Transitoriedade residencial contemporanea

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Hugo Oliveira Projecto Final em Arquitectura 2008-2009 ISCTE-IUL Mestrado em Arquitectura e Urbanismo Setembro 2008 - Setembro 2009 Trabalho Te贸rico Transitoriedade Residencial Contempor芒nea Projecto 8 Casas + 1 Percurso Projecto Biblioteca Municipal de Marvila


Agradecimentos Ao Professor Paulo Tormenta Pinto por desde cedo, neste ano lectivo, ter-me orientado de forma a que a produção teórica e prática andassem lado a lado. Ao Professor Pedro Prista por em todas as conversas ter partilhado uma pequena parte do seu extraordinário conhecimento comigo contribuindo para um trabalho completamente diferente daquele que seria sem a sua orientação. Ao Professor Pedro Costa por ter sempre colocado questões pertinentes cujas posteriores reflexões obrigaram à busca de uma melhor resposta ou a perceber que por vezes não respondemos a tudo. Ao Gonçalo Cadilhe, Tó Romano e Fernando Guerra por amavelmente terem aceite colaborar neste trabalho partilhando o seu tempo. Ao Nuno Assis, João Veiga e à Catarina Oliveira Dias pelos conselhos, críticas, ajuda e pela paciência que sempre demonstraram ter. Ao Tiago, Mário, Isabelle e Alíria que nunca deixaram de acreditar em mim e de me apoiar. À minha Mãe e à minha irmã por serem a minha rocha. À memória do meu sempre presente Avô.


“The journey not the arrival matters” T.S. Eliot


Conteúdo Trabalho Teórico Resumo (Português e Inglês) Índice de Imagens Introdução | Interrogação | Intriga Sedentarismo: Regra ou Excepção? Entrevistas Gonçalo Cadilhe António Romano Fernando Guerra Extradição para onde? A Casa ou a Cidade? - Paris A Casa ou a Cidade? - Tóquio Choças na Beira Baixa - A Casa Politética Conclusão Bibliografia

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Marvila e as Caixas de Marcel Duchamp

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8 Habitações + 1 Percurso Pedonal

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Plano Estratégico em Marvila

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Biblioteca Municipal de Marvila

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Notas Biográficas

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TRANSITORIEDADE RESIDENCIAL CONTEMPORÂNEA ESPECIFICIDADES NA APROPRIAÇÃO ESPACIAL DOMÉSTICA E URBANA Os seus Agentes, Modos de Vida e Formas de Habitar (pré/pós-crise 2008-2009)

Trabalho Teórico submetido como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Arquitectura

Orientadores: Prof. Dr. Arqº Paulo Tormenta Pinto (Arquitectura) ISCTE-IUL Prof. Dr. Pedro Prista (Antropologia) ISCTE-IUL Prof. Dr. Pedro Costa (Economia) ISCTE-IUL


Transitoriedade Residencial Contemporânea - Especificidades na Apropriação Espacial Doméstica e Urbana

Transitoriedade Residencial Contemporânea pretende reflectir a maneira como se poderá experienciar as cidades e habitar os espaços domésticos estando sempre em trânsito. Não tendo como pretensão a compreensão profunda das especificidades técnicas da arte de projectar/habitar a casa e a cidade, este trabalho tentará inclinar-se antes sobre a questão: poderá haver outra forma de relação entre estes dois domínios dentro deste contexto de residencialidade transitória sem que se tenha que indigitar uma solução de hotelaria? Assim, partindo desta questão, é proposta a contextualização do fenómeno em causa que não é apenas da contemporaneidade mas que se tem vindo a estender gradualmente na população mundial numa configuração quase exponencial. Tomando como referência vários casos concretos – documentos escritos, entrevistas (umas feitas antes deste trabalho por outras pessoas, outras feitas no âmbito do deste trabalho), fenómenos urbanos, argumentos cinematográficos e teatrais – tentar-se-á enquadrar esta problemática num ambiente de inquietação multicultural que, no final, não pretenderá dar uma resposta concreta. Antes, este trabalho teórico – juntamente com uma proposta no âmbito da disciplina de Projecto – expõem-se de forma a provocar a atenção de quem o lê para esta questão que cada vez mais deixa de ser emergente para se tornar manifestamente ubíqua na nossa sociedade.

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Contemporary Residential Transience - Specificities in its Domestic and Urban Appropriation

Contemporary Residential Transience strives to put in evidence the way in which cities and domestic spaces can be inhabited by individuals who are always in transit. Without any claim for an in depth comprehension about the technical aspects in the art of building/living the house and the city (in an abstract notion), instead, this study tries to ruminate about the issue: is there any other way of living these two domains in this residential transience condition while not pondering an hotel type of service? Therefore, having in mind this question, it is intended to contextualize this not-so-contemporary phenomenon which has gradually been spreading throughout the globe in a rather exponential manner. Having as reference several tangible cases – written documents, interviews (some already done by other people before this study, and others done in this work sphere of action), urban phenomena, movie and theater scripts and screenplays) – this work attempts to frame this debatable issue in a multicultural and inquietude milieu which, in the end, does not want to impose a concrete answer. Alternatively, this study – together with a a more practical treatment regarding the projectual subject – exposes itself trying to instigate reader’s attention for this less and less emerging issue and more and more ubiquitous in our society.

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Índice de Imagens

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Vicent van Gogh - O Quarto do Artista (1889. Óleo sobre tela, 56,5 x 74cm. Musée d’Orsay, Paris) Fotogramas de Modern Times. Realização, produção e argumento de Charles Chaplin. Century City: United Artists, 1936. 1 Filme (87 mins) Rem Koolhaas. Foto de Sanne Peper Tuaregue nas montanhas de Aïr, Nigéria. Swiatoslaw Wojtkowiak. disponível em <http://www.flickr. com/photos/nygus/341599493/> Tendas Tuaregues na região de Lac Do, Mali. Arquivo National Geographic. Casa. Debra Wilkinson. disponível em <http://www.bbc.co.uk/humber/telling_lives/images/new_ pages/debra_wilkinson_320.jpg> John William Waterhouse - Diogenes (1882. Óleo sobre tela, 208,3 x 134,6cm. Art Gallery of New South Wales, Sydney) Fotograma de Professione: Reporter. Realização de Michelangelo Antonioni, produção de Carlo Ponti, argumento de Mark Peploe, Michelangelo Antonioni e Peter Wollen. Los Angels: MGM, 1975. 1 Filme (119 mins) Jet Lag. Realização de Marianne Weems, argumento de Jessica Chalmers, concepção e ideia original de Diller & Scofidio. Apresentado por Builders Association and the Kitchen, Chealsea, 2000. Peça de Teatro. Fotogramas de Le Voyage du ballon rouge. Realização de Hou Hsiao-Hsien, produção de François Margolin, argumento de Hou Hsiao-Hsien e François Margolin. Paris: BAC Films, 2007. 1 Filme (113 mins) Pao for the Tokyo Nomad Girl. Toyo Ito & Associates. (Shibuya, Tóquio. 1985). Cartaz de Exposição. Apartmento em Paris. Vivian Roldo. 2000. Fotogramas de Lost in Translation. Realização e argumento de Sofia Coppola, produção de Ross Katz e Sofia Coppola. Universal City: Focus Features, 2003. 1 Filme (102 mins) Konbini em Quioto. JanneM. disponível em <http://www.flickr.com/photos/jannem/2988112020/> Konbini em Hiroshima. Luistxo eta Marije. disponível em <http://www.flickr.com/photos/lu istxo/2361306732/> O Burro, a Choça e a Roupeira (exibida na exposição Agricultura nos Campos de Idanha - Centro Cul tural Raiano, Idanha-a-Nova. Planta e corte esquemático de uma choça em Idanha-a-Nova. (Construções Primitivas em Portugal, Lisboa: Dom Quixote, 1969. p. 53) Interior de uma choça em Idanha-a-Nova - lareira a meio, ao fundo a cama, chouriços pendurados. (Construções Primitivas em Portugal, Lisboa: Dom Quixote, 1969.) Abrigo sobre carro na Golegã. (Construções Primitivas em Portugal, Lisboa: Dom Quixote, 1969.)

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Introdução | Interrogação | Intriga

A escolha do tema Transitoriedade Residencial Contemporânea e as suas especificidades na forma de viver a casa e a cidade no presente século foi influenciada por três aspectos fulcrais. Desde logo a área de intervenção (Marvila) estipulada para os exercícios práticos de Projecto Final 2008-2009. Mais concretamente o primeiro exercício cujo programa propunha a criação de oito habitações (espaço doméstico) e de um percurso pedonal (espaço público). Isto obrigou a uma saudável obsessão pela compreensão (sob o filtro das disciplinas da arquitectura e do desenho urbano) daquela parte da cidade de Lisboa. Era essencial compreender a importância dos actuais e dos possíveis novos fluxos humanos (imigrantes, turistas, trabalhadores), culturais, de transportes, de capitais, e a consequente afectação em Marvila. Três grandes infra-estruturas (Novo Aeroporto de Lisboa – Alcochete –, a Terceira Travessia do Tejo – Chelas-Barreiro – e o traçado do TGV – Eixos Lisboa-Porto e Lisboa-Madrid), a serem confirmados, exercem tão grande ascendente sobre a área de estudo que ignorá-las seria um acto de completa negligência académica. O outro aspecto prendia-se com a forma como existe no tecido urbano da zona de Marvila ainda uma série de vazios compartimentados (pisos inteiros de edifícios completamente devolutos), sem qualquer uso sendo que, juntamente com os vazios urbanos, estes espaços abandonados não contribuem para uma maior valorização daquela área de forma a eclipsar o estigma que é notório que tem. Possivelmente um maior investimento na reabilitação urbana seria um instrumento (de sinergia juntamente com os novos fluxos de transporte) de

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enriquecimento de uma zona de carácter industrial, contribuindo para a sua regeneração. O último aspecto (mais concreto que as putativas infra-estruturas cujas construções o tempo e a História farão questão de as confirmar ou negar) diz respeito à crise económica 2008-2009 que brotou da falência da Lehman Brothers Holdings Inc. a 15 de Setembro de 2008 e que despoletou um efeito dominó no subprime (lending) afectando a nível mundial o sector imobiliário. A crise é assim um sintoma de um problema de falta de reestruturação profunda na economia. Tendo este cenário socioeconómico (até certo ponto ultra-mediatizado) e as constantes comparações à Grande Depressão (1929) tornou-se importante compreender uma crise financeira passada, para de alguma forma compreender que implicações poderia ter a presente. Neste sentido, os filmes poderão ser documentos muito importantes para compreender o contexto de uma determinada época (pelo menos desde do seu surgimento no final do século XIX) e de forma mais concreta os filmes mudos mostram ser adequados para essa busca. Desta forma, o famoso filme Tempos Modernos (1936) [imagem 2] do cineasta Charles Chaplin é de uma extrema riqueza enquadrando o período da pós-Crise de 1929 num mundo industrializado. Os paralelismos temporais (2009) e espaciais (especificamente com a área de intervenção em Marvila) são legítimos de serem estabelecidos. As desafectações industriais em grandes áreas, o desemprego (de forma mais expressiva entre os mais jovens), o crescente índice de criminalidade, assim como a problemática da habitação estão presentes nos dois casos. As crises financeiras numa economia de livre mercado (como ainda é actualmente) são cíclicas assim como as suas consequências. No filme mencionado a personagem de Paulette Goddard (que contracena com Charles Chaplin) vagueia no mundo sem um local a que possa chamar casa, algo incompreensível até mesmo para um vadio como Charlot

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que tem uma diferente ideia sobre o espaço doméstico apetecível. No entanto, segundo alguns especialistas, uma mobilidade (não apenas geográfica) mais intensa é benéfica num cenário de recuperação de uma crise económica.1 Ainda assim, porque razão será a incerteza residencial (associada a um energético trânsito) um mal que deva ser combatido e censurável? Terá a arquitectura algum contributo válido em contextos socioeconómicos como estes? Poderá haver um outro modo de vida e de pensamento sobre o espaço residencial e que possa ser mais válida que as existentes? Ou poderá a arquitectura ser tão-somente incapaz de grandes mudanças no que diz respeito à melhoria das condições de conforto físico e mental de quem habita nestas ou noutras condições?2 É o sedentarismo a regra e não a excepção? Numa sociedade de sound bites e rotulagem que poderá ser chamado a este fenómeno que, por uma razão ou outra, obriga/ permite a um indivíduo que viva desta forma, em constante trânsito? Nomadismo Moderno? Nomadismo Urbano? Novo Nomadismo? Na segunda parte deste texto tentar-se-á destrinçar esta última questão. Este texto pretende desmistificar a ideia de que a arquitectura é um conhecimento her“(…) as economias caracterizadas pela mobilidade das suas forças de trabalho recuperam dos choques económicos e das recessões de forma mais rápida que os países com estruturas de trabalho mais rígidas. Uma economia baseada numa mão-de-obra móvel adapta-se mais rapidamente às condições de mudança”. (Artigo de Vladimir Spidla. “Mobilidade profissional na Europa: mais precisa que nunca”. Público, Lisboa, Nº 7018/XX, 20 Junho 2009. p. 38) 2 “People can inhabit anything. And they can be miserable in anything and ecstatic in anything. More and more I think that architecture has nothing to do with it. Of course, that’s both liberating and alarming. But the generic city, the general urban condition, is happening everywhere, and just the fact that it occurs in such enormous quantities must mean that it’s habitable. (...)Architecture can’t do anything that the culture doesn’t. We all complain that we are confronted by urban environments that are completely similar. We say we want to create beauty, identity, quality, singularity. And yet, maybe in truth these cities that we have are desired. Maybe their very characterlessness provides the best context for living.” (Entrevista de Katrina Heron com Rem Koolhaas. “From Bauhaus to Koolhaas. Wired Magazine. Nova Iorque, 4.07, Julho 1996.) 1

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meticamente estanque relativamente a outras áreas que não as artísticas. No caso concreto da transitoriedade residencial também é importante saber que indivíduos são estes que, por variadíssimas razões, tendem a mover-se num contexto espacial e politicamente sem fronteiras, tornando-se menos fragmentado, num mundo tecnologicamente mais rápido de ser percorrido e que socialmente é cada vez mais estimulado para que seja atravessado. Na terceira parte tentar-se-á compreender que tipo de sujeito é este, quer através das definições clássicas mas também segundo as perspectivas críticas de outros pensadores. Contudo, os novos figurinos de transitoriedade residencial não são exclusivos da cultura ocidental. Na quarta e quinta partes deste texto, através da interpretação de dois filmes, tentar-se-á ilustrar como: (no primeiro caso) modos de vida de determinados indivíduos – retratados em alguns filmes – se aproximam dos modos de vida dos figurinos de transitoriedade residencial, mas também (no segundo caso exposto) quais as soluções de habitação no presente para as novas personagens deste fenómeno. No entanto em ambos os casos é notória a forma como o indivíduo tende a inverter os conceitos de privado/público, havendo consequências nos modos de viver a cidade e o espaço doméstico (ou, pelo menos, na forma como se poderá pensar a habitação no espaço urbano tendo em conta o aumento dos agentes desta mobilidade intensa). Rem Koolhaas [imagem 3] manifesta a ideia de que a melhor tipologia de habitação é o do quarto de hotel. Curiosamente é um bom exemplo de figurino de transitoriedade residencial. Apesar de viver em Nova Iorque – que considera ser o pólo crítico da civilização ocidental – ele também se vê como um cidadão do mundo.3 Nesse aspecto – e tal como acontece com os nómadas – ele está sempre em trânsito pois há uma vontade enorme de ficar num só Entrevista de Charlie Rose com Rem Koolhaas. A Conversation with Architect Rem Koolhaas. (Nova Iorque: PBS. 10 Março 2004).

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espaço. Não pertence a um único sítio e portanto perde a referência de uma possível base. É um figurino de transitoriedade residencial intelectual, que se move de forma rápida, que é movido pelas suas ambições, experienciando uma forma de residir não fixa, que por vezes é solitário na sua investigação. Uma procura universal que é fruto da cultura ocidental. Terá este indivíduo que habitar constantemente quartos de hotel? Ou ter a casa toda a acompanhá-lo sempre que se move, ou terá que viver em roulottes? Porquê contrariar esta tendência de nos movermos, com cada vez mais velocidade, havendo uma maior probabilidade de habitarmos várias residências durante um mesmo período? Porque não adequar um modo de vida a uma forma diferente de habitar a(s) casa(s)? Na sexta parte será identificado e exposto um modo de vida do passado – que tem muito mais a ver com o presente do que se possa imaginar à partida – e que, devido às circunstâncias da altura, levou à adopção de soluções primárias – construtivas e de produção – promovendo a ideia de uma forma de domesticidade presente em diversos pontos geográficos. O célebre quadro de van Gogh intitulado “O Quarto do Artista em Arles” [imagem 1] foi executado múltiplas vezes pelo pintor sendo que, as suas diversas versões foram oferecidas a familiares e amigos, modificando em cada um deles alguns quadros representados na parede, mas mantendo objectos essenciais (como a cama robusta, o lavatório, e as duas cadeiras) numa casa que habitou e que (tal como escreveu) “era confortável como a música é reconfortante”. Poderemos habitar várias casas, em pontos geográficos distintos, partilhando o mesmo grau de apropriação e conforto entre elas como se trata-se do mesmo quarto?

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Sedentarismo: Regra ou Excepção?

Há muito que a mobilidade não está convenientemente integrada com a forma como estão definidos os programas para o panorama da domesticidade. Há sempre a tendência para nos limitarmos às tipologias. Isto porque existe esta ideia formada no passado – e que nunca teve qualquer fundamento – de que a estabilidade humana e doméstica é a regra quando na verdade elas são a excepção. É portanto fundamental compreender como é que uma das formas de trânsito humano mais conhecidas – nomadismo – se reflecte no território e como é que o mesmo é entendido. No entanto, há que ter sempre em conta o facto de o nomadismo e o trânsito humano actualmente existente (não relacionado com actividades de pastorícia ou de comércio) não serem a mesma coisa. É por parte de Gilles Deleuze que temos uma explicação para o carácter não-móvel do nómada [imagem 4]. Um intelectual a quem não lhe agrada as condições em que os seus pares viajam, tem um grande fascínio pelos nómadas “exactamente porque são pessoas que não viajam. Quem viaja são os imigrantes. Há pessoas que são obrigadas a viajar: os exilados, os imigrantes. Mas estas são viagens das quais não se deve rir, pois são viagens sagradas, são forçadas. Mas os nómadas viajam pouco. Literalmente ficam imóveis. Todos os especialistas concordam: eles apegam-se à terra. Mas a terra deles torna-se um deserto e eles apegam-se a ele, só podem nomadizar nas suas terras. É de tanto querer ficar nas suas terras que eles nomadizam. Portanto, podemos dizer que nada é mais imóvel e viaja menos que um nómada.

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Eles são nómadas porque não querem partir. É por isso que são perseguidos”4 Um indivíduo cosmopolita, em trânsito, poderá enquadrar-se nesta perspectiva e definição de nómada? Crê-se que não. De facto este figurino de transitoriedade residencial não é perseguido pelo seu estado nem obrigado a sedentarizar-se. Pelo contrário, apesar dos mecanismos de controlo social existentes (recenseamento, a identificação do indivíduo ao Estado, os mais variados registos a que está legalmente obrigado a cumprir) é encorajado em muitas situações a mover-se através dos mais diversos programas, bolsas e outros incentivos estatais. Do ponto de vista do espaço residencial, também não existe qualquer termo de comparação entre o nomadismo e a maioria das outras expressões de transitoriedade residencial. Ainda que semanticamente seja significativo5, do ponto de vista da materialidade, da rigidez dos elementos construtivos, da sua fixação (ou da sua falta) no território não o é. No caso dos nómadas estes movem-se num espaço liso [imagem 5] onde, a haver alguma fixação, esta será à terra e não à casa. Materialmente muito ligeira e transportável – a tenda – esta não partilha do carácter espacial rugoso ligado ao sedentarismo (mesmo que móvel) destes figurinos de residencialidade transitória. A verdade é que estes acabam por ter um género de base a que quase sempre regressam mesmo que pontualmente (casa dos pais, de outros familiares, de amigos). Há portanto um regresso a um ponto estabelecido. No caso do nomadismo o que existe é uma “viagem estacionária”, “o estático numa condição móvel”. Os seus movimentos são feitos num único espaço (o deserto do Sara no caso dos Tuaregues) onde um ponto geográfico dentro desse mesmo espaço é tão importante como qualquer outro, não havendo um ponto específico que polarize os seus trajectos. Contudo, também não poderemos negar que a arquitectura se torne com o tempo mais ligeira em Entrevista de Claire Parnet com Gilles Deleuze. L’Abécédaire de Gilles Deleuze avec Claire Parnet. (Paris: Éditions Montparnasse: 1988-1989). Exibido pela TV Arte, 1994-1995. 5 “Casa, ae | f. 1. Cabana, choupana. 2. Tenda, barraca (de soldados)”. definição em Lexicoteca: Moderno Dicionário de Língua Portuguesa, Volume 1 A-L, Lisboa: Círculo de Leitores, 1985. 4

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alguns casos, ainda que tal contrarie alguns princípios clássicos da arquitectura. Gonçalo Furtado defende que “a cultura pós-moderna (…) expressa-se em arquitecturas que roçam a desmaterialização em aparências leves, programas adaptáveis, espaços transitórios para experiências nomádicas. Tal abala as premissas de uma disciplina que sempre foi tida como arte de construir associada à estabilidade, e acarreta uma transformação na ideia de espaço que não pode deixar de mobilizar a crítica arquitectónica.”6 Mas a questão a colocar é: poderá o sedentarismo (mais ou menos intenso) ser a regra? [imagem 6] Na verdade, apesar de sociologicamente ter havido sempre um grande esforço para controlar os fluxos dos seus cidadãos, o sedentarismo não é a regra e nunca o foi. Alguns intelectuais defendem mesmo que tal não é uma desgraça ou imperfeição social, antes algo essencial ao nosso desenvolvimento. Segundo o filósofo Michel Foucault é preferível “escolher o que é positivo e múltiplo, a diferença sobre a uniformidade, fluxos sobre as unidades, dispositivos móveis sobre sistemas. Acreditar que o que é produtivo não é sedentário mas nómada”7. O actual Comissário Europeu do Emprego, Assuntos Sociais e Igualdade de Oportunidades, Vladimir Spidla, acredita mesmo que “do ponto de vista dos cidadãos, torna-se mais fácil para um trabalhador que seja móvel encontrar emprego. A taxa média de emprego é superior entre os trabalhadores geograficamente móveis, que mais facilmente conseguem encontrar trabalho com base em contratos de duração indeterminada e têm maiores perspectivas de mobilidade profissional ascendente. Tendem ainda a obter ganhos salariais no seu novo emprego e a beneficiar do contacto com novas culturas, métodos e ambientes de 6 7

Gonçalo Furtado, “Transitoriedade e Apolítica”, Revista NU #8. Coimbra, Fevereiro 2003, p. 16 Prefácio de Michel Foucault em Anti-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia

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trabalho. (…) Assim, a mensagem a transmitir deverá ser a de que a mobilidade funciona, hoje mais do que nunca, e ajudará a criar um melhor futuro.”8 Desta forma, se a mobilidade é algo tão essencial porque razão olhamos para a instabilidade residencial (aparentemente como consequência inevitável de uma mobilidade mais intensa) e para o nomadismo como algo que foge ao que é normal? O arquitecto Iñaki Ábalos crê que “para as civilizações e os habitantes sedentários, este sujeito, assim como todos os nômades, é um parasita, um depredador que usa as cidades, e que, embora tenha delas se originado, contribui, a partir da sua perspectiva, para a sua destruição, na medida em que opera contra elas, como um fagócito que tomasse para si todos os benefícios de um esforço que é coletivo”9. Este indivíduo é ele mesmo reflexo de um conjunto de valores e premissas que se foram instalando neste contexto socioeconómico que é globalizante e globalizador. Isto não só torna o conceito de família – aquela liderada por um patriarca – algo com tendência para rarear e tornar-se fragmentário. Mas também eclipsa o enlace de um indivíduo com a sua família e com os locais de proveniência. Nesse sentido – e tal como foi anteriormente referido – o mundo tende a tornar-se um único sítio para esta pessoa, da mesma forma que o deserto do Sara se torna num único espaço para o Tuaregue. No entanto, ao contrário deste último, o cosmopolita não se associa exclusivamente a actividades de pastorícia, nem vive em tendas. Que figurino é este?

Artigo de Vladimir Spidla. “Mobilidade profissional na Europa: mais precisa que nunca”. Público, Lisboa, Nº 7018/XX, 20 Junho 2009. p. 38) 9 Iñaki Ábalos, A boa-vida – Visita guiada às casas da modernidade. p. 149 8

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Entrevista - Gonçalo Cadilhe

Como e quando é que começou a viver em trânsito? Em 1993 de forma profissional, após a publicação do meu primeiro artigo de viagens em Fevereiro 1992 na extinta Grande Reportagem. Nestes últimos meses onde residiu por pelo menos 2 dias? Desde do ínicio de 2009 e excluindo small towns, aldeias e aglomerados com menos de 30.000 habitantes: São Francisco, Santa Bárbara (Califórnia), Coolangatta, Byron Bay, Sydney (Austrália), Manila (Filipinas), Jakarta, Padang (Indonésia), Katmandu (Nepal), Goa, Bombaim (Índia), Chiavari (Itália), Figueira da Foz (Portugal), Jeffrey’s Bay, Cidade do Cabo (África do Sul), Windhoek (Namíbia), Livingstone (Zâmbia) e Maputo (Moçambique). Mas onde considera ser a sua casa? Figueira da Foz. É o seu porto de abrigo? Tenho um porto de abrigo e de afectos, volto sempre à posição inicial. E o que faz com que com que esse local seja a sua casa e não outro sítio qualquer?

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As raízes (sobre conceito de raízes, ver minha coluna no Expresso “A Importância de não ser de lado nenhum” publicada no Inverno 2007 ue envio em attach). E um apartamento de minha propriedade, precisamente por ser na minha cidade natal, nas minhas raízes… Em que tipo de locais costuma ficar alojado? Se puder escolher, opto por backpackers, que têm a serventia de cozinha incluída. Regularmente em casa de amizades de viagens prévias. Em todos esses locais que referiu qual o grau de apropriação e conforto que estabelece? Não há uma resposta única, passo de um dormitório com outros dez mochileiros, para uma tenda num percurso de trekking, para um chalet no jardim de amigos com grandes posses materiais, para hotéis de luxo em países com a moeda desvalorizada onde me posso permitir o preço que custam, etc… Que objectos estão sempre consigo? Cartão de crédito, pasta de dentes, computador e máquina fotográfica, prancha de surf e/ou viola, vários livros… E existem objectos que o ajudam a tornar o local onde reside em algo de maior apropriação? Sim, um par de pequenas colunas portáteis USB que permitem ouvir com qualidade a música clássica e jazz que tenho no computador. É tão raro esse tipo de ambiente em viagem, que ao reencontrá-lo num


quarto de hotel sinto que estou muito perto da minha ideia de lar, doce lar. Basta isso. Nesta vida de intensa transitoriedade deve haver coisas difícieis de se manterem.

nativas à hotelaria (no meu caso, Chiavari em Itália e Jeffrey’s Bay na Africa do Sul são dois bons exemplos). A não ser que um encontro fortuito permita um convite de hospitalidade, mas são situações aleatórias, raras e fruto do destino.

As solas dos sapatos em bom estado. No final, que papel desempenha a casa na sua vida profissional? Uma espécie de selo Nulla Osta que autoriza a fechar a porta sobre um projecto de viagem e a iniciar a planificação de um novo. O regresso à casa, arrumar os livros já não necessários na estante, reencontrar parentes e amigos, têm esse poder simbólico de dividir em compartimentos estanques os projectos de viagem. A forma como vive a casa onde vive depende mais dela mesma ou do seu contexto, da sua envolvente? Depende da casa em si, e a uma escala mais alargada depende também do facto de se situar na minha cidade natal (embora localizada numa periferia proletária, longe do bairro burguês de classe média alta onde cresci e onde os meu pais mantêm a casa onde sempre vivemos). Existe alguma alternativa para a hotelaria para alguém que se mova regularmente, isto no sentido de encontrar uma solução que permita uma maior apropriação da residência. Para lá de certas possibilidades de troca de casa a que nunca recorri e que desconheço a eficácia, creio que só o regresso regular aos mesmos destinos e o estabelecimento de amizades sólidas pode permitir alter-

Gonçalo Cadilhe (1968, Figueira da Foz), viajante, jornalista e cronista. (Questões colocadas via e-mail e respondidas a 20 de Agosto 2009.)

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Entrevista - António Romano

Em 1983, como modelo mas recentemente formado em arquitectura, viveu em diversas cidades ocidentais e orientais. Chegando ao Japão, um país contrastante a vários níveis com Portugal (e ainda mais nessa altura), já se apercebia de algumas diferenças na forma como eram provistas, providenciadas soluções para indivíduos em transitoriedade residencial, ou as soluções existentes eram iguais? A grande surpresa que tive relativamente a isso foi ter ido para uma metrópole com 12 milhões de habitantes mas ter uma população activa de 16 milhões de habitantes. Todos os dias 4 milhões de personagens vinham para a cidade. Apercebi-me de uma situação absolutamente inexplicável na altura para mim que foi o facto de os japoneses sentirem um prazer enorme em trabalhar. Muito mais que com os tempos de lazer. É célebre o pedido americano aos japoneses feito há 22 anos para reduzirem os dias de produção que foi rejeitado em referendo. O povo japonês decidiu não reduzir de 6 para 5 os dias de trabalho. Na altura fez-me uma grande confusão. No entanto compreendi que para eles o pior dia que têm é o domingo, isto porque é nesse dia que têm que fazer as limpezas à casa, que têm que gastar dinheiro, abaste-

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cer a dispensa, é o dia mais violento da semana. Não queriam duplicar esse dia por dois! Queriam trabalhar 6 dias por semana! É algo muito imbuído no espírito de cada família. Portanto não há tempo para estar em casa. Entregam-se ao trabalho a tempo inteiro. Isto leva que muitos daqueles 4 milhões que diariamente se deslocavam para Tóquio terminassem de trabalhar às 11 da noite, meia-noite, uma da manhã, obrigando-os a alugar um casulo para pernoitar. Sociologicamente acontece uma quantidade de fenómenos que são consequência disso. É comum gente embriagada de fato e gravata a dormir na rua às 3 da manhã. Mas existem muitas empresas que estão preparadas para situações de alugueres rápidos. Há outra situação que se prende com o facto de, por estarem sempre com horas de sono em atraso, tentarem dormir quando não estão a trabalhar. Metade das pessoas que estão numa carruagem de metro estão a dormir e é impressionante ver como despertam imediatamente após ouvir o nome da sua estação de saída através dos altifalantes. Isto a todas as horas do dia. Por outro lado, no que diz respeito às residências japonesas, estas tenham características muito reduzidas. As necessidades de vivência nesses espaços domésticos apenas se resumem à necessidade de dormir. A alimentação é toda feita fora de casa, muitas vezes as casas não tem cozinha, apenas uma kitchenette ligada ao quarto ou à sala (que não passa de um hall de entrada). Acontece outro fenómeno que é a casa-de-banho ser uma única peça, muito reduzidas também. Tive


um apartamento cujo aluguer era de €2000 por mês onde tinha que levantar a cama para abrir a porta de casa. No entanto tive a oportunidade de ir para for da cidade e as casas são completamente diferentes. No entanto, nesses sítios onde fui era comum os espaços estarem despidos de objectos pessoais. Também apenas o acto de dormir era o mais importante. Mas existe alguma alternativa à hotelaria? Relacionado com o acto de dormir lembro-me de há 15 anos atrás tive a oportunidade de ir aos Açores e fui a uma fajã. Fajã de Santo-Cristo. Os acessos são muito restritos. Quinze pessoas viviam aí, onde se plantavam e viviam daquilo que produziam. É também muito apetecível para os surfistas. Assim construíram uma casa, sem qualquer tipo de mobiliário, com diversas divisões onde que era permitido ser ocupada. Isto tudo porque os habitantes daquela fajã não queriam ver as tendas dos surfistas montadas preferindo um espaço. E penso que isso também se relaciona com o teu trabalho. As pousadas da juventude internacionais também permitiam isso mesmo. Mas está mais próximo do conceito de hotel. Hoje em dia há um outro conceito de hostais. Aqui próximo da agência (à frente do miradouro de Santa Catarina) há um hostal onde não existe esse tipo de controlo tão rígido mas a manutenção é feita pelas pessoas que para lá vão. A recepção é feita por pessoas também mais jovens tendo um comportamento absolutamente idêntico às pessoas que procuram este espaço. Este

fenómenos de trânsito relacionados com o interail, com o programa erasmus, entre outros fomentam o relacionamento social entre os jovens. Libertam-se de uma tensão vivendo o mundo. Eu mesmo vim de Tóquio com outras perspectivas por ter viajado. Um dos fascínios de viajar está relacionado com os cinco sentidos. Hoje em dia se fores a Tóquio, vais ter sempre um flash, mas não vai ser tão intenso como era antigamente. Mas não é preciso ir para tão longe. Quando estive em Paris também sentia isso. Quando se está fora do abrigo familiar queremos experimentar tudo. Viajamos vivenciando as coisas com muito maior intensidade relativamente à cidade onde costumamos estar. E que papel poderá ter a arquitectura no meio disto tudo? A arquitectura acaba por acontecer e ocorrer em função das necessidades e das diversas evoluções sociológicas que o ser humano e as próprias sociedades vão proporcionando, e vamos sempre atrás dessa satisfação. Creio que no teu trabalho arranjas um nicho em que se pode atalhar caminho e antecipar uma alteração da sociedade. Faz todo o sentido andar à frente e os arquitectos são um dos que têm de fazer isso. Tenho aqui na agência uma situação muito idêntica nos criadores de moda que têm de antecipar o futuro em termos de vestuário e a pesquisa que vão fazendo acaba por ser apaixonante. De 6 em 6 meses acabo por assistir a esse exercício de antecipação dos desig-

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ners de moda. Satisfazem-me um pouco a necessidade que eu tinha de originalidade e à capacidade que um arquitecto tem de ter. O trabalho da moda acaba por ser mais satisfatório porque lhes é permitido ter de 6 em 6 meses. A moda também reflecte muito fortemente as evoluções sociológicas que vão acontecendo no mundo. Como e quando é que começou a viver em trânsito? O viajar e a questão de me ter sentido extremamente nómada durante 5 anos da minha vida deveu-se a obrigações profissionais e de uma liberdade que eu me permiti ter – curiosamente à espera que a crise da construção civil terminasse em Portugal. Decidi fazer um hiato de 2 anos para ir visitar a arquitectura que mais me admirava que era a japonesa. Por ser tão métrica – consequência da falta de espaço e ao preço elevado das áreas, explorada de forma tão criativa. O tema principal que tu apontas é o carácter sedentário e nómada. Todos nós somos nómadas até aparecer a recolecção. Das nossas raízes o que é que trazemos? O primeiro instinto é a sobrevivência e o segundo é a segurança. A segurança conseguiu-se a partir do momento dessa fixação territorial. Quando comecei a viajar comecei a ter a percepção das diferenças sociais nos vários sítios. Fiquei extremamente surpreendido com os países nórdicos, a Finlândia, a Dinamarca, a Suécia e também a Holanda, onde é frequente um jovem de 15 anos querer sair de casa dos país e começarem a habitar espaços onde estão mais em

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contacto com outras pessoas da idade deles. A sua sensibilidade fica muito mais desperta porque estão à procura de um caminho pessoal. Há outros factores como a fragmentação dos casamentos já nessa altura. Os filhos tomam assim uma independência maior após essa fragmentação. Usufruem assim de outras vivências que os aproximam do mundo real. Outro ponto que referes no trabalho diz respeito à facilidade que é um jovem desses futuramente arranjar melhores profissões por não estarem seguros num ambiente familiar. Curiosamente esses jovens decidem deslocar-se para outras cidades que não a cidade de origem. Socialmente eles acabam por ter uma convivência muito alargada e constante, a usufruir dos espaços públicos quase a tempo inteiro. A componente familiar acabe por não ser muito importante. No entanto, um outro país onde viveu e onde o cenário será o contrário será Itália (a par com os restantes países do sul da Europa). Sim. Já há mais a raiz da casa familiar. Mas em Lisboa e arredores isso também acontecia. Lembro-me de histórias que os meus avós contavam de pequenas quintas onde viviam diversas gerações em conjunto. Um dos problemas com que vivemos hoje em dia está relacionado com a desagregação dos corpos familiares. A intensa rapidez com que se vive leva a que isso aconteça. Há também o facto de hoje em dia a mulher também trabalhar. Ou seja, inicialmente a presença dos avós tendeu a desaparecer e posteriormente o


mesmo aconteceu com a figura da mãe. Não é por acaso que hoje em dia as escolas primárias funcionam à tarde. Portanto, e apesar de me ter tornado nómada durante 5 anos, sou muito pró-familiar custando-me ver a desagregação existe hoje em dia nas famílias. No entanto também compreendo que a felicidade em muitas famílias seja rara e portanto há a dificuldade em se fixar num sítio durante muito tempo. Mas objectivamente, para algumas pessoas há objectos que podem ajudar a sentirmo-nos em casa apesar de estar longe da família não? Ao longo do teu trabalho fazes várias alusões a isto que é: quando uma pessoa viaja, quando está de pouso em pouso, quer fique numa cidade cinco dias ou um mês, tende a construir algum conforto com objectos pessoas substituindo as raízes dos aspectos familiares que estávamos a falar. Assistia a colegas que pegavam imediatamente em fotografias e forravam uma parede inteira com essas imagens. Outros passados dois meses recorriam a mobiliário barato para substituir por aqueles que encontravam nos apartamentos para eventualmente conseguirem uma maior apropriação do espaço. E é curioso que hoje em dia apareceu um instrumento que carregou tudo isso que estava relacionado com as raízes. Há dois objectos: o telemóvel e o PC portátil. Este último tem o condão de puderes estar em cima de uma secretária em Tóquio, Nova Iorque ou Sidney e fazer-te sentir em casa. Tens ali a tua ligação com o subconsciente e

que te faz ligar à família, às raízes. Penso que todos os jovens têm tendência para serem nómadas até lhes chegar a vontade de estabelecer uma família. É a família que nos faz reavivar o espírito do sedentarismo. No entanto, numa fase de transitoriedade residencial uma pessoa apenas precisa de ser inteligente e levar uma mala com o vestuário. Aí pode-se acoplar perfeitamente o PC portátil que nos permite conectar. Portanto, os espaços de vivência desses jovem podem-se reportar aos 15m2 de que falas. Mesmo que haja uma aglomeração de quartos, a única coisa que é necessário (nem a cozinha é necessária) mas a sala comum que funcione quase como um cybercafé. Poderá ser a sala mágica como aquele que estás a desenvolver para Marvila. Isso é uma situação fantástica.

António Romano, director da Central Models, arquitecto e antigo mode -lo. (Entrevista a 3 de Setembro 2009 em Lisboa.)

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Entrevista - Fernando Guerra

De que forma começa a viver em trânsito? Quando comecei a fotografar arquitectura por comissão, em 1999. Há 10 anos. Antes vivi em Macau 5 anos e apesar de ter tido um trabalho normalíssimo num atelier como arquitecto, comecei a viajar e a fotografar em viagem. Aprendi nesses anos a base do meu trabalho fotográfico de reportagem. Sem cliente. Aprendi a usar pouco material para fotografar. A olhar de preferência para o que é essencial. Nestes últimos meses por onde tem transitado? As minhas paragens nacionais são quase sempre divididas entre o sul, centro e norte. E tento agrupar vários trabalhos que são perto geograficamente. Em cada uma das zonas tenho casas ou hotéis preferidos onde regresso sempre. Marco geralmente do carro enquanto guio. Ou simplesmente apareço na casa de um amigo. Não há regras. O que existe de positivo e negativo num tipo de vida em constante trânsito? A atenção que dou às minhas filhas é sempre o que me preocupa mais, apesar de nesta fase elas já es-

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tarem as duas muito habituadas à minha ausência. Nunca me conheceram de outra maneira. Gostam apenas de saber quando regresso. No entanto penso que compenso quando estou com elas. Positivo é quase tudo. Falta de monotonia, um escritório diferente todos os dias. Depois de uns anos na estrada era impossível regressar a uma vida sedentária. Onde considera ser a sua casa? Tenho duas. Em Lisboa é a base mais urbana e uma segunda a 60kms onde tenho um estúdio e onde tento passar os fins de semana com as minhas filhas mais descontraído. De qualquer forma Lisboa é o sítio onde me sinto melhor. Aliás quanto mais viajo mais gosto de aqui estar. É uma delícia regressar. Quais são os objectos que estão sempre consigo? Maquina(s) fotográfica(s), quatro telemóveis, E um relógio com barómetro, bússola e horas de nascer e pôr do sol. E isto apenas para ir ao café. Nunca deixo o equipamento no carro ou no hotel, por isso ando sempre com uma mochila com tudo. E quais os objectos que ajudam tornar o local onde reside em algo de maior apropriação? Tenho muitos. O iphone, o blackberry tornaram-me a


vida muito mais fácil, já que me permitem estar em contacto com o atelier permanentemente e deixar o portátil em Lisboa e deixam-me seguir também imagens de satélite em tempo real do sitio onde estou. A atenção ao tempo é uma constante na minha vida. Tem quantas chaves de casa? Tenho uma comigo sempre claro. Mas não ligo muito de facto. Qual a mais importante: a chave de casa ou a chave do carro? A do carro claro. Sempre. Mas sente que “tem a casa às costas” ou esse peso não existe? Não existe qualquer peso no sentido aborrecido do termo, mas sim ando com tudo aquilo que preciso para uma vida nómada que pode mudar de repente. Tanto posso estender uma estadia como cancelar uma sessão por causa do mau tempo. Estou sempre preparado para prolongar estadias. Que papel desempenha o carro e a casa na sua vida? São de alguma forma uma extensão do seu trabalho? O carro é a base de tudo durante a semana. É o meu escritório. Passo geralmente mais tempo no

carro do que em casa. Gosto de conduzir por isso não é qualquer drama. Desloco-me sempre sozinho de carro. Nos últimos 6 meses fui a Barcelona 3 vezes e sempre no carro. Existem aviões muito baratos e aviões a toda a hora, mas a minha liberdade não funciona a voar. E adoro parar numa estação para abastecer e ver realmente onde estou, talvez almoçar. Ou dormir. E fazer umas fotografias que nada têm a ver com o trabalho. A casa por outro lado onde gosto de trabalhar e descansar. Essencial regressar. Apesar de ter um atelier com uma equipa com quem falo todos os dias, é em casa que edito os trabalhos. Devo ir ao atelier duas ou 3 vezes por mês. Mas não há um dia em que não troque vários emails com cada uma dos colaboradores. E também estou permanentemente a enviar para o o atelier um feed de imagens do sítio onde estou e o que faço. É um tipo de twitter mas mais restrito e muito divertido. No filme “Professioni: Reporter” de Antonioni a personagem de Jack Nicholson é um jornalista que vive constantemente em trânsito entre o seu Land Rover Defender, outros carros e quartos de hotel de variadissímas cidades. Curiosamente a tradução do título do filme para inglês é “The Passenger”. Considerase também um passageiro? A minha posição é muito activa em relação ao que faço e como faço as coisas no dia a dia. Pouco deixo

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à sorte ou ao acaso, tanto da condução do meu carro como é obvio, como do caminho e do destino. É uma questão profissional, por isso tem de ser controlada. Não são viagens que se fazem por gosto. (Mas que se fazem no entanto com gosto.) Existe um planeamento cuidado do que vou fazer e das horas a que vou chegar. Nunca existe uma hora de partida do trabalho- é sempre quando esta pronto- muitas vezes acabo por sair de uma sessão às 10 ou 11 da noite, tendo outra no dia seguinte bem cedo e no entanto é raro ter sequer um hotel marcado- O que não é ideal, mas me dá prazer e uma liberdade relativa de que gosto. Como ando sempre sozinho, não levo ninguém comigo para as sessões, dificilmente me sinto levado... Ou um passageiro. Também não uso transportes públicos e evito sempre que posso os aviões. Preocupo-me em só fazer depender o que faço que apenas de mim. Essencial poder arrancar quando quero. Ou ficar quando é preciso... Para depender da sorte já é suficiente a meteorologia que pode fazer brilhar ou cancelar uma sessão. Ainda no mesmo filme, a personagem principal que se encontra primeiramente no Deserto do Sara por razões profissionais, depois de passar por Londres, move-se para Barcelona. Lá envolve-se com uma estudante de arquitectura (já na altura uma pronuncia da procura de alunos estrangeiros pela cidade catalã) que conhece na casa Milá. Nada está plane-

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ado, simplesmente transita.Apesar da sua profissão depender muito da localização do edifício (que fotografa neste caso), quão frequentemente, por outras razões mais pessoais vive em trânsito? Habituei-me a sair de Lisboa frequentemente. É um gosto profissional que é completamente pessoal. Já não separo a parte profissional da pessoal há muito tempo. Acabo por passar pelo menos metade da semana fora de casa. A viver entre hotéis e o carro, tendo como fundo os trabalhos que vou tendo que podem tanto ser uma habitação unifamiliar como uma universidade ou um museu. Se esta actividade fosse apenas baseada no profissional ou no económico, era provavelmente vazia. Acima de tudo é um prazer. Que experiências mais interessantes teve em trânsito? Existem muitas, mas por exemplo a descoberta dos trabalhadores em São Vicente em Cabo Verde. Muitas vezes em viagens que faço acabo por lavar os olhos com outras coisas. Numa viagem a Cabo Verde onde me desloquei para fotografar o aeroporto, acabei por ter tempo para me dedicar a um projecto pessoal que foi apaixonante por não depender da encomenda. Às vezes acontecem surpresas. Mas claro que basicamente acabo sempre a fotografar. De uma forma ou de outra. www.fernandoguerra.com/svicente Que coisas continuam a ser mais complicadas de


manter quando se está em trânsito que forma tão intensa? Temos de saber ser boa companhia para nós mesmos. Acabo por passar muito tempo sozinho. Considera que tem casas que são sub-utilizados no sentido em que não permanece na mesma durante grande parte do tempo e que não é habitada por mais ninguém? A minha casa esta sempre cheia, mesmo quando não estou. Quais as vantagens de viver em cada um desses sítios a nível pessoal e profissional? A variedade e as pessoas que se conhecem. As pessoas podem habitar qualquer coisa? Depende das circunstâncias claro. Por questões pessoais imagino que se possam fazer sacrifícios, mas no meu caso acabo sempre por escolher onde durmo e descanso e onde como. Essencial.

Fernando Guerra, arquitecto e fotógrafo (Questões colocadas via e-mail e respondidas a 23 de Setembro 2009.) Imagens amavelmente cedidas por Fernando Guerra.

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Extradição para onde?

“Cosmopolita – nm/f Pessoa que considera como sua pátria o mundo inteiro; indivíduo que se sente bem em qualquer país; adj (unif) que é de todos os países: universal; que viaja por toda a parte; qualificativo dos vegetais que são espontâneos em diversas regiões do Globo”10. O termo surgiu pela primeira vez na Antiguidade Grega por parte do filósofo cínico Diógenes de Sínope (413-327 a.C.). Quando questionado por alguém sobre de onde era, o grego terá respondido que era cosmopolita. Exemplo de um indivíduo com uma estrutura familiar pouco sólida, sem uma pátria, vivia num tonel (um vaso de grandes dimensões e capacidade, usado pelos antigos Romanos para guardar vinho, azeite, cereais, frutos, etc.), opondo-se à forma como os seus concidadãos viviam [imagem 7]. Recusa-se a ser um cidadão da cidade, do Estado (polis) para ser um cidadão do mundo (cosmos). Esta afirmação é de facto algo insólito para as mentes da altura. Ainda hoje o é para muitas pessoas. “Este retrato do sujeito contemporâneo como uma ‘nova maneira de ser que consiste na desaparição adquire, no pensamento contemporâneo, distintas formas: o parasita de Derrida, os nômades de Deleuze e Guattari, ou a figura do vagabundo em Lyotard, entre outros, representam este retraimento ou marginalidade do perfil do sujeito contemporâneo.”11 Não só discutida entre os intelectuais da área da filosofia senão também retratada por alguns cineastas, o tema da transitoriedade residencial no século XX adquire um especial interesse nas obras cinematográficas de Michelangelo Antonioni através de filmes como: 10 11

Lexicoteca: Moderna Enciclopédia Universal, Lisboa: Círculo de Leitores, 1985 Iñaki Ábalos, A boa-vida – Visita guiada às casas da modernidade. p. 147

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Gente del Po (1943) – um documentário que retrata as habitações das pessoas que trabalham nas margens desse rio e que vivem nas embarcações –, Nettezza Urbana – onde um vádio se fecha num quiosque de flores na Piazza de Spagna –, Zabriskie Point (1970) – cujas personagens principais viajam continuamente em busca de algo, estando sempre em estrada à procura de um lugar que possam tomar como casa –, L’eclisse (1962) – Piero não se sente em casa na sua casa mas apenas no emprego (“a tumultuous non-space, the exemplary site of flux and circulations”12) –, ou em Professione: Reporter (1975) [imagem 8]– um jornalista televisivo que vive em quartos de hotel e no seu Land Rover Defender e em carros de outras pessoas.13 Em todos eles é espelhada esta condição de transitoriedade residencial de pessoas que não tendo uma residência fixa experienciam a cidade de uma forma diferente da maioria. Tal como defende Gonçalo Furtado, “se algo caracteriza a contemporaneidade – em que se tornou imperativo a mobilidade, flexibilidade, informacionalização e globalização – é a sua frenética transitoriedade.”14 Um caso certamente único dessa mesma intensidade de trânsito humano foi reflectido na realidade através de uma peça teatral intitulada “Jet Lag” (1998) [imagem 9] cuja concepção é da autoria de Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio. Conta-nos duas histórias verídicas. A primeira, a de uma americana – Sarah Krasnoff – e o seu neto, que durante seis meses voaram 167 vezes entre as cidades de Nova Iorque e Amesterdão. Questões legais relacionadas com a custódia do neto obrigam-na a fugir com ele, afastando-o do seu pai e do psiquiatra que o acompanhava. Embarcaram assim nesta odisseia sem fim e que levou a avó a tentar reproduzir um ambiente doméstico onde quer que estivessem. As vidas de duas pessoas que, estando em constante movimento entre o interior do avião – onde assistiram a 22 filmes 7 The Urban Condition: Space, Community, and Self in Contemporary Metropolis. p. 342 Op. cit. (descrição dos filmes) 14 Gonçalo Furtado, “Transitoriedade e Apolítica”, Revista NU #8. Coimbra, Fevereiro 2003, p. 16 12 13

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vezes cada, onde se alimentaram com os mesmos almoços todos os dias, adiantando/recuando os seus relógios 6 horas – e as zonas de estar dos dois aeroportos americano e europeu, são referências de ubiquidade nesta viagem sem prolongadas paragens, que terminou com a morte de Sarah Krasnoff aos 74 anos, vítima de um intenso jet lag. Curiosamente esta condição fisiológica é emblemática quando se fala dos tempos modernos e da intensa mobilidade que hoje em dia é permitida. É um bom exemplo do carácter paradoxal da relação entre espaço e tempo no presente e que se acentua com o desenvolvimento tecnológico. Admitindo a definição de habitação comummente aceite15, e admitindo que as questões espaciais (encerramento do avião e aeroporto) assim como de estrutura familiar são satisfeitas por esta definição, poder-se-á dizer que esses espaços foram a residência de ambos? Ou serão estes espaços não-lugares?

“Habitação (…) designa um alojamento, que é o termo usado e estatístico, como o espaço delimitado, parcialmente encerrado ou encerrável, onde vive, permanece, enfim, reside uma família, restrita ou alargada. E o mundo privado da família que pode corresponder a uma só pessoa ou, no extremo oposto, a uma pequena comunidade com laços de consanguinidade, parentesco ou de contratualização económica.” definição em Lexicoteca: Moderno Dicionário de Língua Portuguesa, Volume 1 A-L, Lisboa: Círculo de Leitores, 1985.

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A Casa ou a Cidade? - Paris

O realizador taiwanês Hou Hsiao Hsien no seu filme “Le Voyage du Ballon Rouge” (2007) [imagem 10] explora dois territórios externos: a Paris dos tempos modernos e a Paris existente no argumento do filme Le Ballon Rouge (1958) de Albert Lamorisse. A personagem de Juliette Binoche (Suzanne) é uma mãe que vive com o seu filho Simon num minúsculo apartamento num arrondissement de Paris. Gere um teatro de marionetas, o seu namorado vive no Canadá. Ela procura uma nova ama para o seu filho. Encontra uma estudante de cinema vinda do Taiwan. É através do rapaz e do seu percurso pela cidade que a ama acaba por fazer um pequeno filme com o mesmo título do clássico de Lamorisse. O interesse deste filme para a temática estudada prende-se com três aspectos. O primeiro por ilustrar de uma forma bastante interessante o carácter da mobilidade dos tempos de hoje. Sempre a houve, e especificamente na cidade de Paris. No entanto, já não se tratam dos mesmos imigrantes e as suas proveniências são muito mais distantes. O segundo aspecto tem a ver com a parte mais simbólica e íntima do filme. Um rapaz, solitário que vive numa metrópole europeia, com uma presença ligeira da sua mãe que, por razões profissionais, está frequentemente fora de casa. Também ele acaba por passar o seu tempo fora na cidade, seguindo um balão vermelho que tenta agarrar. Porventura é apenas reflexo do individualismo dos tempos de hoje personificados nesta personagem tão nova. Mas crê-se que não no sentido pejorativo, mas antes na tomada de consciência das reais capacidades do indivíduo na busca do seu sonho (sendo o balão aquilo que se quer, e esta

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cidade cosmopolita o espaço por onde essa viagem poderá ser feita). Simon torna-se assim num excelente exemplo da ruptura com o sujeito tradicional. “(…) desvanece-se não apenas a associação a um modelo antropocêntrico clássico segundo a visão etnocêntrica ocidental – o da família patriarcal, ou melhor, o do pater famílias –, mas também a sua ligação a uma linhagem ou a um lugar específicos”16 Finalmente o último aspecto que me parece relevante diz respeito à forma como estas personagens se apropriam da casa onde habitam. Diversas cenas mostram quão compactos são estes apartamentos em Paris. Invariavelmente vemos sempre o mesmo enquadramento do seu interior: a entrada para uma pequena cozinha, uma mesa que é o centro gravitacional da habitação, um piano e dois mezzanines que têm duas camas. O resto da casa é ocupado por uma série de estantes com livros. Um único espaço, sem hierarquias de privacidade muito acentuadas, onde o sujeito se rodeia por artefactos relacionados com o desenvolvimento das suas actividades (a mulher que regressa do trabalho ao conforto do seu apartamento parisiense boémio-burguês, dos seus livros e a criança que estando sempre fora – vivendo a cidade e não a casa – habita-a para dormir e para ter as suas lições de piano) Como expressa Iñaki Ábalos a respeito da mulher nômade de Tóquio [imagem 11] (actriz de um fenómeno social também identificado por Toyo Ito na década de 1980, que curiosamente teve como modelo a sua colaboradora Kazuyo Sejima): “A casa, como forma, como módulo disponível para a agregação, como entidade reconhecível e como espaço interior submetido a um zoneamento, deixa de ser interessante, de ser o lugar no qual se resolve o projeto. Problemático, e importante, agora, é o meio em que a mulher nômade realiza a sua existência: um conjunto de artefatos ou móveis nos quais a técnica ou a memória já não são reconhecidas como signos, meros instrumentos para o hedonismo – nos quais a velha priva16

Iñaki Ábalos, A boa-vida – Visita guiada às casas da modernidade. p. 151

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cidade encontra-se dissolvida. Estes objetos são escolhidos em função de seu vínculo com as principais atividades desenvolvidas pela mulher nômade, conformando um programa estritamente relacionado ao que há de mais imediato na sua existência diária”17 . Contudo, há uma outra característica neste modo de vida e que está também presente no filme. Há claramente uma inversão do carácter público/privado nestas casas. Acções tradicionalmente aceites no espaço exterior são importados para este espaço doméstico.18 Mas também acontece o contrário. De facto, (e especificamente no caso de alguns quarteirões em Paris) é comum a interpretação e apropriação das ruas próximas à residência como uma extensão desse minúsculo espaço19. Apenas o essencial para estes seres individuais existe no interior (refeições, encontros, tratamentos de roupa, são tudo acontecimentos que podem decorrer fora do espaço da habitação), sendo que publicam-se (no sentido de tornar público) os espaços que anteriormente eram considerados privados assim como algumas actividades. Sobre isto e sobre o já referido projecto de Toyo Ito, Inês Moreira refere: “Em sua casa não necessita de frigorífico, máquina de lavar nem sala de estar, todos estes serviços estão providenciados por instalações públicas em espaços públicos (…) os espaços públicos são apropriados e se tornam interiorizados e os espaços privados são reduzidos ao mínimo.”20 É esta publicação que é apetecível para muitos indivíduos que estando em trânIñaki Ábalos, A boa-vida – Visita guiada às casas da modernidade. p. 151 “O facto de muitos franceses disporem de pouco espaço explica em parte o prazer que parecem sentir em viver fora de casa. O francês recebe no café e no restaurante. A casa é reservada à família, os lugares exteriores são consagrados às diferentes distracções e às relações sociais” (Edward T. Hall, A Dimensão Oculta. “Franceses: A casa e a família”, p. 111.) No entanto, que acontece à casa quando as estruturas familiares se tornam cada vez fragmentadas e/ou menores? Variáveis como o divórcio ou a crescente mobilidade possibilitada aos indivíduos têm uma profunda influência na apropriação e necessidades relacionadas com o espaço doméstico. 19 Catarina Marques, Lilong – Tipologia Urbana de Xangai. Uma referência para a arquitectura contemporânea, p. 80 20 Inês Moreira e Yuji Yoshimura, “Práticas Quotidianas Aceleradas, ou onde vive Kazuyo Sejima?”, Revista NU #8. Coimbra, Fevereiro 2003, p. 5 17 18

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sito tem outras necessidades e exigências. Neste sentido, 15m2 de área habitacional numa cidade como Paris [imagem 12], ou Londres ou Lisboa poderão ser mais desejáveis por um figurino de residencialidade transitória que um quarto no Ritz dessas mesmas cidades.

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A Casa ou a Cidade? - Tóquio

Considerado pela realizadora como um “estudo requintado sobre a deslocação emocional e geográfica”, o filme de Sofia Coppola “Lost In Translation” (2003) [imagem 13] reflecte muito o que é no presente o mundo para alguns. Particularmente quando se fala de intensidade de trânsito humano e as novas formas de encarar o espaço residencial e a cidade. Observamos um rápido período de vida de dois indivíduos deslocados e perdidos numa cidade já por si confusa: Tóquio. O que se reflecte neste filme não é a excepção daquilo que tendencialmente acontece. Isto é, indivíduos que poderão estar afastados do seu ambiente natural e ainda assim experenciar uma vida intensa. No filme é possível observar como naturalmente os espaços mais intensamente vividos giram em torno do quarto de hotel, mas que raramente é o próprio quarto a tomar esse papel. Aliás, para as duas personagens principais os quartos revelam-se espaços de angústia e solidão onde visualmente se confrontam com uma metrópole gigantesca desconhecida. Os encontros são feitos em qualquer lugar no hotel (bar – a personagem interpretada por Bill Murray responde a determinada altura à personagem de Scarlett Johanssen “I’ll be in the bar for the rest of the week” –, corredores, piscina, lobbies, zonas de estar) e na cidade (nas caóticas ruas, salões de jogos, em bares de karaoke minúsculos – estes últimos existentes em espaços semelhantes a um apartamento, acentuando a inversão do carácter espacial privado para actividades consideradas como públicas).

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É precisamente na cultura japonesa que um dos fenómenos espácio-temporais é mais presente e notório. Apesar de existentes noutros países com outras designações, é no Japão que os Konbinis (lojas de conveniência, [imagens 14 e 15]) alcançam grande importância para indivíduos com uma estrutura familiar pouco comum e por consequência para a maioria dos figurinos de TR. A quase omnipresença e sucesso são reflexos da sua utilidade para muitos indivíduos, estando “direccionada para hábitos de consumo japoneses tradicionais: não armazenar, mas comprar todos os dias.”21 Estas redes estão espalhadas de forma tão criteriosa que em conjunto possibilitam a entrega de produtos várias vezes ao dia (entre duas a cinco vezes). Isto faz com que não seja necessária a fixação de grandes áreas comerciais no centro dos grandes núcleos urbanos, sendo que apenas é requerida a sua proximidade das grandes vias de comunicação que ligando os konbinis às áreas de produção externas. Não é por mero acaso que este modelo de comércio se adequará aos figurinos transitoriedade residencial modernos e à forma como se apropriam do espaço doméstico na medida em que, nos dois casos a sua ligeira fixação na cidade torna a estrutura social mais flexível e estável a novas situações que possam surgir e abalar o normal funcionamento das (so)ci(e)dades. Num mundo cada vez mais global também a economia se dilata espacialmente. Modelos socioeconómicos como os de Ford (produção em massa) deixam de fazer sentido num contexto destes “Quanto mais flexíveis e desarticuladas são as estruturas locais, espaciais ou temporais, materiais ou sociais, mais estável é o sistema ao nível global”22. Tal como os novos modelos económicos de Acumulação Flexível, o figurino de transitoriedade residencial vai-se movendo até que não encontre uma estrutura rígida que negue as suas ambições (no caso da Economia, os factores de competitividade por um mercado mais Inês Moreira e Yuji Yoshimura, “Práticas Quotidianas Aceleradas, ou onde vive Kazuyo Sejima?”, Revista NU #8. Coimbra, Fevereiro 2003, p. 5 22 David Harvey, The Condition of Postmodernity: An Enquiry into the Origins of Cultural Change (Massachusetts: Blackwell Publishers, 1990) 21

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alargado). Há um paralelismo entre libertação das imposições quantitativas de produção fixas, e a libertação do indivíduo de um único sítio fixo de pertença. Indivíduo e capital não estão assim encerrados espacialmente e movem-se num espaço de forma mais abrangente. Se observarmos com atenção, estes espaços poderão ultrapassar o simples carácter comercial que à primeira vista terão. Para além dos serviços de: compra e venda de produtos (sendo que não funcionam como posto de abastecimento de combustíveis), envio de correspondência, fax, reprografia, ATM, pagamento das mais variadas prestações de serviços, o Konbini também desempenha um papel importante para a vivência de indivíduos com uma estrutura familiar mais pequena ou inexistente. “Simultaneamente é um novo espaço de sociabilidade. É um dos espaços em que a inversão interior/exterior do espaço público acontece: funciona como uma íntima sala de estar, um lugar de encontro, e ao mesmo tempo um lugar de deriva onde um novo tipo de flanerie encerrada acontece.”23 Ainda que ensaiado por arquitectos e artistas em variadíssimas obras e instalações, parece que é nesta realidade, a da inversão interior/exterior e do privado/público, que tudo toma uma intensidade maior. No entanto, exercícios como os de Toyo Ito – nomeadamente os projectos para “Nomad Women Housing for Tokyo” (Pao 1, 1985 e Pao 2, 1989) – servem para reflectir as consequências que têm os fenómenos sociais na domesticidade. De forma mais concreta, a alteração a tudo o que diz respeito às novas tipologias familiares. Se no século passado as definições para este tipo de mulher – independente, exigente, ambiciosa, consumista, informada, jovem, com prioridades que ultrapassam as do casamento ou da procriação – eram de mulher nómada, hoje em dia há quem as designe alpha women. Seja qual for o nome que seja considerado, compreender estas alterações sociais permite uma reflexão mais fundamentada acerca das questões da nova domesticidade. Mas não apenas o estudo dos feInês Moreira e Yuji Yoshimura, “Práticas Quotidianas Aceleradas, ou onde vive Kazuyo Sejima?”, Revista NU #8. Coimbra, Fevereiro 2003, p. 7

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nómenos da emancipação da mulher, senão também os fenómenos do divórcio e as suas consequências aquando da existência de filhos, ou na própria domesticidade de um casal normal no presente. São todas elas variáveis importantes e é essencial que sejam entendidas (o futuro será constituído por cada vez mais variedade e especificidades de situações que, obviamente afectarão a forma como se vive a domesticidade deste século). No entanto não podemos negar que, ao contrário de outras áreas é na arquitectura que mais se observa uma letargia na resposta a estas alterações. Poder-se-á questionar se uma abordagem mais próxima do que é considerado ser o paradigma do nomadismo será uma válida resposta às novas manifestações sociológicas que requerem uma nova reflexão na arquitectura. Numa reflexão de Iñaki Ábalos, partindo do prefácio de Anti-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia do filósofo francês Gilles Deleuze, o arquitecto refere que “a idéia de um espaço ‘liso’, implícito à mobilidade nômade, frente a um espaço ‘rugoso’, ligado ao sedentarismo e, através dele, ao Estado Moderno, contém e é capaz de desenvolver um léxico necessário para se elaborar uma proposta de um programa baseado no abandono de algumas das categorias mais estáveis, associadas à disciplina arquitetônica.”24 No entanto será um erro olhar para a apropriação de um espaço doméstico, ou a construção de uma nova habitação e pensar mimetizar outros paradigmas que à primeira vista tenham sucesso, nomeadamente o da indústria automóvel. “En repetidas ocasiones a lo largo del siglo veinte, la industria del automóvil ha servido de referente – de ideal – para una industria, la de la construcción, que una y otra vez ha chocado contra la incomprensión del público hacia los cambios, hacia las innovaciones de la arquitectura. La casa jamás ha sido asimilada por el habitante como un objeto integral de consumo. Por las razones que sean, la industria de la construcción no ha sabido nunca alcanzar el nivel material o tecnológico realmente contemporáneo que se asocia a otros elementos presentes en nuestras vidas cotidiana.”25 Ainda que se possa dizer que são dois 24 25

Iñaki Ábalos, A boa-vida – Visita guiada às casas da modernidade. p. 148 Manuel Gausa, Singular Housing – El Dominio Privado, p. 104

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objectos distintos na medida em que respondem tradicionalmente a tempos de utilização diferentes a verdade é que, há um conjunto de pessoas que pretende apenas apropriar-se de uma casa durante o mesmo tempo em que em média um indivíduo se apropria de um automóvel. O arrendamento contribui em muito para que esse cenário seja real (a crise imobiliária de 2008-2009 e a prévia falta de crédito são um dos principais responsáveis – ainda que noutros países o que é a regra é arrendamento e não a compra). Assim, porque razão continuamos a viver opondo-nos a todas estas evidências? Tal como a personagem de Buster Keaton no seu filme One Week (1920) continuamos à procura do local que trará a felicidade do dia-a-dia sem nos apercebermos de que a forma de construir a casa e de a habitar não se enquadra com os nossos tempos.26 “Ainda que logo fique evidente a ocorrência de algum erro, Keaton não tem alternativa alguma, nenhum outro modelo de pensar que possa opor ao do manual, e, assim, procederá cegamente a uma construção maquínica, cujo resultado final será uma cruel metáfora do futuro do casal e da instituição da família em nossos dias.”27 O que assim tende a acontecer é a reflexão das ilusões e ambições pessoais do indivíduo – não sobre a casa como acontecia anteriormente (e ainda hoje em dia acontece) – mas sobre um espaço muito mais amplo e menos delimitado. O fito não é o de procurar e encontrar uma vivência feita em casa – ainda que isso seja desejável na esmagadora maioria das pessoas – mas antes é prioritário a um figurino de transitoriedade residencial intensa que a casa funcione como um nó, como um garante de fluidez num sistema de fluxos que permite a relação entre o indivíduo e o mundo. “O lugar da casa não é mais do que uma densificação do trajeto, um nódulo, um vórtice onde se concentram e se vincam intensidades para definir “(…) Keaton não só renuncia a todas as alternativas, mas é e se sente incapaz de opor qualquer lógica compensatória, aceitando os erros como uma parte da norma e habitando a impossibilidade mesma de se construir uma casa convencional” (Iñaki Ábalos, A boa-vida – Visita guiada às casas da modernidade. p. 143) 27 Op. cit., p. 143 26

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a expressão mínima do habitar, da idéia de interior que é consubstancial ao habitante.”28

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Iñaki Ábalos, A boa-vida – Visita guiada às casas da modernidade. p. 159

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Choças na Beira Baixa – A Casa Politética

E existe – no passado e em Portugal – um modelo de definição de espaço residencial e consequentemente um modo de vida que vai ao encontro de uma nova forma de habitar num contexto onde é importante ser-se produtivo. Um modelo de multi-fixação residencial que favorece um estilo de vida fluido com os nódulos referidos por Ábalos. Uma espécie de Casa Möbius29 onde as diversas actividades que um indivíduo pratica ao longo do dia (trabalho, lazer, etc.) relacionam-se com diversos espaços, todos eles localizados ao longo de um trajecto definido. No caso que se irá falar de seguida, o trajecto não é rígido e os espaços domésticos são mínimos e pontuais. Curiosamente não é exemplo novo, tão-pouco é urbano, antes um modelo rural de outrora. No entanto, o que há de comum nestes dois casos é a necessidade de mobilidade em contextos económicos de grade exigência. É em alturas de maiores sacrifícios que o Homem tende a surgir com as soluções mais criativas. Nesse sentido é curioso o exemplo da região das Beiras, em Portugal. Aí, apesar de todas as adversidades (maiores do que aquelas que um português possa pensar) foi possível utilizar a tecnologia existente contrariando as adversidades.30 Projecto de Ben van Berkel, em Het Gooi, Holanda (1995-1998). “São poucas as indústrias na Beira e, mesmo assim, em grande parte subsidiárias da agricultura. Os cestos, os cântaros, os tonéis e as dornas, os machados e as enxadas, os arados, as charuas, os carros de bois, e um grande número de objectos essenciais ao beirão, servem o agricultor, são fabricados em pequenas oficinas rudimentares, negociados principalmente nas feiras, e repetem modelos centenários, cuja técnica de fabrico tem sido transmitida de geração em geração. (…) Prolifera nesta região do País uma gente rija e aguerrida, cuja epopeia tem sido a luta milenária para arrancar ao solo pouco generoso um sustento escasso. Homens em quem tal luta gerou hábitos de trabalho sem tréguas nem desfalecimento, de sobriedade, de economia e um entranhado amor ao terrunho que lhes resiste, mas que os alimenta e lhe revela a medida das suas forças

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Ontem, tal como hoje, muitos indivíduos o tentam fazer num mundo onde são obrigados a adquirir conhecimentos, movendo-se de forma a continuarem o seu pursuit of hapiness como afirmava Chaplin no início do filme “Tempos Modernos”31. Se no caso concreto dos beirões do século passado esta mobilidade se restringia a um território de escala regional, no presente esse território alargou-se tremendamente e as ferramentas de trabalho não são as mesmas. Na exposição intitulada “Agricultura nos campos de Idanha” (2005), apresentada no Centro Cultural Raiano em Idanha-a-Nova, um dos aspectos retratados prendia-se com a arquitectura de produção existente nessa região. A mais importante – também presente noutras partes do país, nomeadamente no Alto Alentejo – é a designada Choça32 [imagem 17] que hoje em dia é praticamente inexistente no nosso território. Também designadas por sochos, choços, esteiras, estas eram construções ligeiras, feitas em materiais vegetais e maioritariamente usadas por pastores. Estes abrigos poderiam ser móveis – de forma a serem transportados nas deslocações associadas à actividade de pastorícia – ou poderiam ser em número tal que, estando distribuídos pela área de trânsito, poderiam ser apropriados pelo pastor ou a sua família. Estas esteiras vegetais não seriam então carregadas às costas pelo pastor ou deslocados sobre carros de tracção animal [imagem 18]. Ao contrário, permaneciam fixas no território. Desta forma, para o presente texto, o que é mais importante de realçar são as consequências que este modo de vida dos utilizadores das choças têm numa determinada área geográcriadoras. Em contrapartida, mantém-nos num primitivismo de vida, de interesses e de aspirações que impressiona e, frequentemente, confrange.” (AAVV, Arquitectura Popular em Portugal, p. 8) 31 “’Modern Times’. A story of industry, of individual enterprise – humanity crusading in the persuit of happiness”. Tempos Modernos (1935), de Charles Chaplin. 32 Choça s.f. 1- Choupana; 2- fig. Casa Humilde definição encontrada em Lexicoteca: Moderno Dicionário de Língua Portuguesa, Volume 1 A-L, Lisboa: Círculo de Leitores, 1985.

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fica. As famílias destes pastores viviam ao mesmo tempo em várias destas choças sendo que estas eram caracterizadas pela sua multifuncionalidade, uma vez que para além de abrigo também desempenhavam uma função produtiva importante para esta região: era ali que se realizavam os processos de feitura dos queijos (coalhada através do aquecimento do leite, o processamento da coalhada e o amadurecimento do próprio queijo), assim como a seca do fumeiro. Na verdade, a lareira adquire uma importância significativa nas várias choças pertencentes a uma determinada família.33 Também aqui, como no presente, a necessidade de prover a habitação de espaços possíveis de serem utilizados para o trabalho. Assim, a ideia trabalho domiciliar (no sentido em que a produção de trabalho é feita no espaço doméstico) não é algo que surge nas décadas mais recentes, ao contrário, poder-se-á afirmar que é uma situação muito presente desde que há actividade produtiva humana. É, mais uma vez, a necessidade que provoca – nos dois casos – que tal aconteça. Aliás, muito provavelmente a percepção de uma completa separação entre área residencial e local de produção foi ao longo da História uma excepção.34 Não pretendendo analisar a choça do ponto de vista construtivo, espacialmente é importante fazer esse estudo. “Não há qualquer divisória interior – não raro apenas palha espalhado no solo – é geralmente instalada ao fundo do abrigo, a meio fazem o fogo; à volta amontoa-se o parco mobiliário e utensilagem (…)”35 Ou seja, este figurino de transitorieda “A lareira é o fulcro da habitação. Aí se preparam as refeições frugais, se aquecem os corpos enregelados pelo Inverno, se convive, se fuma a carne do porco e seca a lenha, ou as castanhas, nos caniços que em certas subregiões a encimam.” (AAVV, Arquitectura Popular em Portugal, p. 27) 34 Cada casa é, assim, o fulcro dum pequeno mundo agrícola familiar, com certa autonomia. Autonomia que nem sempre se alcança. Ou melhor, que nem sempre se alcança totalmente, mas que constitui uma aspiração generalizada nestes povoados pobres, em que em terra-mãe, pouco fértil e exaurida, retribui com parcimónia os mil cuidados que exige.” (AAVV, Arquitectura Popular em Portugal, p. 57) 35 Ernesto Veiga e Oliveira (et. Al), Construções Primitivas em Portugal. p. 55 33

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de relega para segundo plano todos os confortos em beneficio da sua maior mobilidade e da sua capacidade de produzir mesmo dentro de um espaço doméstico [imagem 19]. Há desta forma um paralelismo com os actuais figurinos de transitoriedade residencial.36 Também o mobiliário se resume aos objectos (ou artefactos como referia Ábalos) que são essenciais para o indivíduo que está em trânsito.37 Tal como acontece com a mulher nómada de Toyo Ito também aqui neste exemplo o mobiliário adquire uma tão grande importância pois ela é ou contém os objectos mais valiosos para a existência do indivíduo no dia-a-dia. De facto, estes móveis pela primeira vez tornam-se móveis no verdadeiro sentido da palavra. A enorme mobilidade do sujeito leva a que os objectos a serem transportados assim como as estruturas que ajudam a transportar esses objectos sejam possíveis de serem movidos e que realmente se movam. Um outro ponto importante de destacar diz respeito à forma como as choças – como fazendo parte de um conjunto de espaços domésticos – conseguem adquirir alguma exterioridade no sentido em que elas não se limitam a ser vividas dentro do seu perímetro interior. Na verdade elas extrapolam-na. Há também aqui uma situação em que a relação interior/ exterior tradicional é invertida, sendo que no interior do espaço doméstico permanece-se para descanso ou para a feitura de produtos.37 Desta forma, e abstraindo das diferenças temporais óbvias, é curiosa a possibilidade de, “Nos terrenos vastos e abertos do Leste – planalto transmontano, Beiras Interiores, Alentejo, e também o Ribatejo – o pastoreio, com os seus aspectos sensíveis embora atenuados de mobilidade e isolamento, e a rudeza da vida primitiva do pastor, traz até aos nossos dias um reflexo do carácter que tinha em remotas eras” (op. cit., p. 39) 37 “Elementos muebles, de igual consideración que los asientos, las camas o las estanterías, los medios de transporte y de telecomunicación contribuyen, pues, a disipar la estabilidad, la estática del equilibrio inmobiliario. La vivienda contemporánea se convierte en la encrucijada de los medios de comunicación de masas, hasta el punto de que la garaje podría reemplazar fácilmente esta ‘vivienda’ que no era en origen más que el ‘aparcamiento’ de los muebles del nómada.” (Paul Virilio, Singular Housing – El Dominio Privado, p. 95) 36

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um paradigma de domesticidade rural do passado, poder ser apontado como uma possível proposta para uma nova domesticidade no presente. O paradigma de nova domesticidade que aqui se tenta estimular é – numa macro-escala – multi-localizada, fixando-se nos nós que servem o trajecto do sujeito. Isto leva a que em teoria, um indivíduo que é: solitário e que tem múltiplas residências num espaço temporal relativamente curto, ocupe espacialmente uma maior área que um outro indivíduo que vive em co-habitação numa única residência. Tal facto poderá ser positivo quando se aborda as questões da regeneração urbana de espaços que antigamente eram industriais e marginais e que agora são apetecíveis. Ou seja, a solicitação de um maior número de habitações por indivíduo poderá levar à promoção da reabilitação urbana. Foi em paralelo com estes pressupostos teóricos que foi desenvolvido o projecto para oito habitações.

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Conclusão

Deste forma, chega-se ao fim desta reflexão não intentando uma receita dogmática sobre qual deverá ser a apropriação doméstica para um figurino de transitoriedade residencial. Antes, tentou-se enquadrar a problemática socorrendo-se a um conjunto de exemplos e definições que poderão vir a vislumbrar melhor o futuro deste tipo de habitar. Utilizando uma metáfora digital, os exemplos mencionados, as questões levantadas e as perspectivas com que foi abordado este problema contemporâneo tentam ser pixels de uma imagem final que responda às novas exigências destes sujeitos. A abordagem mais prática ficará destinada à segunda parte deste documento aquando da apresentação dos projectos feitos no decorrer do ano lectivo 2008-2009 - nomeadamente o projecto para as oito habitações. No entanto, a procura por esta imagem não poderá ser feito tendo como base premissas que estão tão enraizadas na nossa cultura que questioná-las é pouco provável. Da mesma forma que a exclusão – por preconceito ou desconhecimento – de um material ou sistema construtivo na construção de uma habitação poderá levar a um resultado final que não se enquadrará com o cliente, teremos de observar com atenção o que nos rodeia a fim de conseguirmos construir esse espaço doméstico que poderá ser a resposta para muitos figurinos de transitoriedade residencial. Ao não se fazer isto poderemos acabar como a anteriormente referida personagem de Buster Keaton que insiste em habitar um modelo construído por si que desde início estava destinado ao fracasso. Não deveremos proceder à adopção de um modo de habitar e de olhar para a residência que nos manque, da mesma forma que as soluções acianas poderão estar perfeitamente enquadradas com um contexto como é o do

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presente. Fazer o contrário apenas reflecte uma obstinação do indivíduo em se adaptar ao mundo dos tempos de hoje. O principal preconceito será o de pensar que o sedentarismo é algo natural e que, mais grave, é benéfico para os tempos que decorrem; o segundo será o de achar que toda a arquitectura terá de ser sólida no sentido vitruviano do termo; e finalmente é preciso questionar o papel da arquitectura. Nem sempre ela terá que responder a todas as questões levantadas. Contudo, é sua obrigação a de pelo menos interrogar-se sobre as questões que têm a ver com a sua esfera de influência.37 Neste caso específico, não se trata de afirmar que a área da arquitectura e do urbanismo não têm algo a dizer. Contudo, possivelmente uma correcta gestão de uma rede de casas destinada a figurinos de transitoriedade residencial poderia ser uma das soluções. Assim, a contribuição das palavras aqui escritas pretenderam (numa análise a macro-escala) questionar se existirá uma individualização do espaço doméstico, assim como (numa análise mais próxima do objecto da casa) questionar se não existirão modelos mais antigos que se poderão enquadrar com os tempos que decorrem. Encarar o futuro da apropriação doméstica através do ponto de vista das experiências passadas da casa politética (casa multilocalizada), que não necessariamente terá de ser ligeira e modular, mas que mesmo assim garanta um modo de vida e de domesticidade favorável ao figurino de transitoriedade é essencial. Uma arquitectura de habitação que contenha uma única habitação poligonal cujos vértices são garantes do modo de vida desejado. “It would be much more powerful and creative to use other tactics, such as taking away something and then building something entirely new. One of the ambitions of S,M,L,XL is to extend the repertoire, which also includes, for instance, not doing anything, or asking somebody else to do something - both of which are, curiously, things that an architect never does.” (Entrevista de Katrina Heron com Rem Koolhaas. “From Bauhaus to Koolhaas. Wired Magazine. Nova Iorque, 4.07, Julho 1996.)

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Bibliografia

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