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É possível que nenhum outro escritor tenha escrito tanto e com tanta profundidade quanto Dostoiévski. O mais popular e amado autor russo escrevia romances policiais e de aventuras, mas com tal complexidade psicológica que seus livros – publicados em folhetins nos jornais, como as telenovelas de hoje – alcançaram o mais alto posto na literatura universal. Em suas obras circula a alma de personagens atormentados, perseguidos no íntimo deles mesmos, marcados pelo niilismo, que o escritor deplorava, vivendo entre o bem e o mal e torturados por questões morais.

“Se todos os romances do russo parecem romances policiais, são de um investigador das almas que nos revela, além dos crimes perpetrados, os crimes virtuais que dormem em nós outros como possibilidades. E enquanto se trata de romances de aventuras, são as aventuras espirituais, das quais a última seria a própria redenção do gênero humano”. OTTO MARIA CARPEAUX, crítico brasileiro

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O enredo é simples: um jovem ex-estudante que vive “na mais calamitosa pobreza” decide matar uma velha viúva “que empresta dinheiro a juros”. Por quê? A busca da resposta perpassa um romance narrado na terceira pessoa, com impressionante suspense, mas também com um monólogo interior angustiante e avassalador, para descrever “o que se passa na cabeça” do assassino. Crime e castigo marcou definitivamente a literatura mundial, sendo impossível pensar o que seria a literatura do século sem ele, dada a forma como influenciou e segue influenciando seus seguidores.

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RETRATO DO MUNDO E DA MENTE

FIÓDOR DOSTOIÉVSKI

CRIME E CASTIGO Tradução de Rosário Fusco

LITERATURA ESTRANGEIRA

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Niévski Prospekt, décadas de 1880-1890

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Crime e Castigo FIÓDOR DOSTOIÉVSKI Tradução Rosário Fusco

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Copyright © 2020 Jardim dos Livros 1ª edição — Dezembro 2020 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009 Editor e Publisher

Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial

Fernanda Emediato Produtor Editorial

Marcos Torrigo

Capa, Projeto Gráfico e Diagramação

Edinei Gonçalves

Preparação de Texto

Priscilla Sipans e Sandra Scapin Revisão

Sandra Scapin e Suria Scapin Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881 Crime e castigo / Fiódor Dostoiévski. -- 1. ed. -- São Paulo : Jardim dos Livros, 2020. ISBN 978-65-88438-03-9 1. Ficção russa I. Título. 20-52929 CDD-891.73 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura russa 891.73 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 EMEDIATO EDITORES LTDA. Rua João Pereira, 81 – Lapa CEP: 05074-070 São Paulo – SP Telefax: (+ 55 11) 3256-4444 E-mail: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil

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SUMÁRIO

Primeira Parte 9 Segunda Parte 101 Terceira Parte 209 Quarta Parte 295 Quinta Parte 375 Sexta Parte 453 Epílogo 549 Vida e Obra 567 O Autor A Obra Os Personagens

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PRIMEIRA PARTE

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I

Numa dessas tardes mais quentes dos princípios de julho, um rapaz saía do pequeno quarto que alugara, no Beco S., dirigindo-se, o passo tardo, vacilante, para a Ponte K. Teve sorte por não encontrar na escada a senhoria. Seu cubículo ficava no alto de uma casa enorme, de cinco andares, e parecia mais um armário do que um cômodo habitável. A criatura que lhe alugara o cubículo, com comida e serviços da empregada, morava, justamente, logo embaixo, de maneira que era obrigado, toda vez que saísse, a passar pela frente da respectiva cozinha, cuja porta, geralmente escancarada, dava para a escada. Nessas ocasiões, sua expressão se contraía e vinha-lhe sempre aquela vaga sensação mórbida de pavor, que o humilhava. É que, devendo alguns meses de aluguel, receava encontrá-la. Não que fosse, afinal, um desanimado ou um fracassado na vida. Pelo contrário. Acontece que se achava, de uns tempos para cá, num estado de tensão e de irritação permanentes que tocavam quase os limites da hipocondria. Habituara-se a viver tão recolhido em si mesmo, e tão isolado, que passou, então, a temer – não só avistar a locatária como aproximar-se de quem quer que fosse. A pobreza o esmagava. A verdade, porém, é que, nestes últimos tempos, a própria miséria, para ele, não representava mais sofrimento. Abandonara, de vez, todas as suas ocupações diárias, tudo o que fosse trabalho. No fundo, zombava da senhoria, assim como de quaisquer intenções que esta pudesse alimentar contra ele. Mas... deter-se na escada para ouvir tolices, sobretudo essa ladainha vulgar, irremediável, essas recriminações, essas lamúrias, essas ameaças – e ter de responder a tudo isso com evasivas desculpas, mentiras? Não. Seria mesmo preferível deslizar, como um gato, pela escada abaixo, e sumir sem ser visto. O fato é que, nesse dia, já na rua, ele próprio chegou a admirar-se da angústia que dele se apoderara, pensando encontrar a credora. E conjeturou, sorrindo estranhamente: “Temer semelhante ninharia, quando planejo uma coisa tão arriscada”.

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“É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? – O que for capaz de mudar-lhes os hábitos: eis o que mais apavora... Porém falo demasiado e, por isso, não faço nada. Ou, talvez, devesse dizer que não faço nada porque falo muito. Este mês, peguei a mania de monologar, escondido durante dias inteiros, no meu canto, imaginando... tolices. Por exemplo: terei mesmo necessidade de fazer este percurso? Serei, verdadeiramente, capaz daquilo? Aquilo será mesmo uma coisa séria? Absolutamente: um simples jogo da minha imaginação, uma fantasia que me diverte... Uma brincadeira. Sim, é isso mesmo: uma brincadeira.” Nas ruas, fazia um calor asfixiante. O ar pesava, o povo se comprimindo por entre os andaimes, montes de cal, tijolos, e, dominando tudo, o mau cheiro característico, tão familiar aos habitantes de São Petersburgo que não dispõem de meios para veranear, irritavam-lhe ainda mais os nervos, já de si abalados. O insuportável bafo das tabernas, aliás, tão frequentes no quarteirão, e os beberrões que encontrava a cada passo, muito embora fosse dia de semana, completavam o quadro horripilante e melancólico. Uma expressão de amargo constrangimento refletia-se nos traços delicados do rapaz. Era, diga-se de passagem, invulgarmente dotado, estatura acima da média, delgado e benfeito, belos olhos escuros e os cabelos castanhos. Mas logo depois entregava-se àquele alheamento profundo, uma espécie de torpor, continuando o caminho sem dar a mínima importância às coisas circunstantes, sem querer reparar no que o cercava. De quando em quando, entretanto, resmungava palavras indistintas, em virtude do hábito de monologar, de que, ainda havia pouco, se confessava atacado. Percebia que, às vezes, as ideias se embaralhavam em seu cérebro e adquiria consciência de sua extrema fraqueza. Fazia já dois dias que quase não se alimentava. Vestia-se tão miseravelmente, que qualquer outro no seu lugar, até mesmo um vagabundo, não ousaria exibir-se na rua com aqueles trapos em cima do corpo. No entanto, o bairro era tão pobre, que vira outros assim no quarteirão. Nas proximidades da Praça do Mercado, à vizinhança de casas de prostituição, uma multidão de operários e de artesãos amontoados nas travessas e naqueles becos sem saída de São Petersburgo, dava ares tão matizados e pitorescos ao quadro da rua, que a figura mais berrante ou

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mais esquisita não poderia ser notada. Mas seu espírito estava de tal forma dominado por um desumano indiferentismo que, apesar do seu natural pudor, um pouco ingênuo aliás, não tinha o menor vexame em expor seus andrajos. Tê-lo-ia, entretanto, se tivesse encontrado algum conhecido, um antigo companheiro, coisa que, por sinal, geralmente evitava. Contudo, deteve-se, de súbito, e levou, nervosamente, a mão ao chapéu quando um bêbado, que era transportado numa carroça vazia, não se sabe para onde nem para que, puxada por um cavalo de carga, apontou-o com o dedo, gritando-lhe a plenos pulmões: “Eh, você aí, chapeleiro alemão!”. O chapéu estava, de fato, levantado, redondo, sovadíssimo; feito em retalhos, esburacado, cheio de manchas, sem aba e todo corcovado. Entretanto, não foi de vergonha, mas de um sentimento próximo do pavor de que se sentiu apoderado naquele instante. “Eu sabia, resmungava na sua confusão – eu o adivinhava. Pior não podia ser. Uma coisa de nada, uma distração à toa pode estragar todo um projeto; não há dúvida, este chapéu chama atenção... Faz-se notar, justamente, pelo ridículo... Preciso de um boné para assentar com os meus trapos, não importa o que seja, um velho gorro, mas nunca essa coisa horrorosa. Ninguém se cobre assim, identificam-me a uma versta1 de distância e jamais se esquecerão disso. Sempre se volta a pensar, mais tarde, naquilo que nos chamou atenção: e eis aí uma pista... Pois então que se trate de passar o mais despercebido possível. Detalhes, são esses detalhes que interessam.” e, de si para si: “Eles acabarão por perder-te...”. Não ia longe. Sabia mesmo o número exato de passos desde a porta de casa: precisamente setecentos e trinta. Contara-os, certa vez, quando esse plano se apoderou dele. Na época, ele mesmo não cria na sua realização. A ilusória ousadia, a um tempo sedutora e monstruosa, só servia para excitar-lhe os nervos. Agora, decorrido um mês, começava a considerar as coisas de outro modo, e, apesar de todos os solilóquios enervantes sobre a própria fraqueza, impotência e irresolução, habituara-se, pouco a pouco, independentemente dele, a invocar a espantosa ilusão – “aquilo” – que teria realizado, sem embargo de continuar duvidando de si mesmo. Neste momento, ia fazer um ensaio, e a angústia crescia com os seus passos. O coração quase parando, os membros agitados por um tremor nervoso, chegava, afinal, a um imenso edifício, cujas fachadas 1. Medida russa de distância, equivalente a 1.067 metros (N. T).

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davam uma para o canal e outra para a rua. Tal prédio, subdividido em vários pequenos alojamentos, era habitado por modestos artesãos de todos os ofícios, alfaiates, serralheiros, cozinheiras, famílias alemãs, prostitutas, pequenos funcionários etc. Era um vaivém constante de gente nas portas e nos dois pátios da casa. Três ou quatro porteiros trabalhavam ali. Deu-se por feliz por não encontrar nenhum deles. Transpôs a soleira da porta e galgou a escada da direita, estreita e escura como uma verdadeira escada de serviço, mas tais minúcias, a que estava acostumado, não lhe faziam diferença, até gostava delas. Não tinha por que temer olhares indiscretos naquela penumbra. “Se, agora, tenho tanto medo, o que seria se viesse de propósito, especialmente para aquilo?”, pensou sem querer, chegando ao quarto andar. Ali, foi interrompido por ex-soldados que trabalhavam como carregadores, transportando a mudança de um cômodo que ele sabia ter sido ocupado por um alemão casado, funcionário público. “Quer dizer que, mudando-se o alemão, não ficará, por algum tempo, nessa escada e nesse patamar senão a velha. Ora essa, parece de encomenda”, pensou, puxando a sineta da porta. O ruído foi tão fraco, que se diria som de lata e não de cobre. Todos os alojamentos das grandes casas de cômodos como aquela tinham sinetas assim, mas esquecera-se do detalhe e o tilintar deveria ter-lhe lembrado, nitidamente, antigas reminiscências... porque estremeceu. Seus nervos estavam sensibilíssimos. Em pouco tempo, a porta entreabriu-se e, pela estreita fresta, a dona da casa examinou o intruso com ostensiva desconfiança, não se percebendo senão os pequeninos olhos brilhando na escuridão. Vendo gente no patamar, tranquilizou-se e abriu-a. Atravessou o batente de um vestíbulo escuro, dividido em dois por um tabique, atrás do qual se achava uma minúscula cozinha. A velha postou-se, imóvel, na sua frente e o olhava interrogativamente. Era uma mulherzinha descarnada, de uns sessenta anos, nariz pontudo, os olhos destilando maldade. A cabeça descoberta ostentava louros cabelos, excessivamente untados, apenas começando a embranquecer. Trazia um trapo de flanela enrolado no pescoço, que era longo e seco como um pé de galinha, e, apesar do calor, um casaquinho de pele gasto e amarelado pendia-lhe dos ombros. A tosse agitava-a, frequentemente arquejava. O rapaz, certamente, olhou-a com um ar estranho, porque os olhos dela retomaram de súbito o jeito desconfiado.

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– Raskólnikov, estudante. Já vim à sua casa, há um mês – gaguejou, rapidamente, reverenciando (impusera-se a obrigação de mostrar-se mais gentil). – Recordo, meu amigo, lembro-me muito bem – respondeu a velha, deitando-lhe uns olhos compridos. – Pois é isso... Volto para fazer um negócio semelhante – replicou Raskólnikov, um pouco perturbado e surpreso pela desconfiança. “No fim de contas, pode ser que ela seja sempre assim, mas, da outra vez, não o notei”, pensou, mal impressionado. A velha não respondeu, parecendo refletir um pouco. Em seguida, mostrou a porta do quarto ao visitante, encolhendo-se para deixá-lo passar. – Entre, amigo. O pequeno quarto ao qual fora conduzido era forrado de papel amarelo, ornado de cortinas de musselina. Vasos de gerânio guarneciam os vãos das janelas e o sol posto iluminava o cômodo inteiro, naquele momento. “Nesse dia, o sol clareará, não há dúvida, do mesmo jeito”, conjeturou, rapidamente, procurando, num golpe de vista, reter toda a sala na memória, para fixar-lhe melhor as minúcias. Esta não oferecia, entretanto, nada de particular. A mobília velha, de madeira clara, compunha-se de um sofá de enorme espaldar, uma mesa oval disposta à frente do sofá, um toucador com espelho, cadeiras encostadas na parede e duas ou três gravuras vulgares, de molduras amarelas, representando moças alemãs, tendo, cada qual, um passarinho nas mãos. E era tudo. Uma lamparina ardia num canto, diante de um pequeno ícone.2 Tudo brilhando de limpo. “Trabalho de Lizavéta”, pensou. Não se encontraria um grão de poeira no compartimento. “Limpeza igual só se vê nas casas das viúvas, velhas e rabugentas”, disse de si para si, metendo os olhos curiosos pela cortina de chita da porta do segundo quarto, também minúsculo, no qual se encontravam a cama e a cômoda da velha – e onde jamais pusera os pés. O alojamento era composto desses dois cômodos. – Que quer? – disse secamente a velha e, mal entrando no quarto, plantou-se na sua frente, para examiná-lo melhor de perto. – Vim empenhar algo – respondeu, tirando do bolso um velho relógio chato, de prata, com corrente de aço, em cujo dorso estava gravado um globo terrestre. 2. Imagem representando Nosso Senhor, a Virgem ou os santos (N. T).

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– Mas ainda não pagou a quantia que lhe emprestei antes. O prazo já venceu há três dias. – Eu lhe pagarei os juros por mais um mês ainda, espere um pouco. – Depende de mim, meu caro, esperar ou vender logo. – Vai me dar uma boa quantia pelo relógio, Alióna Ivánovna? – O que traz é uma porcaria, meu caro, não vale nada esse relógio. Na última vez lhe emprestei duas lindas “notinhas” pelo seu anel, quando poderia obter um novo na joalheria por um rublo e meio. – Pode me dar quatro rublos, eu o resgatarei: herdei-o de meu pai. Espero receber dinheiro dentro em pouco. – Um rublo e meio, juros adiantados. – Um rublo e meio? – exclamou. – E, se quiser. A velha entregou-lhe o relógio. Ele o tomou e, irritado, fazia menção de sair quando refletiu que a usurária era seu último recurso e, além disso, viera ali para outra coisa. – Está certo. A velha tirou as chaves do bolso e passou para o quarto próximo. Sozinho, pôs-se a conjeturar, ouvidos atentos: tirava conclusões. Ouvia-se abrir a cômoda, “na certa, a gaveta superior”, deduzia. “Ela guarda as chaves no bolso direito... um único molho preso ao arco de aço. Há uma maior do que as outras, com o palhetão dentado; esta, certamente, não abre a cômoda. Isto significa que há, ainda, um bauzinho ou um cofre. As chaves dos cofres têm, geralmente, essa forma... Ah, tudo isso é ignóbil.” A velha reapareceu. – Aí tem, meu rapaz: dez copeques3 por mês, por um rublo, são quinze copeques por um rublo e meio, no prazo de trinta dias. Agora, pelos dois rublos atrasados, tenho de tirar ainda vinte copeques adiantados, o que, arredondando tudo, dá 35 copeques. Pelo relógio, tocam-lhe, portanto, um rublo e quinze copeques. Estão aqui. – Como? Então, vem a ser só um rublo e quinze copeques? – Perfeitamente. Não quis discutir mais e pegou o dinheiro. Detinha-se a olhar a velha, sem vontade de sair. Dir-se-ia estar com desejo de dizer ou fazer algo, que ele mesmo não sabia o que era. 3. Unidade fracionária do sistema monetário russo. Um rublo tem cem copeques (N. T.).

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– É possível, Alióna Ivánovna, que eu lhe traga, muito em breve, um outro objeto de prata... muito bonito... uma cigarreira... Logo que um amigo, a quem a emprestei, torne a devolvê-la... Perturbando-se, calou. – Está direito; no momento oportuno conversaremos sobre isso. – Então, adeus... Está sempre só em casa, sua irmã nunca está aqui? – perguntou com o tom mais natural possível, assim que entrou no vestíbulo. – Que tem com isso? – Oh, eu dizia isso por dizer... e a senhora logo, a senhora... adeus, Alióna Ivánovna. Saiu, cada vez mais perturbado. Ao descer a escada, parou em vários intervalos, presa de súbita emoção. Afinal, chegando depressa à rua, desabafou: “Oh, Senhor, como tudo isso é repugnante. Será possível que eu... Não, são tolices absurdas, completou, resolutamente. Como é que uma coisa tão monstruosa pode caber na minha cabeça? De que infâmia eu sou capaz... Resumindo, tudo isso é nojento, ignóbil, horroroso. Entretanto, eu pude, durante um mês inteiro...” Palavras e exclamações eram impotentes para traduzir-lhe a angústia. Aquele sentimento de absoluta repugnância, que o oprimia e esmagava quando entrou na casa da velha, agora como que se tornava profundamente insuportável. Não sabia como livrar-se da agonia que o torturava. Seguia pela calçada, oscilante como um bêbado, esbarrando nos passantes e não vendo ninguém. Só deu de si quando alcançou a outra rua. Olhou em derredor e verificou que estava à porta de uma taberna. Uma escada, saindo da calçada, levava ao subsolo onde ficava a tasca. Dois bêbados, nesse momento, subiam juntos os degraus, injuriando-se mutuamente, apoiados um no outro. Raskólnikov, por sua vez, desceu sem hesitar. Nunca havia posto os pés num lugar daqueles, mas, hoje, estava tonto e uma sede ardente o torturava. Tinha vontade de beber uma cerveja fresca, tanto mais quanto atribuía à fome sua fraqueza repentina. Sentou-se num canto escuro e imundo, à beira da mesa poeirenta. Pediu a cerveja e esvaziou o primeiro copo, sofregamente. Logo depois, sentiu uma grande sensação de alívio: as ideias pareciam aclarar-se. “Tudo isso são tolices”, disse a si mesmo, reconfortado, “e não há motivo para perder o controle, só por causa de um mal-estar passageiro... Um copo de cerveja, uma torrada, é o bastante para

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consolidar o espírito: o pensamento se desanuvia, a vontade retorna. Ah, como tudo isso é mesquinho.” Eis por que, apesar da conclusão desesperadora, parecia satisfeito, como um homem que se livrasse de repente de um peso medonho. Olhava, cordialmente, para os circunstantes. Mas no íntimo pressentia, ao mesmo tempo, que essa animação e esses laivos de esperança eram doentios, artificiais. A taberna estava quase vazia. Depois dos dois beberrões, com os quais cruzou na escada, saiu um grupo de, pelo menos, cinco pessoas, que levava uma rapariga e uma harmônica. Depois que saíram, a sala ficou maior e mais sossegada. Não se achavam ali mais do que um homem, ligeiramente “tocado” – um pequeno-burguês, pela aparência – tranquilamente sentado diante da garrafa de cerveja; seu companheiro, gordo e grandalhão, de barba grisalha, trajando um casaco de pele, que ressonava no banco, completamente embriagado, e ele. De quando em quando, o gordo sobressaltava-se e, em pleno sono, punha-se a estalar os dedos, abrindo os braços e mexendo o busto, sem se levantar do banco, cantando, ao mesmo tempo, uma canção imbecil, cujos versos se esforçava por lembrar: Durante o ano inteiro afaguei minha mulher Du-ran-te o ano inteiro afa-guei mi-nha mu-lher. Ou, então, acordando de novo: Na Podiátcheskaia, encontrei minha antiga... No entanto, ninguém parecia participar de sua euforia. O taciturno parceiro considerava tais expressões de alegria com um ar malicioso e quase hostil. Havia uma terceira pessoa no salão: um homem, aparentando ser um funcionário aposentado, que se sentou à parte, diante de um copo que levava à boca, de vez em quando, olhando para os lados. Também parecia estar agitado.

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Raskólnikov não estava acostumado às multidões e, nestes últimos tempos, sobretudo, fugia do convívio de seus semelhantes. Naquele instante sentiu-se, entretanto, subitamente arrastado para eles. Uma espécie de revolução parecia operar-se dentro dele. Sentia necessidade de ver seres humanos. Estava de tal modo fatigado desse mês de angústia e de obscura exaltação em que vivera como autêntico recluso, que precisava, no momento, retemperar-se por um minuto que fosse, não importava em que mundo, desde que fosse num mundo diferente. Por isso, retardava-se, prazerosamente, na tasca, apesar de toda a imundície daquele lugar. O dono ficava num outro cômodo, mas, frequentemente, aparecia na sala, ou então era visto descer os degraus, pelas botas, elegantes botas bem lustradas, de grandes vistas vermelhas. Vestia um casaco e um colete de cetim preto todo engordurado, sem gravata. Seu rosto era oleoso como um cadeado de ferro. Um rapaz de uns quatorze anos estava sentado atrás do balcão e outro, mais novo, servia os fregueses. Pepinos em fatias, pontas de pão preto e postas de peixe eram expostos no balcão. Exalavam um odor infecto. O calor era insuportável, e a atmosfera tão carregada de vapores alcoólicos que, só com ela, qualquer um ficaria embriagado em cinco minutos. Ocorre-nos, às vezes, encontrar pessoas, geralmente desconhecidas, que nos inspiram um interesse instantâneo, à primeira vista, antes mesmo que possamos trocar uma palavra com elas. Foi o que se deu com Raskólnikov com relação ao sujeito que se sentava ao lado, parecendo um funcionário aposentado. Mais tarde, toda vez que recordava essa primeira impressão, atribuía-a a uma espécie de pressentimento. Não o deixava com os olhos, e o outro, por sua vez, fazia o mesmo, parecendo interessadíssimo em puxar conversa. Quanto às pessoas que se achavam na sala (o dono, inclusive), considerava-as assim com um ar de desdenhosa superioridade, como seres de uma classe e de uma educação excessivamente baixas para que se dignasse dirigir-lhes a palavra.

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Era um homem já passado da casa dos cinquenta, forte, estatura mediana. Seus raros cabelos encaneciam. O rosto, inchado pela embriaguez, era de um amarelo quase esverdeado. Entre as pálpebras intumescidas brilhavam dois olhos pequeninos, injetados de sangue, mas vivíssimos. O que mais se admirava nessa fisionomia era o entusiasmo que ela exprimia – talvez, também, certa finura e certa inteligência – porém, no olhar, luziam-lhe clarões de loucura. Trajava um velho fraque rasgado, sem outros botões além de um único com que o fechava, com algum cuidado, para manter a aparência. Um colete de algodão mostrava o plastrão desfiado e sujo de manchas. Como os demais funcionários, não usava barba; no entanto, não se barbeando havia muito, uma barba agressiva e azulada começava a invadir-lhe o queixo e as bochechas. Suas maneiras denunciavam uma gravidade burocrática, mas parecia agitadíssimo: concertava os cabelos, desgrenhava-os, punha a cabeça entre as mãos, agoniado, os braços de mangas furadas com os cotovelos apoiados na mesa imunda. Subitamente, fitou Raskólnikov bem nos olhos, e disse, com a voz alta e poderosa: – Permita-me a ousadia, cavalheiro, de dirigir-lhe a palavra para entabular uma palestra das mais permissíveis? Porque, apesar da simplicidade de seu aspecto, minha experiência adivinha que há aí um homem culto e não um freguês de tabernas. Pessoalmente, sempre respeitei o preparo unido às qualidades de coração. Aliás, sou conselheiro-titular, chamo-me Marmeládov, conselheiro-titular. Poderei inquirir-lhe se pertence à Administração? – Não. Eu estudo – respondeu o rapaz, um pouco surpreso com essa linguagem empolada e, também, por se ter visto alvo da palavra de um estranho, assim tão diretamente, à queima-roupa. Apesar da sua nova aspiração de companhia humana, fosse qual fosse, à primeira sílaba do interlocutor sentiu a habitual e desagradabilíssima impressão de irritação e repugnância que experimentava com qualquer um que tentasse se pôr em contato com ele. – Quer dizer que é ou foi estudante – exclamou, vivamente, o funcionário. – Foi bem o que pensei. Eis o que é a prática, meu senhor, uma longa prática. – E levou a mão à testa como que para louvar as próprias faculdades... – Estudou... Dedicou-se aos estudos... Porém, dá licença. Levantou-se, cambaleou, pegou seu copo e veio sentar junto do rapaz. Ainda que bêbado, falava com desembaraço e vivacidade, e só

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de vez em quando o discurso ficava incoerente e a língua emperrava. Quem o visse atacar Raskólnikov com tanta fúria diria que havia um mês não abria a boca. – Cavalheiro – recomeçou com certa solenidade –, pobreza não é defeito, isto é absoluta verdade. Sei, igualmente, que a embriaguez não é virtude. Mas a miséria, meu senhor, é um defeito, sim. Na pobreza, ainda poderá conservar a nobreza dos sentimentos inatos, na indigência, jamais alguém poderia fazê-lo. Não é a pauladas que se enxota o indigente do convívio humano, mas a vassouradas, para o humilhar mais (o que está certo), pois que só falta ultrajar-se a si próprio. Eis de onde se origina a embriaguez, cavalheiro, e saiba que minha mulher, no mês passado, apanhou do senhor Lebeziátnikov e, minha mulher, cavalheiro, não é a mesma coisa que eu. Entendeu? Dá licença que lhe faça, ainda, uma outra pergunta. Oh, por simples curiosidade: já passou uma noite no Neva, nos barcos de feno? – Não, nunca tive ocasião – respondeu Raskólnikov. – O que quer dizer? – Pois, olhe, esta é a quinta noite que venho de lá. – Encheu o copo, esvaziou-o e ficou pensativo. De fato, percebiam-se fiapos de feno, aqui e ali, no seu terno e até nos cabelos. Pela aparência, havia uns cinco dias que não mudava a roupa nem tomava banho. Especialmente as mãos – grossas, vermelhas, de unhas enlutadas – estavam sujas. Toda a sala parecia ouvi-lo, displicentemente, aliás. Os empregados puseram-se a caçoar dele, atrás do balcão. O dono da casa desceu especialmente para escutar esse tipo curioso. Sentou-se a certa distância, bocejando indolentemente, mas com um ar importante. Marmeládov parecia ser conhecidíssimo da casa. Sua loquacidade vinha, provavelmente, do hábito das tagarelices de botequim, com pessoas desconhecidas, tagarelices que tomam o caráter de verdadeira necessidade, sobretudo entre os beberrões, quando se sentem severamente julgados ou mesmo desconsiderados, em casa. Por isso, justificam-se, invariavelmente com os companheiros de orgia, para se darem ao respeito. – Mas dize-me cá, seu pândego – falou o taberneiro, em voz alta –, por que não trabalhas? Por que não estás numa repartição, já que és funcionário? – Por que não estou na repartição, disse o senhor? – repetiu Marmeládov, dirigindo-se a Raskólnikov, como se a pergunta tivesse

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partido deste. – Disse por que não entro numa repartição? Pensa que não sofro com esta decadência? Quando o senhor Lebeziátnikov, no mês passado, surrou minha mulher e eu estava lá, quase morto de bêbado, pensa que não sofria com isso? Desculpe, rapaz, mas já lhe aconteceu... Pois bem... peçamos emprestado sem esperança... – Sim... Mas, que quer dizer com esse “sem esperança”? – Sem sombra de esperança, quero dizer, sabendo que vai falhar. Preste atenção: sabe, perfeitamente, por exemplo, e de antemão, que determinada pessoa, um cidadão capaz e dos mais úteis ao país, não lhe emprestará, por nada deste mundo, a menor quantia. Por que, pergunto-lhe agora, pedir-lhe emprestado? Ele sabe bem – não sabe? – que eu não lhe pagarei nunca. Por piedade. Porém, o senhor Lebeziátnikov, que está sempre em dia com as ideias modernas, explicou há pouco que, atualmente, a piedade entre os homens é condenada pela própria ciência, assim sendo na Inglaterra, onde existe a economia política. Por que, pergunto-lhe agora, esse homem me emprestará dinheiro? Ora, sabendo, antecipadamente, que ele nada emprestará, mesmo assim ponho-me a caminho... – Mas, por que neste caso... – interrompeu Raskólnikov. – E se não tem aonde ir, se não tem para quem apelar? Cada qual – não é isso mesmo? – tem necessidade de saber onde bater. Porque sempre chega o dia em que se tem necessidade de recorrer a alguma parte, não importa onde. Assim se deu quando minha filha única foi, pela primeira vez, registrar-se na polícia; acompanhei-a... porque minha filha é fichada... – ajuntou, em tom explicativo e olhando o moço com ares um tanto quanto inquietos. – Isso não é nada, cavalheiro, não é nada – adiantou com fingida indiferença, no momento em que os meninos caíram na gargalhada, atrás do balcão, e o próprio botequineiro sorriu. – Não é nada, não. Estes meneios de cabeça desaprovadores não me perturbam, porque tudo isso é sabido de todo o mundo e todo mistério acaba mesmo por ser descoberto. Não é com desprezo, mas resignado, que considero tais coisas. O que tem de ser tem força. Ecce homo. Com licença, rapaz: poderá... Não, é preciso arranjar uma expressão mais forte, mais pensada: poderá, quero dizer, ousará, olhando-me nos olhos, afirmar que não sou um porco? Raskólnikov não respondeu. – Pois bem – continuou o orador, esperando, como ar solene e mais digno ainda, o fim das chacotas que estouraram de novo. – Pois bem; digamos que eu seja um porco e ela uma dama. Pareço uma besta

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e Ekaterína Ivánovna, minha esposa, é pessoa bem-educada, filha de um oficial, uma alta patente. Que seja. Digamos que sou um canalha e que ela possui um coração grande, sentimentos elevados, uma educação perfeita, no entanto... Ah, se ela tivesse tido pena de mim! Cavalheiro, meu senhor, todos nós precisamos de alguém que tenha pena de nós. Ora, Ekaterína Ivánovna, com toda a grandeza de sua alma, é injusta... se bem que, no íntimo, eu compreendo perfeitamente que, quando me puxa os cabelos é, com certeza, em meu próprio benefício porque, desavergonhadamente, eu reincido. Ela me puxa os cabelos, meu caro – insistia, num desdobramento de dignidade, ouvindo galhofar, ainda. – Porém, cavalheiro, se ela pudesse, ao menos uma vez... Mas, não, tudo isto é inútil, não toquemos mais no assunto. Porque minha vontade já se realizou, mais de uma vez. Mais de uma vez tive quem tivesse pena de mim, contudo... meu feitio é assim, sou um verdadeiro animal. – Também acho – observou o botequineiro, bocejando. Marmeládov deu um tremendo murro na mesa. – Tal é o meu feitio. Saiba, meu senhor, saiba que já bebi até as meias dela. Não os sapatos, note bem, porque, enfim, isto estaria mais ou menos na ordem das coisas, mas suas meias. Bebi mesmo as meias dela. E já lhe bebi também uma mantilha de lã de cabra, um presente que lhe haviam dado antes do nosso casamento, de seu uso exclusivo, não meu. Moramos num buraco gelado, uma toca. Neste inverno, apanhando frio, ela ficou tossindo e escarrando sangue. Temos três filhos e Ekaterína Ivánovna trabalha de manhã à noite, esfregando, lavando, dando banho nos meninos, porque ela foi acostumada com o asseio desde que nasceu. Tudo isso sendo fraca do peito e predisposta à tísica, bem sei. E não o sinto? Quanto mais bebo, mais sofro. E porque quero sentir, e sofrer mais, é que sou dado à bebida. Bebo para sofrer melhor, mais profundamente. Abaixou a cabeça, o ar desesperado. – Rapaz – continuou, erguendo-se –, desconfio perceber na sua fisionomia uma expressão de tristeza. Tive essa impressão logo que entrou: eis por que, pouco depois, dirigi-lhe a palavra. Se lhe conto a história da minha vida não é para me fazer de engraçado para estes ociosos, que aliás sabem isso de cor, mas porque ando em busca de um homem sensível e culto. Saiba, portanto, que minha mulher foi educada num pensionato aristocrático da província e que, no dia em que saiu de

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lá, dançou com o véu para a mulher do governador e outras pessoas de destaque: ganhou, por isso, uma medalha de ouro e um diploma. “A medalha foi vendida, há muito. Quanto ao diploma, minha mulher o conserva no seu baú e, ainda ultimamente, mostrava-o à senhoria. Se bem que esteja de cara torcida com essa mulher, precisava contar as suas glórias passadas a alguém, recordando os bons tempos. Não a censuro por isso, não. Mesmo porque não possui nada, além de recordações: todo o resto se foi. Sim, é uma mulher altiva, orgulhosa, áspera, ela mesma lava a casa, alimenta-se de pão preto, mas não suportaria que lhe faltassem com o respeito. Eis por que não tolerou a grosseria de Lebeziátnikov e, quando este, para vingar-se de ter sido posto no seu devido lugar, bateu-lhe, ela ficou de cama. Não tanto pelas pancadas, mas, antes, por motivos sentimentais. “Desposei-a já viúva, com três filhos de tenra idade. Seu primeiro casamento fora por amor, com um oficial de infantaria, com quem fugiu da casa dos pais. Adorava o marido, mas ele deu para jogar, arranjou uma demanda com a justiça e morreu. Nos últimos tempos, batia-lhe: jamais o perdoou, sei de fonte limpa. Porém, mesmo assim, ainda hoje não pode lembrar-se dele sem lágrimas. Costumava fazer comparações pouco lisonjeiras entre mim e ele, mas fico satisfeito com elas porque, assim, supõe que, ao menos um dia na vida, foi feliz. Ficou sozinha com três filhos, quando ele morreu, num lugarejo longínquo e pouco civilizado, onde me encontrava então. Vivia numa miséria tão deprimente que eu, que estou cansado de assistir a dramas de toda espécie, não poderia descrever o dela. Seus pais abandonaram-na completamente. Aliás, ela era orgulhosa, orgulhosíssima... Foi então, cavalheiro, que eu, como disse, igualmente viúvo, tendo do meu primeiro casamento uma menina de quatorze anos, foi então que lhe ofereci minha mão, porque não podia vê-la sofrer assim. Poderá julgar sua miséria considerando que, instruída, culta e de excelente família, aceitou-me como marido... Ela o fez chorando, soluçando, torcendo as mãos, mas casou. Porque não tinha para onde ir... Entendeu, entendeu bem, cavalheiro, o que significa não se ter mais para onde ir? Não, ainda não poderá compreendê-lo... “E durante um ano inteiro eu cumpri, honesta e santamente, o meu dever, sem tocar nisto (apontou com o dedo a meia garrafa que estava na frente), porque tenho sentimentos. Mas não chegava a satisfazê-la. Entrementes, perco o meu lugar, sem ter culpa alguma, por simples

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azar. E eis como, após ano e meio de mil aborrecimentos, de todas as peregrinações imagináveis, paramos nesta magnífica capital ornada de inumeráveis monumentos. Aqui, pude arranjar um emprego. Arranjei‑o e perdi-o novamente. Entendeu, cavalheiro? Dessa vez, por minha culpa, por causa do meu pendor que se manifestava... “Moramos, agora, num canto em casa da locadora Amália Ivánovna Lippevéchsel, mas de que jeito vivemos, com que pagamos as nossas despesas? Isso é que não sei. Há lá, nessa casa que é um verdadeiro inferno, outros inquilinos, além de nós. Nesse ínterim, a menina, que tive com minha primeira mulher, cresceu, e o que suportou dessa madrasta prefiro calar. Porque, apesar de cheia de sentimentos magnânimos, Ekaterína Ivánovna é uma mulher irascível, incapaz de se conter... Sim, é isso mesmo. Mas para que estou lembrando tais coisas? Desconfiara, acertando, que Sônia não teve boa educação. Tentei ensinar-lhe, há quatro anos, geografia e história universal, mas, como eu mesmo não sou forte nessas matérias e, além disso, não possuímos bons manuais, porque os livros que poderíamos ter – hum, bem – não os temos, as lições acabaram-se. Paramos em Ciro, rei dos persas. Mais tarde, ela leu alguns livros romanceados e, ultimamente, ainda, Lebeziátnikov emprestou-lhe um: A fisiologia, de Lewis. Não conhece essa obra? Achou-a muito interessante e leu-nos alguns capítulos em voz alta: veja aí a que se limita a sua cultura intelectual. “Agora, eu me dirigirei ao senhor, cavalheiro, por minha própria conta, para fazer-lhe uma pergunta particular. Uma moça pobre, porém honesta, pode lá ganhar a vida decentemente, num trabalho honesto? Não ganhará mais do que quinze copeques diários, cavalheiro, se não tiver algum preparo, mesmo sendo honesta e, ainda assim, trabalhando sem parar. Pois bem, o conselheiro civil Klópstok Iván Ivánovitch – já ouviu falar nele? – não somente deixou de pagar a meia dúzia de camisas de seda da Holanda que ela lhe fez, como ainda, vergonhosamente, tocou-a da porta, alegando que ela não tinha tomado direito a medida do colarinho e que tinha tudo saído às avessas. “Os pequenos com fome, Ekaterína Ivánovna andando para cá e para lá no quarto, torcendo as mãos, as maçãs do rosto avermelhadas, como acontece com quem tem a sua doença, gritando: ‘Vives em casa espreguiçando, comes e bebes do bom e do melhor’. Ora, o que havia para comer, pergunto eu, se os próprios meninos passam três dias sem

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ver uma fatia de pão? Eu estava dormindo naquela hora... Tanto quanto lhe digo, estava bêbado e ouvi minha Sônia lhe responder (ela é tímida, a sua voz é tão doce... Lourinha, o rostinho pálido, tão delicado): ‘Como, Ekaterína Ivánovna, como posso fazer uma coisa dessas?’ “Dária Frántzevna, uma mulher ordinária, bastante conhecida da polícia, já tinha três vezes ido lhe fazer propostas por intermédio da senhoria. ‘Como?’ repetiu Ekaterína Ivánovna, arremedando-a. ‘Que tens para guardar com tanto cuidado? Vejam só esse tesouro.’ Não a acuse, cavalheiro, não. Não a acuse. Ela não tinha consciência da extensão de suas palavras. Estava transtornada, doente, ouvia o choro dos pequenos esfaimados e era antes para pôr Sônia em brios do que com outro intuito que lhe falava assim. Porque Ekaterína Ivánovna é desse feitio: desde que ouça as crianças chorando, mesmo que seja de fome, começa a bater-lhes. “De repente, já passava das cinco, vejo minha Sónetchka levantar-se, botar um agasalho, um véu, e sair de casa. Daí a oito horas, vinha de volta. Entrou, caminhou direto para Ekaterína Ivánovna e depositou-lhe à frente, na mesa, trinta rublos, em silêncio. Não proferiu uma palavra, está ouvindo? Não teve um olhar sequer. Pegou na nossa manta verde (temos uma grande manta ordinária, de lã verde), cobriu a cabeça e o rosto, deitou-se na cama, com o rosto para a parede. Somente seus ombros pequeninos e seu corpo sacudiam-se tremendo... Eu continuava deitado, no mesmo estado. Vi, então, rapaz, vi Ekaterína Ivánovna aproximar-se, silenciosamente, ela mesma, da cama de Sónetchka: passou a noite inteira de joelhos, beijando-lhe os pés, sem querer se levantar. Por fim, acabaram as duas por adormecer, abraçadas... Isso mesmo. Quanto a mim, eu estava embriagado, sim.” Marmeládov calou-se como se a voz lhe tivesse fugido. Em seguida, atirou-se violentamente à bebida, esvaziou o copo e pigarreou, prosseguindo, após um silêncio: – Desde então, meu caro senhor, por uma série de circunstâncias infelizes e por denúncia de pessoas intrigantes (Dária Frántzevna teve um importante papel nisso tudo), ela, minha mulher, alegava que lhe haviam faltado com o respeito. Logo depois, minha filha, Sônia Semiónovna, foi fichada, vendo-se, por isso, obrigada a deixar-nos. Aliás, de uma parte, a senhora Amália Fiódorovna4 não toleraria de nenhum 4. Dostoiévski chama-a ora Fiódorovna ora Ivánovna (N. T.).

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modo sua presença (embora ela mesma tivesse favorecido as insinuações de Dária Frántzevna) e, de outra, o senhor Lebeziátnikov... Pois é isso. “Foi por causa de Sônia que aconteceu essa história de Ekaterína Ivánovna de que lhe falei. A princípio, por si mesmo, ele vinha para junto de Sónetchka, mas, de repente, começou com melindres. ‘Como é que um homem da minha posição poderia viver com tal criatura sob o mesmo teto?’ Ekaterína Ivánovna tomou as dores de Sônia e eis como aconteceu a coisa... “Agora, Sónetchka vem ver-nos, apesar de tudo, à tardinha. Ajuda Ekaterína Ivánovna e traz-lhe algum dinheiro. Ela está morando em casa do alfaiate Kapernaúmov, onde alugou quarto. Kapernaúmov é capenga e gago, assim como o resto da família. Sua mulher também é gaga... Moram todos juntos, num só cômodo, mas Sônia tem o dela separado por uma parede. Veja só: miseráveis e, ainda por cima, gagos... “Então, uma manhã me levantei, vesti meus trapos, dei as minhas graças a Deus, e deixei-me ir à casa de sua excelência Iván Afanássievitch. Conhece sua excelência Iván Afanássievitch? Pois bem, não conhece um santo homem. Ele é assim, como se fosse feito de... cera. Uma vela diante da face do Senhor derrete-se como a cera. Chegou a ficar com os olhos rasos d’água depois de se dignar ouvir-me até o fim. ‘Vamos ver, Marmeládov, já me traíste uma vez a confiança depositada em ti... Quero, mesmo, tomar-te sob a minha proteção.’ Foi assim que se exprimiu, como quem dissesse: ‘Lembra-se do acontecido, pode ir-se embora’. Mentalmente, beijei-lhe o pó das botinas, porque, de verdade, ele não me permitiria fazê-lo sendo um alto funcionário, como era, e um homem imbuído de ideias modernas esclarecidas. Voltei para casa – meu Deus, o que foi que aconteceu quando eu disse que tinha arranjado um emprego e que ia, dali por diante, receber um ordenado?” Marmeládov parou, uma vez mais, comovido. Neste momento, o botequim era invadido por uma turma de beberrões já meio “tocados”. Os sons de um instrumento bárbaro irromperam à porta do estabelecimento e uma voz infantil, fraca e fanhosa, elevou-se cantando a ária da Pequena Quinta.5 O salão povoou-se de ruído. O taberneiro e seus empregados acercaram-se pressurosamente dos recém-chegados. Marmeládov, esse continuou a narrativa, sem 5. Canção popular russa (N. T.).

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prestar atenção a ninguém. Parecia muito abatido. Porém tornava-se mais expansivo à medida que aumentava a embriaguez. As lembranças de suas últimas conquistas, o emprego que conseguira, pareciam tê-lo animado e davam, à sua expressão, uma espécie de halo radioso. Raskólnikov ouvia-o atentamente. – Isso foi, meu caro senhor, há cinco semanas. É... desde que as duas, Ekaterína Ivánovna e Sónetchka, souberam da nova, quase me puseram nas nuvens. Noutros tempos, quando me ocorria estar deitado, era como se fosse um animal e só ouvia desaforos. Agora, andavam nas pontas dos pés e faziam as crianças ficar quietas. “Psiu, Semión Zakháritch está cansado do serviço, deixem-no descansar, psiu.” Faziam-me beber café antes de ir para o escritório, e até com creme. Elas arranjavam creme de primeira, entende? “Onde conseguiram onze rublos e cinquenta copeques para refazer meu guarda-roupa, é coisa que até hoje não pude descobrir. Calçados, camisas, um ótimo uniforme, tudo por onze rublos e meio, tudo perfeito. Volto, às doze horas, do meu primeiro dia de trabalho, e que é que vejo? Ekaterína Ivánovna preparou dois pratos: uma sopa e carne salgada com raiz-forte, coisa que, até então, nem sabíamos se existia. “Vestidos, é preciso dizer que ela não os tinha, absolutamente. Não é dizer que tivesse ao menos um: não tinha nada mesmo. Entretanto, parecia que ia visitar alguém, preparando-se, arranjando-se. Não que tivesse com que, mas tirando as coisas do nada: era o penteado, uma golinha bem limpa na frente e atrás, punhos, parecia outra mulher, rejuvenescida, embelezada. “Sónetchka, minha tolinha, queria somente ajudar-nos com seu dinheiro. Disse-nos ela: ‘Acho que é melhor eu não visitá-los por ora; só se for à noitinha, de maneira que ninguém possa me ver’. Está entendendo, ouvindo bem? “Fui deitar-me, depois do jantar, e – que pensa disso? – Ekaterína Ivánovna não pôde se conter: havia apenas uma semana que tivera uma discussão de matar com a senhoria Amália Ivánovna e agora convidou-a para tomar café. Ficaram ambas, duas horas, cochichando. ‘Semión Zakháritch, agora, tem um emprego e está ganhando. Ele, pessoalmente, apresentou-se à sua excelência. Sua excelência saiu, deu ordens a todo mundo para esperar, estendeu a mão a Semión Zakháritch, fazendo-lhe, assim, passar à frente dos outros no seu gabinete. ‘Lembro-me

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naturalmente, Semión Zakháritch, de seus serviços e, se bem que persista na sua fraqueza... Mas, desde que prometeu... e, de outro modo, tendo tudo andado mal, na sua ausência (está ouvindo, está escutando bem?) conto’, disse ele, ‘agora, com a sua palavra de honra’. “Digo-lhe que tudo isso ela inventava pura e simplesmente, não por leviandade ou para se vangloriar. Não. Veja só... ela acredita nisso, palavra de honra que se consola com as próprias mentiras. Não a censuro, não. Não posso censurá-la. E quando lhe entreguei, há seis dias, o primeiro dinheiro que ganhei, vinte e três rublos e quarenta copeques, inteirinhos, chamou-me de ‘meu bem’. ‘Ah’, disse-me ela, ‘meu benzinho.’ “E ficamos juntinhos, compreende? Diga-me, por favor, que encanto posso ter e que espécie de esposo posso ser? Pois assim mesmo ela me deu um puxãozinho no rosto e falou – ‘meu bem’.” Marmeládov interrompeu-se, tentou sorrir, mas pôs-se a tremer o queixo, contendo-se, entretanto. A taberna, este homem depravado, cinco noites passadas nas barcas de feno, ainda por cima essa garrafa – e, a um tempo, essa ternura doentia pela mulher e pela família, tudo isso tornava o seu interlocutor perplexo. Raskólnikov estava suspenso da sua palavra, contudo sentia uma sensação opressora, arrependia-se de ter entrado em tal lugar. – Senhor, meu caro senhor – exclamou Marmeládov, endireitando-se um pouco. – O senhor talvez ache tudo isso cômico, como os demais, e não faço mais que aborrecê-lo com todas essas minúcias miseravelmente estúpidas da minha vida doméstica, mas garanto-lhe que não tenho nenhuma vontade de rir, porque sinto tudo isso... toda essa procissão encantada de minha vida. Naquela tarde, eu mesmo passei a fazer castelos fantásticos: sonhava a maneira de organizar nossa vida, como vestiria os meninos, no descanso que daria à mulher, esperava tirar minha filha dessa vida vergonhosa, fazê-la regressar ao lar... e muitas coisas mais. Porém, eis aí, meu caro – Marmeládov estremeceu rapidamente, levantou a cabeça e olhou, fixamente, o seu interlocutor –, veja só, no dia seguinte mesmo dia em que afaguei todos estes sonhos (há cinco dias justos), à tarde inventei uma mentira e, roubando, como um ladrão, a chave do baú de Ekaterína Ivánovna, tirei o resto do dinheiro que eu lhe havia entregue. Quanto era mesmo? Não me recordo mais; todavia, olhem para mim, todos... Há cinco dias que não vou em

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casa e o pessoal me procura; já perdi o emprego, deixei minha roupa na tasca perto da Ponte do Egito, em troca desta... Acabou-se tudo. Deu um soco na cabeça, cerrou os dentes, fechou os olhos, apoiou-se, pesadamente, na mesa. Em poucos minutos, sua expressão parecia transtornada. Olhou Raskólnikov com seus ares fingidos de malícia e cinismo, desandou a rir e disse: – Hoje, estive em casa de Sônia: fui lá pedir dinheiro para beber. Ah, ah, ah! – E ela te deu? – perguntou um dos recém-chegados com um riso enorme na boca. – Esta meia garrafa que vê foi paga com o dinheiro dela – replicou Marmeládov, dirigindo-se somente a Raskólnikov. – Ela me passou trinta copeques com suas próprias mãos, os últimos, tudo o que possuía; eu mesmo vi. Não me disse nada, limitando-se a olhar-me em silêncio... Um olhar que não era deste mundo, porém do céu, pois só lá em cima é que se pode sofrer assim pelos homens, chorar por eles, sem condená-los. Não, não condenam, mas é pior quando não condenam. Trinta copeques, veja o senhor, entretanto precisava deles, não é? Que pensa disso, meu caro? Ela precisa manter-se decentemente agora. Essa decência custa dinheiro, uma decência especial, compreende? É preciso cremes, saias engomadas, sapatinhos mais elegantes, que protejam o pé quando se tem uma poça a saltar. Compreende, meu caro, compreende a importância dessa decência? Pois bem, e eu, seu próprio pai, eu lhe arranquei esses trinta copeques. Bebo, sim, já os bebi... Diga-me: quem, pois, terá pena dum homem como eu? Fale, senhor, agora tem pena de mim? Sim ou não? Diga! Ah, ah, ah, ah! Quis encher o copo, mas a garrafa já estava vazia. – Por que te lastimar? – bradou o dono da tasca, que apareceu novamente com dois homens. Gargalhadas misturadas a impropérios estouravam no salão. Eram os ouvintes do funcionário que riam e zombavam. Os demais, que não o tinham ouvido, juntavam-se aos outros apenas para ver a sua cara. – Lastimar-me? É por que me lastimarão eles? – gritou de repente Marmeládov, levantando-se, agitando os braços; exaltado, como se não ouvisse senão estas palavras. – “Por que me lastimar?”, disseste. Sim, o caso não é para lastimar, é preciso crucificar-me, pregar-me numa cruz e não me lastimar. Crucifique-me, pois, juiz, faça-o e,

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crucificando-me, tenha dó do sacrificado. Então eu mesmo superarei o próprio suplício porque não é de alegria que tenho sede, mas de dor e de lágrimas. “Acreditas, porventura, vendeiro, que tua meia garrafa me trouxe prazer? É a dor, a dor que procuro no fundo destes frascos, a dor e as lágrimas. Encontrei-as e sorvi-as. Porém, não precisaremos apiedar-nos, porque Aquele que teve piedade de todos os homens, Aquele que tudo compreendeu, o Único e nosso primeiro julgador, voltará no Dia do Juízo e perguntará: ‘Onde está a virgem que se sacrificou por uma madrasta cruel e tísica, por crianças que não são suas irmãs? Onde está a filha que se apiedou de seu pai terrestre e não voltou a face, horrorizada, a esse bêbado crapuloso?’. Ele lhe dirá: ‘Vem. Já te perdoei uma vez... perdoei uma vez... e, agora que todos os teus pecados te sejam remidos, porque muito amaste...’. E Ele perdoará a minha Sônia. Ele a perdoará, eu sei que Ele a perdoará... Eu senti, há pouco, em meu coração, quando estive em sua casa. Todos serão julgados por Ele, os bons e os maus, os sábios e os humildes, e nós ouviremos o seu verbo: ‘Aproximai’, dirá Ele, ‘aproximai também os bêbados, as criaturas fracas e modestas’. “Avançaremos todos, sem temor, e pararemos diante d’Ele, que dirá: ‘Sois porcos, tendes a aparência do animal, trazeis a sua marca, mas vinde também’. Então, para Ele se voltarão os sensatos e os sábios e eles exclamarão: ‘Senhor, por que recebeis aqueles outros?’. E Ele lhes dirá: ‘Eu os recebo, ó sensatos, eu os recebo, ó sábios, porque nenhum deles se julgou digno dessa graça’. E Ele nos estenderá seus braços divinos e nós nos precipitaremos para eles... E nos desfaremos em lágrimas. E compreenderemos tudo... Então, compreenderemos tudo... E todos compreenderão... Ekaterína Ivánovna também compreenderá... Senhor, que o Teu reino não tarde mais!” Deixou-se cair no banco, esgotado, sem olhar para ninguém, como se tivesse esquecido todos que o cercavam, na profunda meditação que o absorvia. Tais palavras produziram certa impressão. O silêncio imperou, um momento, depois os risos estouraram maiores ainda, misturados às imprecações: – Boni... to! – Mentiu demais! – Burocrata!

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– Vamo-nos, senhor – exclamou Marmeládov, de súbito, levantando a cabeça e dirigindo-se a Raskólnikov. – Leve-me: edifício Kozel, no pátio. Já é hora de voltar à casa de Ekaterína Ivánovna. Raskólnikov havia muito que pensava em ir-se e imaginara lhe oferecer ajuda na rua. Marmeládov tinha as pernas menos firmes do que a voz e apoiava-se pesadamente sobre o rapaz. Haveria uns duzentos ou trezentos passos a caminhar. A perturbação e o medo do ébrio cresciam, à medida que se aproximava da casa. – Não é a Ekaterína Ivánovna que eu temo, neste momento – balbuciava na sua exaltação –, não é a perspectiva de vê-la me puxando os cabelos que me faz temor. Que são os cabelos? Nada, absolutamente nada... É o que digo. É melhor mesmo que se ponha a puxá-los, pois não é isso que me apavora... Eu... São os seus olhos que me fazem medo... Sim... seus olhos, as manchas vermelhas de seu rosto também me fazem medo. Seu fôlego... Já reparou como esses doentes respiram, quando são tomados de uma emoção violenta? Temo também o choro das crianças, porque se Sônia não lhes deu de comer... Não sei como... É possível até que tenham... Bem, não sei de mais nada. Mas os socos não me fazem tremer. Saiba, cavalheiro, que tais pancadas, além de não me fazerem sofrer, me dão, ao contrário, uma sensação agradável... Eu não poderia passar sem elas. Isso até é bom... É melhor que me bata, isso a acalmará, isso será bom para ela... Eis aqui a casa de Kozel... Um serralheiro alemão, rico... Leve-me até lá. Atravessaram o pátio e subiram ao quarto andar. A escada ficava cada vez mais escura. Eram quase onze horas e, se bem que nesta época do ano, por assim dizer, não houvesse noite em São Petersburgo, o alto da escada estava mergulhado na mais completa escuridão. A pequena porta enfumaçada, que dava para o estreito patamar, estava aberta. Um toco de vela iluminava o cômodo dos mais miseráveis, de apenas dez passos de extensão, que, do vestíbulo, se percebia com um simples golpe de vista. Estava na mais completa desordem, as coisas espalhadas por todos os lados, sobretudo roupas de criança. Um pano esburacado cobria um dos cantos mais afastados da porta, escondendo uma cama. No cômodo, mesmo, não havia mais do que duas cadeiras e um sofá antigo, coberto com pano de couro, caindo aos pedaços. Uma velha mesa de cozinha, nua, de madeira clara, ficava-lhe à frente.

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Na borda da mesa, num candeeiro de ferro, acabava de arder um resto de vela. Marmeládov tinha, pois, seu quarto, em casa, e não somente um simples canto. Mas ele dava para os outros cômodos e era, realmente, um corredor. A porta que abria para os quartos – antes, gaiolas – de que se compunha a habitação de Amália Lippevéchsel estava entreaberta. Ouviam-se, vindos de lá, ruídos e gritos. Estouravam gargalhadas. Com certeza, jogavam-se cartas e tomava-se chá. Fragmentos de frases grosseiras chegavam, às vezes, até à casa dos Marmeládov. Raskólnikov reconheceu, à primeira vista, Ekaterína Ivánovna. Era uma mulher horrivelmente seca, fina, bastante alta e esbelta, os cabelos castanhos ainda bonitos. Como Marmeládov dissera, manchas vermelhas tingiam-lhe as faces. Os lábios secos, a respiração curta e irregular cortava o pequeno quarto de lado a lado, as mãos convulsivamente apertadas contra o peito. Seus olhos brilhavam febrilmente, mas seu olhar era fixo e duro. E aquele rosto transtornado de tísica produzia uma impressão desagradável à luz agonizante do toco de vela quase acabado, cujo trêmulo clarão o iluminava. Raskólnikov achou que devia ter uns trinta anos e que Marmeládov não lhe servia de nenhum modo. Não notava a presença dos dois homens: parecia mergulhada numa espécie de atordoamento, que a tornava incapaz de ver e ouvir. O cômodo estava abafado, mas Ekaterína não abria a janela. Vinham odores infectos da escada e ela nem se dava ao trabalho de fechar a porta do cubículo. E, afinal, a porta interior, simplesmente entreaberta, deixava entrar ondas espessas de fumaça de tabaco que lhe provocavam a tosse, sem que se importasse de cerrá-la. A criança mais nova, uma garotinha de seis anos, dormia sentada no chão, o corpo meio torcido e a cabeça apoiada no sofá. O guri, um ano mais velho, tremia todo num canto e chorava. Com certeza, acabara de levar uma surra. A mais velha, uma menina de nove anos, comprida e fina como um palito, vestia uma camisola toda furada. Sobre seus ombros nus estava jogado um capote de pano, feito uns dois anos atrás, certamente, porque lhe dava só até os joelhos. Estava junto do irmãozinho e rodeava-lhe o pescoço com o braço ressequido. Tentava acalmá-lo, murmurando-lhe alguma coisa para fazê-lo calar-se, ao mesmo tempo que seguia sua mãe com um olhar medroso. E seus olhos, escuros, pareciam maiores ainda, neste pequenino rosto emagrecido.

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Marmeládov não entrou, de modo algum, no cômodo. Ajoelhou-se na porta e empurrou Raskólnikov para a frente. A mulher, percebendo o estranho, postou-se distraidamente na sua frente e, voltando a si – momentaneamente – parecia perguntar-se: “Que é que este sujeito faz aí?”. Mas pensou logo que ele atravessava seu quarto para ir a outro cômodo e, tendo dito aquilo, dirigiu-se para a porta de entrada, a fim de fechá-la. Deu um grito rápido, quando viu o marido ajoelhado na soleira da porta. – Ah – gritou enfurecida. – Voltaste, forçado, monstro, e onde está o dinheiro, que é que tens no bolso? Mostra! Essa roupa não é a tua: onde está ela? Onde está o dinheiro? Fala. – Pôs-se a revistá-lo apressadamente. E Marmeládov, na mesma hora, abriu vagarosamente os braços para facilitar-lhe a busca. Não tinha um copeque. – Onde está o dinheiro? – bradava. – Será possível, meu Deus, que ele tenha bebido tudo? Ainda havia doze rublos no baú. – Tomada de um acesso de ódio, agarrou o marido pelos cabelos e jogou-o no quarto. Marmeládov tentava amenizar-lhe o esforço e acompanhava-a, humildemente, arrastando-se com os joelhos. – É uma satisfação para mim, não é aborrecimento, mas uma sa-tis-fa-ção, meu caro senhor – gritava, enquanto era sacudido pelos cabelos. Deu até com a testa no soalho. A criança que dormia no chão acordou e começou a chorar. O garotinho, em pé, no seu canto, não pôde suportar esta cena: pôs-se a tremer, errando, e lançou-se nos braços da irmã, tomado de um terrível susto, quase numa crise convulsa. A mais velha tremia como uma folha. – Ele bebeu, bebeu tudo – gritava a pobre mulher, desesperada. – Eles estão famintos! Estão morrendo de fome! – apontava para as crianças torcendo os braços. – Oh, vida desgraçada! E você, você não tem vergonha? – virou-se para Raskólnikov: – Não tem vergonha de ter vindo da taberna? Você também bebeu com ele, bebeu com ele! Saia daqui!... Raskólnikov apressou-se em sair, sem dizer palavra. Ainda por cima, a porta interior abriu-se e vários curiosos apareceram, espichando as caras atrevidas e zombeteiras, de gorro na cabeça, o cigarro ou cachimbo na boca. Era de vê-los: uns cobriam-se com roupas de dormir, outros com trajes de verão quase indecorosos, alguns estavam até com o baralho na mão. Puseram-se a rir, gostosamente, sobretudo

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quando ouviram Marmeládov dizer que gostava de ser puxado pelos cabelos. Chegaram a entrar no alojamento. Por fim, ouviu-se uma voz estridente e anunciadora de tempestade. Era a própria Amália Ivánovna Lippevéchsel que abria passagem entre aquela gente para restabelecer a ordem, à sua maneira, e amedrontar a desgraçada mulher, pela centésima vez, intimando-a, entre desaforos, a deixar a casa no dia seguinte. Quando saía, Raskólnikov ainda teve tempo de meter as mãos no bolso, tirar o que sobrou do rublo que trocara na taberna e de pô-lo, sem ser visto, no peitoril da janela. Depois, já na escada, arrependeu-se tanto dessa generosidade que esteve a pique de subir novamente. “Que tolice eu fiz”, pensava, “eles, eles têm Sônia, ao passo que estou na maior miséria”. Mas, raciocinando que não poderia voltar e reaver o dinheiro e que, de qualquer maneira, não o faria, decidiu-se a voltar para casa. “Sônia, esta, também precisava de creme”, continuava ele andando na rua com um riso mordaz. “Essa decência custa dinheiro. Hum... Sónetchka hoje pode estar sem um vintém, porque seu meio de vida é uma questão de sorte. É uma caça ao animal raro... a caça ao ouro... Sem meu dinheiro ficariam com a barriga vazia. Essa Sônia... Encontraram uma verdadeira mina de dinheiro. E exploram-na. Porque afinal se aproveitam dela. Habituaram-se a isso, a princípio fingindo constrangimento, depois se acostumaram. Humanidade crápula, que se adapta a tudo.” Pôs-se a meditar. “E se for falso”, exclamou depressa, involuntariamente, “e se o homem não for, realmente, um crápula, quer dizer, se ele não o é, de modo geral? Então, é porque tudo o mais são preconceitos, receios vãos e não se deve parar diante do que quer que seja. Agir, eis o que é preciso”.

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III

Acordou tarde, no dia seguinte, após um sono agitado, que não o repousara de nenhum modo. Sentia-se triste e irritado. Olhou para o cômodo com repugnância. Era um pequeno cubículo que não media mais de seis passos de comprimento e apresentava o aspecto mais desolador deste mundo, com o seu papel amarelecido, poeirento, descolando-se em placas. O teto era tão baixo que um homem de altura pouco acima da média sentia-se mal ali, arriscando-se a dar com a cabeça no alto. O mobiliário correspondia ao lugar: compunha-se de três velhas cadeiras, mais ou menos mancas, uma mesa pintada, encostada no canto, em cima da qual se achavam, na mais ‘completa desordem, alguns cadernos e livros tão empoeirados que, de vê-los, se percebia que não eram tocados havia muito tempo; enfim, de um grande sofá, escangalhado, que ocupava quase toda a extensão e a metade da largura do cômodo, coberto com uma capa esfarrapada. Só este último servia de cama a Raskólnikov. Dormia muitas vezes sem tirar a roupa e sem pôr os lençóis, abrigando-se, apenas, com o seu velho sobretudo de estudante, já usado. Como travesseiro, servia-se de uma almofada, debaixo da qual metia tudo o que era roupa limpa ou suja, para aumentá-lo. Diante do sofá achava-se uma mesinha. Seria difícil imaginar-se maior miséria, maior relaxamento, mas, para o seu estado de espírito atual, sentia-se feliz com isso. Afastando-se de todos, vivia como uma tartaruga escondida em seu casco. Mesmo a presença da criada, encarregada de fazer a limpeza do quarto, que algumas vezes aparecia, o irritava e o punha furioso. É o que se dá com certos maníacos, absorvidos por uma ideia fixa. Havia cerca de quinze dias que a senhoria não lhe mandava comida e ainda não pensara em explicar-se com ela, apesar de ficar sem jantar. Nastássia, a cozinheira e única criada da casa, estava até satisfeita com isso. Deixara de varrer e de limpar o quarto. De vez em quando, somente, por acaso, uma vez por semana, acontecia de vasculhar-lhe o cômodo. Foi quem o acordou nesse dia.

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– Levanta-te, por que dormes tanto? – gritou-lhe. – São mais de nove horas. Trouxe chá; queres uma xícara? Tens uma cara de flagelado. Abriu os olhos, sobressaltou-se e reconheceu Nastássia. – Foi a dona da casa que me mandou este chá? – perguntou, levantando-se com grande esforço. – Vê lá se ela se daria a esse trabalho! Colocou, diante dele, o bule de chá rachado, onde ainda havia um pouco de bebida, e dois tabletes de açúcar amarelo. – Está aqui, Nastássia, toma isto, por favor – disse, remexendo no bolso de onde tirou uns níqueis (mais uma vez dormira vestido). – Compra-me um pão branco e arranja-me, também, um pouco de salsichão, do mais barato. – O pão branco, trarei agora mesmo, mas não quer, em vez do salsichão, chtchi?6 É de ontem, porém está muito boa. Guardei um pouco, mas chegaste tarde. Está boa, garanto-te. Quando trouxe a sopa e Raskólnikov pôs-se a tomá-la, Nastássia postou-se no sofá, ao seu lado, e começou a tagarelar. Era uma camponesa excessivamente loquaz, recém-chegada de sua aldeia. – Praskóvia Pávlovna quer dar queixa de ti à polícia. – Franziu o sobrolho, o ar compungido. – À polícia? Por quê? – Não pagas o aluguel e não mudas. Sabe-se o que ela quer... – Diabo! Era só o que faltava – resmungou, cerrando os dentes. – Não! Se tal acontecesse agora, seria horrível para mim... Ela é boba – ajuntou, em voz alta. – Vou vê-la hoje e falarei a esse respeito. – Para isso, ela é tão boba como eu... Mas, então, já que és tão inteligente, que fazes aí deitado como um saco? E nunca se vê a cor do teu dinheiro. Dizes que, antigamente, davas aulas: por que não fazes mais nada? – Faço alguma coisa – replicou Raskólnikov, secamente e como que sem querer. – Ora, o quê? – Um serviço. – Que serviço? – Penso – respondeu gravemente, depois de um silêncio. 6. Sopa feita de couve (N. T.).

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Ante a resposta, Nastássia caiu na gargalhada. Ela, de si, já era naturalmente alegre, mas quando a faziam rir, sacudia-se até não poder mais. – Hão de trazer-te muito dinheiro as tuas reflexões – observou, enfim, quando pôde falar. – Não se pode dar lições quando não se têm sapatos. Aliás, não me importo com essas lições. – Cuidado! Não diga: dessa água não beberei. – Que me pagam por essas lições? Alguns copeques. Para que me serviriam eles? – continuou, com má vontade, como se respondesse aos próprios pensamentos. – Mas, então, queres ganhar uma fortuna de uma vez? – Olhou-o com um jeito esquisito. – Sim, uma fortuna – replicou-lhe, com firmeza, depois de curto silêncio. – Deixa disso. Vai devagar, sem o que a gente fica até com medo, porque já tens um aspecto tenebroso... E teu pão branco? Queres que vá buscá-lo ou não? – Como quiseres. – Ah, já ia esquecendo. Chegou, ontem, uma carta para ti quando saíste. – Carta para mim? De quem? – De quem? Sei lá! Paguei, do meu bolso, três copeques ao carteiro. Ao menos irás me reembolsá-los, não vais? – Traze-a, traze-a, pelo amor de Deus – exclamou, agitadíssimo. – Oh, Senhor! Um minuto depois, a carta estava ali. Era bem o que pensava. Vinha de sua mãe, da província de R. Empalideceu ao tomá-la. Já havia muito tempo que ele não recebia cartas e, neste momento, a emoção que lhe oprimia o peito aumentou por outro motivo. – Nastássia, vai-te embora, pelo amor de Deus. Toma, toma os três copeques, mas vai-te embora, vai-te o mais depressa possível. A carta tremia-lhe nas mãos. Não queria abri-la na presença da criada. Queria ficar sozinho para romper o envelope. Quando Nastássia saiu, beijou a carta, depois ficou, por algum tempo ainda, contemplando o endereço e reparando a letra, essa letra fina e um pouco inclinada, que lhe era tão cara e familiar, a letra de sua mãe, que outrora lhe

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ensinara a ler e a escrever. Demorava a abri-la e parecia mesmo sentir certo receio em fazê-lo. Por fim, rasgou o envelope. A carta era longa, traçada numa caligrafia compacta. Enchia duas grandes folhas de papel, dos dois lados. “Querido Ródia”, escrevia sua mãe, há mais de dois meses que não converso contigo por escrito, pelo que tenho sofrido a ponto de muitas vezes perder noites de sono. Espero que me desculpes tal silêncio involuntário. Sabes quanto te quero. Não temos senão a ti, Dúnia e eu. És toda a nossa esperança, toda a nossa confiança no futuro. Só Deus sabe o que senti quando soube que foste obrigado a deixar a universidade, há vários meses, porque não podias mais manter-te, perdendo teus alunos e todos os meios de que vivias. Como poderia eu ajudar-te com os meus cento e vinte rublos de pensão anual? Os quinze rublos que te mandei, há quatro meses, tomei-os emprestados, como sabes, a um negociante da cidade, Vassílii Ivánovitch Vakhrúchin, por conta da mesma aposentadoria. É um homem direito, que foi amigo de teu pai, porém, tendo-lhe dado procuração para receber, era necessário esperar que a dívida estivesse saldada, e, somente agora, é que isso se deu. Não poderia, portanto, te enviar coisa alguma, durante todo esse tempo. Mas agora creio que poderei, graças a Deus, te remeter alguma coisa. Aliás, no momento, parece-me que podemos dar graças aos céus, o que me apresso em comunicar-te. Antes de mais nada, certamente não duvidas, querido Ródia, que já há seis semanas que tua irmã mora comigo e que pensamos nunca mais nos separar. Seus sofrimentos acabaram-se. Deus seja louvado. Todavia, vamos por ordem, a fim de que saibas como tudo se passou e o que te escondemos até esta data. Quando me escrevias, há dois meses, que ouviras dizer de alguém que Dúnia era infeliz em casa dos Svidrigáilov, que a tratavam grosseiramente, e quando me pedias explicações a esse respeito, que poderia te responder? Se te tivesse dito toda a verdade, terias abandonado tudo para vir aqui, ainda que para isso tivesses de viajar a pé, porque te conheço bem, teus sentimentos, teu caráter, e sei que jamais permitirias que alguém ofendesse tua irmã. Eu mesma estava desesperada, mas que podia fazer? Aliás, não sabia ainda de tudo, naquela ocasião. O pior era que Dúnetchka, admitida o ano passado na

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casa, como governanta, havia tomado adiantada a apreciável importância de cem rublos, que se comprometera a pagar com o seu ordenado, não podendo, portanto, deixar o lugar antes de amortizar essa dívida. Ora, tal quantia (posso agora explicar-te, meu Ródia adorado) ela havia pedido emprestada especialmente para enviar-te aqueles sessenta rublos de que tanto precisavas na ocasião, e que, de fato, te enviamos, o ano passado. Então, enganamos-te quando dissemos que essa quantia era proveniente de antigas economias de Dúnetchka. Não era verdade, mas posso, agora, confessar-te tudo. Em primeiro lugar, porque as coisas melhoraram de repente, graças a Deus, e também para que saibas quanto Dúnia gosta de ti e que coração de ouro ela tem. De fato, o senhor Svidrigáilov começou por mostrar-se excessivamente bruto para com ela. Fazia-lhe, à mesa, toda sorte de indelicadezas e zombava dela continuamente... Mas não quero alongar-me sobre estas minúcias aborrecidas, que apenas serviriam para irritar-te inutilmente, agora que tudo acabou. Enfim, Dúnetchka sofria muito, conquanto fosse tratada atenciosamente por Márfa Petróvna, a esposa de Svidrigáilov, e pelas demais pessoas da casa. Sua situação era tanto mais aborrecida quanto este último, em virtude de um hábito adquirido no regimento, dava para prestar homenagens a Baco... Pois bem. E o que viemos a saber depois disso? Imagina que este leviano desde há muito se apaixonara por Dúnia, paixão essa que disfarçava sob a capa de rispidez e desprezo. Talvez que se envergonhasse de si próprio, ficando apavorado por alimentar esperanças tão licenciosas, ele, um homem de certa idade, pai de família, apaixonando-se involuntariamente por Dúnia. Ou, então, com a sua conduta grosseira e os seus sarcasmos, não pensava senão esconder dos outros a verdade. Finalmente, não suportando mais a situação, não hesitou em fazer a Dúnia propostas desonestas e perfeitamente claras. Prometia-lhe tudo, até mesmo o abandono dos seus, a fuga para outra cidade ou para o estrangeiro. Imagina o que ela sofria. Era-lhe impossível abandonar o emprego não somente pela dívida que contraíra como, também, por pena de Márfa Petróvna, que talvez já suspeitasse de tudo, o que viria a trazer discórdia na família. Para ela mesma, aliás, o escândalo teria sido horrível. E a situação não seria fácil de ser acomodada. Havia, ainda, outras razões que impediam Dúnia de fugir dessa casa infernal antes de quarenta e cinco dias. Certamente conheces Dúnia, a sua inteligência e a energia de seu caráter. Sabes quanto é inteligente,

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podendo suportar muitas coisas e, nas hipóteses mais trágicas, encontrar, em si mesma suficiente dose de resistência moral para manter-se firme. Ela própria nem me falou dessa história, para não me aborrecer, se bem que nos correspondêssemos amiúde. O desfecho da coisa surgiu imprevistamente. Um dia, por acaso, Márfa Petróvna surpreendeu, no jardim, seu marido acossando Dúnetchka com suas súplicas. E compreendendo às avessas o que se passava, atribuiu à tua irmã toda a responsabilidade, julgando-a a única culpada. Seguiu-se, ali mesmo, uma cena terrível, chegando Márfa Petróvna até a bater em Dúnetchka! Não queria ouvir coisa alguma e ficou gritando, pelo menos, durante uma hora. Afinal, Márfa Petróvna a fez regressar à nossa casa numa simples carroça de camponês, onde seus trens e sua roupa haviam sido jogados atabalhoadamente. Não lhe deixara nem tempo de embrulhá-los. Uma chuva diluviana caía nesse momento e Dúnia, além de cruelmente maltratada e difamada, teve de percorrer com aquele mujique7 dezessete longas verstas numa carroça descoberta. Agora, dize-me: que poderia contar-te, a esse respeito, em resposta à carta que me veio de ti? Eu mesma estava desesperada. Não tinha coragem de escrever-te a verdade, que te faria desgostoso e enfurecido. E, afinal de contas, que poderias fazer? Uma desgraça. Aliás, Dúnetchka me proibira. Mas eu me sentia incapaz de encher minha carta de frases sem importância, quando meu coração sangrava. Depois dessa história, passamos a ser, durante um mês, o assunto da cidade, de tal forma que não tínhamos coragem nem de ir à igreja, por causa dos cochichos, dos olhares deprimentes e dos comentários feitos em alta voz até em nossa presença. Todos os amigos se afastaram, deixaram de nos cumprimentar e cheguei a saber, de fonte limpa, que certos caixeiros e empregados tencionavam insultar-nos, lambuzando a nossa porta de piche, de maneira que o dono da casa nos obrigasse a mudar. Tudo isso por causa de Márfa Petróvna, que já havia tido tempo de desmoralizar e comprometer Dúnia em quase toda parte: conhece todo mundo aqui na cidade e, durante esse mês, vinha aqui quase todos os dias. Como é um pouco linguaruda e gosta de contar as suas coisas íntimas e queixar-se de seu marido por qualquer coisa (o que acho muito malfeito), facilmente espalhou a história não só na cidade como em todo 7. Camponês russo (N. T.).

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o distrito. Fiquei doente. Quanto a Dúnetchka, mostrou-se mais forte do que eu. Se visses como suportava essa infelicidade, procurando ainda me consolar e encorajar-me... É um anjo. Mas a misericórdia divina quis que a nossa desgraça tivesse um fim. Svidrigáilov caiu em si. Cheio de remorso e, com certeza, com pena de Dúnia, mostrou a Márfa Petróvna as mais convincentes provas de sua inocência: uma carta que Dúnia, na véspera de serem surpreendidos, no jardim, por Márfa Petróvna, se vira obrigada a escrever-lhe, para evitar toda e qualquer satisfação pessoal ou promessa de encontrar-se com ele. Nessa carta, que ficou em poder de Svidrigáilov depois da partida de Dúnetchka, ela lhe recriminava, vivamente, e cheia de indignação, a baixeza de seu procedimento para com Márfa Petróvna, lembrando-lhe que era casado, pai de família e que, perseguindo uma pobre moça indefesa, praticava uma grande infâmia. Concluindo, caro Ródia, tal carta deixa transparecer tanta nobreza e é vazada em termos tão comoventes, que, ao lê-la, fiquei soluçando, e agora mesmo não posso relê-la sem lágrimas. Além disso, Dúnia teve, finalmente, a seu favor, o testemunho dos criados que sabiam mais do caso do que o próprio Svidrigáilov poderia imaginar. Márfa Petróvna ficou absolutamente passada, `fulminada’, como ela diz, pela segunda vez, porém não conservou a menor dúvida sobre a inocência de Dúnetchka e, logo no dia seguinte, um domingo, foi primeiro à igreja, pedir de joelhos à Virgem para lhe dar forças para suportar essa nova provação e cumprir o seu dever. Em seguida, veio diretamente aqui em casa e, chorando amargamente, contou-nos toda a história. Roída de remorsos, atirou-se aos braços de Dúnia, pedindo-lhe perdão. Depois, sem perda de um minuto, percorreu todas as casas da cidade e, banhada em lágrimas, começou a gritar, em termos mais lisonjeiros possíveis, a inocência, a nobreza dos sentimentos e da conduta de Dúnia. E não satisfeita com as suas palavras, mostrava a todos, e ela própria lia, a carta autografada que Dúnetchka escrevera ao senhor Svidrigáilov, deixando mesmo que a copiassem (o que me pareceu exagerado). Assim fez com todas as pessoas de suas relações, gastando nisso vários dias, uma vez que algumas delas começaram a sentir-se melindradas ou se queixavam de serem preteridas, chegando-se até a determinar a vez de cada uma, de tal maneira que cada família sabia, antecipadamente, o dia que deveria esperar sua visita. A cidade inteira sabia onde era a leitura da carta, em determinado momento, reunindo-se ali para ouvi-la, incluindo-se nesse

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número até mesmo aqueles que já a conheciam de uma leitura especial, em sua própria casa ou em casa de seus amigos (para mim, tudo era muito exagerado, mas assim é Márfa Petróvna, e pelo menos, com isso, ela reabilitou Dúnetchka inteiramente). E toda a infâmia dessa história caiu sobre seu marido, que ela tacha vergonhosamente como o principal culpado, de tal modo que eu tenho dó dele. São excessivamente severos, a meu ver, com este pobre coitado. Dúnia recebeu, logo depois, ofertas para lecionar em diversas casas, mas recusou-as. Todo mundo passou a dispensar-lhe grande consideração. É a essas coisas que, suponho, se deve atribuir, sobretudo, o inesperado acontecimento que vem transformar, se é possível dizer-se, toda a nossa vida. Fica sabendo, caro Ródia, que Dúnia foi pedida em casamento, que ela já aceitou, o que me apraz comunicar-te. E, se bem que tudo tenha sido decidido sem te consultar, espero que não te zangues, nem com tua irmã nem comigo, desde que compreendas que não poderíamos deixar as coisas caminharem, à espera de uma resposta tua. Aliás, tu mesmo, de longe, não poderias apreciar, convenientemente, os fatos. Eis como a coisa se deu: ele é conselheiro áulico e se chama Piótr Petróvitch Lújin. É parente afastado de Márfa Petróvna, que, no caso, agiu poderosamente a favor da questão. Começou, por intermédio dela, manifestando o desejo de travar relações conosco. Nós o recebemos convenientemente, tomou café aqui em casa e, no dia imediato, enviou-nos uma carta, na qual, muito polidamente, fazia seu pedido, solicitando, a um tempo, uma resposta decisiva e rápida. Trata-se de um homem ativo e muitíssimo ocupado: tem tanta pressa de ir a São Petersburgo que não pode perder um minuto. A princípio ficamos chocadas, compreendes, de tal modo era coisa inesperada e súbita, que passamos, tua irmã e eu, um dia inteiro a estudar a questão e a imaginar. É um homem às direitas e que desfruta uma bela posição, funcionário de duas repartições e já possui certo capital. Na verdade, tem quarenta e cinco anos, mas sua fisionomia é bem agradável, podendo, ainda, atrair as mulheres. Parece muito distinto, só que um pouco austero, eu diria mesmo orgulhoso. É possível, no entanto, que isso seja apenas na aparência. Devo ainda prevenir-te, caro Ródia, quando o vires, dentro em pouco, em São Petersburgo, o que não demorará muito, para não o julgares apressadamente e tão impetuosamente como é teu costume, se alguma

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coisa nele te desagradar. Digo-te isso por dizer, pois tenho certeza de que ele te impressionará bem. Afinal, para se conhecer alguém é preciso vê-lo e observá-lo muito tempo, cuidadosamente, sob pena de se deixar levar por prevenções e se cometerem enganos difíceis de reparar, mais tarde. No que se refere a Piótr Petróvitch, tudo leva a crer tratar-se de um homem decente. Confessou-nos, em sua primeira visita, que é positivo, mas que participa, como ele próprio o diz, em muitos pontos, da opinião das novas gerações e que tem horror aos preconceitos. Disse-nos ainda muitas outras coisas, porque parece um pouco vaidoso e gosta de fazer-se ouvido, o que não é crime. Naturalmente, não compreendi muito do que dizia; contudo, Dúnia explicou-me que, muito embora de pouco preparo, parece ser uma criatura inteligente e boa. Conheces tua irmã, Ródia, é uma moça enérgica, sensata, paciente e generosa, se bem que possuindo um coração ardente, tanto quanto eu pude me convencer disso. Certamente não se trata, nem de um lado nem de outro, de um grande amor, mas Dúnia não é apenas inteligente: é uma pessoa nobre, um verdadeiro anjo, e ela se imporá a obrigação de fazer o seu marido feliz e este, por sua vez, procurará fazer a felicidade dela, coisa de que até o momento não temos nenhuma razão para desconfiar, apesar do casamento ter sido arranjado tão apressadamente, vamos dizer. Afinal de contas, ele é bastante inteligente para perceber que a sua felicidade conjugal depende da felicidade que der a Dúnetchka. No que diz respeito a certas desigualdades de gênio, de hábitos arraigados, de uma divergência de opinião... (o que sempre se dá até entre os casais mais felizes) Dúnetchka mesma me disse que tem confiança em si para acomodar tudo, que não é preciso se incomodar com isso, porque se julga com forças para suportar tudo, desde que ele seja sincero e justo para com ela. Muitas vezes as aparências enganam. Assim sendo, a princípio ele me deu a impressão de ser um pouco brusco, decidido, mas é possível que isso venha, precisamente, de sua integridade de caráter e nada mais. Já, porém, na segunda visita, noivando, disse-nos em conversa que antes de conhecer Dúnia se decidira a não casar senão com uma moça honesta e sem dote, mas que já tenha conhecido a miséria, porque, conforme nos explicou, um marido nada deve ficar devendo à sua mulher: até é bom, pelo contrário, que ela o considere seu benfeitor. Devo ainda dizer que ele se exprimiu de um modo mais delicado e mais amável do que escrevo, mesmo porque não me lembro mais dos termos exatos que usou.

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Guardo, apenas, uma ideia do que falou. Aliás, falou sem caso pensado: suas palavras chegaram, naturalmente, no calor da conversa e, tanto assim, que tentou conter-se atenuando a extensão do que dizia. Entretanto, achei suas palavras um tanto ásperas, tanto que o disse, depois, a Dúnia, mas ela me replicou com alguma irritação que palavras não são atos, o que está certo. Dúnetchka não pôde pregar os olhos na véspera do “sim” e, supondo que eu dormisse, levantou-se e passou o tempo todo passeando no quarto, para lá e para cá. Finalmente, ajoelhou-se, rezou durante muito tempo, fervorosamente, diante do ícone e, pela manhã, me disse que já tinha resolvido. Já te contei que Piótr Petróvitch partirá brevemente para São Petersburgo, onde o chamam grandes interesses e onde pretende estabelecer uma banca de advogado. Há muito tempo que trata de processos e acaba de ganhar uma causa importante. Sua viagem à capital é motivada por um assunto considerável que precisa acompanhar no Senado. Nessas condições, caro Ródia, poderá ser-te muito útil em tudo e aqui ficou decidido, entre mim e Dúnia, que podes, desde já, começar tua carreira e considerar teu destino resolvido. Oh, se isso pudesse se realizar! Seria uma tão grande felicidade, que não se poderia atribuí-la senão a uma graça especial da Providência. Dúnia só pensa nisso. Já tomamos a liberdade de tocar no assunto com Piótr Petróvitch. Ele mostrou-se um tanto reservado e respondeu que ia precisar de um secretário e preferia, naturalmente, antes confiar tal atividade a um parente do que a um estranho, desde que fosse capaz de exercê-la. (Não faltava mais nada que não fosses capaz disso.) Entretanto, ao mesmo tempo, expressou o receio de que teus estudos não te permitissem trabalhar no escritório. Paramos por aí, dessa vez, mas Dúnia não tira tal ideia da cabeça. Desde alguns dias que ela vive agitada, já tendo traçado um plano para o futuro: já te imagina trabalhando com Piótr Petróvitch, como seu sócio, tanto mais que estás estudando direito. Devo-te dizer, Ródia, que estou plenamente de acordo com ela e participo de todos os seus projetos e esperanças, porque os acho perfeitamente realizáveis, apesar da resposta evasiva de Piótr Petróvitch, que é compreensível, visto ainda não te conhecer. Dúnia está firmemente convencida de que conseguirá o pretendido graças à influência sobre o futuro esposo, que conta obter, tão certa está de si. Tivemos o cuidado de não deixar transparecer a Piótr Petróvitch as nossas aspirações, sobretudo a esperança de ver-te, um dia, como seu

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sócio. É um homem prático e poderia receber mal uma coisa que não lhe parecesse viável. Do mesmo modo, nem Dúnia nem eu nada lhe dissemos sobre a firme esperança que temos de vê-lo ajudar-te materialmente enquanto estiveres na universidade, porque isso se fará por si, e ele próprio, naturalmente, o fará, sem bazófia. Era só o que faltava se ele quisesse opor a Dúnetchka um “não” sobre isso, tanto mais que poderás em breve tornar-te seu auxiliar, seu braço direito, por assim dizer, e receber esse auxílio, não como uma esmola, mas como uma bem merecida remuneração pelos teus serviços. É assim que Dúnetchka quer dispor as coisas, e estou inteiramente de acordo. A segunda razão pela qual achamos preferível silenciar a respeito é que desejo, particularmente, ver-te em pé de igualdade com ele no próximo encontro que os dois tiverem. Quando Dúnia lhe falou de ti com entusiasmo, ele respondeu-lhe que é preciso que a gente primeiro estude uma pessoa para depois julgá-la e que só poderá formar uma opinião a teu respeito depois de travar relações contigo. Queres que eu te diga uma coisa, meu querido Ródia? Parece-me que, por certos motivos (que, aliás, nada têm que ver com Piótr Petróvitch e que, talvez, não sejam senão coisas de velha), parece-me, dizia, que para mim seria melhor que, após o casamento, eu continuasse a morar sozinha em vez de viver com eles. Tenho certeza de que ele será bastante delicado para me convidar a não me separar de minha filha, e, se até agora não tocou no assunto, é certamente porque supõe isso subentendido, porém não aceitarei. Tenho observado, mais de uma vez, que, em geral, os genros não gostam das sogras e não só quero dispensar-me de ser pesada aos outros, por menos que isso custe, como ainda faço questão de manter-me perfeitamente livre, enquanto restar algum dinheiro e filhos, como tu e Dúnetchka. Residirei, se possível, perto dos dois, porque, Ródia, guardei a notícia mais agradável para o final desta carta: fica sabendo, portanto, meu caro filho, que é bem possível que nos encontremos dentro em breve, todos os três, e que possamos nos abraçar de novo após uma separação de quase três anos. Está absolutamente decidido que Dúnia e eu seguiremos logo para São Petersburgo: ainda não sei a data exata de nossa partida, mas será muito próxima. É mesmo possível que partamos dentro de oito dias. Tudo está dependendo de Piótr Petróvitch, que nos prevenirá, assim que esteja mais ou menos instalado. Deseja, por certos motivos, apressar o casamento e realizá-lo, se possível, antes de

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começar a quaresma, ou, o mais tardar, se não houver tempo para isso, logo depois da festa da Assunção. Oh, com que alegria te apertarei junto de meu coração! Dúnia está transbordante de alegria com a simples ideia de rever-te, e uma vez me disse, gracejando, que apenas isso seria o bastante para decidi-la a aceitar Piótr Petróvitch. É um anjo. Ela não acrescenta coisa alguma à minha carta, mas me pede para dizer-te que tem tanto, tanto para conversar contigo, que nem pode pegar na pena, pela impossibilidade de falar tudo em poucas linhas, o que serviria tão somente para enervá-la. Ela te manda milhares de beijos. Entretanto, mesmo faltando pouco para estarmos todos reunidos, espero enviar-te, por estes dias, algum dinheiro, o máximo possível. Agora, que se sabe por aqui que Dúnetchka vai se casar com Piótr Petróvitch, meu crédito se restabeleceu, de repente, e sei, de fonte limpa, que Afanássii Ivánovitch está disposto a me adiantar até setenta e cinco rublos, pagáveis com a minha pensão. Poderei, assim, mandar-te vinte e cinco ou até trinta rublos. Enviar-te-ia ainda mais se não temesse ficar com pouco dinheiro para a viagem e, muito embora Piótr Petróvitch tenha feito a gentileza de responsabilizar-se por uma parte de nossas despesas de mudança (encarregar-se-á de nossa bagagem e da mala grande, enviando tudo por intermédio de amigos, desconfio), não devemos, nem por isso, deixar de pensar na nossa chegada a Petersburgo, onde não havemos de desembarcar sem dinheiro para atender às nossas necessidades, pelo menos durante os primeiros dias. Aliás, Dúnia e eu já calculamos tudo certinho. A viagem não será cara. Não há mais de noventa verstas daqui de casa à estação e já combinamos com um mujique, nosso conhecido, que é carroceiro. Em seguida, viajaremos o melhor que pudermos, Dúnetchka e eu, em terceira classe. Assim, feitas as contas, eu ajustarei as coisas para enviar-te não vinte e cinco, mas trinta rublos. Chega, porém: já enchi duas páginas e não há mais lugar para escrever. Foi toda nossa história que te acabo de contar: quantos acontecimentos acumulados! E agora, meu querido Ródia, beijo-te, antecipando nossa próxima reunião, e te envio minha bênção. Ama Dúnia, ama tua irmã, Ródia, ama-a como ela te ama. Sua ternura é infinita, ela te ama mais do que a si mesma: é um anjo, e tu, Ródia, tu és toda a nossa vida, nossa esperança e nossa fé no futuro. Se fores feliz, nós também o seremos.

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Continuas a rezar, Ródia? Acreditas na misericórdia de nosso Criador e de nosso Salvador? Meu coração receia que tenhas sido atingido por essa doença da moda, o ateísmo. Se assim for, rezarei por ti – lembras-te, querido? –, como na tua meninice, quando teu pai era vivo e balbuciavas tuas orações no meu colo. Como então éramos felizes... Até breve, mando-te milhares de beijos. Tua, toda a vida, Pulkhéria Raskólnikova.

Com a leitura desta carta, Raskólnikov sentiu, mais de uma vez, o rosto molhado de lágrimas, porém, quando terminou, estava pálido, a expressão convulsa e um pesado, amargo e cruel sorriso nos lábios. Apoiou a cabeça no travesseiro vazio e sujo, e ficou, durante muito tempo, pensando. Seu coração batia com mais força, a alma torturada. Por fim, sentiu-se como que sufocado, nessa estreita cela amarelada que mais parecia uma mala ou um armário. Seus olhos, seu cérebro, clamavam por mais espaço. Tomou o chapéu e saiu, mas, dessa vez, sem temer qualquer encontro na escada. Esqueceu-se de tudo. Caminhou para Vassílievski Óstrov pela Avenida V. Andava rapidamente, como um homem que vai a um negócio urgente. Movia-se, conforme seu hábito, sem ver nada em torno de si, resmungando retalhos de palavras indistintas. Todo mundo que passava olhava para ele, tomando-o por um bêbado.

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IV

A carta de sua mãe esgotara-o. Porém, não hesitou um minuto com respeito ao seu assunto principal, mesmo quando a lia. Sua decisão, nesse sentido, já estava tomada, definitivamente. “Enquanto eu for vivo, tal casamento não se realizará. Vá para o diabo esse senhor Lújin!” “A coisa é clara”, resmungava, amarga e ironicamente, como se estivesse certo de conseguir o pretendido. “Não, mamãe; não, Dúnia; não chegarão a me enganar. E ainda se desculpam por não me terem consultado, decidindo a questão sozinhas. Está certo... Pensam que é muito tarde para acabar tudo: veremos se isso se fará ou não. Que belo pretexto as duas alegam. Piótr Petróvitch é, ao que parece, um homem tão ocupado, que não se poderia casar a não ser a toda a velocidade, num trem de ferro. Qual! Não, Dúnetchka; eu vejo tudo muito bem e sei de que natureza são as coisas que tens para me dizer, assim como sei no que pensavas andando no quarto a noite inteira, o que confiavas, ajoelhada, à Virgem de Kazán, cuja imagem se acha no quarto de mamãe. O caminho do Gólgota é difícil de ser escalado. Pois sim... Assim dizes que está tudo definitivamente decidido: resolveste, Avdótia8 Románovna, casar-te com um homem de negócios, um homem prático que possui certo capital (que já acumulou certo capital, soa melhor e dá mais importância). Trabalha em duas repartições e aceita as ideias das novas gerações (como diz mamãe) e parece bom, como observou a própria Dúnetchka. Esse ‘parece’ é o mais lindo de tudo. E Dúnetchka vai se casar acreditando na aparência. Que maravilha!... “... Gostaria de saber por que mamãe me fala em novas gerações. Seria apenas para caracterizar melhor o tipo ou, de caso pensado, para conciliar as minhas simpatias com o senhor Lújin? Que astuciosas! Gostaria também de esclarecer outra circunstância, ainda. Até que ponto elas teriam sido francas, uma com a outra, naquele famoso dia, naquela noite e no dia seguinte? Teriam conversado claramente ou 8. Nome do qual Dúnia e Dúnetchka são diminutivos (N. T).

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ambas compreenderam que tanto uma como outra não tinham senão a mesma ideia, um único modo de sentir e que, assim sendo, as palavras seriam inúteis, deixando, pois, as duas, de pronunciá-las? Inclino-me mais para esta última hipótese: pode-se adivinhá-la pela carta. Ele pareceu um pouco brusco a mamãe e a pobre mulher, na sua ingenuidade, apressou-se em comunicar a sua impressão a Dúnia, e a outra, do mesmo modo, não se dando por achada, zangou-se, respondendo rudemente. Como deixar de ficar furioso quando tudo é claro, mesmo sem esses detalhes ingênuos, e quando já está decidido não se voltar atrás? E por que me escreve ela: ‘Ama Dúnia, Ródia, porque ela te ama mais do que a sua própria vida’? Não será, porventura, o remorso secreto que a tortura, por ter sacrificado sua filha a seu filho? ‘És a nossa fé no futuro, toda a nossa vida.’ Oh, mamãe.” Sua irritação aumentava cada vez mais, de maneira que, se naquele momento tivesse encontrado Lújin, certamente o mataria. “Hum, é verdade”, continuava associando os pensamentos desencontrados que lhe voejavam na cabeça, “é bem verdade que, para conhecer-se um homem, é preciso, antes, estudá-lo muito tempo, aproximar-se dele. Mas esse Lújin, esse é fácil de decifrar-se. O que gosto mais é dessa expressão um homem de negócios e que parece bom. Imagino bem. Tomar as bagagens por sua conta, pagar as despesas de transporte da mala grande... Quanta bondade! E elas, a noiva e a sua mãe, combinam com um carregador e viajarão numa carroça coberta (eu mesmo já viajei assim). Que importa? Este trajeto, até à estação, é só de noventa verstas... Depois viajaremos da melhor maneira possível, em terceira... mais mil verstas. Sábia resolução, sem dúvida. Corta-se o casaco de acordo com o pano que se tem, mas, senhor Lújin, diga-me, o que pensa disso? Convenhamos, entretanto: trata-se de sua noiva. E não poderia saber, todavia, que a futura sogra tomara emprestado, para ser descontado da pensão, o dinheiro para as despesas de viagem? Sem dúvida, considerou esse como um negócio comercial, feito meio a meio, no qual, por conseguinte, cada sócio entra com a sua parte, como diz o provérbio: ‘o pão e o sal, meio por meio, nos pequenos lucros, cada um por si’. Mas o homem de negócios embrulhou-as um pouco: as despesas de uma mala são menores do que a viagem das duas, e pode ser ainda que não haja nada a pagar. “Será possível que não enxergam isso, ou fazem questão de fechar os olhos para tudo? E ainda se dizem contentes? Contentes, quando

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se pensa que isso, por enquanto, são as rosas, e que os espinhos virão depois, porque, afinal de contas, o que é mesmo grave, em tudo isso, não é a mesquinharia, a avareza que tal procedimento denota, mas o caráter geral da coisa. Dá uma ideia de como será o marido; é profético... E que tem mamãe, para estar jogando o dinheiro pelas janelas? Com que chegará a São Petersburgo? Com três rublos, ou ‘duas notinhas’, como diz a outra, a velha... Hum! E como espera viver em São Petersburgo? Porque, afinal, ela já percebe, por certos indícios, que lhe será impossível viver com Dúnia depois do casamento, mesmo nos primeiros tempos. “O simpático cavalheiro teria deixado escapar uma palavra que deve ter esclarecido mamãe, se bem que ela faça tudo para se defender disso. ‘Eu mesma’, escreve, ‘não aceitaria’. Com que, então, ela conta? Será que pensa poder viver com os cento e vinte rublos da pensão, desfalcados pela importância devida a Afanássii Ivánovitch? Lá, na nossa cidadezinha, ainda gasta os olhos cansados em fazer capinhas de lã e bordados de punhos. Mas tais capinhas não rendem mais do que vinte rublos anuais para serem acrescidos aos 120 da pensão, sei disso. “Ainda é, portanto, e apesar de tudo, contando com a generosidade de Lújin que apoiam toda a sua esperança. Supõe que ele próprio lhes ofereça seus préstimos, insistindo para que os aceitem. Ora veja... é o que sempre acontece às pessoas românticas: enfeitam uma criatura, até o último momento, com penas de pavão, e não querem ver nela senão o que é bom, muito embora sentindo tudo ao contrário. Jamais querem, antecipadamente, dar às coisas o seu devido nome. Essa simples ideia lhes parece insuportável. A verdade, repelem-na com todas as forças, até o momento em que aquela pessoa, engalanada por elas próprias, mete-lhes um murro na cara. Gostaria de saber se esse senhor Lújin já foi condecorado: juraria que a Cruz de Sant’Ana brilha na sua lapela e que a exibe nos jantares oferecidos pelos empreiteiros ou pelos grandes comerciantes. Ele a exibirá no casamento, sem dúvida alguma. Enfim, quero que ele vá para o diabo. “Quanto à mamãe, ainda se explica: ela é assim; mas Dúnia, o que estará ela pensando? Minha querida Dúnetchka, eu te conheço muito bem. Já tinhas quase vinte anos de idade quando te vi pela última vez e compreendi perfeitamente bem o teu caráter. Mamãe escreve: ‘Dúnetchka tem forças bastantes para suportar muitas coisas.’ Disso

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eu já sabia, dois anos e meio atrás, e há dois anos e meio que acho que ‘Dúnetchka é capaz de suportar muitas coisas.’ Se pôde suportar Svidrigáilov, com todas as suas complicações, é porque, certamente, tem muita resistência. E, agora, assim como mamãe, pensa que é bastante forte para suportar, do mesmo modo, esse Lújin, autor da teoria da superioridade das mulheres encontradas na miséria, e cujo marido deve ser o protetor, não nos esquecendo de que isso foi dito logo na sua primeira visita. Sim, digamos que tais palavras lhe escaparam, conquanto seja um homem sensato (é possível, também, que não tenham escapado, e sim sido ditas intencionalmente), porém Dúnia, ela, Dúnia, que é que ela pensa? Ela, ela compreendeu este homem e terá de compartilhar sua vida. Ela prefere viver a pão e água a sacrificar sua alma e sua independência moral: não o faria pelo conforto; não o faria em troca de todo o ouro do universo e, com muito mais razão, em troca de um senhor Lújin. Não, a Dúnia que conheci era completamente diversa e... com certeza, não mudou. “Na verdade, a vida era dura na casa dos Svidrigáilov. É doloroso passar a vida servindo de governanta a duzentos rublos; sei, entretanto, que minha irmã preferiria ser um escravo numa plantação ou trabalhar como um letão a serviço de um alemão do Báltico, a se aviltar, perdendo a dignidade, prendendo a sua vida à de um homem que ela não respeite e com o qual nada tenha em comum, e isso, para sempre, e ainda por motivos de interesse pessoal. Mesmo que o senhor Lújin fosse feito do mais puro brilhante, ela jamais consentiria em ser sua concubina legítima. Por que, agora, se resolveu ela? “Que mistério é esse? Onde está a chave do enigma? A coisa é clara, nunca se venderia por si própria pelo seu conforto, mesmo para livrar-se da morte. Mas o faz por um outro, vende-se por um ser querido: eis todo o mistério explicado. Por seu irmão, pela sua mãe, está pronta a se vender, inteira. Quando se chega a esse ponto, sacrifica-se até toda e qualquer resistência moral. Expõe-se à venda sua liberdade, seu repouso, sua consciência. Naufrague nossa vida, desde que as criaturas queridas sejam felizes. Mais ainda: aderimos aos métodos jesuíticos, construímos uma casuística sutil para explicar nossas atitudes. Chegamos, desse modo, a nos persuadir, por um momento, de que tudo está bem assim, de que o que fizemos era necessário, de que a qualidade do fim justifica os meios. Eis como somos, e é claro como o dia.

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“É evidente que se trata, aí, somente de Rodión Románovitch Raskólnikov, dele sozinho, e ei-lo no primeiro plano. Como fazer-se a sua felicidade, permitir-lhe continuar os estudos na universidade, fazer dele alguém, garantir seu futuro? Mais tarde será, talvez, um ricaço, um homem respeitado, considerado, talvez até acabe célebre no fim da vida. E a mãe? Mas trata-se de Ródia, o incomparável Ródia, o primogênito. Como não sacrificar a filha a um primogênito, ainda que aquela seja uma Dúnia? Oh queridos corações injustos! Qual! Aceitariam, sem dúvida, até o destino de Sónetchka, Sónetchka Marmeládova que existirá enquanto o mundo for mundo. Porém o sacrifício, o sacrifício, terão as duas medido toda a sua extensão? Terão compreendido? Não será pesado demais? Será útil, sensato? “Sabes, Dúnetchka, que a vida de Sónetchka não é pior do que será a tua com Lújin? ‘Não é por amor’, escreve mamãe. E que dirão se, além do amor, não existe também amizade e, pelo contrário, já há até repugnância, horror, desprezo, sim, que dirão? Então será preciso, como dizia o outro, ‘manter a decência’. Não há dúvida alguma. Compreendem bem, não? Mas compreenderão mesmo a significação dessa ‘decência’? Compreenderão que essa ‘decência’, para Lújin, em nada difere da de Sónetchka? Talvez seja mesmo pior, porque, apesar de tudo, em ti, Dúnetchka, há ainda certa esperança de conforto, de luxo, um cálculo, em suma, ao passo que, no caso de Sónetchka, tratava-se, pura e simplesmente, de morrer de fome. Custa caro, muito caro, Dúnetchka, essa decência. E que aconteceria, se isso é superior às tuas forças, vindo um dia a te arrependeres? Então, quantas dores, quantas maldições, quantas lágrimas secretamente vertidas, porque, afinal, não és uma Márfa Petróvna... Que será, então, de mamãe? Pensa, ela já vive inquieta e apreensiva. Que será dela quando vir claramente as coisas? E eu, que será de mim? Por que, afinal de contas, não pensaram em mim? Não quero teu sacrifício, Dúnetchka, eu não quero, mamãe. Esse casamento não se realizará enquanto eu viver, não se realizará, não concordo com ele.” De repente, caiu em si e conteve-se. “Está certo, não se realizará: mas que farás para evitá-lo? Opões-te a ele? Com que direito? Consagrarás a elas toda a tua vida, todo o teu futuro, quando ‘tiveres completado teus estudos e conseguido uma situação’. Conhecemos isso: são castelos na areia. Contudo, agora,

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neste momento, que farás? Porque é imediatamente que é preciso agir, compreendes? Ora, tu que fazes? Explora-as: esse dinheiro que te mandam foi obtido com um empréstimo, feito sob a garantia de uma pensão de cem rublos, como adiantamento de ordenados pedido a tipos como Svidrigáilov. Como poderás evitar-lhes os Afanássii Ivánovitch Vakhrúchin e os Svidrigáilov, futuro milionário de comédia, Zeus caricato que te arrogas o direito de dispor do destino alheio? Dentro de dez anos, tua mãe terá perdido a vista de tanto fazer capinhas e de tanto chorar. E de tantas privações, perderá a saúde. E tua irmã? Vamos, pensa um pouco no que ela virá a ser daqui a uns dez anos ou durante estes dez anos. Compreendeste?” Era assim que se torturava, propondo a si mesmo todas essas perguntas, sentindo mesmo uma espécie de prazer com isso. Aliás, não eram inéditas para ele e não tinham nada que o surpreendesse. Eram antigas questões já familiares a seu espírito e que o fizeram sofrer de tal modo, que seu coração estava todo ferido, marcado por elas. Havia muito tempo que nascera essa agonia que o atormentava: crescera no seu coração, acumulara-se, desenvolvia e, nestes últimos tempos, parecia que se difundira sob a forma de uma espantosa, fantástica e selvagem interrogação que o torturava sem cessar, exigindo-lhe, imperiosamente, uma resposta. No momento, a carta de sua mãe vinha fulminá-lo como um raio. Era patente que o tempo das lamentações, dos sofrimentos estéreis já havia passado. Agora não era mais ocasião de raciocinar sobre a sua impotência, mas devia agir imediatamente, o mais depressa possível. Era preciso tomar uma resolução, custasse o que custasse e fosse qual fosse, ou, então... “renunciar à vida”, exclamou, como que delirando, “aceitar o destino com resignação, aceitá-lo tal qual, de uma vez para sempre, e eliminar todas suas aspirações, abdicando, definitivamente, de todo o direito de viver, agir, amar.” “Entende, entende bem, meu caro senhor, o que significa não ter mais aonde ir?” Eram as palavras de Marmeládov, pronunciadas na véspera, de que Raskólnikov se lembrava, rapidamente, “porque todo homem deve ter um lugar aonde ir...”. De repente, estremeceu. Uma ideia que tivera no dia anterior voltava a aparecer em seu espírito, porém não era a volta desse pensamento que o arrepiava. Sabia que tal ideia voltaria, tinha esse pressentimento,

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mas tal pensamento não era, aliás, exatamente o mesmo da véspera. A diferença era esta: há um mês e, ainda ontem mesmo, não era mais do que uma miragem, enquanto agora... agora, apresentava-se-lhe sob uma forma nova, ameaçadora e totalmente misteriosa. Ele mesmo tinha consciência disso... Sentia uma espécie de choque na cabeça: uma nuvem negra passou-lhe pelos olhos. Olhou rapidamente ao redor, como se procurasse alguma coisa. Tinha necessidade de sentar-se: os olhos vagavam, procurando um banco. Via-se, agora, na Avenida K., e um banco se achava a cem passos ainda. Apertou o passo tanto quanto pôde, mas, no caminho, sobreveio-lhe um incidente que, durante alguns minutos, absorveu toda a sua atenção. Enquanto espreitava o banco, a distância, notou, a uns vinte passos na sua frente, uma mulher a quem começou por não dar muita importância, como, aliás, a tudo o mais que encontrara no caminho. Muitas vezes entrava em casa sem se lembrar por que ruas tinha passado. Habituara-se mesmo a caminhar assim, sem ver coisa alguma. Mas essa mulher tinha qualquer coisa de esquisito, que à primeira vista chocava e, pouco a pouco, acabou por atrair a atenção de Raskólnikov. A princípio, sem querer, depois, no entanto, a atração como que se tornava cada vez mais forte. Uma vontade súbita de saber o que tornava essa mulher tão esquisita assaltou-o. Para começar, devia ser uma garota: pela aparência geral, uma adolescente. Andava com a cabeça descoberta, sem guarda-sol e sem luvas, balançando os braços de um jeito cômico, quando caminhava. Vestia uma roupa de seda leve, curiosamente apertada no corpo, desabotoada, rasgada na cintura. Um trapo de forro arrastava-se, ondulante, atrás dela. No pescoço nu, um lencinho pendia de lado. Tinha um passo incerto e cambaleava. Tal encontro acabou por chamar-lhe toda a atenção. Alcançou a rapariga na altura do banco, sobre o qual ela se jogou, levantou a cabeça para trás e fechou os olhos, como se estivesse morta de cansaço. Adivinhou, examinando-a, que estava completamente bêbada. Tal coisa pareceu-lhe de tal modo estranha que, a princípio, perguntou a si próprio se não se enganava. Estava ali, diante dele, uma figura pequenina, quase infantil, que não acusava mais do que dezesseis ou, talvez mesmo, uns quinze anos, loura, bonita, mas cheirando mal e um pouco inchada. A moça

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parecia inteiramente inconsciente: cruzara as pernas numa atitude bem indecorosa e, pela aparência, nem se dando conta de que estava na rua. Raskólnikov não se sentou. Mas, não querendo ir-se embora, ficava diante dela, indeciso. Habitualmente pouco frequentada, a avenida naquela hora de sol forte (mais ou menos uma hora da tarde) estava inteiramente deserta. Entretanto, a alguns passos dali, no meio-fio da calçada e um pouco de lado, achava-se um homem que parecia, por um motivo qualquer, interessadíssimo em, do mesmo modo, aproximar-se da moça. Também deveria tê-la notado e seguido de longe, mas Raskólnikov o atrapalhou. Olhava-o furiosamente, de soslaio, é verdade, de modo que o outro não o percebesse, de modo algum, esperando, impacientemente, o momento em que esse vagabundo lhe cedesse a vez. A coisa era clara. O cavalheiro era um homem de uns trinta anos, forte e gordo, vermelho; os finos lábios rosados, guarnecidos por um lindo bigode bem cuidado. Raskólnikov ficou colérico, com uma vontade súbita de insultar esse gordo janota. Deixou a moça e aproximou-se dele. – Vá dizendo, Svidrigáilov, que é que procura aqui – gritou, armando um soco, com um riso diabólico. – Mas o que é que quer dizer com isso? – replicou o outro com um tom arrogante, franzindo a testa. Seu rosto tomou uma expressão de espanto insolente. – Ponha-se ao fresco, é o que quero dizer. – Como ousa a tanto, canalha? – e desceu-lhe o rebenque que tinha nas mãos. Raskólnikov avançou, os punhos fechados, sem pensar mesmo que o outro dava dois dele. Porém, neste momento, alguém o segurou, por detrás, com força: um policial pôs-se entre os adversários. – Vamos parar, cavalheiros, não se briga nos logradouros públicos. Que quer? Como se chama? – perguntou, severamente, a Raskólnikov, em cuja roupa, feita em trapos, reparara. Este último examinou-o atentamente. O guarda tinha uma bela aparência de soldado, os bigodes grisalhos e grandes suíças. Sua expressão parecia cheia de inteligência. – É justamente do senhor que preciso – bradou, tomando-o pelo braço. – Sou um ex-estudante, Raskólnikov... É para o senhor também que o digo – dirigia-se ao outro. – Quanto ao senhor, venha, quero lhe mostrar uma coisa...

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E, continuando a segurar o guarda pelo braço, conduziu-o para o banco. – Venha, olhe, está completamente bêbada. Agora mesmo estava passeando na avenida. Só Deus sabe o que ela é, mas não tem o ar de uma rapariga, quero dizer, de uma profissional. Para mim, acho que a fizeram beber para aproveitar-se, pela primeira vez... compreende? E, depois, deixaram-na assim, neste estado. Veja como seu vestido está rasgado e como ficou. Não se vestiu: vestiram-na. São mãos desajeitadas, mãos de homem que arrumaram isso, vê-se logo. E, agora, olhe para este lado. Esse ilustre cavalheiro com o qual eu ia brigando, neste instante, é a primeira vez que o vejo. Mas também notou-a, quando passava, agora mesmo, na sua frente. Viu que estava bêbada, inconsciente, e assim mesmo queria, a todo custo, aproximar-se dela, levá-la nesse estado, Deus sabe para onde... Estou certo de que não me engano: creia que não erro. Vi, com estes olhos, como a espiava, mas atrapalhei suas intenções. Agora, só espera que eu me vá. Olhe: ficou um pouco de parte e parece enrolar um cigarro... Como livrá-la dele e levá-la para casa? Pense nisso. O policial compreendeu imediatamente a situação e pôs-se a refletir. As intenções do gorducho não eram difíceis de entender; restava a moça. Inclinou-se para examiná-la de mais perto e seu rosto exprimiu sincera compaixão. – Que pena – exclamou, balançando a cabeça –, é uma criança. Pregaram-lhe uma peça, é isso mesmo. Escute, senhorita, onde mora? A moça abriu as pálpebras pesadamente, olhou-os com um ar imbecil e fez um gesto como que para acabar com tudo. – Espere – disse Raskólnikov – aqui está (mexeu nos bolsos e tirou vinte copeques) aqui está este dinheiro, arranje uma condução e leve-a para casa. A única coisa que temos a fazer é descobrir onde mora. – Senhorita, diga, senhorita – recomeçou o policial, pegando o dinheiro. – Vou arranjar uma condução e eu mesmo a acompanharei. Aonde devo levá-la? Onde mora? – Vão-se embora, enjoados – fez a moça, repetindo o mesmo gesto. – Como isso vai mal... Que vergonha, senhorita! – meneou de novo a cabeça, com um ar de censura, de piedade e de indignação. – Agora é que está difícil – disse para Raskólnikov, investigando-o, de relance, pela segunda vez. Deveria parecer-lhe estranho que um andrajoso, vestido com aqueles molambos, pudesse ter dinheiro.

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– Encontrou-a longe daqui? – perguntou. – Repito: caminhava na minha frente, aqui na avenida, cambaleando. Assim que chegou ao banco, derreou-se. – Ah, meu Deus, quanta vergonheira existe, agora, neste mundo. Tão jovem e já bêbada. Enganaram-na, na certa. Olhe, seu vestidinho está todo rasgado... Quantos vícios não se encontram hoje em dia. Talvez seja até uma moça nobre, arruinada, o que, aliás, se vê muito, agora. Tomá-la-iam por uma moça de boa família – e, novamente, inclinou-se para a moça. Talvez ele próprio fosse pai de meninas que poderiam passar por senhoritas de boa família, habituadas às boas maneiras. – O essencial – dizia Raskólnikov, todo agitado – o essencial é não deixá-la cair nas mãos daquele sujeito. Ainda é capaz de aproveitar dela: é claro como água. Está vendo o velhaco? Nem se mexe. Falava em voz alta e apontava o homem com o dedo. O outro percebeu e parecia disposto a zangar-se outra vez, mas conteve-se, contentando-se em lançar-lhe um olhar de desprezo. Depois, afastou-se, lentamente, mais uns dez passos, parando de novo. – Não a deixar cair nas mãos dele? Isso é possível, sim – respondeu o policial, com ar pensativo. – Bem, se ela nos desse, ao menos, o seu endereço, sem o que... Senhorita, diga, então, senhorita! – e abaixou-se, ainda, para a moça. De repente, ela abriu desmesuradamente os olhos, fitou os dois homens atentamente, como se uma luz súbita lhe iluminasse o espírito, levantou-se e se pôs a caminhar em sentido contrário ao em que viera. “Olha os insolentes, querendo grudar na gente”, murmurou, agitando de novo os braços, como que afastando alguma coisa. Andava depressa, o passo rápido, mas sempre incerto. O janota pôs-se a segui-la, mas passara-se à aleia paralela, sem a perder de vista. – Não se inquiete, não a terá de modo nenhum – afirmou resolutamente o guarda, seguindo-os. – Ah, quantos vícios se veem agora – repetia, em voz alta, com um suspiro. Neste momento, Raskólnikov sentiu-se picado por um sentimento obscuro. Uma reviravolta completa produziu-se nele. – Escute, diga-me – gritou para o policial. O outro voltou-se. – É melhor deixar, que é que tem com isso? Deixe divertir-se (apontara para o desconhecido); que lhe importa?

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O guarda não compreendia nada e o fitava com os olhos esbugalhados. Raskólnikov desandou a rir. – Ah, ah! – respondeu o policial, com um gesto aborrecido. E continuou a seguir o homem e a moça. Devia ter tomado Raskólnikov por um doido ou coisa pior. “Importam meus vinte copeques”, disse Raskólnikov colérico, assim que ficou sozinho. “Vamos, que seja, ele se deixará comprar também pelo outro, entregando-lhe a moça. É assim que a coisa acabará... Que é que eu tinha que ver com a história, para querer vir em seu socorro? Ah, muito bem... Socorrer: é a mim que o compete? Que se comam, vivos, que me importa a mim? E como ousei dar-lhe estes vinte copeques? Por acaso me pertencem?” Apesar destas palavras estranhas, seu coração se condoera. Sentou-se no banco abandonado. Os pensamentos vinham-lhe aos borbotões, incoerentes. Era-lhe, aliás, difícil pensar em qualquer coisa, neste momento. Desejaria esquecer-se de tudo, dormir, em seguida acordar e começar uma vida nova. “Pobre menina”, dizia, olhando para a ponta do banco onde ela se sentara. “Cairá em si, chorará, depois a mãe ficará sabendo. Primeiro, baterá nela, depois a espancará cruelmente, vergonhosamente, para, em seguida, expulsá-la, talvez. E ainda mesmo que não o fizesse nunca, uma Dária Frántzevna qualquer acabará por ter notícia da coisa e adeus minha pobre guria, rolando daqui para lá... Depois, será o hospital (isso acontece sempre àquelas que, morando com as mães honestas, são obrigadas a fazer as coisas com jeito) e depois... depois... o hospital ainda... o vinho... os cabarés, ainda o hospital... Em dois ou três anos nessa vida, estará doente, com dezoito ou dezenove anos, sim... Quantas tenho visto como essa, e como acabaram? Pois é isso mesmo, elas todas começam assim... Ora, afinal, que me importa? Dizem que é necessário... Certa porcentagem deve acabar assim todos os anos... e desaparecer, Deus sabe onde... com o diabo, sem dúvida, para garantir o sossego das outras. Uma porcentagem. Existem palavras bonitas, jeitosas, técnicas... Disse, no caso, uma porcentagem. Não há motivo para se alarmar... Eis aí: se fosse outra palavra, seria outra coisa. Não se preocupariam com ela, talvez, então. E que seria se Dúnetchka fosse, um dia, incluída nessa porcentagem? Senão neste, pelo menos no ano que vem?

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“Porém aonde vou eu neste andar?”, pensou depressa. “Que coisa esquisita. Quando saí, tinha destino. Assim que acabei de ler a carta, saí. Ia à casa de Razumíkhin, em Vassílievski Óstrov. Sim: agora já me lembro. Mas por quê? E por que o pensamento de ir à casa de Razumíkhin me veio agora? É extraordinário!” Não compreendia a si mesmo. Razumíkhin era um de seus antigos amigos da universidade. Coisa a notar-se: Raskólnikov, que havia sido estudante, não se ligara nunca a seus colegas. Vivia isolado, não frequentava a casa de nenhum dos companheiros e não gostava de receber visitas. Aliás, não tardaram muito a se afastar dele. Não participava das reuniões, das discussões nem das brincadeiras dos colegas. Estudara com um ardor implacável, que lhe valera a estima geral, mas ninguém era seu amigo. Era paupérrimo, orgulhoso, distante e fechado como se escondesse um segredo. Certos colegas achavam que parecia considerá-los crianças, que os teria superado pela cultura, pelos conhecimentos, julgando-lhes as ideias e as preocupações inferiores às suas. Entretanto, ligara-se a Razumíkhin. Pelo menos, com este, mostrava-se mais comunicativo do que com os demais, mais franco. Aliás, era impossível portar-se de outro modo com Razumíkhin, rapaz extremamente jovial, expressivo, e de uma bondade que tocava as raias da ingenuidade. Tal ingenuidade, todavia, não excluía sentimentos profundos e grande dignidade. Seus melhores amigos o sabiam, todos gostavam dele. Estava longe de ser um bobo, se bem que, às vezes, parecesse um tolo. Tinha uma cabeça expressiva: alto, magro, sempre barbado, cabelos pretos. Fazia das suas em certos momentos e passava por um hércules. Certa noite em que andava pelas ruas com colegas, derrubara, com um murro, um guarda-noturno que media nada mais nada menos que um metro e noventa de altura. Tanto podia beber em excesso como abster-se completamente. Se às vezes acontecia cometer imperdoáveis loucuras, em outras mostrava-se de uma sensatez invejável. Razumíkhin era, ainda, notável por outra particularidade: nenhum insucesso o perturbava e nenhum revés o abatia. Era capaz de morar num telhado, curtir uma fome atroz e aguentar o frio mais terrível. Extremamente pobre, só lhe restava contar consigo mesmo, mas sempre encontrava um meio de ganhar a vida. Conhecia um número infinito de lugares onde se poderia ganhar dinheiro, pelo trabalho, naturalmente.

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Sabia-se que passara um inverno inteiro sem uma lareira em casa: garantia que isso era agradável porque, com o frio, dorme-se melhor. Por essa época, também teve de interromper os estudos universitários, por falta de recursos, mas contava recomeçá-los o mais cedo possível e punha todos os seus esforços na obtenção de uma melhoria econômica. Havia quatro meses que Raskólnikov não ia à sua casa. Razumíkhin não sabia mesmo o seu endereço. Avistaram-se na rua, um dia, uns dois meses antes, mas Raskólnikov afastara-se depressa, chegando mesmo a mudar de calçada. Razumíkhin, muito embora tivesse, perfeitamente bem, reconhecido o amigo, fingira não o ter visto, para não o envergonhar.

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“De fato, não há muito me propunha pedir a Razumíkhin que me arranjasse trabalho, aulas ou outra coisa...”, pensava Raskólnikov. “Agora, que é que poderá fazer por mim? Digamos que me consiga aulas e, mesmo, que divida comigo seu último copeque (se é que tem um...) de maneira que eu possa comprar um par de sapatos, consertar minha roupa, a fim de dar as lições. Bem, e depois? Que farei com os copeques que ganhar? Será disso que preciso agora? Acho-me perfeitamente ridículo indo à casa de Razumíkhin.” O fato de saber por que motivo ia, no momento, à casa de Razumíkhin preocupava-o mais do que a si mesmo confessava. Emprestava um sentido sinistro a tal coisa, aparentemente despropositada. “Mas, o quê? Será possível que pensei em acomodar todo o negócio graças apenas a Razumíkhin? Que as soluções de todas essas graves questões possam ser resolvidas por ele?”, perguntava-se, surpreendido. Raciocinava, passava a mão na cabeça e, coisa estranha: de repente, depois de se ter torturado por muito tempo, uma ideia extraordinária lhe ocorreu. “Pois bem, irei à casa de Razumíkhin”, disse enfim, num tom mais tranquilo, como se tivesse tomado uma decisão definitiva. “Irei à casa de Razumíkhin, é certo... porém, não agora... Irei à casa dele, mas no dia seguinte, depois da coisa, quando a coisa tiver sido concluída e quando tudo tiver mudado...” De repente, caiu em si. “Depois da coisa”, exclamou sobressaltando-se; “mas esta coisa acontecerá, acontecerá verdadeiramente?” Deixou o banco e afastou-se, andando depressa. Quase corria, com a intenção de voltar, de ir para casa; todavia, a esta ideia, um mal-estar inundou-o. Pois foi em casa, lá, num canto daquele horrível cubículo, que era seu quarto, que havia amadurecido a coisa, fazia mais de um mês. Tocou para a frente, sem destino. Sua perturbação nervosa havia tomado um caráter febril. Sentia calafrios. Sentia frio, apesar do calor abafante. Cedendo a uma espécie de

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necessidade interior quase inconsciente, esforçava-se, com dificuldade, para prestar atenção no que fosse encontrando pelo caminho, para distrair-se. Porém todos os esforços eram vãos. A cada momento, caía nos seus devaneios. De vez em quando estremecia, levantava a cabeça, olhava em torno e não podia lembrar-se mais do que estava pensando. Nem chegava a reconhecer as ruas que palmilhava. Atravessou, assim, todo o Vassílievski Óstrov, passou diante do Neva, atravessou a ponte e chegou às ilhas. A verdura e a amenidade da paisagem alegraram, a princípio, seus olhos cansados, acostumados à poeira das ruas, à cal, às casas imensas, acachapadas. Aqui, o ar não era abafado nem fétido. Não se viam tascas. Mas, imediatamente, essas sensações novas perderam seu encanto. Aquele mal-estar mórbido voltava. Parava, por um momento, diante de uma casa de campo faceiramente escondida entre massas verdes. Olhava pelas grades e via, um pouco distante, mulheres elegantes nas varandas e nos balcões. Crianças corriam pelo jardim. Interessava-se, particularmente, pelas flores: estas é que lhe chamavam mais atenção. De quando em quando, via passar cavaleiros, amazonas e belas carruagens: seguia-as, com curiosidade, esquecendo-as, entretanto, antes que desaparecessem. De uma feita, parou e contou seu dinheiro. Restavam-lhe trinta copeques. Vinte ao policial, três a Nastássia, pela carta; “dei, portanto, a Marmeládov, ontem, quarenta ou cinquenta”. Deveria ter uma razão para fazer tais cálculos, porém, esqueceu-se disso também, quando tirava o dinheiro do bolso, não se lembrando senão um pouco depois, quando passava pela porta de um armazém, ou antes, uma taberna: percebeu, então, que estava com fome. Entrou, tomou um copo de vodca e mordeu alguns bolinhos de carne, que acabou de comer andando. Havia muito que não bebia vodca. O pequenino copo que acabava de tomar subiu-lhe à cabeça de uma maneira fulminante. Suas pernas bambearam: sentiu uma irresistível vontade de dormir. Queria voltar para casa, porém, chegando à ilha de Petróvski, achou melhor parar um pouco, completamente esgotado. Deixando o caminho principal, entrou numa picada, caiu na relva e dormiu logo. Os sonhos de um homem doente tomam, sempre, um relevo extraordinário, a ponto de a própria realidade confundir-se com eles. O quadro que, assim, se desenrola é por vezes monstruoso, mas o fundo, no qual se desenvolve, e todos os meandros da representação são, por

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sua vez, de tal modo verossímeis, cheios de minúcias tão imprevistas, tão engenhosas e tão adequadas, que o próprio indivíduo que os sonha seria, certamente, incapaz de inventá-los acordado, fosse ele um artista da estatura de Púchkin ou Turguéniev.9 Estes sonhos – referimo-nos aos sonhos mórbidos – não são facilmente esquecíveis; produzem uma viva impressão sobre o organismo cansado, presa de excitação nervosa. Raskólnikov teve um sonho horrível. Reviu-se menino, na cidadezinha onde morava, então, com a família. Está com sete anos e passeia, numa tarde festiva, com seu pai, nos arredores da cidade, em pleno campo. O dia está nublado, o ar pesado, os lugares exatamente iguais à lembrança que guardou deles. E chega, mesmo em sonho, a recordar-se de minúcias já apagadas da memória. A cidadezinha aparece inteira, descoberta. Nem uma árvore, nem mesmo um salgueiro branco nas vizinhanças. Ao longe, somente, na linha em que céu e terra parecem se encontrar, um pequeno bosque é a única mancha escura da paisagem. A alguns passos do último jardim da cidade, ergue-se uma taberna, uma grande taberna, que impressionava sempre desagradavelmente o menino, amedrontando-o mesmo, quando por ali passava com seu pai. Estava sempre cheia de uma multidão de pessoas ruidosas, que discutiam, insultavam-se e cantavam horrorosamente, no meio de pancadaria, com vozes desafinadas. Em volta da tasca os bêbados ficavam rondando, aspectos amedrontadores. Quando o garoto os encontrava, agarrava-se intensamente a seu pai, tremendo todo. Perto da taberna, atravessa-se um caminho imundo, cuja poeira é sempre negra. Um caminho sinuoso: mais ou menos a trezentos passos da tasca quebra-se, à direita, e contorna o cemitério. No meio do cemitério fica uma igreja de pedra, de cúpula verde. O menino ia ali duas vezes por ano, com seu pai e sua mãe, ouvir a missa que mandava celebrar pela alma de sua avó, morta havia muito tempo e que ele não conhecera. Nessas ocasiões, traziam sempre, num prato branco, embrulhado num guardanapo, o arroz-doce dos mortos,10 no qual se faz sempre uma cruz de passas. Gostava dessa igreja com suas velhas imagens sem molduras, de seu velho padre de cabeça 9. Púchkin (Aleksándr), poeta lírico russo (1799-1837). Turguémev (Ivan), romancista russo (1818-1883) (N. T.). 10. Costume russo, reminiscência da prática pagã antiga (N. T).

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trêmula. Perto do túmulo de sua avó achava-se outro pequenino, que era de seu irmão mais moço, morto aos seis meses, que também não conhecera e, pois, do qual não poderia lembrar-se. Disseram-lhe, simplesmente, que tivera um irmãozinho e, toda vez que vinha ao cemitério, persignava-se, piedosamente, diante do túmulo, depois se abaixava, respeitosamente, beijando-o. O sonho era assim: segue com seu pai pelo caminho que leva ao cemitério. Passam defronte da taberna. Está agarrado na mão de seu pai e lança, lá para dentro, um olhar medroso. Ora, uma circunstância especial lhe chama atenção: parece que hoje, ali, é dia de festa. Vê-se uma multidão de burgueses endomingados, camponesas com os maridos e um punhado de indivíduos suspeitos. Estão todos bêbados e cantam. Na porta, está parado um carroção esquisitíssimo, uma dessas carroças gigantes, geralmente atreladas a grandes cavalos de carga e que servem para transportar mercadorias e barris de vinho. Raskólnikov sempre gostou de olhar esses imensos animais de crinas compridas, de patas largas, que andam sempre num passo igual, tranquilo, e puxam, folgadamente, verdadeiras montanhas (dir-se-ia até que andam melhor atrelados do que soltos). Porém, agora, coisa estranha, está atrelada no carroção uma pequena égua de aparência franzina, de uma magreza dolorosa, um desses pungas de camponeses, que ele se acostumara a ver, penalizado, puxar, com esforço, grandes carroças de madeira ou de feno, e que os mujiques quase matam de pancada quando a carroça se detém num trilho ou no barro, chegando a bater-lhes em pleno focinho ou nos olhos, quando os pobres animais se esgotam, inutilmente, de tanto arrastar o veículo superlotado. Esse espetáculo sempre lhe fazia lágrimas nos olhos, quando era criança, e sua mamãe, então, se apressava em afastá-lo da janela. De repente, um tumulto enorme se estabelece na tasca. Misturados aos gritos, cantigas, sai um grupo de mujiques esquentados de vinho, de camisas azuis e vermelhas, com a balalaica11 na mão, os capotes jogados displicentemente nos ombros. – Subam, subam todos – grita um homem ainda novo, de pescoço grosso, cara cheia e avermelhada. – Venham todos, subam. – Estas palavras provocam exclamações e risos. 11. Instrumento de três cordas, de braço longo e corpo triangular; uma espécie de bandolim ou de banjo dos russos (N. T.).

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– Esse punga aguenta o caminho? – É preciso que você tenha ficado maluco, Mikólka,12 para atrelar um pobre animal desses a essa carroça. – Vejam, amigos, tem uns vinte anos essa pobre égua. – Subam, eu carrego todo mundo – pôs-se Mikólka a gritar, outra vez, pulando primeiro na carroça. Tomou as rédeas e ficou todo empertigado na boleia. – O cavalo baio foi-se embora há pouco com Mateus – bradou de onde estava – e esta égua é um grande desgosto para mim. Tenho vontade de matá-la, palavra de honra; ela não vale nem o que come. Subam, estou lhes falando. Eu a farei galopar direitinho. Garanto-lhes que a farei galopar! Pegou no chicote e preparou-se, com deleite, para açoitá-la. – Pois então subam – gritaram, na multidão – já que ele garante fazê-la galopar. – Há pelo menos dez anos que ela não corre. – Mas, dessa vez, irá mesmo. – Não a poupem, amigos, tome cada qual um chicote: mãos à obra. Isso mesmo. Batam nela. Sobem todos na carreta de Mikólka, rindo e gracejando. Já há seis lá dentro e ainda sobra lugar. Levam uma gorducha camponesa, de cara rubicunda, vestida com uma sarafana,13 a touca enfeitada de miçangas. Mastiga avelãs, sorrindo imbecilmente. O pessoal que cerca a carroça ri também e, na verdade, como deixar de rir à simples ideia de que uma pobre punga possa puxar toda essa gente? Dois rapazes, que também se acham na carroça, por sua vez, pegam em rebenques para ajudar Mikólka. Gritam “anda!” A égua faz a maior força possível: mas apenas consegue marchar. Escorrega, arqueja, agacha-se sob os açoites que lhe chovem como granizos. Redobram os risos do pessoal. Mikólka se enfurece e, num assomo, bate mais ainda na pobre égua, como se esperasse, com isso, fazê-la galopar. – Meus irmãos, deixem-me subir também – disse um moço, entusiasmado com a brincadeira.

12. Diminutivo de Nikolái (N. T.) 13. Sobressaia bordada usada pelas camponesas russas (N. T.).

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– Suba, subam todos – brada Mikólka. – Ela nos levará. Eu a farei caminhar à força de pancada. E de açoites, de açoites. – Na sua gana, não sabe como lhe bater para machucá-la mais ainda. – Papai, paizinho – grita Ródia – paizinho, veja o que estão fazendo. Batem no pobre bichinho. – Vamos, venha – diz o pai. – Estão bêbados e divertem-se, esses imbecis. Vamos embora, não olhe. Quer levá-lo, mas o menino desprende-se de sua mão e corre para o animal. O pobre está quase sem forças. Para, arquejando, depois põe-se de novo a fazer força. Falta pouco para cair morto. – Batam nela! Que rebente! – uiva Mikólka. – Só falta fazer isso. Esperem que vou dar um jeito. – Na certa, você não é cristão, capeta! – grita um velho dentro do povo. – Já viram uma égua como essa puxar uma carga semelhante? – adverte um outro. – Vais matá-la! – berra um terceiro. – Não me amole, ela é minha, faço com ela o que quiser. Venham, subam todos. Faço absoluta questão que ela corra... De repente, uma gargalhada geral sobe do pessoal, tapando a voz de Mikólka. A égua, crivada de pancadas que se redobram, perdeu a paciência e pôs-se a dar coices, apesar de esgotada. O velho não pôde conter-se e aderiu à hilaridade geral. Havia do que rir, com efeito: um animal que não pode com as patas e dá coices... Dois rapazes se afastam do grupo, armam-se de rebenques e correm para espancar a besta, cada qual de um lado. – Batam no focinho, nos olhos, nos olhos! – vocifera Mikólka. – Meus irmãos, uma cantiga – grita alguém dentro da carroça. A turma aplaude a ideia. – Uma cantiga! – A cantiga grosseira se eleva, o tamborim ressoa, assobiam a introdução. A camponesa continua mastigando suas avelãs, com o mesmo sorriso idiota. Ródia se aproxima da égua, caminha para a sua frente. Vê-a toda ferida nos olhos, sim, nos olhos. Chora. Seu coração fica pequeno. As lágrimas correm-lhe. A chicotada de um dos açoitadores passa-lhe pelo rosto. Nem a percebe, torce as mãos, grita, precipita-se para o velho de barbas brancas que balança a cabeça, com jeito desaprovador. Uma mulher toma-o pela mão e quer levá-lo. Escapa-lhe das mãos e corre para o animal que, esgotado, tenta ainda dar coices.

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– Que o diabo te carregue, desgraçada! – vocifera Mikólka, furioso. Joga fora o chicote, agacha-se, tira do fundo da carriola um grande e pesado timão e, segurando-o com as duas mãos, por uma extremidade, levanta-o, fazendo um bruto esforço, sobre a égua. – Vai arrasá-la! – gritam perto. – Arrasar? Matar... – Ela é minha! – urra Mikólka. E bate com vontade. Ouve-se um baque seco. – Bate nela, bate nela, por que para? – berram no meio do povo. Mikólka torna a levantar o timão: um segundo golpe é vibrado sobre a espinha da pobre punga, que se encolhe. Suas ancas parecem se acachapar com a violência da pancada. Depois, pula e põe-se a puxar com o resto da força que ainda lhe resta, para desvencilhar-se, mas não encontra, em volta, de todos os lados, senão os seis rebenques de seus algozes. O timão levanta-se de novo, vai pela terceira vez, pela quarta, e assim sucessivamente. Mikólka está furioso por não poder liquidar o animal de um só golpe. – Ela é dura – gritam em volta. – Vai cair, meus amigos, vocês vão ver, a sua hora chegou – observa um entendido, no meio do povo. – Pegue um machado, é preciso acabar de uma vez – sugeriu alguém. – Que é que estão fazendo aí? Afastem-se – ordena Mikólka. Joga fora o timão, agacha-se, mexe outra vez dentro da carroça e, dessa feita, tira dali uma tranca de ferro. – Atenção! – grita. E vibra, com toda a força possível, um golpe tremendo sobre o pobre animal. A égua cambaleia, abaixa-se, tenta puxar, num supremo esforço, mas a barra de ferro cai-lhe, outra vez, sobre o dorso, pesadamente. Cai no chão como se lhe houvessem cortado, a um só tempo, as quatro patas. – Vamos liquidá-la – diz Mikólka. Pula, tomado de uma espécie de loucura, fora da carreta. Alguns rapazes, tão bêbados e enrubescidos como ele, pegam o que lhes cai às mãos: relhos, rebenques, o timão, e correm para junto do animal agonizante. Mikólka, de pé, perto dela, continua a bater-lhe com a barra, sem parar. A pobre punga espicha a cabeça, dá um longo suspiro e tomba. – Matou-a! – bradam no meio do povo. – Por que não queria galopar?

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– Ela é minha! – exclamou Mikólka, com a barra na mão. Está com os olhos injetados de sangue e parece com pena de não ter mais em quem bater. – Pois é isso: você é um ateu – gritam alguns na multidão. Mas o pobre garoto está fora de si. Abre caminho entre o pessoal com um grande grito e aproxima-se da égua. Abraça seu focinho imóvel e ensanguentado, beija-o. Beija-lhe os olhos, a boca, depois, dá um pulo rápido e se precipita, com os punhos cerrados, contra Mikólka. No mesmo momento, seu pai, que há tempo o procurava, descobrindo-o, tira-o do meio daquela gente. – Vamos, vamos – diz –, vamos voltar para casa. – Paizinho, por que mataram... o pobre cavalinho? – soluça. Mas a sua respiração está embargada e as palavras saem-lhe da garganta contraída, em gritos roucos. – Não vê que estão bêbados? Divertem-se. Não nos interessa, vamos – insiste o pai. Rodión abraça-o, porém sente o peito oprimido como se o tivesse num torniquete. Faz força para respirar, gritar... Acorda. Abriu os olhos, o corpo moído, os cabelos encharcados de suor, arquejante: levantou-se alarmadíssimo. “Graças a Deus que não foi mais do que um sonho”, disse, de si para si, sentando-se sob uma árvore. Respirou profundamente. “Mas que é isso? Uma febre doentia que começa? Esse sonho horrível me faz desconfiar.” Sentia o corpo inteiro doído, o espírito conturbado, contrafeito. Apoiando os cotovelos nos joelhos, deixou a cabeça cair entre as mãos. “Senhor, poderá ser, mas será que posso pegar, de verdade, num machado para esmigalhar-lhe o crânio? Será possível que eu possa lavar-me em sangue quente, viscoso, que eu force uma fechadura, roube, trema e me esconda todo ensanguentado... com o machado? Mas, meu Deus, isso será possível?” Tremia como uma folha, falando assim. “Por que pensar nisso?”, continua, num tom de profunda surpresa. “Bem sabia que não seria capaz de tal coisa. Por que, pois, atormentar-me assim? Porque, afinal, ainda ontem, quando fui fazer aquele ensaio compreendi, perfeitamente, que isso é superior às minhas forças... Por que recomeçar agora? Experimentar-me ainda? Ontem, descendo a

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escadaria, eu me dizia que era covarde, terrível, nojento, odioso, odioso. O simples pensamento da coisa me dava náuseas e me terrificava. Não, não terei coragem de fazer isso. Não o teria ainda que meus cálculos fossem perfeitamente exatos, ainda que todo o meu plano, forjado durante este mês, fosse claro como água e certo como a aritmética. Meu Deus, eu não terei coragem nunca... o que tenho, pois, para continuar ainda...” Levantou-se, lançou um olhar em torno, admirado de estar ali e encaminhou-se para a ponte. Estava pálido, os olhos brilhantes. Os membros doíam-lhe, mas começava a respirar com mais facilidade. Sentia que já se despojara desse fardo horrível que, havia tanto tempo, suportara. O espírito parecia-lhe leve e tranquilo. “Meu Deus, diga o que devo fazer e renunciarei a este sonho... maldito.” Atravessando a ponte, olhou o Neva avermelhado pelo crepúsculo de um sol magnífico. Apesar da extrema fraqueza, não estava cansado. Dir-se-ia que o tumor, que durante todo esse mês se formara no seu coração, arrebentava, de repente. Livre, estava livre. O encanto se desfizera, seus malefícios insidiosos cessaram de agir. Mais tarde, quando Raskólnikov lembrava esse período de sua vida e tudo o que lhe acontecera durante esse tempo, minuto por minuto, ponto por ponto, uma coisa lhe chocava sempre com uma admiração quase supersticiosa, e se bem que nada tivesse de extraordinário, parecia-lhe, entretanto, ter tido uma influência decisiva sobre seu destino. Isso é que, para ele, sempre permaneceu um enigma: por que, então, já se sentindo cansado, esmagado, em vez de preferir o caminho mais curto, mais direto, dava a volta pelo Mercado, onde não tinha nada que fazer? Sem dúvida, essa volta não alongava muito o caminho, porém, era perfeitamente inútil. Acontecia-lhe, na verdade, dezenas de vezes, entrar em casa sem saber por que ruas havia passado. Mas por que, se perguntava, por que esse encontro tão importante, tão decisivo para ele e, ao mesmo tempo, tão fortuito, na Praça do Mercado (onde não tinha nada que fazer) se dava agora, nesta hora, neste minuto de sua vida e em condições tais que deveriam ter, sobre seu destino, a influência mais grave, mais definitiva? Inclinava-se a crer que era coisa do destino. Eram quase nove horas quando chegou à Praça do Mercado. Todos os vendedores ambulantes, os carregadores, os taverneiros e os atacadistas preparavam-se para encerrar o trabalho do dia. Desfaziam os

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mostruários, retiravam as mercadorias das prateleiras, guardavam-nas e iam para casa com os fregueses que se retiravam. Diante das tascas que se encontravam nos porões das casas da praça, de aspecto sujo e nauseabundo, e, sobretudo, à porta das tabernas, formigava uma multidão de camelôs e de indigentes. Raskólnikov frequentava de bom grado esse lugar e os becos vizinhos quando saía de casa sem destino. Aí, seus andrajos não chamavam atenção de ninguém porque cada qual andava como queria. Na esquina do Beco K., um casal de negociantes vendia artigos de armarinho, linha, novelos de algodão, cordões, lenços e outras mercadorias que se achavam espalhadas em duas mesas. Prepararam-se também para se ir. Atrasaram-se, pois, conversando com uma pessoa conhecida que se aproximara. Era Lizavéta Ivánovna, ou como costumavam chamá-la, Lizaiéta, irmã mais moça da velha Alióna Ivánovna, viúva de um fiscal, a usurária em casa de quem Raskólnikov estivera na véspera para empenhar o relógio e tentar um “ensaio”... De há muito que estava informado sobre Lizavéta. Ela, por sua vez, o conhecia um pouco. Era uma moça de trinta e cinco anos, desajeitada, tímida e amável, com ares de quase uma idiota; tremia, diante da irmã, que a tratava como uma escrava, fazendo-a trabalhar dia e noite, chegando mesmo a bater-lhe. De pé, um embrulho na mão, diante do casal, escutava-os com atenção e parecia indecisa. Eles lhe explicavam qualquer coisa, animadamente. Quando Raskólnikov percebeu Lizavéta, sentiu uma sensação esquisita, uma espécie de profundo espanto, se bem que tal encontro, em verdade, nada tivesse de surpreendente. – Você devia, Lizavéta Ivánovna, tomar sozinha uma decisão – dizia o negociante em voz alta. – Venha, por exemplo, amanhã, por volta das sete horas; eles virão também. – Amanhã... – respondeu Lizavéta, com uma voz arrastada, pensativa, como se hesitasse resolver. – Como lhe mete medo a Alióna Ivánovna – interveio a mulher, gracejando. – Quando a vejo assim, você até parece uma criança. Afinal de contas ela não é senão sua irmã e, assim mesmo, só por parte de pai; e que domínio exerce sobre você. – Desta vez eu a aconselho, você nada deve dizer a Alióna Ivánovna – interrompeu o marido. – Venha à nossa casa sem pedir licença. Trata-se de um ótimo negócio. Mais tarde, sua irmã mesma se convencerá disso.

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– É... e se eu viesse mesmo? – Entre seis e sete horas. Os vendedores, por sua vez, mandarão alguém e você mesma decidirá. Pronto. – E nós lhes ofereceremos chá – acrescentou a mulher. – Está bem, virei – disse Lizavéta, que ainda parecia hesitar, despedindo-se morosamente. Raskólnikov já tinha passado à frente do grupo e não escutou mais nada. Insensivelmente, diminuíra o passo, de modo a não perder uma palavra da conversa. À surpresa do primeiro instante, sucedeu-se uma sensação de horror imprevista, que, no dia seguinte, às sete horas, precisamente, Lizavéta, a irmã e única companheira da velha, estaria fora de casa e, portanto, no outro dia à noite, às sete horas em ponto, a velha estaria sozinha em casa. Encontrava-se a alguns passos, apenas, do seu quarto. Entrou como um condenado à morte. Nem procurava raciocinar, do que aliás era incapaz naquele momento. Mas sentiu, perfeitamente, que não tinha mais livre-arbítrio, nem vontade: tudo acabava de ser definitivamente resolvido. Não havia dúvida de que poderia esperar anos inteiros por uma ocasião favorável, tentar mesmo criá-la, sem, contudo, achar outra melhor e com maior probabilidade de sucesso do que esta. Em todo o caso, teria sido difícil a ele saber de antemão, com certeza, sem correr o menor risco e sem ter de fazer perguntas indiscretas, que no dia seguinte, a tal hora, certa velha, contra quem se tramava um atentado, estaria sozinha em casa.

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Estação ferroviária de Vitebsk em São Petersburgo, 1900

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O AUTOR

É sempre vertiginosa a leitura dos romances de Dostoiévski. Um crítico dizia que em sua ficção havia algo tanto do romance policial como também do romance de aventura. Esse crítico, um dos mais argutos que já passou pelo Brasil, chamava-se Otto Maria Carpeaux. A definição que ele fazia para Os irmãos Karamázov vale perfeitamente bem para este também clássico Crime e castigo: “Se todos os romances do russo parecem romances policiais, são de um investigador das almas que nos revela, além dos crimes perpetrados, os crimes virtuais que dormem em nós outros como possibilidades. E enquanto se trata de romances de aventuras, são as aventuras espirituais, das quais a última seria a própria redenção do gênero humano”. “Investigador das almas” e “aventuras espirituais”: duas expressões que dizem muito sobre o universo ficcional que o escritor russo criou com grande genialidade em meados do século XIX. Poucos autores foram tão fundo nessa investigação e conseguiram retirar do poço da alma humana tantas desventuras como o fez Dostoiévski. É de se lamentar, por exemplo, o destino do protagonista de Crime e castigo, esse Raskólnikov, um pobre-diabo perambulando pelas ruas decadentes de São Petersburgo, com “o povo se comprimindo entre os andaimes, montes de cal, tijolos espalhados pelos cantos e, dominando tudo, o mau cheiro característico, tão familiar aos habitantes de São Petersburgo, que não dispõem de meio para veranear”. Dostoiévski conhecia bem a cidade – como também a alma cindida do homem moderno. Ele O escritor Fiódor Dostoiévski

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tinha todas as ruas esquadrinhadas em sua mente, conhecia cada beco, cada travessa, cada ponte sobre o Neva desde a adolescência. Depois de ter passado a infância entre Moscou e a casa da família na região rural de Darovóie, o menino – impulsionado pelo pai, o doutor Mikhail Andrévich Dostoiévski – seguiu, com seu irmão mais velho, Mikhail, para São Petersburgo, onde viveria grande parte de sua vida adulta. Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski – Fiéda, como lhe chamavam – nasceu, em 30 de outubro de 1821, em Moscou. Seu pai era médico no Hospital Marínski para os Pobres, no subúrbio da cidade, e a família morava em um apartamento cujas janelas davam para o pátio do hospital. Conta-se que seu pai vinha de uma nobre família rural lituana; no entanto, o próprio escritor chegou a dizer que não pertencia à pequena nobreza rural, como anota o crítico Joseph Frank em As sementes da revolta, que é o primeiro dos cinco volumes da biografia sobre o autor russo. Era uma maneira de se diferenciar de seu grande rival literário, Tolstói. Para Dostoiévski, o autor de Anna Kariênina descreveu a vida “tranquila, estável e imutável das famílias dos grandes proprietários dos estratos superiores de Moscou”. Algumas biografias do escritor costumam retratar a vida familiar dos Dostoiévski como infernal, principalmente por causa da figura austera do pai. Frank coloca em dúvida essa versão, que foi, de certa maneira, divulgada pelo ensaio “Dostoiévski e o parricídio”, de Sigmund Freud, um estudo clássico e muito conhecido sobre o autor de Crime e castigo. Segundo o biógrafo, o psicanalista pode ter forçado a mão ao relacionar esse clima à epilepsia, que acompanhou o autor russo desde a juventude, e aos “supostos impulsos parricidas de Dostoiévski”. “O artigo de Freud contém algumas observações argutas e peneDr. Mikhail Andrévich trantes sobre a personalidade de Dostoiévski, pai do escritor

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Dostoiévski, masoquista e dominada pelo sentimento de culpa, mas o caso clínico que ele construiu numa tentativa de explicá-lo em termos psicanalíticos é pura ficção”, anota Joseph Frank. A infância do escritor não foi infernal. Segundo Frank, os pais eram extremamente dedicados aos filhos. Sua mãe, Maria Fiódorovna, foi uma mulher bastante ativa, até que começou a sentir os primeiros sintomas do que mais tarde se revelou ser tuberculose. Ela cuidava da família, apesar de contar com a ajuda de vários empregados, e também gostava de passar longas temporadas com seus oito filhos na casa de campo. Nessas ocasiões, aproveitava para administrar a propriedade e ajudava os camponeses, fornecendo-lhes sementes para o plantio e tudo mais que estivesse a seu alcance. E deixava os filhos brincarem livremente. Enquanto isso, o doutor Dostoiévski, assoberbado pelo trabalho, já que também trabalhava em clínicas particulares, nem sempre conseguia acompanhar sua esposa nessas viagens, e permanecia em Moscou. De fato, ele era um homem severo, sério, e com alguns surtos de irritação – quando, então, estourava –, mas sempre tomando cuidado para que ninguém soubesse, pois se esforçava para manter uma frágil fachada de nobre. Porém, zeloso e preocupado com o futuro de sua prole, acompanhava o estudo de todos os filhos e chegou a dar aulas de latim para Mikhail e Fiódor. Os dois temiam essas aulas, pois era quando o pai se mostrava mais severo e muitas vezes se irritava com os erros dos filhos. Dizem que era um homem também muito ciumento: atingiu o máximo do ciúme quando, sem razão, começou a desconfiar que sua mulher o traía em Darovóie. Nessa época, ela estava grávida da irmã caçula do escritor, Aleksandra. Os desentendimentos aumentaram, mas os dois acabaram por se entender, depois de uma sofrida e franca troca de cartas – ambos se expressavam muito bem por escrito – qualidade que seus filhos certamente herdaram. Maria Fiódorovna, mãe do escritor

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Diz Joseph Frank que o ganho do pai não era grande coisa, no entanto, ele mantinha certo ar de nobreza. Tinha conseguido um título nobiliárquico de funcionário, mas a vida era puxada. Moravam em um apartamento pequeno para os oitos filhos, com divisões internas feitas por biombos, criando assim quartos mínimos. Várvara, a filha mais velha, por exemplo, dormia no sofá da sala, e Fiódor dormia com seu irmão, em um espaço sem nenhuma janela. Ao chegar à adolescência, o pai decidiu que Mikhail e Fiódor iriam estudar na Academia de Engenharia Militar. Era uma maneira de lhes garantir um futuro. E os dois filhos, que sonhavam com a literatura, e principalmente nutriam a mesma paixão pelo poeta Púchkin, tiveram de se mudar para São Petersburgo. Porém, pouco antes da partida, uma dor os invadiu: Maria Fiódorovna adoeceu gravemente; estava tão fraca, que nem conseguia pentear os próprios cabelos. “Foi o período mais triste de nossa infância”, anotou Andrei, um dos irmãos do escritor, em seu livro de memórias. O vínculo emocional de Fiódor com a mãe era tão forte, que chegou a perder a voz quando ela morreu, só a recuperando quando chegou em São Petersburgo, no ano seguinte, em 1838. Apenas Fiódor conseguiu entrar na Academia; Mikhail não passou nos exames e foi para outra escola. Nessa época, seu pai já não clinicava mais e passara a se dedicar às terras de Darovóie, onde as coisas não iam nada bem, com pouca colheita e, claro, pouco dinheiro. Em 1839, chegou a notícia trágica: o doutor Dostoiévski fora assassinado – fato que abalou a família. Nunca se soube, ao certo, se houve mesmo um crime, mas, conta Joseph Frank, a maioria dos “camponeses do sexo masculino da aldeia foi implicada” no suposto assassinato. Há mesmo a suspeita de que ele teria morrido de apoplexia: a tensão na aldeia era grande, com muitos conflitos entre o pai do escritor, seus vizinhos e os camponeses.

Vida de Escritor Não foi um momento fácil para Fiódor, que tinha sido reprovado em algumas matérias na Academia e escrevera ao pai pedindo dinheiro para continuar levando a vida longe de casa. Ele se sentiu “abatido e esmagado pela culpa”, segundo Frank, quando soube da tragédia. Pelas

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informações que Freud havia obtido, dataria desse período a primeira crise de epilepsia de Dostoiévski; já o biógrafo lembra que não há dados que a comprovem – outros relatos sugerem que o primeiro ataque aconteceu muito tempo depois, na Sibéria. Agora, sem a tutela do pai e com pouco dinheiro para viver, Dostoiévski aproveita para se aprofundar em sua paixão pela literatura, mergulhando na vida literária de São Petersburgo, fazendo novos amigos e escrevendo, em seu caderno, o rascunho de Gente pobre, romance de estreia do escritor, publicado em 1846. Sua vida passou a ser quase que inteiramente voltada para os textos literários. É a época em que traduz Eugénie Grandet, de Balzac, que seria publicado em russo em 1844. O primeiro passo estava dado. Pouco depois, consegue terminar seu romance de estreia, cujos manuscritos logo chegaram às mãos do importante crítico V. G. Belínski. Ele fica surpreso com o que lê. “Não consigo largá-lo há quase dois dias. É um romance de principiante, um novo talento”, disse a um colega. Neste romance, construído de forma epistolar e que logo passou a ser bastante comentado, Dostoiévski já revelava seu interesse pelos humilhados e ofendidos, por aquela pobre gente de São Petersburgo. O sucesso repentino possibilitou ao jovem viver apenas da literatura. Chegou a conseguir um adiantamento de um editor, mas, como sempre, aquilo se tornou uma cilada. Para poder se manter, viu-se obrigado a escrever folhetins para jornais e revistas, gênero literário que estava em alta na Rússia. Todavia, sua carreira e sua vida estavam prestes a dar uma guinada radical. Publicou seu segundo romance, O duplo, que não recebeu a mesma acolhida do primeiro. Belínski o considerou psicológico demais. O escritor afastaFiódor Dostoiévski em 1847, -se do núcleo de escritores que aos 26 anos de idade, conforme se formou em torno do crítico desenho de K. Trutóvski

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e se isola. Por essa época, conheceu um rapazola com ideias socialistas, de 26 anos. Era Mikhail Butachévitch Petrachévski. Apesar de não aderir integralmente à ideologia do amigo, ele passa a comparecer às reuniões, todas às sextas-feiras, na casa deste, onde a conversa madrugava sobre diversos assuntos, principalmente sobre política. Dostoiévski era um crítico feroz do regime de servidão na Rússia. O círculo de Petrachévski, com suas ideias avançadas, já vinha sendo vigiado pela polícia havia muito tempo. Certa noite, pouco depois de ir se deitar, por volta das quatro da madrugada, Fiódor foi acordado pelo chefe da polícia. Ele estava sendo acusado de conspirar contra o soberano russo, Nicolau I, e instigar uma revolução de camponeses contra a escravidão. Dostoiévski foi preso e condenado à morte. Quando já se encontrava diante do pelotão de fuzilamento, sem nenhuma alternativa, o imperador comutou a pena e condenou os revoltosos quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria – essa dura experiência seria relatada no romance autobiográfico Recordações da casa dos mortos. Foram quatro anos no presídio de Omsk, onde enfrentou todo tipo de humilhação, e pôde estudar, de perto, a “moralidade profundamente arraigada dos camponeses”, além de se deparar com o ódio dos presos comuns aos presos intelectuais, como ele. Em 1854, é mandado para Semipalatinsk, onde é incorporado ao Sétimo Regimento do Corpo de Exército Siberiano. Estava livre, mas ainda tendo de servir ao exército, como soldado raso. Lá, conheceu Maria Dmítrievna Issáiev, que era casada, mas logo ficaria viúva. Foi uma grande paixão – e os dois se casariam, em 1857. Pouco tempo depois, morre Nicolau I, sucedido no trono por seu filho Alexandre II. Estava chegando ao fim o martírio do escritor, pois, em breve, Alexandre, que aboliu a servidão, permitiria-lhe voltar para casa, e ele poderia, enfim, recomeçar Maria Dmítrievna Dostoiévskaia, sua vida em São Petersburgo. primeira esposa do escritor

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Retorno do Exílio Dostoiévski volta com uma mulher e um enteado. Na estação ferroviária, apenas um antigo amigo e seu irmão Mikhail. Ele, que tinha sido reconhecido como um novo talento, teria de recomeçar sua vida de escritor – era essa sua vocação. Trazia na bagagem um conhecimento aprofundado do homem, de suas misérias morais. Além disso, outra experiência o marcaria para sempre: começou a ter crises de epilepsia ainda no presídio, e elas o acompanharam para o resto da vida. Nesse retorno, publicou o romance-folhetim Humilhados e ofendidos; e Recordação da casa dos mortos, que acabou por restaurar sua fama entre os literatos e leitores russos. Com seu irmão Mikhail fundou a revista O Tempo, na qual exerceria o papel de editor e colaborador, e divulgaria suas ideias, como a defesa de uma cultura russa própria, distante dos modelos prontos que chegavam da Europa. Na revista, eles também publicavam traduções, artigos e folhetins – “Dostoiévski estava sempre procurando matérias que pudessem interessar, instruir e cativar seus assinantes regulares”, conta Joseph Frank em Os efeitos da libertação, terceiro volume da biografia sobre o escritor. A revista, porém, acabou sendo proibida por questões políticas, mas foi nas suas páginas que ele publicou um conto da jovem Apolinária Suslova, que era 22 anos mais jovem que ele e logo se tornaria sua amante. Com ela, empreendeu uma viagem pela Europa. Ela seguiu antes para Paris, onde os dois se encontrariam, mas Dostoiévski demorou mais do que o previsto para chegar. O fato é que ele parou em Wiesbaden para jogar na roleta – ele tinha tido sua primeira experiência no jogo um ano antes. A passagem é digna de nota, pois está na base de seu romance Um jogador. E essa também seria a sua segunda doença séria: o vício da jogatina. Em 1864, Maria Dmítrievna, que já estava bastante debilitada, sendo cuidada pela família dela durante as ausências do escritor, morre, depois de uma lenta agonia. Nesse ano, outra perda terrível: seu irmão e parceiro de toda a vida, Mikhail, morre de repente. Eles tinham acabado de criar uma nova revista, Época, que substituiria O Tempo. Agora, o escritor encontrava-se, como ele mesmo disse, sozinho e “simplesmente aterrorizado”: “Um único golpe partiu a minha vida inteira em duas. Numa metade, que eu já atravessara, estava tudo

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aquilo pelo que vivi, e na outra metade, ainda desconhecida, tudo era estranho e novo, e não havia um único coração que pudesse substituir aqueles dois”, escreveu a um amigo. É nessa segunda metade que surgirão aqueles que são os mais impressionantes romances da literatura mundial – Dostoiévski publicará a partir daí: Memórias do subsolo (1864), Crime e castigo (1866), Um jogador (1866), O idiota (1868), O eterno marido (1870), Os demônios (1871), O adolescente (1875) e Os irmãos Karamázov (1880), além de seu Diário de um escritor (1873-1881). Nessas obras, circula a alma de personagens atormentados, perseguidos no íntimo deles mesmos, marcados pelo niilismo, que o escritor deplorava, vivendo entre o bem e o mal e torturados por questões morais. Em resumo, o tipo que a crítica passou a chamar de “o homem do subsolo” – esse tipo de figura humana que ele pintou com tintas ácidas e cruéis. Nessa etapa final da vida, ele contou com o apoio de Ana Grigórievna (Snítkina) Dostoiévskaia, sua última esposa e também estenógrafa, para quem ele ditou Um jogador durante 26 dias, premido por dívidas. A ela, o autor dedicou seu genial Os irmãos Karamázov. Dostoiévski, que morreu em 28 de janeiro de 1881, respeitado e adorado pelos russos, foi um dos maiores paisagistas da alma humana. Ao comentar os manuscritos do escritor, Carpeaux conta que ele “via primeiramente os problemas e depois as personagens”. “No começo, ele emenda mais do que escreve, e as margens são cheias de figuras, representando catedrais, demônios, anjos, que simbolizam seus problemas. Depois, a personificação começa; o texto corre mais ligeiro, e os desenhos simbólicos se transformam em retratos imaginários; a comparação Retrato de sua segunda esposa, Ana Grigórievna Dostoiévskaia, e os filhos do escritor

Retrato de Dostoiévski, por Vasily Perov, em 1872. Galeria Tretyakov, Moscou, Rússia

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permite estabelecer as preferências do poeta, e esta comparação prova aquilo que a interpretação dos textos deixava prever: as preferências do poeta são para seus inimigos ideológicos”. Como ele ainda diz, parece que Dostoiévski criou seus “anticristos – um Raskólnikov, um Kirillov, um Ivan Karamázov – com grande simpatia, e que estes constituem, às vezes, intérpretes do escritor”.

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A OBRA

O escritor argentino Jorge Luís Borges certa vez escreveu que havia lido o romance Crime e castigo, em 1915. “Esse romance, cujos heróis são um assassino e uma prostituta, pareceu-me não menos terrível que a guerra que nos cercava”, disse, referindo-se à Primeira Guerra Mundial. A impressão do escritor revela a força do romance de Dostoiévski. Ele pode dar a sensação de algo mais terrível do que uma guerra. Dostoiévski escreveu Crime e castigo no período de sua vida em que se encontrava mais só. Havia perdido seu irmão Mikhail e sua esposa. Como se não bastasse, tinha dívidas enormes a pagar. Mas foi nessa época que escreveu seus romances centrais. Por isso, seu biógrafo, Joseph Frank, chamou os anos de sua vida que vão de 1865 a 1871 de “Anos milagrosos” – título do quarto volume da extensa e detalhada biografia escrita por Frank. Era impressionante a capacidade de Fiódor, em meio a tais turbulências, de escrever tanto e com tanta profundidade. Crime e castigo é um desses frutos milagrosos, uma obra-prima que marca definitivamente a literatura mundial – é impossível pensar o que seria a literatura do século XX sem esse romance e os que lhe seguiram. Muitas correntes literárias se abeberaram nesse rico mundo ficcional criado pelo escritor russo, onde os personagens, que muitas vezes podem despertar compaixão, não são os mais confiáveis. O escritor ia buscar as mazelas morais e filosóficas da alma russa para colocá-las em relevo, em primeiro plano. Com sua capacidade redobrada para o trabalho, apesar das crises frequentes de epilepsia, ele continuou O escritor Fiódor Dostoiévski

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tocando a revista Época, criada por seu irmão, e que seguia com uma enormidade de dívidas. Teria sido mais fácil fechá-la, mas ele se arriscou. E, claro, perdeu muito dinheiro. Além disso, tinha o enteado Pacha para cuidar e a família de Mikhail, que, da noite para o dia, se viu privada de seu principal provedor. Em uma viagem à Europa, depois de conseguir um adiantamento editorial por seus livros e pagar boa parte das dívidas, fez uma parada em Wiesbaden, onde acabou torrando todo o dinheiro que havia restado. Escreveu para os amigos, como o escritor Turguéniev, autor de Pais e filhos, mas o socorro financeiro não foi suficiente. Acabou fechando outro acordo editorial com um antigo desafeto, Katkóv, editor da revista Mensageiro Russo. A ele, Dostoiévski prometeu escrever uma novela sobre um ex-estudante que vive na “mais calamitosa pobreza” e que resolve matar uma velha viúva “que empresta dinheiro a juros”. Em seu esboço estão as linhas gerais do que seria, depois, Crime e castigo. Seguindo a descoberta literária de Memórias do subsolo, ponto de viragem em sua obra ficcional, com narrador de traços fortemente negativos e com “estofo de filósofo”, como anotou Boris Schnaiderman, um dos maiores estudiosos da obra do escritor russo no Brasil, Dostoiévski pensava em escrever seu novo romance em primeira pessoa. No entanto, a certa altura, resolve abandonar o que já havia escrito e dedica-se a reescrever tudo, mas em fôlego largo e em terceira pessoa, aproveitando para inserir, ao longo da narrativa, tudo o que se passava na cabeça do personagem. Também aproveita-se de outro romance que abandonara e que iria se chamar Os bêbados, no qual pretendia retratar a família dos alcoólatras, a educação dos filhos e tudo que estivesse ao alcance desse assunto. É a triste família de Marmeládov, pai da prostituta Sônia, fundamental na trama final do escritor. Mikhail Dostoiévski, irmão do escritor

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Em 1866, o romance começa a ser publicado nas páginas de Mensageiro Russo, granjeando grande sucesso e interesse do público. Não faltaram, no entanto, críticas dos que achavam tudo aquilo inverossímil. Além do contrato com Katkóv, o escritor havia empenhado sua palavra com outro editor, aquele que o ajudara a pagar suas dívidas antes da viagem à Europa. Hesitante, aceita a sugestão de um amigo e contrata uma estenógrafa, a jovem Ana Grigórievna Snítkina. Ele, que nunca tinha trabalhado assim, acabou ditando a ela, em 26 dias, todo o romance Um jogador – que seria sua alforria da dívida com o editor. Crime e castigo surpreende desde o início, com Raskólnikov indo até a casa de sua vítima, a velha Alióna Ivánovna, e, pelo caminho, pensando em seu projeto, premeditando tudo com cuidado para não deixar pistas. O leitor o acompanha em dois níveis: em um, pela narração em terceira pessoa, pontuando as cenas, descrevendo a cidade, as ruas, o calor asfixiante a cada passo; em outro, pelo monólogo interior do protagonista, um artifício narrativo de extrema habilidade do escritor, por meio do qual vão se revelando as ideias que conduzem Raskólnikov a seu plano de matar a velha usurária. “Serei verdadeiramente capaz daquilo? Aquilo será mesmo uma coisa séria? Absolutamente: um simples jogo da minha imaginação, uma fantasia que me diverte...”. Como em um romance policial, ele lança várias pistas; no entanto, não são pistas para matar uma charada simples. A grande questão é a motivação do crime, o que leva aquele jovem ex-estudante de Direito a cometer tal ato. Algumas dessas pistas surgem para envolver o leitor; há aquelas de fundo social (Dostoiévski pinta uma paisagem de total pobreza e degradação) e outras de fundo pessoal (uma carta da mãe do protagonista dizendo que sua irmã vai se casar com um advogado avarento apenas para poder ajudá-lo). Capa de Mensageiro Russo, Ainda nesse acúmulo de morevista na qual Crime e castigo tivos, Raskólnikov irá encontrar o foi originalmente publicado

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Praça do Palácio

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FIÓDOR DOSTOIÉVSKI

bêbado Marmeládov, cuja filha se prostitui para ajudar a família, que, por causa do alcoolismo do pai, vive em um pardieiro e de forma terrível; depois, ouvirá uma conversa de bar, na qual dois homens falam da velha agiota nos piores termos, sugerindo inclusive a ideia de matá-la e roubar-lhe o dinheiro e ajudar, assim, milhares de vidas. Tudo contribui para a decisão de Raskólnikov de matar a mulher com motivos racionais e claros, para não dizer altruístas. Está aí um dos golpes narrativos do escritor: essa lógica utilitarista – que Dostoiévski costumava criticar com ênfase – como que justificaria, de forma racional, o crime que o jovem em breve cometeria – mas estava fora de seus planos matar a irmã da agiota, que também estava no apartamento e acabou assassinada com uma machadada. No horizonte do escritor, estava a discussão sobre o niilismo que, no país, tornara-se uma corrente ideológica e de rebelião que atingira toda a juventude intelectual. Um dos personagens famosos tratado pela literatura foi Bazarov, de Pais e filhos, de Turguêniev. O niilismo impregnava a atmosfera cultural russa. Para esses jovens, os valores tradicionais como Deus, a verdade e o bem haviam perdido a força. Raskólnikov era um filho de sua época, carregando em si algumas “ideias estranhas e inacabadas”, como anotou o escritor, em uma carta a seu editor.

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OS PERSONAGENS

Raskólnikov é o principal personagem do romance. Dostoiévski pensou inicialmente apenas nele, para depois ir compondo um quadro bem mais complexo da sociedade russa. Em torno dele, surgem outros jovens estudantes ou funcionários, quase todos na mesma faixa etária. O escritor criou um personagem para lá de complexo. E estabeleceu certo tipo de jogo com a emoção do leitor. Em um primeiro momento, ele focaliza o drama interno do jovem, a decisão calculada de matar a velha usurária, a febre e o delírio que lhe atingem depois de ter cometido o duplo crime (assassinar a velha e a irmã dela) – é quando o leitor, diante de Ródia totalmente enfraquecido, com atitudes ambíguas, vivendo em um quarto menor que uma cabine de trem, começa a sentir uma espécie de compaixão pelo personagem. Em um segundo momento, encontramos Raskólnikov em contraste com seu amigo Razumíkhin, ou provocando com muita astúcia o oficial Zamiótov, ou discutindo com o juiz de instrução Porfírii Petróvitch um artigo que havia escrito, tempos antes, no qual dividia a humanidade entre ordinários e extraordinários, dizendo que estes últimos teriam o direito de matar. Nesse momento, o leitor como que se afasta do personagem para perceber seu movimento complexo. É uma estratégia narrativa que torna cada vez mais densa a história e seu personagem-tipo. É nos contrastes e situações que se percebe a intensidade desse tipo pinçado da realidade e torturado pela pena ágil e astuciosa do narrador. O artifício de Dostoiévski é tal, que todos os atos, todos os eventos passam a ser filtrados pela discussão mais profunda sobre o comportamento humano, sobre a tensão entre uma moral, muitas vezes frágil e hipócrita, e a miséria econômica que cerca os personagens. O romance apresenta pelo menos quatro núcleos de personagens que gravitam em torno de Raskólnikov: seus amigos, estudantes ou ex-estudantes, sem eira nem beira, como Razumíkhin; os investigadores, formado por Porfírii Petróvitch e o escrivão Zamiótov; familiar, com Dúnia, sua irmã, e sua mãe, além do pretendente Lújin e do ex-patrão

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CRIME E CASTIGO

de Dúnia, Svidrigáilov, que terá papel fundamental na parte final do romance; e o da família de Marmeládov, o bêbado, com os filhos, a esposa doente e vivendo de um passado mais nobre, e Sônia, que teve de se prostituir para sustentar a família do pai. Sônia, que aparece com intensidade a partir da metade do romance, é uma jovem de 18 anos. “Tinha um rosto pequenino e magro, verdadeiramente magríssimo e pálido, bem esquisito, um pouco anguloso, com um nariz e um queixo pontudos. Não se podia dizer que fosse bonita. Em compensação, seus olhos azuis eram tão límpidos e davam-lhe, inflamando-se, tal expressão de bondade e de candura, que se sentia, sem querer, atraído por ela. Outra particularidade característica de seu rosto e de toda a sua aparência: parecia muito mais nova do que realmente era, uma guria, apesar dos seus dezoito anos, e essa extrema meninice era denunciada por certos gestos, de um modo quase cômico”, como a descreve o narrador pelos olhos de Raskólnikov. Com ela, o anti-herói de Dostoiévski vive cenas inesquecíveis para o leitor, como o momento em que ele lhe pede que leia um trecho do Novo Testamento – a passagem sobre a ressurreição de Lázaro – e o momento de alta dramaticidade da confissão do crime. Tudo encaminha para o autoconhecimento do jovem Ródia e para os motivos de seu ato. Como anota Joseph Frank, em Os anos milagrosos, comparando esses episódios com alguns solilóquios de Shakespeare, “o verdadeiro objetivo de Raskólnikov foi unicamente testar ‘se eu era um piolho como todos os outros ou um homem. [...] Se sou uma trêmula criatura ou se tenho o direito’. Com essas palavras exaltadas, finalmente o entendimento de Raskólnikov coincide com aquilo que Dostoiévski vinha comunicando há muito tempo em termos dramáticos”.

Raskólnikov e Marmeládov, em tela de Michail Petrovich Klod, 1874

Frontispício da 1ª edição de Crime e castigo, 1867

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Ponte Nikolaevsky

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