países servidos pelos colonos chineses, afirma que eles “para nada prestaram nos países onde os especuladores os têm trazido”25. Esse tipo de colocação apenas reforça a ideia de que não havia argumentos racionais que se sustentassem contra a imigração, mas argumentos baseados no racismo e na xenofobia. Em artigo do mesmo mês de janeiro do ano de 1870, extraído do The Brazil and River Plate Mail publicado na seção Imprensa Europeia do Diario do Rio de Janeiro, lamenta-se a postura do Ministro da Agricultura, o Visconde de Cavalcanti, que, dias antes, declarou-se contrário à emigração chinesa: Lastimamos ter sabido que (...) o ministro da agricultura do Império do Brasil declarou-se em oposição à emigração, se esta não fosse espontânea, considerando que as somas de dinheiro despendidas, todas as vezes que foi preciso para a promover tinham sido gastas inutilmente. (...) Pelo contrário, deveríamos ter suposto que o primeiro dever do governo era por todos os meio animar e favorecer a emigração26.

O texto segue, com o que é quase uma provocação: “A extinção da escravatura nos Estados do Sul da União Americana não pode deixar de ser um bom conselho para o Brasil, e mostra o quão precário é persistir no sistema de trabalho forçado”27. Com a libertação dos escravos negros cada vez mais iminente – pensando-se já na Lei do Ventre Livre, que seria promulgada no mesmo ano – começam a surgir preocupações com o destino de escravos negros libertos e chineses, classes novas que passariam a fazer parte daquela sociedade. Na transcrição de uma sessão da câmara, um homem identificado como “Sr. Pompeia” pergunta ao ministro da marinha se ele pretende aproveitar-se desses asiáticos para contratá-los para a esquadra; e então lembraria a S. Ex. que, em vez de contratar asiáticos, principalmente os coolies que, como S. Ex. sabe, pertencem à classe ínfima dos chins (...), em vês de chamar essa gente que tão maus resultados deram entre nós, antes aplicasse estes prêmios e gratificações em alforriar escravos, engajado-os para a marinha, com o que conseguir-se-iam duas vantagens: primeiramente adiantava o empenho em que o governo está na obra de libertação, e em segundo lugar, chamava para o serviço, e dava destino a esses libertos, que, na minha opinião, são superiores aos chins,

além de dar serviço a essa nova classe que se vai aumentar no país28. Na seção denominada Emancipação, da edição de 7 de agosto de 1871, Cristiano Benedito Ottoni traz as notícias vindas do oriente, que davam conta de que um navio com mais de 650 emigrantes chineses saídos de Macau foi incendiado, ao que o texto segue dizendo que “os escravos amarelos (grifo do original) que escaparem, virão desenvolver medonhamente a corrupção dos costumes, a abastardar a raça”29. Cristiano Ottoni acusa ainda as autoridades de pretenderem substituir escravos negros por escravos amarelos e afirma: É com efeito a imposição de uma vontade esta tristíssima tentativa de introduzir no Brasil a raça abastardada dos chineses. É uma teima do poder, de fato absoluto, que entre nós amesquinha as inteligências, estraga os caracteres, e dispõe de tudo e de todos. É um ato de despotismo vandálico (grifos do original)30. Em 1873, com a Lei do Ventre Livre já em vigor e, portanto, com a escravidão em vias de terminar de fato, nas Publicações a pedido trazem um artigo, com assinatura “Um agricultor”, apresentando muitos cálculos financeiros e opiniões favoráveis ao trabalho dos chineses. A essa altura, o discurso favorável ganha ainda mais força:

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Diario do Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1870, Rio de Janeiro, p. 2. Diario do Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1870, Rio de Janeiro, p. 2. Ibidem. Diario do Rio de Janeiro, 29 de julho de 1871, Rio de Janeiro, p. 1. Diario do Rio de Janeiro, 7 de agosto de 1871, Rio de Janeiro, p. 3. Ibidem. É curioso notar que Cristiano Ottoni, irmão de Teófilo Ottoni, posiciona-se tão ferrenhamente contra a imigração chinesa, enquanto seu irmão defendia-a, como vimos em artigo de 1860 (v. nota 17).

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vados, nem grande conforto em suas habitações. Parece que com tais condições seriam os auxiliares mais idôneos para a nossa lavoura. Há, porém, prevenção contra a sua introdução; e embora a lavoura não deva consultar senão o seu interesse, uma vez que não ofenda as leis do seu país, deve todavia estar acautelada contra este preconceito31. Em seu último ano de publicação, 1878, o Diario publica, sob o título “Trabalhadores para a lavoura”, na seção Agricultura, um artigo (não assinado) em que se assume a importação de orientais como única solução para cobrir a falta de escravos negros: “A importação de trabalhadores asiáticos (grifo nosso) é alvitre suscitado pela necessidade incontrastável, que para satisfazer-se não depara outro remédio. Não é dado escolher. Não há ensejo para apurar a preferência”32. Destacamos o tratamento dado aos imigrantes chineses: agora, nem chins, nem coolies, mas trabalhadores asiáticos. Essa mudança de nomenclatura talvez se justifique pela assunção da verdadeira dependência dos grandes agricultores em relação aos chineses e, em decorrência disso, algum respeito tenha começado a surgir. Figura 5 – Revista Illustrada, n. 650. Outubro, 1892, p. 1.

esses colonos têm apresentado grande aptidão à lavoura nas colônias inglesas, francesas, espanholas e nos Estados Unidos da América do Norte. Têm a vanta-

gem de contratar os seus serviços por alguns anos, de alimentar-se de gêneros de produção do país ou em geral de fácil aquisição, de não exigir salários muito ele-

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Diario do Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1873, Rio de Janeiro, p. 2. Diario do Rio de Janeiro, 24 de maio de 1878, Rio de Janeiro, p. 3.

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No Diario do Rio de Janeiro, a questão para em 1878, já que o jornal deixa de ser publicado nesse ano, mas a polêmica continuou em pauta no Brasil, perdurando por mais alguns anos na imprensa, conforme se verifica pela imagem estampada na capa da Revista Illustrada de 1892,


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em que se pode ler a seguinte legenda: “Estamos aqui, estamos gozando todas as delícias da imigração chinesa. Quem diria!” (v. figura 5). Ainda que predomine a ironia, o que evidencia certa insatisfação, nota-se que até os periódicos que se opunham veementemente à emigração chinesa – como a própria Revista, – por fim, mesmo que a contragosto, tiveram de admiti-la, para o bem da lavoura brasileira. O Diario do Rio de Janeiro, durante as três décadas analisadas, manteve uma postura por vezes contraditória, porém, em sua maioria, favorável à emigração chinesa tanto para o Brasil quanto para outros países na América, baseada, muitas vezes, nos relatos da experiência nesses países vizinhos. Ressaltamos, assim, a importância do trabalho com os periódicos em estudo interdisciplinar, recompondo a história sob perspectiva de quem a vivenciava no calor dos fatos, o que tem importância inegável na reconstituição de uma época. Destacamos, também, a importância de trabalhar com fontes primárias, aproveitando o vasto acervo do Real Gabinete Português de Leitura, nossa

fonte de estudos e de pesquisa, conforme assevera Eduardo da Cruz: A hemeroteca do Real Gabinete tem sido, cada vez mais, alvo de interesse dos pesquisadores. Longe dos antigos pressupostos de que a imprensa apresentava a ‘verdade’ sobre um fato, ou de que era mero registro fugaz de ideias ou faits divers, importantes historiadores, sobretudo da Nova História, passaram a se ocupar dos jornais e revistas de uma época como portadores de visões distintas sobre um mesmo acontecimento, além de analisá-los como veículos que intervinham nos processos e episódios de seu tempo33. A emigração chinesa para as Américas foi, portanto, questão fundamental no debate sobre desenvolvimento da agricultura brasileira no século XIX, formado o impasse do fim da escravidão africana. Com a pressão externa para a abolição da escravatura, era necessário pensar em medidas alternativas que mitigassem os prejuízos e ocupassem a lacuna de mão de obra que seria deixada pelos escravos negros.

Sem bases fundamentadas na razão, os opositores dessa causa agiam movidos pelo preconceito e nada mais. O Diario, do modo como foi possível, foi mediador desse debate, levantando outras questões – como as publicações sobre cultura chinesa – bem como os depoimentos do resultado da experiência da emigração em países vizinhos, como forma de comprovar que os chineses eram, de fato, uma alternativa de mão de obra para a lavoura. Ainda assim, essa polêmica se arrastou por mais algumas décadas (pelo menos até a de 1890, conforme demonstramos pela Revista Illustrada). Destacamos, por fim, que a função de um jornal de grande influência, como foi o Diario do Rio de Janeiro no século XIX, é, mais do que transmitir informações, ser formador de opinião, suscitar e alimentar debates, trazendo diversos pontos de vista. Apesar de se pretender, de início, não político, o papel a que se prestou o Diario foi certamente de grande relevância para a formação do pensamento da sociedade oitocentista a respeito da questão da imigração chinesa no Brasil.

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CRUZ, 2014, p. 7.

Bibliografia Cruz, Eduardo da. “A Hemeroteca Oitocentista do Real Gabinete Português de Leitura”. in: ____ (org.). No giro do mundo: os periódicos do Real Gabinete Português de Leitura no século XIX. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 2014. Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1850-1878. Lima, Fernando. Macau: as duas transições. Macau: Fundação Macau, 1999. Mendonça, Salvador de. Trabalhadores Asiaticos. Nova Iorque: Typographia Novo Mundo, 1879. Oliva, Osmar Pereira. “Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Eça de Queirós e a Imigração Chinesa – qual medo?”. In: Revista da Anpoll. Vol. 2. N. 24. 2008. Seyferth, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. REVISTA USP. n.53. São Paulo: USP, 2002. Sodré, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

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O Sonho Chinês o Novo Normal e Uma Faixa Uma Rota Fernanda Ilhéu Professora do ISEG/Universidade de Lisboa Coordenadora do ChinaLogus Sonho Chinês

“Uma grande nação tem um grande sonho. Um grande país tem um grande sonho”. O sonho da China é construir uma sociedade próspera para todos e um mundo no qual todas as pessoas vivam em paz e harmonia (Angang Hu, Xing Wei, Yilong Yan, 2012, p. 1). Numa entrevista que deu na sua primeira visita aos EUA em setembro 2015, o Presidente Xi Jinping descreveu o Sonho Chinês como um sonho de um “grande rejuvenescimento da nação chinesa”. Na realidade a China só começou o caminho para este grande sonho com o Começo da Nova China depois da Reforma e Abertura ao Exterior que permitiu a criação de Zonas Económicas Especiais abertas ao Investimento Direto Estrangeiro que foram o motor de um rápido e inédito processo de crescimento. Esta Reforma iniciada por Deng Xiaoping em 1979, tinha sido antecedida em 1978 pela politica das 4 Modernizações (agricultura, indústria, defesa, ciência e tecnologia), onde manifestamente se percebia que uma China fechada, sem capital, sem tecnologia, sem mercados externos não podia progredir e portanto pragmaticamente, de uma forma experimental e gradual, sentindo as pedras debaixo dos pés, era necessário alguns espaços de abertura para deixar

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entrar as empresas estrangeiras que trariam o capital, a tecnologia, os mercados necessários à mudança, que permitissem à China passar de uma economia agrária completamente fechada, para uma economia industrial e moderna. Esta abertura seria sempre limitada no espaço e no âmbito de atividades que as empresas estrangeiras iriam desenvolver na China, condicionadas por determinadas regras do jogo, que há partida eram mais ou menos conhecidas desses investidores, e que obedeciam à lógica que todos tinham um papel importante no desenvolvimento da China. Quando surgiam críticas dos mais ortodoxos do partido à deriva para práticas empresariais mais próprias de um sistema capitalista que comunista, Deng Xiaoping argumentava “Não interessa se o gato é preto ou branco desde que cace o

rato” e se dúvidas existiam sobre a possibilidade da China se abrir e deixar os empreendedores internos ou externos desenvolverem na China uma atividade empresarial privada e lucrativa Deng acalmava as suas dúvidas afirmando “Ser rico é glorioso”. Tive o privilégio de acompanhar de perto todo este processo uma vez que cheguei a Macau em fevereiro de 1979 e a minha atividade profissional cedo me proporcionou um conhecimento desde projeto e um relacionamento com decisores políticos chineses, por isso lembrome bem da forma como estas políticas foram preparadas, comunicadas e controladas por esses decisores e a forma de avanços e recuos com que foram implementadas, porque o ditado chinês que diz que “quando se abre uma janela entram ar

A Nova Rota da Seda pretende ligar a China e o Extremo Oriente, à Europa e à África.


O Sonho Chinês o Novo Normal e Uma Faixa Uma Rota

fresco e mosquitos” justificava que se abrisse a janela quando se precisava de ar fresco (empresas e IDE estrangeiras) e se fechasse quando os mosquitos perturbavam o ambiente (quando as regras do jogo não eram cumpridas por esses investidores); foi portanto um processo de avanços e recuos a que pude assistir, mas percebi sempre essa abertura como um meio para o desenvolvimento. Jiang Zemin, que sucede a Deng Xiaoping em 1992, confirma este modelo de Economia Socialista de Mercado aceitando-o como um caminho para o desenvolvimento e de certa forma transformando o partido do poder com a entrada de empresários privados, o que foi possível com o seu Legado das Três representações, em que se declara que o Partido Comunista Chinês representa: as forças produtivas mais avançadas; a cultura mais avançada; os interesses fundamentais do povo. Hoje em dia cerca de 30% dos empresários chineses são membros do partido. Este processo teve o seu auge com a entrada da China na Organização Mundial de Comércio em 2001; a China abre-se nessa altura realmente ao mundo, mas o mundo também se abriu efetivamente à China iniciando uma nova ordem económica mundial. Este modelo permitiu que a China registasse um rápido crescimento económico sustentado, com uma taxa de crescimento médio anual do PIB de cerca de 9,2% no período 1980-2015. (Figura 1) A China tornou-se na fábrica do mundo, a segunda economia mundial, o maior exportador mundial e por via disso o país com as maiores reservas em divisas estrangeiras. No entanto a política do PIB primeiro bem-sucedida neste objetivo

Figura 1. Taxa de Crescimento Anual do PIB Chinês. Fonte: China Statistical Yearbook (1980-2005), EIU (2006-2011) NSB (2013, 2016).

trouxe muitos desequilíbrios. A China tornou-se numa sociedade altamente dividida com grandes disparidades na distribuição do rendimento, grandes desigualdades entre o campo e a cidade e entre as províncias da costa e o interior, com problemas cada vez mais insustentáveis, na forma de produção de energia, no crédito mal parado, no imobiliário, no excesso de produção, nos problemas ambientais, e mau estar social. A industrialização e urbanização levaram ao declínio rural, e geraram grandes fluxos de migrantes com pouco enquadramento de proteção social devido à política do hukou, documento que limita essa proteção ao local de nascimento. Mesmo antes da crise financeira e económica mundial em 2008 o modelo económico chinês estava já a ser questionado internamente pela grande dependência do crescimento chinês das exportações e do investimento que colocava em causa a sua sustentabilidade, o que se veio a confirmar com a queda da procura nos seus principais mercados mundiais e externamente pela ameaça que a sua oferta global de baixíssimos custos constituía para as economias de outros países.

Colocava-se uma questão fundamental: Podia a China continuar o seu rápido crescimento com pouca perturbação para o mundo, para o ambiente e para o seu tecido social? A resposta a estas preocupações começaram a ser dadas no 11º e no 12º Planos Quinquenais. No 11º Plano Quinquenal (20062011) um novo paradigma de desenvolvimento foi anunciado com foco no “Desenvolvimento científico” e com preocupação de criar uma “Sociedade Harmoniosa”, começava a equacionar-se um novo modelo de desenvolvimento com novas áreas prioritárias e uma maior redistribuição do rendimento, as prioridades desse plano eram poupança de energia, instituição de sistemas de saúde pública, de ambiente, de educação. Em 2006 foi lançado o “15 year Medium-to Long Term Plan for the Development of Science and Tecnology “que pretende criar uma sociedade orientada para a inovação e para tal está previsto um investimento de 2,5% do PIB em Pesquisa e Desenvolvimento até 2020, a China tem como objetivo ser líder mundial em ciência e tecnologia em 2050.

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O crescimento pelo crescimento não é suficiente, o tema central do 12º Plano Quinquenal (20112015) era o “crescimento inclusivo” pretendia que o modelo de crescimento da China fosse orientado pela sustentabilidade e pela qualidade com dois importantes vetores, a mudança de dependência do crescimento baseado nas exportações e no investimento para o crescimento baseado no consumo interno e a proteção do ambiente com a redução das taxas de emissão de carbono 40 a 45% até 2020, pelo que seria necessário uma melhoria da indústria e a emergência de indústrias estratégicas, tendo sido identificadas 7 prioritárias: poupança de energia e proteção ambiental; tecnologia de informação da próxima geração; biotecnologia; equipamento produtivo topo de gama; novas energias; novos materiais; veículos a energias alternativas. A nova liderança chinesa do Presidente Xi Jinping e do Primeiro Ministro Li Keqiang toma posse em novembro de 2012 e reafirma a necessidade destas reformas, “Sem transformação estrutural e melhorias não seremos capazes de sustentar o crescimento económico a longo prazo”, a “longo prazo o governo terá de enfrentar excesso capacidade de produção e aumento de créditos mal parados”, foram as palavras proferidas por Li no Summer Davos em Dalian do World Economic Forum de 2013. Nesta altura era já claro que a economia chinesa ia crescer nos anos seguintes a taxas que estavam longe dos 9 e 10% a que China crescia desde 2001, para patamares entre os 6% e os 7%. Embora esta taxa ainda seja muito alta em comparação com o crescimento de outros países, para a China é um patamar mínimo

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porque tem de criar cerca de 10 milhões de postos de trabalho urbanos todos os anos, construir as necessárias infraestruturas e melhorar os níveis e a qualidade de vida. Alguns reputados economistas começaram a colocar em dúvida o futuro da economia chinesa. Paul Krugman em 2013 afirmou que a China estava “about to hit its Great Wall.” Para ele a questão não é se existirá um crash na economia chinesa mas quando. Mas de acordo com outros economistas como Hu Angang, diretor do Institute for Contemporary Chinese Studies da Tsinghua University e consultor do governo chinês, a China não está à beira do crash mas a entrar numa nova fase de desenvolvimento.

O Novo Normal O Presidente Xi Jinping chamou à próxima fase de crescimento da China “Novo Normal”. Este termo foi utilizado por Mohamed El-Erian, Ex -CEO da PIMCO, para descrever a recuperação penosa da economia

ocidental depois da crise financeira de 2008. Xi usou a palavra para descrever; um reequilíbrio crucial – diversificação da economia, níveis mais sustentados de crescimento e uma distribuição de rendimentos mais igualitária. O Novo Normal está no início, mas os cidadãos chineses esperam que ele provoque um crescimento económico sustentado e a melhoria na qualidade de vida (Angang, 2015). Com uma população 4 vezes maior que os EUA, a China tem 14,6% do PIB per capita americano e não deverá chegar a 50% desse rendimento até 2030. (Figura 2) Embora esta diferença seja reduzida em termos de paridade de poder de compra onde o rendimento per capita na China é de 25% do rendimento americano ela é muito significativa em termos de qualidade de vida, e se na China entre 2014 e 2015 esse rendimento aumentou USD 900 nos EUA aumentou USD 1400. Também de referir que embora o rendimento disponível per capita liquido chinês, cresça nas zonas rurais a taxas superiores ao que cresce

Figura 2. Rendimento Per Capita da China Comparado com outros Países Fonte IMF (2007-2011), CIA Worldfact book (2014), Knoema (2015, 2016).


O Sonho Chinês o Novo Normal e Uma Faixa Uma Rota

nas zonas urbanas, o rendimento per capita rural é apenas 36% do rendimento urbano. (Figura 3)

O Novo Normal e o 13º Plano Quinquenal O 5º Plenário do 18º Comité do Partido Comunista Chinês reunido em 25-29 Outubro 2015 aprovou as diretrizes para o 13º Plano Quinquenal que cobre o período 20162020 e que foi aprovado em Março 2016 pela Assembleia Legislativa. O texto do 13º Plano começa com a ambição de criar uma “sociedade moderadamente próspera”. Os princípios que presidiram à feitura deste Plano são: as pessoas primeiro; o desenvolvimento científico; aprofundar a reforma; o primado da lei e a adesão à liderança do partido. Embora seja referido o propósito de uma continuidade politica, não é claro o ambiente operacional que irá enquadrar a atividade das empresas multinacionais na China e se, por um lado, se fala da intenção de deixar o mercado ter um papel decisivo, por outro afirma-se a importância dos quadros do partido comunista controlarem o que se passa nas empresas. Xi promete que a abertura aos investidores estrangeiros vai continuar, mas existe uma devoção renovada pela indústria nacional. A inovação e o empreendedorismo são consideradas as palavras-chave para o futuro crescimento no entanto o controlo de informação e a retórica ideológica estão a aumentar.

O Novo Normal e a Parceria Estratégica Sino-Europeia O Resto do Mundo pode esperar que a China se integre mais na economia global (Angang, 2015, p. 8). Como 2ª Economia Mundial a China

Figura 3. Rendimento Per Capita Disponível Líquido Rural e Urbano em UDS Fonte: National Bureau of Statistics (2009-2016).

sente que tem Responsabilidades Globais e quer ter um papel na decisão das regras do modelo conceptual de relacionamentos, nomeadamente em termos de organizações internacionais e de uma política de integração regional e de uma política de integração global controlada. Segundo Angang quanto mais integrada estiver a economia chinesa mais ela atuará como um estabilizador global, tal como aconteceu em 2008, em que o plano de estímulos agressivos do governo chinês contribuiu positivamente para a recuperação global. A China tem tido nos últimos anos uma atuação proactiva no processo de globalização do mundo, liderando a criação de espaços económicos integrados como a ASEAN – China Free Trade Area, o CEPA – Closer Economic Partnership Agreement, a Shanghai Corporation Organization, estando em negociações para a criação da Free Trade Area of Asia Pacific e a Zona Livre de Comércio Euroasiática que se encontra presentemente na agenda de conversações com a UE. Na presente fase de globalização que a China empreende a sua en-

trada nos mercados internacionais está a ser feita através do Investimento Direto Estrangeiro e de Fusões e Aquisições. Esta nova estratégia de globalização da China é notada e sentida em África, na América Latina, na Europa nos EUA, no Médio Oriente e, conforme declarou Neil Shen do Sequoia’s Capital ao Economist em 12/09/2015, “Hoje não são só copycats… A China expandir-se-á, através das suas próprias inovações e através de aquisições”. A este modo de entrada a China alia a Ajuda Pública ao Desenvolvimento no caso dos países mais pobres ao mesmo tempo que pratica uma Diplomacia de Parcerias Estratégicas Globais com cerca de 47 países; Portugal foi o 5º país na Europa com quem estabeleceu este tipo de parceria. Em 2004 durante a sua primeira visita à Europa o então Primeiro-Ministro chinês Wen Jiabao definiu a Sino-EU Compreensiva Parceria Estratégica da seguinte forma, “Por compreensiva quer dizer que a cooperação deve ser em todas as dimensões, muito ampla e com muitas facetas. Ela cobre as áreas económica, cientifica tecnológica politica e cultural, contempla

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Principais objetivos do 13º Plano 1)

Construção de uma sociedade moderadamente próspera para o que é necessário manter taxas de crescimento mínimo de 6,5% ao ano nos próximos 5 anos, com o objetivo de duplicar o rendimento per capita em 2020, tendo como base o rendimento de 2010, estamos a falar de um rendimento per capita de US$ 12000. Este objetivo é considerado um passo importante para conseguir o “renascimento nacional” em 2049.

2)

Melhoria da indústria chinesa, implementação dos Planos Made in China 2025 e Internet Plus por forma a desenvolver a Indústria 4.0. Aumentar o empreendedorismo. Estas estratégias não são novas mas a continuação das políticas industriais do Plano anterior, incluindo as Indústrias Estratégicas.

3)

Desenvolvimentos de hubs de crescimento de clusters de desenvolvimento nas áreas de Beijing-TianjinHebei, no Delta do Rio Yangtze, no Delta do Rio das Pérolas e na expansão Euroasiática da China, nos países de “Uma Faixa Uma Rota”.

4)

Convertibilidade do RMB em 2020 para integrar o cabaz de reservas de divisas do FMI. Desenvolvimento das zonas experimentais de liberalização in e out do capital nas FTZs que a China criou recentemente.

5)

Bem-estar social – disponibilizar serviços sociais a todos os residentes, retirar 70 milhões do limiar da pobreza. Estender o seguro de saúde a 95 ou 100% da população (cobertura de 50% das despesas). Construção de 21 milhões de casas acessíveis.

6)

Aumentar a natalidade (de 1 para 2 crianças por casal).

7)

Aumentar o consumo.

8)

Investimento Direto Estrangeiro – aumentar a transparência e legislação para investidores estrangeiros.

9)

Melhorar a Urbanização – alcançar uma taxa de urbanização de 60% em 2020. Presentemente é de 55%. Reformular o sistema Hukou.

10)

Modernizar a agricultura.

11)

Aumentar a rede de comboios de alta velocidade de 19.000Kms para 30.000Kms

12)

Desenvolvimento Verde – (Redução das emissões de carbono 40 a 50% das emissões em 2005). Aumentar a quota de produção de energia para não fosseis para 15%.

Fonte: 13º Plano Quinquenal, APCO Worldwide 2016.

quer as relações bilaterais quer as multilaterais e é conduzida quer pelos governos quer por grupos não-governamentais. Por estratégica quer dizer que a cooperação deve ser de longo-prazo e estável, englobando o quadro amplo das relações China-UE. Ela transcende as diferenças em ideologia e em sistemas sociais e não está sujeita a

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impactos de eventos isolados que ocorrem ocasionalmente. Por parceria quer dizer que a cooperação deve ser igualitária, mutuamente benéfica e win-win. Os dois lados devem basear-se no respeito mútuo, na confiança mutua e compromisso para expandir os interesses convergentes e procurar bases comuns nos principais assuntos enquanto

colocam de lado diferenças nos menores” (Zongping, e Jing, 2014, pp. 7-8). A Parceria Estratégica da China com a UE está em fase de grande negociação e no patamar de uma cooperação mais profunda, na Declaração Conjunta do China-EU Summit 2015 que decorreu com o tema “O


O Sonho Chinês o Novo Normal e Uma Faixa Uma Rota

futuro depois de 40 anos da Cooperação China-UE” claramente menciona a facilitação de comércio e acesso ao mercado e foi levantada a ideia de constituir zonas livres de comércio China-UE, um acordo de investimento recíproco em infraestruturas e parques industriais, o desenvolvimento da economia digital, a melhoria de infraestruturas de comunicação e transportes, a cooperação no setor financeiro e fontes de financiamento, a cooperação na inovação, cooperação em parcerias na urbanização, ambiente, energia, água, a melhoria na proteção dos direitos de propriedade intelectual e a inclusão da UE no projeto chinês Uma Faixa Uma Rota a Nova Rota da Seda Marítima do Século XXI.

A Parceria Estratégica SINO-UE e Uma Faixa Uma Rota O Presidente Xi Jinping estruturou a sua ação diplomática global no projeto Uma Faixa Uma Rota, que

foi anunciada ao mundo em 2013. Dois Caminhos um Terrestre (a Faixa) e um Marítimo (a Rota) para ligar a China à Europa. A Faixa vai englobar no norte da China zonas de desenvolvimento caminhando até à Europa e incluindo uma ligação via Myanmar à India; estamos a falar da integração de alguns países da Ásia com a China numa hub de redes de distribuição terrestre de energia fornecida principalmente pelo Turquemenistão, Cazaquistão e Uzbequistão e Rússia; são 6 corredores na Ásia constituídos por infraestruturas, parques industriais e plataformas de cooperação. A Rota (a Nova Rota da Seda Marítima) começa no Sul da China no mar do Sul da China indo depois para a Indochina, Sudeste Asiático e atravessando o Oceano Indico e abraçando a África e Europa. Pretende aprofundar a cooperação dos continentes, asiático, africano, europeu com o resto do mundo. A economia

da China está altamente dependente do Oceano, 90% do comércio externo é via marítima, 19% do mercado global de transportes marítimos e 22% da contentorização. A China trabalhará com os países da rota em projetos de interesse bilateral e multilateral. As prioridades de cooperação são a coordenação de políticas, melhoria da conetividade, aumento do comércio e investimento, integração financeira e aumento dos laços entre os povos. Ex: Promoção de trocas culturais e académicas (a China oferece 10.000 bolsas a estudantes de países da rota todos os anos), cooperação de media, cooperação entre organizações da juventude e mulheres, promoção turística, semanas de TV, festivais de arte, filmes, serviços de voluntariado). As justificações da Comissão Nacional de Reforma e Desenvolvimento (CNRD) do Governo chinês para a criação do projeto são: as mudanças complexas e profundas a nível mun-

6 corredores na Ásia – Infraestruturas + parques industriais = plataformas de cooperação.

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mil milhões para promover o investimento privado ao longo de Uma Faixa e Uma Rota, serão aplicados pelo New Silk Road Fund, com o objetivo de dotar o projeto das infraestruturas necessárias. Foi constituído em 2015 por 57 países fundadores, o Asia Infrastructure Investment Bank com capital que deverá chegar aos $100 mil milhões e capital inicial maioritariamente de $50 mil milhões e o China Development Bank declarou a intenção de investir $900 mil milhões na iniciativa. Líder chinês Xi Jinping em visita ao Congo: ajuda em gama variada de setores.

dial; o impacto da crise 2008 continua a sentir-se; a economia mundial recupera lentamente, desenvolvimento global muito desigual; muitos países encontram dificuldade no seu desenvolvimento. Mas os problemas internos da China também são um forte argumento para a criação deste projeto, nomeadamente: desaceleração económica, alta tensão sobre o crescimento económico, liquidez massiva aplicada em economia especulativa, bolha imobiliária, excesso de capacidade no setor industrial (principalmente ligado à construção) e créditos bancários mal parados. Este projeto abrange 4,4 biliões de pessoas, cerca de 63% da população mundial de 65 países, cerca de 40% do PIB mundial. “Mr Xi espera au-

mentar o valor do comércio com mais de 40 países para $2.5 triliões numa década, gastando aproximadamente $1 trilião do dinheiro do governo. SOEs e instituições financeiras estão a ser motivadas para investir no exterior em infraestruturas e construção”. (Economist 12/09/2015). A visão para este projeto é a constituição de networks de zonas livres de comércio, uma forma dos países interligarem as suas estratégias de desenvolvimento, complementando as suas vantagens competitivas. A importância que este projeto tem para a China está em linha com o elevado compromisso de recursos que para ele estão a ser orientados de acordo como Banco Mundial, 40

Este projeto poderá ter uma contribuição importante para a recuperação da economia mundial, mas poderá sobretudo ter um papel importante na recuperação da economia chinesa e com isso evitar a quebra da primeira. Estamos perante uma nova dinâmica de globalização que irá mudar o mundo. A dimensão de globalização que pretende alcançar mudará a geoeconomia existente e as relações mundiais entre as nações. A importância deste projeto foi já compreendido em Bruxelas “Se a Bruxelas não responder à chamada da China para construir a Nova Rota da Seda, a China continuará só ou com outros parceiros e a UE ficará na periferia de um network económico e diplomático definido e implementado em termos chineses”. (Prodi e Gosset, 2015).

Bibliografia Angang Hu, Xing Wei, Yilong Yan (2012), China 2030, Springer. Angang Hu, Revista Foreign Affairs, Maio-Junho 2015. APCO Worldwide, www.apcoworldwide.com Bert Hofman, Banco Mundial (12/04/2015). Economist (12/09/2015). Prodi, R. e Gosset, D. Huffington Post, (16/10/2915). Zhongping, F. e Jing H., 2014, China’s strategic partnership diplomacy: engaging with a changing world, Working paper, 8 junho, European, Strategic, Partnership Observatory.

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Imagens na poesia clássica chinesa Um estudo de caso: Chang Hen Ge de Bai Juyi em português Li Cong Professora

RESUMO

Introdução

O presente trabalho analisa as imagens existentes no poema <长恨歌 > ( Chang Hen Ge ) do poeta Bai Juyi (701-762) e as estratégias de recriação dessas imagens na tradução para o português feita por António Graça de Abreu (1947-), “Canto do Remorso Perpétuo”, com bases nas categorias de imagens propostas por J.A. Cuddon (2013). Chang Hen Ge é um dos mais grandiosos poemas escritos no período da Dinastia Tang (618-907) e a pesquisa busca delinear e conceitualizar estratégias de tradução empregadas pelo tradutor Graça de Abreu para o acolhimento das imagens poéticas do poema de Bai Juyi em língua portuguesa, nomeadamente, estratégias de preservação, omissão, substituição, estrangeirização, anotação, entre outras. A investigação da tradução de imagens do poema Chang Hen Ge consiste em um apoio para futuras traduções da poesia clássica chinesa para o português.

Sabe-se que a poesia é um conjunto de sons, formas e ideias. Quanto à poesia clássica chinesa, a imagem é considerada a parte mais vívida e bonita. As imagens poéticas contêm não só uma forma concreta, mas também os sentimentos abstractos e intangíveis. As imagens poéticas chinesas carregam fortes características culturais. Diferentes culturas podem compartilhar a mesma imagem, mas essa imagem pode simbolizar diferentes coisas em diferentes culturas. A conotação cultural das imagens na poesia clássica chinesa pode, por um lado, produzir alto valor artístico e, por outro, afectar o efeito de tradução com o seu carácter pictográfico único e rico. Por isso, se quiser uma tradução perfeita de um poema clássico chinês, deve reservar todos os factores de sons, formas e ideias, assim como analisar e apreciar bem as imagens ali existentes, baseando no conhecimento da cultura chinesa. Hoje em dia, o intercâmbio cultural fica mais importante e intensiva entre todos os países e aparecem mais e mais poemas clássicos chineses traduzidos para português, o que promove a divulgação da literatura e cultura chinesas. Tomando isso em consideração, o presente trabalho tenta fazer um estudo sobre a tradu-

Palavras-chave: imagens poéticas, poesia clássica chinesa, Canto do Remorso Perpétuo, estratégias de tradução, poesia chinesa em português, Bai Juyi, Graça de Abreu

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ção das imagens nos poemas clássicos chineses em português. Na China, a poesia clássica é geralmente considerada como a mais inspiradora e sublime de todas as formas literárias. A Dinastia Tang (618-907) é considerada por muitos autores como a “idade de ouro” da poesia chinesa, porque possui as mais brilhantes realizações culturais e literárias da história chinesa. Entre elas, destaca-se uma das obras-primas do poeta Bai Juyi, o poema Chang Hen Ge, a que é atribuído muita atenção tanto no tempo antigo como actualmente. Li Chen (810-859), o 16º imperador da Dinastia Tang, escreve no seu poema “Nénia para Bai Juyi” [吊白居易] que “até mesmo uma criança consegue entender Chang Hen Ge [童子解吟长恨曲]”. O poema é rico em imagens relativas com lugares, eventos históricos, alusões e contos populares que têm conotação cultural abundante. Para os leitores chineses, o poema não é um desafio, mas é uma tarefa dificílima para os que não estejam familiarizados com a cultura chinesa, para não mencionar a sua tradução para outras línguas tão distintas. O trabalho tenta fazer uma interpretação de algumas imagens existentes nesse grande poema e estudar os métodos de reprodução e


Imagens na poesia clássica chinesa ...

tradução delas para português baseando-se principalmente na tradução de António Graça de Abreu, que é um tradutor premiado pela sua contribuição na tradução de literatura clássica chinesa.

I: Bai Juyi e Chang Hen Ge I.1. O poeta Bai Juyi e a Dinastia Tang A Dinastia Tang (618-907) possui as mais brilhantes realizações culturais e literárias da história chinesa e é considerada como a “idade de ouro” da poesia chinesa. O desenvolvimento da poesia clássica chinesa da Dinastia Tang “é dividido em quatro períodos: o início [初唐] (618-712), o auge [盛唐] (713-765), os meados [中唐] (966-826) e o final [晚唐] (827908)” (Luo 1987:4). A poesia de Estilo Antigo (gutishi), de que Bai Juyi escreveu Chang Hen Ge, é uma das formas predominantes da composição naquela época e assinala-se pela ausência de coacções, ou na maior parte das vezes, pela deformação intencional dessas mesmas regras (François Cheng 2008). Mais concretamente, o Estilo Antigo caracteriza o poema tradicional, muitas vezes narrativo, normalmente apresentado em forma de versos regulares de quatro caracteres, ou versos regulares de cinco caracteres, ou versos regulares de seis caracteres, ou versos regulares de sete caracteres, assim como versos mistos que, quando se mesclam num mesmo poema, a maioria dos versos tem sete caracteres mas também há outros versos que podem variam entre três e onze caracteres. O Estilo Antigo não presta especial atenção à antítese e aos padrões prosódicos e, “[o] número de versos num poema [gutishi] é indefinido”, e pode haver apenas uma rima ao longo de todo poema ou mesmo várias rimas (J.Y. Liu 1962:24).

Bai Juyi (白居易) (772-846), também transcrito em pinyin de cantonês como Po Chu-yi, Po Kiu-vi ou PéKiu-i, é “um dos poetas mais influentes nos meados da Dinastia Tang” (618-907) (Yuan 1990:107). Nasceu em 772 em Xinzheng, uma pequena cidade no sul da Província de Henan. Filho duma família pobre mas culta, começou a compor poesia aos quatro anos de idade. Foi oficial e trabalhou em vários órgãos governamentais. Abraçou ideias confucionistas e apelou a um estilo simples e directo da literatura nos tempos bem anteriores, defendendo que a poesia devia ser baseada na realidade e reflectir a situação da época, e escrevendo obras simples mas elegantes a fim de protestar contra os males sociais dos seus dias, incluindo a corrupção e o militarismo. Escritor prolífico, fez cópias de suas Obras Completas que, segundo o poeta, “em 75 capítulos, compreendem 3.840 textos” (apud Abreu 1991:42). As obras são divididas pelo próprio poeta, numa carta longa que escreveu ao próximo amigo Yuan Zhen no ano de 815 (Kawai 2013:244), principalmente em quatro grupos em relação aos temas: poemas didácticos; poemas de quietude, contemplação e lazer; poemas de tristeza e outros poemas. Escreveu com uma linguagem simples e directa e é dito que reescrevia qualquer parte de um poema que os seus servos fossem incapazes de entender. A acessibilidade das suas obras ganhou-lhe a grande popularidade tanto doméstica como estrangeira. De acordo com os estudos de Hisao Takamatsu (2012), as obras de Bai Juyi já foram difundidas e muito apreciadas no Japão e na Silla (actualmente a Coreia) quando o poeta ainda estava vivo. Hoje em dia, as suas obras não são apenas

Imagem do poeta Bai Juyi.

traduzidas para mais línguas estrangeiras, mas também adaptadas para outras formas artísticas, como peças teatrais, caricaturas e filmes, entre outras. Arthur Waley, um dos grandes tradutores de Bai Juyi para o inglês, diz que “Acho-o de longe o mais traduzível dos principais poetas chineses [I find him by far the most translatable of the major Chinese poets]” (apud Abreu 1991:35).

I.2. O poema Chang Hen Ge I.2.1. Temática e contextualização do poema Sendo uma das obras-primas de Bai Juyi, o poema tem como tema a história amorosa trágica entre Xuanzong (685-762), o sexto imperador da Dinastia Tang, e uma das suas concubinas, Yang Guifei. Foi composto de acordo com lendas e contos populares em 806, quando “ele estava a visitar o Templo de Xianyou (situa-se em actual Xi’an) com dois amigos” (Huang 2006:258).

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Yang foi uma das suas muitas concubinas. Para mostrar o amor absoluto por ela, o imperador recompensou outros membros da família Yang com títulos e cargos, mesmo que eles não fossem talentosos. Tudo isso levou necessariamente o país ao caos. Por isso, houve a Rebelião do general An Lushan (755-763) contra o imperador, durante a qual este último ficou na fuga e a Concubina Yang foi estrangulada pelo exército por ser considerada como a origem da Rebelião. Com a ajuda do exército de fora da capital, o imperador esmagou a Rebelião e regressou para a Chang'an. Tinha muitas saudades de Yang, chorando sempre pelo remorso de ter perdido o seu amor da vida. Com a força supernatural, esse casal finalmente encontrou-se um com outro e prometeram estar sempre juntos onde quer que o outro estivesse. E o remorso do imperador continuava para sempre. De uma perspectiva romântica, Chang Hen Ge é um poema de amor, contando a paixão trágica entre Xuanzong e Yang Guifei desde o início ao fim. No entanto, do ponto de vista realista, o poema é irónico, criticando a vida dissoluta do imperador Xuanzong que levou à decadência e declínio do país.

Chang Hen Ge é um poema longo mas não redundante, com versos notáveis que emergem de vez em quando e uma linguagem suave, fresca e comovedora, e conta uma história onírica inspiradora. Depois da sua composição, o poema popularizou-se de forma rápida, e tem influenciado a criação artística de várias obras na China nos tempos seguintes, tal como as peças de teatro da Dinastia Yuan (1271-1368). Por exemplo, “Wu Tong Yu (Rain on the Plane Trees), pelo escritor teatral Bai Pu da Dinastia Yuan, é umas das obras de adaptação que se baseiam

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principalmente em Chang Hen Ge” (Ni 2003:64). Além disso, o poema tem também impacto na literatura estrangeira, como por exemplo, a literatura japonesa. “Genji Monogatari”, que é uma das grandes novelas da literatura japonesa, “citou e absorveu de forma frequente Chang Hen Ge” (Shao 2011:114) e “concebe enredos de acordo com as ideias do poema de Bai” (Ibid.:119). I.2.2. Breve abordagem formal do poema O poema Chang Hen Ge é um extenso poema narrativo de Estilo Antigo, com 120 versos de sete caracteres cada. Uma das qualidades auditivas dos caracteres do chinês reside na “natureza monossilábica dos caracteres” (James J.Y. Liu 1962:21), por isso o poema heptassilábico tem no total oitocentas e quarenta sílabas. Mesmo que o chinês seja uma língua tonal, não há contrapontos tonais ou padrões prosódicos no poema e a rima varia a bel-prazer do poeta ao longo de todo o poema, visto que é de Estilo Antigo que não presta atenção a isso. Portanto, a musicalidade do poema é formada pelo conjunto de cesuras, os tons inatos de cada caracter, bem como uma grande variedade de rimas. Também não faltam ao poema os versos paralelos, que constroem dísticos belos, impressionantes e memoráveis.

I.3. “Imagens” no poema de Bai Juyi Na China, o conceito da palavra “imagem” (yixiang em pinyin) é a combinação de yi (ideia) e xiang (forma). A partir do significado próprio de yi e xiang, pode-se entender de imediato que uma “imagem” já passa de ser apenas uma figura ou pintura objectiva e perceptível por

via óptica, mas também conta com certo pensamento subjectivo e particular das pessoas. Na verdade, no primeiro trabalho sistemático da crítica literária chinesa The Literary Mind and the Carving of Dragons [文心雕龙] que data do século V, Liu Xie (645-520) ressalta que, quanto à criação literária, yixiang transmite a ideia abstracta e interiorizada do poeta por via da forma artística concreta e exteriorizada (Yuan X.P., Meng E.D. & Ding F. 1994:156157). Por conseguinte, a imagem não se limita, desde a antiguidade chinesa, a descrever a forma concreta e visível de algo, mas como transmite o intangível que chega mentalmente, a ideia. Hoje em dia, Yuan Xingpei (Yuan 2009), um dos académicos que estudam a conotação do termo yixiang, defende que uma vez que uma forma entre no pensamento artístico do poeta, é processada pelo poeta a fim de atender o seu gosto estético e simultaneamente integrar os sentimentos. É mediante esse processamento que uma forma simples se torna numa imagem poética. No ocidente, Thomas Hobbes também considera que a imagem não pode ser vista como apenas uma percepção separada do sentimento na mente, porque “sensações… são registadas na mente nas imagens” (apud. Yu Pauline 1987:7). Não é algo externo, objectivo e independente da existência do espectador. Não é o que há e deixa de ser uma presença racional. Ezra Pound (1913), influenciado pela poesia chinesa e japonesa, define brevemente a imagem como o que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante de tempo, enfatizando a fusão do objectivo e o subjectivo. Por isso, yixiang, ou “imagen”, sobretudo poética, compreende duas partes, a forma e os sentimentos. São um modo singular de apresentação do mundo,


Imagens na poesia clássica chinesa ...

um modo mágico de olhar para as coisas exteriores e também interiores do poeta e de as expressar com o recurso de associação de imagens. O poema Chang Hen Ge é rico em imagens poéticas, que são belas figuras que encarregam a cultura chinesa, impregnam os sentimentos do poeta e que podem evocar os sentimentos particulares dos leitores. E num país que possui uma história da poesia de centenas de anos, muitas imagens já se tornam fixas e usadas universalmente. No caso de Chang Hen Ge, para os leitores que têm pouco ou nenhum conhecimento sobre as imagens poéticas chinesas, não é difícil captar a essência da história, só que a leitura e a compreensão deles se identificam como superficiais. Em contraste, quanto mais imagens conhecermos e mais cultura chinesa que existe nelas soubermos, mais profundamente poderemos apreciar o amor do casal, o talento do poeta, assim como a beleza do poema. Por conseguinte, vejamos alguns exemplos das imagens no poema:

屋藏娇 (jīn wū cáng jiāo) na vida da população chinesa. O poeta colocou essa imagem no poema. É óbvio que o palácio onde vivia a concubina Yang não podia ser feito todo de ouro, mas com essa alusão e exageração, o poeta conseguiu enfatizar a paixão intensa e forte do imperador por Yang, o que pode ajudar os leitores a racionalizar o desenvolvimento contínuo da história. Um outro exemplo de imagem no poema é relacionado com as próprias tradições sociais e costumes chineses, cuja existência resulta, muitas vezes, na diversidade de visões e atitudes sobre várias coisas na vida: Original: 春/风/桃/李/花/开/日

Pingyin: chūn /fēng /táo /lǐ /huā /kāi /rì Tradução interlinear: primavera/ vento/ pêssego/ ameixa/ flor/ desabotoar/ dia Há várias imagens neste verso: chūnfēng (vento na Primavera), táohuā

Original: 金/屋/妆/成/娇/侍/夜

Pinyin: jīn /wū /zhuāng /chéng /jiāo /shì /yè Tradução interlinear: ouro/casa/ maquilhagem/pronto/mulher encantada/servir/noite A expressão 金屋 jīn wū (casa de ouro) também tem a sua origem numa alusão. Quando o Imperador Wu (156 a.C. -- 29 de março de 87 a.C.) da dinastia Han (202 a.C -- 9) era jovem, ficou tão apaixonado pela prima A-Jiao. Disse que se se conseguisse casar com a prima, oferecer-lhe-ia uma casa de ouro como presente. Portanto, jīn wū é originalmente destinado a indicar as casas luxuosas e coloridas das mulheres e simboliza a paixão do homem pela mulher. Até hoje em dia, esté em uso o termo 金

Paixão exclusiva por Yang Guifei. Tradução dos versos na imagem feito por Abreu: Muitas as mulheres bonitas no palácio imperial, mais de três mil, o favor imperial, outrora privilégio de tantas, apenas um corpo o recebe.

(flor de pêssego), lǐhuā (flor de ameixa) e huākāi (florescimento). Aqui queria destacar a de táohuā, flor de pêssego. Segundo Qu (2009), foi desde o Livro das Cantigas que as pessoas começaram a reparar e apreciar a característica cromática das flores de pêssego. No Livro das Cantigas, a aparência da flor de pêssego é relacionada com a juventude das mulheres. Quando floresce, é bonita e graciosa como uma mulher jovem. Quando avela, a imagem sugere o envelhecimento das mulheres. Comparar as mulheres bonitas com as flores “é apresentação da relação tradicional de analogia e metáfora entre flores e raparigas belas” (Qu 2009:51). Além disso, na China também existem expressões como 桃花 面 (táo huā miàn), rosto como uma flor de pêssego, e 桃花妆 (táo huā zhuāng), enfeite de pêssego, que simbolizam erotismo e carnalidade, porque “a estação na qual florescem as árvores de pêssego é a temporada de casamento em que se unem homens e mulheres, o que aumenta o componente erótico original às flores de pêssego” (Ibid.:132). Por isso, neste verso o poeta não esteve somente a descrever o ambiente dos dias de encontro do casal Xuanzong e Yang, como também relembrou a beleza da concubina e o amor mundano entre eles. Em suma, quando se fala na imagem da poesia chinesa, merece ter sempre na mente que não é apenas uma forma concreta e objectiva de um artigo, mas que tem uma conotação imaginária, às vezes cultural, um determinado sentimento e afeição subjectiva do autor ou do leitor. O que a mesma imagem implica pode sofrer de alterações depende do tempo, espaço ou de quem a vê. Através da análise sobre algumas imagens escolhidas do poema Chang Hen Ge que ou contém alusão, ou inspira imaginação estética, ficamos con-

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vencidos de que Bai Juyi é mestre em criar e utilizar imagens e vale analisar mais imagens de riqueza cultural e de qualidade elevada deste poema, bem como discutir sobre o efeito dessas imagens quando traduzidas para línguas estrangeiras.

II: “Canto do Remorso Perpétuo” II.1. O tradutor António de Graça Abreu António Graça de Abreu nasceu em 1947 no Porto, Portugal. Foi o primeiro português a viver no continente da China. Durante a sua estadia entre os anos 1977-1983 na China, foi professor de Língua e Cultura Portuguesa em Pequim e revisor e tradutor nas Edições em Línguas Estrangeiras de Pequim. Tem famílias na Província de Anhui e Província de Shandong e até hoje visita múltiplas vezes a China. Tem imenso interesse em Sinologia e poesia clássica chinesa e publicou sucessivamente a sua tradução de chinês para português a peça de teatro chinês, O Pavilhão do Ocidente, de Wang Shifu (1260-1336), a antologia de poesia de quatro poetas, Poemas de Li Bai (701-762), Poemas de Bai Juyi (772-846), Poemas de Wang Wei (701-761), bem como Poemas de Han Shan (?-?), todos editados pelo Instituto Cultural de Macau. Ganhou o Grande Prémio de Tradução 1991 da Associação Portuguesa de Tradutores e pelo P.E.N. Clube Português, que é agência responsável pela nomeação anual do candidato português ao Prémio Nobel na área da Literatura. O esforço de tradução de textos chineses pelas culturas europeias já fez algumas conquistas, contudo “pouco se fez em língua portuguesa... Em poesia, as iniciativas ocorridas até hoje, ainda que significativas – por exemplo, as valiosas coletâneas dos por-

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tugueses António Graça de Abreu e Gil de Carvalho... e outros autores” (Portugal & Tan 2013:33).

II.2. Comentários gerais sobre a tradução de Graça de Abreu A tradução do poema Chang Hen Ge para o português de António Graça de Abreu, “Canto do Remorso Perpétuo”, compôs-se no total de cento e vinte e duas linhas, concentrando-se na transmissão do significado do poema original. A tradução das imagens de Chang Hen Ge do chinês para o português enfrenta sempre grandes desafios, visto que a Língua-Fonte (LF) pertence à família dos idiomas sino-tibetanos enquanto a Língua-Alvo (LA) é tão diferente e da família das línguas indo-europeias. Tradução falha – ou intraduzibilidade ocorre – quando é impossível construir características funcionalmente relevantes da situação sobre o significado contextual do texto na LA. De um modo geral, os casos em que isso acontece dividem-se em duas categorias. Esses onde a dificuldade é linguística, e esses onde é cultural. (Catford J. C., 1965:94) Das perspectivas linguísticas, o chinês não tem inflexões como género, tempo, pessoas e número, etc., e as palavras gozam uma grande flexibilidade no que diz respeito à categoria gramatical. A mesma palavra pode ser usada como substantivo, verbo ou adjectivo, etc.. Vamos tomar um exemplo do poema Chang Hen Ge: 椒房/阿监/青娥/老 Jiāo fáng/ ā jiān/ qīng é/ lǎo -- Bai Juyi

Versão 1 velhos, também eunucos e belas do serralho das Pimenteiras. -- tradução de António Graça de Abreu Versão 2 Eunuchs and waiting maids looked old in palace deep. -- tradução de Xu Yuanchong Versão 3 The green-clad maids of the spiced chambers Were growing old. -- tradução de Yang Hsien-yi e Gladys Yang Versão 4 han envejecido los eunucos y las sirvientas del Palacio de los Pimenteros. -- seleção e tradução de C. G. Moral Deixamos de lado a tradução das imagens 椒房 Jiāo fáng e 阿监 ā jiān, olhamos apenas para 青娥老 qīng é lǎo. Aqui 老 lǎo serve de duas maneiras: uma como adjectivo “velho”, e outra como verbo “envelhecer”. Por isso, o tradutor precisa de fazer a opção da categoria gramatical. Como podemos observar nas versões 1 e 2, é tomada a estratégia de traduzir para adjectivo enquanto nas versões 3 e 4 para verbo. Concluindo, ambas estratégias têm sucesso em transmitir a ideia do poema original. Por outro lado, das circunstâncias socioculturais nascem os poemas. Quando o tradutor transmite as imagens poéticas para a LA, é inevitável encontrar barreiras culturais, especialmente quando trabalha com duas línguas tão distintas como o chinês e o português. O tradutor esforça-se para manter o estilo do poema original. Vemos aqui um exemplo da simulação de


Imagens na poesia clássica chinesa ...

um dos elementos da forma do poema chinês, o paralelismo: Original: 在天/愿作/比翼/鸟

Pinyin: zài tiān/ yuàn zuò / bǐyì/ niǎo, Tradução interlinear: No céu/ desejar ser/ asas paralelas/pássaros Tradução de Abreu: [Prometemos,] no céu, voar como duas aves com umas únicas asas, Original: 在地/愿为/连理/枝

Pinyin: zài dì /yuàn wéi/ lián lǐ/ zhī. Tradução interlinear: Na terra/desejar fazer/ texturas interligadas/ramos Tradução de Abreu: na terra, ser dois ramos entrelaçados de uma só árvore. A correspondência restritiva neste dístico apresenta-se um paralelismo puro a que chamamos antítese. Sugere-se uma leitura vertical do dístico no céu – na terra, asas paralelas – texturas interligadas, pássaros – ramos. Do ponto de vista retórico, ambos bǐ yì niǎo (pássaros de asas paralelas) e lián lǐ zhī (ramos de texturas interligadas) simbolizam a inseparabilidade do casal fraterno. De acordo com o conteúdo do poema, Xuanzong finalmente conseguiu encontrar a alma de Yang mediante a ajuda dos taoistas, e o casal exprimiu, nestes dois versos, o desejo de estar juntos para sempre. Neste dístico evidencia-se, através de uso do paralelismo, uma repetição que consolida o amor e a ideia de inseparabilidade do casal Xuanzong e Yang. Para além da questão de imitar o estilo de escrever do poema original que corresponde principalmente às diferenças linguísticas, existem ainda a exigência de recriar os versos retóricos e os que são relacionados com a cultura chinesa. Salientam-se aqui os símiles, as metáforas, os símbolos, as

Reencontro das almas do Imperador e de Yang. Tradução dos versos: Prometemos, no céu, voar como duas aves com umas únicas asas, na terra, ser dois ramos entrelaçados de uma só árvore.

alusões, os nomes próprios, as metodologias e eventos históricos, etc.. Mesmo que a LF e a LA sejam distintas, as duas culturas têm em comum uma grande variedade de objectos, quer dizer, é fácil encontrar equivalentes na LA o que se contém no poema original. Neste caso, podese ver que o tradutor toma a estratégia de tradução literal, procurando simplesmente os equivalentes na LA. Essa maneira de traduzir usa-se muito na tradução de António Graça de Abreu, porque, como a história se passou nos palácios luxuosos, existem grossos versos descrevendo a arquitectura, os ornamentos, os instrumentos musicais e as plantas. O melhor ainda é que às vezes o tradutor pode até preservar a retórica desta maneira, como por exemplo o seguinte verso: Original: 芙蓉 / 如 / 面 / 柳 / 如 / 眉 Pinyin: fúróng / rú / miàn / liǔ / rú / méi Tradução interlinear: lótus / como / face / salgueiro / como / sobrancelha

Tradução de Abreu: as flores de lótus como seu rosto, folhas de salgueiro como suas sobrancelhas. O símile é a retórica mais comum. O tradutor faz uma simples tradução quase palavra por palavra do verso original, porém conseguindo reproduzir todos os elementos de forma bastante fiel e obtendo o melhor efeito de fazer os leitores recriarem a aparência da bela Yang. Contudo, existem ainda alusões, nomes próprios e metodologias que se prendem apenas com a cultura chinesa e compartilham pouca semelhança com os fenómenos culturais da LA. Em tais casos, a preservação e a tradução literal já não são suficientes para transmitir ou esclarecer a ideia do poema original. A fim de resolver o problema, o tradutor recorre às notas de pontapé. Original:惊/破/霓/裳/羽/衣/曲

Pinyin: jīng/ pò/ ní/ cháng / yǔ/ yī/ qū Tradução interlinear: abismar/ romper/ Arco-íris/ roupa/ pluma/ roupa/ música

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Tradução de Abreu: cessam as odes “Vestido de Arco-Íris” e “Manta de Plumas”* * O imperador sonhara um dia que Chang E, a deusa da Lua, lhe dera a conhecer estas duas melodias. O próprio soberano as adaptou e decidiu ensinar às bailarinas, sobretudo a Yang Guifei. O poema original diz que a guerra começa e interrompe as músicas imperiais que simbolizam a vida luxuosa do imperador. Aqui o tradutor usa um apontamento para explicar a origem das duas peças de música e sugere de modo obscuro o destino da Concubina Yang. Assim, os leitores de LA vão relacionar imediatamente a guerra com Yang, o que é mesmo a intensão do autor. Em suma, a tradução de António Graça de Abreu encontra-se em prosa e com fluência, clareza e compreensibilidade. Quando encontra dificuldades linguísticas e culturais, o tradutor esforça-se sempre a transmitir a ideia do autor, utilizando estratégias variadas. Mais especificamente, a tradução duma imagem é a substituição da imagem original na língua-fonte por uma imagem equivalente na línguaalvo. A tradução de imagem consiste em recriar na língua receptor o equivalente mais próximo da imagem vívida do poema original. Mas a exigência de tal substituição é a de expressar sentimento genuíno do poeta para o receptor.

III: A imagem poética: entendimento III.1. Conceitualização de “imagem” na poesia A fim de apreciar o encanto da poesia clássica chinesa, tem-se que

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ser familiarizado com a imagem, porque “as imagens estão na base da linguagem poética e participam activamente na sua constituição” e a expressão pelas quais “é um meio fundamental da poesia chinesa”, como explica Yao Jingming (2001:40). Como um dos termos amplamente usados na teoria poética, a imagem gaba-se da ubíqua presença e compôs uma parte indispensável na construção de conceições poéticas e na evocação de emoção, sendo a chave para a composição e a apreciação da poesia clássica chinesa. Porém, a imagem aparece em vários contextos e é quase impossível para os teóricos do campo poético ou da crítica literária fornecerem uma explicação racional e sistemática do seu uso. Yuan Xingpei conclui que a imagem não tem uma conotação definida nem uma utilização consistente (Yuan 2009:40). Contudo, tenta-se aqui primeiro explicar como é entendida a imagem nesta discussão. Na China, o conceito chinês da imagem (yixiang em pinyin) é a combinação de yi (ideia) e xiang (forma). Afirma-se no livro Introdução da Poética Chinesa [中国诗学通论] que a primeira vez que yixiang apareceu como um conjunto foi no primeiro trabalho sistemático da crítica literária chinesa The Literary Mind and the Carving of Dragons [文心雕龙] que data do século V, no qual Liu Xie ressalta o sentido da união e harmonia existentes entre a ideia e a forma quanto à criação literária, isto é, transmitir a ideia abstrata e interiorizada do poeta por via da forma artística concreta e exteriorizada. Ele indica ainda que diferentes imagens provocam emoções diversas às pessoas, e que a emoção humana altera ao passo que as imagens mudam (Yuan X.P., Meng E.D. & Ding F.1994:156-157). Por conseguinte, a imagem não se limita, desde a an-

tiguidade chinesa, a descrever a forma concreta e visível de algo, mas como transmite o intangível que chega mentalmente, a ideia. A conotação do termo yixiang tem sido continuadamente desenvolvida e enriquecida desde então, seguindo basicamente o caminho indicado por Liu. Yuan define o termo por via de esclarecer melhor a relação entre a forma, a ideia e a imagem. A forma é objectiva e independente da existência humana, ao passo que a ideia reside no gosto individual e na consciência subjectiva do poeta. Uma vez que a forma entre no pensamento artístico do poeta, é processada pelo poeta a fim de atender o seu gosto estético e simultaneamente integrar os sentimentos. É mediante esse processamento que a forma simples torna-se numa imagem poética. Portanto, “a imagem é a forma integrada na ideia subjectiva, ou é a ideia mostrada pela forma” (Yuan X.P. 2009:42), variando, mesmo proveniente da mesma forma, de acordo com ideias distintas. No ocidental, Ray Frazer considera que a imagem “originalmente significava não mais do que pintura, imitação, ou cópia” (apud. Yu Pauline 1987:3). É algo externo, objectivo e independente da existência do espectador. Mas Thomas Hobbes argumenta que a imagem não pode ser vista como apenas uma percepção separada do sentimento na mente, porque “sensações… são registadas na mente nas imagens” (Ibid: 7). Ezra Pound (1913), influenciado pela poesia chinesa e japonesa, define brevemente a imagem como o que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante de tempo, enfatizando a fusão de objectivo e subjectivo. Mais ainda, hoje em dia, a palavra imagem tem duplo significado,


Imagens na poesia clássica chinesa ...

sendo ambos “conteúdo sensual e linguagem figurada”. Já passa a ser usada para significar a linguagem figurada, em especial a metáfora. É definida na Nova Enciclopédia de Poesia e Poética da Princeton [The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poestics] que: uma imagem poética é, diversamente, uma metáfora, símile, ou figura de linguagem, uma referência verbal concreta, um motivo recorrente, um evento psicológico na mente dos leitores, o veículo ou o segundo termo de uma metáfora, um padrão de símbolo ou simbólica, ou a impressão global de um poema como uma estrutura unificada. (1993:556) Baseando nestas visões teóricas diferentes dos críticos e académicos que dizem respeito ao termo, pode se concluir que a imagem não é apenas uma simples descrição do objectivo, mas sim o veículo carregando os sentimentos subjectivos e valor estético do poeta no momento de ser criada e evoca e recria sensações aos leitores, muitas vezes apresentando-se em forma de metáforas e símbolos. Vale salientar também que, nesta discussão, vão ser analisadas somente as imagens individuais ou isoladas, não a estrutura unificada de algumas delas que deixa uma impressão global, à qual chamamos a imagística. Em suma, a imagem poética é um modo intuitivo de perceber o mundo, um olhar inovador, não racional e não emocional. É mais intuitivo. É como olhar de uma criança, que não está condicionada a interpretar ou a descrever o mundo de um modo racional e previsível.

IV: Análise das imagens de Chang Hen Ge O estudo das diferentes versões da tradução de Chang Hen Ge é longe de ser exausto. Tente-se aqui fazer uma análise de umas imagens poéticas representativas existentes no poema original e das respectivas imagens recriadas por António Graça de Abreu em português, no “Canto do Remorso Perpétuo”. Existem maneiras variadas em relação à categorização das imagens. Da perspectiva de estratégias translacionais das imagens de Chang Hen Ge, são observados quatro grupos de imagens: uma imagem em chinês é exactamente a mesma que em português; uma imagem em chinês é expressa por uma imagem diferente em português; a mesma imagem é expressa diferentemente em chinês e em português; e uma imagem em chinês não tem uma imagem correspondente em português. Então, como lidar com os diferentes grupos de imagens é um problema. O mais ideal é que preservar e recriá-las cem por cento na LA, como sublinha J. Y. Liu: Ao traduzir imagens em poesia chinesa, acredito que a imagem deve ser mantida quer seja um cliché quer seja uma original. Uma imagem banal pode não aparecer como tal em tradução; pelo contrário, pode parecer bastante original e surpreendente para o leitor que não conhece a língua original. “Ondas de Outono”, um cliché em chinês para os olhos da mulher, aparece quase ousado, se um pouco singular, em Inglês. (James J. Y. Liu 1962:115) Mas nem todas as imagens podem ser preservadas com sucesso, assim sendo que em “Canto do Remorso

Perpétuo”, observa-se ainda, mas não só, omissão, anotação, substituição e assim por diante. Na maioria dos casos, Abreu conseguiu reproduzir imagens não perfeitas mas bastante satisfatórias, semanticamente. E em outros poucos casos, ainda existe espaço de aperfeiçoar. Seguem-se algumas imagens que estejam em negrito. (ver Exemplo 1). A expressão 深闺 shēn guī, (quarto da menina, ao fundo), tem uma conotação cultural muito específica, que, para ser realmente compreendida, precisaria de uma explicação, o que, em uma tradução, poderia vir a destruir a concisão da linguagem poética. Na China antiga, as filhas não tinham liberdade de se comunicar com os homens, a não ser os familiares e parentes masculinos. Toda a família convivia numa casa muito fechada, com um pátio quadrado ou rectangular, em geral, no centro da construção. Normalmente as filhas solteiras viviam no quarto mais ao fundo da moradia, o mais distante da porta de entrada, e não tinham permissão de sair à vontade. A tradução de Graça de Abreu, “recolhida”, “bem longe”, é precisa e clara, uma vez que reproduz, em linguagem concisa, o isolamento da menina Yang. No entanto, a solução do tradutor, para um leitor que desconheça a expressão original, 深闺 shēn guī, parece referir-se unicamente à vida da bela Yang. O facto de crescer “recolhida, bem longe” dos olhares (dos homens e das mulheres), não parece extensivo, na tradução de Abreu, a todas as filhas de famílias aristocráticas na China antiga, crescidas no “quarto das meninas, ao fundo”. Em outras palavras, esse aspecto cultural, o hábito de isolamento das filhas, aparece na tradução de Graça de Abreu como um caso isolado (da bela Yang), e não como um comportamento da

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Exemplo 1 – 3º-4º versos. original

长成

pinyin

Yáng

jiā

yǒu

chū

zhǎng chéng

tradução interlinear

Yang

família

ter

filha

inicialmente

crescido,

tradução de Abreu

Na família Yang, uma menina, quase criança

original

pinyin

yǎng

zài

shēn

guī

rén

wèi

shí

tradução interlinear

criar

em

profundo

quarto da menina

pessoa

não

conhecer

tradução de Abreu

cresce recolhida, bem longe do olhar dos homens.

cultura chinesa no tempo em que viveu a jovem Yang. Se o objectivo do tradutor fosse revelar para o leitor de língua portuguesa esse hábito da cultura chinesa na época (contido na imagem do “quarto das meninas, ao fundo”), sem perder a concisão da sua tradução poética, ele poderia incluir, como recurso de tradução, uma nota explicativa, o que nem sempre é apreciado por leitores de poesia. (ver Exemplo 2).

tavam que a forma redonda da lua simboliza a reunião de todos os familiares. Como às vezes alguns membros não conseguiram voltar para casa, ficaram a ter saudades dos outros. Por isso, já se formou há milhares de anos a ideia de sentir a falta de alguém quando olhar para a lua. Os antepassados chineses, independentemente da sua profissão, consideravam a lua como um meio de contacto com os distantes familiares ou amantes para enviar as suas saudades e bênçãos. Ocupando uma posição especial na mente dos chineses, a imagem da lua, no caso de Chang Hen Ge, não só serve como uma descrição da cena mas também re-

No que respeita aos usos e costumes chineses, existem algumas expressões específicas em que combinam uma imagem com determinados sentimentos. Na China antiga, acredi-

vela a solidão do imperador e as suas saudades da concubina Yang. A tradução de Graça de Abreu consegue transmitir a ideia de o imperador ficar triste ao olhar para a lua, mas é desconhecido se os leitores estrangeiros percebem realmente ou não os sentimentos do imperador. Na cultura chinesa, a expressão肠 断cháng duàn (intestinos cortados) remonta à Dinastia Jin Oriental (316420) e é usada para descrever a tristeza extrema. É uma expressão exagerada mas fixa e enraizada na mente dos chineses. Mesmo que os leitores de língua portuguesa não conheçam a expressão, ficam

Exemplo 2 – 49º-50º versos.

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original

pinyin

xíng

gōng

jiàn

yuè

shāng

xīn

sè,

tradução interlinear

Andar

palácio

ver

lua

magoar

coração

expressão

tradução de Abreu

No palácio do exílio, o fulgor do luar magoa-lhe o coração,

original

pinyin

wén

líng

cháng

duàn

shēng

tradução interlinear

Noite

chuva

ouvir

campainha

intestino

desligar

som

tradução de Abreu

o tinir das campainhas, à chuva da noite, rasga-lhe as entranhas.

ORIENTEOCIDENTE


Imagens na poesia clássica chinesa ...

na língua portuguesa é a Via Láctea, a mesma tradução de Graça de Abreu. Faz todo o sentido e a estratégia de achar o equivalente é adequada. De facto, para os chineses, o rio das estrelas significa mais do que a Via Láctea, porque tem a sua origem numa lenda chinesa. Wangmu, chefe de todas as deusas do reino celestial, estava zangada com o namoro entre uma das suas filha, a Tecedeira, e o Vaqueiro, porque ele era muito pobre. Para separá-los, Wangmu colocou um rio de estrelas entre eles e só os autorizava a encontrar-se uma vez por ano, no sétimo dia da sétima lua. No fim do poema original, relata-se a promessa do imperador e Yang de se reunir no pavilhão da Vida Eterna no mesmo dia em que o Vaqueiro e a Tecedeira se reencontram. (ver Exemplo 4).

Saudades de Yang Guifei no palácio do exílio. Versos: No palácio do exílio, o fulgor do luar magoa-lhe o coração, o tinir das campainhas, à chuva da noite, rasga-lhe as entranhas.

brisa fresca para a língua alvo. (ver Exemplo 3).

a saber que a dor que o imperador sentiu é tão forte como se lhe fossem rasgadas as entranhas. Por isso, às vezes, a preservação da imagem na língua fonte pode soprar uma

Literalmente 星河 xīng hé é “o rio das estrelas” e a sua equivalência

No poema original, 小玉 Xiǎoyù e 双成 Shuāngchéng são nomes próprios e têm uma dimensão alusiva. Xiǎoyù era a filha de um governador do condado Wu e, Shuāngchéng era uma lacaia de Wangmu, chefe das deusas. Ambas eram lindas e no caso de Chang Hen Ge, serviam como camareiras da imortal Essência Puríssima, quer dizer, de forma implícita, o espírito da concubina Yang. Se mantivesse estes nomes na tra-

Exemplo 3 – 69º-70º versos. original

pinyin

Chí

chí

zhōng

chū

cháng

tradução interlinear

tarde

tarde

sino

tambor

início

longo

noite

tradução de Abreu

Timbales, gongos cadenciam o avançar da longa noite,

original

pinyin

gěng

gěng

xīng

shǔ

tiān

tradução interlinear

claro

claro

estrela

rio

ir

amanhecer dia

tradução de Abreu

depois a madrugada chega, a Via Láctea empalidece.

ORIENTEOCIDENTE

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Exemplo 4 – 89º-90º versos. original

西

pinyin

Jīn

què

xiāng

kòu

jiōng

tradução interlinear

ouro

palácio

oeste

câmara

bater

jade

batente

tradução de Abreu

O mágico atravessa o pórtico de ouro, o pavilhão do Oeste, bate à porta de Jade

original

小玉

双成

pinyin

zhuǎn

jiào

Xiǎoyù

bào

Shuāngchéng

tradução interlinear

indireto

pedir

Xiaoyu

notificar

Shuangcheng

tradução de Abreu

e pede que anunciem a sua chegada à dama estranha e linda.

fêmeo e o pássaro macho têm de ficar sempre juntos. 连理枝 lián lǐ zhī são duas árvores cujos ramos se unem e entrelaçam e, têm um pseudónimo “árvores de casal”. Ambas as expressões são normalmente metáforas do casal amoroso e inseparável, bem como implicam o amor eterno. A tradução de比翼 鸟 bǐ yì niǎo está correta, mas não será melhor dizer “duas aves que voam asa a asa/lado a lado”, com uma repetição de palavra para reforçar a ideia? E 连理枝 lián lǐ zhī foi mal traduzido, dado que, mesmo o caracter 枝 zhī significar ramo, de facto referem-se a duas árvores em

dução de português, seria imprescindível citar as alusões, o que construiria muito trabalho de explicação e compreensão tanto para o tradutor como para os leitores. Graça de Abreu resolveu o problema simplesmente pela omissão dos nomes, sem causar confusão nenhuma aos leitores e deixando a história correr fluentemente. (ver Exemplo 5). Este verso é o mais conhecido de todo o poema e contém um sentimento comovente e doloroso. 比翼 鸟 bǐ yì niǎo é um tipo de pássaro lendário com apenas um olho e uma asa e, para voar no ar, o pássaro

vez de dois ramos da mesma árvore. (ver Exemplo 6). Literalmente 凝脂 níng zhī significa gordura coagulada. Esta tradução faz imaginar, em vez da beleza do corpo de Yang, a má linha duma mulher, por quem o imperador absolutamente não se vai apaixonar. 凝脂 níng zhī é uma metáfora que indica uma pele clara, lisa e fina. A expressão ainda é usada hoje em dia mas aparece mais nas obras literárias do que na linguagem coloquial. A tradução de Abreu não se limita ao significado do poema original, mas procura transmitir toda a acep-

Exemplo 5 – 117º-118º versos.

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original

pinyin

zài

tiān

yuàn

zuò

niǎo

tradução interlinear

em

céu

desejar

ser

paralelo

asa

pássaro

tradução de Abreu

Prometemos, no céu, voar como duas aves com umas únicas asas,

original

pinyin

zài

yuàn

wéi

lián

zhī

tradução interlinear

em

terra

desejar

ser

ligado

textura

ramo

tradução de Abreu

na terra, ser dois ramos entrelaçados de uma só árvore.”

ORIENTEOCIDENTE


Imagens na poesia clássica chinesa ...

Exemplo 6 – 10º verso. original

pinyin

wēn

quán

shuǐ

huá

níng

zhī

tradução interlinear

tépido

fonte

água

escorregadio

lavar

coagulado

gordura

tradução de Abreu

a água das fontes, cálida e doce, sobre seu corpo de jade e alabastro.

não clara demais, dizendo “noites de amor” em vez de noites em que fazem amor. Acho que ajuda bastante os leitores a compreender tanto o conteúdo como a implicitação do poema original. De facto, o caractere 春 chūn é usado várias vezes no poema, e já é uma imagem fixa e simbólica. Nem tudo o que aconteceu entre o imperador e Yang ocorreu na primavera. O poeta opta por adaptar a imagem arquetípica da primavera, porque além de ser uma estação vivente e animada, a primavera é cheia de luxúria. A maioria das criaturas procura namorar nesta época do ano e as femininas acabam por ficarem grávidas. Com esta adaptação, o amor entre o imperador e Yang torna-se mais romântica e com mais furor. No entanto, para os leitores de língua portuguesa, é um pouco difícil relacionar espontaneamente a primavera com o amor, pelo qual o tradutor esclarece mais uma vez a ideia. O esclarecimento é inevitável e eu ainda não tenho uma melhor solução. A tradução perde sempre algo, especialmente na tradução literária.

Um banho nas águas tépidas. Versos: Na Primavera fria, a honra de um banho nas águas tépidas de Huaqing, a água das fontes, cálida e doce, sobre seu corpo de jade e alabastro.

ção, e ainda melhor, não perdendo as imagens metafóricas. É a tradução literal não palavra por palavra, mas ao pé das letras. (ver Exemplo 7). Literalmente 春宵 chūn xiāo significa uma noite da primavera. Os leitores chineses sabem claramente que acontece algo de amor entre o par de amantes, mas essa associação de ideias não é óbvia para os leitores ocidentais. A tradução de Abreu torna o implícito claro, mas de uma forma

Depois de analisar a tradução de algumas imagens do Canto do

Remorso de Perpétuo, é notado que o tradutor António Graça de Abreu tomou medidas diversificadas ao lidar com tradução de diferentes imagens. Quando traduziu as imagens mais simples e convencionais, normalmente imagens visuais e auditivas, tentou arranjar a palavra equivalente na língua alvo, isto é, a língua portuguesa, e obteve sucesso na maioria dos casos, conseguiu transmitir a forma assim como a ideia. Em alguns casos, ao traduzir as imagens relacionadas à crença religiosa ou ao conceito tradicional, recompensou-as com anotação ou estrangeirização. Porém, nunca existe uma tradução perfeita para poesia, quer dizer, perde sempre algo no processo de tradução de obras literárias, o que aconteceu também com Graça de Abreu. É claro que alguns erros podiam ser evitados se o tradutor conhecesse melhor ou investigasse melhor a conotação cultural atrás duma imagem, mas é impressionante que de umas “falhas” nascem novos significados delicados e sortudos, no que talvez resida o encanto da tradução.

Exemplo 7 – 14º verso. original

芙蓉

pinyin

fúróng

zhàng

nuǎn

chūn

xiāo

tradução interlinear

lótus

cortina

quente

passar

Primavera

noite

tradução de Abreu

Por detrás das cortinas bordadas com flores de hibisco, a Primavera, o calor, o prazer das noites de amor.

ORIENTEOCIDENTE

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Uma noite de amor do casal. Versos: Seu cabelo como nuvens, seu rosto como uma flor, um alfinete, um lírio de oiro enfeitando as tranças. Por detrás das cortinas bordadas com flores de hibisco, a Primavera, o calor, o prazer das noites de amor.

Considerações finais A poesia clássica chinesa tem uma longa história. A tradução da poesia chinesa para português, um idioma muito popular e utilizado no mundo, é de grande importância para a divulgação da cultura chinesa a nível global e para que mais leitores de língua portuguesa possam desfrutar da bela poesia clássica chinesa. Contudo, por causa da barreira linguística, diferentes fundos históricos e culturais e distintos costumes sociais, entre outros factores, a tradução da poesia clássica chinesa é uma tarefa muito complexa e difícil. A poesia clássica é uma pérola brilhante da literatura chinesa e a cristalização da cultura chinesa e um dos factores que constrói o encanto da poesia é a abundância de imagens poéticas. A partir de certo ângulo, um poema é constituído por diferentes imagens poéticas. A imagem

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ORIENTEOCIDENTE

é a própria poesia. A imagem poética é composta de imagens e reserva os sentimentos do sujeito. Durante a intercomunicação cultural com os países estrangeiros, os leitores estrangeiros não são tão familiarizados com as imagens na poesia chinesa e, ele ou ela não pode apreciar a beleza de nossa poesia. É realmente uma pena, porque as imagens nos poemas clássicos chineses carregam demais factores culturais. Uma das tarefas mais importantes e urgentes da tradução é transmitir a intenção, o sentimento e a implicação do poeta. O tradutor deve fazer o leitor tocar a batida do coração do poeta. Eles podem estar satisfeitos ou comovidos por felicidade e tristeza do poeta com a ajuda da tradução. O famoso poema clássico chinês Chang Hen Ge tem o seu próprio encanto. Ao analisar “Canto do Re-

morso Perpétuo” de António Graça de Abreu, podemos ver não apenas as diferenças entre os idiomas, como também podemos aprender como ser um bom tradutor. Os poemas clássicos chineses têm também uma estrutura única. Às vezes, a estrutura de um poema já constrói o poema. Ao traduzir, o tradutor mantém isso em mente e tenta transmitir a estrutura original deste poema o mais fielmente possível. Portanto, como um poema possui muitas características estruturais anti tradução para uma outra língua distinta, Graça de Abreu faz a transformação da estrutura original, o que é inevitável. Em relação a imagens poéticas existentes no poema, podemos aprender com o tradutor as estratégias. Por exemplo, para as imagens que têm equivalentes autênticos em português, o tradutor opta por traduzir directa e literalmente; para as imagens que têm equivalentes pragmáticos, o tradutor faz substituição; quando a mesma imagem é expressa diferentemente em chinês e em português, o tradutor explica e escolhe a expressão mais adequada; e para uma imagem que não tem equivalente em português e que tem alusão, o tradutor faz omissão, ou explicação e adiciona anotação. No entanto, cada estratégia de tradução não é utilizada isoladamente, porque uma boa tradução é o resultado de uma variedade de métodos utilizados simultaneamente. Este trabalho é apenas uma investigação preliminar da tradução por Abreu de “Canto do Remorso Perpetuo” para português. São necessários mais métodos e mais teorias para apoiar a contínua pesquisa sobre as imagens poéticas chinesas, não só na poesia clássica, mas também na poesia moderna e contemporânea. Espero que haja mais pessoas interessadas em estudos de tradução das imagens poéticas chinesas e estou convencida de que as imagens poéticas chinesas vão dar a sua fragrância eterna na literatura mundial.


Imagens na poesia clássica chinesa ...

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ORIENTEOCIDENTE

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A (re)emergência da China na equação do poder mundial: considerações geopolíticas

Paulo Duarte Doutorando na Université Catholique de Louvain e Investigador convidado na Cheng-chi University, Taipé Tendo por fio condutor a questão “Pode a China ser considerada um ator ameaçador no século XXI?”, em ‘Metamorfoses no Poder: rumo à hegemonia do dragão? ’ analiso o caminho que este país tem vindo a percorrer, os seus objetivos, bem como as estratégias das quais se serve para os alcançar.1 Passo a enumerar as conclusões resultantes da minha investigação. Creio que a China não deve ser considerada, atualmente, um ator ameaçador.2 Potência emergente, num mundo ‘uni-multipolar’, marcado por um equilíbrio incerto e perturbado, a China sabe que a potência das grandes nações nunca permanece constante. Tendendo, de acordo com certos autores, a querer contestar a organização hierárquica do sistema internacional e o lugar do(s) dominante(s), ela não dispõe, contudo, ainda dos meios necessários para a

concretização das suas ambições. A esse nível, ela é, por conseguinte, ainda ‘frágil’, devendo recorrer à estratégia do ‘soft balancing’ que assenta numa combinação hábil entre a força das armas e a dos princípios. Trata-se, basicamente, de uma multiplicidade de instrumentos não militares que têm como principal objetivo ‘frustrar’ e atrasar as políticas unilaterais do hégémon. Com efeito, embora a China tenha ambições (apesar do seu low profile), não é, no entanto, ‘suicida’. Isto quer dizer que o Império do Meio não tem em vista o ‘choque frontal’ com a superpotência, porque tem consciência dos ensinamentos do passado: os que se opuseram à potência dominante viram, geralmente, as suas ambições fracassar. Mas, o facto de a China recorrer a métodos ‘mais suaves’, para não desafiar diretamente a hegemonia mi-

litar dos Estados Unidos, não significa, no entanto, que ela não suscite alguma apreensão junto dos seus rivais. Com efeito, os americanos, mas também os japoneses, os russos, os indianos, entre outros, vêem com apreensão a modernização do armamento da China, em especial a sua armada. O que espera Pequim do mar? O comportamento naval chinês neste novo século é estreitamente influenciado pelas teses do norte-americano Alfred Thayer Mahan. A China parece, com efeito, ter compreendido o que os Estados Unidos e outras potências marítimas sabiam já há muito tempo: o comércio subentende uma marinha mercante e uma marinha de guerra para a proteger, bem como pontos de apoio (abastecimento e reparação) nas vias marítimas. Do mesmo modo, Pequim apercebeu-se que uma potência que não compreende a importância dos oceanos é uma po-

_________________ 1

Uma breve nota de caráter metodológico. No âmbito da investigação subjacente à escrita da presente monografia foram efetuadas duas deslocações à Ásia Central, uma de 3 a 11 de setembro de 2011 ao Cazaquistão, a convite da Diretora do Suleimenov Institute, em Almaty, e a segunda deslocação de 28 de setembro a 18 de outubro de 2012 a dois outros países, além do Cazaquistão: Quirguistão e Tajiquistão (entre as principais cidades visitadas destaquemos Almaty, Bishkek, Naryn, Osh, Dushanbe). A planificação das duas deslocações à Ásia Central envolveu uma pesquisa exaustiva e morosa de universidades, especialistas, diplomatas, docentes, Organizações Não-Governamentais, tendo a Rede Aga Khan, entre muitos outros atores, fornecido um apoio considerável, não só ao nível da seleção de especialistas locais, como na facilitação de entrevistas à distância, por via telefónica, bem como ainda na visita aos vários polos da University of Central Asia (no Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão). O meu estudo baseou-se num trabalho de pesquisa, ao nível bibliográfico, documental, mas também de campo, através da realização de entrevistas não só a docentes, como também a investigadores, políticos e embaixadores, entre outros, já que estes ajudam a compreender melhor o papel e interesses da China, bem como de outros atores no espaço centro-asiático. A pesquisa de campo foi efetuada, através de entrevistas realizadas não só em Portugal, mas também, e fundamentalmente, na Ásia Central a figuras-chave no âmbito da problemática estudada. Algumas dessas entrevistas foram realizadas por via telefónica para os Estados Unidos, França, entre outros países, e as restantes por entrevista presencial quer em Portugal, quer no âmbito das duas deslocações à Ásia Central. Contudo, alguns dos entrevistados na Ásia Central solicitaram o anonimato ou, em alguns casos, pediram para serem citados como especialistas locais.

2

Evidentemente, a abordagem que utilizei é uma abordagem geral, a qual analisa o conjunto dos elementos (militares, económicos, políticos e culturais) dos quais uma potência (neste caso a China) se serve para proteger os interesses que considera vitais, assim como para se afirmar na cena internacional. No entanto, estou consciente que um bom número de aspetos não foi aqui estudado, não porque não sejam importantes, mas porque optei por examinar, sobretudo, aqueles que me parecem mais relevantes para a análise da ‘ameaça chinesa’.

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A (re)emergência da China na equação do poder mundial: considerações geopolíticas

peração e pela suspeita, não é a única. Com efeito, com a Índia, as relações também são ambivalentes. Nova Deli desconfia das ambições da China no Oceano Índico (território exclusivo indiano), mas também na Ásia Central. E, além disso, um crescimento da interdependência sinoindiana ao nível da segurança regional, não significa, porém, que tenham sido realizados progressos substanciais nas relações entre os dois países. Na realidade, os seus diálogos limitam-se a simples trocas rotineiras de posições oficiais, em vez de explorar as opções com vista a uma cooperação prática.

A Estratégia chinesa do ‘Colar de Pérolas’. Fonte: http://globalbalita.com/?s=china+string+of+pearls

tência sem futuro. Neste sentido, a China está consciente que o seu futuro, em certa medida, está traçado nas águas. De outro modo, não poderíamos compreender por que é imperativo para Pequim proteger as linhas marítimas de comércio (a estratégia do ‘colar de pérolas’ é exemplo disso), mas também projetar a sua potência nos oceanos. Taiwan é aí, evidentemente, uma questão essencial, devido à importância estratégica da ilha. No entanto, esta é basicamente apenas uma peça no puzzle de ilhas, ilhéus, arquipélagos e outras passagens marítimas cruciais, alvos da estratégia marítima chinesa. À medida que a China se tornar mais confiante em si própria, tenderá a investir numa estratégia de sea denial, afastando-se, por conseguinte, gradualmente, da simples defesa das costas chinesas para construir, a longo prazo, uma marinha capaz de operar em alto mar. Para além do mar, a estratégia integral chinesa percorre também o seu caminho por terra. Na Ásia Central, por exemplo, Pequim está, fundamentalmente, preocupado com a estabilização da sua periferia, bem

como com o desenvolvimento das suas províncias sem litoral, como o Xinjiang. A China procura diversificar as suas parcerias com os estados regionais, não só para fazer face a desafios de segurança (terrorismo, separatismo, entre outros), mas também para diversificar as suas fontes energéticas. Se, por um lado, ela não quer depender demasiado da Rússia, a nível energético, por outro, não procura desafiar este grande vizinho que desconfia, por seu lado, da atração de Pequim pelas repúblicas centro-asiáticas. A Organização de Cooperação de Xangai atesta, de resto, os limites de uma cooperação multilateral na Ásia Central. O caso da Rússia e da China é, naturalmente, elucidativo. Com efeito, se a primeira se interessa, sobretudo, pelas questões de segurança, a segunda privilegia, essencialmente, os assuntos económicos. A isto, devemos ainda acrescentar a ‘frustração’ de uma China que viu os seus parceiros russos e centro-asiáticos manifestarem, ‘mais depressa do que imaginava’, um apoio quase incondicional aos Estados Unidos, após os atentados do 11 de setembro. Mas se a relação sino-russa é marcada, simultaneamente, pela coo-

O continente africano é uma outra peça essencial na estratégia integral chinesa. Mas, uma vez mais, a estratégia de Pequim suscita apreensão. Além da colaboração com ‘estadospária’, ou do monopólio em matéria de exploração de recursos energéticos – que causam a indignação dos ocidentais – acrescente-se, ainda, a perceção negativa que a presença chinesa cria em numerosos países africanos. Tal perceção explica-se, designadamente, pela negligência relativamente ao ambiente e à segurança no trabalho, mas também pelo impacto nefasto da concorrência chinesa no comércio local. À semelhança da Ásia do Sul, o continente africano é, também ele, um ‘laboratório’ magnífico para testar os efeitos do soft power e do hard power chinês. Para além dos Institutos Confúcio, dos donativos e bolsas atribuídos, dos intercâmbios de estudantes, da formação dada aos militares africanos, da venda de material militar (só para citar alguns exemplos), a questão de Taiwan também aí está presente. Com efeito, o ‘modelo chinês’, embora se abstenha de submeter a sua parceria africana a qualquer ‘condicionalismo’ ou ‘imposição’ de normas democráticas (contrariamente aos

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estados ocidentais) face aos estadospária, conduz simultaneamente um jogo de sedução para isolar Taipé ou enfraquecer politicamente a candidatura da Índia e do Japão ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (enquanto membros permanentes). Seja como for, o debate sobre a ‘ameaça’ chinesa não se limita unicamente à análise da apreensão e/ou receios que a estratégia de Pequim (relativamente ao mar, a África e à Ásia Central) causa no Ocidente e em países como a Índia ou a Rússia. Com efeito, é necessário que nos debrucemos, igualmente, sobre as dificuldades internas da China no sentido de compreendermos se este país deve ou não ser entendido como ameaçador. A este respeito, constatamos que, do ponto de vista interno, a China é demasiado frágil para ameaçar seja quem for. Exceto a si própria. Evidentemente, o crescimento económico é fundamental para a afirmação do Império do Meio, mas não decisivo por si só. Este baseia-se ‘num desastre ambiental sem precedentes, nas tensões e perigos crescentes, cujo mais evidente está ligado à estabilidade social’. Também não podemos esquecer as falências do sistema de saúde, o desequilíbrio dos sexos, o envelhecimento progressivo da população e a criação de uma ‘sociedade de filhos únicos’, a diferença de rendimentos sempre crescente entre cidade e campo, as desigualdades educativas gritantes, as manifestações ligadas à corrupção, aos acidentes nas minas e nas indústrias… Há ainda outros paradoxos ligados a uma economia de forte crescimento. Com efeito, a população continua a ser ‘relativamente’ pobre, sendo o nível de vida dos chineses

Os Presidentes Obama e Xi Jinping. Fonte: www.epochtimes.com.br/muitas-dificuldades-relacoes-eua-china-dizem-especialistas/#.Vj6lbTgnyP8

bastante baixo quando comparado com o dos habitantes dos estados desenvolvidos. Quanto ao setor financeiro, apesar das reformas dos últimos anos, este continua pouco eficiente e inadaptado à sofisticação crescente da economia interna.3 Para além de todos estes fatores, o Partido Comunista chinês revela-se, segundo certos autores, ‘mais um obstáculo do que uma ajuda ao desenvolvimento contínuo da China’. Além disso, como vimos, ‘o Partido pode ter desempenhado um papel histórico importante, mas que cria, doravante, as condições da sua extinção’. A nível militar, embora a China modernize as suas forças armadas, há, contudo, ainda um longo caminho a percorrer já que estas são (ainda) globalmente mal equipadas. O seu atraso tecnológico não as impede, no entanto, de encarar a hipótese de um conflito, a médio ou longo prazo, com os Estados Unidos. Pe-

quim está, a este respeito, consciente que um Império em declínio económico, e que continua a ser muito potente a nível militar, constitui uma fonte de potencial conflito no futuro. Por sua vez, Washington considera a China, se não como uma ameaça à sua segurança, ou mesmo um inimigo, pelo menos como um risco potencial. Impregnadas de um misto de paixão recíproca e de desconfiança mútua, as relações sino-americanas oscilam entre a cooperação e a rivalidade. Com efeito, embora a China se revele um parceiro indispensável para as questões da proliferação nuclear e do terrorismo, não deixa, todavia, de ser encarada em certos círculos políticos norte-americanos como um ‘strategic competitor’. Pequim contesta, por seu lado, a política de cerco que Washington conduz a seu respeito, de forma a circunscrever a potência chinesa. Ambígua, a ati-

_________________ 3

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Acrescentemos, também, as deficiências da bolsa que viveu anos negros devido a uma enorme queda das cotações, a irregularidades de vária ordem, à falta de transparência e à ausência de uma gestão eficaz.

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A (re)emergência da China na equação do poder mundial: considerações geopolíticas

tude norte-americana face à China baseia-se num misto de prudência tática e de indeterminação estratégica. Certos autores criaram, além disso, o termo de ‘endigagement’, que traduz uma estratégia destinada a ‘isolar politicamente Pequim’, procurando, contudo, manter simultaneamente uma ‘parceria ativa no que concerne às questões económicas e comerciais’. Atuando nos ‘mesmos terrenos’ (nomeadamente em África e na Ásia), as duas potências querem garantir o seu acesso às matérias-primas, bem como controlar os ‘gestos do outro’. O futuro da sua relação, incluindo o risco de um conflito potencial, será determinado essencialmente pela maneira como Washington e Pequim fizerem face à sua competição económica, à questão de Taiwan, aos direitos do homem e à governança mundial. Mas, neste momento, os dois países não são nem ‘inimigos supremos’ nem ‘parceiros duradouros’. Não obstante todas estas apreensões, rivalidades e desconfiança, ‘a ameaça chinesa’ é, por ora, reduzida, tendo em conta as razões apresentadas. Tal não quer dizer, contudo, que os chineses não lutem para reencontrar o caminho da ‘tentação imperial’, para voltarem a ser a ‘grande nação’ que foram no passado. Esta amálgama de ‘destino manifesto’, de ‘missão histórica’, de nacionalismo, de prestígio e nostalgia de um passado glorioso poderá, um dia, fazer da China uma superpotência. Como sublinha H. Christophe, “excetuando algum grande incidente, imprevisto ou um grave erro de estratégia por parte do Partido Comunista chinês, Pequim parece dispor de todas as vantagens em mão para

o conseguir”.4 De facto, “as fraquezas de hoje serão, talvez, as forças de amanhã, sendo dificilmente concebível que um estado tão grande, territorial e demograficamente, não desempenhe um papel mais importante no futuro”.5 Nesse momento, ainda longínquo e incerto, não é de excluir que a China se torne, um dia, um ator ‘ameaçador’. Mas esta possibilidade não deve ser encarada como um fenómeno anormal. Pelo contrário, ela inscreve-se na dinâmica natural do ‘nascimento e declínio das grandes potências’, onde ora um ou vários estados dominarão, ora declinarão. Além disso, o comportamento da China parece inspirar-se largamente nos preceitos de Lao Tseu: “Não nos coloquemos adiante, mas não fiquemos para trás”, ou “o maior conquistador é o

que sabe vencer sem batalha”.6

Breves considerações sobre Portugal e a Ásia Central Algumas considerações a respeito dos horizontes das relações entre Portugal e os Estados da Ásia Central que resultam da minha pesquisa de campo. Desde a independência das Repúblicas centro-asiáticas que Portugal tem mantido relações bilaterais com estes países. Não dispondo de embaixadores residentes em cada um dos cinco Estados da região, é a embaixada de Portugal em Moscovo que está encarregada da missão diplomática portuguesa na região, à

Mapa da Ásia Central. Fonte: https://oretornodaasia.wordpress.com/2012/12/06/ portugal-e-a-asia-central/central_asia2/

_________________ 4

5 6

Christophe, H. (2006). La Chine pourrait-elle devenir la prochaine superpuissance? Analyse de l’évolution d’un pays en plein essor selon les différents critères théoriques de “puissance”, Mons: Faculté de Sciences Sociales et Politiques, p. 8. Ibidem. Cit. por Karaljija, N. (2006). Le Rôle de la Chine depuis 1949: Puissance Régionale ou Hégémon ?, Louvain-la-Neuve : UCL, p. 3.

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exceção do Turquemenistão, sendo os assuntos deste país acompanhados pela embaixada portuguesa em Ancara. Investigadores como Licínia Simão sublinham que “as relações entre Portugal e a Ásia Central são claramente insignificantes”.7 Embora estas tenham vindo a evoluir desde “meados da década de 2000”, importa sublinhar que “Portugal segue, no essencial, a tendência definida pela União Europeia e pelos seus Estados membros”, a qual se pauta por “um aumento da atenção política e das preocupações com a segurança”.8 Ao nível bilateral, a política externa portuguesa face à região tem evoluído para uma postura pragmática, guiada, fundamentalmente, pela “diplomacia económica” com o intuito de “angariar novos mercados e investimento, especialmente nas relações com o Cazaquistão”.9 Segundo dados da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), o comércio bilateral entre Portugal e as Repúblicas centro-asiáticas é pouco significativo, sendo que a AICEP considera que o risco de investimento nos países da região é, geralmente, elevado – máximo no caso do Quirguistão (7 é o valor máximo e 1 o valor mínimo) – e mais baixo, mas, ainda assim, considerável, no caso do Cazaquistão (risco de 5).10 Das

cinco Repúblicas centro-asiáticas, o Cazaquistão é o parceiro mais ativo no comércio bilateral (e com maior diversidade de produtos comercializados) com Portugal, muito embora este seja, para todos os efeitos, baixo, como referido. Um outro especialista, José Félix Ribeiro (2012)11, questionado sobre a eventual importância da Ásia Central no quadro da diversificação energética portuguesa, é da opinião que “Portugal poderá, aparentemente, beneficiar de mais vantagem em explorar uma ligação mais Atlântica, em termos de geografia, e de posicionamento”. Este autor antevê que “a possível emergência dos Estados Unidos como exportador de gás natural”, num contexto em que “o Mediterrâneo e o Médio Oriente tenderão a entrar num período de grande convulsão”, confere, desse ponto de vista, a Portugal “mais vantagem em procurar a bacia Atlântica – desde a Noruega até sul – do que, propriamente, a Ásia Central”.12 Embora F. Ribeiro admita não ter conhecimento de uma qualquer ‘estratégia’ portuguesa para a Ásia Central – “exceto, talvez, por parte da Fundação Calouste Gulbenkian”, através da filial Partex-Oil and Gas Company, que é “um dos investimentos portugueses mais significati-

vos na Ásia Central” –, Licínia Simão é, por sua vez, relativamente mais moderada no balanço. Para esta autora, “a diplomacia económica [portuguesa] carece de uma visão estratégica e de um apoio político de forma a produzir resultados significativos”.13 Daqui resulta – como foi possível, aliás, comprovar, na viagem que realizei, de 28 de setembro a 18 de outubro de 2012, ao Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão – que Portugal é um ator (praticamente) ausente no terreno14, “quando comparado a outros Estados membros da União Europeia, como a Alemanha ou a França”, que têm sido “os principais defensores de uma intensificação das relações entre a União Europeia e a Ásia Central”.15 Inclusivamente, como refere, e bem, Licínia Simão, na comparação com países como Espanha, “geograficamente distantes da região”, as empresas portuguesas “têm ficado bastante aquém”, no que respeita à presença na Ásia Central.16 Qual a razão para tal? Muito provavelmente, o tal peso estratégico da bacia atlântica para Portugal, como referi há pouco, ao citar o pensamento de José Manuel Félix Ribeiro, que é bem acolhido, não só ao nível empresarial como, também, pelo próprio Governo português, o qual tem prio-

_________________ 7

Simão, L. (2012). “Portugal and Central Asia”, em EUCAM – Policy Brief, n.º 5, August, p. 1.

8

Ibidem.

9

Ibidem.

10

AICEP Portugal Global (2013). Informação sobre comércio com as Repúblicas centro-asiáticas.

11

Ribeiro, J. (2012). Entrevista Pessoal. Lisboa.

12

Ibidem.

13

Simão, L. Op. Cit., p. 1.

14

Embora simbólico, a respeito da ausência portuguesa (ou, pelo menos, de cidadãos portugueses) na região, achei curioso, aquando da minha primeira ida (setembro de 2011) ao Cazaquistão, ter sido abraçado na rua, enquanto conversava ao telemóvel, em Almaty, por um estudante brasileiro. Visivelmente contente, o mesmo explicou-me que, desde que lá estava a estudar, acerca de seis meses, eu era a primeira pessoa a quem ele ouvira falar português.

15

Simão, L. Op. Cit., p .1.

16

Ibidem. A título de exemplo, no âmbito da preparação da minha primeira ida ao terreno centro-asiático (setembro de 2011), cheguei a telefonar para a sede da companhia REPSOL, em Espanha, com o objetivo de solicitar informações e eventual autorização, no sentido de poder entrevistar responsáveis locais desta companhia petrolífera espanhola no Cazaquistão. Optei por mencionar aqui este facto, aparentemente banal na preparação de uma viagem de investigação, mas que atesta simbolicamente a relevância que uma companhia petrolífera da vizinha Espanha confere à Ásia Central, contrariamente ao que se tem verificado, até ao presente, por exemplo, com a portuguesa GALP.

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A (re)emergência da China na equação do poder mundial: considerações geopolíticas

Deslocação do autor à Ásia Central. Fonte: Pesquisa realizada pelo autor (2011 e 2012) na Ásia Central.

rizado as relações e investimentos com os países de língua portuguesa em detrimento da ‘remota’ Ásia Central. Numa carta endereçada ao Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Dr. Artur Santos Silva, terminei a minha argumentação colocando, justamente, a tónica numa preocupação também cara a Licínia Simão e, presumo, que a muitos outros investigadores portugueses, que diz respeito ao facto de “o Governo Português priorizar sistematicamente as relações com outras áreas geográficas, como África”.17 Com efeito, numa ocasião em que tantos tendem a perceber o caminho para sul, para África, para o Brasil, em suma, para as antigas colónias portuguesas (como se pode constatar através da quantidade, eventualmente, excessiva, no meu entendimento, de bolseiros que se dedicam à investigação de temáticas afetas à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), não tenho conhecimento de que haja um bolseiro, em Portugal, a focar a sua investigação na Ásia Central. Tal poderá vir a ser prejudicial, já que, ‘mais do mesmo’, é persistir em não vislumbrar

outros horizontes. Ora, a Ásia Central é, atualmente, um cenário geopolítico e geoestratégico onde russos, chineses, americanos, e os próprios europeus (entre outros, uma Alemanha, uma França, uma Inglaterra, através das embaixadas que possuem na região) parecem já ter compreendido que o futuro também passa pelo oriente, neste caso, pela Ásia Central. Ignorar tais factos, implica, inevitavelmente, adiar o investimento e as oportunidades – que África e/ou o Brasil (por muito importantes que sejam do ponto de vista económico, político, cultural, estratégico, entre outros) não poderão, por si só, trazer –, visto que Portugal, bem como, em termos gerais, qualquer outro país consumidor de recursos energéticos necessita de diversificar rotas e abrir caminhos, como reconhece, aliás, José Félix Ribeiro et al (2011), no seu livro Uma Estratégia de Segurança Energética para o Século XXI em Portugal.18 Este é, pois, o momento, tornado, aliás, claro pelo Vice-Ministro Paulo Portas, que tanta importância tem atribuído à criação e/ou reforço de

laços diplomáticos e económicos com países ricos em recursos energéticos, como é o caso dos Estados do Médio Oriente. Paralelamente a este impulso político-económico, não seria despropositado esboçar uma colaboração universitária com a região, de forma a dinamizar o intercâmbio de alunos e docentes, uma vez que, como sublinha Licínia Simão, “ao nível da sociedade civil, não existe uma cooperação (bem) delineada; o mesmo é verdade para o caso das universidades, as quais ainda se encontram numa fase muito incipiente de desenvolvimento de acordos de intercâmbio com a região, no quadro do Programa Tempus”.19 É, por conseguinte, fundamental condensar e canalizar recursos humanos, no que diz respeito aos investigadores que estudam as temáticas relacionadas com a região, promover conferências, com o intuito de contribuir para mitigar o desconhecimento face à mesma. Como pude testemunhar (no âmbito da viagem realizada ao Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão), todos os institutos, universidades

_________________ 17

Ibidem.

18

Ribeiro, et al (2011), Uma Estratégia de Segurança Energética para o Século XXI em Portugal. Imprensa Nacional.

19

Simão, L. Op. Cit., p.3.

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e investigadores por mim abordados na região manifestaram interesse em ser eventuais parceiros académicos de Portugal na criação de um centro de estudos sobre a Ásia Central, algo que já existe, contudo, em outros países europeus, mas não em Portugal.20 Importa, também, aproveitar (melhor) as pontes institucionais disponíveis em Portugal. Refiro-me, por exemplo, à existência de um Alto Representante da Rede Aga Khan em Portugal, o Dr. Nazim Ahmad, que me recebeu atenciosamente aquando da preparação das duas deslocações aos países da região, e me colocou em contato com elementos da Rede Aga Khan no Tajiquistao e Quirguistão. Num momento em que existem, por exemplo, Institutos Confúcio, Cambridge School, Alliance Française, GoetheInstitut, entre outros, na região, não seria interessante Portugal apostar, à semelhança de outros países europeus, na promoção da língua portuguesa, através, por exemplo, da inauguração de Institutos Camões na região? Enquanto vetor da identidade e da cultura lusitana, a língua pode ser, com efeito, um bom instrumento para Portugal suscitar interesse e se dar, simultaneamente, a conhecer aos povos centro-asiáticos, num contexto em que muitos deles ponderarão, quiçá, emigrar para Portugal, ou para o Brasil, com vista à concretização do seu ‘sonho ocidental’. Importa, talvez, refletir se não estarão certas elites portuguesas, de forma redundante, a apostar num ‘excessivo’ desenvolvimento da lusofonia em países já lusófonos, num

momento em que espanhóis, franceses, ingleses, alemães, entre outros europeus, procuram, a seu turno, promover a sua língua e cultura na Ásia Central. Não será tempo de Portugal procurar fazer o mesmo? Embora não duvide da importância da Ásia Central no quadro da estratégia energética da União Europeia, Félix Ribeiro questiona, porém, até que ponto esta é uma estratégia sólida, por um lado, “porque a Alemanha tem uma relação mais autónoma e bilateral com a Rússia”, e, por outro, porque se tem verificado um problema muito grande de decisão em torno do projeto Nabucco, sendo que “hoje aparecem outros sucedâneos para o corredor meridional”.21 Além disso, como nota este especialista, “a grande novidade é que Israel, Chipre e Grécia possuem um vastíssimo potencial de hidrocarbonetos no seu offshore, algo que há cerca de cinco anos ninguém sabia”.22 Outro fator que aumenta a relevância da Ásia Central para a União Europeia é o facto de esta não dispor de “capacidade militar”, sendo que, por este motivo, “não lhe convém depender excessivamente dos recursos energéticos do Golfo Pérsico”.23 Na prática, como explica F. Ribeiro, “uma relação estreita com o Golfo é uma relação subordinada aos Estados Unidos”, sendo que este especialista acredita ser do interesse da União Europeia “apostar na bacia do Cáspio para evitar quer o Golfo Pérsico, quer a Rússia”.24

Não quer dizer, porém, que, ao enveredar pelo caminho do Cáspio/Ásia Central, a União Europeia não enfrente “alguns riscos”, uma vez que para F. Ribeiro (2012), ela passaria a estar “em competição com a China, nomeadamente”. Em conclusão, embora todas estas considerações geopolíticas sejam importantes, a geografia também o é, e, neste sentido, é de prever que, pelo menos a curto e médio prazo, a margem de contribuição de Portugal para um reforço das relações entre a União Europeia (e seus respetivos interesses energéticos, políticos e securitários) e a Ásia Central permaneça limitada. A menos que haja uma reflexão profunda acerca da promoção da lusofonia, para que esta não arrisque ser redundante, como alertei, e passe, ao invés, a considerar outras regiões que, até ao presente, não têm despertado o interesse económico e cultural português, então não se deverá esperar que a postura lusa face à remota Ásia Central evolua. Por outras palavras, enquanto Portugal estiver decidido a focar o seu olhar sistemática e fundamentalmente na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e não ousar revisitar a essência do seu passado de conquistador de Novos Mundos, deixando para trás o ‘Velho do Restelo’ que não ousa partir por eventual receio e desconhecimento, então é de prever a continuidade do ‘português suave’, do português reativo, que não empreende, mas se limita a reagir, quase por necessidade, às iniciativas alheias.

_________________ 20

Destaque-se, por exemplo, o facto de alguns alunos da Osh State University me terem questionado (no final de uma breve exposição que realizei naquela universidade quirguize, e na qual eles haviam ficado interessados) sobre que medidas, em concreto, deveriam tomar para poderem vir estudar em Portugal. Trata-se de um mero exemplo, mas cujo simbolismo atesta a importância de se começar, na prática, a trabalhar para definir e elaborar programas de intercâmbio académico entre Portugal e as Repúblicas centro-asiáticas.

21

Ribeiro, J. (2012). Op. Cit.

22

Ibidem.

23

Ibidem.

24

Ibidem.

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Recordar na China:

o duelo entre o Silêncio, a Nostalgia e a Utopia

Beatriz Hernández Centro de Estudos de Comunicação e Cultura Universidade Católica Portuguesa

Introdução: a memória como força política O clássico chinês Os Anais das Primaveras e dos Outonos (Chunqiu Linjing) conta a história do rei de Yue, Goujian (496-465 a.C.), quem, após ter sido derrotado na batalha do Monte Kuaiji (actual Shaoxing) pelo seu arqui-inimigo Fuchai (495-473 a.C.), rei de Wu, voltou passados 3 anos de cativeiro para o seu país, decidido a lembrar-se da humilhação causada à sua estirpe real pela derrota. Já no seu palácio, trocou a sua confortável cama por um monte de lenha e no teto das suas dependências pendurou uma vesícula biliar para que, ao levantar a cabeça batesse nela ou para quando bebesse ou comesse algo, a sua visão lhe despertasse um sabor amargo semelhante ao da derrota. Além disto, mandou construir uma cidade no Monte Kuaiji onde instalou a capital do seu reino, para jamais esquecer a sua vergonhosa mostra de debilidade, tal como narra Cohen (2003: 149). O século XX começava na China de um modo semelhante ao autoimposto pelo rei Goujian: com um discurso que apelava a rememorar, a promover um sentimento patriótico de luta para ressarcir o dano causado e a não esquecer. A China, desejosa de ultrapassar a afronta causada por potências ocidentais após as Guerras do Ópio (1839-1842

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e 1856-1860), tinha que olhar para trás e reflexionar sobre o que tinha acontecido, tinha que apelar à memória e refletir para voltar a ser a nação que um dia foi. Não se podia passar por alto o facto de o reino de Yue ter acabado por derrotar o de Wu como revanche, passados 20 anos após a inesquecível derrota. Neste ensaio pretendemos abordar a atitude dos chineses em relação ao passado de modo a delinear – grosso modo – de que forma foi preservado e de que forma este mesmo passado atuou sobre o presente em diferentes épocas, especialmente a mais recente e ainda latente “dinastia” maoísta e o seu legado. Neste período, onde história e realidade estiveram fortemente influenciadas pela ideologia ditada pelo líder, recordar implicava recorrer ao bloco de cera que Sócrates afirmava existir nas nossas almas – como detalha Capeloa Gil (2011). Este tinha sido oferecido como presente pela mãe das Musas, Mnemósine (Memória), e é nele onde ficam imprimidos pensamentos e percepções. O que esteja lá anotado poderá ser rasurado, mas nunca apagado definitivamente, pelo que o modo como lidamos com este registo condiciona o presente. Mas o que será que acontece quando o que é anotado nesse bloco de cera consiste num argumento manipulado, construído e

orquestrado pelo poder e imposto massivamente numa sociedade quase de laboratório? Poderão esses ditados ser considerados memória ou serão simplesmente sobrepostos sobre as lembranças pessoais próprias? Terá este um sentimento partilhado a modo durckheimniano pelo grosso de uma sociedade sem individualismos? Ou será antes uma memória baseada no narcisismo das pequenas diferenças? Serve a memória como um implacável lembrete de algo que se preferiria esquecer ou algo que se luta por recordar? Em que medida o silêncio fala entre quem cala, acumula potência e protege as lembranças? Como sobrevivem na China os heróis e os mitos históricos? Memórias sobre o passado revolucionário da China experimentaram, segundo Olick et al. (2001), o boom das lembranças políticas e culturais, sobre tudo a partir da década dos 90 e os primeiros anos do 2000. Batizado como “Febre Mao”, este boom voltou como uma moda às ruas do país, algo que não deixou de surpreender no Ocidente. Por um lado, séries de televisão, documentários e músicas. Por outro, telefones com carcaças decoradas com imagens dos pósteres de propaganda maoísta, objetos de merchandising nas feiras de antiguidades e até restaurantes e experiências culinárias com “menus revolucionários” que imitam os servidos nas alturas de


Recordar na China ...

grandes carências... Em resumo: no decorrer de uma suposta era de reforma pós-revolucionária, o que encontramos parece ser um exercício de memória revolucionária, como constatam Lee e Yang (2007). Estas questões surgem igualmente derivadas da imagem enigmática, às vezes complicada e no limite bizarra, sobre este país que é frequentemente partilhada no Ocidente. Se os chineses não deixam de nos surpreender por começarem a construir as casas pelo telhado, quando escolhem o branco como símbolo de luto e perda, ou quando apertam a sua própria mão para cumprimentar alguém, será que no campo dos passados, dos presentes e dos futuros os seus usos e procedimentos são, pelo contrário, partilhados connosco?

História, Memória e legado cultural É verdade que na China se sente por todo lado a presença do passado, transborda nos cantos mais imprevistos e impregna basicamente quase tudo – basta apontar que hoje em dia a sua escrita mantém-se praticamente imutável relativamente à forma como foi criada há mais de dois mil anos. Mas, curiosamente, este passado permanece inapreensível, fisicamente ausente da paisagem chinesa e parece antes ficar encalhado no reduto mais pessoal e íntimo da sociedade. Como Leys (2005: 13) anota, o que surpreende o visitante na China é a “monumental ausência do passado”, circunscrito a um número de conjuntos célebres que restam do que a China foi. Assim, continuando com a leitura do mesmo autor, mais que habitar as pedras em ruínas – como é típico a Ocidente – “na China o passado habita os homens. Este passado é ao mesmo tempo

Obra do artista Zhang Xiaogang intitulada "Bloodline: Big Family No. 3" vendida por 12.1 milhões de dólares através da Sotheby's Hong Kong.

espiritualmente ativo e fisicamente invisível”. Todavia, essa “estranha nudez da paisagem monumental chinesa” não pode ser inteiramente atribuída ao caos iconoclasta da era maoísta ou ao pesadelo destrutivo da Revolução Cultural, mas talvez encontre argumentos que a expliquem no peculiar modo do país lidar com certas etapas constrangedoras da sua história. A China é, entre as mais antigas civilizações do nosso planeta, a única cuja continuidade nunca foi interrompida e ainda continua viva. Paradoxalmente – como assinala Leys (2005: 11) – “o respeito pelos valores espirituais e morais dos Antigos parece ter-se combinado quase sempre com uma indiferença e uma curiosa negligência em relação à herança cultural do passado”. Daí talvez essa febre quase herege e indolente pelas expressões materiais da sua cultura; daí talvez também o simples facto de os materiais e métodos utilizados para erigir monumentos na antiguidade não se esforçarem em desafiar o agressivo passar do tempo, mas sim claudicarem e concederem a vitória à erosão dos séculos, ao utilizarem-se madei-

ras ou argilas de entrada perecíveis e ao depositar a eternidade, não na obra, mas sim no arquiteto. Segundo o mesmo autor (ibid., 22), poderíamos até questionar:

“(...) se não existirá uma certa relação entre o inesgotável génio criador de que a civilização chinesa deu provas ao longo dos tempos e o fenómeno periódico da tábua rasa que impediu essa cultura de sufocar sob o peso dos tesouros acumulados pelos séculos. À semelhança dos indivíduos, também as civilizações têm provavelmente a necessidade de uma certa margem de esquecimento criador. Um excesso de recordações pode provocar uma forma de inibição; uma memória infalível e total pode constituir uma maldição (...)” Esta sobrecarga mental e decadência neurológica que afectam a memória individual põe em risco a memória colectiva não só pelo desaparecimento de gerações que foram testemunhas, mas também por políticas de negação que o poder de turno acaba por impor perante a impossibilidade de distribuir responsa-

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situasse no eixo central que um dia tinha ocupado.

Empregados do restaurante Red Classic no distrito de Chaoyan (Pequim) vestidos de Guardas Vermelhos durante um espetáculo. (© China Daily/Asia News Network)

bilidades de um modo conciliador e firme (Olick et al. 2011). Se olharmos para a historiografia clássica chinesa – seguindo a leitura que WeigelinSchwiedrzik (2006) faz dum texto de Jan Assmann – compreendemos que esta se caracterizava por produzir uma master narrative empenhada em preencher os espaços entre umas dinastias e outras de forma que conseguisse legitimar a mudança de regime, justificasse a queda da casa imperial anterior, ao tempo que contribuísse para a persistência e sobrevivência do Império sob o novo poder estabelecido. É a conhecida mudança cíclica dentro da tradição que servia para começar o mesmo de um outro modo; na realidade, nova dinastia, mas dinastia na mesma. Este desejo de “partir do zero” – que começa a debilitar-se com a queda da última dinastia imperial e a proclamação da Primeira República em 1912 – parece não se aplicar ao período maoísta, quando o slogan “use the past to serve the present” (Gu wei jin yong) condicionou o modo de olhar para o

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passado e concedeu um forte valor à memória histórica, focada nos lamentos do “Século de Humilhações”. Mao, familiarizado com o uso político de datas e vexações passadas que o próprio Guomindang tinha cultivado previamente, confiou no ritual da lembraça. Superando o próprio Jiang Jieshi (Chiang Kaishek), o Grande Timoneiro activou uma espiral de substituição de inimigos que amplificava e prolongava o medo, o ódio e o venenoso rancor dos “Cem Anos de Humilhações”. Não se podia esquecer. Tal como afirma Cohen (2003: 131143), o estabelecimento da RPCh, antes de ser um momento de ruptura e revolução radical, inaugurava um período de revoluções em diferentes áreas, ao tempo que mantinha “continuidades significativas, ressonâncias e pontos de corres-pondência com aspectos da vida chinesa prévios a 1949”. O povo chinês devia conservar essa febre moral revolucionária – principalmente no meio de grandes dificuldades – para perseguir uma vitória que ressarcisse à nação e a

A reescrita do passado levada a cabo pela historiografia do PCCh é considerada – valendo-nos da afirmação de Harrison (cfr. Wang, 2008: 784) – “como a maior tentativa massiva de reeducação ideológica na história da humanidade”. Gries (ibid.: 788) completa este pensamento acrescentando que é certamente inquestionável que “na China o passado vive no presente como em nenhum outro país”. Neste período, escrever sobre história foi reescrever os “textos sagrados” como denomina Weigelin-Schwiedrzik (2006), editados e publicados sob o rótulo de Obras seletas do pensamento de Mao e emolduradas pelo Comité Central do PCCh através da resolução “On Some Historical Questions”, emitida pouco depois do VII Congresso do Partido celebrado em 1945. Deste modo as diferenças que estabelece Assmann (2003: 154-177) entre “cultural memory” – textos sagrados que narram as origens liminares da sociedade e do sistema político que impera – e “communicative memory” – memória dos últimos cem anos e que costuma interligar três gerações numa mesma sociedade – esbatem-se e cria-se uma master narrative promulgada numa sociedade que é compelida a sonhar com a nação que já foi. Mas este era um passado selecionado e crivado pelos líderes e o Partido. No conjunto, essa fantasia foi o sonho de uma sociedade afastada da realidade interna e externa, e portanto de si mesma. Se tomarmos a distinção que Kluge (cfr. Schmidt-Glintzer, 2005: 141) faz da percepção da realidade que alimenta a memória – segundo a qual temos, de uma parte, a experiên-


Recordar na China ...

cia do mais próximo ou imediato passado e, de outra, os verdadeiros acontecimentos históricos mais recentes – vemos que na época maoísta ambos foram adulterados através do controlo total e da propaganda ubíqua. O que Mao alcançou, construindo seletivamente o passado, “escolhendo os traumas” e “escolhendo as glórias” foi amoldar o seu presente e, assim, condicionar irreparavelmente o futuro. Como descreve Billeter (2000: 17), “a China enquanto sonhava com o seu passado, acabou convertendo-se num país sem memória”. Contudo, se tivéssemos de escolher um traço que caracterizasse, numa única palavra, o tratamento da memória e da história durante os 27 anos de reinado maoísta, o mais acertado seria o da ambiguidade. Sirvam estas palavras de Sayles (cfr. Landsberger, 1994: xviii) para delinear um esboço rápido desta época:

“The Revolution aims to set us free but must imprison many. The Revolution exists to spread power among the people, but first must centralize it. The Revolution must protect true freedom of speech with censorship. The Revolution strives to create a New Man but is guided by the Old ones. Within the Revolution, the individual must surrender himself to the will of the Masses, though that will is interpreted by a handfull of individuals. The Revolution promises change, but first must create order.” A revolução queria derrotar o inimigo imperialista, mas o regime maoísta decidiu ele próprio – segundo observa Leys (2006: 136) – “de um modo provocatório, reivindicar-se explicitamente como uma tirania antiga, proclamando-se herdeiro político do primeiro unificador impe-

rial”: o Imperador Amarelo Qin Shi Huan (259-210 a.C.). A revolução criticou os clássicos e lançou uma campanha de denúncia de Confúcio, mas – conforme Sierra de la Calle (2001) – o que se pretendia era substituir o espírito deste pensador e imitar os seus 25 séculos de permanência entre o povo chinês, apagando tudo quanto tinha escrito e redigindo no seu lugar uma outra doutrina (as vezes até curiosamente semelhante) que seduzisse as gerações mais novas. O resultado: a memória do povo ficou congelada e anestesiada. Apoderando-se de “apenas uns centímetros cúbicos dentro da cabeça” (Gleckner, 1956: 96), erigiu-se uma sociedade submissa às expensas de uma lavagem cerebral e de uma repetição constante de palavras de ordem publicitadas pelo Partido. Mensagens essas que minimizavam o raciocínio e propagavam um sentimento de conformidade política; mensagens salmodiadas até a saciedade através das quais se ocultava e eliminava a verdade objetiva. Seguindo este libreto, Mao e o PCCh governaram valendo-se da mais pura coerção e com isso conseguiram reforçar a sua legitimidade transformando as mentes, processo este que Schell descreveu de um modo brilhante no 11 de Julho de 2007 durante a conferência “There You Go Again: Orwell Comes to America: Propaganda Then and Now: What Orwell Did and Didn't Know” (disponível em http://www.nypl.org/ live/multimedia/orwell). Na opinião deste especialista, durante o maoísmo, o indivíduo não era compelido apenas a perseguir o desvio ideológico do inimigo e a denunciá-lo. Também conquistou o poder para fazer que esse mesmo indivíduo identificasse em si próprio esse erro de conduta, verificando as suas ações (portanto ativando a sua memória mais recente) e esforçan-

do-se por encontrar em quaisquer delas o delito. Uma vez (auto)localizada a falta, devia (auto)corrigi-la por meio da (auto)crítica. Efetivamente: era preciso não esquecer. Note-se que este poder de domínio da memória e o apelo a não esquecer controlava tanto as faculdades neurológicas de reter e recordar o passado como a capacidade de fixar e decorar condutas positivas para futuras ações. A propaganda ficava encarregue de teledirigir quotidianamente a atividade cerebral da sociedade com lemas como “renmin chunzhong you wuxian de chuangzaoli” (o povo tem poderes criativos ilimitados) impresso em bilhetes de autocarro da época; “ tigao jingti baowei zuguo ” (aumente a vigilância para defender a Mãe Pátria) nos envelopes; “niannian bu wang jieji douzheng” (nunca esquecer a luta de classes) gravado num espelho de mesa; “da li zhiyuan nongye” (apoie agricultura em grande escala) nos pacotes de tabaco. Todos estes exemplos aparecem recolhidos em Gao (2008: 2).

Como ser herói e sobreviver na memória da China Lu Xun, considerado o maior escritor da China moderna, observou – segundo resume Leys (2005: 247) – “que sempre que um génio original se manifesta neste mundo, as pessoas esforçam-se logo por se desembaraçar dele”. Podem optar pelo método da supressão o que faz com que o personagem, “isolada e rodeada por um muro de silêncio e enterrada viva” acabe por ser apagada da memória. Se ainda assim esta manobra não surtir o efeito desejado, continua o autor, “passase ao mais radical e mais temível método: a glorificação. Posto isto, a vítima é içada sobre um pedestal, incensada e endeusada”. Contudo,

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poderíamos acrescentar outros meios que permitem a obliteração de génios originais, consequência da própria ambiguidade e contrassentido que parecem presidir algumas etapas históricas na China – especialmente durante o período maoísta – das quais já Lu Xun não seria testemunha. Assim, um terceiro meio seria semelhante ao processo de glorificação-supressão-reabilitação, vivido na pele de líderes como Deng Xiaoping ou pensadores como Confúcio. Outros mitos e heróis do passado ressuscitaram de forma contraditória, como o general wokou Zheng Chenggong (1624-1662) convertido em metonímia da luta maoísta contra o imperialismo apesar da sua biografia estar carregada de argumentos que o situavam nas antípodas do panteón comunista. Não importava que tivesse defendido a causa de um imperador de épocas feudais, nem que tivesse sido educado segundo os preceitos confucionistas, nem que o seu pai fosse um mercador enriquecido pela piratearia ou que a sua mãe fosse japonesa. Estes detalhes foram ignorados na hagiografia popular da RPCh. Com a Revolução Cultural até os heróis nacionais do passado tiveram que procurar refúgio (acusações contra Shi Kefa por atacar aos camponeses; críticas ao Hai Rui por trair o malvado imperador Jiajing (15211567). Zheng Chenggong ao menos sobreviveu e a sua imagem espera intacta ainda hoje que os mitos históricos sejam novamente invocados em nome da defesa nacional. Conseguirá fazer que o auspício de Chang Huan-yen (1620-1664) “hope that for a thousand autumns men will tell of this” permaneça em vigor? Se fizermos um percurso sobre a avaliação que do próprio Mao se fez, observaremos que ele, em vida, experimentou etapas de glorifi-

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cação – “supressão” – “reabilitação”. Utilizamos as aspas na fase da supressão porque, embora ele se tivesse afastado do poder após o fracasso da campanha do Grande Salto em Frente durante 1958-1960, fê-lo como estratégia para preparar o seu retorno em força, o que aconteceu em 1966 com a sua planificada Revolução Cultural. Após a sua morte, o processo foi semelhante, sendo que começou também com a glorificação e seguida de uma supressão, neste caso, imposta pelo juízo histórico, embora não fosse total, firme nem radical. O PCCh preferiu antes optar pela ambiguidade e resolveu o dilema de valorizar o papel de Mao na história estipulando a fórmula algébrica do 30-70. Isto é: a sua contribuição para a revolução foi 70% positiva e 30% errada. A reabilitação, como veremos, chegou só com a “Mao craze” dos anos 90.

A memória do maoísmo sem Mao A morte de Mao a 9 de Setembro de 1976 – preconizada, não sem ironia, com dois dos tradicionais sinais anunciadores do fim de uma dinastia: um tremor de terra e um eclipse de sol – obrigou o seu sucessor Hua Guofeng a levar a cabo uma manobra delicada: ao mesmo tempo que desmantelava e neutralizava a herança e a memória mao-ísta, teve de se reivindicar como fiel discípulo de Mao, numa acrobacia intelectual na qual também acabou por embarcar a sociedade em pleno. A China – que tinha sido ferreamente telecomandada – continuou a ser dirigida para ultrapassar ou encaixar a perda do seu líder à força de resoluções oficiais. Num país onde mudança e tradição sempre foram forças paralelas, não se podia apagar os registos do bloco de cera socrático,

ainda menos num grupo que incorporava a representação mental de um evento traumático na sua identidade. Seguindo a leitura de Volkan (cfr. Wang, 2008: 785), uma geração que passa por esse género de vivências desencadeia irremediavelmente “a transmissão inter-geracional de dita inimizade histórica”. Como olhar para o passado após Mao? Que manter na memória mais vivamente e como armazená-lo? Temos também de sublinhar a especial dimensão do trauma com o qual a sociedade chinesa ficou marcada. Segundo Eyerman (cfr. WeigelinSchwiedrzik, 2009: 99): “As opposed to psychological or physical trauma, which involves a wound and the experience of great emotional anguish by an individual, cultural trauma refers to a dramatic loss of identity and meaning, a tear in the social fabric, affecting a group of people that has achieved some degree of cohesion.” Tendo em conta que a experiência traumática da China se encontra sob a categoria de trauma coletivo e cultural, resultava crucial a abertura de um debate público que cicatrizasse as feridas dos sobreviventes e que promovesse uma narrativa que destraumatizasse o evento para as gerações posteriores. Definitivamente, tal como Fareed Zakaria sentenciou em 2005 na revista Newsweek: “para enfrentar com confiança o futuro, a China deve ser capaz de enfrentar o seu passado com sinceridade”. Todavia, a partir de 1976 a memória na China parece ancorada na obsessão da Revolução Cultural que ainda está por resolver. Embora a nação tivesse experimentado outra série de calamidades como a Guerra da Coreia (1954-1959) ou o Grande Salto em Frente, os anos entre 1966 e 1976 monopolizaram as reminiscências, isso sim: desde que se seguisse o princípio condutor definido oficial-


Recordar na China ...

mente. Segundo este guião, espalhava-se a ideia da vitimização universal e acusava-se abertamente ao Gangue dos Quatro – grupo formado por Jiang Qing (esposa de Mao), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan, membros do PCCh – como autor e responsável absoluto por deturpar e corromper o pensamento de Mao bem como por propagar o tão temido caos (luan) durante a Revolução Cultural. Deste modo, promovia-se uma resolução totalmente neutral e cirúrgica para enfrentar o passado. A debilidade do PCCh e de Hua Guofeng não permitia, possivelmente, uma solução melhor. Talvez esta debilidade – que não permitiu ao poder nem criar uma amnésia nem impor a sua versão memory frame – explique o motivo pelo qual o próprio partido tenha mudado de estratégia de análise em várias ocasiões e tenha abandonado o argumento inicial, anteriormente explicado, para assumir a “total negação da Revolução Cultural” e até mesmo a culpabilização universal. Mas também pode ser que a profundidade da marca que estes eventos deixaram na memória tivesse forçado esta viragem na interpretação entre as gerações submetidas a uma traumatização secundária. Pode ser que igualmente venha exigir nas gerações futuras uma constante reinterpretação, mesmo que o evento em questão pareça ter encontrado o seu espaço na continuidade da história, na memória das pessoas e na sua identidade. O que é um facto é que quanto mais se desobedecia à ordem dos antigos atenienses no século V a.C. comandavam para “não recordar sofrimentos” (mé mnesikakeìn) – Passerini (2003, 243) – e, consequentemente, quanto mais a sociedade mostrava o seu desejo de vingança contra o

Figure 1. Wang Jingsong, Taking a Picture in Front of the Gate of Heavenly Peace. Óleo e tela, 125 x 185 cm, 1992. (© http://dev.artspeakchina.org)

Gangue dos Quatro, mais se debilitava a imagem de Hua Guofeng e mais ganhava a de Deng Xiaoping. A enfâse que estes dois líderes colocaram no desenvolvimento económico com a campanha das Quatro Modernizações serviu, com o tempo, de chamariz social para ir regulando a intensidade das recordações. A China entra na década dos 90 surpreendentemente virada – aos olhos dos ocidentais – para a reabilitação da figura de Mao e à beira de uma nova adoração icónica sem limites. Chegava a “Mao craze”, com o ressurgir da figura do Grande Timoneiro embebido paradoxalmente numa aura consumista, de todo apelativa, mas que pouco tinha a ver com o contexto histórico. Começava assim uma fase de simulação nos termos que Baudrillard descreve: as referências ao passado esbatem-se e o ícone ressuscita num sistema artificial de signos que não se constroem nem por imitação, nem duplicação nem sequer com o intuito de parodiar (Baudrillard, 1994: 2). A memória de Mao já não instigava o fervor revolucionário nem os valores socialistas de

décadas anteriores: o significante separou-se do seu significado. Neste ponto, gostaríamos de invocar a opinião de Schell (1995: 282):

“The truth was that Mao was being reborn not because ‘the masses’ wanted another episode of permanent revolution, but because they were beginning to treat Mao as part of a pop-culture fad with little more ideological seriousness than crazes for hulha-hoops, Silly Putty, or bubble-gum cards.” O resultado desta viragem materializou-se em obras como a do pintor Wang Jingsong titulada Taking a Picture in Front of the Gate of Heavenly Peace , na qual desmonta e desconstrói símbolos de grande peso histórico para a China como é a Praça de Tiananmen, a porta da Cidade Proibida e o sempiterno retrato do Presidente Mao a olhar como um espectro vigilante o destino da nação. Uma nação que já não está composta pelo triunvirato de forças do passado (camponeses-

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Comoções causadas por desastres naturais causam igualmente um efeito devastador na sociedade, mas na maior parte dos casos são abordadas como um terrível golpe do destino e por isto com respostas que só os deuses ou a religião poderiam explicar. Desastres perpetrados por uma mão humana deixam ao descoberto a nossa própria imperfeição e atacam muitas vezes ideais expondo frustrações, remorsos e procura de culpados. É aqui onde reside a dificuldade de fechar feridas e o motivo pelo qual este é um processo lancinante e duradouro.

Carcaças de telemóvel inspiradas nos pósteres de Propaganda Maoísta. (http://www.zazzle.com)

soldados-trabalhadores), mas sim por cidadãos cosmopolitas a posar perante o quadro que simplesmente se adivinha no fundo privado do poder de observação. Eis o toque final desta encenação: o detalhe das telhas douradas da Gate of Heavenly Pace representadas como filtros de cigarros importados, sinal quiçá da aceitação dos costumes capitalistas.

Qual o futuro de tanta memória? O processo de sarar um trauma não passa pela busca da verdade histórica no sentido menos complexo – se é que existe – desta expressão. É antes um percurso de construção no qual as pessoas tentam seguir um caminho que lhes permita lidar com a dor e a memória, caminho este preferivelmente partilhado pela maioria da sociedade. Este tipo de verdade aquiesce, portanto, com a necessidade de um presente no qual se tracem planos

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para o futuro. Se essa verdade e a forma como se lida com a memória não garantem a possibilidade de um presente, não poderá ser válida e será preciso reformulá-la. É por isto que, dentro da memória comunicativa, os traumas não superados continuam a apresentar novas respostas a velhas questões. Hoje em dia assistimos a um modo de tratamento da memória sobre os Dez Anos de Caos no qual é evidente o protagonismo da geração dos Guardas Vermelhos. Este protagonismo articula o desejo de falar e contar a sua história em primeira pessoa. Mas estas presenças não escondem as grandes ausências: os conhecidos velhos cargos ou lao ganbu permanecem em silêncio – segundo conta Weigelin-Schwiedrzik (2009) – não importa se foram vítimas ou se foram perpetradores. Esse silêncio ou desejo de esquecer gera igualmente uma forma de memória traumática nascida como engrama neuromuscular e deve portanto ser considerada como signo de traumatização.

A China, hoje em dia, continua a lembrar, de diferentes formas e manifestando-se ou ocultando-se de diversos modos. Todavia, a História continua a ser o único meio para o efeito (o passado não habita as pedras e sim os indivíduos), embora o processo de negociar o guilt management – defendido por Thomas Elsaesser como linha de partida para estabelecer responsabilidades e caminhar para a reconciliação – ainda está em aberto. As memórias estão muito fragmentadas e isso também coloca em risco o modo como as novas gerações aprendem, em segunda mão, a lembrar o passado. É urgente o esforço para reunir, organizar e avaliar materiais, tal como sugere Olick et al. (2011). Assim poderá avançar-se na construção dos “social memory studies” que completem os mais históricos “collective memory studies” e que permaneçam abertos a novos fenómenos da memória e futuras manifestações do recordar. Utilizando palavras de Lenine sobre as possibilidades dialécticas que se podem encontrar do património histórico, Chen (1994) aponta para a necessidade de incluir na análise de qualquer cultura – seja oriental ou ocidental – tanto a versão positiva como a negativa e evitar promover um discurso domi-


Recordar na China ...

nante nos termos foucaultianos. Só deste modo o resultado será “dialéctico e portanto convincente”. Olhar para “o que foi” proporciona uma economia moral referencial para avaliar, perceber e aceitar o presente. As memórias podem forjar sentimentos de solidariedade ou de injustiça ao mesmo tempo que contribuem para a mobilização, e tudo porque “desnaturalizam ou conferem historicidade à ordem social em vigor, solidificando a visão moral de que as coisas foram, devem ser e podem ser diferentes” (Lee e Yang, 2007: 7). Mas é necessário evitar hegemonias que desvirtuem o equilíbrio e só mostrem uma face da moeda. A China terá pela frente o desafio de estudar o mecanismo de toda a maquinaria da memória: que tipo de narrativas é que continua a produzir, quem é quem as produz, com que objectivos e através de que meios... Não podemos perder de vista a evidência de que neste país a política adquire formas culturais do mesmo modo que produtos culturais incorporam significados e consequências políticas. Ali continua a imperar o poder da memória e a memória do poder. Mas esse poder e essa memória devem superar interesses partidários e tornar-se em forças integradoras e, deste modo, inaugurar tempos nos quais passe a ser certa esta afirmação recolhida por Olick et al. (2001, 37):

“Doing justice to the reality of history is not a matter of noting the way in which the past provides background to the present; it is a matter of treating what people do in the present as a struggle to create a future out of the past, of seeing that the past is not just the womb of the present but the only raw material out of which the present can be constructed.”

As vezes, como afirmava Valéry, acontece que o futuro é a causa do passado (cfr. Barthes, 2009: 215).

e quem é perpetrador, e pelo impedimento de poder recordar sem tabus de um modo integrador e não agressivo com o resto da sociedade.

Conclusões

A memória é um processo baseado numa auto-reflexão e numa introspecção pessoal. Abrir o caminho da empatia poderia ser um modo de fomentar a reconciliação das múltiplas versões que coexistem hoje em dia de alguns acontecimentos, como por exemplo da Revolução Cultural ou do Grande Salto em frente. Reconstruindo com claridade – através de um debate que será doloroso e pungente – os valores morais do bem e do mal, da culpa e da responsabilidade, da vítima e do perpetrador, pode ser que o peso da memória passe a ser suportável. Só este guilt management ajudará a descarregar o fardo que oprime – mesmo que seja de um modo inconsciente – ao indivíduo. Fomentar estas dinâmicas inclusivas da memória abriria, assim, um novo modo de lembrar e dialogar para construir um desejado mas sempre complexo espaço da reconciliação.

Recordar é um processo constante e obstinado e até curiosamente inconsciente, tal como o respirar. Fisicamente cada parte do nosso corpo é produto e armazena códigos herdados e hereditários. Neurologicamente, criamos ou sobre-escrevemos inevitavelmente outras memórias até quando queremos esquecer ou cancelar o passado. Nem sequer quando estamos a procura de algo que tenhamos esquecido deixamos de lembrar (mesmo que seja apenas parcialmente). É a autopoiesis do recordar... Na atualidade o viajante curioso que percorra a China e faça uma revista dos monumentos das principais cidades, reparará que só há um memorial de vítimas por conflito armado nos 9,6 milhões de quilómetros quadrados do território. Está situado na província de Sichuam (no Sudoeste), cuja capital Chengdu foi curiosamente sede do governo nacionalista. De facto, trinta e seis anos após o fim oficial da Revolução Cultural, não há monumento público específico onde render homenagem às vitimas desses dez anos, não há um dia para comemoração. O que ainda proliferam são discursos fragmentados que mostram que as pessoas não estão preparadas para ouvir os testemunhos que não sejam os próprios. Também continua a existir muito silêncio e muitas ausências que não são esquecimento. Parece que impera um lapsus memoriae de inibição à escala social causado pela ambiguidade na avaliação do bem e do mal, pela impossibilidade de definir quem é vítima

Escultura situada num dos acessos do popular recinto artístico “798” em Pequim. (©BPH)

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O legado de Agostinho da Silva e o futuro da lusofonia Renato Epifânio1 Presidente do MIL – Movimento Internacional Lusófono

I - Agostinho da Silva: breve roteiro bio-bibliográfico Nascido no Porto, a 13 de Fevereiro de 1906, vai logo, no ano seguinte, viver para Barca de Alva (Trás-osMontes), onde passa toda a infância2. Ao Porto regressa para realizar o Liceu, findo o qual ingressa, em 1924, na Faculdade de Letras3 – primeiro em Filologia Românica, depois, por desentendimentos com Hernâni Cidade, em Filologia Clássica4. Durante a Licenciatura, colabora com a Acção Académica, publicação monárquica portuense, e com A Águia, célebre

revista da “Renascença Portuguesa”, onde, entre outros, se salientaram Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra. Logo após a Licenciatura, concluída em 1928 com a nota de 20 valores, obtém o Doutoramento, igualmente com o “maior Louvor”, com uma dissertação intitulada Sentido histórico das civilizações clássicas – sobre esta temática, publica ainda, nos anos imediatamente seguintes, as obras Breve Ensaio sobre Pérsio e A Religião Grega5. Entretanto, inicia uma prolongada colaboração com

a revista Seara Nova, onde se salientaram, entre outros, António Sérgio, Raul Proença e Jaime Cortesão, com quem, aliás, Agostinho da Silva privou, aquando da sua estadia entre 1931 e 1933, enquanto bolseiro, em Paris (onde frequentou a Sorbonne e o Collège de France), que aí se encontravam enquanto exilados políticos6. Regressado a Portugal em 1933, vai para Aveiro onde lecciona no Liceu José Estevão7 – por, contudo, se ter recusado a assinar uma declaração de não pertença a sociedades secre-

_________________ 1

Professor Universitário; Membro do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, da Sociedade da Língua Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva; investigador na área da “Filosofia em Portugal”, com dezenas de estudos publicados, desenvolveu um projecto de pós-doutoramento sobre o pensamento de Agostinho da Silva, com o apoio da FCT: Fundação para a Ciência e a Tecnologia, para além de ser responsável pelo Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa: www.bibliografiafilosofica.webnode.com; Licenciatura e Mestrado em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; doutorou-se, na mesma Faculdade, no dia 14 de Dezembro de 2004, com a dissertação Fundamentos e Firmamentos do pensamento português contemporâneo: uma perspectiva a partir da visão de José Marinho (no prelo); autor das obras Visões de Agostinho da Silva (2006), Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa (2007), Perspectivas sobre Agostinho da Silva (2008), Via aberta: de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao Oriente (2009), A Via Lusófona: um novo horizonte para Portugal (2010), Convergência Lusófona (2012/2014) e A Via Lusófona II (2015). Integra a Direcção da NOVA ÁGUIA: Revista de Cultura para o Século XXI e é o Director da Colecção de livros com o mesmo nome (Zéfiro). É o Presidente do MIL - Movimento Internacional Lusófono.

2

E aonde ficará para sempre ligado – nas palavras do próprio Agostinho da Silva: “Fiz o curso no Porto, andei por toda a parte quanto é mundo, mas a minha terra continua a ser Barca de Alva.” [Vida Conversável, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994, p. 16].

3

Na primeira Faculdade de Letras do Porto, que existiu durante os anos de 1919 e 1931.

4

Nas palavras do próprio Agostinho da Silva, contudo, a real Licenciatura que ele obteve na Faculdade Letras do Porto foi uma Licenciatura em “Liberdade” – e, posteriormente, um Doutoramento em “Raiva” [cf. Dispersos, Lisboa, ICALP, 1989 (2ª, revista e aumentada), p. 52] –, dado que, ainda nas suas palavras, essa Faculdade era, sobretudo, “uma escola de liberdade” [cf. ibid., p. 147], reflexo da “largueza de espírito de Leonardo Coimbra” [cf. ibid., p. 174] – por isso mesmo, porém, “o governo não gostava dela e fechou-a” [cf. ibid., p. 31].

5

Estas três obras foram recentemente republicadas na colectânea Estudos sobre Cultura Clássica, Lisboa, Âncora, 2002.

6

Grupo de pessoas às quais, de resto, Agostinho da Silva se manterá ligado, em particular a António Sérgio, a ponto de o ter reconhecido como “mestre” – isto apesar destas suas considerações: “…Sérgio não ousou afrontar os problemas filosóficos mais profundos, as questões de dúvida. Preferia manter-se na certeza.”; “Mesmo como pedagogo, a sua atitude tendia a ser de grande arrogância intelectual.” [cf. Dispersos, ed. cit., p. 55]. Como, contudo, o próprio Agostinho reconheceu, o seu discipulato relativamente a Sérgio cumpriu-se, sobretudo, por oposição: “…mas ele [Sérgio] não me ensinou o racionalismo: ensinou-me antes o irracionalismo, por reacção minha.” [cf. Francisco Palma Dias, “Agostinho da Silva, Bandeirante do Espírito”, in AA.VV., Agostinho [da Silva], São Paulo, Green Forest do Brasil Editora, 2000, p. 155].

7

A experiência enquanto professor do ensino secundário não começou, contudo, aí, já que, em 1929, tinha sido professor no Liceu Alexandre Herculano, em 1930, no Liceu Gil Vicente, em 1931, no Liceu Pedro Nunes, e em 1932, de novo no Liceu Alexandre Herculano.

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Agostinho da Silva.

tas8, é demitido do ensino público, tendo então passado a leccionar no ensino particular. Entre 1935 e 1936, volta a sair de Portugal. Desta vez, Madrid foi o destino – aí esteve como bolseiro do Ministério das Relações Exteriores, por convite de Joaquim de Carvalho, cerca de um ano, tempo durante o qual se debruçou, em par-

ticular, sobre o misticismo. Em 1937, regressa novamente ao nosso país – nesse mesmo ano, inicia, na Seara Nova, a sua série de Biografias9. Em 1942, publica o opúsculo O Cristianismo10, que causou uma grande polémica, tendo-o inclusivamente levado à prisão. Tendo-se tornado

insustentável a sua permanência em Portugal, parte, em 1944, para o Brasil – desse ano e do seguinte datam as obras Parábola da Mulher de Loth, Conversação com Diotima e Sete Cartas a um Jovem Filósofo11. Aí inicia uma série de actividades – não só, aliás, no Brasil, como ainda no Uruguai e na Argentina. Resultado

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Nas suas próprias palavras, tão sucintas quanto esclarecedoras: “Pensei bem, e embora não pertencendo a associações secretas e também precisasse de comer, decidi não assinar o papel.” [A Última Conversa, Lisboa, Notícias, 1995, p. 35].

9

A maior parte delas republicadas em Biografias, Lisboa, Âncora, 2003, 3 vols.

10

Republicado em Textos e Ensaios Filosóficos, Lisboa, Âncora, 1999, vol. I, pp. 67-80.

11

Igualmente republicadas em Textos e Ensaios Filosóficos, vol. I.

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O legado de Agostinho da Silva e o futuro da lusofonia

desse seu activismo foi nada menos do que a criação de quatro Universidades – as Universidades Federais de Paraíba, Santa Catarina, Brasília e Goiás –, bem como de diversos Cursos e Centros de Estudos – nomeadamente, imagine-se, o Centro de Estudos luso-brasileiros na Universidade de Sófia, em 1959, data de uma das suas mais conhecidas obras: Um Fernando Pessoa12. Naturalizado brasileiro desde 195813, torna-se, em 1961, assessor de política cultural externa de Jânio Quadros, o Presidente da República do Brasil na época, colaborando igualmente com a Direcção Geral do Ensino Superior do Ministério da Educação. Nesse mesmo ano, participa ainda na criação de outros Centros de Estudos: nomeadamente, o de Estudos Goianos na Universidade de Goiás, o de Es.5tudos Ibéricos na Universidade de Mato Grosso, o de Estudos Europeus na Universidade do Paraná e o de Estudos Portugueses na Universidade de Brasília, na qual promoveu igualmente o Centro de Estudos Clássicos. Para divulgar entre nós o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília, vem a Portugal, chegando inclusivamente a encontrar-se com Franco Nogueira e Adriano Moreira14.

Ainda e sempre de partida, inicia, em 1963, uma digressão pelo Oriente, que o levará, nomeadamente, a Macau, a Timor e ao Japão – neste último país, funda mais um Centro de Estudos. A Portugal regressa, por fim, em 1969, onde virá a assumir diversos cargos: nomeadamente, o de Director do Centro de Estudos Latino-Americanos do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Técnica de Lisboa e o de Consultor do ICALP (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa). Em 1987, é condecorado com a Grã Cruz da Ordem de Espada. Em 1988, é publicada a primeira grande colectânea de textos seus (Dispersos, ICALP). Em 1990, protagonizou as Conversas Vadias, programa televisivo que lhe granjeou uma significativa popularidade. A 3 de Abril de 1994, num Domingo de Páscoa, falece, não sem antes ter dado à luz a obra Ir à Índia sem abandonar Portugal. Prova de que a Verdadeira Viagem se cumpre no interior de nós, de cada um de nós…

um ser que, de resto, será tanto mais universal quanto mais assumir essa sua concretude, a concretude da sua própria circunstância. Dessa circunstância faz axialmente parte a “pátria”, isso que, segundo José Marinho, configura a nossa “fisionomia espiritual”15. Nessa medida, importa pois assumi-la, tanto mais porque, como escreveu igualmente Marinho, foi “para realizar o universal concreto e real [que] surgiram as pátrias”16. Ainda nesta esteira, propõe-nos Marinho a distinção entre “universal” e “geral” – nas suas palavras: “O geral tem âmbito mais restrito e insere-se na prossecução de conceitos, o verdadeiro universal está já numa relação da intuição para a ideia e vincula o singular concreto e indefinível com o uno ou o único transcendente.”17. Daí, enfim, a sua expressa defesa de uma filosofia situadamente portuguesa, não fosse esta “dirigida contra o universalismo abstracto e convencional de escolásticas e enciclopedistas em que têm vivido”18.

II - Portugal: entre o Espaço Europeu e o Espaço Lusófono

Os filósofos são, decerto, os grandes pensadores da universalidade. Mas, por isso mesmo, são ou devem ser também os grandes pensadores do “universal concreto”, do “universal situado” – e não apenas do “universal

O homem não é, ou não é apenas, uma “pura abstracção”, mas um ser concreto, universalmente concreto,

_________________ 12

Republicada em Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Âncora, 2000, vol. I, pp. 89-117.

13

Facto por si assumido com a maior naturalidade – daí, a título de exemplo, estas suas palavras: “Porque me naturalizei? Por pensar que a ditadura ia durar para sempre, e como entendi o Brasil e ele a mim, não vi inconveniente na atitude. Para mim, o Brasil traduzia o alargamento tropical das qualidades e dos defeitos dos portugueses.” [Dispersos, ed. cit., p. 117].

14

O segundo, aliás, providenciou, desde logo, o envio de uma biblioteca de cerca de oito mil volumes, tendo vindo igualmente depois a apadrinhar o ingresso de Agostinho da Silva na Academia Internacional de Cultura Portuguesa – como recordou o próprio Agostinho a este respeito: “…Adriano Moreira me levou, sem dizer nada, o colar da Academia Internacional de Cultura Portuguesa, por ele fundada. Foi uma das suas grandes ideias, posta de parte depois da Revolução de 25 de Abril, absurdamente, pois poderia ter um papel muito interessante no mundo, porque era uma associação de gente de todos os países, interessada em cultura portuguesa.” [Vida Conversável, ed. cit., p. 158].

15

Estudos sobre o pensamento português contemporâneo, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1981, p. 19.

16

Cf. O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra e outros textos, “Obras de José Marinho”, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 502.

17

Filosofia: ensino ou iniciação?, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Investigação Pedagógica, 1972, p. 45.

18

Cf. Filosofia portuguesa e universalidade da filosofia e outros textos, “Obras de José Marinho”, vol. VIII, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2007, p. 553. Essa é, pelo menos, a sua “interpretação”: “…minha interpretação arranca de um sentido da filosofia nacional para uma singularidade de pensar mais autêntica e para uma universalidade mais verdadeira, filosofia [que] se não demonstra por meio de juízos e afirmações, mas por um pensamento que tenha em si próprio o cunho da autêntica universalidade (…).” [ibid., p. 352].

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geral e abstracto”. Se se restringirem apenas a este plano, não serão de resto, verdadeiros pensadores do universal – mas apenas do geral. Só o serão se pensarem, se se pensarem, no “universal concreto”, no “universal situado”. Nessa medida, pensadores portugueses universais serão aqueles que pensarem, se pensarem, no “universal concreto”, no “universal situado”, ou seja, aqueles que pensarem, se pensarem, na situação concreta da nossa História e Cultura… Se tivéssemos que escolher o filósofo português que mais profundamente pensou a situação concreta da nossa História e Cultura, escolheríamos, sem desprimor para todos os outros, Agostinho da Silva. Nessa medida, será com ele que aqui iremos dialogar19, para pensarmos a nossa situação histórico-cultural, em suma, para pensar Portugal e o que se deve entender por Lusofonia: a nosso ver, o nosso grande desígnio estratégico para o Século XXI, por ser aquele que melhor faz jus a toda a nossa História, a toda a nossa Cultura. * A nosso ver, e também na visão de Agostinho da Silva, Portugal só se pode pensar na complementaridade de dois espaços: o espaço europeu e o espaço lusófono. Na complementaridade, não na exclusão mútua, sublinhe-se – ou seja, nem não apenas no espaço europeu nem não apenas no espaço lusófono. Decerto, no espaço europeu, porque Portugal é, desde sempre, um país europeu – o país europeu com as mais antigas fronteiras definidas, mais do que isso, um país que sempre participou activamente na construção da civilização europeia, por extensão, da

civilização ocidental, que depois se alargou, sucessivamente, a África, às Américas e mesmo a algumas regiões do Próximo e Extremo-Oriente. Mas não apenas no espaço europeu – ao contrário do que, na ressaca da descolonização, se propôs, dado o amontoado de traumas e ressentimentos que então todos nós, directa ou indirectamente, vivemos. Contudo, como defendemos já no nosso livro A via lusófona: um novo horizonte para Portugal: “…depois de mais de três décadas de costas voltadas, por um amontoado de traumas e ressentimentos, todas essas feridas estão agora, finalmente, a cicatrizar, assim abrindo caminho para a recriação do espaço lusófono enquanto um verdadeiro espaço cultural e civilizacional. Sabemos que ainda há quem agite fantasmas do passado, mas o nosso paradigma é um paradigma novo, de futuro. Queremos que esse espaço lusófono seja o lugar, a casa comum, onde todos os lusófonos tenham, numa base de liberdade e fraternidade, uma vida digna, sem mais adjectivos. Para mais, no caso dos portugueses, se de novo nos viramos para o Atlântico, não é para de novo virar as costas à Europa – somos europeus e por isso manteremos todos os laços: desde logo com a Galiza (…), depois, com os demais povos ibéricos (sem procurar ressuscitar guerras do passado); por fim, com todos os outros povos europeus, em especial os do Sul (com os quais partilhamos uma história milenar). Mas esses

laços não são para nós amarras que impeçam o reencontro com a nossa vocação desde logo mediterrânea e atlântica; por fim, por tudo aquilo que nos liga aos demais países lusófonos, universal. Por isso também defendemos o transnacionalismo lusófono – mais do que um sistema, uma dinâmica, através da qual, sem pôr em causa a soberania dos diversos países da CPLP, estes escolham, livremente, cooperar, de modo crescente, nos mais diversos níveis, para benefício de todos (…). Por esse caminho, quem sabe se, mais à frente, não se criará um bloco cultural, social, económico e político – em suma, civilizacional –, que seja um exemplo para outros povos do mundo, num tempo em que o sistema económico e político que nos tem desgovernado se apresenta cada vez mais exangue.”20 Daí, também o texto que escrevemos no primeiro número da Nova Águia – Revista de Cultura para o século XXI: “Tese, Antítese e Síntese: por um novo paradigma de Portugal”21

Tese - Paradigma do 24 de Abril: Tenho da História uma visão hegeliana. Por isso, considero que todos os regimes que caem merecem cair. O Estado Novo não foi excepção. A 24 de Abril de 1974 estava em inteiro colapso. Por isso, caiu. E, com ele, o seu paradigma de Portugal: um Portugal que mantinha um império colonial completamente anacró-

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Como universo textual, iremos privilegiar as suas entrevistas publicada em livro, dado que aí Agostinho da Silva muitas vezes foi mais longe, em termos de propostas, do que nos seus ensaios.

20

A Via lusófona: um novo horizonte para Portugal, Lisboa, Zéfiro, 2010, 116-117. In NOVA ÁGUIA: Revista de Cultura para o século XXI, nº 1, 1º Semestre de 2008, p. 61. Desenvolvemos esta perspectiva num mais número da revista: “Nos 15 anos da CPLP: a futura pátria de todos nós” [in NOVA ÁGUIA: Revista de Cultura para o século XXI, nº 7, 1º Semestre de 2011, pp. 27-31].

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O legado de Agostinho da Silva e o futuro da lusofonia

nico, sem qualquer perspectiva de Futuro.

Antítese - Paradigma do 25 de Abril: Todas as revoluções são, por natureza, antitéticas. A revolução de 25 de Abril de 1974 também não foi excepção. Por isso, se o Estado Novo defendia um Portugal do Minho até Timor, o paradigma saído da revolução defendeu exactamente o contrário: daí que Portugal tenha virado as costas às suas antigas colónias (com as consequências imediatas que se conhecem e que ainda hoje se fazem sentir), tornando-se apenas em mais um país da Europa.

Síntese - Paradigma do 26 de Abril: Passado todo este tempo (mais de três décadas), em que os traumas dos ex-colonizadores e dos ex-colonizados já cessaram (senão por inteiro, pelo menos em grande medida), urge um novo paradigma, que faça a devida síntese: recuperando essa visão maior não já de Portugal mas do Espaço Lusófono, em Liberdade e Fraternidade (…).”.

III - Agostinho da Silva: prefigurador da Comunidade Lusófona Agostinho da Silva é, na nossa perspectiva, o grande teórico desta via, da “via lusófona”. Em muitos textos seus, pelo menos desde os anos 50, Agostinho da Silva antecipou, com efeito, a criação de uma verdadeira comunidade lusófona22. De tal modo que, mesmo depois de falecer, Agostinho da Silva tem sido recordado

por isso. Eis, desde logo, o que aconteceu quando se instituiu a CPLP: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, conforme registámos na nossa obra Perspectivas sobre Agostinho da Silva: «No dia 17 de Julho desse ano, criar-se-á finalmente a CPLP, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, facto que será noticiado, com destaque, na generalidade dos jornais. Na maior parte deles, realça-se igualmente o contributo de Agostinho da Silva para essa criação, por via do seu pensamento e acção. Eis, nomeadamente, o que acontece na edição desse dia do Diário de Notícias – como se pode ler no texto de abertura da notícia: “A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, hoje instituída em Lisboa, foi premonitoriamente enunciada por Agostinho da Silva em 1956 como ‘modelo de vida’ assente ‘em tudo aquilo que (Portugal) heroicamente fez surgir do nada ou na América ou na África ou na Ásia’.”. Depois, aparece a foto de Agostinho, ladeado pelas fotos de Jaime Gama e José Aparecido de Oliveira, com a seguinte legenda: “Pioneiros da CPLP: Agostinho da Silva (enunciação original), Jaime Gama (primeiro texto diplomático único dos Sete na língua comum) e Aparecido de Oliveira (formalização política da proposta)».23 Sabemos que este projecto está ainda aquém, muito aquém, do sonho de Agostinho da Silva. A CPLP não é ainda uma verdadeira comunidade lusófona. Mas nem por isso – já mais de quinze anos após a sua criação – a

CPLP deixou de ser um projecto em que Portugal deve apostar enquanto desígnio estratégico. De resto, se há inevitabilidades históricas, a criação da CPLP foi, decerto, a nosso ver, uma delas. Se os países se unem, desde logo, por afinidades linguísticas e culturais, nada de mais natural que os Países de Língua Portuguesa se unissem num projecto comum: para defesa da língua, desde logo, e, gradualmente, para cooperarem aos mais diversos níveis. Se estranheza pode haver quanto à criação da CPLP, decorrerá somente do facto de ter nascido tão tarde. Como ainda hoje é reconhecido, Agostinho da Silva foi, de facto, desde os anos cinquenta, o grande prefigurador de uma “comunidade luso-afro-brasileira, com o centro de coordenação em África, de maneira que não fosse uma renovação do imperialismo português, nem um começo do imperialismo brasileiro. O foco central poderia ser em Angola, no planalto, deixando Luanda à borda do mar e subir, tal como se fizera no Brasil em que se deixou a terra baixa e se foi estabelecer a nova capital num planalto com mil metros de altitude. Fizessem a mesma coisa em Angola, e essa nova cidade entraria em correspondência com Brasília e com Lisboa para se começar a formar uma comunidade luso-afro-brasileira”.24 Na sua perspectiva, assim se cumpriria essa Comunidade Lusófona, a futura “Pátria de todos nós”: “Do rectângulo da Europa passámos para algo totalmente diferente. Agora, Portugal é todo o

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Num texto publicado no jornal brasileiro O Estado de São Paulo, com a data de 27 de Outubro de 1957, Agostinho da Silva havia já proposto “uma Confederação dos povos de língua portuguesa”. Num texto posterior, expressamente citado no prólogo da Declaração de Princípios e Objectivos do MIL: Movimento Internacional Lusófono, chegará a falar de um mesmo povo, de um “Povo não realizado que actualmente habita Portugal, a Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, o Brasil, Angola, Moçambique, Macau, Timor, e vive, como emigrante ou exilado, da Rússia ao Chile, do Canadá à Austrália” [“Proposição” (1974), in Dispersos, ed. cit., p. 117].

23

Perspectivas sobre Agostinho da Silva, Lisboa, Zéfiro, 2008, p. 108. Vida Conversável, ed. cit., pp. 156-157.

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território de língua portuguesa. Os brasileiros poderão chamarlhe Brasil e os moçambicanos poderão chamar-lhe Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo que Fernando Pessoa julgou ser a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora, é essa a Pátria de todos nós.”25 Daí ainda o ter-se referido ao que “no tempo e no espaço, podemos chamar a área de Cultura Portuguesa, a pátria ecuménica da nossa língua”26, daí, enfim, o ter falado de uma “placa linguística de povos de língua portuguesa – semelhante às placas que constituem o planeta e que jogam entre si”27, base da criação de uma “comunidade” que expressamente antecipou: “Trata-se, actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos países de língua portuguesa, política essa que tem uma vertente cultural e uma outra, muito importante, económica”.28 Prefigurando até, com esse horizonte em vista, o “sacrifício de Portugal como Nação”: “esse Império, que só poderá surgir quando Portugal, sacrificandose como Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa”.29

IV - Pensar a Lusofonia no século XXI No século XXI, para pensarmos a Lusofonia, temos que superar os paradigmas colonialistas e mesmo póscolonialistas. Estes estão ainda reféns

de um olhar enviesado por uma série de complexos históricos que há que transcender de vez, de modo a podermos realizar essa visão futurante do que pode ser a Lusofonia.

interesse, quer interno – para manter a unidade nacional de cada um dos países –, quer externo – fazendo da língua portuguesa a grande via de inserção na Comunidade Internacional.

Transcender não significa escamotear. Indo directo ao assunto, é evidente que a Lusofonia se enraíza numa história que foi em parte colonial e, por isso, violenta. Não há colonialismos não violentos, por muito que possamos e devamos salvaguardar que nem todas as histórias coloniais tiveram o mesmo grau de violência. Eis, de resto, o que se pode aferir não apenas pelas análises históricas, mas comparando a relação que há, nos dias de hoje, entre os diversos povos colonizadores e colonizados. Assim haja honestidade para tanto.

Obviamente, cada caso tem as suas especificidades. Pela minha experiência, sou levado a afirmar que o povo que mais facilmente compreende a importância da Lusofonia é o povo timorense; porque ela foi a marca maior de uma autonomia linguística e cultural que potenciou a resistência à ocupação indonésia e a consequente afirmação de uma autonomia política que, como sabemos, só se veio a concretizar mais recentemente, já no século XXI. Mesmo após esse período, tem sido a Lusofonia o grande factor de resistência ao assédio anglo-saxónico, via, sobretudo, Austrália.

Não será, porém, esse o caminho que iremos aqui seguir. Não pretendemos alicerçar a Lusofonia na relação que existe, nos dias de hoje, entre Portugal e os países que se tornaram independentes há cerca de quarenta anos. Se assim fosse, estaríamos ainda a fazer de Portugal o centro da Lusofonia, estaríamos ainda a pensar à luz dos paradigmas colonialistas e mesmo pós-colonialistas. O que pretendemos salientar é que, sem excepção, é do interesse de todos os países que se tornaram independentes há cerca de quarenta anos a defesa e a difusão da Lusofonia. Eis, desde logo, o que se prova por nenhum desses países ter renegado a língua portuguesa como língua oficial. Se o fizeram, não foi decerto para agradar a Portugal. Foi, simplesmente, porque esse era o seu legítimo

Contrapolarmente, o Brasil, pela sua escala, poderia ser o único país a ter a tentação de desprezar a mais-valia estratégica da Lusofonia. Nunca o fez, porém. Pelo contrário – apesar de alguns sinais contraditórios, a aposta na relação privilegiada com os restantes países e regiões de língua portuguesa parece ser cada vez maior. Quanto aos PALOPs: Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, essa também parece ser, cada vez mais, a aposta. Simplesmente, reiteramo-lo, porque é do interesse de cada um desses países este caminho de convergência. Por isso, é a Lusofonia um caminho de futuro. Por isso, é a Lusofonia um espaço naturalmente plural e polifónico, que abarca e abraça as especificidades linguísticas e culturais de cada um dos povos desta comunidade desde sempre aberta ao mundo.

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26 27 28 29

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Conversas com Agostinho da Silva, Lisboa, Pergaminho, 1994, pp. 30-31. Conforme afirmou ainda: “Fernando Pessoa dizia ‘a minha Pátria é a língua portuguesa’. Um dia seremos todos – portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos, guineenses e todos os mais – a dizer que a nossa Pátria é a língua portuguesa.” [in Dispersos, ed. cit., p. 122]. Cf. “Presença de Portugal”, in Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, ed. cit., p. 139. In Dispersos, ed. cit., p. 171. Ibidem. Cf. “Um Fernando Pessoa”, in Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, ed. cit., vol. I, p. 117.

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Nova Águia 16 - um apontamento Renato Epifânio Presidente do MIL – Movimento Internacional Lusófono

Em 2015 assinalam-se os 100 anos do falecimento de Sampaio Bruno, e, naturalmente, a NOVA ÁGUIA, ao contrário da generalidade das revistas culturais, que insistem em ignorar o que mais importa, dá o devido destaque a essa que foi, sem dúvida, uma das figuras mais marcantes da Filosofia Lusófona, coligindo cerca de uma dezena de ensaios, que abordam as mais relevantes facetas da sua vida e obra. No ano em que igualmente se assinala o centenário d’Orpheu, que teve o devido destaque no número anterior, publicamos ainda, neste número, mais de meia dúzia de textos – começando pela Conferência de Eduardo Lourenço proferida no Encerramento do Congresso 100 – Orpheu, que decorreu no primeiro semestre deste ano, em Portugal e no Brasil. De forma mais breve, mas nem por isso menos significativa, evocamos igualmente neste número mais de uma dezena de figuras relevantes da cultura lusófona – dos clássicos Camões e Eça de Queirós até Alfredo Brochado, Eudoro de Sousa, Herberto Helder (poeta português falecido, como se sabe, este ano), José Enes, José Pedro Machado, José da Silva Maia Ferreira (poeta angolano), Miguel Torga (por ocasião dos vinte anos do seu falecimento) e Rui Knopfli (poeta moçambicano). Em “Outros Voos”, começamos com a colaboração sempre presente e

honrosa de Adriano Moreira e terminamos com um interessante apontamento sobre “palíndromos”, do linguista brasileiro Ziro Roriz. Para além das “Rubricas” habituais, em que, pela mão de João Bigotte Chorão, Miguel Torga é de novo evocado, temos a secção, igualmente já clássica, “Bibliáguio”, onde começamos por destacar três obras lançadas, por diferentes editoras, no primeiro semestre deste ano. Falamos de O Estranhíssimo Colosso. Uma biografia de Agostinho da Silva , de António Cândido Franco, uma colossal obra, não apenas pelo seu número de páginas (mais de setecentas), que ilumina algumas facetas da vida de Agostinho da Silva até agora menos conhecidas ou desconhecidas de todo; de O último Europeu, de Miguel Real, um romance que é, sobretudo, uma reflexão ingente sobre o presente e o futuro da Europa; e, finalmente, de Meditação sobre a Saudade, do filósofo galego Luís Garcia Soto, que republicou agora em Portugal, na Colecção NOVA ÁGUIA, uma obra vinda à luz em 2012 e galardoada com o prestigiado Prémio Carvalho Calero. Finalmente, em “Extravoo” publicamos uma extensa entrevista a Eduardo Lourenço, conduzida por Luís de Barreiro Tavares, e um ensaio inédito de José Enes; e, em “Memoriáguio”, registamos alguns eventos decorridos no primeiro semestre deste ano – desde logo, as

Capa da NOVA ÁGUIA n.º 16.

Homenagens realizadas a Gama Caeiro, por António Braz Teixeira, e a Banha de Andrade, aqui igualmente evocado no número anterior por Pinharanda Gomes. Em suma, mais um grande número da NOVA ÁGUIA, a anteceder um outro decerto não menor, onde começaremos por reflectir sobre “A importância das Diásporas para a Lusofonia”.

Post Scriptum: Entretanto faleceram dois vultos maiores da cultura cabo-verdiana: Corsino Fortes e Arnaldo França. Ainda que de forma breve, não deixamos aqui de os evocar.

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Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

António de Abreu Freire Professor Universitário

A Europa dominou o mundo a partir do século XVI com o conhecimento, a tecnologia, a civilização e a cultura, no momento da grande expansão

marítima e comercial iniciada pelos países ibéricos e continuada por holandeses, ingleses e franceses; Portugal contribuiu com uma fatia con-

siderável de esforço para a expansão dos valores ocidentais, deixando bem marcada a sua presença tanto no Novo Mundo recém-encontrado

Nau portuguesa do século XVI em Antuérpia, gravura flamenga da época da autoria de F. H. Bruegel. No mastro de proa ostenta estandarte da cruz de Borgonha, no mastro do meio iça a bandeira portuguesa com a esfera armilar e no mastro de mezena a bandeira da cidade do Porto.

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Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

Espaços da intervenção de Afonso de Albuquerque. (Ilustração de Sérgio Carvalho)

como no Oriente, velho mundo e berço ancestral de grandes civilizações. A matemática e a geometria, a ciência astronómica, a tecnologia da instrumentação náutica, a cartografia e a arte de construção naval resultaram de contribuições inovadoras de diferentes povos europeus: judeus e muçulmanos ibéricos foram os grandes pioneiros da álgebra e da geometria, alemães e holandeses especializaram-se no fabrico de instrumentos náuticos e eram os melhores artilheiros das frotas, as escolas ibéricas de cosmografia foram pioneiras na arte de mapear, enfim os armadores e especuladores financeiros exigiram dos estaleiros de construção naval embarcações seguras e eficientes para o sucesso de um comércio sem fronteiras que criou a primeira globalização. Na

Ribeira das Naus, nos estaleiros de Antuérpia e de Amesterdão os carpinteiros navais criaram nas primeiras décadas do século XVI as mais sofisticadas embarcações que os armadores tinham até então lançado pelos oceanos. A expansão marítima que sustentou a primeira globalização resultou da conjugação de conhecimentos provenientes de vários cenários culturais e da partilha de inovações tecnológicas. Porém, a motivação profunda do reino de Portugal para tanto empenho era de ordem ideológica. Os soberanos ibéricos assumiram como responsabilidade própria os custos da descoberta e da expansão, aliando à ambição da riqueza dispersa por terras distantes os desejos de conter o domínio muçulmano e

de difundir a fé cristã. Conquistar a Terra Santa fazia parte dos grandes objetivos imperiais e messiânicos dos reis da dinastia de Avis, servindo os interesses da igreja de Roma, assumidos como destino da nação. Desta forma, o poder religioso e as ambições da realeza encontraram nos alvores da modernidade um terreno comum de intervenção e de interesse. A primeira façanha notável de um soberano cristão fora da Europa, quando ainda existia em terras ibéricas o Emirado Nasrida de Granada, foi a conquista de Ceuta em 1415 pelo rei D. João I de Portugal. A cidade era pequena e de pouco interesse comercial, contendo menos de 30.000 almas e uma pequena guarnição de defesa mas servia de escala estratégica e de refúgio aos corsários muçulmanos que lançavam contí-

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Espaço da Ação Diplomática e Expansionista de Albuquerque. (Ilustração de Sérgio Carvalho)

nuas razias pelas costas portuguesas. Até à conquista muçulmana em 709, Ceuta tinha sido cristã de obediência bizantina e depois da ocupação portuguesa continuou sendo um espaço onde cristãos, judeus e muçulmanos conviveram num clima de paz e de tolerância. Em tempos de crise de chefia da igreja católica, quando o papado se dispersou por Roma, Pisa e Avignon, o rei português optou por apoiar o papa de Roma, Martinho V, confirmado no concílio de Constança em 1417. Em recompensa pelo apoio do rei português, o papa criou nesse mesmo ano a diocese de Ceuta, passados menos de dois anos após a conquista; foi a primeira diocese cristã de obediência romana fora do território europeu, à qual se juntariam, embora com desempenhos mais discretos, a de Tânger

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(1468) e a de Safim (1487), até à criação da diocese do Funchal em 1515, quando o esforço da expansão portuguesa se estendia já por toda a costa atlântica e índica de África, por alguns pedaços da costa do continente americano (Brasil) e pelo Oriente até Malaca e às ilhas do Pacífico ocidental. Apesar das comunidades cristãs do norte de África serem muito reduzidas, da dimensão demográfica de pequenas paróquias, foi quanto bastasse para que a cultura latina penetrasse através do ensino sistemático do catecismo e da moral cristã, do estatuto da família, da língua, das regras comerciais, do direito e da administração territorial. Ceuta, que deixou de ser portuguesa quando os seus habitantes optaram por permanecer súbditos da coroa espanhola após a Restau-

ração, nunca mais deixou de ser cristã até aos nossos dias nem nunca mais deixou de ser uma comunidade tolerante e aberta a outras culturas e religiões. Foi o primeiro foco e um modelo bem-sucedido de outros núcleos de difusão da cultura neolatina pelo mundo. Um sonho! As coroas de Portugal e Espanha guardaram fidelidade à igreja de Roma, mesmo nos tempos conflituosos da afirmação do poder da realeza e no reboliço dos movimentos reformadores; por isso os papas concederam aos “fidelíssimos” reis ibéricos privilégios exclusivos: um desses privilégios, o mais conhecido e badalado foi o reconhecimento da posse do mundo por descobrir e conquistar, dividindo esses espaços disponíveis pelas duas coroas. O ou-


Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

tro foi a instituição do Padroado Real, que concedia aos soberanos o direito de criar instituições religiosas, nomear os bispos e administrar os bens da igreja pelos territórios descobertos e conquistados. O Padroado (em Espanha o Patronato Real) é anterior aos primeiros esboços do tratado de Tordesilhas, anterior mesmo ao tratado de paz de Alcáçovas (1479) quando os soberanos ibéricos se entenderam e fixaram os limites da respetiva área de intervenção atlântica; a primeira versão do Padroado português data de 1456, quando o papa Calisto III (um espanhol, Afonso Borja), pela bula Etsi Cuncti , ratificou as decisões dos seus predecessores Nicolau V (bula Romanus Pontifex, de 1455) e a bula de cruzada de Eugénio IV (bula Rex Regum de 1435). O Padroado data portanto do tempo do infante D. Henrique, quando os seus navegadores, alcançado o Cabo Verde, avançavam ao longo da costa até à Serra Leoa e golfo da Guiné. Por esses anos ainda pensavam os eruditos, apoiados nos relatos de Luís (Alvise) Cadamosto, que o rio Senegal (na fronteira da Mauritânia com o Senegal), comunicava com o rio Nilo, permitindo assim o acesso ao coração do mundo islâmico, um território considerado então como parte da “Índia”, por onde penetraria a nova “cruzada” dos cristãos latinos. A primeira igreja cristã dos trópicos, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, terá sido erguida pelos anos de 1470 na Ribeira Grande, ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde, colonizado pelos portugueses a partir de 1460, reinava D. Afonso V. O tratado de Tordesilhas (junho de 1494) foi ratificado pelo papa Alexandre VI (outro espanhol, Rodrigo Borja, sobrinho de Calisto III) ainda antes de ser assinado pelos delegados dos soberanos dos dois países

e levaria algum tempo a acertar nos detalhes da linha de demarcação oriental (foi retificado pela última vez em Saragoça em 1529, reinavam Carlos V e D. João III). Este documento projetou os dois países ibéricos para a aventura comercial e militar da expansão, apesar do pouco respeito que mereceu por parte dos demais soberanos europeus: o rei de França (François I) escarnecia perguntando pela cláusula do testamento de Adão que justificava tal partilha do mundo. Quatro anos depois do acordo de 1494 os portugueses chegavam ao continente indiano e daí catapultaram-se até ao Oriente mais distante; a empreitada comercial deu rápidos resultados e o rei português D. Manuel manifestou o seu reconhecimento ao papa através de duas vistosas embaixadas, para agradecer o apoio institucional da igreja; a primeira, recebida pelo papa Júlio II em 1506, foi co-

mandada pelo arcebispo de Braga D. Diogo de Sousa e a segunda, a mais impressionante, riquíssima em pedras preciosas e presentes exóticos (cavalos persas, leopardos, panteras adestradas e um elefante) foi recebida pelo papa Leão X em Março de 1514, comandada por Tristão da Cunha. Em Junho desse ano, o mesmo papa criava uma nova diocese, a do Funchal, da qual ficaram a depender todos os religiosos espalhados pelos três continentes até então alcançados pela expansão colonial (a primeira diocese do Novo Mundo espanhol, foi a de Santo Domingo, criada em 1504). Os reis ibéricos faziam chegar regularmente a Roma embaixadas onde figuravam autóctones do Novo Mundo e das nações orientais, para darem a conhecer os novos aderentes à doutrina cristã e fazerem publicidade da ação empreendedora que promoviam e orientavam. O espetáculo do

Sé Catedral de Goa: Dedicada a Santa Catarina, como a primeira ermida mandada construir por Afonso de Albuquerque aquando da tomada da praça, em 25 de Novembro de 1510. O plano arquitetónico é idêntico ao das catedrais portuguesas da mesma época (século XVI).

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Fragatas holandesas do século XVII, gravura holandesa da época.

exotismo destinava-se a provocar a euforia e o interesse pelos territórios e povos até então desconhecidos. No Oriente, Afonso de Albuquerque lançava por sua conta e risco as bases de um verdadeiro império político e comercial, propondo ao rei uma nova estratégica militar e colonial, que não foi entendida no reino; partilhando as ideias imperialistas e messiânicas do rei D. Manuel, Albuquerque visava a conquista de Meca e até a exumação dos ossos do Profeta para os levar de Medina para Lisboa como represália. Albuquerque morreu em 1515, desacreditado e humilhado, vítima de intrigas cortesãs e de concorrentes com ambições mais voltadas para o lucro do que para a cruzada. Da diocese do Funchal desmembraram-se novas dioceses em 1533: Açores, Cabo Verde, São Tomé e a primeira diocese portuguesa do Oriente, Goa, novos focos de irradiação dos valores religiosos e morais que caracterizavam a civilização europeia. Em 1551 o papa Júlio III

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criava a primeira diocese portuguesa no Brasil, São Salvador da Bahia e ratificava mais uma vez o Padroado a pedido de D. João III, agregando-o à Ordem de Cristo e esta em definitivo à coroa portuguesa. (Entretanto tinham sido criadas vinte e duas dioceses na América espanhola) A governação do espaço de influência militar e comercial portuguesa pelo Oriente passara progressivamente de Cochim para Goa, território conquistado e reconquistado por Albuquerque no ano de 1510. Governava então (em 1530) D. Nuno da Cunha, filho daquele mesmo Tristão da Cunha que comandara a embaixada ao papa em 1513/14 e o seu governo de dez anos foi o mais longo de toda a história da presença portuguesa no Oriente (1528-1538); pelo poder militar e pela temerária ousadia comercial, os portugueses impuseram-se desde Sofala, na costa de Moçambique, até à China e ao Japão, incluindo uma fatia considerável dos arquipélagos do oceano Pacífico. A conquista de Meca e o

controle do Mar Vermelho deixaram de comandar os rumos das naus, mas a alternativa fixada por Albuquerque concretizava-se. Desde o início que os religiosos acompanharam os militares e os comerciantes, primeiro os franciscanos e os carmelitas, mais tarde oratorianos, agostinhos e jesuítas, entusiasmados pelo exemplo do cofundador da Companhia de Jesus, São Francisco Xavier, que chegou à Índia com mais dois companheiros na comitiva do governador Martim Afonso de Sousa, em Maio de 1542; o missionário passaria para a história do cristianismo como o Apóstolo do Oriente, tendo percorrido todo o espaço de Goa até ao Japão, numa série de viagens pioneiras que permitiram desenhar uma estratégia missionária eficiente e duradoura. Numa primeira viagem, em 1534, o comandante militar levara como médico pessoal um filho de cristãos novos já famoso no reino, chamado Garcia da Orta, que se instalou como médico em Goa, onde conviveu com Luís de Camões e onde viria a falecer em 1568. Deve-


Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

mos-lhe uma grande obra científica publicada em Goa em 1563, Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia – o primeiro olhar crítico de um médico ocidental sobre as tradições curativas do oriente. A chegada dos portugueses ao oceano Índico proporcionou desde os primeiros encontros um intercâmbio sustentado de conhecimentos. Ultrapassado o impacto inicial da desconfiança e a demonstração de força que foi necessária para garantir a abertura e o controlo do trato comercial, o que foi facilitado pela superioridade bélica dos portugueses e pela manta de retalhos dos frágeis poderes instituídos ao longo das costas da Índia, os forasteiros de imediato se interessaram por outras experiências, procurando antigas comunidades cristãs isoladas e grupos de eruditos com quem partilhar conhecimentos. Logo no regresso da primeira viagem à Índia, entre a meia centena de navegantes que desembarcaram em Lisboa sãos e salvos, vinha um piloto muçulmano culto e viajado, originário de Tunes, chamado Monçaide, que usava com maestria um instrumento mais eficaz do que o astrolábio para calcular as latitudes, a balestilha. Na viagem de Cabral os pilotos testaram a eficácia de um outro instrumento de medição de alturas trazido por Vasco da Gama, o kamal, com as respetivas tabelas dos mouros ou tabuletas da Índia. Outro personagem trazido para Portugal no regresso da primeira viagem à Índia foi Gaspar da Gama (ou das Índias), um judeu de origem polaca que serviu de intérprete nas viagens de Cabral e nas seguintes, prestando inestimáveis serviços aos pioneiros da aventura oriental. Os navegantes dos mares orientais já contavam com o apoio de cartógrafos e de pilotos experientes, conheciam com rigor os regimes das correntes e dos ventos e as rotas

comerciais que cruzavam o Índico e o Pacífico ao ritmo das monções. Mercadores muçulmanos e judeus de origem ibérica e norte africana já se encontravam instalados há mais de cinco séculos pelas terras do Oriente onde agora chegavam os novos forasteiros e constituíam os principais obstáculos às pretensões comerciais dos portugueses. Porém, eram esses mesmos os mais indicados para partilhar com os recém-chegados a experiência acumulada. Os poucos cristãos encontrados faziam parte das classes mais pobres, tanto em Socotorá como em Cranganor, Coulão e Meliapor; o império fabuloso do Prestes João, que alimentara utopias durante séculos, não passava de um reino pobre e herético, encurralado entre poderosas comunidades islâmicas do continente africano. Porém, a ideologia imperial e messiânica continuava a guiar os destinos de todas as empreitadas. A presença dominadora de Portugal impôs-se muito rapidamente e durou pouco mais de um século, se bem que as consequências deste ousado e temerário empreendimento se estenderam por mais de três séculos por todo o Oriente. Foi o resultado de uma estratégia deliberadamente construída a partir de objetivos previamente assumidos: o primeiro desses objetivos era o cerco ao domínio comercial dos muçulmanos e a destruição do Islão que, após a queda de Constantinopla em 1453, confinava a Europa num espaço comercial demasiado restrito. As bulas dos papas Nicolau V e de Calisto III foram emitidas logo nos anos seguintes à queda de Constantinopla nas mãos dos muçulmanos (1453) e por todo o espaço do Magrebe que os portugueses controlavam ao longo da costa de África, o inimigo, o concorrente e o parceiro comercial, era sempre o mesmo muçulmano. O projeto do rei D. Manuel e de Afonso

de Albuquerque de controlar o Mar Vermelho para fechar por completo as rotas marítimas dos muçulmanos não se concretizou, como também não havia meios para concretizar a sedutora sugestão do Négus etíope: desviar o curso do rio Nilo a fim de arrasar o poderio do sultão do Cairo e cumprir a profecia de Ezequiel reduzirei os canais do Nilo a um deserto… (Ez,30, 12). A longa rota do Cabo servia os objetivos a alcançar e permitia chegar até às comunidades cristãs mais isoladas, cruzando o Índico. O poder religioso em Roma confiava na guerra de cruzada dos portugueses e na sua estratégia de expansão marítima para travar o Islão e a expansão do comércio dos infiéis, por isso os papas apoiavam sem reservas a expansão portuguesa, primeiro através dos privilégios concedidos à Ordem de Cristo e, depois da anexação da Ordem à coroa, diretamente através dos soberanos. O mito da origem divina do reino, quando o próprio Cristo terá aparecido ao primeiro rei de Portugal na véspera de uma fabulosa batalha, era tema divulgado pelo menos desde a Crónica de Portugal de 1419, retomado em 1451 (na Segunda Chronica Breve de Santa Cruz de Coimbra) e foi restaurado na Crónica de D. Afonso Henriques, escrita em 1505 a pedido do rei D. Manuel por Duarte Galvão, companheiro e amigo de Albuquerque. O tema dominava as mentes cultas e os rumos das navegações; a utopia profética do Quinto Império passou a fazer parte da história do reino. E a mesma cruz que tinha aparecido ao imperador Constantino na batalha de Ponte Mílvio no ano de 312, que visitara D. Afonso Henriques em Ourique em 1139, reapareceria milagrosamente no Índico, guiando as naus e as investidas temerárias de Albuquerque! Maktub!

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Milagre de Ourique, tela de Frei Manuel dos Reis, 1665.

O segundo objetivo consistia em criar um novo espaço político e comercial na Europa, baseado na hegemonia dos soberanos fiéis a Roma, para o que era necessário garantir a estes o acesso privilegiado às fontes da riqueza disponíveis. Este objetivo só foi possível graças à combinação de duas áreas de conhecimento fundamentais: a cosmografia e o contorno do continente africano. Ambas exigiam conhecimentos teóricos e aplicações técnicas. As bases teóricas estavam há muito codificadas em tratados de astronomia que o poder de Roma olhava com suspeição, pois contra-

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riavam os textos da Bíblia; a igreja condenava as novas teorias científicas mas permitia que os princípios fossem aplicados na prática para garantir o sucesso das navegações longínquas, porque navegar é preciso. Foi necessário esperar até 1488 para que se concretizassem as esperanças: Bartolomeu Dias achou o limite do continente africano, onde se juntavam os oceanos Atlântico e Índico, enquanto Pêro da Covilhã terminava o périplo por via terrestre até à Índia e à Etiópia, para espionar o território cobiçado, onde se imaginava que existiam cristãos, no fabuloso reino do tal Prestes João. Sem a viagem

exploratória dos peregrinos Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva (este faleceu pelo caminho vítima da peste) e as informações que Pêro fez chegar ao rei D. João II, possivelmente que a viagem de Vasco de Gama não teria acontecido. Quando um navegador atrevido e experimentado, conhecido pelo nome de Cristóvão Colombo propôs ao rei de Portugal alcançar as terras de Cataio (China) e Cipango (Japão) navegando para oeste, em conformidade com a geografia do planisfério de Paolo Toscanelli (1474) e a do globo terrestre ( Erdapfel, a maçã do mundo) que um explorador e companheiro de Diogo Cão, Martin Behaim, tinha exposto em Nuremberga (1491), o rei D. João II, que ignorava como os demais soberanos a existência do continente americano, já sabia que essa rota se baseava em intuições aleatórias e por isso apostou numa outra mais segura, há muito procurada e explorada pelos navegantes portugueses a um preço muito elevado para a coroa, a rota que contornava o continente africano. Depois da caminhada dos peregrinos e da viagem marítima de Bartolomeu Dias, foram necessários ainda mais dez anos de preparativos para concretizar a chegada da primeira expedição exploratória à Índia pela via marítima. Pêro da Covilhã nunca mais regressou a Portugal, ficando por terras africanas ao serviço dos soberanos que o acolheram com curiosidade e simpatia; os portugueses retomariam contacto mais estreito com a Etiópia a partir de 1505 e o reino etíope transformou-se num polo africano de difusão de valores culturais ocidentais e latinos, incrementados a partir da ajuda militar oferecida pelos portugueses na luta contra os reinos rivais. O primeiro embaixador etíope chegou a Lisboa em 1513 e o cronista Duarte Galvão, o grande pro-


Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

motor da ideia do destino messiânico do reino, da versão quinhentista do Vº Império, morreu em 1517 a caminho da Etiópia, como embaixador de D. Manuel. Os primeiros missionários chegaram em 1520, ainda em vida de Pêro da Covilhã. Outra foi porém a história da fantástica e rápida expansão do comércio português a partir da Índia: desde as primeiras viagens que surgiu a ambição de alcançar outros mercados mais distantes, os da Malásia, da China e do Japão, por aquelas terras até então conhecidas como Cataio e Cipango. Os portugueses não tardaram a desembarcar em Ceilão a ilha mais cobiçada de todo o oriente (a Taprobana dos antigos). Em 1509 Diogo Lopes de Siqueira abordou a ilha de Samatra e criou os primeiros contatos comerciais que se prolongariam por noventa anos, até 1599. Avançando pelo arquipélago de Sonda alcançaram Timor, garantindo o negócio das madeiras exóticas que os chineses já dominavam séculos antes através de Malaca, em especial o do sândalo, madeira utilizada na decoração, na estatuária e na perfumaria. Pelos mesmos anos os portugueses abordaram a China nas proximidades de Macau, alcançaram a Austrália e visitaram outras ilhas do oceano Pacífico, em ousadas viagens exploratórias. O sucesso comercial foi o suporte material da expansão cultural, em especial da difusão do cristianismo que arrastou para o Oriente novos conceitos, desde os valores familiares e os relativos à interação do indivíduo com a sociedade, ao vestuário e à alimentação, à justiça e aos direitos das pessoas, às regras sanitárias e higiénicas, até aos poderes necessários para garantir a segurança e o sucesso dos mercadores, desde a construção naval e a navegação às artes da guerra, enfim à língua, à produção de bens de consumo e às técnicas e

planos da construção civil. Os valores ocidentais e latinos encontravam-se e confrontavam-se com outros valores de civilizações antiquíssimas e a religião cristã enfrentava os cultos de outras religiões profundamente enraizadas no tempo e nas mentalidades: um encontro de civilizações. O destino escolhido para a primeira abordagem à Índia foi o porto da cidade de Calicute, o mais importante da costa do Malabar (hoje serve uma cidade com um milhão de habitantes no estado de Kerala) e a primeira sede administrativa dos negócios orientais foi a cidade de Cochim, onde se instalou o primeiro vice-rei D. Francisco de Almeida em 1505, mas a capital do espaço português no oriente (a denominada Índia Portuguesa que incluía os territórios que se estendiam de Moçambique ao extremo Oriente), instalou-se a partir de 1530 na cidade de Goa, sede do governo, ponto de encontro de civilizações (muçulmana, hindu e cristã), onde se decidiam no século XVI as estratégias do comércio, da guerra e da religião; terá chegado aos duzentos mil habitantes, era então a maior cidade da Índia, uma capital comercial, cultural e religiosa à medida do sonho de Afonso de Albuquerque. O Hospital Real, por ele fundado, foi a primeira instituição de assistência social no Oriente e o colégio de Santa Fé, edificado entre 1541 e 1544, foi o primeiro grande foco da cultura ocidental e latina, confiado aos jesuítas. Mas a cidade tão rapidamente cresceu quanto definhou e no século XVII já era apenas uma sombra do tempo da sua grandeza: a má qualidade e a corrupção dos administradores, a intolerância religiosa (a Inquisição chegou em 1560), uma imigração descontrolada de criminosos e degredados, a falta de planeamento urbano, epidemias e ocupações reduziram rapidamente a Goa Dourada, a Roma do Oriente, a uma

decadente cidade de província, recheada de ruínas. Em 1655, num célebre sermão de sexta-feira santa pregado na igreja da Misericórdia em Lisboa, o padre António Vieira denunciava com a seguinte alusão: Encomendou el-rei D. João, o Terceiro, a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia por via de seu companheiro, que era mestre do príncipe (D. João Manuel, pai de D. Sebastião): e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo “rapio” na Índia se conjugava por todos os modos. (Sermão do Bom Ladrão) Goa fora conquistada e reconquistada em 1510 por Afonso de Albuquerque. O capitão-mor e governador da Índia estendeu e consolidou o domínio português desde a ilha de Socotorá na saída do mar Vermelho, as cidades de Mascate e Ormuz, no golfo Pérsico (em 1507), até Malaca, porta de passagem obrigatória e estratégica para o oceano Pacífico, uma cidade cosmopolita que contava então 120.000 habitantes e que passou para as mãos dos portugueses em Julho de 1511. Ambicionava conquistar Meca, a cidade santa dos muçulmanos, para assegurar o controlo total do Mar Vermelho, mas a tarefa era demasiado ambiciosa para o poderio militar disponível e o governante, que não conseguiu o apoio necessário dos outros oficiais militares para os seus planos messiânicos, dirigiu definitivamente as investidas para outros objetivos quando falhou a conquista de Adém (em 1513). Foi no mar que os portugueses impuseram o seu principal domínio, graças ao poderio das frotas, obrigando todas as embarcações comerciais do oceano Índico a sujeitarem-se ao controle e às licenças (os cartazes) emitidas pelos governadores e capitães das fortalezas. Por outras cidades da Índia e em seguida pelo espaço das con-

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quistas que de Malaca se estenderam até à China e ao Japão, os missionários entregaram-se à tarefa de construir igrejas, hospitais e colégios, outros tantos focos de irradiação da cultura ocidental e latina. Corporações religiosas e civis fundaram Misericórdias, uma criação tipicamente portuguesa que se espalhou por todo o Oriente; contavam-se mais de trinta no final do século XVII. Já ao longo do século XVI foram aparecendo dicionários e obras de divulgação religiosa e moral em sânscrito, tâmil, concani, chinês e japonês, impressas em tipografias que se instalaram a partir de 1553 em Goa e Cochim, logo de seguida em Macau e Nagasáki. Os poderes civis e religiosos mantinham uma colaboração estreita e eficiente para garantir o sucesso das respetivas empreitadas. Uns e outros estavam conscientes da vulnerabilidade por serem minoritários e emigrantes: o espaço de intervenção militar e comercial limitava-se a pequenos pedaços de orla marítima e insular distantes uns dos outros, onde o mérito e o reconhecimento do valor dos intervenientes dependiam de muitos fatores, por vezes perturbados pela intriga e a malvadez dos concorrentes. No continente, o poder Mogol impunha-se, a partir de 1520, como uma nova e emergente força política e militar de obediência islâmica sunita, consolidando o domínio do (atual) Paquistão até ao Bangladeche; a hegemonia do Grão Mogol no espaço indiano duraria desde então até à colonização britânica, que começou em meados do século XVIII através da Companhia Britânica das Índias Orientais. Um dos governadores da fortaleza de Malaca foi Duarte Coelho Pereira, descendente bastardo do toscano Gonçalo Coelho – um dos capitães a quem o rei D. Manuel confiou o levantamento topográfico da costa

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brasileira em 1503, na companhia de Américo Vespucci. Duarte Coelho Pereira chegou ao oriente em 1506, foi embaixador, o primeiro português a abordar a Cochinchina (em 1523) e durante duas décadas no oriente deu provas de excelentes qualidades como militar e governante. Acompanhava Jorge Álvares nas primeiras incursões exploratórias por terras chinesas quando este faleceu em 1521 e deu-lhe sepultura junto ao padrão que o mesmo tinha erguido no refúgio clandestino da ilha de Tamão; D. João III escolheu Duarte Coelho Pereira como donatário da capitania de Pernambuco (em 1534, a Nova Lusitânia), a que teve maior sucesso em todo o Brasil. Era casado com Brites de Albuquerque, sobrinha do grande Afonso. Ainda estão de pé as ruinas da igreja de São Paulo, por ele fundada em 1512 e onde foi sepultado São Francisco Xavier. Outro dos escolhidos para donatário de duas capitanias foi o cronista João de Barros, um dos homens mais cultos e respeitados do reino, que nunca tomou posse delas, apesar de ter gasto a fortuna e ter perdido dois dos seus filhos em tentativas frustradas de colonização. Outros donatários de capitanias tinham sido militares e administradores no Oriente: Vasco Fernandes Coutinho esteve em Goa e Malaca com Afonso de Albuquerque, recebeu a capitania do Espírito Santo e lá gastou sem sucesso toda a sua fortuna; Francisco Pereira Coutinho, homem rígido e severo por terras africanas e indianas – o rusticão - perdeu tragicamente a vida na capitania que lhe coube em prémio, a da Bahia. Os comerciantes portugueses alcançaram o Japão (que Marco Polo não visitou mas do qual teve notícias e divulgou com o nome de Cipango) ao longo do ano de 1543 e os pioneiros da façanha terão sido Fernão Mendes Pinto e os seus companhei-

ros Cristóvão Borralho e Diogo Zeimoto, ao desembarcarem, quiçá em risco de naufrágio e sem autorização nem conhecimento do governador Martim Afonso de Sousa, numa das ilhas do arquipélago de Osumi, a de Tanegashima. A introdução da arma de fogo (o bacamarte) foi a primeira grande novidade técnica vinda do ocidente e que modificou por completo a arte e o sucesso militar naquele país que era então governado por senhores da guerra, ao jeito do feudalismo europeu medieval. Ainda nos nossos dias se comemora anualmente na ilha, com o Festival da Espingarda, esse primeiro encontro com os portugueses. A partir de 1547 os mercadores japoneses visitavam Malaca e no ano seguinte frequentavam Goa levando com eles, de regresso ao Japão, as primeiras novidades sobre o modo de vida dos forasteiros latinos. Os missionários jesuítas chegaram à cidade de Kagoshima no mesmo ano em que os seus companheiros chegaram ao Brasil, 1549. O comércio com os nanban jin, os “bárbaros do sul”, desenvolveu-se rapidamente, em menos de uma década, graças ao apoio estratégico de Macau e manteve-se por largos anos monopólio dos portugueses. Em 1581 um cartógrafo português, talvez o jesuíta Inácio Moreira, desenhava a primeira carta geográfica do Japão. Porém, a presença dos europeus em terras tão distantes e culturas tão diferentes sempre foi precária e recheada de imprevistos. A fixação dos portugueses em algumas partes do continente asiático foi difícil: os espaços então sob controlo do Grão Mogol indiano (atual Paquistão, Índia continental e Bangladeche) assim como a China, resistiram à presença dos novos forasteiros apesar das tentativas que se estenderam e falharam por mais de quarenta anos. O imperador mogol só permitiu o


Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

Igreja de S. Lázaro: O início da construção desta igreja data de 1557. Serviu como Sé Catedral da diocese quando esta foi criada em 1575. A atual fachada neoclássica data do século XIX.

comércio com os portugueses a partir de 1537 e a criação de feitorias permanentes em Bengala a partir de 1577; em 1580 o imperador Akbar, tolerante e afável, pediu para se encontrar pessoalmente com os padres jesuítas do padroado português (de Goa) na nova e monumental cidade de Fathepur Sikri (entretanto abandonada e atualmente património da humanidade), nas proximidades da atual cidade de Agra, a norte da Índia. Porém, nada de relevante terá resultado deste encontro para a expansão das ideias ocidentais e latinas.

Também passaram muitos anos até se chegar a um entendimento duradouro com as autoridades do império chinês. O navegador Jorge Álvares partiu de Malaca em 1513 às ordens do capitão-mor Jorge de Albuquerque e fixou um padrão clandestino em Tamão (hoje chamase Lingding, no estuário do rio das Pérolas) sem mais consequências; o embaixador Tomé Pires, naturalista e boticário real, não teve sucesso e acabou preso em 1516. A China desconfiava das intenções dos forasteiros ocidentais que somente à custa

de subornos conseguiam fixar-se esporadicamente em alguns pequenos portos. O missionário São Francisco Xavier faleceu em 1552 na ilha de Sanchoão, a caminho de Cantão, exausto após mais uma tentativa frustrada de instalar arraiais em terras chinesas. O acordo entre portugueses e chineses aconteceu em 1557 e contemplava uma espécie de arrendamento de um espaço no delta do rio das Pérolas, nas proximidades de Cantão, reinava Jiajing, o 12º imperador da dinastia Ming. Nesse mesmo ano um arrojado dominicano, frei Gaspar da Cruz, vindo de Goa e Malaca, por lá iniciou a divulgação do cristianismo (deixou-nos um texto delicioso, o Tratado das Coisas da China, escrito em 1569, depois do seu regresso a Portugal). Não tardaram a chegar os franciscanos, que deixaram por todo o extremo oriente marcas duradouras da sua passagem. Frei Paulo da Trindade (1570-1651) e frei Jacinto de Deus (1612-1681), franciscanos naturais de Macau, deixaram-nos obras importantes sobre a história do cristianismo no oriente (Conquista Espiritual do Oriente e Descrição do Império da China). Os jesuítas chegaram em 1563 e a cidade de Macau foi elevada a sede de um bispado em 1575. O primeiro hospital público, o Hospital dos Pobres, uma leprosaria e a Santa Casa da Misericórdia foram obras dos jesuítas a partir de 1569. O colégio de São Paulo, dirigido pelos jesuítas a partir 1594, tornou-se rapidamente numa instituição de ensino superior donde irradiou a cultura ocidental e latina pelo espaço do império chinês. Em 1600 os portugueses instalaram um entreposto comercial na ilha de Taiwan, a que chamaram Formosa, praça perdida para os espanhóis em 1642, que logo a entregaram aos holandeses, expulsos pelos chineses em 1661. Macau foi um caso único de sucesso político, cultural e co-

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mercial; no primeiro quartel do século XVII o pequeno território possuía a mais sofisticada fundição de canhões de todo o oriente, superior às de Cochim e de Goa, a de Manuel Tavares Bocarro – hoje enriquecendo o espólio de museus militares do mundo inteiro. A China sempre foi um espaço interdito aos estrangeiros, os chineses consideravam-se o centro do mundo e desprezavam os forasteiros, essas criaturas estranhas com hábitos de vestuário e de alimentação bárbaros e grotescos. Até ao século XIX mesmo os chineses instruídos ignoravam o nome dos principais países ocidentais, pelos quais não tinham o mínimo apreço nem ponta de curiosidade. Com a criação da República Popular da China em 1949 e sobretudo com a revolução cultural iniciada por Mao Tsétung em 1966 é que a grande maioria dos cidadãos chineses teve conhecimento, mais pela negativa, da existência de outros países, classificados como amigos ou inimigos do povo chinês. Foram muito poucos os personagens estrangeiros que ao longo do tempo conseguiram o apreço e a admiração dos chineses. A presença dos portugueses, pelo seu reduzido número e por uma atuação genericamente discreta, nunca preocupou as autoridades chinesas, mesmo se, em momentos de alguma tensão (como em Dezembro de 1966) recaíram sobre eles as mesmas depreciações que se aplicavam aos povos “imperialistas e sanguinários”, inimigos da nação chinesa. Os portugueses permaneceram em Macau até 20 de Dezembro de 1999, quando aquele espaço foi devolvido à China após quatrocentos e quarenta e dois anos de convivência pacífica. O império português do oriente foi um projeto ambicioso imaginado por Albuquerque como um grande es-

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paço mercantil e cultural resultante de um desígnio ideológico e profético. O governador propunha uma massiva miscigenação de portugueses com mulheres indianas (os casados, denominação que ficou por séculos), criando uma população aculturada que servisse de apoio à empreitada comercial e política, uma verdadeira colonização, mas os nobres do reino recusavam a ideia de uma raça de mestiços que porventura pudesse ofuscar a dignidade e a qualidade da utópica pureza lusitana que estava na moda – o peito ilustre lusitano. A intolerância predominante no reino foi certamente o principal obstáculo à convivência pacífica entre portugueses, hindus e muçulmanos no outro lado do mundo. Albuquerque adoptou uma política de tolerância com hindus e muçulmanos, criando relações pacíficas com os maiores comerciantes do Oriente, mas a atitude conciliadora do governante com os muçulmanos xiitas não foi entendida no reino, antes fortemente contrariada pelos interesses particulares dos demais protagonistas que não partilhavam o ideal messiânico. A ideia não vingou; o império oriental manteria como modelo um projeto comercial agressivo, por onde a ambição não tinha regras nem limites e as empreitadas sucederam-se, por entre tragédias e sucessos. A pouca gente portuguesa (no reino contavam-se em 1527 pouco mais de um milhão e duzentas mil almas), muito disseminada pelo vastíssimo espaço da orla marítima oriental, sempre foi uma minoria tão vulnerável quanto arrogante e a intolerância foi dos maiores obstáculos à manutenção do império. A corrupção, a indisciplina, o enriquecimento ilícito, o nepotismo, o roubo e a ganância, pirataria, pilhagem, massacres de inocentes e vinganças, uma escravatura desregrada, sobretudo o fanatismo e a intolerância, ultrapassaram todos os limites e transforma-

ram a epopeia num pesadelo, a cruzada em corso, os heróis em bandidos. O tribunal da Inquisição de Goa condenou à fogueira a irmã de Garcia da Orta em 1569, no ano seguinte ao da morte do médico e mandou exumar os restos mortais dele, que se encontravam sepultados na sé de Goa, para os queimar num aparatoso auto-da-fé em 1580. Os recursos humanos eram demasiado exíguos, fracos e sem virtude para manter honradamente um tão vasto império. O recurso à violência e ao espetáculo do terror piorou os resultados. Estas tristes exibições ocidentais e latinas foram porventura a imagem mais negativa de toda a presença portuguesa no Oriente. D. João III abandonara o norte de África para acudir às necessidades de investimento num comércio muito mais rentável, mas a fasquia tinha sido colocada demasiado acima das capacidades e da qualidade dos concorrentes. Em 1549 a feitoria portuguesa na Flandres, fundada em 1445, que se tinha mudado de Bruges para Antuérpia em 1499 e por onde se escoavam as mercadorias mais valiosas de África e da Índia, tinha fechado as portas. No último quartel do século XVI, quando o comércio português do Oriente começou a desmoronarse, a Espanha estava no auge do seu poder financeiro, com a abundância de ouro e prata que os galeões das Américas descarregavam em Sevilha. Porém, outras potências europeias emergentes cobiçavam os recursos da península ibérica arrogante, unificada pela mesma coroa a partir de 1580. No final do século XVI concediam-se em Goa graus académicos em artes, direito e teologia, mas também em medicina e cosmografia. O mesmo acontecia em Macau. Imprimiam-se livros em Goa, Cochim, Macau e Nagasaki, o que só viria a acontecer no Brasil no primeiro quartel do século XIX. Porém, o sucesso do intercâmbio


Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

cultural não sustentou a fraqueza militar, política e comercial. A utopia e a ação de Albuquerque, que geriu os interesses portugueses no Oriente com atitude enérgica e o poder de um príncipe maquiavélico, inspiraram ambições e arrojadas iniciativas comerciais durante pouco mais de um século. Quando os holandeses e os ingleses, no primeiro quartel de seiscentos, com as suas companhias de comércio das Índias Orientais, se apoderaram dos espaços portugueses no Oriente, o império abandonava a competição. A perda de Ormuz às mãos dos ingleses e dos holandeses em Fevereiro de 1626 marcou o fim do domínio português nos mares orientais e o da hegemonia marítima nos demais oceanos. Passados poucos anos, restavam sobras de somenos importância. A coroa francesa nunca investiu em projetos de descoberta, deixando as iniciativas aos armadores particulares, mas em 1664 o poderoso e inovador ministro do rei francês Louis XIV, Jean-Baptiste Colbert, decidiu imitar os holandeses e os ingleses criando também uma Companhia das Índias Orientais, para tomar conta, com relativo sucesso, das poucas fatias apetitosas que ainda sobravam. Passaram de meia centena as possessões e fortalezas portuguesas espalhadas pela península Arábica, Índia, Malásia, China e Japão, onde Portugal exercia plena soberania, sem contar as muitas feitorias e assentamentos comerciais onde não havia ostensiva presença militar (enumeradas no Livro das Plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental, de António Bocarro, enviado ao rei Filipe III em 1635). Oliveira Martins precisa: Em certos pontos, como no Malabar e em Malaca, onde a política de Albuquerque levara à constituição

de cidades portuguesas, havia propriamente Governo e Estado: uma colónia, no sentido comum da palavra. Mas tais exemplos eram exceções; a regra era a existência de uma fortaleza dominando uma cidade indígena, cobrando as páreas dos sultões da terra, e abrigando os navios que aí iam comerciar. O comércio do oriente fez de Lisboa uma das maiores cidades da Europa: 100.000 habitantes em 1550, 250.000 no final do século XVI, (decrescendo para 165.000 habitantes em 1619). Só durante o reinado de D. Manuel zarparam de Lisboa para a Índia duzentas e trinta e sete naus. A rua dos Mercadores de então era o terreiro de uma verdadeira globalização, com gente de toda a Europa, de todas as raças e crenças, no meio de uma euforia provocada pelo exotismo das mercadorias e a ânsia da fortuna. Porém, depois do longo cerco de Goa pelos holandeses (1639), da perda de Malaca (1641) e de Ceilão (1657), da entrega de Negapatão (1658), da cedência de Bombaím aos ingleses como parte do dote do casamento de D. Catarina de Bragança com Carlos II (1662), o denominado império português do oriente declinou muito rapidamente. No final do primeiro quartel do século XVII pouco restava também do esforço dos cento e quarenta e dois jesuítas (dos quais setenta e um autóctones), de uma centena de franciscanos e algumas dezenas de dominicanos infiltrados na China e Japão, entusiasmados pelo sucesso comercial dos primeiros investidores e pela empreitada louca de São Francisco Xavier. Em 1650 os últimos padres foram expulsos do Japão e os cristãos resistentes passaram a viver na clandestinidade. O último bispo efetivo do Japão faleceu em 1625 e o último nomeado por D. João IV, o jesuíta André Fernandes, nunca chegou a ser confirmado pelo papa nem pisou terras nipónicas;

a diocese (de Funai) já tinha sido extinta à data da sua nomeação. Faleceu em Lisboa em 1660. O catolicismo, através do qual se divulgou por mais tempo e mais intensamente a cultura ocidental e latina, não entrou no Oriente por iniciativa dos portugueses: tanto os primeiros franciscanos que acompanharam as viagens de Gama e de Cabral, como Xavier e os jesuítas nas ousadas investidas pela China meio século depois, já lá encontraram cristãos de longa data e tradição. Porém, a partir da intervenção dos missionários portugueses, através do Padroado da Ordem de Cristo, nunca mais deixou de haver continuidade na presença cristã pelo Oriente. Logo em 1510 havia um bispo, titular de Laodiceia, o dominicano D. Duarte Nunes, nomeado para o espaço do cabo da Boa Esperança até à Índia oriental, que se instalou em Goa em 1520. Quando o poder político se desmoronou, os valores culturais mantiveram-se sólidos e a igreja católica continuou a sua expansão sem o suporte comercial e militar que de início a protegeu. O recinto do Vaticano exibia esse sucesso, no tempo do último papa renascentista, Alexandre VII (reinou de 1655 a 1667), com a inauguração da monumental colunata de Bernini a simbolizar o poder e o sucesso da igreja dominando e protegendo o mundo. As nove dioceses católicas orientais do Padroado Português estendiam-se no século XVII até à China e ao Japão e na África oriental tinha a diocese da Etiópia (1555) e a de Moçambique (1612). Para além do poderoso espólio religioso presente até aos nossos dias por todo o Oriente, a língua portuguesa e a cultura neolatina infiltraram-se nas principais culturas orientais, todas elas exibindo até hoje nos seus vocabulários fonemas de origem portuguesa, assim como no

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Mapa-mundi oferecido pelo padre Matteo Ricci ao imperador da China.

quotidiano de pequenas comunidades que ainda falam dialetos do português, na identidade das pessoas, nos trajes e costumes tradicionais, nos nomes das embarcações de pesca da Malásia e da Indonésia, nas festas populares, na cor da pele dos descendentes de portugueses. Os missionários portugueses, primeiro os franciscanos, depois os dominicanos, os agostinhos, os oratorianos e finalmente os jesuítas, vieram reacender no Oriente uma fé residual, obra de outros missionários muito mais antigos e quase esquecidos, criando novas estruturas religiosas, igrejas, conventos, hospitais e colégios que se ergueram para durar muito para além das empreitadas dos comerciantes e dos militares. Mais ousados que os comerciantes, eles foram autênticos bandeirantes desafiando todos os perigos para alcançar os povos mais distantes, muito longe da proteção dos outros intervenientes: eles alcançaram civilizações tão isoladas como as do Tibete, do Nepal e do Butão. No primeiro quartel do século XVII, o jesuíta António de Andrade, chegado a Goa em 1600, foi o primeiro europeu a atravessar as

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neves perpétuas do Himalaia e a fundar uma missão no Tibete em 1626. O padre Estêvão Cacella alcançou o reino do Butão e lá fundou uma missão no ano seguinte. Outros missionários, como o jesuíta João de Brito (1647-1693), empreenderam ações missionárias e sociais junto dos mais pobres e segregados da Índia, em Madurai, longe de qualquer interesse comercial e de qualquer proteção militar. O padre oratoriano José Vaz, um brâmane natural de Goa (1651-1711), dedicou vinte e três anos de apostolado à comunidade católica de Ceilão durante o período do domínio holandês; beatificado pelo papa João Paulo II em 1995, foi canonizado pelo papa Francisco em Janeiro de 2015. O papa Pio IX tinha canonizado em 1862 o franciscano Gonçalo Garcia, natural de Baçaim, filho de pai português e de mãe indiana, martirizado em Nagasaki em 1597. João de Brito foi canonizado pelo papa Pio XII em 1947. A persistência da religião cristã permitiu a continuidade da influência linguística e cultural nas suas formas mais duradouras. Até ao final do sé-

culo XVIII o português era ainda a principal língua comercial por todo o oriente. Há uma dezena de anos ainda se publicava em Ceilão um jornal em crioulo de português, mantido por uma igreja cristã. São doze os crioulos indo-portugueses identificados e cinco os crioulos malaioportugueses, a maioria deles quase extinta. O papiá kristáng, um dialeto de origem portuguesa com mistura de fonemas malaios e chineses, ainda é falado por mais de cinco mil cidadãos em Malaca e Singapura e por mais alguns milhares dispersos por comunidades migrantes na Austrália e em Inglaterra. Um crioulo similar ainda subsiste como língua única dos seus utilizadores em Chaul, o kristí, dialeto da comunidade cristã de Korlai utilizado por um milhar de pessoas a sul de Bombaim, onde a presença portuguesa durou até 1740. Os últimos redutos do domínio português até ao século XX, os espaços do antigo Estado Português da Índia, mais os de Macau e de Timor, contribuíram grandemente para a continuidade da língua, mesmo que residual. Cerca de metade da população do atual estado de Goa (que é de um milhão e quinhentos


Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

mil habitantes) continua católica e a língua portuguesa, apesar de muito minoritária em relação às línguas concani e marata e mesmo ao inglês, ainda é falada por centenas de famílias. O diário O Heraldo foi publicado em português até 1983. Só como exemplos da permanência do padroado português pelo oriente, basta recordar que até 1847 os bispos da diocese chinesa de Pequim eram portugueses, até 1868 os bispos da diocese de Malaca e Singapura eram portugueses, como os bispos de Meliapor e de Cochim até 1951. D. António Barroso, bispo do Porto, um prelado que teve relevante intervenção nos primeiros tempos da República, tinha sido bispo de São Tomé de Meliapor. A igreja de São José em Singapura, construída na primeira década do século XX, ostenta na sua decoração o escudo português. A língua portuguesa é atualmente um dos três idiomas da República da Maurícia, um arquipélago habitado por um milhão e trezentas mil almas, situado a leste de Madagáscar, encontrado pelos portugueses em 1505. Em Goa Velha, estão de pé e abertas ao público a sé catedral, as igrejas do Rosário, do Bom Jesus e de São Francisco, todas erguidas no século XVI. Em Macau subsistem as igrejas de São Lázaro, de Santo António e de São Lourenço, originalmente da mesma época. As ruinas da igreja do colégio de São Paulo são património da humanidade. Por muitos outros espaços do que foi o sonhado império português do Oriente resistem ao tempo vestígios eloquentes do que foi a obra do Padroado português, em especial a da atuação dos padres da Companhia de Jesus. Eles não foram os primeiros missionários portugueses no Oriente, mas foram os mais ousados e destemidos na propagação do cristianismo, seguindo o exemplo de São Francisco Xa-

vier. O padre Francisco de Sousa escreveu em 1707 a história da grande bandeira dos jesuítas pelo Oriente em dois volumes, desde a chegada dos pioneiros até 1585: Oriente Conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus da Província de Goa. Franciscanos, dominicanos e oratorianos seguiram de perto as investidas ousadas e muitas vezes temerárias dos missionários da Companhia de Jesus. Um dos personagens mais relevantes da implantação da cultura ocidental e latina na China foi o jesuíta Matteo Ricci (1552-1610), cientista, matemático e cartógrafo, o primeiro europeu a criar um intercâmbio científico e cultural com o Oriente ao mais alto nível, entre os intelectuais e junto da corte imperial chinesa. Ricci formouse em Itália e veio para Portugal em 1577, aos vinte e cinco anos, para aperfeiçoar os conhecimentos de português na Universidade de Coimbra. Partiu para Goa em 1578, integrado nas missões jesuíticas do padroado português e foi ensinar latim e grego no colégio de Cochim (hoje a maior aglomeração urbana do estado de Kerala, no sul da Índia), enquanto estudava teologia, para vir a ser ordenado sacerdote em 1580. Em 1582 foi enviado para Macau (a diocese tinha sido fundada em 1575, desmembrada da de Malaca), a fim de aprender a língua chinesa e no ano seguinte, juntamente com outro missionário o padre Miguel Rugieri, fundava a primeira missão na China, em Zhaoqing, dependente do colégio dos jesuítas de Macau. O colégio Madre de Deus, fundado na origem pelos franciscanos viria a ser, a partir de 1594, com o nome de colégio de São Paulo e já sob a tutela dos jesuítas, uma instituição de altíssima qualidade: aí se ensinava filosofia, teologia, matemática, geografia, astronomia, latim, português, música e artes, uma verdadeira instituição de en-

sino superior, foco de difusão da cultura ocidental por terras chinesas e dos seus aliados. Ricci adotou os hábitos e os costumes do país, a indumentária dos altos funcionários e dos letrados, entusiasmouse pela cultura chinesa, estudou-a e divulgou-a. Os franciscanos, os primei ros missionários católicos do Oriente, assim como são Francisco Xavier, tentaram de início a abordagem catequética através de uma imagem de simplicidade e de pobreza, o que não teve sucesso na China nem no Japão; rapidamente entenderam que a nova doutrina teria que se impor como uma ideologia de homens cultos e bemsucedidos, respeitados e generosos, capazes de seduzir o povo pelo sucesso pessoal e pela autoridade que tinham sobre ele. Em 1589 Matteo Ricci introduziu o calendário gregoriano na China e em 1594 traduziu para latim os quatro livros do Cânone do Confucionismo, permitindo pela primeira vez o acesso dos ocidentais à filosofia de Confúcio (551-479 ac).

O jesuíta Matteo Ricci adotou os hábitos e costumes dos letrados chineses para melhor dialogar com os seus interlocutores. Foi o primeiro europeu a construir um observatório astronómico na China.

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Nesse mesmo ano o jesuíta decide viajar até Pequim, para junto do poder central da China, mas fica-se por Nanchang (hoje uma cidade com dois milhões de habitantes, capital da província de Jiangxi), onde intensifica os contatos com intelectuais chineses e escreve em 1595, em chinês, o Tratado sobre a Amizade, para dar a conhecer aos chineses a sabedoria ocidental, livro que teve um imenso sucesso entre os intelectuais. No ano seguinte escreve o Método de Aprender de Cor, um tratado sobre a memória e um método para aprender a memorizar a tradição oral segundo a lógica ocidental e publica ainda um catecismo mais elaborado intitulado Verdadeira Noção de Deus. Finalmente chega a Nanquim em 1598, já nomeado superior dos jesuítas na China e em 1600 está em Pequim, sendo recebido pelo imperador no ano seguinte. O encontro era vital para a fixação dos jesuítas na China e os missionários que acompanhavam Ricci ofereceram quantidade impressionante de presentes ao imperador Wanli (o 14º da dinastia Ming), qual deles o mais maravilhoso e original, mas o que mais impressionou o soberano foi um mapa-mundi desenhado pelo próprio Ricci, que mostrava pela primeira vez a China “no meio” das outras nações do planeta. Os chineses sempre consideraram o seu país como “o centro” do mundo e o presente, vindo de um estrangeiro, entusiasmou o imperador. Os jesuítas foram autorizados a construir uma residência, a abrir colégios e divulgar a cultura cristã, para o que até beneficiaram da generosidade imperial. Em 1605 Matteo Ricci estabeleceu contatos com a comunidade judaica local e iniciou a tradução para chinês dos Elementos de Euclides, permitindo assim aos chineses o acesso ao método da lógica dedutiva, à álgebra e à geome-

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tria ocidentais. Traduziu para chinês as principais orações do ritual católico e os princípios da moral cristã, auxiliado pelos padres portugueses que, em proveniência de Macau e de Goa, reforçaram a presença católica no império chinês. Em 1607 tentou socorrer o confrade Bento de Góis, que terminava uma das maiores aventuras de que há memória: o caminho por terra de Goa a Pequim, qualquer coisa como cinco mil quilómetros de carreiros. Exausto e doente, o jesuíta açoriano (nasceu em Vila Franca do Campo) não resistiria ao esforço e aos percalços da caminhada e morreu aos quarenta e cinco anos sem alcançar o destino, na cidade de Suzhou, a meio caminho entre Macau e Pequim. Nos últimos anos de vida, entre 16081610, Ricci redigiu a sua obra mais famosa e compêndio de referência para todos quantos pretendiam conhecer a China: A Entrada da Companhia de Jesus e do Cristianismo na China. Faleceu aos cinquenta e sete anos e o imperador autorizou que fosse sepultado em solo chinês, privilégio raro, já que os estrangeiros que faleciam na China tinham que ser enterrados fora do território (eram transladados para Macau). A comunidade cristã por ele formada cresceu sobretudo entre as elites intelectuais, ultrapassando os dois mil e quinhentos batismos. Ele é considerado pelos chineses um dos mais notáveis e brilhantes homens da história, o mestre do grande ocidente. No Museu da História da China, em Pequim, um dos maiores e mais extraordinários do mundo, só dois ocidentais mereceram figurar entre os grandes construtores do império: Marco Polo e Matteo Ricci. O padre João Rodrigues, natural de Sernancelhe (1560-1633), embarcou para o Oriente muito jovem, pelos catorze anos e lá ingressou na Companhia de Jesus; fez os estudos de fi-

losofia e teologia no colégio jesuíta de Nagasaki, foi ordenado padre em Macau e tornou-se um dos maiores conhecedores ocidentais da língua japonesa. Ele compôs o primeiro dicionário japonês-português (1603) e escreveu a primeira gramática da língua japonesa (1604). Para além de escrever uma história do cristianismo no Japão, que não é apenas uma história de religião mas uma verdadeira enciclopédia da cultura nipónica, o padre foi também comerciante, diplomata, político e intérprete junto dos estrangeiros que demandavam o país do sol nascente. A carreira promissora do padre terminou em 1610, no momento de um incidente infeliz com a nau do trato Nossa Senhora da Graça, também conhecida como Madre de Deus, destruída pelos japoneses na baía de Nagasaki, depois de um incidente mal resolvido em Macau. Em retaliação pela morte de soldados e marinheiros japoneses, a maioria dos padres foi expulsa do Japão e o comércio declinou. A presença dos missionários portugueses em Nagasaki terminou em 1639 e a história da vida deste jesuíta inspirou o romance Shogun de James Clavell, que deu origem à série televisiva e ao filme com o mesmo nome em 1980. Outro jesuíta que desempenhou um papel preponderante na China foi o padre Tomás Pereira (1645-1708), natural de Famalicão, que chegou a Goa com o vice-rei D. João Nunes da Cunha em 1666, ainda noviço, aos vinte e um anos, onde completou os estudos seguindo depois para Macau em 1672. Músico, astrónomo, matemático e diplomata, frequentava desde 1680 a corte do imperador Kangxi (o terceiro da dinastia Qing) e fez parte da delegação chinesa que assinou em 1689 o primeiro tratado de paz com uma nação europeia, a Rússia de Pedro I o Grande, soberano que modernizou e abriu o seu país à influência ocidental. O je-


Os portugueses e a expansão da cultura neolatina pelo oriente

suíta introduziu na China a música erudita europeia, construiu o primeiro órgão de tubos e montou o primeiro carrilhão numa igreja chinesa. Apesar de ter desempenhado a sua ação já numa fase decadente do poder económico e cultural português no oriente, o seu contributo para o intercâmbio cultural com a China foi brilhante, no tempo do reinado do mais extraordinário imperador de toda a história chinesa. Franciscanos como frei Paulo da Trindade e frei Jacinto de Deus, nascidos em Macau, foram notáveis divulgadores da ação missionária dos portugueses pelo oriente, em especial os das diferentes custódias da ordem a que pertenciam, pioneira na evangelização, já que desde as primeiras viagens à Índia foram os frades menores quem asseguraram o apoio religioso às frotas e aos primeiros núcleos de emigrantes. O choque cultural com as tradições chinesas provocou graves desentendimentos entre os missionários das diversas ordens religiosas e originou intervenções intempestivas do governo da igreja romana, o que levou por várias vezes à interdição temporária da prática cristã.

hoje diretamente da Santa Sé e conta cerca de vinte e nove mil fiéis espalhados por nove paróquias e missões. A China conta hoje cerca de um milhão e meio de católicos, um número muito reduzido dada a dimensão demográfica chinesa, aproximadamente o mesmo número de cristãos que em Ceilão (mas o Sri Lanka tem vinte milhões de habitantes e a China conta cerca de mil e trezentos milhões). Existem duas arquidioceses (Pequim e Nanquim) e duas dioceses (Hong Kong e Macau). No Japão contam-se atualmente cerca de meio milhão de católicos numa população de cento e vinte e cinco milhões e meio de habitantes. O país tem três arquidioceses (Tóquio, Osaka e Nagasaki) e catorze dioceses, algumas com menos de cinco mil aderentes. A génese e a continuidade desta presença cristã pelo oriente até aos nossos dias é indissociável da ação pioneira dos missionários portugueses e do padroado ultramarino. A primeira diocese chinesa foi a de Macau, criada em 1575 e a primeira diocese japonesa foi a de Funai, criada em 1588 (extinta em 1625 e restaurada como arquidiocese de Tóquio em 1891).

O cristianismo continuou na China através da intervenção dos padres franceses, até que em 1834 as dioceses chinesas foram desvinculadas do padroado português, restando somente Macau, donde tinha irradiado o cristianismo para todo o território chinês e da qual dependia também a igreja de Timor até à criação da primeira diocese em Dili (1940), por insistência das autoridades portuguesas no ano da grande exposição do mundo português e da comemoração dos oitocentos anos da nacionalidade. A diocese de Macau, que mantém atualmente uma universidade (Universidade de São José) em parceria com a Universidade Católica Portuguesa, depende

A presença portuguesa no oriente fez-se ao ritmo de um tremendo frenesim, sempre em guerra contra alguém, reformulando a cada oportunidade novas estratégias diplomáticas e comerciais, com milhares de navios costeiros, fustas, paraus e juncos correndo as costas e com centenas de naus pelas grandes rotas do Atlântico, do Índico e do Pacífico, de Lisboa ao Japão, dando nova vida a meia centena de cidades, feitorias e entrepostos que se conquistavam e se perdiam por vezes ao sabor das monções. Os mais ousados cidadãos do reino lá encontraram o espaço ideal para exibir valor e satisfazer ambições. Outros menos felizes perderam-se sem deixar

rastos. Quantos foram e voltaram? Quantos por lá ficaram? Ninguém jamais calculou quantos morreram em viagem nem quantos a guerra e a morte mataram. No meio de tanta guerra e confusão, os missionários conseguiram ressuscitar antigas comunidades cristãs e implantar novas estruturas que duram até aos nossos dias. A nossa história conta muitas miudezas e alguns momentos de glória – momentos sublimes de grandeza. A aventura oriental, que nasceu de um projeto profético assumido e que criou riquezas pessoais fabulosas, foi desastrosa financeiramente para o reino mas, como escreve Oliveira Martins, a nossa ruina foi o preço do maior ato da civilização nos tempos modernos. O maior génio da nossa identidade, o padre António Vieira, um mestiço irreverente, no meio do maior descalabro da nação, pregando em Roma na década de 70 do século XVII, imaginava ainda para os portugueses nada menos que o Vº Império do mundo e apregoava nos púlpitos da capital da cristandade que o planeta se tornara uma Feira Universal (expressão emprestada ao cronista João de Barros), qual Nova Malaca, cosmopolita e tolerante, no início de uma era de riqueza e de felicidade. O pregador augurava mais uma vez o reino consumado de Cristo, mil anos depois de um Apocalipse atribuído ao bispo Metódio de Olimpos o ter profetizado sob o poder de um soberano bizantino e etíope, imperador dos últimos dias, dominador do Islão e libertador de Jerusalém – o qual, após ter cumprido a missão profética, renunciaria à coroa. O rei amigo do pregador, que ocuparia o trono do Vº Império depois de ressuscitado conforme as mesmas profecias, já renunciara à coroa, para si e seus sucessores, havia vinte e cinco anos. Que faltaria então para que se cumprissem as profecias?

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A língua portuguesa, diferenciada da galega a partir de 1290, quando D. Dinis a impôs como idioma oficial da corte e da administração do reino, consolidou-se em 1516 com a publicação do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e normalizou-se com as gramáticas de Fernão de Oliveira (1536) e de João de Barros (1540). A consolidação e normalização da língua aconteceram ao mesmo tempo que ela se disseminava pelos novos espaços onde os

portugueses assentavam arraiais no século de ouro da expansão marítima, comercial e cultural. Permeável às influências linguísticas e fonéticas dos povos agregados, a língua assimilou quantidade impressionante de fonemas que a enriqueceram e globalizaram, enquanto fornecia às outras línguas novas sonoridades, num intercâmbio de exotismo sustentado e duradouro, numa diluição dinâmica e interativa. Surgiram mais de trinta idiomas

crioulos de origem portuguesa (muitos extintos) por espaços continentais e arquipélagos da América, África, Índia, Malásia e China. Com a língua viajaram, nos rumos de ida e de torna-viagem, mitos e virtudes de civilizações diferenciadas, valores que se tornaram globais e talvez seja essa universalidade que anuncia hoje a alvorada de um sonhado e profetizado Vº Império. A euforia não terminou, nem a pátria se perdeu. O sonho continua.

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A Casa de Macau do Rio de Janeiro na XI Reunión de Antropología del Mercosul em Montevidéu, Uruguai

Paloma Augusto Bolseira do Instituto Internacional de Macau / Real Gabinete Português de Leitura Autora do livro “As Festas da Casa de Macau do Rio de Janeiro”, co-edição IIM / Real Gabinete Português de Leitura

do Rio de Janeiro, em que saboreiam pratos típicos da cozinha macaense, preservando uma memória coletiva sobre Macau entre os membros pertencentes a esta comunidade.

Em dezembro de 2015, na XI Reunión de Antropología del Mercosur, apresentei os resultados da pesquisa que realizei como antropóloga e investigadora bolsista do Real Gabinete Português de Leitura em parceria com o Instituto Internacional de Macau, que resultou também na publicação de As Festas da Casa de Macau do Rio de Janeiro, livro lançado em outubro de 2015 também pelo Real Gabinete e pelo Instituto Internacional de Macau. Na minha apresentação no Uruguai, intitulada Comunidade Macaense no Rio de Janeiro: festas, identidade, pertencimento e memória, destaquei a importância das festas vivenciadas pela comunidade macaense no Rio de Janeiro para a preservação de aspectos da cultura e da identidade macaenses, como a sua culinária, bem como a centralidade que a instituição Família possui para esta comunidade, uma vez que os laços entre as famílias macaenses são reforçados nas festas da Casa de Macau

Os demais antropólogos presentes na seção da RAM Migrações, Memórias e Identidades, no âmbito do GT Migrações, Disputas e Legitimações, se mostraram bastante interessados pelos resultados da pesquisa por mim realizada no âmbito do Real Gabinete e do Instituto Internacional de Macau e alguns deles receberam exemplares do livro As Festas da Casa de Macau do Rio de Janeiro, para melhor apreciação.

po de estudos migratórios, Eduardo de Jesus (UCS), apresentando pesquisa sobre a influência dos jesuítas nos processos migratórios e Irene Portela (UFF) apresentando pesquisa sobre trajetórias de migração do nacional português. Presentemente desenvolvo uma nova pesquisa vinculada ao NARUA – Núcleo de Antropologia das Artes, Ritos e Sociabilidades Urbanas da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Nilton Santos, e pretendo conhecer em breve outras casas de Macau em outras cidades ao redor do mundo, interessando-me pelas temáticas da identidade e da cultura macaenses e do papel desempenhado pelas relações entre famílias, pelas festas e pela culinária na sociabilidade macaense.

Entre os presentes estavam as antropólogas Miriam dos Santos (UFRRJBrasil) e Marta Maffia (Universidad Nacional de La Plata – Argentina), coordenadoras do GT, Zeila de Brito D e m a r t i n i (UMESP/CERU) apresentando pesquisa sobre memórias de portugueses e luso-africanos, Nicolás Herrera (UNLP-Argentina) apresentando pesquisa sobre o uso de festas Alguns dos antropólogos presentes. Da esquerda para a direita: como objeto de Paloma Augusto, Zeila de Brito Demartini, Nicolás Herrera, Irene pesquisa no cam- Portela e Miriam dos Santos.

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CCCM - Centro Científico e Cultural de Macau Uma breve apresentação

Luís Filipe Barreto Presidente do Centro Científico e Cultural de Macau, I.P.

I. O Centro Científico e Cultural de Macau é um instituto público do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal, acerca de matérias asiática e eurasiática. É um Centro de Ciências Sociais e Humanidades com especializada investigação e cooperação, publicação, formação e divulgação. Possui para públicos específicos um singular Museu histórico-cultural sobre a emergência de Macau e acerca de arte e cultura chinesas bem como uma única e especializada Biblioteca de investigação acerca de China, Ásia Oriental, Macau e relações Eurasiáticas. Criado em 1999, viveu sob três presidências: Engª. Alexandra Costa Gomes, 1999/2002; Vice-Almirante Luis Mota e Silva, 2003/inícios de 2006; a partir de maio de 2006, Professor Doutor Luis Filipe Barreto. Uma vida com bem diferentes ciclos desde a criação e potenciação até à afirmação. II. O Centro Científico e Cultural de Macau é um centro de investigação em cooperação que articula Investigadores, Centros e Universidades da Europa, da Ásia e da América em torno de projetos comparados e integrados de história, sociologia, antropologia, geografia, economia acerca da Ásia, do Indico ao Pacífico e das relações eurasiáticas do passado ao presente. A partir de 2006-2007 esta rede de investigação, inter e multidisciplinar,

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nas áreas das Ciências Sociais e Humanidades foi crescendo contando hoje com mais de 150 investigadores associados em conexão com Portugal/CCCM articulando Universidades estrangeiras como Harvard, Munique, Lovaina, Beijing, Tóquio, Seoul, Paris/EHESS, Roma “La Sapienza”, Hong Kong, Berkeley, Pennsylvania, Texas, Temple, Brown, Boston, Nápoles “Orientale”, Barcelona, Pádua, Chieti, Viterbo, Sevilha, Barcelona, U. Nacional Australiana – Sidney, Cantão, Macau, Instituto Politécnico de Macau, etc., e centros estrangeiros como o CNRS, Instituto de História Nacional de Taiwan, Academias das Ciências Naturais e das Ciências Sociais de Beijing, Instituto Max Planck, Centro de História das Ciências China-Portugal em Beijing, Instituto de Sociologia e Centro de Estudos de Psicologia Social da Universidade de Beijing, Instituto de Arte da Sotheby’s, Museu de História da Ciência de Nagasáqui, etc. III. Esta rede de investigação em cooperação, às escalas nacional e internacional, manifesta-se de forma mais visível nos laboratórios vivos de investigação, diálogo e controvérsia que são os Colóquios. Nos últimos 10 anos o CCCM levou a cabo 15 colóquios em Portugal, Macau, Beijing com problemáticas que vão desde Macau à Globalização, da Tradução e Interpretação às cidades portuárias asiáticas ou ao pa-

trimónio chinês em Portugal, Europa, Brasil. Nestes 10 últimos anos o CCCM, a propósito de Macau, China, Ásia Oriental, relações eurasiáticas, conseguiu congregar mais de uma centena e meia de investigadores de Portugal, Espanha, França, Itália, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Croácia, Roménia, Grécia, Estados Unidos, México, Brasil, China, Hong Kong, Macau, Taiwan, Coreia, Japão. IV. Toda esta investigação nacional e internacional levou à produção pelo CCCM, nestes últimos dez anos, de 55 publicações de investigação específica, atualizada e de padrão internacional em línguas portuguesa, inglesa, chinesa, alemã, espanhola, italiana. Estudos de caso sobre Macau e China, atas de Colóquios Internacionais e Nacionais, Fontes (acerca de Macau, Ásia e das relações interculturais Portugal-China), manuais (desde os didáticos de Língua e Cultura Chinesa até aos universitários internacionais acerca da Deusa Mazu-Ama), catálogos especializados sobre arte e património chineses, etc., formam, possivelmente, um dos legados mais duradouros deste Instituto Público. V. A formação, sobretudo a de Ensino Superior de padrão internacional, é outra das missões estratégicas do CCCM. Desde 2006-2007 funciona como acelerador e potenciador aca-


Os nossos parceiros

démicos nos domínios de China, Macau, Estudos Asiáticos contribuindo para a institucionalização destas problemáticas e para a multiplicação de licenciaturas, mestrados e doutoramentos nestes domínios. A divulgação, a missão de criar uma base social mais alargada de interesse e de procura de conhecimento e de informação credibilizada acerca de Macau, Ásia, relações Eurasiáticas fez com que o CCCM, nestes últimos dez anos, criasse quatro exposições de referência (assentes em investigação de equipes nacionais e internacionais) acompanhadas de especializados catálogos em línguas portuguesa, inglesa, chinesa. Originou também uma carteira de quatro exposições itinerantes, 19 exposições conjuntas em cooperação com múltiplas instituições chinesas via Embaixada da República Popular da China em Portugal e uma exposição em coorganização com o Instituto Cultural da RAEM/Macau agendada para outubro de 2016. Fez com que levasse a cabo dezenas de cursos livres e de conferências.

o centro de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o Centro de História da Universidade de Lisboa, o CHAM da Universidade Nova de Lisboa, a Federação Chinesa de Círculos Literários e Artísticos e Institutos como o Instituto Cultural da RAEM/Macau da República Popular da China os Institutos Politécnicos de Lisboa e Macau o Instituto Internacional de Macau bem como Fundações como a nacional Fundação Jorge Álvares e a Fundação Macau da RAEM/Macau da República Popular da China. O CCCM é investigação, publicação, formação, divulgação em cooperação graças a todas estas parcerias. Algumas das mais recentes publicações do CCCM.

Entre 2006 e 2016, 15 colóquios, 56 publicações científicas (e mais 37 culturais), 28 exposições, mais de meia centena de cursos, cadeiras, seminários de formação avançada são números que revelam a Missão deste Instituto Público do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal VI. A cooperação alargada com o mais diverso tipo de instituições nacionais e internacionais é uma das imagens de marca do CCCM a partir de 2006. Embaixadas em Portugal como as da República Popular da China, Japão, República da Coreia, Índia, Filipinas, México, Peru, Itália, etc., tornaram-se estratégicas para o CCCM. Não menos fundamental é a cooperação com centros como

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IIM – 2015: um ano de actividades Exposições EXPOSIÇÃO COMEMORATIVA DO 15º ANIVERSÁRIO DA RAEM Correspondendo a uma solicitação do Governo da RAEM, o IIM associou-se às comemorações do 15º Aniversário da Região Administrativa Especial de Macau, com o apoio financeiro da Fundação Macau. A nossa parte das comemorações teve lugar mormente no exterior, sem descurar uma pequena mostra, feita em Macau, a pedido de interessados, que obteve o apoio e se realizou nas instalações do Consulado-Geral de Portugal. Cerca de 50 fotografias, com aspectos variados de Macau, do património ao desenvolvimento físico, das gentes às festividades, compõem a exposição que foi levada a Portugal, ao Brasil, ao Canadá e aos Estados Unidos da América.

Lisboa.

convidados na inauguração do evento, tendo havido também em alguns locais sorteio de prémios para os numerosos visitantes que participaram na exposição. Esta foi patente no Centro Científico e Cultural de Macau em Lisboa até ao mês de Agosto, e em Toronto, durante seis fins-de-semana em diversas localidades, no distrito de Markham e na Chinatown; no Centro Cultural de Macau em Fremont e na cidade de Oakland, numa zona onde residem muitos chineses.

Oakland, Califórnia.

O ciclo iniciou-se em Junho, quase simultaneamente em Lisboa, São Francisco e Toronto, com essa exposição, intitulada “Macau - Uma História de Sucesso”; com a apresentação do livro "Macau - Festas e Festividades", o qual constitui um guião, profusamente ilustrado, das múltiplas festas e festividades integradas no calendário cultural anual da RAEM; e com a projecção de duas curtas metragens, uma filmada do ar com ângulos visuais pouco comuns, da autoria de Sérgio Basto Perez, e outra da Companhia de Produção Efficient, de Silvie Lai e James Jacinto, especialmente preparada para o efeito. Tanto o livro como um DVD contendo os dois filmes foram oferecidos aos

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Macau.

No Brasil, a exposição decorreu em Santos, com a presença de uma larga comitiva da Casa de Macau de São Paulo, dos participantes na Convenção do Elos Internacional e do Presidente do Centro Cultural Português,


IIM – 2015: um ano de actividades

Macau.

Rio de Janeiro.

tendo as fotografias sido depois doadas à Casa de Macau de São Paulo. No Rio de Janeiro, a exposição contou com a presença do Cônsul-Geral da República

Conseguiu-se a colaboração do Prof. Ming K. Chan, da Universidade de Stanford, para fazer uma palestra em S. Francisco, e do Dr. Sérgio Perez que foi convidado para se deslocar a Toronto para uma apresentação do seu filme e para falar da sua experiência. Colaboraram neste evento o Centro Científico e Cultural em Lisboa, o Portugal Macau Institute of America, a Casa de Macau na California, o Lusitano Club da California, a União Macaense Americana (UMA), o Club Amigu di Macau (Toronto) e o Elos Internacional. Até ao final do ano, foi ainda realizado um evento adicional em Toronto, desta vez sob a égide da Casa de Macau (Toronto). Esta exposição de fotografias do IIM continuará o seu périplo por cidades portuguesas e brasileiras, levando o nome de Macau a cidades de várias partes do mundo, prevendo-se que a sua itinerância possa extender-se à Austrália para corresponder às solicitações já feitas por diversas instituições académicas, culturais e recreativas. Deixamos aqui uma nota de apresentação da exposição: “Esta cidade multicultural deve ser vista em todos os seus aspectos para se entender como, em 15 anos, pôde sofrer uma transformação tão profunda sem, no entanto, perder as suas raízes”.

Santos.

Popular da China, membros de associações portuguesas e sócios da Casa de Macau no Rio de Janeiro. No Recife, ela foi apresentada no Gabinete Português de Leitura, numa sessão solene, e integrada nas comemorações do aniversário deste gabinete.

EXPOSIÇÃO “MACAU É UM ESPECTÁCULO” Esteve patente, entre os meses de Fevereiro e Março de 2015, a exposição fotográfica “Macau é um Espectáculo – As Artes nas Ruas de Macau” no Hospital da Prelada, da Santa Casa da Misericórdia do Porto.

Rio de Janeiro.

A mostra incluiu mais de 50 fotografias da autoria de membros da Associação de Fotografia de Macau, as quais estão em itinerância por Portugal e pelo Brasil,

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Inauguração da exposição e premiados.

com o apoio da Fundação Macau. A inauguração da exposição ocorreu no dia 11 de Fevereiro e contou com a presença do Vice-Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, Dr. Canto Moniz, e de outros responsáveis do estabelecimento hospitalar.

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIAS DO CONCURSO SOBRE O PATRIMÓNIO DE MACAU NO TAP SEAC Foi realizado um concurso de fotografias, de Fevereiro a Agosto, sobre o Património de Macau (material e imaterial), em co-organização com a Associação de Fotografia Digital de Macau e do Clube Leo Macau Central,

A sessão de inauguração de uma exposição dos trabalhos premiados e a entrega dos respectivos prémios aos vencedores do concurso decorreram no dia 14 de Novembro, com a presença do presidente da Fundação Macau, Wu Zhiliang e do presidente do Instituto Internacional de Macau, Jorge Rangel. A exposição dos trabalhos premiados contou com o apoio institucional da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, tendo decorrido, entre os dias 14 a 19 de Novembro, no pavilhão de exposições e espectáculos artísticos para jovens, no edifício da Caixa Escolar, na praça do

Concurso de fotografia - Júri.

com o patrocínio da Fundação Macau. Este concurso, que repetiu a iniciativa do ano anterior, teve como objectivo sensibilizar a comunidade, especialmente os jovens para a defesa e valorização do património.

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Tap Seac. Foram membros do júri deste concurso Lei Chung-Kei, Yen Kuacfu, Yuen Wai Man, Si Wun Cheng, Au Thien Yn, Sérgio Perez e António Monteiro.


IIM – 2015: um ano de actividades

Seminários, Colóquios e Conferências SÉTIMA EDIÇÃO DO SEMINÁRIO “O PAPEL DE MACAU NO INTERCÂMBIO SINO-LUSO-BRASILEIRO” Teve lugar no dia 23 de Outubro a sessão inaugural, no Rio de Janeiro, do VII Seminário “O Papel de Macau no Intercâmbio Sino-Luso-Brasileiro”, na Escola Superior de Guerra, seguindo-se uma outra no Centro Científico e Cultural, em Lisboa, onde se debateu o papel de Macau como plataforma de negócios e a inovação no modelo de cooperação entre a China e os países de língua portuguesa. O evento contou com a co-organização do Instituto Brasileiro de Estudos da China e Ásia-Pacífico (IBECAP) e do Instituto Internacional Macau (IIM). A de Pequim realizou-se no dia 3 de Dezembro, no Centro de Estudos dos Países de Língua Portuguesa da Universidade de Economia e Negócios Internacionais (UIBE, em inglês). Gong Tao, Director Geral Adjunto do Departamento de América Latina e das Caraíbas do Ministério das Relações Exteriores da China, destacou

Pequim.

a importância do Brasil para a China e reafirmou o papel de Macau como elo de ligação entre os dois países. Esteve presente o professor Severino Cabral, presidente do IBECAP - Instituto Brasileiro de Estudos de China e Ásia-Pacífico (IBECAP), que realçou a importância de Macau em acompanhar as mudanças no mundo, principalmente as mudanças em curso na China e no Brasil, apostando na contínua cooperação. A iniciativa “Uma faixa e uma rota” transformará o modelo de mundialidade, assim como o panorama da economia global. Augusto César Batista de Castro, Primeiro Secretário da Embaixada do Brasil na China, referiu a importância de Macau na cooperação entre a China e os países de língua portuguesa: “O Brasil reconhece o Fórum de Macau como um mecanismo de cooperação importante e fundamental, que gera enormes oportunidades para todos os países membros”. Por fim, o presidente do Instituto Internacional de Macau, Jorge Rangel, lembrou a necessidade de reafirmar o papel de Macau como cen-

Rio de Janeiro.

Macau, com o Dr. Rui Cunha.

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tro mundial de turismo e lazer, com especial destaque para a indústria do jogo, importante fonte de receitas do território; fortalecer o papel de Macau como centro de formação na China e o seu papel como plataforma de negócios e cooperação entre a China e os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). O presidente do IIM lembrou ainda que Macau, para além dos negócios e da economia, tem desempenhado importante papel na formação de quadros em áreas como administração pública, turismo, saúde, recursos humanos, ciência e tecnologia, comunicação e acção cultural. Jorge Rangel destacou que o facto de em Macau se falar português gera oportunidades únicas para o conhecimento mútuo entre a China e os países da CPLP, favorecendo a execução da política de “um país, dois sistemas”. O Seminário prosseguiu em Macau, em seguida, na Fundação Rui Cunha, com palestra sobre o tema ”A Nova Mundialidade e a emergência do mundo meridional”. A apresentação foi efectuada pelo professor Severino Cabral, que fez o balanço da série de seminários realizados no Rio de Janeiro, em Lisboa e em Pequim. Severino Cabral fez uma abordagem profunda de questões relacionadas com o papel inquestionável e relevante assumido pela China e por outras potências emergen-

Macau.

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tes. Nesta última sessão, usou também da palavra José Medeiros, professor de Português em Hangzhou, para expressar as suas longas vivências e experiências numa China em transformação. Entretanto, o Vice-Presidente do IIM participou, no Recife, em mais um edição do FESTLATINO que decorreu na Universidade Católica do Recife.

III ENCONTRO DE POETAS LUSÓFONOS E CHINESES EM LISBOA Entre 1 e 4 de Junho decorreu o III Encontro de Poetas Lusófonos e Chineses em Lisboa – uma parceria que envolveu o Centro Nacional da Cultura, a Fundação Jorge Álvares e o Instituto Internacional de Macau, com o apoio da Fundação Macau. Este encontro reuniu professores universitários lusófonos e chineses e também poetas.

Durante as sessões de trabalho, os responsáveis das entidades organizadoras, Guilherme d’Oliveira Martins, Carlos Melancia e Jorge Rangel, destacaram a importância do evento cultural, assim como a manutenção desta colaboração, dando lugar à possibidade de se repetir o encontro nos próximos dois anos. Efectuou-se ainda uma sessão extraordinária com poetas no Instituto Confúcio, uma iniciativa complementar deste Encontro, também levada a efeito em Lisboa. Esta iniciativa permitiu um diálogo enriquecedor entre professores e estudantes, com momentos musicais protagonizados por jovens de Almada, tendo sido evocadas obras de poetas de Macau. Foram mais uma vez reforçadas as relações da China com o mundo lusófono neste encontro cultural, através da importância e do significado da poesia.


IIM – 2015: um ano de actividades

Prémios

PRÉMIO IDENTIDADE 2015

PRÉMIO JOVEM INVESTIGADOR DE 2014

Com mais de 80 anos de história, o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes é o 13º galardoado com o “Prémio Identidade”, uma distinção conferida no dia 7 de Dezembro de 2015 pelo Instituto Internacional de Macau (IIM).

Na sequência do processo de atribuição do “Prémio Jovem Investigador” de 2014, decorreu no dia 14 de Janeiro de 2015, no Instituto Internacional de Macau, a cerimónia da entrega dos correspondentes prémios aos vencedores do concurso que contou com a presença dos membros do júri, Mok Kai Meng e Eilo Yu Wing Yat, professores da Universidade de Macau.

O IIM atribuíu este prémio à referida instituição por ter tido um papel activo na manutenção de um sistema educativo de matriz portuguesa e no desenvolvimento de actividades que fortaleceram a importância da língua e da cultura portuguesas, contribuindo sobretudo para a preservação da identidade macaense. O “Prémio Jovem Investigador” de 2014, na área de Ciências Sociais, foi atribuído a U Hio Tong, mestre pela Universidade de S. José, com um trabalho intitulado “Feasibility Analysis – Upper-Floor Store and/or Alternative Locations for Business Operations in Macao”. Já o jovem Wong Ka In, doutorando em Engenharia Electromecânica, da Universidade de Macau, recebeu, com o seu trabalho “Design, Calibration and Control of a Variable Dual-fuel Automotive Engine using Computational Intelligence Approaches”, o prémio na área de Ciências Aplicadas. O prémio Jovem Investigador visa incentivar universitários e jovens académicos locais, com idade até aos 30 anos, a realizarem trabalhos de investigação sobre questões de interesse para Macau e para a sua formação, e vem sendo atribuído desde o ano de 2000 pelo Instituto Internacional de Macau. Além de um certificado, os vencedores recebem um prémio pecuniário de $25.000 e a eventual publicação do trabalho apresentado. No Concurso de 2015, não foi atribuído o prémio nas áreas de Economia e de Gestão e de Património e Identidade Cultural.

A cerimónia da entrega do prémio decorreu no Jardim de Infância, onde houve espaço para duas actuações de dança dos alunos do primeiro escalão (três anos) e ainda um chá gordo com muito convívio entre amigos, educadores, pais e alunos. A sessão foi orientada pelo presidente do IIM, Jorge Rangel, com a presença de Vera Gonçalves, directora do Jardim de Infância D. José da Costa Nunes, Leong Vai Kei, da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, José Rodrigues, Presidente da Associação Promotora de Instrução dos Macaenses, e Lurdes de Souza, presidente da Associação dos Pais.

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Visitas VISITA DE ESTUDANTES DOS E.U.A. AO IIM No dia 16 de Junho de 2015, o IIM recebeu a visita de um grupo de estudantes e professores da Universidade “State University of New York (SUNY) College”, de Geneseo, orientada pelo professor Tze Ko Hon. Apesar da visita de um só dia a Macau, estes estudantes ficaram com uma experiência enriquecedora desta cidade, essencialmente da sua história e cultura.

VISITA DE CORTESIA DE JOSÉ CESÁRIO AO IIM A Direcção e colaboradores do IIM receberam, no dia 24 de Setembro de 2015, o Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, Dr. José Cesário. O encontro centrou-se na apreciação de assuntos sobre a comunidade portuguesa em Macau e o relevante papel desempenhado pelas instituições de matriz portuguesa. No final da sessão, o IIM ofereceu a José Cesário algumas das suas mais recentes publicações.

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IIM – 2015: um ano de actividades

VISITA DO IIM AO CONSULADO-GERAL DE PORTUGAL EM MACAU A direcção do IIM apresentou cumprimentos ao CônsulGeral, Dr. Vítor Sereno, no dia 13 de Abril de 2015. A visita teve enfoque na contínua sintonia com a essencial vocação macaense de diversidade, abertura, convívio, inovação e progresso, e nela foram reafirmados os propósitos de cooperação do IIM com o Consulado.

VISITA DA PROF.ª MARIA JOSÉ MAYA A MACAU No âmbito das Comemorações dos 8 Séculos da Língua Portuguesa, esteve em Macau, no mês de Abril de 2015, a convite do IIM, a presidente da Direcção da respectiva Associação, Prof.ª Maria José Maya. Apesar do tempo limitado, Maria José Maya teve oportunidade de enriquecer experiências junto de várias instituições locais, de matriz portuguesa. Na Universidade de S. José, onde trocou impressões com os responsáveis sobre os cursos ligados à língua portuguesa, a vice-reitora, Professora Maria Antónia Espadinha, promoveu uma sessão de perguntas/respostas com professores dos cursos em português, discutindo vários pontos de interesse sobre o futuro da língua de Camões. A Prof.ª Maya conheceu ainda o Instituto Português do Oriente (IPOR), onde se inteirou do esforço das instituições de matriz portuguesa inseridas em Macau e da estreita ligação com Portugal e outros países lusófonos. As sessões de intervenção da Professora Maria José Maya tiveram lugar no dia 9 de Abril de 2015, no auditório da EPM e no Consulado Geral de Portugal em Macau e Hong Kong. Falou sobre os desafios que a língua portuguesa enfrenta e o seu futuro como língua da ciência. Alunos da escola declamaram poemas, em comemoração dos 80 anos da morte de Fernando Pessoa. Visitou ainda a Casa de Portugal em Macau, a quem reiterou a possibilidade de vir a colaborar em actividades e na vinda de artistas portugueses a Macau. Maria José Maya conheceu ainda o Instituto Politécnico de Macau (IPM), e deu uma entrevista à Teledifusão de Macau (TDM), promovendo a sua associação, os trabalhos efectuados e a positiva impressão que colheu das instituições de Macau.

Outras Actividades INAUGURAÇÃO SHIP

DO INSTITUTO

LUÍS GONZAGA GOMES

NA

No dia 24 de Junho de 2015 inaugurou-se o Instituto Luís Gonzaga Gomes, no Palácio da Independência, em Lisboa. No acto inaugural, foi feita uma palestra sobre a vida e a obra do escritor e historiador macaense Luís Gonzaga Gomes, pelo Presidente do Conselho Supremo da Sociedade Histórica da Independência de Portugal (SHIP) e Presidente do IIM, Jorge Rangel. Esta sessão teve como objectivo apresentar o novo instituto que, integrado na estrutura da SHIP, irá desenvolver actividades ligadas a Macau e à presença portuguesa no Oriente, na forma de estudos, conferências, exposições e edições. Durante a sessão, foi destacada a estreita colaboração entre as duas instituições, sendo o IIM membro extraordinário e honorário da SHIP. A SHIP deixou a mensagem da possibilidade do desenvolvimento de actividades com outras entidades da mesma matriz.

CONVÍVIO

NA

CASA

DE

MACAU

DO

RIO

DE

JANEIRO

Aproveitando uma deslocação ao Brasil, o presidente e o vice-presidente do IIM tiveram um convívio na Casa de Macau do Rio de Janeiro, onde foi lançado o livro “As festas da Casa de Macau do Rio de Janeiro”, edição do IIM com a colaboração daquela Casa. Foram ainda apresentados três vídeos e as publicações “Macau - Festas e Festividades”, de Gonçalo César de Sá e “Macau-Recife - Duas Cidades, Dois Mundos, Duas Histórias, Relações e Contrastes”, de José Manuel Fernandes.

COMISSÃO TEMÁTICA DE PROMOÇÃO E DIFUSÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA DA CPLP O IIM esteve também presente, como co-organizador, em três seminários da Comissão Temática de Promoção e Difusão de Língua Portuguesa da CPLP, um dos quais no Museu de Língua Portuguesa em São Paulo, outro integrado na Convenção do Elos Internacional, em Santos, e o terceiro no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro. Nesta última instituição, onde decorriam actos comemorativos do bicentenário do estabelecimento do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, foi

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lançado um opúsculo do IIM sobre o papel de Macau neste contexto.

da RAEM com os países de língua portuguesa e o desenvolvimento de Macau nestes últimos anos, tendo também destacado a cultura macaense, terminando com a leitura do poema de José Santos Ferreira, mais conhecido por Adé, que homenageia o Brasil.

RECOLHA DE ELEMENTOS DA HISTÓRIA ORAL DE MACAU

S. Paulo.

Este seminário contou com várias intervenções, entre as quais uma do reitor da Universidade de Coimbra, de membros de Academia Brasileira de Letras e do presidente do IIM, Jorge Rangel, com o tema “Língua e Cultura no Extremo Oriente: um legado valorizado”. Jorge Rangel enalteceu a ligação

Prosseguindo uma tarefa iniciada no ano anterior, o IIM está a recolher depoimentos de pessoas idosas que ainda se lembram de factos interessantes da vida de Macau e que estejam disponíveis para serem filmadas. Estes elementos têm sido enviados para a Fundação Macau para um arquivo e para eventual tratamento num projecto de página electrónica intitulada “Memória de Macau”. Recolhemos até à data cerca de 12 horas de gravação.

APOIO À PÁGINA “MACANESE FAMILIES” Esta página electrónica, anteriormente premiada pelo IIM e mantida pelo Prof. Henrique d’Assumpção, foi objecto de um apoio para a aquisição de software e de equipamento, visando valorizar o seu funcionamento futuro, tendo-se o IIM disponibilizado a estabelecer a respectiva ligação com o Conselho das Comunidades Macaenses.

FEIRA DO LIVRO NA ESCOLA PORTUGUESA DE MACAU Santos.

A habitual feira do livro na Escola Portuguesa de Macau decorreu entre os dias 3 a 5 de Dezembro, tendo o IIM participado com uma mostra das suas edições, que foram vendidas durante a feira.

ARRAIAL DE S. JOÃO 2015

Rio de Janeiro.

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O Dia de S. João voltou a ser festejado no bairro de S. Lázaro, com a organização da Associação dos Macaenses, Casa de Portugal, Instituto Internacional de Macau, Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau e Associação Promotora da Instrução dos Macaenses, e o apoio da Direcção dos Serviços do Turismo.


IIM – 2015: um ano de actividades

No fim-de-semana de 27 e 28 de Junho teve lugar o habitual arraial, com muitas actuações no palco de artistas, danças e conjuntos musicais.

DIA DE PORTUGAL, DE CAMÕES COMUNIDADES PORTUGUESAS

E DAS

O IIM participou no dia 10 de Junho de 2015, no Jardim de Camões, na celebração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Com a presença do Secretário de Estado da Justiça de Portugal e do Cônsul-Geral de Portugal, este evento contou com a participação de instituições de matriz portuguesa, com destaque para a Escola Portuguesa de Macau.

No recinto repleto de jogos populares e de artesanato, a tenda do IIM não deixou de vender também as suas edições, tendo ainda lugar para o concurso da chiquia, em que foram entregues prémios aos participantes do concurso.

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Lançamentos de novas Publicações “MACAU E A NOVA ACLAMAÇÃO DE D. JOÃO VI COMO REI DO REINO UNIDO DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES (1818)”

A obra, que constituiu a tese de mestrado da Prof.ª Beatriz Hernández na Universidade Católica Portuguesa, foi lançada em Junho nesta universidade, em Lisboa, com a apresentação de Jorge Rangel e Jorge Santos Alves, em cerimónia presidida pela Prof.ª Isabel Capeloa Gil, Reitora da UCP.

“CHINA NA GRANDE GUERRA”

Esta separata da revista “Oriente/Ocidente” foi lançada em Lisboa, durante o “Colóquio Comemorativo dos 200 anos do Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves”, organizado pelo Centro Europeu de Estudos de História Constitucional, a Comissão Portuguesa de História Militar e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal (SHIP), no Palácio da Independência, e também no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, no Rio de Janeiro.

“MAO, CHINA Y LOS ‘OTROS’”

A sessão de lançamento do livro “China na Grande Guerra”, de Luís Cunha, ocorreu em Janeiro, no auditório do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. Obra de grande importância, é explicado o papel da China na 1.ª Grande Guerra.

“MAKING IMPRESSIONS”

“Making Impressions - A Portuguese family in Macau and Hong Kong, 1700-1945” foi lançado pelo IIM em Macau e em Hong Kong, em Outubro, no Consulado-Geral de Portugal e no Club Lusitano em Hong Kong. Esta obra de Stuart Braga baseia-se na sua tese de doutoramento apresentada na Universidade Nacional da Austrália e conta a história de duas famílias que se instalaram em Macau e se entrelaçaram. Os seus antepassados (entre os quais José P. Braga e Jack Braga) participaram no estabelecimento da colónia inglesa de Hong Kong.

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IIM – 2015: um ano de actividades

“SAGRES – A NOSSA BARCA”

O livro é “uma significativa contribuição para compreendermos quanto as gentes de Macau alcançaram no seu notável percurso” ao longo da história. A apresentação da obra em Macau ficou a cargo de José Luís Sales Marques, presidente do Instituto de Estudos Europeus, e, em Hong Kong, do Juiz Barnabas Fung, no Club Lusitano.

O IIM, entre outras entidades, apoiou a publicação e a feitura deste álbum de fotografias de Joaquim Magalhães de Castro que o apresentou em Maio, no Consulado-Geral de Portugal em Macau.

Assembleia Geral do IIM (Abril 2015)

Como sucede todos os anos desde a sua fundação, o Instituto Internacional de Macau reuniu a sua Assembleia Geral anual com vista a debater e aprovar o Relatório de Gestão e as Contas do exercício de 2014, tendo também avaliado as variadas iniciativas e eventos que desenvolveu nesse ano. Como é hábito, a assembleia decorreu na sede do IIM em Macau, tendo um grande número de associados residentes fora da RAEM feito representar-se através de procurações.

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Edições IIM – 2015 COLECÇÃO “MOSAICO”

Vol. XXXIV – Álvaro Semedo A Educação na China Imperial AUTOR: António Aresta

Afirmou António Aresta, Álvaro Semedo (1585-1658) “é uma figura maior da sinologia portuguesa e europeia”. Nascido em Nisa, foi em Macau que aprendeu chinês e que começou a investigar a cultura e história chinesas. A sua obra mais marcante, Relação da Grande Monarquia da China, só veio a ser integralmente traduzida para português três séculos depois, por Luís Gonzaga Gomes.

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Vol. XXXVII – “Recife Macau: Duas cidades, dois mundos, duas histórias, relações e contrastes” (2.ª Edição)

Vol. XXXVIII – “As Festas da Casa de Macau do Rio de Janeiro”

AUTOR: José Manuel Fernandes

AUTORA: Paloma Maria Rodrigues Augusto

“Recife – Macau: duas cidades, dois mundos, duas histórias, relações e contrastes”, de José Manuel Fernandes, catedrático de História da Arquitectura e do Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. Trata-se de uma edição conjunta do IIM, da Companhia Editora de Pernambuco e do Movimento Festlatino. Este excelente trabalho constitui um exemplo da cooperação entre a Região Administrativa Especial de Macau, o Estado de Pernambuco e a cidade do Recife.

Da autoria de Paloma Maria Rodrigues Augusto, este livro relata as festividades que a comunidade macaense no Rio de Janeiro realiza na sua Casa de Macau e constitui um trabalho de investigação de Mestrado que foi objecto de uma bolsa de investigação do Instituto Internacional de Macau e do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, com a colaboração do IBECAP - Instituto Brasileiro de Estudos de China e Ásia-Pacífico.


Edições IIM – 2015

COLECÇÃO “MOSAICO”

Vol. XXXIX – “Momentos do Intercâmbio Comercial e Cultural com o Oriente” AUTOR: António de Abreu Freire

COLECÇÃO “SUMA ORIENTAL”

Joaquim Guerra S.J. (1908-1993) – Releitura universalizante dos Clássicos Chineses AUTOR: António José Bezerra de Menezes Jr

António de Abreu Freire descreve um dos maiores enigmas da história do Império Português. “Momentos do Intercâmbio Comercial e Cultural com o Oriente” é um contributo para a memória de cinco séculos de relações entre povos e culturas diferentes, focando-se no intenso contributo de Portugal para a expansão dos valores ocidentais, essencialmente na propagação do cristianismo pelo Oriente e na influência linguística e cultural.

Joaquim Guerra foi um dos mais destacados missionários portugueses que actuaram na China no século XX, tendo passado a maior parte da sua vida no Oriente, particularmente em Macau, durante a administração portuguesa. Desenvolveu, para além das actividades missionárias, um inédito trabalho de tradução dos clássicos chineses e escreveu um importante dicionário chinês-português, que se tornou o instrumento principal no seu trabalho de tradução.

Macau Confidencial AUTOR: João Guedes

Da autoria de João Guedes, “Macau Confidencial” retrata eventos e personalidades pouco conhecidos que moldaram a cena política de Macau entre os finais do século XIX e princípios do século XX. A obra reúne um conjunto de crónicas do autor publicadas no jornal “Tribuna de Macau”.

Este trabalho constitui a tese de doutoramento do autor na Universidade de S. Paulo.

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COLECÇÃO “FALAR DE NÓS”

Falar de Nós – X: Macau e a Comunidade Macaense – Acontecimentos, Personalidades, Instituições, Diáspora, Legado e Futuro AUTOR: Jorge A. H. Rangel

Por ocasião do 15º Aniversário do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, este 10.º volume da série “Falar de Nós – Macau e a Comunidade Macaense” é dedicado às instituições e às pessoas que souberam honrar o legado e a memória, ao mesmo tempo que contribuíram para o seu desenvolvimento num novo contexto políticoadministrativo.

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COLECÇÃO “DELTA DO RIO DAS PÉROLAS”

COLECÇÃO “MISSIONÁRIOS PARA O SÉCULO XXI”

Pe. Áureo Nunes e Castro – Missionário, músico e pedagogo Foshan, da Montanha de Buda a centro de produção mundial AUTORES: Thomas Chan e Louise do Rosário

Com o apoio e colaboração da Fundação Macau e do Instituto Internacional de Macau, a agência MacauLink e a Associação de Macau de Investigação do Delta do Rio das Pérolas publicaram o 7º volume da série dedicada ao Delta, que é, reconhecidamente, uma das zonas de maior desenvolvimento em todo o mundo. Tem por título “Foshan, da Montanha de Buda a centro de produção mundial”, sendo seus autores Thomas Chan e Louise do Rosário, com coordenação de Gonçalo César de Sá. O livro caracteriza as notáveis transformações de Foshan e perspectiva os planos já elaborados para o crescimento da cidade nos próximos anos, em conformidade com o programa “Indústria Foshan 2025”, visando a melhoria da capacidade tecnológica e da criatividade das empresas e a intensificação da cooperação sinoalemã no domínio da alta tecnologia.

AUTOR: João Guedes

João Guedes é o autor deste livro da colecção “Missionários para o Século XXI”, do Instituto Internacional de Macau (IIM). O Pe. Áureo Nunes e Castro nasceu na Candelária do Pico (Açores) em Janeiro de 1917 e faleceu em Macau em Janeiro de 1993. A obra descreve a vida daquele missionário, músico e pedagogo, que passou a maior parte da sua vida em Macau, com foco na sua dedicação à Igreja e à música, desenvolvendo uma acção notável neste domínio, como grande mestre de gerações de jovens, compositor e dinamizador cultural. João Guedes conclui – e bem – que “vale a pena contar a sua história”.


Edições IIM – 2015

FORA DE COLECÇÃO

Macau – Festas e Festividades PRODUÇÃO: MacauLink

Macau-in-Coimbra – Highlights from the EACS ’14 Conference COORDENAÇÃO: Ming Chan, Jorge Rangel e Carmen Mendes

Na sequência das ligações entre Macau e Coimbra, foi publicado “Macau-in-Coimbra”, um livro com trabalhos de vários académicos, apresentados durante a Conferência da Associação Europeia de Estudos Chineses, realizada em Coimbra, em 2014 e coordenada por Ming Chan, da Universidade de Stanford e Carmen Mendes, da Universidade de Coimbra.

Produzido pela Macaulink, este livro é uma contribuição do IIM para comemorar o 15º aniversário do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). As fotografias seleccionadas retratam as principais celebrações de Macau, que incluem os grandes acontecimentos internacionais e actividades diversas que passaram a fazer parte do calendário anual de Macau. Esta obra foi apresentada em 2015 e 2016 em diversas cidades, em Portugal, no Rio de Janeiro e no Recife, e ainda em Oakland, Toronto e Goa.

Making Impressions – A Portuguese family in Macau and Hong Kong, 1700-1945 AUTOR: Stuart Braga

A obra de Stuart Braga baseia-se na sua tese de doutoramento na Universidade Nacional de Austrália. Conta a história desde os primórdios de Macau e das famílias Rosa e Braga que se instalaram e entrelaçaram em Macau. Os seus antepassados (entre os quais José P. Braga e Jack Braga) participaram no estabelecimento da colónia inglesa de Hong Kong. Trata-se de um livro profusamente ilustrado que inclui mapas, gravuras e fotografias, descrevendo os principais acontecimentos ocorridos na região em que se inserem ambas as cidades, onde a comunidade portuguesa, durante mais de dois séculos, teve de enfrentar tempos difíceis e lutar algumas vezes pela sua sobrevivência. Segundo o seu autor, o livro “é uma significativa contribuição para compreendermos quanto as gentes de Macau alcançaram no seu percurso pela história”.

ORIENTEOCIDENTE

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FORA DE COLECÇÃO

O Livro de Receitas da minha Tia/Mãe Albertina (2.ª Edição) Macaenses – The Portuguese in China AUTOR: António M. Jorge da Silva

Da autoria de António M. Jorge da Silva, “Macaenses – The Portuguese in China” é uma fascinante história dos descendentes portugueses de Macau, a sua evolução, incluindo as experiências em vários locais da China e integração em países da diáspora. A edição, em inglês, é uma importante investigação da chegada dos portugueses a Macau, desde os meados do século XVI.

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ORIENTEOCIDENTE

AUTORA: Cíntia Conceição Serro

“O Livro das Receitas da minha Tia/Mãe Albertina”, de Cíntia Conceição Serro, já vai na segunda edição, após o sucesso de vendas do primeiro livro. Foi com grande satisfação que o IIM se associou à publicação e divulgação deste livro, revelando-se um importantíssimo instrumento de valorização e promoção da culinária macaense. Este livro será apresentado em várias instituições culturais, nas sedes de organismos ligados a Macau e junto das associações da diáspora macaense.

Macau – Cidade, Território e Arquitecturas AUTORES: José Manuel Fernandes, Maria de Lurdes Janeiro e Maria João Janeiro

Da autoria de José Manuel Fernandes, Maria de Lurdes Janeiro e Maria João Janeiro e com o apoio nos livros de João Loureiro e prefácio de Carlos Marreiros, “Macau – Cidade, Território e Arquitecturas” é uma obra dedicada à História do Urbanismo e da Arquitectura de Macau e do seu Território (península e ilhas). Procura dar uma visão, em texto e imagem, documentada e informada, das profundas transformações que Macau sofreu ao longo da sua evolução secular, com especial destaque para os últimos 40 anos. Reúne múltipla documentação cartográfica, iconográfica e fotográfica, registada ao longo destas décadas, devidamente datada e identificada.


Edições IIM – 2015

FORA DE COLECÇÃO

REVISTA

APOIO IIM

Sagres – A Nossa Barca AUTOR: Joaquim Magalhães de Castro

Quando os jacarandás florescem connosco – Selecta dos Participantes no III Encontro de Poetas Chineses e Lusófonos COORDENAÇÃO: Yao Feng

Colectânea, bilingue, editada pela Fundação Jorge Álvares, Centro Nacional de Cultura e Instituto Internacional de Macau, por ocasião do III Encontro dos Poetas Lusófonos e Chineses, que teve lugar em Lisboa no final de Maio e início de Junho de 2015. A colectânea inclui dois poemas de cada participante – Fernando Pinto do Amaral, Nuno Júdice, Inês Fonseca Santos, Filipa Leal, da delegação portuguesa, Ana Paula Tavares, de Angola, Olinda Beja, de S. Tomé e Príncipe, José Luís Tavares, de Cabo Verde, e Yao Feng (Yao Jinming), Hun kuong U, Un Sio San, Yan Li, Wang Jiaxin, Huang Lihai e Lin Jiangquan, da delegação chinesa.

Oriente/Ocidente EDITOR: Instituto Internacional de Macau

Foi publicado o nº 32 da revista “Oriente/ Ocidente”, segunda revista da nova série, com novo formato e conceito. Focada na edição de conteúdos de interesse cultural e científico, os artigos têm sempre como referência a República Popular da China e as suas relações com os países lusófonos, dando ainda particular relevo a Macau e as suas ligações históricas, culturais e linguísticas a Portugal e a outros países lusófonos, sem esquecer ainda a diáspora macaense.

“Sagres – A Nossa Barca” é um livro trilingue que descreve as viagens feitas a bordo do navio-escola da Marinha Portuguesa, com fotografias, pelo investigador Joaquim Magalhães de Castro, que divulga também o papel que esse veleiro tem na difusão da cultura portuguesa e prestígio de Portugal. Sagres esteve em Macau duas vezes e está firmemente nas memórias dos chineses de Macau.

A revista reflecte essa dinâmica – Oriente/Ocidente – e o estabelecimento de pontes e cooperação promovidAs entre instituições culturais e académicas dos dois lados, com especial destaque para o papel que o IIM tem vindo a desenvolver nesse domínio.

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Ópera Yueju

ORIENTEOCIDENTE

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