Livro Navegando Através dos Séculos

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a histĂłria romanceada da famĂ­lia Guterres, um dos troncos seculares do Rio Grande do Sul



MARLENE CANARIM DANESI FLORIANA DANESI BREYER

a história romanceada da família Guterres, um dos troncos seculares do Rio Grande do Sul


© Marlene Canarim Danesi e Floriana Danesi Breyer

Capa e ilustrações: Julia Danesi Pernambuco (exceto no capítulo Pássaro Imortal e Epílogo, feitas por Floriana Danesi Breyer) Projeto gráfico: Floriana Danesi Breyer e Julia Danesi Pernambuco Diagramação e edição de imagens: Priscila Pereira Pinto Revisão de texto: Renildo Baldi Investigação histórica: Paulo Flores Pinto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD D179n

Danesi, Marlene Canarim Navegando Através dos Séculos: a história romanceada da família Guterres, um dos troncos seculares do Rio Grande do Sul / Marlene Canarim Danesi, Floriana Danesi Breyer. – Canoas, RS : Consultor Editorial, 2018. 216 p. : il. ; 16cm x 23cm. ISBN: 978-85-93813-30-6. 1. Romance histórico. I. Breyer, Floriana Danesi. II. Pernambuco, Julia Danesi. III. Título.

2018-1594

CDD B869.93 CDU 82-3

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

www.consultoreditorial.com.br 1ª edição/2018

Impresso no Brasil


Dedico este livro em memória dos que se foram, aos familiares com quem convivi na infância, na juventude, na idade adulta e, sobretudo, aos meus queridos netos Floriana, Frederico, Felipe, Giuliano, Júlia, o lindo bisneto, Ignacio, e a todos que estão por vir. Carinhosamente Marlene Canarim Danesi







Ao fundo Libório (tio Preto) buscando água na cacimba da Estância de São Braz com os primos Marisa Mazzini Rodrigues, Marlene Mazzini Canarim, José Antonio Mazzini Lemos e Danúbio Mazzini Canarim.



Sumário APRESENTAÇÃO 17 Miguel Frederico do Espírito Santo

NOTA DAS AUTORAS

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PRÓLOGO 27 Marlene Canarim Danesi

A fonte

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Floriana Danesi Breyer

BREVE VIAGEM NA HISTÓRIA DOS ANTEPASSADOS

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Marlene Canarim Danesi

CONQUISTA DO RIO GRANDE DO SUL E OS GUTERRES

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Marlene Canarim Danesi

AS TRÊS BAIANINHAS

47

Floriana Danesi Breyer

O SILÊNCIO DOS SERTÕES

53

Floriana Danesi Breyer

RETRATOS DA INFÂNCIA

59

Marlene Canarim Danesi

O FANTASMA DAS ENCHENTES

65

Marlene Canarim Danesi

OS PRIMEIROS TEMPOS: A EXPANSÃO PARA O SUL

71

O AMOR SEM PECADO

79

Marlene Canarim Danesi

Marlene Canarim Danesi


MORTE E VIDA SEVERINA

85

Floriana Danesi Breyer

ASCENÇÃO DE CERTO CAPITÃO-MOR: AMORES DISPUTAS E INTRIGAS

91

Marlene Canarim Danesi

A VINGANÇA DE BRITO PEIXOTO

97

Marlene Canarim Danesi

UM HOMEM FANTÁSTICO

103

Marlene Canarim Danesi

DIÁLOGO QUE NUNCA ACONTECEU

109

Marlene Canarim Danesi

UM POUCO DA HISTÓRIA DOS TROPEIROS

113

Marlene Canarim Danesi

DE VOLTA AOS MEUS SEIS ANOS Marlene Canarim Danesi

121

A DESCENDÊNCIA DE AGOSTINHO GUTERRES: FELIPE

129

Marlene Canarim Danesi

FELIPE CHEGA EM ENCRUZILHADA Marlene Canarim Danesi

135

A ESTÂNCIA DE SÃO BRAZ

143

Marlene Canarim Danesi

PÁSSARO IMORTAL

149

Floriana Danesi Breyer

OS ALEXANDRINOS E O ATAQUE DE JOSÉ DE ARTIGAS

153

Marlene Canarim Danesi

MEMÓRIAS INCOMPLETAS DO GUERREIRO ALEXANDRINO 161 Marlene Canarim Danesi 155


ONDE NASCEM E MORREM OS SONHOS DE JOAQUINA 167 Marlene Canarim Danesi

O PAPEL DOS AÇORIANOS NA FORMAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL

173

Marlene Canarim Danesi

HISTÓRIA DE MEU BISAVÔ FIDÉLIS, CONTADA POR ELE MESMO

181

Marlene Canarim Danesi

OFFERTA DA MORTE

187

Floriana Danesi Breyer

FACA NA BOTA E O COCHEIRO MISTERIOSO

193

Floriana Danesi Breyer

A VIDA E AS MULHERES DA FRONTEIRA

197

Marlene Canarim Danesi

Epílogo 205 Floriana Danesi Breyer



APRESENTAÇÃO

M

ARLENE CANARIM DANESI e FLORIANA DANESI BREYER, no romance cíclico que trazem a lume, vão à ancestral Estância de São Braz e recordam e se encantam e sonham. No sonho, o cortejo dos antepassados, genearcas das mais tradicionais famílias do sul do Brasil, de aparência grave e hierática, desfila aos olhos delas. Diante delas, os avoengos falam e se revelam nas encarnações seculares. Deles Saint-Hilaire, da Academia Francesa, se admirou: “On est saisit d’une sorte de stupefaction: on serait tentée de croire que ces hommes appartenaient à une race de geants”. Entretanto, ao levantarem da tumba, após o sono imemorial, livres da máscara da sobriedade e da circunspecção, revelam-se, não como os descendentes de uma raça de gigantes, como queria o sábio que percorreu o Rio Grande do Sul entre 1820 e 1821, mas como homúnculos enfezados e decaídos por uma trajetória de vícios, de intrigas e de concupiscência. As autoras não têm compromisso com a verossimilhança e professam a ideia de que entre o falso e o verdadeiro a distância é bem curta. Assim, vão mesclando realidade e fantasia e constroem sua estória de família, os vultos de sua genealogia, os figurantes do entrecho sem a responsabilidade de corresponder ao propósito explicitado na nota prefacial, de recuperar as histórias de sua gente. MARLENE e FLORIANA pintam os personagens da saga com cores fortes: comportamento dissoluto, propósitos rasteiros, vida de fancaria, figuras mal acabadas de uma fábula de capa e espada cujo destaque, no texto, quase ocultam os feitos heroicos daqueles antepassados, mais seus recontros guerreiros e a epopeia da conquista do território da qual foram campeões e, mesmo o lirismo do convívio em família, das bahianinhas, do encontro com o pai na enchente de 41, das férias na São Braz, da Casa 17


Amarela, das lembranças pessoais das autoras. Mas, no fogo santo, ateado por Helena e Florência, sob a galharia do velho cinamomo, os antigos avós depuram seus espíritos e nas brasas da fogueira quase extinta forjamse novos destinos... O romance apresentado é um registro vigoroso de como abrir sua caixa de ossos e revisitar seus fantasmas infringindo regras, quebrando paradigmas e convenções e transgredir a tradição, muito ibérica, de guardar os segredos familiares trancafiados à sete chaves e envoltos em silêncios pesados e perpétuos. Parabéns à MARLENE e à FLORIANA pela ousadia! Miguel Frederico do Espírito Santo Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul

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NOTA DAS AUTORAS

H

á pouco mais de quatro anos, tive o prazer de tomar contato com uma pesquisa histórica sobre as origens de meus ancestrais. A investigação detalhada e complexa remonta há mais de dez gerações, antes do século XVII. Desde então, mais precisamente quando minha neta Floriana e eu nos aprofundamos na pesquisa, surgiu a ideia de escrever um romance baseado nos dados históricos levantados por Paulo Flores Pinto, meu cunhado. Não sabíamos como começar; decidimos iniciar a ler e trocar informações para tornar o sonho realidade. Mais tarde, convidei a neta caçula, Júlia, para participar, criando a capa e contracapa. Portanto, o livro é um projeto da avó com as duas netas. Sou fonoaudióloga, escritora e apaixonada por viagens, tenho várias obras publicadas dentro de meu fazer profissional. Somente em 2015, aventurei-me na ficção, em um livro coletivo: Contos Contemporâneos. Em 2016, juntei duas paixões: viajar e escrever. As Viagens de Helena foi meu primeiro livro individual. Narro viagens reais, e revisito lugares da infância, da adolescência e da vida adulta. A narrativa é a arte primordial dos humanos. Em 2017, contribuí com três contos na coletânea Tudo em Movimento, em que mergulho no passado e escrevo sobre minha existência. Minha identidade reside na memória da infância, da adolescência e da maturidade, mas senti necessidade em falar dos antepassados. Levei muitos anos ouvindo episódios de suas aventuras e sinto-me impregnada pela vida desses personagens. Escrever sobre eles é recuperar suas histórias e deixar um legado para meus descendentes. Floriana é artista plástica, apaixonada por arte, história, literatura e, principalmente, pelo Brasil e América Latina. É uma viajante contumaz que já percorreu muitos recantos escondidos de nosso continente sul-americano. Floriana tem a sensibilidade e a férrea vontade de ouvir e valorizar nossas 21


terras e povos: já esteve com os indígenas do Xingu e do Alto Rio Negro, os quilombolas de Ubatuba, os Sertanejos da Serra de Santa Cruz, na Caatinga, e mais recentemente com os ribeirinhos do Rio Doce, atingidos pela lama de Mariana. Em diálogo com essas gentes nessas terras, fez documentários, projetos culturais e sociais, intervenções artísticas e segue incansável desbravadora. Ela também é escritora, autora do livro infantojuvenil Manual do Guerrilheiro Mirim, publicado em 2014, pela editora LEYA. Sempre demonstrou extraordinária curiosidade de conhecer o passado; entender as razões e as consequências das migrações transatlânticas. Júlia é designer gráfica, ilustradora, cantora e compositora. Desde pequena envolveu-se com pintura, desenho, música e fotografia. Em 2017, foi diretora de um curta com cenas de animação Efêmera que participou do festival Anima Mundi, de São Paulo. Realiza projetos pessoais e profissionais em que entrelaça suas múltiplas habilidades, ferramentas e interesses. Neste projeto é responsável pela capa e ilustrações dispostas pelo livro. Entretanto, penso, e elas concordam comigo: não basta compreender a história dos ancestrais; é preciso saber o que fazer com esse conhecimento. Chegamos à conclusão, que estudar o passado é uma ferramenta que ajuda a enfrentar o presente e preparar o futuro. Além do mais, esse saber é essencial para a compreensão de quem somos e de nossa relação com o mundo que nos rodeia. E, talvez, descortinar as vidas dos que nos antecederam seja útil aos demais membros de nossa imensa família. A ideia, também, é incentivar novas pesquisas, indo à busca do que ainda não foi investigado. Considero a pesquisa de Paulo verdadeiro achado. Ao iniciar o interesse pelo assunto, compreendi as dificuldades encontradas pelo historiador em pesquisar as origens. Das inúmeras razões, destaco uma aparentemente irrelevante, que atrapalha a busca pela verdade histórica: refiro-me a tudo aquilo que se ouviu contar, sem documentos comprobatórios. Praticamente, tudo que nos chega por tradição oral, principalmente quando abrange inúmeras gerações, vem interpretado muitas vezes por preconceitos, quase sempre, em versões enganosas, nas quais as explicações das origens são distorcidas, fantasiosas e, às vezes, até inverídicas. 22


A pesquisa de Paulo é uma investigação abrangente e séria, com múltiplas informações, conexões intrincadas e acontecimentos complexos. A princípio, esta complexidade nos pareceu ser o grande obstáculo para nosso projeto. Basear nossa narrativa em fatos, e contá-los de forma romanceada, nos apresentou um desafio. Entretanto, à medida que nos fomos apropriando do estudo, verificamos que navegar através dos séculos pode ser menos difícil de entender, quando pessoas, eventos, instituições e países são apresentados dentro de processos históricos. A pesquisa levou as autoras pela mão e as ensinou a conhecer e a compreender a relação desses processos com a saga da família Guterres. Neste livro, falamos de história, sim, mas o peso não recai nesses acontecimentos, até porque não somos historiadores. Nosso principal objetivo é a tentativa de entender as razões de nossos antepassados abandonarem o lugar onde nasceram e de se estabelecerem em terras distantes e primitivas. Reconstruir a biografia de nossos ancestrais e espiar suas trajetórias de vida, buscando compreender seus sonhos, seus planos e desejos. Constatamos que não são muito diferentes dos nossos. Conhecer suas vidas é como olhar uma fotografia antiga: reconhecemos em nossa face traços deles. Nas suas histórias, descobrimos gostos, hábitos e crenças semelhantes. Tudo nos foi transmitido; estava parcialmente oculto, mas a verdade é que a transmissão é inapagável. Decidimos que os capítulos não se sucedam dentro de uma continuidade, não obedeçam à ordem cronológica, muito menos o mesmo estilo. Ao contrário, quando escrevo centro a narrativa no aspecto histórico, ainda que romanceado. Os relatos de Floriana estão revestidos de um realismo mágico. Entretanto, penso que as diferenças não prejudicam a obra. Pelo contrário, pois o que dá sentido à existência humana é a irregularidade. No prólogo, Helena, já idosa, descendente da família Guterres, acompanhada de sua neta Florência, volta à Estância de São Braz, lugar onde ela passou momentos importantes da infância e da adolescência. Na tentativa de juntar recortes buscados no passado, lembranças perdidas na memória voltam com força inesperada. Os capítulos que seguem alternam-se entre o 23


passado remoto, de séculos atrás, com acontecimentos não tão distantes. Histórias fragmentadas, costuradas em capítulos falados pelos mortos com outros contados pelas narradoras. Navegando Através dos Séculos é um romance com base em dados históricos. Não é fácil tirar conclusões em temática tão complexa. Muitas vezes nos sentimos impotentes em buscar caminhos para contar as histórias. Quanto mais investigávamos, parecia que nenhuma direção servia; momentos de silêncios nebulosos que pareceram intermináveis. Decidimos, então, seguir nosso ritmo, que não tem o ritmo das coisas perfeitas. Mas está repleto de emoções, de desejos e de muito esforço. Seguir o ritmo da avó não é tarefa fácil. Pude mergulhar fundo em suas memórias, reconhecendo Marlenes secretas e os passados que nos compõem geneticamente. Eu, que em óvulo já estive em sua barriga, fui devagar, encontrando os momentos e brechas para entrar na narrativa, como faço aqui nestas notas como autora que sou. Chego pedindo licença e a bênção da anciã para dar meus pitacos. Ser convidada para fazer este livro com minha avó é, quiçá, um dos maiores convites que já recebi; convite que me provoca e me surpreende a cada etapa desta grande viagem através dos séculos, na qual tenho sido constantemente convocada a apressar o passo, do contrário a “Dona Maulene” vai me deixando para trás. Em nossa caminhada como coautoras, devoramos livros, álbuns de fotos, cartas antigas e passamos horas conversando; eu ouvindo suas mais preciosas memórias. Também nos aventuramos pelos scanners, computadores e, mais recentemente, compartilhamos arquivos em nossa memória virtual no google drive. Pasmem! Sim, eu, a vó, Júlia, o revisor, com a ajuda de sua filha, nos aventuramos pelas inovações tecnológicas, desafiando os preconceitos e as limitações geracionais. “Dona Maulene”, que se criou na charrete e viu o carro nascer, hoje pilota o face, o whatsapp e agora o drive! Deve ser por isto que, em seus 83 anos, mantém a cinturinha, a sagacidade e o brilho de olhar da mocidade. “Dona Maulene” é o apelido carinhoso que a Baiana (logo vocês a conhecerão melhor) deu para Marlene. Helena é o heterônimo que Marlene se deu para mostrar-se para o mundo, vasculhar nas suas entranhas e dispersar-se 24


na eternidade. Florência é o nome que Helena deu para sua neta, e eu, continuando minha diversificação de espécie em Flor, incorporei. Aqui, portanto, serei Floriana, Florescência ou Putíra, nome tupi que significa flor, que eu mesma me dei logo após descobrir, neste livro, minha ancestralidade indígena. Inspirada pelos gráficos genealógicos, de Paulo Flores Pinto, e com a licença poética, que me é dada como autora e artista, eu fiz o mesmo com toda a nossa árvore, devolvendo nossa linhagem nomes vermelhos e sugerindo novas camadas nos registros históricos de nossa família; por que não na História da América do Sul? Agradecemos muitíssimo a Paulo Flores Pinto pela generosidade em ceder-nos sua pesquisa que lhe custaram anos de muitos trabalhos. Agradecemos, também, à Vanessa Campos, por esclarecimentos de fatos históricos. Ler textos de historiadores renomados, do Instituto Histórico, foi fundamental para entregar ao leitor um trabalho de ficção, mas sem adulteração de fatos relevantes da História do Rio Grande do Sul, história que se mistura com a saga da família Guterres. Finalmente, não podemos deixar de expressar o mais profundo agradecimento a Miguel Espírito Santo, leitor altamente qualificado, escritor de vários livros e historiador, presidente do Instituto Histórico Geográfico. Mesmo que nosso trabalho não se revele como pesquisa, ele, gentilmente, atendendo a nosso pedido, faz a apresentação desta obra. Somos gratas pelos esclarecimentos de dúvidas durante o tempo em que estivemos escrevendo. Esperamos ter absorvido suas explicações. Antecipadamente pedimos escusas pelos possíveis erros de interpretação. Lembramos, porém, que NAVEGANDO ATRAVÉS DOS SÉCULOS, não é investigação histórica; é apenas o pó dos tempos que escorre entre nossos dedos. Desejamos a todos boa leitura. Marlene Canarim Danesi e Floriana Danesi Breyer

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PRÓLOGO

O

Marlene Canarim Danesi

sol de inverno bate na cerca de pedra construída por escravos e desgastada pelo tempo. Sobe das profundezas das rochas um calor morno e uma poeira colorida. O vapor salta, um lagarto respira, festeja o ambiente, e volta assustado aos mistérios, escondidos no interior das pedras seculares. Quantas vidas conviveram ao redor daquele espaço, quantos segredos presenciados e guardados pelas rochas. Uma cobra-coral rasteja junto à relva, urubus revoam procurando carniça. O alvoroço das caturritas abafa o grito dos quero-queros. Silenciosa, imóvel, Helena contempla a cena embaixo do cinamomo. A vinte metros a casa dos avós, onde viveu anos dourados na infância e na adolescência. Recorda momentos perdidos na memória: lembranças alegres, que iluminam seu rosto, e outras que dilaceram o coração. Estas prefere guardar no mais íntimo do ser. Há mistérios que não precisam ser desvendados; o melhor mesmo é não serem falados. O silêncio é uma arte que aprendeu a cultivar; em determinados momentos aumenta o prazer das recordações. Mistura sonho e realidade. Vê a planície, a vastidão do pampa; na distância os verdes campos se confundem com o azul do céu. O passar dos anos embranqueceram os cabelos de Helena cobertos pelo chapéu de feltro, mas o clássico coque aparece sobre a nuca. Sente frio. Aperta, contra o corpo delgado, o poncho branco, indumentária adotada na campanha, que nunca deixou de usar; ela não desconhece que o tempo transforma ou sepulta todas as coisas. Ela mudou, a estância mudou; ambas nem sombra do que foram. Entretanto, o ambiente lhe parece familiar, as mesmas *  Foto à esquerda: Os irmãos Cezar Tadeu e Danilo Mazzini Canarim com Marlene sentados no muro de pedra construído por escravos na Estância de São Braz. 27


imagens do seu tempo de infância: os cinamomos, a cerca de pedra, o galpão e o horizonte. Porém, o mais idêntico é a emoção no peito, tal qual aos tempos de menina. Helena tem excelente memória; lembra muitos detalhes dos lugares onde morou no decorrer da vida. Mas as lembranças da Estância de São Braz, entre Lavras, Bagé e Don Pedrito, permanecem intactas, na memória da velha senhora. Era na imensa área central, que as crianças se reuniam depois do jantar para ouvir histórias dos mais velhos. Havia uma enorme caixa d’água vermelha, bem no alto, e um gigantesco cata-vento. Bem ao fundo desse pátio interno, do lado direito à despensa, no centro uma grande porta verde, ao seu lado o forno de tijolos em que a vovó fazia os saborosos pães e assava galinhas, porcos e cabeças de ovelha. No lado esquerdo, o banheiro com duas salas. Na primeira, a privada, a pia e um armário em que eram guardados as toalhas, remédios e papel higiênico; na outra, uma enorme banheira, com chuveirinho e um gigante cesto de palha. A seguir, a cozinha, o fogão a lenha e a mesa, na qual as cozinheiras estendiam as massas, deixadas em descanso, para depois serem transformadas em raviólis, pastéis ou empadas. A copa se comunicava com as duas salas de jantar, por portas de madeira com encaixes de vidro. Nas duas salas havia relógios de parede que badalavam de hora em hora. Do outro lado da área, ao lado da despensa, o quarto de um primo de Helena, com sérias deficiências. Não falava, e muitas vezes seus gritos ouviam-se na casa inteira. Logo a seguir, o quarto da governanta, do capataz e o escritório; quando não usado pelos homens, as mulheres ouviam rádio, conversavam e costuravam, mas sem deixar de tragarem seus cigarrinhos. A mãe e as tias de Helena eram fumantes. Os quartos e as salas de visita ficavam na parte da frente da casa. Lá estão concentradas experiências relevantes de Helena: alegria de viver, sensação de pertencimento e desejo de permanecer nos pagos. Mas ao mesmo tempo, as porteiras vermelhas sempre sinalizaram a saída para a imensidão do mundo. E ela saiu. Conquistou. Venceu. De volta da visita, no retorno da velha senhora, a lua cobre de prata o campo e as árvores. O vento minuano 28


começa a soprar, e as águas do açude, sempre tranquilas, se agitam. As franjas do poncho escapam e batem nas costas, nas coxas e nas pernas de Helena, tal qual acontecia quando cavalgava no baio ruano. A memória, de súbito, se aguça. Fecha os olhos. As lembranças se tornam mais nítidas e prazerosas. Tantas e quantas vezes ela correu descalço atrás das borboletas, fugiu de cobras, de zorrilhos e graxains. Gostava de subir em árvores, para espiar ninhos de pássaros e assistir ao nado do jacaré atrás dos sapos que infestavam o açude. Tantas e quantas vezes preferiu abandonar os folguedos infantis, no final da tarde, para ouvir histórias sobre seus ancestrais contadas pelos adultos. Conhecia muito pouco de geografia, para saber em que parte do mundo Holanda, Portugal, Ilha da Madeira e Espanha ficavam. Mas já conseguia localizar, no grande mapa do Brasil, que o avô tinha no escritório, São Paulo, Santa Catarina, Laguna e Rio Grande do Sul. Os nomes dos lugares confundiam seu entendimento de criança. Muitas vezes, não estava certa se Laguna se localizava em São Paulo ou em Santa Catarina, se Viamão era uma cidade do Rio Grande do Sul ou se ficava perto de Laguna. Mas tinha certeza de que Laguna e Viamão eram muito importantes nas histórias que ouvia. Se os lugares dificultavam a compreensão de Helena, as aventuras e personagens povoaram seu mundo interior, enriquecendo fantasias e aumentando sua criatividade. Envolvida pela magia das narrativas, Helena imaginava bravos navegadores, em antigas naus, desafiando mares revoltos; outras vezes, ela desenhava na mente, as figuras de valentes desbravadores, enfrentando os perigos das florestas, dizimando ou fazendo amizade com os índios. Mas todos eles sempre tentando conquistar novas terras. Adorava saber como, o fundador de Laguna Brito Peixoto, conheceu a índia Severina. Uma das histórias, que nunca compreendeu bem, foi a do valenciano, antepassado muito longe da sua avó materna, Dona Lydia. Desde o nome: chamava-se Agostino Gutierrez ou Agostinho Guterres? Porém, o mais difícil de compreender eram as razões do rei Filipe III ameaçá-lo de morte e ordenar sua expulsão da Espanha. Só porque não era católico, era mouro? Helena não sabia o que significava a palavra, mouro, porém sabia o que era católico. Toda sua 29


família praticava essa religião. Será que seriam capazes de fazer essas ameaças? Começou a pensar, que não era bom ser católico. Mas de todas as histórias, as que mais apreciavam eram as que diziam respeito aos amores. Os casamentos entre brancos e índios a deixavam intrigada. Conhecia índio por fotografia; estavam sempre nus; será que as índias que casaram com os parentes da vovó não vestiam roupas? Mais tarde aprendeu que o caldeamento não foi só em sua família, que todos os brasileiros são mestiços. Apreciava as narrativas sobre as amas de leite, mães pretas ou mães índias. Quando ouvia as descrições de indumentárias usadas nos bailes e outras festas por homens e mulheres, se imaginava vestida com elas. Os hábitos, usos e costumes herdados dos castelhanos, pelos charruas e minuanos, encantavam a menina. Eram ágeis cavaleiros e tinham carinho e respeito pelos cavalos. Ela também adorava cavalgar. Helena sabia e sabe tudo de um tempo em que não viveu; tempo que conhece muito bem, através do que lhe foi contado. Ao pensar na vida e no destino, um sorriso aparece no canto de seus lábios. Um sorriso misterioso, herdado de sua mãe e da vó Lydia. Um sorriso quase imperceptível, mas revelador, de que recordações, guardadas a sete chaves, no cofre da memória, estão de volta. O passado retorna, mescla de doçura e melancolia. Uma voz apagada pelo vento, passos próximos, e um leve toque no ombro, trazem Helena de volta ao presente. Florência sussurra: Vó, é melhor visitar o interior da casa agora. O vento parou de soprar, sinal que a cerração chega logo e vai esfriar mais. Entram pelo portão do lado, próximo ao antigo parreiral. Ela percebe a decadência. A Casa Amarela está em ruínas, mas em sua imaginação, o lugar continua tal qual a conheceu na infância. A casa de portas altas, laqueadas de verde-escuro, janelas retangulares, paredes caiadas, móveis de jacarandá. Relógio e retratos nas paredes, jarros e bacias de louça enfeitando os quartos. Tudo de simplicidade harmoniosa e acolhedora. Cada peça visitada uma lembrança e um comentário de Helena. A curiosidade de Florência aumenta à medida que ouve as narrativas da avó. Ela conta suas 30


próprias vivências e repete relatos que ouviu da mãe, dos tios e dos avós. Chegam à sala de visitas, de onde se vê o jardim e o potreiro. A neta indaga: Vó, é desta janela que assistias ao peão domar cavalos xucros? O sorriso misterioso, hereditário, acompanha a resposta. Corrige a neta. Peão, não, domador; exímio cavaleiro descendente dos valentes charruas e minuanos. Conta mais detalhes das lembranças. Florência, entusiasmada, conclui: Tuas histórias merecem um livro; gostaria de escrever junto contigo. As lembranças, subitamente, provocam em Helena uma energia revitalizante. Como se jovem ainda fosse, afasta a pesada cristaleira, aproxima-se da janela, abre o postigo, levanta a cabeça e olha através das vidraças. O desejo dá vida ao sonho; dentro da neblina cinzenta, cercado de uma aura dourada, vê a figura imponente do destemido gaúcho. Ele segura as rédeas com firmeza, o lenço vermelho esvoaça, o chapéu de barbicacho cai sobre os ombros. O cavalo corcoveia e se empina nas patas traseiras; luta entre cavalo e cavaleiro, mas a valentia de Jonas domina o animal. Enquanto episódios da infância e adolescência desfilam, como num filme em sua mente, Helena sente uma saudade incomensurável do Verão de 1941.

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A fonte Floriana Danesi Breyer Ri dos reis e dos que não são reis, E tem pena de ouvir falar das guerras, E dos comércios, e dos navios Que ficam fumo no ar dos altos-mares. Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer E que anda com a luz do Sol A variar os montes e os vales E a fazer doer aos olhos os muros caiados. Guardador de Rebanhos VIII,

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de Fernando Pessoa (Alberto Caieiro)

lorência estava cansada de ficar na Casa Amarela. Esteve ali, atenta, ouvindo a avó e já podia ver as janelas laqueadas, os móveis de jacarandá, os mapas no escritório: tudo tal qual num misto de imaginação e memória inventada. A neta gostava de ouvir as histórias da avó, mas na dose certa; sua atenção já estava do lado de fora, no Cinamomo. Aproveitando uma das pausas contemplativas da avó, Florência aproveita para “dar uma banda” (assim costuma dizer a Baiana), a inesquecível babá de criação de gerações da família: “Florisbela da calça amarela voando as tranças”… E lá estava ela voando as tranças campo adentro. Florência tem uma estranha e entranhada conexão com tudo que é vivo e também com o invisível. Para sentir melhor onde está, tem o costume de tirar os sapatos e ouvir a terra com a sola dos pés. E neste dia, assim o faz; quer escutar as histórias daquela terra antes de ser Estância de São Braz. *  Foto à esquerda: Primeira mamada de Floriana em sua mãe Carla Beatriz Danesi. 33


Vai deixando-se guiar pelos sopros do vento Minuano e pelos raios de sol que delineiam caminhos no pasto verde por entre as nuvens. Caminha e corre sem destino certo pelo mato ralo que aos poucos fica mais robusto e levemente adensado. Ali, sapos orquestram grilos, que grilam terras para as cigarras, e uma insistente mutuca que não para de atucanar… Florência começa sentir os pés molhados por uma franja de água. Ah! Este deve ser o Jaguarizinho onde Maria Joaquina se banhava, os jacarés moravam e as cinzas da bisa foram jogadas, pensa em voz alta. Florência sente sede; fica de cócoras e enche a concha das mãos de água. É uma água fria e cristalina. Sem hesitar, molha o rosto e, enchendo novamente a concha das mãos, banha a cabeça e, em seguida, dá um gole guloso sentindo o gelado escorrer por dentro. Neste instante, seu corpo flameja e começa a sentir cócegas que vão do ventre à boca do estômago e seguem até o pescoço. Murmúrios por dentro, em uma língua rara. Ainda de cócoras, resolve deitar-se e deixar-se molhar por inteira; fecha os olhos e é submersa pelo sussurro daquelas misteriosas águas. Os raios de sol, que seguem brincando entre as nuvens, passam a incidir sobre o corpo e suas pálpebras. É quando começam os flashes de memória. Verdadeiras cenas completas delineiam-se na tela mental de Florência. De onde vêm estas rápidas, intensas e distintas imagens? Por instantes, tem medo, quer mover-se e sair correndo dali, mas algo a mantém imóvel, quieta como que a convidando a acalmar-se. Curiosa e magnetizada, Florência trata de respirar fundo, relaxar as mandíbulas e entregar-se. Sua tela mental está preparada e começam as visões novamente; desta vez, mais claras e nítidas: vê mulheres correndo desesperadas; vê cabanas de palha pegando fogo; vê homens chicoteando cavalos e tudo o que aparecesse vivo pela frente; vê esporas e uniformes ensanguentados; vê úteros rasgados e costurados e espermatozoides velozes; vê e ouve árvores caindo e sangrando; vê sinhás lavando roupas brancas nos rios e outras tingidas de pau-brasil; vê flechas e mares pintados de sangue; vê velas tombando e seres de plumas trazendo água; vê onça atacando gado e 34


bolas de fogo abatendo onças; vê feras rasgando a mata e defendendo a cria; vê a solidão da noite, o rastro de estrelas, o calor do fogo e corpos pintados de urucum; vê algodões voando com o vento, mulheres tecendo abrigo e homensredes; vê peixes atrapados, conchas, restos e ossos virando montanhas; vê homens virando pássaros e laguna de patos; vê também uns velhos de pele enrugada de sol dando sopros de vida e sugando feridas da alma; vê o brilho de olhos de jabuticaba recém-nascidos e acanhados sorrisos; sente o peso de cabelos negros e lisos. Sente a pança grande e o ventre cheio; sente o cheiro de diferentes leites e o gosto de diferentes tetas; sente por dentro os anticorpos de amas de leite negro e vermelho; vê uma mancha vermelha na testa da criança e um grito forte: é menina! Num instante, um estrondo rompe os ares e as cenas cessam completamente. A menina abre os olhos e balbucia os últimos murmúrios: Minuanos, Carijós, Charruas… Levanta-se rápido; está entre assustada e maravilhada. Quanto tempo estivera ali? Vó Helena deve estar preocupada, queimando óleo2. Sai do córrego, começa a calçar os sapatos e, quando já está por sair, dá meia-volta, pega o cantil do vô Edil e enche de água da fonte.

Assim também dizia Baiana descrevendo quando vó Helena estava preocupada e esbaforida. 2

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BREVE VIAGEM NA HISTÓRIA DOS ANTEPASSADOS Marlene Canarim Danesi [...] por mares nunca de antes navegados...

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Os Lusíadas, de Luís de Camões

1 u, João Gonçalves Zarco, nasci em Portugal, por volta de 1385. Ainda muito jovem comunico aos meus pais o desejo de seguir a carreira marítima. Ser navegador é uma paixão que me acompanha desde a infância. Sonho em descobrir mistérios e segredos, que a imensidão do mar azul, como meus olhos esconde. Minha mãe, desgostosa; resquícios de antepassados austríacos fazem com que ela valorize a cultura e as artes, fala para meu pai: Desejo para João outro destino. A carreira que ele pretende seguir é cheia de perigos; desafiar esses mares bravios me deixa muito preocupada. Ele tem pendores para a pintura e para música; poderia dedicar-se as artes. Gonçalo, meu pai, aprova minha escolha. Tenta argumentar para convencê-la: João escolheu o caminho certo. É um orgulho, Beatriz, ver nosso filho integrar a poderosa força naval portuguesa. Ele desde criança demonstra inteligência e ousadia, é exímio cavaleiro e excelente atirador de arco e flecha. Meu pai tinha razão, sempre montei bem e conquistei vários campeonatos de esgrima. Só não era chegado aos estudos; no colégio me interessava por mapas e não por livros. Mas cresci em família católica, então era obrigado a ler a Bíblia e os Evangelhos. Pertenço à nobreza e carrego comigo duas características marcantes na história portuguesa: o cristianismo e o rei. Com as amizades de meus pais, não será difícil conseguir um posto destacado na tropa de sua majestade. Infante Dom Henrique é um antigo amigo dos Zarcos. *  Foto à esquerda: Monumento em homenagem a João Gonçalves Zarco. 37


As famílias se conhecem desde os antepassados. Protegido por ele, eu sou nomeado capitão-mor dos dragões, pelo rei Dom Afonso V. A princípio meu dever é acompanhar o rei em todas as ocasiões oficiais e não oficiais. Em muitas noites, o coche real é dirigido a festas e jantares, inclusive em mosteiros; orgias e bacanais dos nobres portugueses com fidalgas, freiras e madres. No início, aprecio aquela vida de prazeres, mas canso-me com a futilidade e a monotonia do trabalho que exerço. Porém, o que mais me revolta são as intrigas, mentiras e falsidade da Corte. Meu ideal é lutar pelo rei e defender a religião católica. Dominar os fantasmas escondidos nas ondas do oceano é outra meta que desejo alcançar. Aprendo a arte de marear, na qual os portugueses são talentosos. Portugal destaca-se, entre todos os países, em descobrir novas terras. Começo a fazer várias incursões nesse sentido. Ao mesmo tempo, sou designado para as missões de lutas e de emboscadas. Participo, então, da conquista de Ceuta, na África. Recebo o título de fidalguia. Navegador experiente (por serviços prestados à Coroa) sou tornado Donatário do Funchal. Em 1420, fixo residência na Ilha da Madeira, anteriormente descoberta por mim. Passo a ser conhecido como João Gonçalves Zarco da Câmara dos Lobos. Este acréscimo ao sobrenome é uma homenagem a um local descoberto por mim, onde habitam centenas de lobos-marinhos. Chego em Funchal casado com Constança Rodrigues. Em 1440, nasce um dos meus netos, um menino esperto, com a mesma paixão pelo mar, igual a que sempre tive. Pedro Gonçalves da Câmara dos Lobos torna-se terceiro Donatário de Funchal. Casa com Isabel de Barros. Minha bisneta, Catarina, é quem liga o destino dos Câmara de Lobos com os Leme. Uma família, cujas raízes iniciam em Bruges, cidade histórica da Bélgica. Decorridos séculos, idas e vindas dos Leme e dos Câmara, entre Bruges, Lisboa e Funchal, os descendentes dessas famílias atravessam o oceano e chegam no Brasil. Em São Paulo, os Lemes entrelaçam-se com os Guerra e os Prado. Os mais antigos ancestrais não imaginaram que aqueles que lhes sucederam fossem viver tão distantes de suas origens. Eu também não 38


imaginei esse destino para meus descendentes. Domingos de Brito Peixoto, bandeirante paulista, é membro de uma família nobre, filho e neto dos povoadores de São Vicente. Morou em São Paulo e Santos, onde ocupou cargos importantes. Apesar de abastado, mantinha o desejo de conquistar além dos limites entre Portugal e Espanha, em busca das riquezas do sertão. Sabia que lá existiam terras férteis, boas para lavoura e criação de gado. O objetivo, também, era ir procurar a mão de obra indígena, o chamado ouro vermelho e a cobiçada prata. Na excursão que vai com os dois filhos e a mulher, em 1684, Domingos custeia todas as despesas. Ele era casado com minha descendente Ana de Guerra Prado, cujas origens se confundem com o nascimento do próprio Brasil. O casal não permanece muito tempo em Laguna. Logo depois do retorno a Santos, ele morre. O filho Sebastião tem o mesmo destino. Com o falecimento de ambos, Francisco, o outro filho, leva adiante o projeto de povoamento do sul do país. É responsável pela fundação de Laguna, e torna-se capitãomor; em pouco tempo domina toda a região. Esse personagem, filho de Ana e de Domingos, semeou filhos em inúmeras índias carijós. Mas foi no ventre de Severina, uma índia que impressionava pela beleza e elegância, que foi gerada Maria de Brito Peixoto. Essa mestiça casa-se com o homem que veio de terras onde os cristãos massacravam judeus, mouros e ciganos: Agostino Gutierrez, natural do Reino de Valência. Inacreditável, que o gosto pela aventura e a curiosidade de descobrir novos lugares, que sempre senti, tenha raízes em minha descendência tão distante. Eu, João Gonçalves Zarco da Câmara dos Lobos, me aventurei por mares nunca de antes navegados. O valenciano e sua mestiça, minha descendente, aventuraram-se pelo Continente de São Pedro, dois séculos depois de minha morte, em 1443.

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CONQUISTA DO RIO GRANDE DO SUL E OS GUTERRES Marlene Canarim Danesi Quinhentos anos depois, é hora de retornar as mais altas tradições produzidas pelo povo de Portugal e um dos grandes momentos da história da humanidade. Assim, quando passam mais de três séculos da penetração no território indígena, que era espanhol por Bula Papal, é bom recordarmos de onde vieram ditos gajos. A história da Colônia do Sacramento é a razão maior da existência de grande parte do Sul do Brasil e de todo o Rio Grande do Sul. 1

José Antônio Souza Pinto Netto

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ão sou Guterres, meu nome é Edil Mazzini Canarim, mas sobrinho de Lydia Guterres. Ela casou-se com Davi Mazzini, irmão da minha mãe Brezolina. Casei-me com minha prima Nely, a sétima filha de Davi e Lydia. Nely e eu tivemos três filhos: duas mulheres e um homem. A mais velha não é gaúcha, nasceu na Bahia. Analisando as proezas da vida de nossas famílias, sinto que não há predominância de nenhum sangue dos muitos que correm em nossas veias. Somos mestiços, mas depois de uma sucessão de cruzas, diversos ramos se entrelaçam. Desabrocha identidade única: o gaúcho. Mesmo minha filha baiana adota esta terra como se aqui tivesse nascido. Costuma repetir: nasci em Salvador, por acaso, desde muito novinha cheguei em Bagé. Até aprendi a falar com sotaque da fronteira. Ela não deixa de ter razão; no início da carreira militar fui para Salvador. Quando 1  Foto à esquerda: Edil Mazzini Canarim como Tenente do Exército Brasileiro. 41


nasce nossa primeira filha, concluo o curso de Medicina na Faculdade Federal da Bahia. Retornamos para o sul dois meses antes da festa de seu primeiro ano de vida. Como oficial do exército, conheço muitas cidades gaúchas e suas histórias; nessas histórias, muitos Guterres; um nome espalhado pelo interior do estado e relacionado com a conquista do Rio Grande do Sul. É importante conhecer o passado para entender quem somos. Deixar de ser possessão espanhola e ter passado para o domínio de Portugal é uma longa história desconhecida por muitos gaúchos. Como os Guterres estiveram presentes nessa trajetória, penso ser indispensável conhecê-la. Tudo inicia na época do Tratado de Tordesilhas que estabeleceu os limites entre Espanha e Portugal. Naquele tempo, os tratados entre países e as bulas papais tinham valor de lei universal. Entretanto, os textos eram dúbios, talvez propositadamente. E essas imprecisões faziam com que os mais fortes impusessem suas vontades. Quando por casamentos ou heranças as Coroas se entendiam, havia tranquilidade. Mas o desacordo e a desunião provocavam guerras entre os dois países. Esses conflitos repercutiam na América. O Tratado nunca foi respeitado nem por portugueses, nem por espanhóis. Nessa luta pelo poder, a Colônia do Sacramento joga importante papel. O domínio espanhol passa a ser alternado com o português. Entre Laguna, limite português, e Sacramento há o imenso território do Continente de São Pedro; Portugal pretende ocupar essas terras. O brasileiro Salvador Correa de Sá, filho do governador do Rio de Janeiro, percebe, pela primeira vez, as possibilidades na povoação do sul. E ter uma ligação por terra, entre Laguna e a Colônia do Sacramento, é relevante para a Coroa portuguesa. Uma das razões é que a costa litorânea do Continente de São Pedro não favorece a aproximação das naus. Oficialmente, a cidade mais antiga do Rio Grande do Sul foi fundada no século XVII. Mas muito antes os portugueses já percorriam o território indígena, que pertencia à Espanha. O contato com os índios foi sempre de forma violenta. Os bandeirantes paulistas não só queriam o gado dos indígenas, como também escravizá-los. Em Santa Catarina, 42


as vítimas foram os carijós; no sul os tapes. Somente bem mais tarde, os portugueses encontram, nos pampas, índios exímios cavaleiros e excelentes no manejo com o gado, os charruas e minuanos. Interessados nessas habilidades desenvolvem relação pacífica com eles; relacionamento fundamental na formação dos gaúchos. O sangue desses índios é marcante em toda a nossa descendência. Muitos séculos depois de caldeados, conservaram as capacidades dos antepassados e tornaram-se capatazes e peões dos fazendeiros da fronteira. Na estância de meus sogros, Davi Mazzini e Lydia Guterres Mazzini, os empregados tanto na formação, como na indumentária e nos costumes, apresentavam essas características passadas através das gerações e herdadas no convívio de seus antepassados com os castelhanos. O tipo clássico do gaúcho tem enorme influência da cultura charrua. Minha mulher, meus filhos e toda família Guterres Mazzini passavam férias em São Braz. Tenho certeza de que a imagem do índio charrua é que predomina no imaginário de todos eles. Em conversas com minha filha sobre o tipo característico da campanha, ouço dela: pai, para mim o gaúcho é uma figura máscula, desafiadora, que talvez tenha existido apenas na minha fantasia, mas é a imagem idealizada, que fez parte dos meus sonhos de adolescente, e penso que é assim que o gaúcho é visto. Os charruas eram descritos como corpulentos e bemfeitos. Costumavam usar os cabelos soltos e um poncho primitivo atado com uma tira de couro por cima dos ombros e diante do pescoço. Envolviam-se da cintura ao joelho com um pano de algodão (chiripá) e traziam sempre entalada entre a tanga de algodão e a cintura, uma bainha de couro cru, onde enfiavam a famosa faca flamenca. Mostrei para minha filha, em livro antigo, desenho de um índio charrua. Ela comentou: perfeito, meu pai, é a imagem que guardo na memória de certo domador, que me ensinou a cavalgar; deveria ser descendente de charrua. Os Guterres são protagonistas de momentos relevantes da conquista do Rio Grande do Sul: primeiros povoadores, tropeiros desbravadores de estradas e guerreiros; grande contribuidor no alargamento das fronteiras e na defesa do 43


território. O Rio Grande do Sul, dos estados brasileiros, é o que tem o maior número de quartéis, resquícios da época em que os gaúchos viviam de armas nas mãos. Eu, como tenente e capitão, servi em várias cidades de fronteira, ou cidades em que a presença militar fosse exigida: Bagé, Quaraí, Uruguaiana, Santa Maria, Ijuí e na capital. Depois de major é que saí de Porto Alegre e fui morar por pouco tempo em Curitiba. Como general, fui transferido para o Rio de Janeiro. Voltei para a capital gaúcha como marechal Edil Mazzini Canarim, onde permaneci até minha morte. Uma das lendas que circula na família é sobre o caderno de anotações de Agostinho. Minha sogra contava que aprendeu, com sua avó e madrinha Joaquina Guterres d’Alexandria, vários episódios da conquista do Rio Grande do Sul. Uma das histórias mais interessante, e pouco conhecida, é sobre o roteiro de Domingos Filgueira, uma espécie de mapa, que seu antepassado sempre carregava. O roteiro tratava de uma aventura inacreditável. Filgueira era espanhol, como Agostinho, e vivia em Colônia do Sacramento. Em 1703, os moradores cuidavam da cidade, com belas quintas, granjas e estâncias. É de lá que parte Domingos Filgueira, para estabelecer o roteiro que seria a ligação por terra com o Brasil, acabando com a dependência marítima. Ele sai a pé de Sacramento e vai até Laguna. A viagem dura quatro meses. É um documento precioso e sintético, mas no conteúdo essencial, minucioso, considerado relevante na conquista do Rio Grande do Sul. O autor foi um misterioso personagem; fez recomendações e indicações detalhadas; traz dados objetivos, descreve os acidentes geográficos e dá explicações de como vencêlos. Alerta sobre os animais perigosos, fala na alimentação, de tudo que se pode comer e o que deve ser evitado. Os ensinamentos contidos no roteiro foram muito importantes para a conquista e povoamento da região sul. O caminho traçado por Filgueira ficou conhecido como Caminho da Praia. A partir dessa viagem, a região começa a ser trilhada por tropeiros, para levarem gado para Minas Gerais. A exportação de couro foi facilitada. Fixar os luso-brasileiros, nos caminhos do sul, começando 44


pelos lagunenses, foi outra consequência da ligação por terra entre Sacramento e Laguna. As descrições das matas, várzeas, encostas, lagoas e rios é de precisão inacreditável. A fauna e a flora também são desenhadas, com palavras, de forma meticulosa. Um guia que facilitou a locomoção dos viajantes. Guterres usou o roteiro para fazer o caminho inversamente; levou um pouco menos de tempo que Filgueira. Saiu de Laguna, acompanhado de Cristovão Pereira de Abreu e de um grupo armado de espingardas, prontos para enfrentarem onças e jaguares. Descansaram uns dias na barra de Rio Grande; lá foram aconselhados a levar cães. Agostinho fez muitas anotações dessa viagem. Deixou registrado que só não se perdeu entre Rio Grande e Castilhos graças ao roteiro de Filgueira. O documento deixado por Agostinho, e preservado através de gerações, são fragmentos, muitas vezes ilegíveis, mas só posso agradecer a quem fez a restauração, uma colagem artesanal de recortes que possibilitou conhecer um pouco dos caminhos trilhados por Guterres que participou da Conquista do Rio Grande.

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AS TRÊS BAIANINHAS Floriana Danesi Breyer O Sertão é o terreno da eternidade. 1

Guimarães Rosa

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á me espiando? Para de me espiar! A baianinha tira o chinelo do pé, o agarra com uma das mãos e se preparara para dar uma chinelada. Você continua me imitando! Vou te dar uma chinelada! Ela se aproxima para dar uma chinelada e dá de cara com espelho que ficava na sala da Casa Grande. Nely via tudo, escondida atrás da porta, observando aquela baianinha xucra que acabava de ganhar. Maria de Lourdes Ribeiro da Silva era o seu nome de batismo, registrada em Santo Amaro. Nely e Edil, recém-casados, foram transferidos para a Bahia. Edil, militar, passava o dia todo no quartel, Nely ficava muito tempo só. Uma de suas companhias era Dona Pequena, a lavadeira. Que certo dia resolveu trazer-lhe duas Baianinhas para criar.

– Edil, acho que vou ter que devolver as baianinhas. Elas não vão se adaptar, disse Nely no dia que elas chegaram, acariciando sua barriga grávida de Helena. – Faz o que achar melhor, respondeu Edil No dia seguinte, Nely mandou chamar Dona Pequena. – Escuta, acho melhor elas voltarem para Santo Amaro, elas não vão se acostumar aqui, não tão nem comendo direito da nossa comida. 1  Foto à esquerda: Maria de Lourdes Ribeiro da Silva (Baiana) e Marlene na escadaria da casa dos bisavós Fidelis Guterres e Aurélia Marques. 47


– Oh, dona, não faz isso não! A mãe delas foi embora faz tempo, o pai trabalha o dia todo e eu já não tenho condições de sustentar as bichinhas. Elas vão ter melhores condições com a senhora aqui na capital. – Vamos esperar mais alguns dias para ver como elas se portam; aí te aviso. – Não sei como te agradecer. Vai ser melhor pra elas! – Vai com Deus. – Fica com ele. Nely estava grávida de Helena e ficava olhando aquelas duas baianinhas; deviam ter uns 6, 7 anos cada uma. Pôs-se a cozinhar arroz carreteiro; tinha trazido na bagagem de navio do Rio Grande do Sul: o arroz e o charque. Nely pôs a mesa, chamou a todos. Primeiro serviu o marido, depois a primeira baianinha, Idê, e em seguida Maria. As duas se entreolharam, olharam para Nely e puseram-se a comer de colher, esbaforidas e lambendo os beiços. O carreteiro de Nely era delicioso! À tarde Nely as avistou brincando no pátio, mas de tardinha ouviu uns murmúrios e viu uma delas chorando na escada que dava para a cozinha. No outro dia de manhazinha, mandou chamar a avó das baianinhas novamente. – Acho melhor você levar de volta as baianinhas, elas num vão se adaptar aqui. E foi fazer a mala das gurias. Dona Pequena baixou a cabeça e ficou a espera das crias. Nely preparou a mala com as roupinhas novas, que tinha comprado para as meninas, os sapatinhos, os vestidinhos e as ceroulas. Botou tudo na mala e disse: – Acho melhor vocês voltarem para casa. Sou a Madrinha de vocês, e podem me visitar quando quiserem; mas voltem para a casa com a avó, ela tá lá na sala esperando vocês. E as baianinhas saíram correndo com as malinhas na mão ao encontro de Dona Pequena. 48


Quando estavam saindo, Maria levantou a cabeça e olhou para trás e se viu novamente no espelho da Casa Grande, e à medida que chegava perto da porta, ia vendo aquela menininha indo embora. Nely observou a cena, enxugou uma lágrima e mandou um beijo de longe para as irmãs. Neste momento, por primeira vez sentiu a terceira baianinha se mexendo em sua barriga, como que acenando para as outras.

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Dona Nininha 96 anos em sua casa no povoado Paus Verdes, onde Floriana foi acolhida como família numa comunidade tradicional no Sertão da Bahia. Na foto Dona Nininha e ao fundo uma colagem de uma porta, trabalho artístico de Floriana em homenagem a anciã. 50


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O SILÊNCIO DOS SERTÕES Floriana Danesi Breyer Despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras, agravando todas no aspecto paupérrimo o traço melancólico das paisagens... Veem-se, porém depois, lugares que se vão tornando crescentemente áridos. Os sertões, de Euclides da Cunha 1

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aria e Idê voltaram caladas, e sua vó mantevese muda todo o caminho. Só se ouvia aquele silêncio atroz e seco que, às vezes, paira no sertão, e o arrastar das chinelas das três rumo ao casebre. Moravam bem longe, nas aforas de Santo Amaro. Era preciso pegar um ônibus, esperar carona num carro de boi e ainda cruzar um riacho para chegar em casa. Quando chovia o riacho crescia; tal qual aquele dia que chovia uma chuva arretada. Lá estavam as três: a galinha e as pintinhas ensopadas. Quando chegaram no riacho, Dona Pequena resolve quebrar o silêncio e alertar as pintinhas para arregaçarem as calçolas. – Vão embarrar a roupa nova. Maria tirou o vestidinho e a calçola, fez uma trouxinha com as roupas e ajeitou-a na cabeça. Lá estavam as duas baianinhas só de calcinha atravessando o riacho. Equilibravam as malas na cabeça como costumavam fazer com as bacias depois de lavar a roupa no rio, que já batia na altura das tetinhas. Chegaram em casa, vestiram as roupas surradas e foram cumprimentar o pai, que roncava meio bêbado na sala de pau a pique. Enquanto isso, a lavadeira lavava os vestidinhos brancos, 1 Foto à esquerda: Casa de pau a pique e cerca de madeira no sertão da Bahia.  53


encardidos do caminho e esperava o Sol para quarar a roupa no varal. Idê e Maria se olharam meio perdidas, entre felizes de voltar e desconsoladas naquele silêncio de sertão. Foi quando a avó chamou: – Ideeê! Mariaaaa! Bora colher fruta-pão, que em casa num tem comida, não! E as baianinhas saíram correndo com os pés descalços. As três percorreram todo o quintal e puderam encontrar algumas frutas-pães, colheram madeiras, gravetos e acenderam o fogão. Fruta-pão, manteiga e café; o açúcar havia acabado, e a farinha estava no fim; era chegada a hora de farinhá de novo. – Vó, quando agente vai farinhá? – Ainda num tá na época de colhê a mandioca, Maria, tem que espera um cadinho mais pra agente ir pra casa de farinha.

Maria e Idê adoravam fazer farinha, era quando todos os vizinhos juntavam-se para se ajudarem, sem falar na fartura… Era beiju para cá, beiju para lá, farinha e tapioca para guardar. Mas ainda num estava na hora e aquele ano tinha chovido pouco; era capaz de nem ter muita mandioca. E a farinha já estava no fim. Quando Idê foi dar o primeiro gole do café amargo, escutaram os galopes. A avó levantou-se de prontidão e correu para janela: eram eles! As três levantaram-se da mesa; Idê e Maria correram para fora e ali ficaram na porteira avistando o bando chegar. E eles chegaram. – Se acheguem, gritou a avó, abrindo a porta de madeira da casinha de pau a pique. E ali estavam eles: um bando de homens e umas poucas mulheres todos enfeitados de chapéu, colete e botas de couro. Era o Bando de Lampião; ao menos assim os chamava a avó. Eles entraram, sentaramse e picotearam o que a vista avistou sobre a toalha de renda branca, que cuidadosamente cobria a mesa de madeira. – Tem café? Perguntou o de chapéu mais robusto? – Recém passei. – E o açúcar? – Acabou. Respondeu Dona Pequena olhando para baixo. 54


– Traz o açúcar para comadre! Ordenou o capitão a alguns do bando que saíram para buscar a encomenda: açúcar, farinha, carne de sol, arroz, manteiga de garrafa, azeite de dendê, sal e café. Era o rancho do mês. Maria adorava quando vinham, não só pela comida, mas pelas roupas que vestiam aqueles seres de coletes e chapéus estrelados. – A bênção, comadre. Inté mais veiz! Disse o grandão virando o copo de café, cumprimentando a vó e arrancando porteira afora. Idê e Maria ficaram ali na janela, apoiadas no batente de pau a pique acompanhando os chapéus e cavalos sumirem no horizonte. Depois voltaram para mesa e merendaram com a avó. Passaram-se alguns meses que pareceram anos naquela mansidão de sertão… O bando não retornou. O pai aparecia pouco e a lavadeira, como de costume, estendia as roupas brancas no varal. Nesse dia, por entre os lençóis e toalhas de renda ainda úmidos, surgiram as baianinhas vestidas com seus vestidinhos brancos, dizendo: – Vó, agente quer voltar para casa da Madrinha Nely. – Ave, Maria! Grita a avó ajoelhando-se e abraçando as baianinhas. E as três, em silêncio, abraçaram-se num abraço longo e apertado. Levantaram-se e foram até o quarto, pegaram as maletinhas, puseram o par de roupas que tinham e esperaram o carro de boi, que não demorava a passar. A avó foi até a cozinha, pegou biscoitos de polvilho e a cacimba com água da cisterna. Estava tudo pronto para rumar para Salvador. As três subiram do carro de boi. Maria e Idê, sentadinhas, viram por entre a poeira, que levantava no andar da carruagem, sumir no horizonte o casebre e os muros caiados de terra rubra. Chegaram a Salvador, tingidas da cor da saudade, silenciosas e esperançosas do futuro que as aguardava. Ao longe avistaram Nely. Saíram correndo ao seu encontro abraçando a barriga que já se mostrava. A vó ajoelhou-se novamente diante das meninas e disse olhando para Maria: vocês vão pra longe com a Madrinha, mas jamais esqueçam que são baianas. E assim foi por toda a vida, no verão e no inverno: Baiana de havaianas, chinelas que nunca mais pisaram no sertão. 55


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Marlene com 8 anos, alimentando o primeiro cavalo que ganhou de presente de seu avô David na Estância de São Braz. 57


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RETRATOS DA INFÂNCIA Marlene Canarim Danesi Os Centros de Tradições gauchescas exaltam o índio velho, a indiada valente, a china ou chinoca atraente, numa evocação ao índio gaúcho das nossas estâncias, ao mestiço valoroso das coxilhas rio-grandenses.

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Ruben Neis

pesar de só ter seis anos, nunca esqueci o verão de 1941. Inúmeras lembranças (às vezes, se misturam no espaço e no tempo) estão gravadas na memória. Até porque o relógio da infância anda muito mais devagar do que o de agora. Inesquecíveis recordações. A mais prazerosa é a do dia em que, pela primeira vez, montei a cavalo. Seria exagero concluir que o acontecimento provocou mudanças significativas na minha vida. Porém, afirmo que saber cavalgar modificou a forma de ver o pequeno mundo em que vivia. Ele ficou maior, mais interessante, e abriu meus horizontes. A partir dessa conquista, tive a possibilidade de acompanhar meu avô nas atividades campeiras. Cavalgar provocou em mim uma sensação de liberdade, além da identificação com minha mãe. Ela era excelente amazonas. Mas o mais importante de tudo foi conhecer cada canto da Estância de São Braz, um espaço que nunca deixou de ser o útero dos descendentes de David Mazzini e Lydia Guterres. Naquele longínquo verão, as coisas não andavam bem; iam mal. Provavelmente, porque a seca já durava uma eternidade. As últimas chuvas, de mais de três meses atrás, tinham sido insuficientes. E os campos não voltavam a ser os lençóis verdes que encantavam os olhos dos visitantes. * Foto à esquerda:  Marlene aos 2 anos brincando com Tody seu primeiro cachorro. 59


Tinham permanecido viçosos até a última primavera. Olhar os campos amarelecidos causavam dor e desesperança. Uma praga de gafanhotos invadiu a fazenda; a grama sumiu na imensidão das planícies. Somente as ervas daninhas cresceram na terra arrasada e pareciam felizes com o espaço ocupado. O potreiro e as invernadas, verdadeiros tapetes vivos e borbulhantes, são de um marrom amarelado. O sol queima com voraz intensidade. O gado magro, pela falta de alimento, procura a sombra dos umbus. Os cavalos vão até o açude, e com as patas afastam a camada de pó, misturada a um muco viscoso, em busca de água limpa. No galpão, os peões permanecem silenciosos e imóveis, anestesiados pelo calor e esgotados pela lida campeira. Nem as crianças correm e brincam; há um silêncio nebuloso em vez do burburinho costumeiro. Sentada em uma almofada, junto à cadeira de balanço do meu avô, tento ler o Polichinelo, primeiro livro de estória, presente de meu pai. O nome é difícil; então peço auxílio para avó Lydia. Ela está ocupada, entre servir chimarrão para o marido e rezar para os santos que mandam na chuva. Mas não deixa de me ajudar. Pacientemente, explica-me o significado das palavras mais difíceis, e eu aprendo a soletrá-las. Não entendo bem, por que há tanta tristeza e preocupação nos olhos das pessoas. Elas não param de olhar para o céu. Vovô comenta com a mulher: quando teus santos vão mandar aparecer as nuvens cinzentas de chuva? Espero vê-las logo. Mas o céu continua transparente, e quando uma pequena nuvem aparece, torna a desaparecer. A demora, em o céu escurecer, retira a esperança de que o sol pare de castigar a terra e os homens. O peão caseiro se aproxima das “casas”. Os bois, Mimoso e Malhado puxam a velha pipa. O olhar desolado de meu avô assiste à cena. O peso dos animais e o das rodas das carretas levanta a poeira vermelha. O pó colorido sobe e flutua no ar, como um manto sufocante. O suor escorre pelo rosto reluzente de Líbório, único empregado negro da estância, a quem minha avó dedica afeto especial. É o homem de confiança de meu avô. Muito amado por mim e por meus primos, para nós sempre será tio Preto. Ele é tratado diferente dos demais agregados. Meu avô 60


explica a diferença da cor e do tratamento: Libório é filho de escravo, beneficiado pela Lei do Ventre Livre, foi criado junto com Doca (apelido de minha avó). Os peões daqui de São Braz, como toda a criadagem, são mestiços, resultado do caldeamento de charruas e minuanos com tapes, guaranis, portugueses e, muitas vezes, negros entraram na mestiçagem. Mas a marca dos primeiros é muito marcante na peonada; charruas e minuanos foram excelentes cavaleiros e acostumados as lidas campeiras. Vovô termina de me dar explicações e pergunta para tio Preto: será que esta chuva vem, Libório? Vem, sim, patrão, e não demora muito. Na metade da tarde, surgem as esperadas nuvens de chuva, e com elas uma pequena brisa. Os primeiros pingos grossos abrem buracos na terra castigada pela estiagem. Um sorriso de todos os dentes aparece nas caras dos empregados e do patrão. Meu avô olha para o céu, levanta-se e abre os braços, para sentir a direção do vento. Continua sorrindo, mesmo quando o céu escurece. A brisa cresce e se transforma em rajadas. O vento forte ergue a poeira, arranca os galhos ressecados dos pessegueiros. A chuva cai forte e depois de mansinho. Quando a fúria dos ventos vai cessando pouco a pouco, todos festejam. A alegria é contagiante. Feliz da vida, vovô até ensaia passos de dança. Assovia uma canção italiana e me ensina: Helena, isto é ouro que cai do céu. Danço também contagiada pelo entusiasmo dele. Sensação gostosa invade meu corpo, enquanto a água molha os cabelos, escorre pelas costas, alcança coxas e pernas. O temporal amaina e a calmaria desce sobre os campos. Ninguém tem pressa de trocar as roupas molhadas. Paira no ar a sensação de frescor. A brisa suave retorna, o arco-íris aparece e um sol tímido volta a espiar entre as nuvens brancas e o céu azul. A alegria move os habitantes de São Braz. Os peões deixam o galpão e começam a arrumar os pequenos estragos do curto vendaval. Aspiro o ar fresco, encho as narinas e os pulmões; quero guardar comigo o prazer do momento. A felicidade dos meus avós é visível ao ver as crianças correrem e brincarem, como faziam antes da seca. De repente, vovô lembra-se de cumprir a 61


promessa que me fez no início das férias, esquecida pelas preocupações. Chama Jonas e fala: encilha o petiço baio ruano; hoje é um ótimo dia para minha neta aprender a cavalgar. E tu serás o professor, quero alguém que saiba ensinar bem. Não quero ninguém da familia maturrango. Mas só na invernadinha, atrás das mangueiras de pedra, lá a água já escorreu. Jonas não era peão da estância, era domador de cavalos xucros. Como os demais empregados era mestiço. Entretanto, o sangue dos charruas e minuanos se fazia presente em sua figura e em suas habilidades. Como seus antepassados, um temível e ágil cavaleiro. Foi professor dedicado e amável; ensinou-me todos os segredos da arte de montar. Aprendi rapidamente. A voz de Jonas permanece em meus ouvidos: Só existe um lado de montar, e o cavalo precisa sentir que o comando é do cavaleiro; o condutor não pode demonstrar medo. E não esqueça que o rebenque e as esporas são usados somente em determinados momentos. As aulas de montaria e a doma de baguais passaram a ser, para mim, uma das maiores motivações das férias de verão na Estância de São Braz. Na adolescência me apaixonei pelo professor. Impregnada pelos romances em que donzelas eram raptadas por belos cavaleiros, desejava que o mesmo acontecesse comigo. Na ingenuidade dos meus 14 anos, sonhava ser raptada por Jonas. Forte, musculoso e tão bagual quanto os cavalos que domava, trazia nos lábios o sorriso de quem se sente superior. Para mim, sua figura se parecia com o personagem do romance O SHEIK. Vibrava de emoção, quando ele colocava a mão na minha cintura para me ajudar a montar. Retribuía o gesto com uma mirada de meiguice morna, mas cheia de amor. À noite, sozinha em meu quarto, fantasiava situações amorosas. Às vezes pensava até que cometia pecado com determinados pensamentos. Sentia prazer quando imaginava ser acariciada por Jonas. Muitos anos depois, em uma sessão de análise, comentei: o segredo nunca revelado da minha paixão pelo domador de cavalos, com certeza não foi tão bem guardado como eu imaginava; foi percebido pelo menos 62


por duas pessoas. Meu avô, porque terminou com as aulas de montaria. Uma tarde me chama e me comunica o fim das aulas: Minha neta, já aprendeste o suficiente, não precisas mais de professor. Hoje tenho quase certeza de que Jonas também sabia da atração que despertava em mim. Desconfio, também, que a atração era recíproca, pela maneira que passou a me olhar. Até hoje sinto gosto daquele índio me observando. Nunca mais alguém me olhou daquele jeito: olhares silenciosos de desejo. Foi-se meu avô, foi-se Jonas, foi-se a estância. Mas as lembranças do verão de 1941, quando montei pela primeira vez, permanecem intactas em minha memória.

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O FANTASMA DAS ENCHENTES Marlene Canarim Danesi [...] Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas adentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas...

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Sapato Florido, de Mário Quintana

Rio Guaíba fascinou os primeiros habitantes de Porto Alegre: os casais de açorianos. A beleza do imenso rio, que reflete um pôr do sol incomparável, não foi a única razão do encantamento. Os portugueses tiveram a certeza que teriam água abundante. Entretanto, não sabiam que esta beleza e esta generosidade teriam um preço. Desconheciam que, o caudaloso e generoso, Guaíba, na verdade, é o desaguadouro de cinco extensos rios. Sendo assim, a cada chuva forte sobe o nível das águas dos rios Jacuí, Caí, Gravataí, Taquari e Sinos, transbordando o Guaíba. As áreas mais baixas da cidade são alagadas. Porto alegre é uma cidade vulnerável às enchentes. E pelo menos a cada dez décadas, acontecem grandes alagamentos. A primeira inundação registrada, em 1873, foi a mais dramática do século 19. As grandes enchentes que castigaram e ainda castigam a capital gaúcha, quase sempre acontecem em setembro e outubro. Razão pela qual são denominadas enchentes de São Miguel. Justamente porque se festeja, em 29 de setembro, o dia do santo com este nome. Entretanto, *  Foto à esquerda: Marlene com menos de 2 anos em Bagé recém chegada da Bahia. 65


nenhuma foi tão devastadora, como a grande tragédia que fugiu a esta regra: a enchente de abril e maio de 1941. Eu tinha meus seis anos de idade. Um ano marcante na minha vida. Recortes de acontecimentos fragmentados, narrativas e pessoas daquela época, povoam ainda hoje meus pensamentos. Um mundo distante, repleto de doces lembranças, continua presente, como se o tempo não apagasse a nitidez das recordações. Algumas vezes, realidade e fantasia estão mescladas, até porque entre o falso e o verdadeiro a distância é bem curta. Foi um ano em que muitas coisas aconteceram. Quando eu tinha seis anos aprendi a cavalgar, na Estância de São Braz, o que me causou muita alegria. Não poder voltar a Porto Alegre (a enchente de 41 não permitiu), deixou-me triste demais. Fui forçada a ficar separada de meu pai. Para me consolar, visitava o Sr. Pascal, vizinho de meu avô, que considerava o francês maluco, porque comia lesma e passava o tempo todo envolvido com caixinhas de música. Eu gostava de ouvir as belas histórias que ele contava, sobre castelos, reis, rainhas e bailarinas; tinha predileção pelas bem antigas. Narrativas de aventuras, homens destemidos que atravessaram mares e oceanos em barcos impulsionados por velas e hélices. Na minha imaginação, eram os deuses que empurravam as caravelas. Histórias contadas por muitos narradores, que não estão mais neste mundo. Onde estão não tenho certeza. Sei que dormem em algum lugar; não profundamente; às vezes acordam. É quando ouço suas vozes que fazem com que recordações voltem com força como se fossem presentes. Lembro bem como começou o que seria a enchente de 1941. Tudo inicia com uma chuva densa e fria. Logo depois, a fúria dos ventos transborda o açude em frente da Casa Amarela. Os verdes campos do potreiro ficam alagados. O temporal silencia o grito dos quero-queros e das caturritas. Quando a água invade o galpão, meu avô, assustado, comenta com minha mãe que a seca foi devastadora; todos nós rezamos e queríamos a chegada da chuva, mas São Pedro não precisava exagerar e mandar tanta água. Vamos ter que voltar para Bagé, antes de ficarmos ilhados aqui na estância. Lá compraremos as passagens de trem, 66


para voltares com as crianças para Porto Alegre. Teu marido deve estar preocupado. Ouvi na Farroupilha, que a situação mais dramática é da capital gaúcha. A enchente avolumase e grande número de pessoas foi obrigada a abandonar suas residências, invadidas pelas águas. Realmente, meu pai estava apreensivo. Assim que chegamos a Bagé, mamãe lê em voz alta a carta que já esperava por ela. Ele escreve: Terça-feira, dia 22 de abril. No momento em que chego ao quartel, raios e trovões estremecem a cidade. Desde então uma chuva impiedosa castiga Porto Alegre. Já existem muitos flagelados. O fantasma das enchentes ressurge. Dia a dia, nossa preocupação aumenta. O comandante convoca uma reunião, e somos informados que o quadro é assustador. Os rios que deságuam no Guaíba transbordaram. As ilhas estão sendo engolidas pelos temporais. No centro da cidade, a água já alcança a cintura. Recomenda-se não se arriscar atravessar a rua a pé. Já não há mais lugares nos albergues. As aulas estão suspensas, as águas atingem o subsolo dos Correios e Telégrafos. Estou trabalhando muito, com meus colegas. Cabe ao Exército a instalação de cozinhas de campanha em várias instituições. E junto com a Marinha, estamos usando lanchas para transportar pessoas, mercadorias e máquinas. Os radiotransmissores das forças armadas são o meio mais eficaz de comunicação. Mas minha preocupação é grande de estar longe da família. Vocês precisam voltar logo. Com saudades, Edil Apesar do desejo de minha mãe, não foi possível seguir a recomendação dele. Com a enchente avolumando-se, os serviços públicos pouco a pouco deixam de funcionar. Logo depois os navios e os trens param. Somos forçados aguardar em Bagé o tempo melhorar. As ferrovias precisam retornar à normalidade, para que as viagens sejam possíveis. A espera é muito maior do que minha mãe imaginava. Meu pai torna a mandar notícias nada animadoras. As chuvas, que chegaram com a Páscoa, fustigam a capital gaúcha por 22 dias. A força da natureza parecia acomodar-se quando, no dia dois de maio, a chuva arrefece. Mas os flagelados não se livram do pesadelo; o alívio esperado não acontece. A enchente aumenta; o vento sudoeste represa 67


o Guaíba e traz suas águas para dentro da cidade. Porto Alegre transforma-se em verdadeira Veneza. Falta luz, falta água; as oficinas dos jornais são alagadas e a Praça da Alfândega submerge. Meu pai, através do radioamador do quartel, único elo de comunicação que resta, recomenda: melhor ficarem em Bagé. No primeiro trem que é liberado, minha mãe decide voltar. Meu avô implora: não vá Nely, a viagem é uma temeridade. Os rios ainda não voltaram ao seu curso normal. Mas ela não se intimida. O desejo de voltar para a casa, ultrapassa o medo de enfrentar os efeitos da enchente. Na ingenuidade de criança, não tinha noção de que vovô tinha razão. Para mim, foi apenas uma aventura maravilhosa. Recordo com clareza: o trem passa pelas pontes, em trechos ainda submersos pelas águas, e imagino que viajamos em um grande barco. Uma embarcação empurrada pelos deuses, que flutua ao sabor dos ventos, sem seguir pelos trilhos. A viagem demora mais de um dia. Finalmente chegamos. Grande alegria quando enxergo meu pai. Ele desce de um enorme tanque do Exército. Abraça-nos, e me pega no colo. Dois soldados pegam as malas e nos ajudam a chegar até o carro. Mamãe pergunta onde estamos e por que descemos aqui. Ele responde: Estação de Diretor Pestana; a de Porto Alegre ainda continua interditada. Vamos para casa. Como nossa casa fica em uma região alta a rua não está alagada. As escolas não funcionam. Nossa rotina é ficar em casa brincando ou ouvindo os comentários de meus pais, sobre as notícias das Rádios Gaúcha e Farroupilha. Dessa época, tenho uma lembrança inesquecível: a visita em que acompanhei meu pai a um grande atracadouro de lanchas. O Exército montara na Avenida Borges, bem próximo ao Mercado Público, um lugar para transporte dos habitantes. O brilho do sol refletido nas águas forma desenhos, que mudam de cores com o movimento das ondas provocadas pelos barcos. As canoas substituem os automóveis nas ruas alagadas. Entramos em um delas. Sinto um pouco de medo e me agarro ao pescoço dele. Sempre que chove muito e vejo ruas alagadas, a voz dele volta aos meus ouvidos: Talvez nunca mais assistas a uma 68


enchente como esta; mas temos que agradecer porque fomos poupados. Temos um lugar quentinho para dormir, mas outros não tiveram a mesma sorte, precisam ser ajudados. Minha tia Zélia, que era professora, passava tardes inteiras em nossa casa; com ela aprendi sobre a enchente de 1941 e também das outras enchentes. Porém, eu tinha minhas próprias hipóteses em relação ao que estava acontecendo. Pergunto para minha mãe: depois das águas baixarem, os nossos antepassados voltarão para revelar segredos e mistérios? Ela apenas sorri e diz: deixa os mortos em paz, eles não incomodam, estão no sono da eternidade; desse sono ninguém acorda. Mas eu acredito que os fantasmas têm vozes. E a primeira voz que escuto é uma voz poderosa do personagem com quem mais me identifico: o famoso capitão-mor, Francisco de Brito Peixoto.

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OS PRIMEIROS TEMPOS: A EXPANSÃO PARA O SUL Marlene Canarim Danesi Posso afirmar que primeira tentativa do capitão Domingos de Brito Peixoto para se estabelecer em caráter definitivo em Laguna, onde já exercia atividades pesqueiras, foi levado a efeito pelo mês de fevereiro de 1680, fracassando devido ao naufrágio de sua embarcação na foz do Rio Araranguá, e não no litoral baiano, como repetidamente se tem afirmado, quando Dom Manuel Lobo acabava de fundar, defronte de Buenos Aires, a malfadada Colônia do Sacramento.

Moacyr Domingues

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na de Guerra Prado, minha mãe, sempre foi orgulhosa de suas origens. Seus antepassados chegaram em São Paulo no século XVI. Foi educada em Portugal e lá conheceu meu pai, Domingos de Brito Peixoto, em uma viagem que ele fez a Lisboa. Apesar de ele pertencer a aristocracia paulista, ser membro de uma das mais importantes famílias da vila de São Vicente, mamãe tinha plena convicção de que nada era comparável a sua própria história. Os ancestrais dela viveram, por volta de 1400, em Bruges, passaram por Portugal, Ilha da Madeira, até chegarem ao Brasil. Ela nunca se conformou em ter que viver em São Paulo; gostaria de ter morado na Europa. Entretanto, meu pai nunca compartilhou dessa ideia. Ele participava de um grupo, que considerava necessário estabelecer elo entre Laguna e a Colônia de Sacramento. Eu concordava com ele, era preciso fixar o domínio português. Dona Ana sempre desejou que os filhos 71


tivessem uma educação europeia. Mas se deu conta, que isso seria impossível com Sebastião. Comentava com as primas: ele é igual ao pai, são toscos demais, o único em que posso colocar esperanças é Francisco. Se ele se formar em Direito na Corte, talvez um dia eu possa retornar para lá. Realizei, em parte, os sonhos de minha mãe. Concluí a Faculdade de Direito, na Universidade de Lisboa. Ela fazia planos, imaginava casamentos promissores para minha carreira, com filhas de advogados famosos. Em relação a esse desejo a decepcionei totalmente. Não abandonava a ideia de um dia mudar-se para a capital de Portugal. Ficou, portanto, inconformada quando um dia meu pai chega em casa e comunica: Ana tens que preparar mantimentos, organizar a criadagem e preparar tudo para uma grande viagem. Consegui uma Carta Régia com autorização de ultrapassar os limites do Tratado de Tordesilhas. Lá para aquelas bandas, perto de Buenos Aires, dizem existir terras férteis, minas de prata e mão de obra indígena. Pretendo criar uma Nova Paulistânia. Mamãe desconhecia o que significava Tratado de Tordesilhas, não estava interessada em saber sobre a fertilidade de terras, nem em minas de prata. Não queria ouvir nada sobre projetos de sair de São Paulo. Ela só queria convencê-lo de desistir da aventura. Emocionada, fala: Domingos, será que estás esquecido das duas tentativas anteriores, em quiseste te mudar para Lagoa dos Patos? Não recordas do horror daquele trágico naufrágio, que por pouco não te rouba a vida? Mas em vão, nenhum argumento demove meu pai. Está disposto a enfrentar o desafio. E um pouco irritado responde: esta vez é muito diferente, consegui recursos, vamos por terra, levo muitos escravos, alem de Sebastião e Francisco. Nossos filhos são experientes e jovens, teremos sucesso. Desesperada e quase chorando, minha mãe exclama: Não quero ver meu filho Francisco metido nesta viagem. Onde já se viu um homem culto envolvido em projeto sem pé nem cabeça, além de uma viagem perigosa. Tu bem sabes dos convites que ele recebeu para exercer a profissão em São Paulo e 72


até em Portugal. Não consigo entender tua insistência em levar Francisco para esta minibandeira, depois de todo o dinheiro gasto para sua formação. Verdadeiro desperdício, um rapaz com a cultura dele se enfurnar nessas terras desabitadas. Tu não te preocupas mesmo com a família, não vês o perigo que se esconde dentro dessas matas virgens. Corremos o risco de sofrer ataques dos indígenas e de feras. Vou falar com Francisco. Dentro do meu quarto ouço a indignação de dona Ana. Penso na dificuldade de confessar a ela que concordo com meu pai. A motivação dele é comercial e política, porém o que me atrai no projeto é conhecer novos mundos, explorar o desconhecido, a promessa de belas mulheres e de tesouros escondidos . Os protestos de minha mãe foram inúteis. Fez tudo que estava a seu alcance para desencorajar a ala masculina. Lamenta-se então com a irmã, com as primas e amigas: não me conformo de ver este rapaz, bonito, alto, magro, inteligente e culto, abandonar um futuro brilhante como advogado, para acompanhar o pai, nesta aventura maluca. Fala comigo, quase implora: meu filho tu sabes melhor que eu, que encantas as mulheres com teus olhos matreiros e brilhantes. Podes escolher qualquer um delas da alta aristocracia paulista. Não consigo entender, que em vez de um bom casamento prefiras te enfurnar no sertão e acabar te acasalando com índias. É intolerável ver teus talentos desperdiçados. Além de tudo é uma viagem de risco. Desista, filho; se te negares a participar da excursão, teu pai desistirá. Tento tranquilizá-la. Minha mãe, não há necessidade de preocupação, no sítio que pretendemos povoar vivem os índios carijós, uma raça pacífica. E é um lugar especial. Fica atrás de montanhas que servem de proteção aos olhos dos piratas. É uma terra fértil para agricultura e excelente para criação de gado. Existe uma lagoa com abundância de peixes e outros frutos do mar; a caça é abundante. Sem falar nas minas de prata e ouro, que todos dizem existirem muitas, nas proximidades do Continente do Rio Grande. 73


É minha oportunidade de fazer fortuna. Enriqueço, volto e me estabeleço como advogado em São Paulo. Depois vamos para Lisboa, conforme tua vontade. Posso até casar com uma das filhas das tuas amigas endinheiradas. Meu pai é ousado e ambicioso, como todos os bandeirantes paulistas. Além disso, organizado. Desenha no mapa a trajetória da viagem. Contrata guias experientes, organiza os bandeirantes, reúne e dá ordem aos subordinados. Após um planejamento detalhado, traça a rota da viagem e marca a data. Acomodadas na primeira carreta, minha mãe, cunhada e outras mulheres e crianças de parentes próximos; nas outras duas carretas vão os mantimentos e algumas escravas com seus filhos. Todos os homens vão a cavalo; meu pai como chefe da expedição. Partimos em uma manhã ensolarada. Há entusiasmo na maioria dos integrantes. Dona Ana, resignada, mas com a esperança de poder retornar um dia para o mundo civilizado. Não desiste do sonho de me ver como advogado. Ela não imagina, nem eu, que a promessa nunca seria cumprida. É outro o meu destino. Desde que saímos de São Paulo escrevo um diário. Não sei se algum dia alguém vai ter a curiosidade em lê-lo, ou se será jogado fora. Confesso que gostaria que todos os que vierem depois de mim conhecessem a minha história. Mas não importa o destino dos relatos. Na verdade, me dá prazer colocar no papel tudo que vejo e sinto. A natureza destes rios, destas florestas, a fauna e a flora são de uma beleza esplendorosa. O céu é mais azul, o verde é mais verde. Animais pastando, tranquilamente, de repente pressentem o ataque de feras e correm assustados. A selva serve de guarida para capivaras, jaguares e onças. Mas não deixo de explorar cada lugar em que passo, sempre de espingarda na mão; com animais selvagens não se brinca, e é preciso também cuidar com algum ataque de homens. Penetro no mato para apanhar caça: javalis, antas, jaburus e pássaros; uma festa para os viajantes que apreciam caça nas refeições. Entro no mar com água até o joelho, pesco dourados, traíras e bagres, usando isca de 74


marisco. Há trechos que para atravessar rios e córregos somente de jangada, que nós mesmos construímos. Estamos chegando em terras vizinha às possessões castelhanas. Começo a ficar ansioso e entediado. Passaram-se quatro meses que estou sem mulher. No grupo, além de meu irmão, irmãs, cunhada, cunhados e sobrinhos, somente escravos, índios e mamelucos homens. As duas cozinheiras, belas escravas negras, estão acompanhadas dos maridos, os dois guias conhecedores da região. Apesar do desejo não me arrisco a mexer com elas; evito a ira de meu pai, amigo dos guias. Não sei viver sem mulheres. A falta de relações sexuais muda meu comportamento, fico irascível e agressivo. Grito com os escravos, e esses dias até chicotei meus cavalos. Logo eu, que tenho tanto amor por eles. Quando a expedição está em movimento é mais fácil, a atenção aos perigos da floresta obriga que eu pense apenas na sobrevivência. Mas agora a expedição está há três dias no mesmo lugar. A chuva torrencial não permite avançar. Detesto esta calmaria. É quando a vontade de unir meu corpo a um corpo de mulher fica insuportável. Hoje, a noite está bem difícil. A chuva amenizou um pouco, e sem o barulho dos trovões e dos relâmpagos, escuto os sons de prazer de Sebastião e de minha cunhada. O sono demora a chegar, e quando vem é um dormir agitado por sonhos eróticos. Sou acordado, com os gritos de meu pai: – Vamos seguir viagem. Arrumem seus pertences, encilhem os cavalos, carreguem as carretas. Precisamos aproveitar a estiagem para avançar. Depois dos dias parados pelo temporal retomamos a caminhada. Atravessamos rios, derrubamos matas, arrebanhamos gado e escravizamos os nativos que encontramos. Após três dias e duas noites, chegamos a um local muito bonito, mas praticamente deserto. Exausto pela viagem, festejo o momento de poder descansar e grito para os companheiros: como é bom chegar nesta terra de ninguém. Meu pai me corrige. É errado chamar de terra de ninguém, só porque não é habitada pelo homem branco. Aqui vivem os carijós. 75


O índio carijó pertence à raça dos guaranis. É um homem simples e de caráter pacífico, mas quando provocados sabem se defender. Alegres, mas não gostam muito de trabalhar. Alimentam-se de caça e pesca e dos produtos naturais da terra. Coloco o binóculo e consigo contar 50 choças cobertas de capim. Aproximamo-nos cautelosos. Noto que paredes e portas são feitas de varas unidas por cipó, e as frestas fechadas com ramos secos. Porém, nem sinal dos carijós; parecem ter abandonado o lugar ou estão escondidos. Minha cunhada, minha irmã e meus sobrinhos estão receosos. Um dos guias, o mais experiente, tranquiliza as mulheres e as crianças: Seu Domingos tem razão, conheço estes índios, e apesar de excelentes arqueiros só reagem se atacados. Os carijós são leais aos portugueses, não há o que temer. Domingos acrescenta que eles são considerados como a nação mais dócil, entre todas as demais tribos do Brasil. Recebem bem os visitantes, mas se tratados com crueldade podem atacar a flechadas e incendeiam tudo. Não demora muito, um grupo de índios aproximase. Alguns, totalmente despidos, outros, com tangas de pele de animais, adornos de penas, cocares com plumas e colares de concha. Carregam varas de bambu, com um trapo branco pendurado, sinal de paz muito utilizado naquela época. Confabulo com meu pai e meu irmão e decidimos que a expedição vai se estabelecer neste local. Somos bem recebidos pelo cacique e pelo pajé. Os índios oferecem água fresca e alimentos. Em retribuição, presenteamos os homens e mulheres com espelhos, miçangas e outras quinquilharias. Os índios gostam de todo o objeto que possa servir de adorno ou que tenha utilidade. Na realidade, estamos interessados nas mulheres, na maioria, jovens e bonitas. A nudez delas deixam todos excitados, peitos durinhos, bundas arrebitadas, coxas roliças e peles lustrosas. E estamos há muito tempo sem mulheres. Mas meu pai fala que ninguém deve se afobar; 76


vou falar com o cacique e todos terão acesso às fêmeas, mas tem que ser com aquelas que ele oferecer. Estamos ansiosos e com pressa, porém ninguém se atreve a desobedecer ao capitão.

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O AMOR SEM PECADO Marlene Canarim Danesi A fundação do povoado de Laguna inseriu-se nos estertores da exploração bandeirista do século XVII. De fato, o estabelecimento português ocorreu no último quartel desse século, quando o santista Domingos de Brito Peixoto e seus dois filhos estabeleceramse, após algumas tentativas, no local conhecido anteriormente como “Lagoa dos Patos”. Essas iniciativas promovidas por Peixoto dão a essa fundação a característica inequívoca de uma empresa familiar paulista.

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Fábio Kühn

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a mesma noite da nossa chegada ao povoado, o cacique oferece uma recepção. Estamos exaustos; foram meses viajando. Muitas vezes parados impedidos de seguir a jornada pelas chuvas avassaladoras. Apesar do cansaço, estamos animados pela presença de mulheres jovens e belas. Dançamos e aprendemos com elas a tocar instrumentos de sopro. Eu experimento o atabaque, me encanto com o eco das batidas, que aquela espécie de tambor produz. O cacique Potiguara é generoso, sabe que homens precisam de mulheres. Traz índias viúvas e solteiras para satisfazer os desejos dos convidados. Mas muitos homens ficam sem parceiras. O cacique manda então trazer algumas casadas, inclusive, uma de suas próprias esposas. A índia que se aproxima de mim é esbelta e graciosa: tem dentes brancos, cabelos escorridos, fios negros misturam-se a fibras coloridas. Flores vermelhas finalizam o penteado. Não existe constrangimento na forma como se aproxima. O corpo moreno, untado com *  Foto à esquerda: Marlene aos dezessete anos fotografada por seu noivo na praia Capão da Canoa. 79


óleos perfumados, se oferece com sensualidade, enrosca suas pernas nas minhas. Com sofreguidão procura meu sexo e me morde por inteiro. Rolamos no chão e enquanto gozamos a índia grita como gata no cio. Depois sorri e retirase com naturalidade. Entendo as razões quando se diz que na cultura indígena amor e sensualidade não são vistos como pecado. Sebastião, que é um falso moralista, não se conforma com esse modo de agir. Critica a liberalidade dos indígenas em oferecer suas próprias mulheres para agradar o homem branco. É muito mais que estranho este costume resmunga ele, é falta de vergonha, depravação. Na verdade, só fala da boca para fora, vejo que já está grudado em uma índia. Particularmente, prefiro contar com a boa vontade dos carijós, para desfrutar os prazeres do sexo. Assim, não precisamos nos envolver em conflitos, como aconteceu em outras vezes, quando algumas índias recusaram o acasalamento ou os maridos não permitiram dividi-las. Quando há resistência usamos a força, mas nunca ficamos sem sexo. Muitas vezes é prazeroso subjugar uma mulher. E muitos companheiros até preferem o coito violento. É o caso de Sebastião; penso que a irritação dele com a generosidade dos carijós, em ceder as mulheres, é que só sente satisfação com a violência. Todos estão a fim de se divertir, e ignoram as falas de meu irmão; querem aproveitar a comemoração e saber qual das índias aplacará os desejos. Concordo com os carijós: a sexualidade é uma necessidade inerente à condição humana. Não tem nada a ver com pecado e ninguém pode viver sem sexo. A festa entra noite adentro com muita animação. As mulheres trazem tubérculos, sementes e frutos da terra, em folhas de bananeiras. Servem bebidas fermentadas; as mais tímidas não nos provocam, mas não se defendem quando apalpadas por mãos ávidas. Depois das danças sensuais, índias mais velhas estendem esteiras de palhas trançadas, cobertas de folhas verdes e peles de animais, para servir de leito, aos casais. Outros preferem as redes. Olhos gulosos devoram os corpos das belas jovens. O jogo amoroso chega ao clímax; os mais afoitos não esperam para consumar a posse. Eu prefiro ir devagar, falas lascívias 80


antecedem os prazeres, que estão por vir, aumentam a excitação. Imagino que algumas indiazinhas apenas se submetem ao coito, acostumadas à brutalidade de como são tratadas. As mais experientes, entretanto, usufruem do prazer quando o ato sexual é prolongado. Os homens deveriam aprender como se estimula uma fêmea. Quando bem preparada o sexo é muito mais gostoso para os dois. O desejo se torna animalesco e irracional, surge com fúria, aí não existe lugar para mais nada, a não ser a consonância de gozos... Com certeza a noite não será esquecida. Para alguns, recordações alegres e prazerosas, música, dança e encontro de corpos; para outros, momentos de brutalidade, vazio e tristeza. Uma semana depois, no final de tarde os homens ainda comentam as proezas sexuais. Conto sobre Jacuí, a índia que me tocou na comemoração de nossa chegada. Tive sorte; é a mais jovem e uma das mais lindas da tribo. Além da beleza, é uma safadinha de sangue, predestinada para o amor. A danada remexe os quadris como nenhuma outra. E basta me enxergar que já levanta a tanga. Sinto-me no paraíso com tantas mulheres à disposição. Provoco meu irmão: continuas criticando os costumes indígenas? Sebastião me responde raivoso: sou tão homem como você, pego toda a índia que me apetecer, sem me importar se tem ou não tem dono. Não entendo é emprestar a mulher para o divertimento dos outros. Aliás, nunca acreditei na liberalidade do Potiguara. Mas agora tenho certeza, o cacique só oferece as mulheres que não lhe interessam. Nunca as favoritas, e a filha mais nova, nem pensar. Esta ele traz fechada a sete chaves. Sebastião relata o que uma índia lhe contou. A caçula de Potiguara está prometida em casamento. A tradição da tribo exige que as noivas sejam banhadas com ervas sagradas. Ser massageada com óleos de semente de urucum permite que a mulher tenha muitos filhos. Porém, para Tupã atender ao pedido e a nação ganhar muitos herdeiros há uma condição: é preciso que a noiva, no período anterior ao acasalamento, só conviva com mulheres e permaneça em retiro. Senti curiosidade de conhecer a filha misteriosa de Potiguara. Vou até o lugar mencionado por Sebastião. No terceiro dia em que faço tocaia a comitiva de Severina aparece. A beleza da moça é extasiante, como 81


Sebastião descreveu. Porte altivo, cintura fina, quadris arredondados e seios em formato de pera. Sorriso suave e limpo, maçãs salientes, testa larga coberta parcialmente por uma franja curta. A brancura dos dentes contrasta com a pele morena, os lábios carnudos são um convite para o amor. Cabelos escorridos como manto negro cobrem até o fim das costas onde inicia o rego das nádegas. Mas o que mais chama atenção são os olhos. Oblíquos, amarelados e lustrosos como os olhos de uma onça. Uma verdadeira delicia do mundo. O andar sensual de Severina provoca desejo em qualquer macho. A imagem da índia passa a me perseguir. Nunca deixei de possuir as mulheres que desejei, não vai ser diferente agora. Severina será minha, pouco importa se está prometida em casamento. Meu pai, que conhece bem o temperamento dos carijós, sabe que eles podem ser vingativos quando têm as tradições desrespeitadas, me recomenda: vá procurar Potiguara, ofender os costumes e irritar o cacique só nos vai criar encrenca. Não quero que por um capricho teu nossos planos sejam atrapalhados; este é o lugar que escolhi para nos estabelecermos. Faço o que meu pai aconselha. Para minha surpresa o cacique concorda em desfazer o noivado da filha. Coloca Severina a minha disposição. Considera até honroso que ela tenha sido escolhida como mulher do capitão-mor. Só pede que a filha nunca seja abandonada. Não prometi casamento, meu desejo é permanecer solteiro e livre para sempre, mas atendi ao pedido que me fez. Nossa união é comemorada com festa. A bela índia, mesmo virgem, desde a primeira noite exibe uma sensualidade invejável. Muitíssimas mulheres passaram por minha cama, porém nenhuma me deu tanto prazer como ela. Severina é uma mulher incrível, cheia de segredos e mistérios. Na verdade, indecifrável, assim como oferece o corpo com paixão, às vezes ama com suavidade, em outros momentos parece triste e distante. Gosto de viver com ela, mas preciso ter muitas mulheres. Severina não desconhece meu comportamento, tem consciência que não é a única, mas sabe que sempre volto para sua rede. Na convivência amorosa os amantes fazem as próprias leis; minha compulsão pelo sexo jamais atrapalhou nosso relacionamento. Não 82


saberia dizer com quantas índias me deitei, só sei daquelas em que dentro de seus ventres, meu sêmen se transformou em filhos. Embora o amor tenha ocupado papel importante na minha vida, não me desviou de meus principais objetivos: o movimento desbravador, iniciado com meu pai e meu irmão; a conquista do sul; a busca pelas minas de prata e ouro e povoamento do Continente de São Pedro. Oito de meus filhos compartilharam comigo estes sonhos. Ocuparam lugar de destaque entre os primeiros povoadores do sul do país. A grande maioria deles casou-se com índias carijós. Tenho orgulho destes bravos mestiços. Não me arrependo de ter misturado meu sangue com o sangue da mãe deles. Graças a encontros muitas vezes fortuitos, nossa descendência deu início aos seis relevantes troncos de importantes famílias gaúchas. Sou grato, também, ao valenciano que chegou em Laguna, quando eu era capitão-mor; ele junto com minha filha espalharam meu sangue pelo interior do Rio Grande do Sul. Quando olho para trás, percebo que realizei muitas coisas relevantes durante minha trajetória, mas também fiz outras não tão boas assim. Na minha vida tive alegrias, tristezas, sofri decepções, pratiquei atos revoltantes, mas deixei um legado e um nome. Muitos autores já escreveram e publicaram sobre minha vida e meus feitos. Lastimo saber que o mesmo não aconteceu com Severina. Infelizmente ninguém se interessou ainda pesquisar sobre suas origens. Nem eu conheço muito da biografia dela. Só sei que ela foi uma linda, leal e valente mulher. Os tempos mudaram, as experiências amorosas foram se modificando. Papéis de homens e mulheres têm estado em constantes mutações. O mundo reinventa os relacionamento. Mas há um encanto especial e uma beleza no prazer sensual, na sexualidade exuberante e no amor sem pecado que Severina e eu desfrutamos. Mesmo aqui da outra vida, lembro-me do belo rosto, tenho saudades daquele insinuante corpo. Mas vejo que fui ingrato, nunca me preocupei em saber o verdadeiro nome que os pais lhe deram no nascimento. Conheço pouco a história de seu povo e quase nada de sua verdadeira origem. Às vezes penso que minha amada permanece submersa em uma lagoa ou nas profundezas das águas que banham a Enseada do Brito. 83


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MORTE E VIDA SEVERINA Floriana Danesi Breyer Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia...

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Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto

A

trevo-me a erguer a voz diante de vocês. Por muito tempo estive silenciada pelos meus (...) e pelos outros. Um silêncio que impregnou meu corpo e emudeceu minha gente, ao menos os que quiseram seguir vivos ou poupar vidas como é meu caso. Antes de tudo, sou Carijó, antes de tudo e através dos tempos, sou Carijó. Assim diziam os Caraibebé, homens sábios e voadores da nossa gente. Eles tinham o poder de voar até o céu, atravessar os tempos e conversar com os espíritos. Diziam que cada um de nós tem um espírito, cada um de nós e de tudo que é vivo. E os espíritos não morrem diziam os Caraibebé... Quando eu nasci, Moyarû foi o nome que recebi. Moyarû quer dizer brincar na minha língua. Ixemoyarûete – eu brincava muito... Com tudo que via e ouvia. Adorava seguir as formigas, criar pontes para elas passarem, obstáculos para elas atravessarem, brincava de seguir vaga-lumes e testar cipós na mata; subia bem alto...

*  Foto à esquerda: Floriana em homenagem a índia Carijó. 85


Quando sangrei por primeira vez, minha Itu1,2me levou até o rio para me lavar e me benzer; ali me deu meu nome de espírito Kauany, gavião, na minha língua. Os Caraibebé diziam que os carijós têm dois nomes: um é o nome para a gente nesta terra, que carrega nossa missão aqui com este corpo, o outro, o nome do nosso espírito, nossa força vital e imortal. Kauany é meu nome secreto, que os espíritos sopraram para o Caraibebé e para minha avó, e só me foi revelado quando sangrei por primeira vez. É meu nome de poder, que traz a força do meu espírito. Minha itu contava que esses nomes estavam sempre vinculados com algum elemento vivo, podia ser o vento, a água, um animal, ou qualquer ser ou elemento vivo. Minha itu dizia também que uma parte de nós morria aqui nesta terra e outra seguia viva através dos tempos, pulsando com tudo que é vivo a cada sopro de vento, no eco do trovão, no sussurrar das águas, no rugir da onça, no grilar do grilo, no grito do gavião... Pois eu morri. E não de morte que se morre: morri antes de morrer, morri duas vezes. A primeira vez que morri foi quando me deram o nome Severina. A Severina matou Moyarû. E fomos muitas Severinas, morrendo de morte igual, mesma morte severina. Uma morte selada pela cruz e impressa entre nossos olhos em água-benta. O batismo, o registro e o calar no nosso nome de nascença e de nossa missão Carijó nesta terra. Moyarû parou de brincar na floresta, parou de olhar para cima e para baixo, ficou com um olhar assim reto, meio que perdido no horizonte. Horizonte? Meu horizonte como Severina era outro. Começou avistando velas brancas, cavalos brancos e homens brancos. Entre todos os caraíbas (homens brancos) que passaram por nossa gente, aquele bando branco de alguma forma foi o mais ameno. Eram ambiciosos e perceberam que podíamos servir-lhes para suas conquistas terra adentro. Moyaru, de cima das copas das árvores, 1   Itu quer dizer avó, em tupi. 86


ficava olhando o que acontecia como um gavião que observa sua presa. Registrou tudo lá de cima, desde o primeiro dia que chegaram. Percebeu que eram rápidos e grosseiros e faziam muito barulho para se mexerem; também percebeu que não olhavam muito para cima, nem para baixo, queriam conquistar tudo que tivesse em sua frente, e assim só olhavam para frente. E ali estava sua Aldeia. Moyarû notou que tinha uns que mandavam nos outros e um que mandava em todos; este o capitão-mor, como lhe chamavam. Aí estava sua presa! Moyarû teria que descer das árvores e proteger sua gente. Moyarû se sacrificou para dar lugar a sua sina: Severina. Francisco de Brito Peixoto era seu nome. Ele não foi o primeiro. Muito antes de eles chegarem e se apossarem de nossas terras; outros já haviam tocado nossa terra sagrada e tomado nossos corpos. Minha itu contava que os primeiros chegaram nadando, pendurados em tiras de madeiras (destroços dos navios naufragados), e nossa gente os recebeu na praia, com água, comida; eles foram ficando e se misturando com nossa gente. E por isso temos este nome Carijó, que quer dizer arrancado do branco. Depois desses náufragos, vieram outros com barcos inteiros, famintos por tudo que encontravam: comidas, frutas, gente e ouro. Queriam saber onde estava o ouro e eram capazes das maiores atrocidades para descobrilo. Mas nossa gente não tinha ouro; tinha muitas riquezas, não ouro. Mas eles eram incapazes de ver tudo que havia. Além do ouro, outra coisa de que eles gostavam muito: de nós, meninas e mulheres que eles chamavam de índias. Eu ainda era uma kunhatai (menina) e pude conhecer a brutalidade na pele; prefiro poupar aqui de descrições detalhadas, e apenas dizer que não permitiria que algo assim acontecesse com minha filha. Sem ouro, esses caraíbas foram embora, deixando marcas inesquecíveis e atrozes em nossa Aldeia e nossas matas. Cortaram muitas árvores e as subiram nos navios levando parte de nós para o além-mar. 87


Moyarû ficou ali escondida, olhando fixamente o horizonte; queria ter certeza que estariam bem longe. E desejou com todas suas forças que não voltassem. Foi o último horizonte de Moyarû. Desde então, fiquei calada, purificando minhas memórias e reinventando meu destino. Caso eles voltassem teria que fazer algo. E eles não voltaram; não os mesmos. Os outros que chegaram foram deste bando do capitão-mor. E ele foi minha presa: Xico, como eu costumava chamá-lo. Xico, com muitas Severinas se deitou. Mas por algum motivo, esta minha severina o encantou. Passei a ser a preferida do capitão-mor. Rapidamente aprendi sua língua e fui esquecendo a minha. Escutava todas as conversas, os planos e, habilmente, fui aprendendo a influenciá-lo em algumas decisões. Mas Xico era sabido e não me contava tudo; nem eu queria saber; meu coração carijó não aguentaria tanto. Mas eu sabia que eles queriam avançar ao sul, romper um de tal Tratado de Tordesilhas e tomar mais terras vizinhas. Diziam que eram terras de ninguém, sem dono, como a nossa. Para nós, carijós, a terra não tinha dono mesmo, nem a terra, nem a mata, nem os animais, nem nada. Vivíamos juntos com tudo que é, comungados, nutrindo-nos mutuamente. Mas os caraíbas nos ensinaram as fronteiras, os registros, as posses e as bandeiras. Íamos aprendendo e morrendo um pouco por dia. Severina com o tempo foi se acostumando e esquecendo-se de Moyarû. Mas algo ainda pulsava cá dentro. Quando eu dormia aparecia… E grunhia, como que num eco de dentro. Dava rasante em meus sonhos, me observava e, de certa forma, me guiava na escuridão de mim. Mais além de Severina, mais além de Moyarû, Kauany segue viva em mim; mesmo que Severina não a tenha podido escutar, Kauany continuou a guiar-nos. Severina, em meio a sua sina, teve uma filha, Maria de Brito de Peixoto. Assim, os brancos a batizaram, e assim seu pai a reconheceu filha legítima e a registrou em cartório. 88


E Maria cresceu Maria; mas em segredo foi Taîyra Pytuna (Filha da Noite em tupi). Pois a noite seguiu guiando os passos e conectando mãe e filha à fonte.

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ASCENÇÃO DE CERTO CAPITÃO-MOR: AMORES DISPUTAS E INTRIGAS Marlene Canarim Danesi Um personagem que certamente merece uma investida é , sem sombra de dúvida o capitão mor da Vila de Laguna. Francisco de Brito Peixoto, que foi incensado pela historiografia de referência como o grande desbravador do Continente, tendo seus descendentes como primeiros povoadores dos Campos de Viamão. Não se quer aqui negar a sua importância para a conquista do sulrio-grandense, mas sim, enfatizar alguns aspectos de sua trajetória...

É

Fábio Kuhn

inicio de outono, manhã amena, Severina acaba de acordar. Uma das mãos do seu homem acaricia suas coxas e a outra aperta seus seios. Francisco está excitado. O corpo da índia ainda lhe provoca calafrios. Gosta de mordiscar os lábios carnudos e a língua da mulher. Ela sempre lhe dá um prazer imenso e se oferece com generosidade. É uma linda mulher de pele e de cabelos. Mas às vezes não entendo o choro silencioso. Nesses momentos, só fala em guarani, e um sorriso triste, de todos os dentes, abate o rosto quase sempre iluminado. Francisco de Brito Peixoto está com Severina desde que, junto com o pai e o irmão, decide estabelecer-se no sítio Lagoa dos Patos, hoje Laguna. Estar todo esse tempo com Severina, não significa não ter tido uma descendência enorme, com várias índias carijós. Em 1721 é nomeado por El-rei, para o cargo de capitão-mor, entretanto, já exercia esta função, de maneira informal, mesmo antes de ter fundado Laguna, em 1684. O cargo e de 91


grande importância pela abrangência de atribuições. Ser capitão-mor é uma deferência toda especial. O capitãomor pode condenar e aplicar penas, para todos aqueles que não cumpram suas determinações. A desobediência às ordens resulta em penalização para pessoas que chegam com o detentor do cargo, como para os habitantes das terras conquistadas. A autoridade do capitão-mor permite a demarcação, posse de terras e a doação de sesmarias. A nomeação é por três anos, entretanto, pode haver recondução, caso ficar comprovado que houve resultados favoráveis. No caso de Francisco, ele acaba exercendo o cargo até sua morte, em 1735. O exercício de forma vitalícia resulta do reconhecimento, por parte das autoridades, de ele ter estimulado o povoamento, incentivado a conquista de novas terras e combatido o contrabando. Em relação a essa tarefa, hoje em dia se sabe que não é possível a dignificação deste personagem; na realidade ele era o chefe de uma das facções que se dedicavam ao contrabando de gado e de couro. A vida de Francisco de Brito Peixoto está intimamente entrelaçada com os primeiros tempos de Laguna. O início foi difícil, até porque o projeto de povoar aquele sítio era da família Brito Peixoto. Segundo Fábio Kuhn, ... o crescimento do povoado foi incipiente, sendo que, em 1715, a vila recém-criada tinha trinta casais. Somente com a expedição de Manuel Gonçalves de Aguiar é que a pequena vila iria merecer um pouco mais de atenção do governo português. Através de documentos da Câmara de Laguna, na fase recente de sua ocupação foi uma cidade muito violenta. Os indígenas eram as principais vítimas, mas também os viajantes muitas vezes eram mortos quando de passagem pela cidade. Assassinatos eram cometidos cotidianamente. Devassas realizadas demonstram que muitas acusações eram atribuídas aos filhos bastardos do capitão-mor. Um dos filhos de Francisco, Sebastião, era considerado um assassino e facínora; acusado formalmente de mortes de vários índios e de dois paulistas. Sem contar os homicídios que cometeu e dos quais não foi denunciado. Devia ser bem difícil para os juízes e para própria Câmara levar adiante processos 92


contra os parentes do capitão-mor. O capitão-mor de Laguna é uma figura controversa, amado por muitos, mas também detestado por grande número de inimigos. Muitos historiadores procuram a dignificação do personagem, valorizando somente os resultados favoráveis de sua administração e o benefício que suas conquistas de terra trouxe para Coroa portuguesa. A prisão dele, em 1721, só é mencionada por esses estudiosos; é um tema pouco desenvolvido por eles. Alguns chegam a afirmar que a prisão foi conseqüência de disputas e intrigas de seus desafetos, principalmente, do contrabandista Manuel Manso de Avelar. Entretanto, é uma visão tendenciosa. Na verdade, o embate não é um fato isolado. A discórdia origina-se da rivalidade de duas famílias paulista, motivada por política regional. Em uma das partes preservadas do diário de Francisco, ele descreve o episódio da seguinte maneira: em uma manhã de outono, eu e minha mulher somos acordados por gritos e vozes agitadas. Pancadas vigorosas estremecem as paredes de pau a pique de nossa casa. São policiais e trazem uma ordem de prisão contra minha pessoa. A princípio reajo, mas vejo que o documento é assinado pelo governador do Rio de Janeiro. Estou surpreso de que Ayres Saldanha, que tantas vezes jantou em minha casa, amigo íntimo da família, seja um dos que está envolvido na traição. Severina não entende o que está acontecendo; nervosa chama Potiguara. O cacique compreende imediatamente. Meu sogro tenta consolar a filha dizendo que nada pode fazer. Não dá para índios interferem em assuntos de brancos. Ele tem razão, se são os próprios portugueses que mandam me prender, até é perigoso para ele interferir. Potiguara desconfia que meus filhos mulatos estão envolvidos na denúncia. Lembra-me de que me fez alertas; na verdade, até me recomendou que eu fosse mais enérgico. Eu devia mesmo ter dado um corretivo neles, mesmo sendo meus filhos. Tenho que reconhecer que deveria ter dado ouvidos aos conselhos de meu sogro. Mas eu até me aborreci quando Severina, repetindo as falas do pai, fez críticas a eles: nunca prestaram, sempre foram vagabundos, ladrões de gado e de cavalos. Assassinos frios, já mataram muitos 93


carijós, porém sempre tu os protegia. Nunca acreditastes que esses bandidos eram contra ti. Papai tinha avisado que eles trabalham para o bando de contrabandistas, teus inimigos. Agora se deram mal, assassinaram dois paulistas que desfrutam da amizade de gente endinheirada. Será que vais pagar pelo malfeito de teus filhos? Apesar das falas do cacique e de Severina retratarem, com precisão, o caráter dos filhos de Francisco, as razões da detenção, em primeiro lugar, foi a ciumeira provocada pela importância do cargo do capitão-mor. O poder político e econômico de Brito Peixoto é muito grande. Ele domina uma vasta região. Laguna, a Ilha de Santa Catarina e o Continente de São Pedro são áreas estratégicas, cobiçadas por brasileiros e estrangeiros. Mas, além da inveja e da cobiça, que o cargo que Francisco ocupa provoca, há outra razões: as desavenças e disputas, já mencionadas entre o capitão-mor e seus adversários; conflitos iniciados no século XVII nos quais a família Brito Peixoto esteve envolvida. O capitão-mor, conhecedor dos verdadeiros motivos da prisão, sabe que nada pode ser feito no momento. Mas como bom estrategista, planeja o que fará para se defender e livrar-se das acusações. Os três maiores inimigos de Francisco, e responsáveis pela sua prisão, ocupam lugares importantes na localidade. Manuel Manso de Avelar é sargento-mor da Ilha de Santa Catarina, Manuel Gonçalves de Aguiar descende de abastada família paulista e chefia um grupo de contrabandistas. O terceiro desafeto de Brito Peixoto é Manuel Gonçalves Ribeiro, juiz de Laguna. A intenção deles é embarcar o prisioneiro o mais rápido possível. Porém, Francisco adoece com febre, diarreia e vômitos de sangue. A saúde piora, a febre aumenta. Os denunciantes ficam com medo de serem acusados de envenenamento do capitão-mor. Então permitem a presença de Severina. Ela oferece os cuidados necessários ao marido. Ele melhora, e, ainda em recuperação, é levado de navio, em outubro de 1720, para a prisão no Rio de Janeiro. Para Severina resta esperas e incertezas... Mas a prisão é curta. Em fevereiro de 1721, Francisco retorna, e com mais poderes. É nesta data que se dá a 94


posse oficial, como capitão-mor de Laguna. A volta é muito festejada. Os portugueses celebram com missa e os índios apresentam uma cerimônia ritual, com apresentação de arqueiros e ritos pagãos. Em continuação aos festejos muita dança, música e bebida. A gravidez de Severina também é festejada. Noite de paz e alegria, Francisco está satisfeito com a gravidez da mulher. Já é pai de vários filhos, mas com Severina nenhum. Francisco é polígamo por natureza; um viciado em sexo. Não lhe basta uma mulher, precisa de duas, três, quatro. Desde jovem fez sucesso no mundo feminino; eram as próprias mulheres que ofereciam seus corpos, para o gozo do insinuante conquistador.

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A VINGANÇA DE BRITO PEIXOTO Marlene Canarim Danesi [...] não vai nesta embarcação Fernando de Brito Peixoto por teimar em dizer que estava doente e deitava sangue pela boca, e fica até a primeira embarcação que logo irá, porque até então lhe basta a convalescença... no que toca a Brito me parecia que não tornasse Laguna; e se tornar que os filhos mulatos que lá tem não venham para cá e vão para Benguela... Agora recentemente foram ao Rio Grande e trouxeram muitos cavalos e mataram alguns índios, fingindo se queriam levantar contra eles e até mataram seu mesmo confidente, como também me assegura o ouvidor de São Paulo...

(Texto de carta do governador de Santos, João da Costa Ferreira Brito, para o governador do Rio de Janeiro.)

D

esde que saí da prisão, a vingança é minha maior preocupação. Para arquitetar um plano, e dar aos intrigantes o castigo merecido, planejo uma viagem a São Paulo. Preciso conviver com a classe política, para chegar ao governador. Para inverter a situação em Laguna, necessito do apoio dele. As amizades com portugueses e o prestígio dos Brito Peixoto e dos Guerra facilitam a aproximação. Entretanto, a maior aliada foi minha própria audácia nas conquistas amorosas; na verdade, graças a ela que as portas do palácio do governo são abertas. Tudo inicia em um final de tarde, quando visito os primos Silva Leme. Comentamos os acontecimentos da cidade, discutimos política e falamos de proezas eróticas com criadas, chinas e raparigas. A novidade naquele dia, entretanto, é a chegada da portuguesa, prima do governador; a beleza da 97


jovem senhora deixa todos em alvoroço. Viúva, recentemente, de um nobre de Lisboa, Leonor de Barros veio atrás de marido rico e inteligente, mas, sobretudo, macho suficiente, para dar sossego aos desejos reprimidos há muito tempo. O falecido esteve doente por longos anos. Os mexeriqueiros locais comentam: Leonor não é mulher de ficar sem homem; deve estar em uma carência fenomenal. Meu primo Pedro me instiga: por que não te candidatas, tens as qualidades que a portuguesa deseja e ainda por cima és solteiro. Não precisas contar o mundaréu de filhos que tens com aquelas índias, se não assustas a potranca. Apenas sorrio, mas a ideia de Pedro fica a martelar na minha cabeça. Não penso em casar-me, mas bem que a viuvinha pode me ser útil para chegar ao governador; tenho notícias de que é muito amiga do primo. Dona Ana, minha mãe, conhece a moça. Nossa casa é ao lado da igreja, na mesma quadra do cemitério da classe alta e na mesma Rua dos Barros, parentes da portuguesa. Nos domingos é um desfile de autoridades, de famílias endinheiradas e de mulheres da sociedade paulista. Elas aproveitam o horário das missas e a visita aos mortos, para desfilar belos vestidos e chapéus, encomendados da Corte ou mesmo de Paris. É da varanda da casa de Dona Ana que vejo pela primeira vez Leonor. Realmente, os primos têm razão em cobiçar a viúva. O véu de tule negro permite apenas ver o contorno do rosto. Uma mantilha, bordada com miçangas, cobre parcialmente a cabeça da jovem senhora, deixando à vista o coque, que destaca o pescoço esguio. O vestido preto, comprido e justo realça a beleza do corpo. Seios fartos, cintura fina e ancas largas, que se movimentam sensualmente quando caminha. O andar de gazela é provocante e eu sinto que estou diante de uma fêmea de verdade. O insaciável mulherengo que vive dentro de mim imediatamente apresenta-se. Desejo conhecer de perto a portuguesa. Não conto, para minha mãe, as verdadeiras razões de meu interesse em conhecê-la; finjo que a moça me agrada para talvez um futuro namoro. Dona Ana, que detesta minha permanência em Laguna, concorda em proporcionar nosso encontro. Cantarolando me diz: quem sabe, filho, você não se apaixona pela viuvinha. Me daria muita alegria te ver de volta à civilização. Leonor é de família rica, o pai e o irmão têm a maior banca de advocacia 98


em Lisboa, com filial em São Paulo. Vou organizar um jantar festivo para esta apresentação. Falo para ela: por favor, senhora minha mãe, prefiro um encontro mais íntimo, com poucas pessoas. Um ambiente tranquilo, onde possamos ter maior intimidade e nos conhecermos melhor. Na verdade, tenho pressa para pôr em prática meus planos. E a preparação de uma festa levaria muito tempo. Além do mais não tenho intenção de qualquer compromisso sério com ninguém. Felizmente Dona Ana me ouve e faz exatamente o que pedi. Chegado o dia, Leonor aparece acompanhada de um casal de amigos. Sem o véu, a beleza dela é mais evidente. Os olhos da viuvinha são levemente puxados, brilhantes e negros. Sem o coque, com os cabelos lisos escorridos, ela parece mais jovem. Sorriso malicioso aparece, enquanto conversamos, e ela lambe os lábios carnudos com a pontinha da língua. Conheço as mulheres, percebo logo quando uma fêmea está no cio. Os dias seguintes mostram que não estou enganado. Logo no terceiro encontro a viúva demonstra ser tão gulosa de sexo quanto eu. Em poucos dias provamos todos os prazeres da carne. Colhemos todos os frutos que corpos escaldantes como os nossos sabem proporcionar. Leonor me aproxima de Rodrigo Cezar de Menezes, governador de São Paulo. Ele simpatiza comigo. Como sei aproveitar as oportunidades, prolongo a estadia na capital. Pouco a pouco passamos de conhecidos a bons amigos. Mantenho os encontros com Leonor, mas minha atenção está focada no palácio. Mesmo sendo um incorrigível conquistador, nunca permiti que paixões dirigissem minhas ações. Pauto minhas atitudes pela política e pelo poder. Nas conversas, com Menezes, relato as injustiças que sofri quando fui preso. Naturalmente, denigro a imagem dos inimigos. As palavras do governador, na despedida, deixam o caminho livre da sonhada vingança: faça tudo que for necessário para acabar o contrabando. Não vou interferir no acerto de contas com seus desafetos. Despeço-me de Leonor com proezas eróticas. Ela é uma grande fêmea, mas Severina ainda é melhor. Astuciosamente, peço-a em casamento. Certo de que a bela viuvinha, acostumada aos luxos da corte, jamais aceitaria viver nas grotas. Promessas de novos encontros e juras de amor, mas 99


assim que chego a Laguna, esqueço-me da portuguesa; foi somente uma aventura. Só penso na forma de pôr em prática a vingança planejada. Como político experiente, sei que preciso esperar a hora certa. Provas são necessárias em qualquer processo; se não existem é preciso criá-las. A facção criminosa, adversária, tem ligações com os franceses e com os índios missioneiros. Os negócios ilícitos abrangem tráfico de escravos, contrabando de couro, de gado e de metais preciosos. Primeiro passo é a construção de uma rede de espionagem. Incluo na lista a índia Quitéria, amante de Pedro Jordão; a ruiva argentina, amásia de Ribeiro, um de meus inimigos mais ferozes; Malinche, mãe de meu filho Luís, fiel a minha pessoa. Escolho ainda vários índios carijós para participarem. Todos são meus amigos e entendem que precisamos derrubar o bando que quer atrapalhar nossos negócios. É preciso impedir os adversários de manterem contato com navios estrangeiros. E eles estão cada vez mais próximos dos franceses. Só permito aos meus homens manterem amizade e negócios com os gringos. Preciso provar que a facção inimiga é responsável por toda a forma de contrabando. Pedro Jordão integra o bando rival, prendê-lo é encontrar o fio da meada do comércio ilegal montado pela quadrilha. Quitéria é o chamego do francês. Ele costuma esbanjar dinheiro com bebidas e mulheres, mas é mais generoso com a meia-irmã de Severina. Presenteia a índia com brincos, colares, óleos para os cabelos e uma variedade de panos e lenços coloridos. Quitéria costuma dividir os presentes com Severina. Coincidentemente, a distribuição dos regalos acontece quando naus francesas são avistadas na costa. Começo a desconfiar e relaciono este fato com informações recebidas através dos carijós e dos demais informantes. Malinche, mãe de dois filhos meus, é uma índia bonita muito cobiçada por todos os homens do povoado. Atualmente, Antônio, um índio missioneiro, integrante do bando de meus inimigos, anda de beiço caído por ela. A índia esperta, ainda aquerenciada a minha pessoa, faz qualquer coisa para me agradar. Acaba colhendo informações, dando em troca o corpo há muito tempo desejado por Antônio. Meu filho Luís inteira-se dos planos da facção rival, por intermédio de Graziela, amante de Ribeiro. Relata com detalhes, como 100


conseguiu arrancar da ruiva argentina as estratégias usadas pelos adversários. Sorrindo, me conta: aprendi com o senhor, que uma fêmea desejosa não tem segredos para homem que a satisfaz na cama. Mas a sorte ajudou, Ribeiro sempre foi cuidadoso com a amante. Desde que a ruiva chegou de Buenos Aires nunca lhe faltou atendimento. Mas ultimamente o homem anda atrapalhado. Com a esposa doente, hospital, viagens e mais a idade chegando, tem descuidado das obrigações de macho. E a argentina é fogosa, tem precisão de homem. Em troca por noites de prazer revela os segredos de que precisamos. De posse das informações, torna-se fácil montar o quebra-cabeça; as peças vão se encaixando. Posso, então, executar, com segurança, a vingança planejada. Prendo Jordão em uma cilada armada por Quitéria. O francês torturado delata os comparsas. Não foi difícil surpreender Avelar, Aguiar e Ribeiro: os dois primeiros traídos por carijós; Ribeiro, pela amante. Atrás das dunas, perto da enseada onde ancoram as naus, o bando inimigo cai em uma emboscada arquitetada por mim. Surpreendidos, quando regressam de uma orgia na nau francesa, são facilmente aprisionados, e o contrabando apreendido: couro trocado por mantimentos e outros produtos estrangeiros. Foram também flagrados por trazerem escravos. A tocaia para índio missioneiro foi mais trabalhosa. Malinche indica local, data e hora, que Antônio estaria levando cavalos e gado de Vacaria para as Missões. Meus comparsas se atrasam; não é possível ser dado o flagrante. Outras razões atrapalham a ideia inicial de prendê-lo. Os índios missioneiros contam com a proteção dos padres jesuítas. E ainda existe, de minha parte, o interesse em agradar os indígenas da Banda Oriental, amigos dos missioneiros. Um dos meus objetivos é o de povoar, não só de gente mas também de gado, as terras sulinas. Necessito, portanto, da amizade daqueles índios. Antônio seria muito útil; por esta razão acabou não sendo preso. Manuel Manso Avelar teve os bens sequestrados e foi para o calabouço. A vingança foi feita também em relação a Aguiar e Ribeiro. A vida segue, impulsiona velhos e novos planos. Meu principal objetivo de agora em diante são as terras espanholas. É a conquista do Continente de São Pedro. 101


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UM HOMEM FANTÁSTICO Marlene Canarim Danesi Assim me parece neste momento, que a memória é uma faculdade maravilhosa, e que o dom de fazer aparecer o passado é também assombroso, e bem melhor do que o dom de ver o futuro.

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Anatole France

1 esde criança aprecio ouvir narrativas sobre meus antepassados. Homens e mulheres valentes que tiveram a coragem de abandonar às origens, atravessaram oceanos, conquistaram terras e constituíram numerosas famílias. Sobre cada um deles é possível escrever admiráveis histórias. Todos foram corajosos, enfrentaram perigos e viveram episódios emocionantes. Amaram, sofreram e ocuparam lugares de destaque, em um mundo novo e repleto de desafios. São muitas trajetórias de vidas que se cruzam e se entrelaçam. Gostaria de ter tempo para escrever sobre todos os meus ancestrais; na minha idade já não é viável. Tenho arrependimento de não ter me dedicado mais cedo a esta interessante tarefa. Mas ao contar a história de Agostinho Guterres, faço uma homenagem a minha avó materna e madrinha, Lydia Guterres Mazzini. Deixo, também, um legado aos seus descendentes e aos meus em especial. Se escolho, neste capítulo, escrever sobre esse personagem, não é apenas por ele pertencer as primeiras famílias que povoaram o Rio Grande do Sul. Esse fato já seria razão suficiente para me debruçar sobre sua história. Mas outros motivos explicam também minha escolha: ter acesso a documentos que meu cunhado colocou a minha disposição, e por tratar-se de um homem fantástico: Agostino ou Agostinho? Qual seu verdadeiro nome e sua *  Foto à esquerda: Julia Danesi interpreta personagem Lola. 103


nacionalidade? Durante muitos anos, a família pensava ser ele português. Porém, era espanhol, nascido em Valência, em 1685. Depois de uma vida repleta de aventuras, morre no Rio Grande do Sul, aos 78 anos de idade. Deixa uma descendência enorme, espalhada por todo o estado. É uma bela história; seria uma lástima continuar sendo desconhecida e ignorada por seus descendentes. Resgatar o passado é sempre uma tarefa difícil. Existem distorções e inexatidões nos relatos orais. Quando se tem uma pesquisa, servindo de base para história de um personagem, diminuem as dificuldades e escrevemos com maior segurança. Datas, nomes e acontecimentos da vida de Agostinho no Brasil são baseados em documentos, dados históricos. Casa-se com Maria de Brito Peixoto, filha mestiça do fundador de Laguna e da índia Severina. Em 1723, ocupa o cargo de vereador, na Câmara de Laguna, participa, desde o início, da ocupação do Continente de São Pedro, integra incursões de reconhecimento organizadas pelo sogro, auxilia no estabelecimento das invernadas em todo o litoral sul. Incansável desbravador, ao lado de Cristóvão Pereira de Abreu, desempenha papel relevante na abertura da Estrada dos Tropeiros. Torna-se estancieiro em Viamão; é quando traz de Laguna a família para se estabelecer em definitivo no Rio Grande do Sul. Quando a Colônia do Sacramento é cercada pelos espanhóis, é ele quem envia mais recursos para aquele povoado. Mas existem buracos em sua história; alguns mistérios do tempo em que viveu na Espanha. É necessário preenchê-los com base em relatos orais e com uma pitada de imaginação. Muitas perguntas pipocam em minha cabeça, e um turbilhão de ideias e hipóteses surgem. Desejo saber mais sobre ele. Quem foi o verdadeiro Agostino? Como foi sua vida antes de chegar ao Brasil? A mudança de Gutierrez para Guterres foi proposital? Ou apenas um erro no registro? Como chegou em nosso país? Quais os motivos de abandonar sua terra natal? Quais as razões de um homem com certa cultura aventurar-se em uma terra desconhecida e selvagem? Por que de um espanhol juntar-se aos portugueses, para 104


conquistar terras, que de direito pertenciam à Espanha? Encontrei algumas respostas, consultando documentos sobre o povoamento do Rio Grande do Sul, no arquivo da Cúria Metropolitana e na pesquisa de Paulo Flores Pinto. Acontecimentos depois da chegada do valenciano ao Brasil. Mas restam lacunas, verdadeiros muros, que ocultam suas origens. Estou convencida de que só poderei encontrar respostas na Espanha. Viajo para lá. Em Valência, encontro o fio condutor da história desse singular antepassado. Entrevisto Lola, uma ex-bailarina de danças ciganas e cantora de músicas espanholas. Noventa e seis anos de pura lucidez. Visito lugares indicados por ela, pesquiso em museus e bibliotecas. A partir dessas investigações, tomo conhecimento da vida profissional e da vida boêmia de Agostino. Conheço seus amores, sofrimentos, espírito aventureiro e o interesse por história e geografia. Consigo montar um mosaico de informações, junto as pedras do tabuleiro e traço o perfil desse fantástico personagem. Fatos e acontecimentos da vida dele anteriores à chegada no Brasil, baseados na minha entrevista com a antiga artista. Ela me recebe em sua quinta, localizada em um arrabalde semirrural de Valência. Sentada em cadeira de espaldar alto, vestida de preto, traz nos ombros um xale com bordados coloridos. Os cabelos grisalhos estão presos em um coque, por um grampo de madeira. Segura com a mão esquerda um gato angorá e na mão direita um leque com rendas pretas e madrepérolas. A sua frente, em uma pequena mesa de mogno, vejo esparramados recortes de jornais e desenhos da figura da bailarina, no tempo em que brilhava nos palcos. Com um sorriso suave, em um rosto de poucas rugas, me convida para sentar-me e oferece uma sangria. É uma senhora bonita e elegante. Ninguém poderia ousar em pensar nela, como uma velha. Gravo a voz de Lola; transcrevo aqui suas lembranças: Muito jovem cheguei a Valência. Minha família era de agricultores, com muitos filhos e pouco dinheiro. Precisei trabalhar. Não tinha estudo, mas sobrava beleza e talento para música. Fui cantar e dançar em uma taberna frequentada por militares e comerciantes. Acabo 105


vendendo o corpo; era mais lucrativo. Depois consigo uma vaga em Las Chicas, uma pulperia famosa na cidade. Casa noturna luxuosa, salas espaçosas iluminadas por velas em candelabros de cristal, cortinas de veludo vermelho, tapetes persas, espelhos com molduras de bronze. Móveis à Luís XV, louça de porcelana francesa e talheres de prata sinalizam que o local só recebe nobres ou homens de posses. O lugar ainda existe, mas sem o esplendor de outrora. Apenas uma casa de espetáculos de flamenco. Funciona também como um bordel de categoria duvidosa. Não sei se conservam a galeria de quadros. Quando a casa foi inaugurada, pintores desconhecidos pintaram cortesãs, clientes e benfeitores. As coristas antigas sabiam o nome dos personagens e suas histórias. Durante o tempo em que trabalhei lá, havia até visitação à galeria. Se tiveres sorte vais encontrar a pintura a óleo do personagem que procuras. Muito ouvi falar no lendário Agostino Gutierrez. Lola me informa que meu ancestral era de origem moura. Segundo a lenda, ele possuía duas faces distintas: o homem culto e o boêmio. Sedutor, encantava mulheres de todas as idades e provocava inveja nos homens. A família de Agostino fez parte dos numerosos descendentes de árabes que permaneceram em Valência. Na verdade, durante mais de um século não foram totalmente aceitos pelos governos espanhóis. A Espanha antiga sempre percebeu o povo africano apenas como invasores, não reconheceu a contribuição deixada por eles. A herança dos mouros foi artística, musical, cultural e arquitetônica. O próprio flamenco teve influência dos ritmos e dos instrumentos mouros. Os pais de Agostino, Antônio e Clara, viviam em um arrabalde semirrural, conhecido como mourarias. Sócios de indústrias artesanais de arreios e de carros de bois, também comerciavam tapetes e armas. Deram ao único filho uma educação sofisticada. Ele nasceu, em 1685, em Almançor, reino de Valência, onde concentrava-se a maioria dos descendentes de mouros. Muito antes do nascimento de Agostino, em nove de abril de 1609, Filipe III decreta a expulsão dos muçulmanos. A perseguição começa na cidade em que sua família reside, e onde a população 106


de origem moura era maior. Aqueles que desejassem permanecer na Espanha, obrigatoriamente, precisavam converter-se ao cristianismo. Os mouriscos, como passaram a ser chamados, mesmo depois de um século da conversão, continuaram sendo um grupo social à parte. A maioria deles perderam a língua árabe em favor do espanhol. Porém, continuaram praticando o islamismo em segredo. Por muitos anos levaram uma vida sossegada. Quando Agostino estava perto dos 30 anos, recomeça um período de perseguição religiosa, e os conflitos exacerbam-se. Ele, por sua liderança, encabeça movimentos contrários aos governantes. Desafetos e invejosos aproveitam a oportunidade para denunciá-lo. As intrigas foram de tal ordem, que não resta alternativa, a não ser a fuga. Na época da Inquisição, a prática do islamismo, quando descoberta, resultava em prisões, torturas e quase sempre em pena de morte. No meu último dia em Valência, visitei os Las Chicas. A guia turística me acompanha, para conhecer a parte antiga da casa noturna. Os relatos são semelhantes aos que ouvi da antiga corista, mas a decadência é visível; a beleza que o lugar ostentou no passado parece ter ficado nas recordações de Lola. Não encontro a galeria dos retratos. Em vez dela, uma parede de azulejos gastos pelo tempo. Mas a guia diz que algumas das pinturas foram preservadas e encontram-se no escritório da proprietária. Peço para que me leve até lá. Angelina, a dona do bordel, seleciona entre as telas desgastadas pelo tempo uma que ela diz ser a de Agostino. Ao mesmo tempo em que observo ouço a descrição que ela faz: Belos olhos vivazes, charmoso, guapo e atlético; um sedutor. Adorava dançar descalço, tocar violão e fazer amor. Fascinada, mesmo diante da pintura desbotada, penso que poderia ter me apaixonado por aquele mouro se vivêssemos na mesma época. Entre sonho e realidade espero que aconteça o milagre da ressurreição.

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DIÁLOGO QUE NUNCA ACONTECEU Marlene Canarim Danesi Não sei se é sonho ou realidade, se uma mistura de sonhos e vida, aquela terra de suavidade que na ilha extrema do sul se olvida. É a que ansiamos. Ali, ali a vida é jovem e o amor sorri...

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Fernando Pessoa

ada melhor que a poesia de Fernando Pessoa para descrever o encontro com a pintura retratando Agostinho Guterres. A imagem é impactante. A beleza moura combina, perfeitamente, com as façanhas que ouvi contar sobre ele. Muitas ideias borbulham na minha mente, e meu desejo é fazer muitas perguntas. Mas a emoção me deixa sem palavras. Desejo guardar dentro de mim tudo que diz respeito ao meu antepassado. Tento interiorizar a beleza da imagem, fazendo rabiscos em meu diário. É uma tentativa de copiar os traços do belo rosto. Certa magia envolve o momento. Séculos nos separam, mas sinto a proximidade dele. Os deuses atendem ao meu pedido. O milagre acontece, e o retratado sai da tela e senta-se ao meu lado. Começo a ouvir sua fascinante história: Meus antepassados foram africanos, e meus pais mantiveram as tradições, apesar de terem nascido na Espanha. Enquanto na família de minha mãe só se falava espanhol, na linha paterna a língua árabe foi mantida. Antônio Gutierrez, meu pai, tinha orgulho de seus ancestrais. Seus familiares consideravam que as punições impostas pela Inquisição eram injustas. E desobedecer às determinações governamentais não era vergonhoso. Ter sido preso ou torturado, pelo contrário, era uma insígnia honrosa. Muitos membros da família Gutierrez praticavam a religião e a língua proibida. Meu pai nunca deixou de falar árabe. Mas nem todos os mouros viam a situação da mesma maneira. Minha avó materna não perdoava esse costume do genro. Lembro-me dela falar: Coitada de Clara, casar com um homem que teima falar uma língua amaldiçoada. Não sei muito sobre meus avós; faleceram cedo e não tiveram tempo de contar suas histórias. Mas 109


lembro-me bem dos tempos de criança, da minha adolescência e dos poucos anos de juventude, em que vivi nesta extraordinária cidade que é Valência. A infância foi muito feliz. Nasci e me criei em um daqueles lugares encantados, onde o azul do céu e os verdes dos campos entrelaçam-se. Antônio e Clara fabricavam arreios, pois os cavalos eram essenciais para os negócios. Aprendi a montar desde muito pequeno e tinha enorme prazer em galopar nos finais da tarde. Estudei em boas escolas, aprendi francês e, na mesma época, aprendi um pouco de português, com uma bela lusitana, que também me iniciou nos prazeres do sexo. Os amigos franceses da família insistiam para que eu terminasse os estudos em Paris. Minha mãe não concordava; era chegada às artes e o desejo dela era me ver músico. Fui matriculado no Conservatório, onde aprendi a tocar vários instrumentos; o violão foi o que me encantou. A dança me fascinava, sobretudo, as de origem ciganas, precursoras do flamenco. Assistir aos bailarinos, incendiados pelo calor dos instrumentos musicais, acendia labaredas em meu corpo. A música e a dança me levaram para boêmia e para as mulheres. Vivi intensamente muitos amores e sempre fiz sucesso no mundo feminino. Mas não me descuidei dos estudos; só não conclui o curso superior, por acontecimentos que mudaram meu destino. A vida era agradável, não faltava dinheiro nem prazeres. Jamais passou pela minha cabeça abandonar a família, os amigos e minha terra para viver na tua. Por influência paterna, desenvolvi simpatia pelo islamismo. Para conhecer mais sobre a religião decidi visitar Segorbe. Nessa cidade, número crescente de mouros estudava a vida e praticava os princípios de Maomé. Conheci, então, uma criatura encantadora, com atitudes muito diferentes das mulheres com as quais me relacionava. A família dela estava envolvida no movimento religioso. Viviam em uma casa grande que servia como mesquita para os adeptos do islamismo. Os frequentadores obedeciam ao Ramadã e liam o Alcorão. Conhecer as leis maometanas e os rituais muçulmanos foi o primeiro passo para aproximar-me de Maria do Rosário. Estava apaixonado; apesar de ter apenas 20 anos contratei casamento. No dia da comemoração, minha mãe que já não concordara com o noivado, gostou menos ainda das orações e da leitura do Alcorão. Comentou na volta para casa: Filho, estamos vivendo um período de trevas, o Tribunal do Santo Ofício volta a ser instalado na cidade de Valência. Até os nobres temem desobedecer às leis. Os costumes da família de tua noiva são intoleráveis neste país. A sociedade espanhola definiu-se 110


em aderir à fé católica. Temo pela integridade da família dela e pela tua, mesmo que não tenhas te convertido oficialmente ao islamismo. Não demorou muito para que os receios de dona Clara se concretizassem. Minha jovem noiva, aparentemente virgem e pura, secretamente tinha uma natureza vulcânica; a minha não era diferente. Maria do Rosário engravida e o casamento é feito às pressas. Continuamos morando separados. Apesar disso, felizes aguardávamos a construção da nossa casa e a chegada do herdeiro. Mas em manhã de inverno, uma reviravolta muda radicalmente minha vida. Os pais de Maria do Rosário são denunciados. Decretada a prisão, Damian quebra um frasco contendo cicuta, envenena a mulher, a filha e comete suicídio. Antes da tragédia consegue mandar, por mensageiro, um bilhete: Desculpa-me, Agostino, mas seríamos torturados antes da morte, tive que fazê-lo. Fuja: tu e teus pais serão os próximos. Tenho um primo que mora em um sítio nos bosques de Avignon. Vá para lá; ele é de confiança e vai te ajudar. Não me causou surpresa a atitude de Damian, ele sempre afirmou que escolheria a morte, se um dia fosse ameaçado de prisão. Tinha conhecimento das barbaridades e das humilhações que a Inquisição praticou contra seus antepassados. Sua bisavó Beatriz, ao visitar o marido na prisão de Saragoça, foi colocada em cima de um cavalo e obrigada a desfilar nua recebendo chicotadas. Um irmão dela foi posto sem roupas em um cavalete, pendurado por cordas. À medida que estas baixavam um objeto pontudo penetrava corpo adentro. Damian conhecia bem o ódio existente entre cristãos e mouros. Sensação de culpa toma conta de mim, ao ver o choro de minha mãe. Fica claro que é inviável permanecer em Valência. Meus pais voltam para aldeia de seus antepassados. Por ódio à Inquisição e à Espanha, decidi recomeçar minha vida em terras novas e distantes. Mas não é fácil fugir do país. Permaneço por vários dias com os parentes de meu sogro, que vivem longe da cidade. Eles conseguem um passaporte português. Nessa ocasião troco Gutierrez por Guterres. Auxiliado por um guia atravesso os Pirineus oriental. Ao chegar na França, amigos de família me acolhem muito bem, mas sabedores de meus planos de ir para o outro lado do mundo me informam: a indústria marítima de Gênova está contratando empregados para os navios com destino à América do Sul. Fico interessado, desejo recomeçar a vida bem longe da Europa. Chego à Itália, sou contratado como marujo. Tomo a decisão de adotar o Brasil como verdadeira pátria; porém, quase não chego lá... Bem, isto é outra história. 111


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UM POUCO DA HISTÓRIA DOS TROPEIROS Marlene Canarim Danesi [...]todavia, desde o inicio do século, a Vacaria del Mar era percorrida por tropeiros e contrabandistas de gado que visavam abastecer as Gerais ... o tipo social por excelência desse período – o tropeiro – era necessariamente um chefe de um bando armado. Essa fase do tropeiro foi marcada pela abertura de vias de comunicação do Rio Grande do Sul com o restante do país (estrada do Litoral, 1703, estrada da Serra, 1727) ao longo das viagens dos tropeiros.

Q 1

Sandra Jathay Pesavento

uando meu sogro, em 1725, organiza o grupo, chefiado por João de Magalhães, atende a um pedido das autoridades coloniais portuguesas. A Corte deseja fundar povoações e cuidar para que o comércio de gado não recaia nas mãos dos castelhanos. Brito Peixoto é considerado como o primeiro organizador de uma expedição a penetrar no Rio Grande. Ele me recomenda: Agostinho, você com esta experiência de tropeiro vai ajudar muito seu cunhado João. Na verdade, nas minhas andanças com Cristóvão de Abreu, aprendi muito sobre esse segmento social. Ele é conhecido como o primeiro tropeiro, admirado como desbravador, respeitado por todos os portugueses, militares e até por charruas. O objetivo dele é o de abrir estradas. A abertura das vias de comunicação é sua marca registrada, e até considerada como uma das fases da história dos tropeiros. *  Foto à esquerda: Domador e Peões da Estância de São Braz. 113


Minha aproximação com ele aconteceu logo após eu ter chegado a Laguna. O espírito aventureiro, comum a nós dois, consolida a parceria. Ele aceita, de imediato, meu oferecimento em acompanhá-lo, e reconheceu sempre minha contribuição na abertura de estradas. Abreu me contou sobre os primeiros tempos de Laguna, sobre os primeiros movimentos para conquistar o Continente de São Pedro e sobre muitas outras histórias. Sei, portanto, que desde o início do século, tropeiros e contrabandistas de gado já percorriam o Continente de São Pedro para abastecer Minas Gerais. Naquela região, havia muita necessidade de transporte, e os comerciantes davam preferência ao muar. Para buscar as mulas, o tropeiro precisava penetrar em território espanhol. O enfrentamento com os castelhanos e com os charruas, seus aliados, nunca foi pacífico. Uma grande quantidade de tropeiros chefiavam bandos armados. Experientes e ambiciosos invadiam os campos que não apresentavam divisas. Arrebanhavam animais e extraíam o couro do gado que iam encontrando. Não davam importância se os animais tinham ou não dono. As viagens, longas e cansativas, era preciso coragem para enfrentar situações adversas: do clima, de acidentes geográficos, dos ataques de feras e de animais peçonhentos. Mais perigoso, ainda, era se defenderem das escaramuças armadas pelos índios, amigos dos espanhóis, que aconteciam seguidamente. Em meu caderno de anotações está tudo anotado em detalhes: Os bandos que realizam as “arriadas” (arrebanho de gado xucro) aumenta a cada dia; percebo o crescimento em cada viagem que faço. Os conflitos entre tropeiros e criadores de mulas, habitantes das áreas platina, se intensificam. As brigas realizadas de armas nas mãos, de tropeiros com charruas crescem também. O motivo é sempre o mesmo: roubar os rebanhos desses índios. Essas verdadeiras batalhas são terríveis. Em uma das viagens à Colônia do Sacramento assisti a um confronto dessa natureza. Confesso que fiquei assustado, mas admirei a performance dos charruas, não só na forma como lutam, mas também na habilidade de dominar os cavalos; a cena 114


a que assisti foi mais ou menos assim: “Eles costumam atacar montados em pelo, não usam qualquer tipo de arreio, nem mesmo um pelego, não usam freio, nem buçal e agarram-se nas crinas dos animais. Para se protegerem, engancham-se pelas pernas, na lateral da barriga dos cavalos. É um escudo perfeito, mas difícil de ser executado, é preciso ser forte, possuir muito equilíbrio e domínio completo no cavalgar. Galopam com incrível velocidade, levam um punhal nos dentes e carregam as boleadeiras na cintura. Presencio um dos tropeiros ser morto nesse combate. O cavalo dele cai em uma disputa com o charrua, ele corre para se abrigar atrás de um umbu. Mas o índio agarra a boleadeira, gira sobre a cabeça (o movimento produz um zunido forte), as tiras de couro trançadas com pedras nas pontas são arremessadas e enredam as pernas do tropeiro, que é derrubado. O charrua logo ataca com o punhal que arranca da boca e a presa é morta de uma só estocada. É quase impossível escapar da precisão e destreza desses guerreiros.” Felizmente, os charruas nunca atacaram nossas comitivas. Creio que a presença de Cristóvão Pereira de Abreu nos serve como escudo protetor. Os indígenas sabem que Abreu não tem interesse nas arriadas. O objetivo dele é o de abrir estradas. No confronto a que assistimos, a luta foi vencida pelos charruas; os poucos tropeiros sobreviventes fogem, sem enterrar seus mortos. Os índios quase não sofreram perdas. Pilham os cadáveres dos inimigos. Enrolam em lonas os poucos irmãos mortos e prendem os corpos nos lombos dos cavalos. Galopam deixando para trás a terra manchada de sangue. Depois de passado o susto, Cristóvão e eu decidimos andar mais um pouco, para não acampar perto do campo de batalha, coberto de sangue misturado com bosta de cavalo. O sol já está por desaparecer, e à noite é impossível viajar; horário em que as onças pintadas atacam. Andamos quase uma hora, armamos nossas barracas e acendemos uma fogueira; é a forma de afastar as feras, répteis, mosquitos e outros animais. Aproveito o fogo e coloco a chaleira, preta de picumã nas brasas, para aquecer a água. Abreu me recomenda: afasta um pouco, se não a 115


água ferve e queima a erva, e o chimarrão não presta. Na realidade vamos precisar de chaleira mais nova. A princípio tomamos chimarrão em silêncio. Cristóvão, chupando fundo da cuia, me pergunta: Por que ficou tão quieto valenciano? Assustado por ver tantos mortos? Respondo que mortes não me assustam, Laguna é uma cidade violenta, já estou acostumado a ver muita gente morta. E eu mesmo já assassinei mais de uma pessoa. Não gosto de provocar o fim de ninguém, penso que nossas mãos não foram feitas para matar. Mas às vezes é preciso. Meu sogro tem razão quando diz: Besteira tua ficar com remorsos, gente que quer tomar nossas mulheres e nossa terra tem mais é que morrer. Cristóvão sorri e comenta: Mas o capitão está sempre dormindo com mulher alheia e tentando tomar as terras dos outros, se tem razão no que afirma, não deve se admirar de tanta gente querer assassinálo. E se pensa assim deveria dar razão aos charruas, porque eles nada mais fazem do que matar os invasores. Nós é que viemos tomar suas terras. Rindo também brinco com Cristóvão: por que você mesmo não faz a pergunta para o capitão. Mas voltando à cena a que assistimos há poucas horas, penso o seguinte: esses índios podem até ser cruéis, como são conhecidos, mas são fantásticos. Na manhã seguinte, seguimos viagem. Encontramos no caminho muitos tropeiros. Abreu comenta comigo: Cada vez é maior, o número de rebanhos levados para Feira de Sorocaba. Lá os tropeiros vendem para outros tropeiros, até chegar ao destino final, Minas Gerais. O negócio de gado está alcançando um incremento de tal ordem, que pouco a pouco, o gado vai escasseando. Infelizmente, com o abate indiscriminado a devastação do rebanho é eminente. Aconselho-te, como amigo, investir na criação, é uma forma de aumentar teus lucros. Há, também, boatos de que a Coroa portuguesa está pensando em distribuir sesmarias, definindo a posse da terra e do gado. É certo que serão beneficiados militares e tropeiros. Está fácil tornar-se estancieiro: o governo vai garantir as terras e os animais. E como os grupos armados tem muitos subalternos, estes poderão ser aproveitados como peões. Escuta o que estou te falando, Agostinho, será muito grande o 116


número de tropeiros que vão se transformar em estancieiros. Interessado, pergunto para Cristóvão qual é o interesse do governo português na distribuição de sesmarias? Ele me responde: A Coroa percebendo as dificuldades de manter a Colônia de Sacramento, pensa ser urgente a ocupação do vasto território entre o Prata e Laguna. O povoamento precisa ser feito, mas para atrair habitantes é necessário oferecer benefícios. Muito boa a conversa com Cristóvão. Sabendo da experiência e das amizades dele, começo a me organizar para investir nos campos de criação. Já tenho terras ocupadas no distrito das Lomas, ficando a sudoeste das sesmarias concedidas a João de Magalhães e Miguel Braz. Sebastião Francisco Peixoto e Francisco Vicente Ferreira são outros que têm terras que vizinham com as minhas. Preciso agora me organizar e tomar providências relacionadas a tudo aquilo que Cristóvão me recomendou. Necessito, também, escolher bem, quem vou deixar cuidando da propriedade, até conseguir trazer a família e me estabelecer definitivamente. Abreu também me falou que para ter as terras legalizadas será preciso comprovar a permanência nelas. Sendo assim, há necessidade de demonstrar que são produtivas. Em pouco tempo realizo tudo o que foi planejado, desde minha prosa com Abreu. A única providência que ficou esquecida foi a legalização da propriedade. Vejo, agora, no final da vida, que não deveria ter relaxado em algo tão importante. Imagina morrer e deixar minha Maria enrolada com as autoridades. Esses dias, quando conversava sobre o testamento com meus filhos e genros, alertei todos eles da necessidade em providenciar a legalização. Pela primeira vez, pela resposta de Felipe, percebi que ele está realmente decidido a não permanecer em Viamão. Não demonstrou dúvidas quando afirmou: Minha vontade é estabelecer-me bem ao sul da província, deixando lavouras, criação e estas terras, para meus irmãos, portanto, esta tarefa é mais deles do que minha. Só bem mais tarde Felipe realiza seu sonho. Acompanhei de perto a História do Rio Grande do Sul até minha morte em 1763. Aqui, a distribuição de sesmarias foi diferente da concessão no nordeste. O critério principal era 117


por retribuição a serviços prestados ao governo português. O que explica a doação ter sido feita, majoritariamente, aos tropeiros, que se fixaram, e aos militares que deram baixa; a Coroa reconheceu os benefícios que foram feitos a Portugal, por ambos segmentos sociais. As sesmarias mediam mais ou menos cerca de 1.300 hectares e foram todas elas transformadas em estâncias. Nós, os fazendeiros, nos dedicamos à criação extensiva do rebanho. Aproveitamos como mão de obra os subalternos dos antigos bandos que tropeavam o gado. Alguns fazendeiros, e me incluo entre eles, também, aproveitaram índios missioneiros, pela grande experiência demonstrada por eles com este trabalho. Todos se transformaram em peões das estâncias. Escravos de origem africana trabalhavam nas fazendas, mas não se constituíram na mão de obra principal. Ainda que em menor número, são os negros que no galpão distraem a peonada contando causos de assombrações. Histórias da mula sem cabeça, de lobisomens e de almas penadas. Eu aprecio ouvir esses causos, e a maneira de como são narrados. Os escravos, quando narram esses contos, o fazem como estivessem assustados, interpretam com tanta veracidade que provocam medo na plateia. Na minha fazenda, as histórias mais recorrentes diziam respeito a conflitos por causa de mulheres. O escravo Juvenal falava de uma escrava assassinada pelo feitor. Ele descobre que a mulher o trai com um índio tapuia e indignado arma uma cilada para os amantes, em uma noite de céu sem estrelas e sem lua. Com ajuda de outros escravos, assassina os traidores. Depois de esquartejá-los não permite que sejam enterrados. Deixa os corpos expostos para serem comidos por corvos e urubus. Em todas as noites sem lua e sem estrelas, os fantasmas dos dois aparecem e, com gritos e gemidos, não permitem que ninguém durma no galpão. Juvenal termina a história assustando mais a peonada: Pode acontecer ainda pior, e eu já assisti às almas penadas puxaram viventes pelos pés e arrastarem campo a fora. Já se passou comigo. Quando vi estava à beira do açude, e lá os corvos me esperando. Minha sorte foi que o sol nascia e as almas penadas somem com a claridade. Se não, quase 118


sirvo de carniça de urubu. Noite adentro o velho escravo continuava contando histórias que deixavam a peonada de cabelos arrepiados. Essas narrativas atravessaram gerações, e até hoje causos parecidos com esses são contados nas rodas de chimarrão, na campanha do Rio Grande do Sul.

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DE VOLTA AOS MEUS SEIS ANOS Marlene Canarim Danesi Passou-se o tempo da feliz idade! Foram-se as horas desses dias de ouro. Em que eu julgava a terra e a mocidade. Sempre a caudal do gozo imorredouro. Passaram-se sonhos, ilusões, ideais! Foram-se os dias que não voltam mais!

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Brant Horta

G

osto muito de poesias; Manuel Bandeira é meu poeta preferido. Mas de todos os seus poemas o que mais me toca é: Profundamente. O poeta usa-o como epígrafe do livro Libertinagem. Destaca a infância como o tempo da feliz idade e menciona os seis anos. Época, da qual, também guardo, dentro de mim, as mais caras recordações. Dos lugares onde passei minha infância, jamais me esqueço. As vozes desse passado distante não morrem, permanecem adormecidas. Sempre que acordam me salvam da tristeza, do aborrecimento. Descubro então que as raízes do ato criativo encontram-se mais em nossos sonhos, nas ilusões, nos dias que se foram e não voltam mais. A origem da criatividade está também no sofrimento próprio ou alheio. A poesia de Bandeira, da minha preferência, tem versos que falam por mim: Quando eu tinha seis anos. Não pude ver a festa de São João. Porque adormeci. Hoje não ouço as vozes daquele tempo. Minha avó. Meu avô. ToTônio. Rodrigues.Tomásia. Rosa. *  Foto à esquerda: Casamento de Lydia Guterres e David Mazzini na Estância de São Braz. 121


Onde estão todos eles? – Estão Dormindo. Estão todos deitados. Dormindo profundamente.

Eu poderia substituir e acrescentar nomes. Em vez de Totônio podia falar em Pascal, Libório ou Quincas. Em vez de Tomásia poderia descrever Tetéia, Izabel ou Germana. E ainda trocar Rosa por Baiana. Mas se os versos fossem meus acrescentaria meus pais e meus avós. Todos os tipos inesquecíveis, que participaram de minha infância, adolescência e alguns até da idade adulta. Hoje estão invisíveis, mas não morreram. Em cada pensamento descubro resquícios de ensinamentos, que recebi deles, em cada conceito repercute a sabedoria que me transmitiram, e em cada emoção a influência do afeto que recebi de todos. Tive o privilégio de ter conhecido meus quatro avós. Os dois avós masculinos chegaram vivos quando completei 14 anos. As avós estiveram presentes, em minha vida, até a idade adulta. Ambas participaram da minha festa de quinze anos, assistiram ao meu casamento e conviveram com meus filhos. Estabeleci com os quatro ligações fortes; foram verdadeira rede de apoio. Alguém já disse, não lembro quem, a infância é um lugar ao qual não se pode voltar, mas nunca saímos de lá. Somos forjados nos primeiros anos de vida. Tenho certeza, o que sou hoje tem raízes nos meus tempos de criança. E meus avós contribuíram muito na minha formação. A morte de meu avô paterno foi minha primeira despedida. Era adolescente; entendi a perda de forma real. Meu pai fez questão que eu acompanhasse o velório e o enterro. Fez bem. Aprendi naquela ocasião, ser necessário viver o luto para enterrar os mortos. Consegui dar o adeus passando, carinhosamente, a mão na testa fria do vovô Edgar. Percebi que perdera o parceiro, com quem aprendera distinguir os trinados dos passarinhos na Praça Garibaldi. Não teria mais sua companhia para tomar sorvete. Todas as tardes ele me levava no bar do seu Palé, na rua José do Patrocínio esquina com Avenida Venâncio 122


Aires. Fiquei matutando, quem me acompanharia às matinês de domingo, no Cinema Avenida ou no “Garipulga”, como ele referia-se ao Garibaldi. Tive certeza de que ninguém mais me chamaria de Micaela. Vovô gostava de apelidos extravagantes. Meu avô materno morreu um ano depois. Com vovô Davi foi-se o melhor contador de histórias. Lembro que foi dele que ouvi as primeiras histórias dos antepassados. Vovó Doca, apelido de Dona Lydia, também sabia contar histórias. Mas, as mais fabulosas, ouvi dele, na adolescência, quando passou meio ano na casa de meus pais, recuperando-se de um AVC. Minha mãe organizou uma verdadeira enfermaria. Desocupou dois quartos para maior conforto dele. Meu irmão e eu nos amontoamos em um pequeno quarto, mas isso nunca nos incomodou. Gostávamos da presença dos avós. Lembro-me de ver vovô reaprendendo a caminhar, com Helga, uma enfermeira alemã que falava português, com sotaque carregado. Recordo do médico que o visitava, diariamente, Dr. Vitolla. Mas as maiores recordações são de nossas conversas. Quando hoje procuro analisar o comportamento dele, não consigo explicar a mim mesma a personalidade contraditória do meu avô. Assim, como a maioria das vezes era sério demais, até irascível, em outros momentos a convivência era de ternura. Com a doença o lado terno se acentuou; ensinou-me poucas palavras em italiano. O pai dele viera adulto da Itália. Minha avó Lydia tinha origens açorianas e indígenas; estas ela sempre ignorou. Se sei agora onde tudo começou, é pela pesquisa de meu cunhado. Na verdade, ela não tinha nenhum traço que pudesse ligá-la a um ancestral índio. Olhos claros, a pele era de uma brancura aveludada. Ela se orgulhava da alvura de sua tez, jamais saía ao sol sem a charmosa sombrinha com desenhos japoneses e criticava as netas por tomarem banho de sol. Econômica e trabalhadora (apesar de ser uma mulher muito rica), ocupava-se de afazeres domésticos. Sabia fazer de tudo, menos cozinhar; não gostava da arte gastronômica. 123


Interessante é que mesmo assim, sempre que sinto cheiro de temperos, me lembro dela. A casa de meus avós era impregnada de sabores e aromas. Porém, a recordação maior que tenho de vovó, é sentada na máquina de costura. De suas mãos saíam lindas calcinhas. Para o verão as de chita com rendinhas; as de pelúcia com tiras bordadas, para o inverno. Não era amiga de abraços e beijos, mas no fundo era muito amorosa. Penso que sua timidez impedia de expressar o que o coração sentia. Mas suas atitudes demonstravam afeto e carinho. Fazia questão de dar o primeiro banho em todos os netos (e não foram poucos), penso que perto de 40. Alguns bisnetos também tiveram esse privilégio. Parecia frágil, mas só na aparência. Admirável a coragem dela, quando soube da gravidez da minha mãe, que estava na Bahia. Mesmo sem nunca ter saído de Bagé, não pensa duas vezes; vai de trem até o Rio de Janeiro. Embarca em um navio alemão, com minha tia Geny, rumo a Salvador. Jamais deixou de acompanhar o parto das filhas. No meu nascimento chegou dois dias depois. Mesmo assim, minha mãe a vida inteira agradecia ter contado com a presença materna, em uma hora tão importante. Vovó segurou-me nos braços e me cuidou os seis meses que passou em Salvador. Nunca falava que não podia, estava sempre disposta a atender aos pedidos dos netos. As recordações da minha avó paterna estão presentes também, embora mais distantes. Vou tentar fazer um retrato dela: era uma fronteiriça trigueira, com feições que lembram que o sangue africano também corre em nossas veias. Mas ainda desconheço de que tronco do meu clã inicia a origem africana. Porém, deve existir, em alguns parentes os cabelos excessivamente crespos que denunciam, em algum momento, deve ter acontecido um enxerto ou cruza com a raça negra. As razões do estranho nome, Brezolina, estão perfeitamente explicadas. Meu bisavô, um italiano apaixonado pelo Brasil, o primeiro Davi da família, presta homenagem à pátria adotada, 124


batizando as quatro filhas mulheres, com nomes iniciados com a letra b: Brasilina, Brezolina e as gêmeas Borgínia e Brasília, chamada de Mimosa. A mãe de meu pai, a Brezolina, que todos chamavam Brezola, casa-se com um caixeiro-viajante, de Rio Grande, Edgar Canarim. Abre uma ferragem em Bagé, mas é infeliz nos negócios. Corajosos, o casal refaz a vida em Porto Alegre. Minha avó, apesar de ser filha de um abastado fazendeiro, acostumada ao conforto, não se envergonha de preparar viandas e vender na vizinhança. O marido ajuda: cozinha muito bem, sua mãe Dona Conceição destacou-se fazendo banquetes para a alta sociedade de Rio Grande. Para auxiliar no orçamento, vovó Brezola lava e passa roupa e faz tricô. Pela qualidade do trabalho, atrai uma clientela endinheirada. Vovô Edgar volta a fazer viagens vendendo produtos para ferragens. Trabalhando duro, formaram os onze filhos, inclusive as cinco mulheres. Paralelamente aos estudos, minhas tias também trabalhavam com agulhas. Exímias na arte de tricotar, fazer crochê e bordados. Meu pai superou os irmãos acumulando três formaturas: contador, oficial do exército e médico. Ele e minha mãe tinham uma cumplicidade tão grande, que eu me sentia excluída. Impossível entrar na intimidade dos dois; eu invejava o relacionamento. Entretanto, eram totalmente diferentes. Eu oscilava como um pêndulo, não sabendo quem admirava mais. Meu pai era econômico, sem ser avarento. Imagino que as dificuldades, na infância e adolescência, foram responsáveis por esse modo de agir. Realista, tinha os pés no chão; o otimismo era marcante em sua personalidade. Lembro-me de uma resposta que ele dava à minha mãe, quando ela reclamava do dinheiro curto: a situação financeira pode não ser boa, mas a econômica é ótima. Demorei-me para entender o sentido da frase; herdei dele a capacidade de planejar os gastos. Minha mãe era uma mulher elegante, não poupava recursos com o figurino. Às vezes desejava o impossível; frustrada aparecia a faceta pessimista de seu caráter. Ao 125


contrário do marido, que apreciava fazer novas relações, ela era de poucos amigos. Herdou da minha avó a dificuldade de externar sentimentos. Mas era uma pessoa extremamente generosa, sempre disposta auxiliar os menos favorecidos. À semelhança do casal estava na aparência: olhos grandes, negros, expressivos e com um brilho, que conservaram até a morte. A sinceridade do olhar de Edil, e a sagacidade dos olhos de Nely destacavam a beleza de ambos. Nasci em 17 de setembro de 1935, em Salvador, sob o signo de Virgem. Minha mãe sempre contava sobre as dificuldades do parto, e da minha insistência em não querer abandonar o útero materno. Nascer de nádegas, em casa, vencer um túnel apertado, não deve ter sido nada fácil para mim e para ela. E com certeza o esforço e ânsia de abandonar a escuridão são responsáveis pela claustrofobia. Não gosto nada de túneis escuros e de cavernas; muito tempo em lugares fechados começo ter sensação de estrangulamento. Mas se nascer foi difícil, minha infância foi divertida e alegre. Amo lembrar meus tempos de criança e dos tipos humanos com os quais convivi. Quando lanço um olhar para o passado, tenho a impressão que minha vida da infância à adolescência foi muito mais longa, do que vivi na idade adulta e estou vivendo na velhice. O tempo entre meus seis e vinte anos arrastaram-se com lentidão. E como foi gostoso ter acontecido assim. Foram anos dourados e tantas recordações múltiplas, que às vezes me confundo com a ordem cronológica dos acontecimentos. As recordações são um território de fatos entre a memória e a imaginação. E nem sempre se pode acreditar em todas elas: a distância entre os acontecimentos e as lembranças, muitas vezes as modifica. O tempo da memória é sempre diferente da do calendário tradicional. Mas não me importo com os simples ponteiros do relógio. O importante são acontecimentos e pessoas que participaram da minha vida. Hoje não ouço as vozes daquele tempo. Todos estão dormindo 126


profundamente... Mas em meus sonhos, todos acordam; por isso gosto tanto de sonhar.

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A DESCENDÊNCIA DE AGOSTINHO GUTERRES: FELIPE Marlene Canarim Danesi Faziam guerras acompanhados por enormes tropas de bois que iam matando e comendo com sal e farinha de mandioca que carregavam nas carroças, junto com a erva-mate para o chimarrão cevado junto ao fogo. E ainda a manada de cavalos, renovada pelo caminho e de onde tiravam substitutos para os cavalos mortos na luta. E pelo meio o violão, os versos de desafios e os passos de chula... O resultado seria um fortíssimo sentimento nacionalista com o qual as crianças cresciam e pelo qual, ao longo da vida, lutariam com o apoio das mães, das avós, dos filhos e das mulheres.

N 1

Hilda Simões Lopes

ão preciso recriar os tempos em que vivi em Laguna e Viamão. Estão desenhados na minha mente. Conheço bem lugares onde passei a infância, adolescência e parte da juventude. Basta fechar os olhos e recordar. Mas não lembro bem quando decidi abandonar o lugar onde minha família se estabeleceu. Tenho recordação, sim, da surpresa de meus pais, quando, pela primeira vez, comunico minha vontade de ir para fronteira. Minha mãe, quase sempre calma, se exalta e levanta a voz: Felipe, qual a razão desta outra ideia maluca? Não basta estares sempre metido em entreveros e escaramuças com os castelhanos, ou tocando violão atrás de alguma china? Agora completou a maluquice: *  Foto à esquerda: Os primos Sergio Roberto Canarim Danesi,aos 15 anos com Felipe Flores Pinto bisnetos de Lydia Guterres. 129


queres abandonar tudo que é nosso. Vais deixar teu irmão Francisco cuidar sozinho da lavoura e da criação de gado? Teu pai já está velho, sabes que ele não pode contar com Sebastião, que é um inútil, vive metido no sertão. Dizem até que tem uma filha com uma índia missioneira. Cláudio cuida dos negócios que temos em Laguna, vive com o pé na estrada. Não posso concordar com este teu capricho; só pode ser outro rabo de saia. Desta vez desisto, mas a ideia não sai da minha cabeça. Estou certo do que desejo como destino. Quero terras, gado, cavalos e propriedade que sejam somente minhas. Aqui em Viamão não vou conseguir, está tudo ocupado. Minha mãe não está errada quando me descreve como conquistador, igual meu avô Francisco. Mas penso que bem lá no fundo, este comentário não deixa de ser um elogio. Dona Maria, tem uma enorme admiração pelo pai, para ela não tem ninguém mais bonito que o capitão-mor. Esses dias, ouvi a descrição que ela fez dele, para uma vizinha que não o conhece: meu pai tem olhos selvagens, sobrancelhas negras, sorriso encantador e coração quente. Mas minha mãe tem razão de me comparar com vô Francisco, no que diz respeito às mulheres. Conquisto fácil: índias, negras, solteiras, casadas e viúvas. Meus irmãos comentam: Felipe é viciado em sexo. Mas a paixão por viagens, eu herdei de meu pai. A diferença é que o prazer de Agostinho era desbravar novos caminhos, e o meu é guerrear e nas horas vagas fazer amor. Dominar cavalos xucros, cantar, dançar e dedilhar as cordas de um violão são prazeres sensuais para mim. Mas não deixo de fazer meus negócios; tenho espírito prático. Ir a Rio Grande é uma viagem que me encanta. É um destino que proporciona reunir todos esses prazeres. O povoado oferece oportunidades comerciais, mas o povo é festeiro. Organizam muitos eventos sociais. As festas religiosas reúnem as famílias cristãs, e as pagãs são verdadeiras orgias, onde se bebe, canta e dança até o sol nascer, acompanhado por belas mulheres. Faço negócios com Conceição, um vendedor de cavalos e de gado arreado. Ele é açoriano e veio do arquipélago para ocupar as Missões. Porém, o Tratado de 130


Madrid nunca foi cumprido. Os portugueses não entregam a Colônia do Sacramento e os espanhóis continuam a ocupar as Missões. Não resta alternativa ao português; para sobreviver e sustentar a família dedica-se a negócios pouco confiáveis: apropriação de rebanhos e compra e venda de mulas. Associo-me a ele, e, seguidamente, estamos envolvidos em conflitos. Minha condição de Alferes auxilia na solução. Escuto muitos comentários sobre a beleza da filha de meu sócio. Ainda não a conheço, mas um amigo faz a descrição: olhos de puma, e cabelos negros que contrastam com a pele clara. Esbelta, cintura fina e quadris levemente ondulados ela caminha descalça e o andar é de potranca indomável. As atitudes de atrevimento assustam os homens. Em roda de boemia, correm boatos sobre façanhas da jovem. Ser bela, já ter passado dos 20 anos e ainda solteira, fica por conta da ousadia. A sensualidade felina de Teodosia também intimida os homens. Seu Raimundo, dono do boteco onde correm as fofocas e pinga, comenta: ninguém casa com mulher como a filha do Conceição. Fêmea desta espécie é boa para se derrubar no barranco ou no máximo se ter como amásia. Jamais levar para o altar, ainda mais, quando acompanhada de pobreza. O marido não recebe dote algum, e periga ganhar um par de chifres. Gargalhada geral, com as explicações de Raimundo. Sinto curiosidade em conhecer a filha de meu sócio. Invento pretexto para ir na casa do açoriano. Quando me aproximo do rancho, vejo pela primeira vez Teodósia Maria da Conceição. Sentada em uma almofada amarela, na porta da choupana, prepara ramalhetes de ervas que vende no vilarejo. Amarro o baio no galho do cinamomo e abro a cancela. A jovem levanta a cabeça, duas grossas tranças escorregam na altura do decote da blusa desbotada. As pernas apetitosas aparecem entre os babados da saia. Olhos selvagens encontram os meus; sinto que falam a mesma linguagem. Começo fazer mais visitas à casa de Conceição. Levo sempre uma garrafa de vinho, pão e queijo; sei das dificuldades por que passam. Ao contrário dos machos da cidade, a jovem fascinante e sensual não me intimida, ao contrário, me excita. A açoriana 131


pode não ser mulher para casar, mas nasceu para amar e ser amada. Não importa a pobreza da família, a faísca da paixão se acende entre nós dois. E se oculta em idas e vindas de Viamão a Rio Grande. As visitas comportadas começam a ficar insuportáveis. Desde jovem me habituei a ser dono dos corpos das índias e das escravas. Agora é diferente; Teodósia tem pais que a vigiam. Mas a lascívia cresce. Em rápida conversa a sós falamos de sonhos, de volúpia e prazer. Duas tentativas de encontros amorosos fracassam. A primeira em uma festa da comemoração do ano bissexto. Outra, no riacho que passa no interior da mata, onde ela costuma tomar banho. Em ambas as ocasiões, somos surpreendidos. Ela é vigiada, e os pais percebem o nosso envolvimento. Receiam que não passe, por meus planos, compromisso sério. E conhecendo o temperamento da filha não desejam vê-la desonrada. Não estão errados; seria bem difícil convencer meus pais de casar com alguém de posição tão inferior. Mas não desisto de possuir a açoriana. Enquanto a oportunidade não surge procuro encontrá-la em festas onde podemos dançar e estarmos mais próximos. Em certa noite, em um povoado vizinho, acontece um concurso de dança. Teodósia é uma das concorrentes, dança e sapateia, com graça e elegância. Mas a segunda dançarina parece entusiasmar mais a plateia, e a atenção de todos se voltam para ela. Nossos olhares, meu e de Teodósia, se cruzam e se entendem. Aproveitando a confusão, ela disfarça e sai do salão com o coração afogueado. Saio atrás, e rapidamente a coloco na garupa de meu cavalo. Sinto o rosto e os seios de Teodósia encostados nas minhas costas. Galopamos por quase uma hora. A noite está clara e a lua cheia ilumina a estrada. Vou em direção ao rancho que abriga meus companheiros militares. O soldado me reconhece, puxa meu cavalo e fala: Alferes, o rancho está lotado, só tem o quartinho no fundo do galpão. Respondo que não tem problema. Nem percebemos que falta cama, tapetes e pelegos. Nos abraçamos, caímos em cima das roupas, colamos bocas e corpos. Foi esplêndida a primeira noite de amor. Antes do amanhecer, os cavalos relincham. O rancho 132


está sendo atacado por índios tapuias. No embate, sou gravemente ferido. Quando acordo estou na choupana de Conceição. Os ferimentos impedem o transporte para Viamão. Teodósia está ao meu lado. Ela fantasia a versão dada aos pais. O ataque dos índios acontecera no caminho para Rio Grande. E que eu estava ferido por tentar salvar a sua vida. Nunca fiquei sabendo se eles acreditaram na explicação, mas não se falou mais no assunto. Permaneço muito tempo me recuperando. Teodósia me cuida e descobre que engravidou. Quando a barriga começa a ser notada, não tenho outra escolha a não ser reparar o erro. Foi assim que caso com a bela, atrevida e ousada primogênita de Conceição. O casamento é em Rio Grande, mas vamos viver em Viamão na estância de meus pais.

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FELIPE CHEGA EM ENCRUZILHADA Marlene Canarim Danesi [...] Ouro amarelo, fulgurante, ouro precioso! (...) Basta uma porção dele para fazer do preto, branco; do feio, belo; do errado, certo; do baixo, nobre; do velho, jovem; do covarde, valente. Ó deuses!, por que isso? O que é isso, ó deuses (...)

N 1

O vil metal, de William Shakespeare

ão houve grande desgosto de meus pais, por eu ter unido meu destino com alguém de condição bem inferior à nossa. Mas na verdade, em se tratando de estratégia matrimonial somente meu irmão mais velho, Cláudio, casa-se com uma moça da família Robalo, com posição social semelhante à dos Guterres. Os outros e as cinco irmãs não fizeram alianças muito apropriadas, segundo meus pais. No meu caso específico, minha mãe ficou muito agradecida pelo acolhimento que me foi dado, pelos Conceição, enquanto me recuperava. E mesmo depois de saberem que eu tinha abusado da confiança deles e ter engravidado Teodósia, antes do casamento, continuaram a cuidar da minha saúde. Minha mãe também sempre foi grata à nora, pelos cuidados que me dedicou; fundamentais para minha recuperação. Depois de casado fui obrigado a mudar de vida; menos festas e mais trabalho. Passei a ajudar meu pai e meu irmão Francisco na lavoura e na criação de gado. Nasce meu primeiro filho, Manuel, que falece antes de completar os seis anos de idade, mordido por uma jararaca. Ao todo, foram quatorze com Teodósia. Talvez, nasceram alguns, que nem fiquei sabendo, outros duvidosos se eram ou não meus, e ainda aqueles em que tive certeza, mas não registrei. Era *  Foto à esquerda: Felipe Danesi Pernambuco neto de Marlene Canarim Danesi reinando em seu sofá em São Paulo. 135


comum, os homens buscarem o prazer com outras mulheres e não com a esposa. Os que tinham muitos recursos montavam casa para as amásias. Mesmo aqueles que não tinham posses sempre encontravam tempo e dinheiro para dar uma escapada. Era o meu caso, mas também minha mulher ou estava parindo ou embuchada. Dos quatorze filhos, somente o décimo quarto não nasceu em Viamão. O registro de batismo é de Encruzilhada, para onde decidi me mudar em 1798. A mudança não foi fácil. Em primeiro lugar, meus pais não gostaram nenhum pouco da decisão, além de muitos questionamentos sobre os motivos de eu estar abandonando a família e a querência; meu pai demonstra muita preocupação em que eu faça uma viagem levando tantas crianças. Para ele é uma ideia absurda; tenta me convencer e argumenta: Felipe, já pensaste nos perigos que vais expor tua família. É muito arriscado uma viagem tão longa e com treze crianças e uma mulher grávida. Nestas matas virgens vivem muitas onças e jaguares, e pior ainda são os ataques de bandoleiros. Minha resposta sempre foi no mesmo sentido: meu pai respeito seus temores, mas tem que entender que é esta minha opção de vida. Sou ambicioso, não me contendo com esta vida modesta, contando tostão por tostão. Quero deixar alguma coisa para essa filharada que botei no mundo. Agora é a hora. Com a expulsão dos espanhóis do Rio Grande, abriu-se espaço para ocupação de terras e apropriação do gado e dos cavalos deixados para trás por eles. Há, inclusive, casas boas abandonadas pelos castelhanos. É preciso aproveitar a oportunidade, com a retirada deles, naquelas bandas da fronteira sobram bens que não são de ninguém. Quem chegar primeiro vai enriquecer. Eu não estava errado; fiz fortuna. No outono daquele mesmo ano deixo para trás a estância onde me criei. Em uma manhã ensolarada parto com Teodósia, grávida, e a penca de filhos. Como só tenho três escravos, levo em minha companhia vários índios carijós. Meu pai me entrega o roteiro de Domingos Filgueira, para não ter perigo de nos perdermos e me recomenda: só entrem na mata para apanhar caça e cuidado na hora de pescar; lontras e jacarés se ocultam nos rios. Verifiquem 136


se não esqueceram as facas de mato e experimentem e municiem as armas. Saímos da estância rumo ao sul. Em uma carreta acomodo as crianças e Teodosia, na outra vão as provisões e muitas cobertas. Os três escravos e os carijós andam de dois em dois, com as espingardas sempre à mão. Por último, eu fecho a comitiva com três cães bravos. Andamos por montanhas, matas e rios. Em certos trechos é necessário atravessar com a jangada, que foi construída pelos índios. Só paramos quando o sol está próximo a desaparecer. Dormimos em barracas durante as gélidas noites. Os escravos acendem fogueiras para espantar os pumas e as cobras que infestam a região. Estou temeroso que Teodósia possa parir antes de chegarmos ao destino. Ela se queixa de dores, mas penso que estamos perto. Alívio, quando enxergo um casario e uma pequena igreja. Pelo mapa de Filgueira é Encruzilhada, a terra em que vou viver até morrer. Lugar onde três gerações depois da minha fixam residência. Não demora muito e nasce nosso filho, Joaquim Guterres d’Alexandria. O ano é 1798. O sobrenome Alexandria foi acrescentado muitos anos depois de seu nascimento. E não foi só ao dele, Antônio e Fidélis, mais velhos que Joaquim, são conhecidos como Guterres d’Alexandria. A razão dessa diferença no sobrenome desses três filhos foi por insistência da minha mulher, extremamente devota de Santa Catarina, mesma que deu o nome ao Estado de Santa Catarina. Em Encruzilhada, acontece uma epidemia de tifo. Antônio, Fidélis e Joaquim são vítimas da enfermidade. Teodósia ora dia e noite e não sai da cabeceira das crianças. Faz uma promessa de que se a saúde voltar aos três, vai acrescentar o nome da Santa ao sobrenome deles. Eles sobrevivem e ela cumpre a promessa. Os três passam a ser conhecidos como Guterres d’Alexandria. Não se sabe bem a razão, se eles próprios, os amigos ou o próprio povo modificam o sobrenome outra vez, e os três começam ser chamados de Alexandrinos. Fidélis d’Alexandria, o primeiro Fidélis da família, casa com Francisca Maria da Silva. Nossa nora tem as mesmas raízes de Teodósia, os antepassados de ambas vieram da 137


Ilha de São Jorge, situada no Arquipélago dos Açores. Os açorianos foram iludidos com a esperança de ganharem terras na região das Missões. Frustrados com promessas não cumpridas ficam represados, aguardando novas oportunidades. Do casamento de Fidélis e Francisca Maria da Silva nasce, entre outros filhos, a primogênita Joaquina Guterres de Alexandria, registrada apenas com o nome do pai. Ela casa com Cândido Paulo de Souza, também de origem açoriana. Minha neta acompanha o marido que deseja sair de Encruzilhada. O casal vai residir em Lavras, onde ele encontra melhores oportunidades. Mas mantém propriedades na cidade onde nasceram. Parece que Joaquina nunca quis abandonar as nossas raízes, ela e Cândido visitavam, seguidamente, parentes e cuidavam de negócios em Encruzilhada. Joaquina me contou a história da família do marido, uma história pouco conhecida. Antepassados dele integraram aquele grupo de açorianos levados para o Uruguai, para construírem a cidade de São Carlos. Agora, na velhice, sem ter condições de desfrutar os prazeres que encantaram meu viver, me ocupo das recordações e reflito em cima das memórias. Quantas raças constituíram os Guterres! O sangue espanhol de meu pai, misturado com o sangue indígena de minha mãe, entrelaçados com a herança genética de meus antepassados portugueses e açorianos, é responsável pelo que sou. Se navegarmos através dos séculos, mergulhando em um passado mais distante, vamos encontrar, ainda, outros cruzamentos: mouro dos ancestrais de meu pai, austríaco da mãe de João da Câmara dos Lobos e o sangue belga dos Martim Lem. E caminhando para o futuro, ao chegar à quarta geração depois da minha, encontro minha descendente Lydia Marques Guterres. Ela mistura o sangue dos Guterres com o sangue italiano dos Mazzini. Como eu e Teodósia, o casal Davi e Lydia foram pais de 14 filhos. Os dois filhos homens cruzam com Infantini e Saraiva, famílias bageenses. As filhas mulheres casam-se com Lemos do Uruguai, Carvalho de Itaqui, Canarim de Rio Grande, Osório Pereira de Bagé, Paiva do Rio de Janeiro e com Rodrigues de Santana do 138


Livramento. Atrás de cada um destes sobrenomes existe um tesouro de recordações que desconheço. Fatos acontecidos muitíssimo tempo depois da minha morte. Porém, conheço bem a história de meus filhos e um pouco da vida de meus netos e bisnetos. Mas é importante ouvir suas próprias vozes. Antes de conceder a palavra para os Alexandrinos, faço questão de ouvir o que tem a contar Helena, da fazenda de sua avó Lydia, neta de Joaquina, minha filha.

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Marlene segurando seu filho Fernando ao lado de José Danesi, abaixo seus filhos Carla e Sérgio em frente a casa de São Braz. 141


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A ESTÂNCIA DE SÃO BRAZ Marlene Canarim Danesi Lembro-me da minha infância, daqueles dias em que eu brincava nos grossos galhos dos umbus como se fossem minha casa, olhava a imensidão dos campos e o céu sem-fim, sonhava que o baio que Tio Preto encilhava para mim fosse alado e me levasse a voar por cima dos arvoredos... até ouvir a voz de Teteia: desça daí, menina, seu avô está a chamando.

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Marlene Canarim Danesi

tempo não apaga da memória uma figura importante da minha infância: Libório, o nome que lhe foi dado quando nasceu. Mas soube só mais tarde; para as crianças, apenas tio Preto. Filho de escravos, beneficiado pela Lei do Ventre Livre e criado junto com minha avó, acompanha-a como parte do enxoval de casamento. Vovó, de Lydia passou a ser chamada Lindoca e depois Doca. Ela dedica um carinho especial ao irmão de leite. Mamou nas tetas negras junto com ele. Tio Preto, embora analfabeto, decifra os saberes do mundo melhor que qualquer letrado. Um verdadeiro feiticeiro, conhece o poder medicinal das plantas, compreende e fala com o animais. Decifra os códigos dos córregos, dos campos e das matas. Aprendi com ele a interpretar os segredos da natureza, saber o porquê do gado assustar-se de repente, dos cavalos tornarem-se ariscos e dos pássaros se alvoroçarem. Muita poesia nas conversas com o gaúcho negro. Ele encantou meus sonhos de criança. Joaquim da Cunha Marques, seu Quincas, outro 1

*  Foto à esquerda: Férias em São Braz: sentada na janela a direita Mariza Rodrigues e ao seu lado Maria Joaquina Mazzini Canarim. Em pé Edil Mazzini Canarim e Darcy Mazzini Canarim. Sentadas no chão Marlene, Walmy e Nely Mazzini Canarim. 143


personagem marcante. Primo pobre de minha avó, filho de uma irmã de Aurélia Marques, minha bisavó. Solteirão, vem para São Braz como capataz da fazenda, quando meu avô, velho e adoentado, necessitou alguém de confiança para tomar conta dos negócios. Alto, magro e discreto, quase nunca sorria, mas de uma seriedade simpática: uma santa criatura. Procurava sempre fazer nossas vontades, porém, desconfio que a preparação dos piqueniques era uma estratégia para ver-se livre dos diabinhos. Quincas nunca me convenceu como gaúcho autêntico. As botas, esporas, bombachas e chapéu de barbicacho (que caíam como luva no corpo da peonada) eram vestimentas estranhas no capataz. Desconfio que aceitara o cargo por necessidade, não por gosto. Entretanto, permaneceu na estância durante toda a vida útil. Um homem de excelente coração e de extrema confiabilidade. Os Guterres Mazzini devem muito a ele; cuidou de São Braz como se fosse dele. Teteia é outro personagem que parece ter nascido com a estância. Seu nome verdadeiro, Doroteia. Não sei se tinha sobrenome ou certidão de idade. Nada incomum naqueles tempos, resquícios da escravidão. Ela chega na fazenda como ama de leite de minha tia Edith, a primogênita de meus avós. Doroteia acabara de perder um filho. Os peitos da bela chinoca estufavam de leite. Ela e o marido se mudam para São Braz, mas a condição é ele no galpão e Teteia na Casa Grande. O berço de tia Edith é transferido para os cômodos da ama de leite. Na primeira mamada, a menina estranha. Minha avó tinha a pele alva, e o seio de Doroteia é cor de cuia. Porém, quando o leite quentinho jorra na boca de Edith, os olhos esquecem a diferença. A interação acontece e amizade permanece para sempre. Teteia cuida do primeiro filho de minha tia, que nasce com graves deficiências. Não foi só a primogênita que sugou nas tetas generosas de Doroteia. Ela e minha avó engravidam, na mesma ocasião, umas três vezes. Outras três das minhas tias mamam nos seios emprestados da descendente de charrua. Não cheguei a conhecer o marido dela; quando começo a me lembrar dela, já era viúva ou separada há muitos anos. Somente um dos quatro filhos que ela teve 144


era peão na estância. Só nunca soube quem era o pai de Germano, ele nasceu bem depois que Teteia não tinha mais marido. Assunto tabu ninguém gostava de falar. Uma vez tio Preto comentou: Germano é filho de gente graúda. Após ter deixado de ser ama de leite passou a ser governanta. Controlava o movimento da casa e todos os empregados lhe deviam obediência: da Casa Grande ao galpão. Os peões tinham grande respeito por Doroteia, pois era quem guardava o dinheiro deles, como se fosse um banco. Mulher miudinha e magra, com pernas e braços muito finos, olhos oblíquos, arcada dentária saliente. Não sei que idade teria, mas os cabelos começavam a embranquecer. Lisos e ralos iam até a cintura, mas raramente eram exibidos soltos. Costumava usá-los em coque de tranças, junto ao início do pescoço, presos com um passador de casco de mulita. Vestia sempre um avental com grandes bolsos, onde guardava as pesadas chaves. Ela tinha licença de meu avô de abrir todas as peças da estância. Todos os dias, no final da tarde, ela ou tia Edith levava Leo para passear, com uma corda presa na cintura dele. Eu e meus primos mais velhos acompanhávamos esses passeios. Ele não falava, só gritava, não tínhamos receio nem preconceito. Lembro bem do chicote de couro trançado pendurado na cintura de Teteia. Corria uma história que o rebenque a salvara de um tosquiador de ovelhas que tentou estuprá-la. Daí em diante, nunca mais se separou da arma. Não sei se fez uso dele, outras vezes, mas ameaçava quando alguém faltava com respeito. Além de Libório, Quincas e Teteia outros tipos humanos, interessantes, circulavam na casa de meus avós na cidade e na estância. Algumas crianças como eu, Alcides e Iná filhos de Isabel, uma das cozinheiras de minha avó, a preferida de seu Davi. Com certeza, as crianças eram de pais diferentes. Meu amigo Alcides tinha a pele azeitonada, cabelos lisos e olhos negros amendoados. Iná parecia uma boneca de porcelana: rosto redondo, lábios carnudos, vermelhos como se estivessem sempre pintados. A cabeleira longa, ondulada e ruiva, denunciava a origem estrangeira. Mas ela nunca conheceu o pai e se queixava dessa ausência. Antes dos quinze anos, aparece grávida, mas a barriga some antes da 145


criança vir ao mundo. Mistério; o caso nunca mais é falado. Os mexeriqueiros, às escondidas, comentavam que o pai da jovem era um homem casado e rico. Germana e Rosa, duas outras belas figuras humanas com quem convivi. Penso que não tinham filhos, pelo menos eu não me lembro de ouvir falar neles. A primeira era uma mulata escura, de pele reluzente peitos fartos e bunda arrebitada. Quando a conheci, já estava com a enfermidade que iria matá-la. Diziam que era água na barriga; realmente lembro que a pança era enorme. Ela estava sempre sentada, penso que a doença a impedia de andar, respirava com certa dificuldade, mas nem por isso deixava de contar longas histórias. Ela enriqueceu a galeria de contos fantásticos, que me inspiravam terror. A história da madrasta que manda enterrar vivas as enteadas era mais assustadora do que as histórias da mula sem cabeça, do lobisomem e das casas mal-assombradas. Germana, creio eu, tinha um lado sadomasoquista, talvez pela proximidade da morte. Recordo bem da beleza de Izabel, um tipo físico exótico e desafiador. As feições lembram traços indígenas. A pele de um moreno brilhante, bem distribuído assemelhase a uma estátua de bronze, mas com vida. Olhos graúdos expressivos e negros como os cabelos. Alta, esguia de braços e pernas roliças e seios volumosos, marcados nos vestidos simples, mas colados e compridos. Não sei a razão, mas nunca a vi vestida de outra cor, que não fosse o negro. Séria sem ser antipática, quase não falava, parecia sempre estar distante e desinteressada. O coquetismo reservava para os homens, quando as mulheres não estavam por perto. Mudava o comportamento a sós com eles; era só sorrisos, quando ouvia as piadas. Gostava de ser assediada. Alcides, o filho mais moço de Isabel, meu companheiro de brincadeiras, um dia me conta algo que me deixou intrigada. Não sei da veracidade, ele gostava de inventar histórias. Mas de qualquer jeito, não gostei nada do que ouvi, guardei segredo, e até hoje evito lembrar a fala dele: teu avô foi lá no nosso quarto e me deu de presente esta cuia e uma fita de cabelo para minha irmã. Minha mãe pediu para Iná e eu irmos brincar lá fora. Ele foi lá dar remédio 146


para meu cachorrinho, que está doente, fiquei admirado porque ele não gosta de cachorros. Meu amiguinho conta a novidade com um sorriso maroto. Rosa, depois que Isabel foi ser cozinheira na casa da cidade, assume a chefia da cozinha da estância. A comida de Isabel era mais gostosa, mas Rosinha fazia uns bolinhos de chuva deliciosos. Sempre que chove lembro-me daqueles sonhos; nunca comi nada parecido. Ela era quarentona, não muito magra, de pele clara quase branca. Discreta, passava despercebida como mulher, tinha quadris largos, seios grandes, um corpo tosco, quadrado, que escondia com vestidos largos. Levantava cedo. Quando acordávamos já estava com a mesa do café arrumada e no forno de barro assando pão. Gostava de cantarolar enquanto cozinhava. Havia um zum-zum entre os empregados, que ela era amante de Seu Quincas. Ninguém sabia ao certo, apenas comentários da peonada. Até o dia em que meu irmão esqueceu a chave e não pôde entrar no quarto dele; passou a noite na ala dos empregados, ao lado do quarto de Rosinha. Ouviu um ruído de porta abrir-se e fechar-se. Escutou vozes cochichadas e decidiu espiar pelo buraco da fechadura. No outro dia nos chama e diz: é verdade, Quincas é amante de Rosinha. De todas as figuras humanas mais marcantes em minha vida, a de Baiana, o melhor ser humano que conheci. Quando nasci, ela tinha 8 anos e já estava me esperando, lá na Bahia. Convivemos até sua morte. Entretanto, ela merece capítulo especial. Sua imagem permanece intacta, como se estivesse desenhada no meu coração e de meus filhos e netos, que também eram filhos e netos dela. Mas vou deixar para Florência a oportunidade de descrever quem foi Maria de Lourdes Ribeiro da Silva, o tipo inesquecível para todos os que a conheceram. Não tinha o mesmo sangue, mas para nós que tivemos o privilégio de conviver na intimidade, ninguém foi mais familiar do que ela.

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PÁSSARO IMORTAL Floriana Danesi Breyer Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore. Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho. No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol, de céu e de lua mais do que na escola.

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Manuel de Barros

sta madrugada ele me visitou. Arrodeou o apartamento que fica no décimo quinto andar e espantou os morcegos que insistem em entrar pela janela. Certa vez entraram, e a menina que mora lá saiu correndo atrás do morcego, pensando que era uma borboleta. Nesse dia o Pássaro agarrou uma vassoura e espantou o morcego. Ele veio de navio juntamente com a esplendida Arara, que Nely trouxe de lembrança da Bahia. A Arara logo morreu, mas esse Pássaro segue vivo entre nós; ele é imortal. Arrisco dizer que foi o maior dos tesouros que o destino nos concedeu. Nossa família foi agraciada com uma espécie rara que se fundiu em nossa árvore genealógica, combinando seu DNA afetivo por gerações. Afinal, árvore genealógica não tem apenas a ver com sangue, sua seiva é afeto. Pois é, esse Pássaro picou todos nós no fundo do peito. Ele costumava zelar os berços dos recém-nascidos; o primeiro berço que zelou foi o de Helena, e assim que cresceu um *   149


pouco adorava brincar com ela e logo com seus irmãos Danúbio e Vera Lúcia. Mas por algum motivo, passou a seguir Helena, acompanhando-a por toda a vida. Ao nascerem seus filhos Carla, Sérgio e Fernando, lá estava o Pássaro empoleirado nos berços. Quando um chorava, Helena pegava-o no colo e o Pássaro ficava cuidando dos outros. Abria suas asas e os aquecia. Tinha asas bem grandes e multicolores. O Pássaro não tinha leite, mas tinha a magia no olhar que hipnotizava os bebês e os acalmava; às vezes também ficava furioso e dava chineladas em todos. Sim, ele usava chinelos; seus preferidos eram os azuis e brancos que combinavam com sua plumagem. Depois vieram os netos e lá estava o Pássaro desdobrando-se em vários e tornando-se onipresente em cada berço, em cada passo. A menina que corria atrás dos morcegos, por exemplo, já estava aprendendo a andar de bicicleta; tinha uma bicicleta Caloi, amarela, de cestinha, e não conseguia andar sem as rodinhas do lado. Certo dia, o Pássaro foi lá, tirou as rodinhas e convenceu a menina de subir na bicicleta. Ela teve medo, mas confiou e começou a pedalar, e o Pássaro foi ajudando a equilibrar a bicicleta enquanto a menina gritava: – Não me deixes sozinha, vou cair! O Pássaro segurou o bagageiro da bicicleta até a menina começar a pedalar sozinha. E voando acompanhou aquele primeiro voo da menina. Assim ela aprendeu a voar e voou alto... Hoje em dia tem o costume de pedalar pelo espaço sideral. O Pássaro tem poderes especiais, ele é capaz de estar em vários lugares ao mesmo tempo e, nos últimos anos, também adquiriu o poder de voar para outras dimensões. Ele voa para longe e tem descoberto novos mundos, mas sempre retorna ao apartamento no décimo quinto andar. Afasta os morcegos e conversa com as andorinhas que também escolheram aquele lugar como lar. 150


E assim, essa ave rara, de beleza e bondade inigualรกveis, segue zelando por todos nรณs e guiando os que querem voar mais alto...

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OS ALEXANDRINOS E O ATAQUE DE JOSÉ DE ARTIGAS Marlene Canarim Danesi Os gloriosos sucessos, que as tropas desta capitania obtiveram debaixo de meu comando, na batalha do Saí 22 do corrente, na margem esquerda do Taquarembó, não devem ser demorados um só momento a V.Exa, para os fazer chegar ao Soberano conhecimento de SUA MAJESTADE...

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(Trecho da carta do General Conde de Figueroa para o governador)

ra dezembro de 1819, eu, Fidélis Guterres d’Alexandria, encontro meu pai e minha mãe abatidos e pálidos. Eles discutem com meus irmãos e irmãs; negam-se a deixar Encruzilhada. Um dos meus cunhados acaba de saber que José de Artigas, já está invadindo a fronteira portuguesa, com aproximadamente 2.500 homens. Nós tentamos convencer o casal de irem para um lugar mais seguro. Felipe e Teodósia desejam permanecer na casa onde viveram momentos felizes, criaram filhos e raízes. Não percebem o momento difícil que estamos vivendo, diante da nova invasão espanhola. A tropa espanhola vem saqueando fazendas, estuprando mulheres, degolando homens e matando gado. Insisto que eles devem ir para Viamão. O município está distante da fronteira do Uruguai, estarão em segurança e rodeados de parentes. A insistência é inútil, mesmo ouvindo as notícias que chegam através de mensageiros enviados para alertar nosso vilarejo, eles decidem ficar. Um dos meus dos meus cunhados chega às pressas e comenta os últimos 153


acontecimentos da situação da fronteira: O brigadeiro José de Abreu tenta fazer frente aos invasores, embora conte com pequeno número de combatentes que não chegam a 500 homens. Mas a intenção de Abreu, com esses embates, é dar tempo aos fazendeiros na retirada de mulheres, velhos e crianças. A estratégia é reunir número maior de famílias, em uma mesma estância. Assim podem contar com mais escravos e índios, na proteção delas. Os homens partem para o enfrentamento com as tropas de José de Artigas. Os militares, meus amigos, recomendam que a mesma estratégia seja usada aqui em Encruzilhada. Mas aconselham que quem puder ir para Viamão é melhor que vá. Como não conseguimos convencer Felipe e Teodósia a abandonarem Encruzilhada, a decisão é dividir os homens em dois grupos. Enquanto uns devem prepararse para a guerra, outros precisam planejar a melhor forma de proteger às famílias. São duas prioridades: defesa da pátria e proteção aos velhos, mulheres e crianças. Eu, Antônio e Joaquim, entre os irmãos, fomos sempre os melhores campeiros. Na adolescência, aprendemos a domar cavalos xucros. Nosso pai sempre se surpreendeu como éramos competentes no manejo das facas, espadas e armas de fogo. Estas habilidades são valiosas, em uma guerra, portanto, fomos nós três os escolhidos para integrar a cavalaria de José de Abreu e de Bento Correia da Câmara. Meu cunhado informa a localização das tropas comandadas pelos brigadeiros: estão acampados em Paso do Rozario, e vocês devem partir no máximo em três dias para se incorporarem aos soldados . Minha mãe reúne os familiares e amigos na noite anterior à partida. O pároco Ramon abençoa nossa missão. Meu pai, orgulhoso de ter descendentes corajosos, faz um pequeno discurso para os presentes: recordo o tempo de juventude como Alferes, das muitas vezes que entrei em luta com índios ou castelhanos. Agora é a vez de vocês, meus filhos, os que vão e os que ficam. Os Alexandrinos são os que mais se parecem comigo. Agora, na velhice, minha única necessidade é viver o passado. É prazeroso recordar 154


as tardes de verão, quando na sombra dos pessegueiros acompanhava, no violão, Ismênia e Emiliana dançando. E como bailavam bem a chimarrita as danadinhas! E todos vocês possuíam vozes melodiosas e sabiam de cor os versos gauchescos. Ao recordar os momentos vividos sinto a sensação de levitar, parece que vou sair do chão. Faço um convite a todos: vamos festejar cantando a minha música preferida: Sou gaúcho sem lei, posso andar ao rigor, d’outro cuera não sei que seja mais peleador, meu prazer é pelear, por um motivo qualquer, por um trago de canha no más, ou por uma mulher. Nasci solto, sou índio bravo, não me governa nenhum senhor. Minha riqueza é não ter nem pago, e o meu orgulho é ser domador. Ninguém no mundo me bota as garras. E nesta vida eu floreio igual. Tanto nas cordas de uma guitarra quanto nas rédeas de algum bagual. No dia em que vamos encontrar as tropas, comandadas pelos brigadeiros Abreu e Câmara, levantamos os três bem cedinho. Cada um de nós tem compromissos antes de partir. Antônio permanece em casa, brinca com os filhos. Despede-se da mulher, sem muita dor. Alguma coisa se quebrou entre os dois. Ela perdeu a imponência dos seios, das coxas e dos quadris. Perdeu também o sorriso claro e a elegância ao caminhar. Ele fica incomodado de ver o andar cambaleante e o rosto carrancudo de agora. Joaquim toma café na casa da noiva. O sogro José da Cruz Alvernaz sai para as lidas campeiras. Ele é de São Gabriel, mas comprou, recentemente, campos em Encruzilhada. A mãe de Ana Justina prepara ovos mexidos e frita batatas, na cozinha. Um cheiro de alecrim invade a sala, mistura-se ao cheiro úmido da chuva e com o perfume da pele da jovem. Joaquim a beija na testa e na nuca, mas quando quer morder os suculentos lábios, a noivinha resiste. Ele lê nos olhos dela um tipo de interesse, mas sente a ingenuidade da futura esposa. Meu compromisso é um pouco misterioso. Minha noiva, Francisca Maria da Silva, mora em Triunfo, não vou ter tempo de visitá-la, é muito distante. Meu destino então é outro, uma choupana de barro coberta de sapé. Mariana, 155


uma índia missioneira vive no rancho com duas irmãs. É uma cabocla, de olhos cor de mel e cabelos negros, levemente, encaracolados. Costuma andar descalça, e os trapos que veste não perturbam a atração que exerce nos homens. A beleza é realçada por colares, brincos e pulseiras de semente, que tilintam quando ela sacode os braços. Não dispensa a rosa vermelha nos cabelos. A boca carnuda, o olhar penetrante e a beleza dos seios são um convite para o amor. A missioneira quase não fala, e eu também dispenso palavras; quando nos vemos só importa é o desejo que invade nossos corpos. Os encontros são alimentados por silêncios e segredo. O provedor de Mariana é um fazendeiro a quem sobra dinheiro e falta virilidade. Aos 83 anos, não consegue apagar labaredas da fêmea que deseja dar e receber amor. É nas horas roubadas, de Feliciano, que a pele azeitonada de Mariana se encrespa, quando, devagarinho, acaricio seu corpo. O amarelo esverdeado dos olhos da cabocla e o tom azeitonado de sua pele são feitiços que despertam ondas de desejos que vêm e vão. Meu toque a hipnotiza, meu olhar a paralisa, mas ambos sentimos a paixão que incendeia nossos corpos. Mordo o cangote da chinoca, enquanto a penetro, e inalo o odor que exala de todos seus poros. É como se andasse em um carrossel; o prazer se estende sem fim. Esgotado, mas satisfeito, sinto o cheiro de alfazema dos cabelos, o gosto de menta da boca e o de almíscar na pele. Vou levar comigo a mistura de todos estes cheiros. Atraso-me. As horas de prazer sempre têm outro ritmo que os dos ponteiros do relógio. Esporeio o tordilho e galopo em direção à capela, onde marquei encontro com meus irmãos. Eles já devem estar a minha espera. Quando entro na igrejinha os vejo ajoelhados no altar lateral, em frente à imagem de Santa Catarina d’Alexandria, esculpida em madeira. Rezamos juntos, pedimos proteção aos familiares e sorte para nós na guerra. Não esqueço nas minhas orações de Mariana e do filho que leva na barriga. Ela afirma que a criança é minha. Mas quando se divide uma mulher na cama, a dúvida permanece. Em todo o caso ela merece 156


minhas orações pelas horas embriagantes que tem me proporcionado. Partimos em nossos imensos cavalos. A farda que usamos, azul anil, com largos punhos vermelhos é igual ao uniforme dos dragões portugueses. As nossas vestimentas herdamos dos antepassados. Após um dia e uma noite cavalgando chegamos em Passo de Rosário, dia 18 de dezembro. Na véspera, comandados por La Torre, as tropas de José de Abreu e de Bento de Correia da Câmara foram atacadas pelo inimigo. O combate durou das 10 horas da manhã até a noite, quando os brigadeiros conseguem deter os soldados de La Torre, que acuados retiram-se. Os invasores, perto de 800 homens são seguidos pelas tropas de Abreu e de Correia Câmara. Eu, Antônio e Joaquim estamos integrados à cavalaria. E no dia 18 mesmo marchamos em busca da tropa inimiga. Passamos pelo acampamento, em que o brigadeiro Abreu estivera, encontramos bombeiros apagando as chamas. Nos separamos de Antônio; ele segue com a coluna chefiada pelo brigadeiro Câmara, enquanto Joaquim e eu ficamos com a tropa de Abreu. O objetivo de Câmara é invadir o acampamento de Artigas, mas são detidos pela artilharia. Retornam então para encontrar a tropa de Abreu. Nossa coluna consegue bater o inimigo ao cercá-los em um mato, onde estavam refugiados. Aprisionamos 17 inimigos, e com eles armamentos e cavalos selados. Entre dezembro e janeiro a guerra continua, com avanços e retiradas de ambas as partes. Em 10 de janeiro agrega-se às nossas tropas o general Conde de Figueroa. Com 1.200 homens, marchamos para O Passo da Armada e encontramos os adversários acampados no Taquarembó. Em embates violentos, Joaquim eu somos gravemente feridos e transportados para Encruzilhada. Antônio se destaca na batalha do Saí. A família toda festeja quando recebe cópia da carta do Conde de Figueroa ao governador. O conde solicita que chegue ao conhecimento do rei, os gloriosos sucessos obtidos pelas tropas comandadas por ele. O General agradece aos participantes: oficiais do Estado-Maior, cadetes dos Dragões 157


e voluntários. Meu irmão Antônio é citado nominalmente, como Dito de Milicias d’Entre Rios. No retorno a Encruzilhada, é recebido com festividades. Desfila com a farda dos dragões e com a espada levantada. Os conterrâneos gritam: Vivas Sua Majestade e Vivas a António Guterres Alexandrino. É oferecido um jantar pela Câmara de Vereadores. Mas, antes, Joaquim, Antonio e eu fomos à capela agradecer a Santa Catarina de Alexandria. Atrás da igrejinha encontra-se o cemitério de índios. Tento encontrar o lugar onde Mariana foi enterrada, em vão. No meu retorno da guerra soube da morte da missioneira durante o parto, o menino se salvou. Feliciano o acolheu, justificou para a esposa nunca desampara quem leva seu sangue nas veias. Até não sei se o sangue é dele ou meu, mas o que importa que será bem-criado. A esposa de Feliciano é uma mulher bondosa; o bastardo terá seu carinho. Mas deixo as lembranças de lado. Preciso me apressar: minha noiva está chegando de Triunfo, vem de carruagem, acompanhada dos pais. A família de minha noiva é de açorianos como a da minha mãe. Minha mãe sabe bem das privações que os antepassados, que vieram do Arquipélago dos Açores, sofreram. Uma das razões pela qual gosta de Francisca; identifica-se com ela e fez questão de se encarregar do enxoval da nora e de que a festa do casamento fosse realizada em Encruzilhada. Nesta hora, um grande churrasco está sendo preparado na Estância de meus pais. Nossa família é muito conhecida, e muitos são os convidados do nosso próprio povoado, de povoados vizinhos e até de lugares distantes como Viamão e Laguna, onde vivem irmãos meus. Alguns já chegaram e outros ainda estão por chegar. As distâncias são enormes. É preciso muito bemquerer para enfrentá-las. No dia de meu casamento, não imaginei, que no futuro, a descendência dos que nasceram Guterres d’Alexandria seriam os Alexandrinos que se concentram na cidade do Alegrete. Os descendentes de meus irmãos, que foram batizados somente como Guterres, estão espalhados por todo o Rio Grande do Sul, porém ainda mais concentrados 158


na cidade de Encruzilhada. Também nunca poderia imaginar que os ramos que saíram da mesma árvore, no futuro iriam ignorar suas origens. Na atualidade, penso que os Guterres e os Alexandrinos desconhecem que têm as mesmas raízes. Muito menos, sabem que toda nossa história começa quando um destemido valenciano atravessa o oceano, casa com uma mestiça e coloca como meta de vida a Conquista do Rio Grande do Sul.

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MEMÓRIAS INCOMPLETAS DO GUERREIRO ALEXANDRINO Marlene Canarim Danesi Quem é o gaúcho alto, com uma tez meio morena, que usa bombacha larga, bom chapéu, boa chilena, tipo gaúcho guapo, usando faixa e melena.

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Jayme Caetano Braun

á contei sobre minha participação nas batalhas, em 1819, quando José de Artigas invade a fronteira portuguesa. Mas falei pouco da minha vida pessoal, pois, apesar de ser praticamente analfabeto, tenho bastante o que ensinar para meus descendentes. Trabalhei na estância do meu pai, desde adolescente. Muito cedo aprendi a laçar animais, apartar e carnear ovelhas. Marcar terneiros e domar cavalos xucros era uma tradição na família. O cavalo para os Guterres, por muitos anos, foi símbolo de nobreza e poder. É no lombo de meu tordilho, que visitava minha noiva na cidade de Triunfo: Francisca Maria da Silva, neta de açorianos da ilha de São Jorge, freguesia de Calheta. Os antepassado, dela, vieram para o Brasil, para ocupar o território das Missões. O acordo entre portugueses e espanhóis era que houvesse uma troca com a Colônia do Sacramento. A esperança de ganhar terras e outros recursos encoraja os habitantes do Arquipélago dos Açores a atravessar o oceano. Mas a promessa não foi cumprida; acabaram sofrendo dificuldades financeiras. O pai de Francisca, Antônio José da Silva, já nasceu em Triunfo. Desde muito jovem, amei as mulheres como amava os cavalos. E elas também eram atraídas por mim. Sou alto, *  Foto à esquerda:  Paulo Antônio Mazzini Osorio, filho de Egydia Mazzini Osorio e neto de Lydia Guterres Mazzini. Foto de José Guilherme Martini. 161


magro, de ombros fortes e pernas longas. Uso bombachas largas, chapéu de barbicacho, botas de cano longo e afiadas esporas. Dizem que meu rosto se parece com o de meu avô: olhos claros contrastam com a pele amorenada, como a dos antepassados mouros. Minha mãe comenta que o nariz aquilino revela audácia. Igual a meu pai, Felipe, e o bisavô Francisco, encanto as mulheres. Todas me encantam. Mas a mais fogosa delas foi Mariana. Vivi com ela inesquecíveis e tempestuosas noites amorosas. Fui para guerra, Mariana ficou. Na volta, não tive mais a luz dos olhos da jovem missioneira e não desfrutei mais a quentura de seus lábios. Mas lembro daquele corpo, besuntado de mel e a voz rouca de prazer, sussurrando palavras em guarani. As lembranças apresentam contornos de realidade. Por Mariana foi paixão, mas amor mesmo, eu tenho pela minha esposa. Francisca desperta em mim um amor comportado. Não existem olhares desejosos, nem o gozo de sentir um corpo no outro, como nas noites com Mariana. Mas tem outros encantos. A inexperiência e a ingenuidade de minha mulher enchem-me de prazer. Ela é uma mulher grande, sem ser gorda, cabeça graciosa e cabelos de um castanho amarelado. Na face os malares salientes e olhos um pouco rasgados, lembram os traços de uma índia. A boca de Francisca apresenta novos sabores. Um aroma agradável, um gosto de flores primaveril. O pescoço esguio, realçados por argolas douradas pendentes das pequenas orelhas, é o do que mais gosto nela. As argolas pertenceram à avó, que Francisca só conheceu por um quadro de pintor desconhecido. Mas apesar do carinho que ela me desperta, não há amor nem paixão que resista ao tempo; para mim é impossível. Amo estar embriagado por desejos, as emoções de cada nova conquista são tão importantes quanto o ar que respiro; continuo me envolvendo com novas paixões. Cada um inventa uma trajetória para si. Desconfio que Francisca acaba aprendendo a lidar com as frustrações, de me ver sempre correndo atrás de uma nova chinoca. Finge que não sabe, quando uma das filhas das empregadas aparece de barriga, que o filho pode ser meu. Até porque providencio, rapidamente, o casamento da afilhada com um dos peões. Eles quase sempre aceitam criar um filho 162


alheio em troca de um pedacinho de terra, um ranchinho, um ou dois cavalos e uma vaca leiteira. Faço questão que morem longe da Casa Grande. A vida segue, passa algum tempo para o caso ser esquecido. Deixa de ser conversa de galpão, até que os peitinhos crescentes, de uma nova afilhada, despertem o meu olhar guloso. Começa tudo outra vez. Uma noite, Francisca acorda para atender nosso filho Inocêncio e percebe que não estou na cama. Ouve sussurros, espia por uma fresta, depois abre a janela. O clarão da lua cheia ilumina o jardim. Estou ajoelhado no pelego, onde está deitada desnuda a filha de Venâncio, escravo pardo de 48 anos. Cego pelo desejo não vejo que minha mulher assiste à cena. Apalpo as coxas e os seios da rapariga, penetro vagarosamente o apetitoso corpo de Doralice. Há um momento que a voz dela é quase um grito. Escuto o bater do postigo e o choro de minha filha. Volto para o quarto. Francisca chora enquanto amamenta Inocêncio. Não fala nada aquela noite. Na manhã seguinte, me diz: arranje depressa um casamento para Doralice. Não vou suportar conviver com esta rapariga depois do a que assisti ontem à noite. Minha capacidade de amar tem limite. Ainda gosto de ti, meu marido, não sei se minha sina é repartir teu amor com essas afilhadas. Mas saiba que dou importância e sofro com isto. As pessoas não notam, porque escondo minha tristeza para poder continuar a viver. Francisca preenche o vazio emocional com o trabalho. E continua a usar um tom gentil e cordial comigo. Tenho quase certeza que me quis como ninguém; na verdade, eu também lhe dedico amor; com as outras mulheres é só prazer passageiro. Ela faz questão de acordar cedo, preparar o chimarrão e tomamos café juntos. Depois que saio para o campo, o ritual é o mesmo. Acorda os filhos e com a escrava Valentina, prepara as refeições das crianças. Jesuíno e Florêncio gostam de mingau de aveia. Joaquina é muito inapetente, nunca quer comer. Enquanto a escrava faz grossas tranças nos cabelos da menina, a mãe insiste que ela coma as broas de polvilho. Os meninos vão atrás de Eleutério; eles gostam muito do escravo adolescente. Ele sabe caçar passarinhos, 163


pegar sapos e peixinhos e não tem medo do jacaré que mora no açude. É um bom professor, ensina o nome dos pássaros e até como se laça terneiros. Joaquina é entregue à Laureana, por ter a saúde muito abalada é poupada de serviços pesados. Sabe histórias que aprendeu na África, onde nasceu. Narrativas meio assustadoras, Joaquina se assusta com a cantiga do Bicho Tutu. Um dia me pergunta: é verdade, papai, que ele vai descer do telhado e me comer misturada com guisado? Já proibi Laureana de assustar Joaquina, mas não adianta. Tenho outros três escravos Antônio e Nicolau (cada um com suas tarefas determinadas), e Agostinho, que já perto dos noventa anos é considerado sem serventia. É bom de contar histórias de assombrações. Francisca gosta de ouvir esses contos, manda chamar o escravo para ouvir essas besteiras. Minha mulher trabalha muito e nunca se queixa. Parece até ter prazer em fazer pães, biscoitos e queijos. As festas de fim de ano estão próximas. Hoje, junto com as escravas, colheu frutas para preparar marmelada, pessegada e figada. Os doces de batata-doce e de abóbora já foram preparados na semana passada. Faltam ainda as geleias e doces de calda, meus preferidos. Admiro o trabalho de minha mulher; é cansativo ficar mexendo, com a colher de pau, as frutas misturadas com açúcar no tacho de cobre. A tarefa precisa muito da ajuda de Valentina. Hoje, Francisca está aborrecida, foi ao galinheiro buscar ovos e encontra duas galinhas mortas. A raposa também fez estrago nos ovos. Passa na horta, colhe morangas, chuchu e couve. Vai para cozinha, prepara o almoço, não pode esquecer-se do quibebe, sabe que aprecio demais esse purê de abobora. Capricha no arroz de leite e no sagu; aprendeu esses pratos com minha mãe. E ainda supervisiona a cozinha dos peões. Não sei como Francisca consegue dar conta de tudo. As crianças chegam esbaforidas e querem cabeça de ovelha assada. Depois do almoço, casa silenciosa, é hora de sestear, um costume que para mim é religião, mas não me deito sem a mulher, nem que seja apenas para me enrolar nas pernas. Francisca demora um pouco: precisa controlar o que vão fazer as crianças. Chama as escravas para se ocuparem e 164


não permitir que façam barulho. Os meninos vão junto com Eleutério lá para trás das mangueiras para caçar lagartos. As crianças detestam aquele silêncio morno e turvo, que invade a casa e o galpão, nessa hora do dia. No meio da tarde, Francisca prepara o lanche da garotada, broinhas de polvilho, pão de cenoura e torta de banana e, quando chove, sempre bolinhos de chuva. O tempo passa, os filhos crescem, meu sogro morre. Antônio José da Silva deixa de herança para minha mulher, matos situados na costa do Camaquã. Registro a propriedade, em 26 de janeiro de 1856, na localidade de Encruzilhada. Foi justamente próximo à morte do avô, que Joaquina conhece o futuro marido, Candido Paulo de Souza; foi um consolo para ela, muito chegada a seu Antônio. O casamento de minha filha não demora muito, nem deu tempo de Francisca terminar o enxoval. Cândido tinha pressa. Casam-se em Encruzilhada, mas depois compram terras em Lavras e, já com os dois filhos, Feliciano e outro que leva meu nome, fazem a mudança em duas carretas. O neto que leva meu nome, Fidélis Paulo Guterres, casa com Aurélia Marques.

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ONDE NASCEM E MORREM OS SONHOS DE JOAQUINA Marlene Canarim Danesi A memória não é apenas o que recordamos, mas o modo como recordamos.

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Winnicott 1

asci em 23 de outubro de 1819. Meu nome é Joaquina Guterres d’Alexandria, sou a primogênita do casal Fidélis e Francisca Maria. Sempre fui muito ligada ao meu pai e, em homenagem a ele, coloquei em um de meus filhos o nome de Fidélis Paulo Guterres. Aos 17 anos, me casei com Cândido Paulo de Souza. Conhecemo-nos nas festas da igreja em Encruzilhada do Sul, lugar onde nascemos. Entretanto, o desejo de meu marido foi de morar em Santo Antônio das Lavras; sonhava com o ouro precioso que diziam existir naquele vilarejo. Casamo-nos em uma época, em que centenas de aventureiros dirigiram-se àquela região, rasgando rochas e terras, atrás do fulgurante metal. Ouro e Sonho sempre estiveram juntos na cabeça dos seres humanos. O padre Luiz, em seus sermões, critica essa busca dizendo: Basta uma porção dele para fazer do preto, branco; do feio, belo; do baixo, nobre; do velho, jovem; do covarde, valente. Além do sonho, pelo deus dourado, Cândido tinha outras duas paixões: Cavalos e Histórias dos antepassados. Paixões compartilhadas comigo. Os Souza, como os Guterres, foram sempre apaixonados por cavalos. Era tradição das duas famílias formar tropilhas (grupo de cavalos do mesmo pelo). Eu gosto dos baios, enquanto Cândido prefere os tordilhos. Quanto às histórias dos antepassados, admiro a memória de meu marido. Ele lembra, com detalhes, a saga da família Souza. É uma história triste, mas corajosa, semelhante a de outras famílias *   Foto à esquerda: Cândido Paulo de Souza genro de Fidelis Guterres D’Alexandria. 167


de açorianos. Ouvi histórias fabulosas sobre os Açores. Antes de casar já tinha escutado esse nome pela minha avó Francisca Maria, que sabia que seus antepassados viviam naquele lugar. Meu pai também falava que minha bisavó Teodósia tinha a mesma origem. Mas foi Cândido quem me mostrou em um mapa onde ficavam aquelas ilhas. Encanteime com as histórias que ouvi dele e, para que não fossem esquecidas, contei todas elas para meus filhos e netos. Lydia, filha de meu filho Fidélis, minha neta e afilhada adorava ouvir essas histórias. Guardou-as bem na memória. Muitos anos depois, repetiu todas elas para sua neta e também afilhada Helena. A história da família Souza, que ouvi de meu marido, fez com que eu aprendesse um pouco sobre os Açores e sobre aquele povo que trabalhava um pouco na terra e um pouco no mar. Intrigavam-me as razões dessa gente abandonar suas raízes, para tentar a sorte em um país tão distante. Cândido sabia muito sobre aquelas ilhas. Vou repetir o que ele me contou. Em 1752, começam a chegar no Rio Grande do Sul imigrantes do Arquipélago dos Açores. As erupções vulcânicas da Ilha de Faial, uma das nove ilhas do arquipélago, flagelaram os moradores. A superpopulação das ilhas, a falta de terras para plantio, acidentes da natureza e a miséria em que viviam, levaram os açorianos a pedir socorro ao rei. Em 1749, foi contratada a vinda de casais de número ou casais d’El-rei. Os homens não poderiam ter mais que 40 anos e as mulheres não mais que 30. Para atrair os novos colonizadores, foram oferecidos diversos atrativos: dinheiro, transporte, moradia, armas, sementes e animais. Eles seriam levados para região missioneira. Mas enquanto não se cumprisse o Tratado de Madrid, foram conduzidos para vários núcleos: Rio Grande, Viamão, Triunfo, Santo Amaro, Rio Pardo e Porto Alegre. Francisco de Souza Cardoso e Maria de Jesus, bisavós de Cândido, vieram dos Açores na mesma nau. Com outros imigrantes, foram arranchados, inicialmente, em Rio Grande. Casaram-se em 1760, no ano da criação da Capitania de Rio Grande de São Pedro. As desventuras da viagem, foram contadas de pai para filho, até chegarem em Cândido. A travessia foi uma verdadeira epopeia. Os embarcados 168


sofreram muitas provações e sacrifícios. Além dos perigos da própria navegação em nau sem condições de fazer uma viagem de três meses. Existiam outras dificuldades, enfermidades e ordens muito severas. Homens, mulheres e crianças que chegavam vivos no Brasil, eram sobreviventes. Os passageiros, trancafiados nos porões, adoeciam e morriam sem nenhuma assistência. As notícias das condições subhumanas e das inúmeras mortes, nas viagens, fez com que muitos desistissem da aventura. O governo então começa a embarcar, compulsoriamente, pessoas de qualquer idade, e não mais somente jovens casais. Para completar as levas acertadas, foram forçados a embarcar, velhos, doentes e inválidos. Os bisavós de Cândido, como os demais açorianos, aguardavam a posse das terras brasileiras, enquanto ocorriam as guerras guaraníticas. As promessas nunca foram cumpridas. Abandonados à própria sorte decidiram montar suas choupanas de taipa e barro cobertas de capim. Francisco e Rosa Maria fizeram o mesmo. Dentro do possível, estavam felizes, porque o amor sempre atenua a penumbra, em que nos encontramos. O casal imaginava que os piores sacrifícios já tinham ficado para trás. Mas a realidade foi outra. Em 1763, Pedro de Ceballos, então governador de Buenos Aires, invade Rio Grande. Muitos açorianos conseguem fugir, para diversos destinos: Mostardas, Viamão, Laguna. A grande migração da população para Viamão faz desta a capital. Mas os que estavam no Povo Novo não conseguiram escapar. Foram levados, compulsoriamente, para o Oriental. O objetivo dos espanhóis era povoar a região, para garantir a posse da terra. Os bisavós de Cândido estavam entre as famílias açorianas que fundaram São Carlos de Maldonado. Mais riscos, mais provações e sacrifícios, foram exigidos dos novos colonizadores. Mas eles enfrentaram com coragem e determinação o que foi exigido deles. Francisco de Souza Cardoso foi figura central na fundação de São Carlos. Inicialmente, foi encaminhado para as glebas destinadas à produção de trigo, cânhamo e algodão. Mas Francisco não tinha vocação agrícola. Não que fosse incapaz, mas não era um lavrador. Exerceu vários ofícios e profissões. Trabalhou como jornaleiro, alfaiate, ferreiro e marceneiro, mas nunca deixou de ter sua horta no fundo do quintal. Plantava abóbora, feijão, couve, cebola e milho. Rosa Maria, sua 169


mulher, dedicou-se a costurar, bordar e fazer rendas; com esses trabalhos engordava a renda da família. Pedro Paulo de Souza, um dos filhos do casal, nasceu, cresceu e casou-se em Índias de Espanha (assim se chamava São Carlos). Mas sua vontade era morar no Brasil, onde viviam em maior número, descendentes de açorianos. A mulher de Pedro, Matilde Inácia da Luz, não se opõe à vontade do marido. Cândido gostava muito dos avós. Admirava a coragem deles, terem feito, inversamente e por vontade própria, o caminho que seus pais tinham sido obrigados a percorrer. A longa viagem, em 1777, não foi nada fácil. Vieram de carreta, mas foi preciso trazer outros animais: bois, cavalos e ovelhas. Apenas uma junta de bois não suportaria vencer tamanha distância. Acompanharam a família vários escravos. Além das tarefas domésticas, eram sentinelas do grupo. Avançavam durante o dia e descansavam à noite. Para se protegerem dos jaguares, onças e jaguatiricas acendiam fogueiras. As sentinelas revezavam-se, enquanto a família dormia em cima dos arreios e das trouxas. Os gritos dos animais selvagens não cessavam, e os homens não largavam suas armas. Passaram pelo Taim, pelo Chuí e atravessaram banhados intermináveis. Precisaram defender-se dos jacarés. Nas matas, eram outros animais da terra que enfrentavam. Havia cobras, ariranhas e outros bichos peçonhentos. Muitos perigos, mas também muita beleza, flores e pássaros raros. Chegam sãos e salvos em Santo Amaro, onde foram assentados. Nesse povoado, em 1790 nasce Reginaldo Paulo de Souza, pai de Cândido. A mãe, também nascida na mesma localidade, chamava-se Maria Joaquina de Jesus. Casaramse em Encruzilhada, onde nascem sete filhos; Cândido foi o penúltimo. O menino era encantado por Matilde, sua avó paterna. As melhores lembranças da infância estão relacionadas a ela. As histórias que contava, os doces que fazia estão guardados no baú dos sonhos. Quando fala da avó repete sempre: minha avó era linda, bela pele, lindos dentes e cabelos negros levemente ondulados. Morena clara, e de enormes olhos que mudavam de cor: meio verdes, meio azulados. Esses olhos repuxados não se sabe bem de onde vieram, mas atravessaram gerações, chegando a vários descendentes da avó de Cândido. Os netos de Helena, minha descendente que decidiu contar a história de nossa família, Florência e Giuliano, herdaram os 170


extraordinários olhos de Matilde. Eu, Joaquina d’Alexandria Guterres, e meu marido não concretizamos o sonho de encontrar o tão cobiçado ouro, que na época, diziam existir em Lavras do Sul. Houve, inclusive, uma corrida do ouro para aquela cidade. Um sonho que nasceu, quando noivos em Encruzilhada e morreu em Lavras. Entretanto, enriquecemos trabalhando nos campos conquistados. Cândido, na juventude saía sempre para potrear. Arrebanhava cavalos xucros e gado sem marca, aumentando seu rebanho. Porém, a maior riqueza foi a amizade que se estabeleceu entre nós. Uma intimidade regida pela reciprocidade existente naqueles que se completam. Minha neta Lydia, que de tão linda era chamada de Lindoca, e depois conhecida como Doca, comenta uma tarde comigo: vovó Dindinha, nunca vi ninguém como vocês dois, estão sempre felizes e alegres, e tu sabes mais da vida de vovô Cândido do que ele mesmo. Eu respondo: nós, mulheres, precisamos possuir uma habilidade: a de frequentar o labirinto dos nossos maridos. Os homens necessitam serem decifrados, e quando o são, vão nos amar eternamente. Sou muito religiosa e Cândido me acompanha nas missas e na procissão de Corpus Christi. Costumo ir rezar o terço diariamente e visitar a capelinha aos domingos. Minha sogra falava muito de duas festividades, o Terno de Reis e a festa em homenagem ao Espírito Santo. Mas não consegui introduzir em Lavras essas festas. Porém, meu marido e eu nunca deixamos de festejar o Natal, segundo a tradição açoriana. Apesar de nossos antepassados terem uma excelente adaptação à nova pátria, mantiveram inúmeros elementos da cultura açoriana; alguns deles reatualizados por seus descendentes. A bisavó de Cândido era exímia cozinheira, peixes, fervidos e doces de caldas estavam sempre presentes na mesa dos Souza. Aprendi a fazer esses pratos. Ensinei os meus filhos, Feliciano e Fidélis, orações, a reza do terço e a homenagear os santos padroeiros, mas meu filho Fidélis parece ter esquecido esses ensinamentos depois que cresceu. Começou a ter desconfianças com os padres e não seguir certos preceitos religiosos, o que me deixou muito triste.

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O PAPEL DOS AÇORIANOS NA FORMAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL Marlene Canarim Danesi Os açorianos, por meio de seu perseverante labor, contribuíram na formação do Rio Grande do Sul, e mais tarde se tornam a elite do estado.

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Paulo Estivalet Flores Pinto

memória não é só o que recordamos, mas o modo como recordamos. Existem muitas formas de contar uma história. Depois das conversas com meu cunhado, leitura de livros e textos indicados por ele, decidi narrar, à minha maneira, a contribuição dos açorianos para a formação do Rio Grande. Aprendi, com Paulo, que a influência é muito maior do que se acredita. Em 2002, viajo ao Arquipélago dos Açores. Quero conhecer mais um pouco sobre essa gente: um povo que participou, na linha de frente, no avanço de nossas fronteiras. Desejo comparar o colonizador do sul do Brasil, com o açoriano da modernidade. Grande curiosidade em conhecer minhas raízes, ir atrás das histórias, das lendas que me contaram. Verificar se costumes, hábitos e superstições praticados pelos avós, são coincidentes com as tradições açorianas. Desembarco no aeroporto de Horta, capital da Ilha de Faial. Sigo em direção ao centro, me encanto com a beleza das paisagens. Passo pelas freguesias da Ribeira Grande e da Feteira. Chego à Pousada Forte de Santa Cruz. É um magnífico prédio, de pedras largas e um cinza escuro. Antigo forte transformado em hotel, mas guarda as características da construção inicial. O jardim não é grande, mas o verde da vegetação empresta ao ambiente um clima acolhedor. *  Foto à esquerda: Belmiro Marques, bisneto de açorianos, pai de Aurélia Marques, sogro de Fidelis Paulo Guterres. 173


Percorro um caminho sinuoso, até uma grande porta de madeira, com maçanetas de latão. Enquanto preencho a ficha, observo que brasões da Coroa portuguesa enfeitam as paredes, ao lado do mapa das ilhas. Não reconheço a suave voz da cantora, mas sem dúvida a música é uma casa portuguesa, com certeza... O quarto é espaçoso, pé-direito muito alto, paredes brancas, janelas pequenas, com vidros coloridos. No roupeiro, seis portas com puxadores de metal dourado. Na cômoda, a pedra de mármore branca contrasta com a cor escura da madeira. Na bacia, no jarro e no vaso de porcelana, presto atenção nos desenhos de flores, feito à mão. As hortênsias arroxeadas exalam um cheiro adocicado, que invade o ambiente. A cama de casal, larga, coberta por uma colcha de franjas rendadas, repleta de travesseiros de pluma, é um convite para sonhar. Mas antes, abro as cortinas. Da janela vislumbro uma paisagem fantástica: é a Ilha do Pico. Lembro, então, que meu cunhado e minha irmã, Paulo e Vera, visitantes assíduos dos Açores, comentaram sobre a beleza da vista e da ilha. Amanhã vou seguir a recomendação deles. Desisto de dormir apesar do cansaço. Tomo uma ducha quente; o banho está delicioso. Enxugo-me com uma toalha felpuda. Coloco um vestido leve, faço uma maquiagem caprichada, trato de todos os detalhes, dos acessórios e dos cabelos. Desço as escadas e vejo o saguão iluminado pelo enorme lustre de cristal. Há um silêncio inquietante. Escuto a voz da mesma cantora, mas a música é outra. Ao consultar, no balcão, onde posso ir, o atendente me responde: quase em frente à Pousada, encontra-se o famoso Bar do Peter. Tenho certeza que Madame vai apreciar. É tradicional ponto de encontro, de velejadores do mundo inteiro. Funciona 24 horas em todos os dias da semana. Recordo, então, que Paulo recomendou-me que eu não deixasse de visitar. Uma visita obrigatória. Fez até anotações que li durante a viagem. Homens de várias nacionalidades, apaixonados pela arte de navegar, adotaram a Ilha do Faial como local de descanso e de abastecimento. O bar é considerado como um espaço icônico de Horta. À noite, os navegadores 174


confraternizam, ouvindo música e cantando. Quando encontram parceiras, até ensaiam passos de danças típicas dos Açores. Chego ao bar; o ambiente é divertido e alegre. Bandeiras de todos os países enfeitam as paredes. Fotos de diferentes tipos de barcos são autografadas pelos navegadores presentes. Em seguida, um alemão alto, de olhos expressivos, cavanhaque ruivo, aproxima-se de mim. Mas ele só fala a língua natal, o diálogo não prospera. Olho para todos os lados, e vejo bem no fundo do salão um rapaz solitário. Aparência romântica, esbelto e elegante, uma mecha de cabelo negro cai sobre os olhos, todo momento. Sinto que ele tem um interesse afetuoso pelas pessoas. Mesmo de longe, entendo que ele me convida para compartilhar a mesa. Aceito o convite e a taça de Gin do Peter’s, o drink tradicional da casa. Emanuel é francês, mas fala bem o português. Vive em Lisboa desde criança. Apesar de muito jovem, é a terceira vez que vem até o Faial. Conhece um pouco da história das ilhas e do seu povo. Fala: o açoriano de agora, não é mais o mesmo que foi para o Brasil como colonizador. Os Açores são de Portugal. A cultura açoriana é inseparável e indissociável de dois milênios e meio de civilização europeia, dos nove séculos de história portuguesa e dos cinco séculos de vivência nestas ilhas. Considera os habitantes como a mistura do fidalgo lusitano com o escravo mouro e com o judeu convertido a cristão. Os açorianos sofreram influência do artesão de Flandres, do aventureiro sem beira nem eira e dos corsários argelinos. Achei um pouco de exagero do francês, tanta mestiçagem. Mas deve saber mais do que eu. Ele despede-se, pede desculpa por não poder acompanhar-me; teria prazer em mostrar-me a ilha, mas está de partida no outro dia. Antes, porém, de retirar-se apresenta para mim vários velejadores. Lamento ser fluente, somente em português e espanhol. Não consigo falar com todos eles. Passo o restante da noite conversando com Carlos. É natural da Ilha da Madeira, mas vive há mais de vinte anos em Faial. A conversa é agradável, e me conta que costuma fazer excursões em seu veleiro particular. Mas na última viagem pegou uma ventania furiosa e as velas foram parcialmente 175


destruídas. O barco está no estaleiro, mas se oferece como cicerone, enquanto eu permanecer nos Açores. Combinamos o preço e, na manhã seguinte, Carlos vem me buscar no hotel. É um tipo atarracado, mas vigoroso como um touro, bigode grosso e sobrancelhas espessas ressaltam os olhos negros. Vamos caminhando até ao cais. Embarcamos no Mestre Simão. Em vinte minutos o barco atravessa o canal, denominação dada ao mar que separa as duas ilhas. Chegamos ao Porto de Madalena, atravessamos ruas e ruelas. As hortênsias e azáleas, das mais variadas cores, estão por todos os lados. A beleza e a harmonia das flores realçam casas, jardins e as praças. É um colorido especial, que parecem ter saído da palheta de um artista. A paisagem muda quando chegamos aos característicos vinhedos, cultivados sobre as rochas vulcânicas. Visitamos o museu da Baleia, localizado na Freguesia das Lajes, onde desembarcaram os primeiros povoadores da ilha. Carlos me diz que é um dos mais completos que existem. Ele tem razão, as fotos exibidas são verdadeiras relíquias, os documentos explicam, em detalhes, como era feita a pesca das baleias. Os arpões e outros instrumentos utilizados, pelos pescadores, estão bem conservados. Há, inclusive, embarcações restauradas. Jogos e artesanatos, confeccionados com dentes de baleia, estão em exposição em balcões de vidros. No final da visita, assistimos a um filme com a última caça de baleias, realizada em 1986. Cessar essa prática milenar, nos Açores, fez parte das condições para Portugal entrar na comunidade europeia. Bem próximo ao museu, encontra-se o local onde, no passado, ficavam as armações baleeiras, agora desativadas. Carlos e eu tomamos outro barco no Porto de São Roque do Pico. O destino é Velas, Porto da Ilha de São Jorge. Minha expectativa cresce; vou conhecer o lugar que, segundo a pesquisa de Paulo, é a terra de onde partiram os açorianos que deram origem à família de minha mãe. Nasceram em São Jorge, meus ancestrais. Se contarmos apenas da 8.a e 9.a geração, comprovadamente, tenho mais de 30 antepassados. Carlos é um excelente guia; conhece bem os Açores e descreve bem os pontos turísticos. Antes de 176


voltarmos para Faial, ele diz: deixei para o final um mistério, que, em minha opinião, é uma das visitas imperdíveis, para quem vem ao Arquipélago: são as Fajãs. Minha curiosidade aumenta, até porque nunca ouvi falar nesse acidente da natureza. Do alto de uma elevação, enxergo vasta extensão da ilha, e escadas que descem até o mar. Pergunto a Carlos: o que são estes diversos pontos planos, de cinza quase negro, que estão espalhados pelas encostas? Meu cicerone explica: são derramamento de lava, as famosas Fajãs. Como já está quase na hora do almoço, me convida para visitar, em primeiro lugar, a Caldeira de Santo Cristo. Ele faz propaganda das deliciosas almejas, preparadas de diferentes formas. Uma iguaria, somente encontradas nos Açores. Não é exagero, o prato é muito saboroso. Depois do almoço, visitamos as outras quatro: Ribeira da Areia, dos Cumbre, do Ouvidor e do Nortezinho. Está tarde, comenta Carlos, temos que nos apressar, se não perderemos a última embarcação que nos levará de volta a Faial. No barco, trocamos informações. Carlos quer saber onde fica o Rio Grande do Sul e qual a influência dos açorianos na minha terra. Conto alguma coisa que aprendi com meu cunhado. Leio em voz alta anotações que fiz, dos dados que me pareceram mais relevantes. O açoriano adaptou-se bem ao Rio Grande de São Pedro, dedicando-se à agricultura, plantando trigo, algodão, centeio, cevada, legumes, arroz, cebola, alpiste, melancia, cana-de-açúcar e uva. Lá como aqui, todos muito católicos. Continuaram com os princípios morais rígidos. Respeitadores de seus lares e de suas famílias. Os índios, os castelhanos, os gaudérios, e os aventureiros, que se aproximaram dos povoados onde viviam os açorianos, assimilaram seus costumes e suas tradições. Nós, gaúchos, como somos chamados, quem vive no extremo sul do Brasil, herdamos a hospitalidade, dos açorianos, tão apreciada pelos turistas. As festas religiosas, como Terno de Reis, Festas Juninas, Festa do Divino, assim como as procissões, as novenas e os presépios, auxiliaram em formar as tradições do nosso estado. A arquitetura portuguesa de nossas primeiras construções, bem como o uso do tamanco e do chapéu 177


de palha, são costumes que se somaram na formação das tradições do gaúcho. Em nossa culinária, a contribuição dos açorianos foi o sonho, arroz de leite, os famosos doces portugueses e uma grande variedade de pratos com peixe. Na música e na dança tradicionalista gaúcha, os ilhéus deixaram como herança o balaio, o tatu, o pezinho, a cana verde, e a dança do pau de fita. O açoriano ainda transmitiu ao gaúcho a técnica de plantar pelo sistema do pouso (cultiva-se a terra por dois anos consecutivos e deixase que ela descanse por outros dois). Carlos gosta do que escuta, mas acrescenta outras peculiaridades dos costumes e hábitos. Complementa meus conhecimentos, sobre a história e as tradições do povo açoriano. Marcamos, para o dia seguinte, almoço no Restaurante Genuíno, outro local recomendado por Paulo e Vera, amigos do proprietário, casado com uma gaúcha do Alegrete. O restaurante é muito bem localizado. Do primeiro andar uma vista espetacular do mar e da Ilha do Pico. Ambiente agradável e de ótima comida, escolho uma entrada de frutos do mar ao vinagrete, e como prato principal polvo grelhado e legumes; delicioso. Muita história e sabores. O dono é navegador e deu duas vezes a volta ao mundo em um pequeno barco. O restaurante é decorado com objetos que ele trouxe dessas viagens. Recentemente, foi homenageado pelo governo português. Conhecemos também o filho de Genoino, destemido como o pai. Diariamente, leva turistas para apreciarem, de perto, um verdadeiro espetáculo oferecido por golfinhos e cachalotes. O nome que é dado a esse ofício, nos Açores, é Avistamento de baleias... Meu cicerone, muito atencioso, fez questão de acompanhar-me até o aeroporto. Ao despedir-se me fala: você precisa voltar, Helena. Dez dias é um tempo insuficiente. Visitamos apenas duas ilhas, existem muitos passeios em Faial e Pico, que não tivemos tempo em visitar. E não conheceste as outras sete ilhas do Arquipélago. Ele tem razão, os Açores foi surpreendente para mim. Não imaginava a riqueza das manifestações festivas, da natureza sociocultural desses atos coletivos e da força aglutinadora das tradições deste povo hospitaleiro. Quando o avião levanta voo, acomodada na 178


poltrona próxima à janela, vejo na imensidão do mar azul esverdeado golfinhos e cachalotes brincando, em uma coreografia harmoniosa. Carlos tem razão: preciso voltar. E na próxima viagem, com certeza, não deixarei de fazer o passeio de Avistamento de baleias.

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HISTÓRIA DE MEU BISAVÔ FIDÉLIS, CONTADA POR ELE MESMO Marlene Canarim Danesi Velha infusão gauchesca, de topete levantado. O porongo requeimado que te serve de vasilha, tem o feitio da coxilha, por onde o guasca domina, e este gosto de resina que não é amargo nem doce é um beijo que desgarrou-se nos lábios de alguma china.

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Jayme Caetano Braun

u nasci em 1855 e morri em 1941, ano de uma grande enchente que se abateu por todo o Rio Grande do Sul. Minha mãe colocou em mim o nome do meu avô. Só que ele era Fidélis Guterres d’Alexandria e eu me chamo Fidélis Paulo Guterres. Sei e já expliquei o porquê d’Alexandria, mas nunca fiquei sabendo como um nome próprio como Paulo se transformou em sobrenome. Minha mãe, Joaquina, adotou do marido Candido, descendente de açorianos, usos e hábitos daquele povo, amante de suas tradições e que conservam seus costumes através das gerações. Um dos hábitos de meu pai era comer peixe assado ou frito com café e farinha. Ele me dava para provar, mas eu nunca me habituei. Mas as histórias daquele arquipélago, eu gostava de escutar; eram interessantes, apesar de tristes. Meu avô me contava o que ouviu de seu avô: o Arquipélago dos Açores é um conjunto de ilhas que pertencem até hoje a Portugal. Na época dos antepassados de minha família, os açorianos viviam numa miséria tremenda; as ilhas estavam superlotadas. Os habitantes sofriam com os tremores de terra, violentas tempestades e erupções de vulcões. Eram *  Foto à esquerda: Aurelia Marques e Fidelis Paulo Guterres. 181


também maltratados por ataque de piratas. Dom João de Portugal, lá por volta de 1700, decide, então, oferecer terras no Brasil. Alguns vieram de boa vontade, porém muitos foram forçados. Os açorianos eram colocados empilhados nos navios, sem as mínimas condições de higiene; significativo número morre pelo caminho. Os sobreviventes, quando chegam ao destino, dão-se conta que foram enganados; nenhuma das promessas é cumprida. Meus ancestrais da Ilha de São Jorge eram pescadores, mas aqui, na nova terra, foram obrigados a trabalhar como lavradores; precisaram tirar seu sustento da terra. Foi muito dura a vida de meus antepassados. Penso que nós não agradecemos, suficientemente, a eles por tudo que passaram. Trabalharam muito e não tinham tempo para diversões. Homens e mulheres de coragem inigualáveis. No início plantavam de tudo, criavam galinhas, produziam todos os alimentos e vestimentas em casa. Só mais tarde passaram a criar ovelhas, gado e cavalos, quando, com sacrifício, compraram suas terras. Quando nasci já não havia mais pobreza, meus pais eram muito econômicos, levavam uma vida simples, mas com muito trabalho e esforço conseguiram ir comprando terras. O desejo dos Guterres foi sempre o de economizar o máximo para poder ter grandes extensões de campo. O hábito deles era levantar muito cedo, para dar conta das inúmeras tarefas que uma estância exige. Faziam fogo para aquecer a água para o chimarrão, depois tomavam café juntos, antes de meu pai ir para o campo. Ele montava no cavalo e minha mãe já iniciava a faina diária: ir a horta, preparar o almoço, fazer pão, queijo e cuidar de nós cinco: Feliciano, Clarimundo, eu e mais duas irmãs. Ainda sentavase no tear para fazer a roupa de toda a família. No inverno, ainda tricotava pulôveres de lã crua das ovelhas tosquiadas. Com certeza muitas tarefas. E quando havia matança de rês e de porco o trabalho ainda era maior. Daquelas mãos prendadas saíam linguiças, morcelas, queijo de porco e outras iguarias; só quem se criou saboreando sabe apreciar. Na campanha, nossa casa era bem simples: coberta, de chão batido e paredes barreadas; as moradias da cidade eram bem mais confortáveis. Tínhamos casas em 182


Lavras e Encruzilhada. Cresci entre essas duas cidades. Minha mãe era muito católica, e quando estava na cidade frequentava as novenas e outras festividades religiosas. Nas festas do Espírito Santo, era ela quem carregava a bandeira, visitando casa por casa. Na minha juventude, entrei em conflito com Dona Joaquina, justamente por religiosidade demasiada. Acreditava em tudo que os padres diziam, e eles conseguiram convencê-la que dançar era pecado. E eu era apaixonado por bailes e não tinha ameaças que me impedissem de ir aos arrasta-pés. Os bailes com gaita, violão e cavaquinho eram afastados da cidade, em razão da perseguição dos padres aos donos dos fandangos. Muitos organizadores precisaram até ir embora das cidades por sofrerem pressões insuportáveis. Para mim, o ódio que os padres nutriam aos donos das casas noturnas, pouco tinha a ver com religião, estava relacionado ao poder econômico. Os amantes da diversão deixavam nos bailes o dinheiro que deveriam ser destinados à igreja, no entender dos religiosos. Eu e meus amigos íamos dançar às escondidas. Nossas mães, quando descobriam se desesperavam por acharem que seriamos excomungados. Dona Joaquina passava o tempo se exclamando e repetindo para meu pai a mesma ladainha: está na hora de Fidélis casar, precisa criar juízo. Passa as noites nesses malditos bailes, sempre metido com alguma china. Já notaste que na fazenda, e até aqui na cidade, nasceram várias crianças de olhinhos redondinhos e azuis, bem iguaizinhos aos do Fidélis. Este rapaz necessita sossegar e me dar netos verdadeiros. Eu já estou reparando nas moças de família, filhas de gente como nós. O padre Antônio me falou que a filha de Belmiro Marques é uma excelente moça, muito prendada. Aprendeu tudo com a mãe, minha comadre Guilhermina, e até sabe fazer tapetes. Aurélia está acostumada com a lida de estância, porque os pais se ocupam de negócios de campo. Além de tudo é religiosa, não falta à missa nem novena. Naquela época, eram os pais que escolhiam as mulheres e os maridos para filhos e filhas. Às vezes, eram escolhas esdrúxulas. Havia casos de meninas de 13 anos, 183


casar-se com homens de mais de 30. Felizmente, não foi esse meu caso, porque até não gostaria de me casar com uma criança. Quando, pela primeira vez minha mãe veio me dar a notícia de seus planos para meu futuro, me desagradou saber que era uma recomendada de padre Antônio. Nunca gostei desse religioso, jamais acreditei nas estórias mentirosas que ele contava no Catecismo: Adão e Eva expulsos do Paraíso, Santos que caminhavam por cima das ondas, tudo invenção. Mas eu conhecia o pai da minha escolhida; era um gaúcho autêntico e muito simpático. Decidi aceitar a proposta de meus pais, mas queria conhecer Aurélia; comecei a planejar como e onde poderia vê-la. As moças daqueles tempos só saíam para irem a festas religiosas ou à missa aos domingos, e nunca sozinhas. Morávamos na mesma rua. Começo a passar diariamente em frente da casa dos Marques. Uma escrava da família, com a qual andei de rega-bofes, me conta qual das janelas é o quarto de Aurélia; não perco a esperança de enxergála. A janela do quarto tem um gradil miudinho, permitindo, apenas, perceber o vulto da jovem. Às vezes, estava sentada bordando ou fazendo os famosos tapetes, que minha mãe tanto alardeava; outras vezes, andava de um lado para o outro. Eu tinha impressão, nesses momentos, que ela me espiava, e com certeza sabia estar prometida para mim. Depois dessas tentativas frustradas, finalmente a conheci na saída da missa. Alta, esbelta, tez rosada, olhos negros cintilantes e cílios longos. Vestia um vestido comprido, cinza escuro, e uma faixa preta abaixo dos seios realçava a cintura fina. Não era feia, Aurélia, mas tinha quadris muito largos e o traseiro exagerado, mas segundo minha mãe, sinal de boa parideira. A partir daquele dia iniciamos a trocar bilhetes; o pombo correio era sua criada de quarto. Antes do casamento nos falamos poucas vezes, ou em visita à casa dos Marques ou na praça na saída da missa, mas sempre com chá de pera, dona Guilhermina ou da mucama Nadir. Para o casamento precisei comprar um terno elegante. Meu guarda-roupa era muito simples, porque no campo qualquer vestimenta serve. Eu passava muito tempo na 184


estância, mas minha mãe fez questão de renovar meu guarda-roupa: comprou bombachas, camisas, botas e chapéu de barbicacho, tudo novo. O casamento foi na fazenda, entre Lavras e Encruzilhada. Grande festa começando com churrasco e indo noite adentro com muita música, o que não agradou minha mãe. Mas o pai de Aurélia, seu Belmiro, era apreciador de danças, e às escondidas até frequentador dos bailes. Entre os muitos convidados, vieram gente importante, fazendeiros ricos, políticos famosos de Encruzilhada e até de Bagé e Dom Pedrito. Festa maravilhosa. Ganhamos muitos presentes, mas uma decepção na noite de núpcias. Eu sabia que Aurélia era católica, mas não imaginei que fosse carola como minha mãe. Se não igual, pareciase bastante; não permitiu que eu acendesse nem uma lamparina quando fomos para o quarto. Convencida, pelos padres, que aparecer nua para o marido era pecado, tive que me contentar em ter relações escondidas por camisolas e lençóis e ainda no escuro. Para um temperamento como o meu, o resultado foi: esposa para ter filhos, o prazer com as chinocas ou mulheres da vida. Entretanto, vivemos uma vida harmoniosa. Ela me deu três filhos sadios: Egídia, Belmiro e Lydia. Para os padrões da época, muito poucos; as famílias costumavam ser muito numerosas. As comadres mexeriqueiras comentavam: Aurélia deve tomar algum chá, alguma erva que evita ficar embuchada ou então o marido não a procura muitas vezes. Minha mulher não se importava com as intrigantes. Costumava dizer: agradeço todos os dias a Deus ter engravidado somente três vezes. Não sou gata para ter ninhadas. Só pariu três, mas minha mãe tinha razão, quando vaticinou que quadris largos significava ser boa parideira. Nossos três filhos nasceram na estância, na invernada de São Paulo, e apenas com ajuda de uma comadre que vivia na vila do Ibaré. Sendo que Lydia nem esperou a parteira chegar; Aurélia só contou com minha ajuda. Eu, com uma velha e enferrujada tesoura, cortei o umbigo de minha filha; talvez por essa razão sempre tive predileção especial por ela.

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OFFERTA DA MORTE Floriana Danesi Breyer E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama, Mas que seja infinito enquanto dure.

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Soneto da Fidelidade,de Vinícius de Moraes

general Edil mandava no quartel, mas quem dava as ordens em casa era a comadre, a Moça, Nely. Edil e Nely eram netos da destemida Maria Joaquina, portanto, primos-irmãos, mas só vieram a se conhecer já grandes. Depois de nove anos internado no Rio de Janeiro, estudando, retorna a Bagé, tenente do Exército e cursando Medicina, Edil Mazzini Canarim. Desembarca na praça da cidade todo fardado e ansioso para rever a mamãe Brezolina, que orgulhosa o esperava. Nesse dia, Nely passava na praça central e vê aquele moço altivo, todo fardado, de olhos claros e boca carnuda. Seus olhares se entrecruzam e um calor sobe ao peito. Nely corre para casa envergonhada e, um tanto assanhada, olha para trás algumas vezes antes de ir-se… E se vai. Chega em casa e não conta nada a ninguém; afinal, o que poderiam pensar de uma moça solteira se assanhando para estranhos? À noitinha vem a tia, a segunda das quatro filhas mulheres do cocheiro misterioso e da destemida Maria *  Foto à esquerda: Edil Mazzini Canarim lendo poesias quando estudante no Rio de Janeiro. 187


Joaquina que homenagearam o Brasil a cada nova cria: Brasilina, Brezolina e as gêmeas Borgínia e Brasília. Brezolina estava radiante de felicidade, pois iria reapresentar o filho tenente e formando em Medicina, para a parte rica da família de seu irmão David e sua mulher Lyndoca, como era conhecida Lydia e futuramente vovó Doca, por sua beleza. Estavam todos nos preparativos do jantar quando, de repente, para a surpresa de Nely, entra pela porta da frente aquele estranho fardado que encontrara na praça, senta-se no sofá e já é da família. Nely não sabe onde esconder sua alegria que, visivelmente, já está subindo pelas paredes e transborda em discretas e secretas miraditas. Nos meses que seguiram, trocaram cartas de amor que de navio e trem tardavam três meses em chegar ao destino. E entre essas veio o pedido de casamento. O pai de Nely, feliz, mas apreensivo com o futuro da filha, lhe diz: – Tu sabes que militar só tem dourado na farda? Edil esta te pedindo em casamento e vai ser transferido para Bahia. Tu te animas a ir para aquele fim de mundo com teu futuro marido? – Me animo! Responde Nely sem hesitar. Foram companheiros inseparáveis e tiveram três filhos: Helena, Danúbio e Vera Lúcia. A vida toda, Edil fez todas as vontades da comadre. Helena pensava que o pai amava muito mais a mãe, que a mãe ao pai, mas a morte guarda surpresas. Nely morreu em Casa, de banho recém-tomado. Numa manhã meio ensolarada, tomou banho, vestiu-se, perfumou-se, deitou-se e sentiu uma dor no peito. Nely sempre dizia que queria morrer do coração e se recusava tomar remédios “Bom mesmo é morrer do coração, assim se vai em seguida!” costumava dizer. Nessa manhã, sentiuse mal, chamou a Rosa, que prontamente chegou. Virouse para pegar o abanico que ficava na penteadeira ao 188


lado do oratório de todos os santos, quando voltou para abaná-la viu seu último suspiro... Morreu ali mesmo de morte morrida. Ali na sua casa, de banho recém-tomado. Helena é avisada e sai queimando óleo em seu Corcel branco. Chega, sobe as escadas, aproxima-se da penteadeira, sempre impecável, e da cama talhada em madeira nobre, e vê Nely já desacordada. Abraça o corpo ainda quente. Entre seus braços, envolto nesse último abraço, corpos, fronhas, lágrimas e um segredo. Helena tateia debaixo do travesseiro e recebe uma oferta da morte. Um álbum de couro marrom onde podia ler estampadas em ouro, na capa, Nely e a palavra Poesia. Com o coração latindo, Helena abre o álbum, e encontra dedicatória escrita, a lápis, em letras alongadas: À Nely, com o álbum, offerece Edil. Virando a primeira página encontra escrito: Offerta Guarda este álbum querida como uma lembrança d’uma linda felicidade… Guarda-o por toda a vida… Tem um perfume: a esperança… Tem uma dor: a saudade… Valente de Andrade

E assim foi… Nely guardara-o e amara-o por toda a vida. Helena enxugou as lágrimas e levou o álbum junto ao peito. Num suspiro profundo, sentiu o gosto d’uma linda felicidade e a dor da saudade. Pegou o álbum, e em casa escolheu um local para expor seu tesouro. Anos mais tarde, Florência entrou na casa da avó, e a encontrou triste, sentindo-se sozinha e lamentando por não ter tido um companheiro para a vida toda. A neta baixou a cabeça sentindo a dor da avó correndo em seu sangue… Foi nesse instante que avistou o álbum e, curiosa, abriu aquela capa marrom desbotada pelo tempo mas ainda 189


com os inscritos em dourado. Na contracapa havia uma estampa verde art nouveau, e nas páginas que seguiam caligrafias a lápis; rastros de amor que ultrapassaram gerações e que ali exalavam um perfume de esperança… Florência e Helena se olharam e receberam a oferta sentindo pulsar dentro uma linda e infinita felicidade.23

*  Foto acima: Caderneta de escritos de amor de Edil para Nely **  Foto à direita: Casamento de Nely Mazzini Canarim e Edil Mazzini Canarim. 190


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FACA NA BOTA E O COCHEIRO MISTERIOSO Floriana Danesi Breyer “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”

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Clarice Lispector

á alguns meses o piano estava silencioso. Dona Senhorinha havia falecido e sua filha Maria Joaquina seguia de preto, como uma viúva pelos cantos, lamentando a morte da mãe. Estava irreconhecível, triste e principalmente revoltada com o pai que já começara a arrastar asinhas para uma rapariga. Ela não suportaria outra mulher na sua casa, ocupando o lugar da falecida sua mãe, ainda mais em tão pouco tempo. Precisava sair dali, mas não tinha para onde ir, ainda mais sendo menor de idade. Naquela madrugada teve uma ideia: convencer o pai de que queria ser freira, e fazê-lo enviá-la ao Convento. E assim o fez. Passou três anos no Convento, contanto os dias para sua maioridade. Mas o plano recém estava começando: O pai não perde por esperar, assim que eu fizer 21 anos, saio daqui e vou reivindicar a antecipação da minha herança. Minha mãe há de me ajudar a conquistar meus direitos e não ter de me submeter aos caprichos do pai e sua rapariga, que estão a gastar toda a nossa fortuna, pensou Maria Joaquina ainda na véspera dos seus 21 anos. Assim que completou a maioridade, Maria saiu do Convento e foi direto procurar o advogado Dr. Alberto de Souza. – Dr. Alberto tens de me ajudar a conquistar meus direitos: quero minha herança antecipada. *  Foto à esquerda: O Casal Maria Joaquina Silveira e David Mazzini em dezembro de 1901 com os filhos (esquerda para direita) Borgínia, Jango, Brezolina, David e Brasília Silveira Mazzini. 193


– Senhorita Joaquina, sabes que será muito difícil ganharmos, teu pai é um homem muito influente em Bagé e tu és apenas uma senhorita filha da falecida Senhorinha. Vivemos numa sociedade machista, em que o direito das mulheres solteiras é muito pouco levado em conta. – Não importa, Dr. Alberto, mesmo que não haja antecedentes recentes de casos como o meu em Bagé, hei de ser a primeira a ganhar um juízo como este, e libertar-me de meu pai de uma vez por todas. – Se é de teu agrado, assim tentaremos. – Vamos vencer, doutor; minha mãe há de interceder por mim em outro plano. E assim, levaram o caso à Corte de Bagé. Maria Joaquina compareceu a todas as sessões com um vestido preto de detalhes em renda, botas de cano alto e uma faca amarrada na batata da perna, presente de sua mãe argentina. A faca era pequena, tinha cabo de prata e uma bainha esculpida no chifre de boi. Maria Joaquina costumava manter a faca afiada e sempre a tinha consigo escondida na bota da perna direita. Após alguns meses, Dr. Alberto recebeu a notícia de que havia sido julgado o caso e que Maria Joaquina receberia sua parte da herança. Foi a primeira vez que Maria Joaquina saiu nos jornais: Jovem larga o Convento, recebe herança antecipada na justiça e vai morar sozinha em Bagé. Foi o primeiro escândalo envolvendo o nome da valente e ousada Maria Joaquina. Com o dinheiro em mãos, Joaquina daria início a nova vida; não queria ser só fazendeira, queria ser empresária. Vendeu parte de suas terras e montou seu próprio negócio na cidade. Comprou dez coches, vinte cavalos e, aproveitando seu destaque nos jornais, divulgou na imprensa vagas para cocheiros. Estava montada sua frota de coches. Aos poucos começaram a aparecer os candidatos que foram devidamente entrevistados um a um. Entre os que se apresentaram, houve um que lhe chamou muita a atenção. Um homem de poucas palavras, não apenas por não dominar o português, pois sua língua materna parecia ser Italiano, mas por, talvez guardar um 194


segredo. Tinha uma presença contundente, olhar firme, penetrante, e belos traços físicos. Mas o que mais o tornava interessante era aquele ar misterioso que trazia consigo. Também chamou a atenção de Maria Joaquina, pois o italiano havia entrado no Brasil pela Argentina, pelo porto de Buenos Aires, diferente de outras levas italianas que chegavam pelo Porto de Santos. Maria Joaquina sentia que era uma mensagem da falecida sua mãe que lhe enviara um guardião das terras do sul. David Mazini foi como ele se apresentou; e veio para ficar. De cocheiro, logo passou aos aposentos da chefa, e tornou-se seu fiel escudeiro e marido. O casamento foi nova chamada dos jornais da região: Jovem empresária da frota de coches casa-se com um dos cocheiros recém-chegado da Itália. Maria Joaquina adorava ser o centro das atenções e desafiar as normas e padrões culturais de sua época, tinha um espírito livre e queria conquistar seus caminhos por sua própria conta, não lhe importava o que pensassem ou falassem dela. Era capaz de arriscar tudo, até a própria vida para realizar suas vontades. Certa vez, grávida das gêmeas, quis sair a galopar por sua fazenda, a Estância de São Braz, e sentir o vento e o sol no rosto. Quando estava próxima da sanga, deparouse com uma manada de bois e seu cavalo desesperou-se, empinou e saiu em disparada. Ela teve tempo apenas de agarrar-se num tronco de árvore mantendo-se pendurada acima do boi furioso que seguia embaixo à espera de sua queda. A destemida Maria Joaquina mantinha-se ali, firme, e já planejava como enfrentaria o boi quando seus braços não aguentassem mais sustentar seu corpo e dois bebês que trazia na pança. O cocheiro, na Casa Grande, percebendo a estranha movimentação da manada, reuniu a peonada e sai em busca de sua mulher. Ao longe, pôde avistar Maria Joaquina pendurada aos chutes com o boi que lhe puxava a bota e ela gritando-lhe: – Quando descer eu lhe enfio a faca!

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A VIDA E AS MULHERES DA FRONTEIRA Marlene Canarim Danesi [...] pois naquela Província acontecia as mulheres serem da guerra. Não que fossem guerreiras (muitas eram) ou briguentas (dessas também havia), mas sem medo em faltar com a verdade, ali as mulheres eram fortes e corajosas, admiravam as guerras e as ideias e tratavam de ajudar e não de atrapalhar...

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Hilda Simões Lopes

u nasci no fim da primavera, quase no verão, exatamente no dia 9 de dezembro de 1886, na estância de meus pais, Fidélis Paulo Guterres e Aurélia Marques, perto de Lavras do Sul, onde fui registrada. Os campos pertenciam a meus avós Cândido e Joaquina, e quando eles se foram, meu pai comprou a parte do irmão Clarimundo e de uma irmã, sendo assim, a maior parte da fazenda permaneceu com nossa pequena família. Éramos apenas três irmãos, Belmiro, Egydia e eu, Lydia Guterres. Tempos mais tarde, meu pai comprou mais campos, um pouco mais afastado da primeira fazenda, mas vivi minha vida em mais de uma estância. Cresci em um ambiente feliz, sem excessos, com alguns apertos, mas sem grandes carências. Fui criada na campanha, e como todas as mulheres do sul, éramos fortes, corajosas, mas discretas; guardávamos para nossos entes queridos o melhor de nós. A história das nossas antecessoras, mulheres que viveram a Revolução Farroupilha é ainda muito presente nas mulheres da fronteira. Elas cresceram sentindo o cheiro de guerra, tropeçando em armas, e tomando *  Foto à esquerda: A revolução Federalista de 1893: o cerco de Bagé. 197


conta das estâncias. Esses exemplos nos marcaram corpo e alma, e aprendemos a fazer de tudo e de dar força aos nossos homens na guerra e na paz. Nossa casa era muito simples, próxima a Ibaré, pequeno povoado, mas local de uma estação de trem movimentada, onde vivia um povo muito festeiro. Não sei bem quem promovia, porém aconteciam muitas festividades e bailes famosos, frequentados não só por famílias de fazendeiros que residiam em estâncias nas proximidades, mas também por gente de Lavras, Dom Pedrito e Bagé. A casa dos Petrarca, localizava-se bem em frente à estação de trens e era o cenário da maioria dos bailes. E foi em uma dessas festas que conheci meu marido, Davi Mazzini Filho. Ele era filho do casal, Maria Joaquina Silveira e do italiano Davi Dolenzi Mazzini. Residiam em Bagé, mas passavam temporadas na Estância de São Braz, propriedade da família. Quem era Davi? E o que representou para mim? Era um rapaz muito bonito, de boa estatura, magro, com farta cabeleira e bigodes. Olhos gateados que chamavam a atenção, com a luz mudavam do verde para o amarelado, cor de mel. Destacava-se pela elegância das vestimentas: casacos, capas e roupas, excelentemente cortadas e cosidas. Não dispensava belos coletes, onde pendurava um relógio de bolso, prateado. Nunca usou vestimenta de gaúcho; em vez de largas bombachas vestia culotes e botas de couro justas e elegantes. Talvez pela autenticidade, era mais notado pelas jovens desejosas de arranjar maridos. As mais audaciosas se insinuavam para ele com certa discrição. Mas todas, sem exceção, desejavam dançar com o italianinho, que bailava divinamente. Meu temperamento tímido, talvez fosse a razão de ter despertado a curiosidade dele. Em certa noite, ao levantar-me da mesa para ir ao toalete, foi quando o vi pela primeira vez. Observei a imagem dele refletida no espelho, que ficava na sala principal da casa dos Petrarca. Notei que olhos gateados me seguiam. Passei a ser, no dizer de minhas amigas, a rainha dos bailes, justamente por ser quem mais recebia convites para dançar 198


com o par cobiçado. Em pouco tempo, percebi que o interesse de Davi aumentou. Recebia algumas mensagens; uma delas era a letra de uma valsa-canção, que nem ele soube, mais tarde, me revelar a autoria. Mas era assim: Passavas linda como passa um anjo, ou como arcanjo no azul do céu! Eras tão pura como a pura estrela. Branca, singela, a cintilar sem véu. Aceitei a corte, intuí que ele seria um bom pai para meus filhos. Não me casei movida por paixão arrebatadora, até porque minha personalidade não se presta para arroubos exagerados. Mas, sim, por um afeto intenso e pela certeza de que meus dias a seu lado transcorreriam com segurança e suavidade. Não estava enganada. Fomos felizes, e penso que não teria encontrado outro homem a quem dedicasse o mesmo afeto que devotei a ele. Casamo-nos na fazenda dos pais dele, Estância de São Braz, berço da família. Uma casa que abrigou muitas gerações, onde ficaram depositadas muitas recordações. O casamento não foi um grande acontecimento, pelo contrário, uma cerimônia simples. Compareceram poucos convidados, parentes de ambos os lados e amigos íntimos. A mãe de Davi, Maria Joaquina, não era amante de festas. Era uma mulher forjada na adversidade, muito determinada, de grande personalidade e atitudes práticas. Minha sogra era muito respeitada, admirada pela coragem e valentia, temida por seu temperamento rancoroso, guerreiro e briguento; mulheres como ela eram conhecidas na campanha como mulheres de Faca na Bota. Brigou com o pai, quando ele contraiu matrimônio apenas um mês de ter enviuvado. Nunca mais falou com ele. São muitas suas façanhas, mas me detenho em uma delas que me parece ser a que caracteriza bem sua personalidade. Foi durante o cerco de Bagé, na sanguinolenta revolução gaúcha de 1893. Impossível, para mim, determinar com precisão a causa principal da revolução; deixo isso aos historiadores. Sei, entretanto, que envolveu todo o estado, com os dois lados de adeptos, com ideias contrárias. Homens mantidos pela União, contra 199


homens mantidos pelo federalismo. Uma luta armada, com desmandos de parte a parte e perseguições constantes. Muita selvageria em pleno século 19, chamado das luzes. Nessa guerra, entre os republicanos castilhistas (pica-paus) e os comandados por Gaspar Silveira Martins (maragatos) correu muito sangue; a conhecida Revolução da Degola. Durante o cerco de Bagé, aconteceu que minha sogra estava na cidade e o marido se encontrava na estância. Eles não estavam envolvidos com nenhum dos dois lados. Maria Joaquina costumava dizer: quero viver longe destes políticos ordinários, esta gente só pensa usufruir do dinheiro público. Quando a água e a comida começam a escassear, durante o tempo em que a cidade esteve sitiada, Maria Joaquina decide desobedecer à proibição de entrada ou saída de Bagé. Acomoda os filhos em uma carruagem e atravessa a linha dos atiradores, no meio do pipoquear das carabinas e dos disparos de Winchester. Por uma felicidade extraordinária, ninguém sai ferido e ela consegue encontrar o marido. Troveja e relampeia quando chegam na Estância de São Braz. Meu sogro leva a mulher e os filhos para beira do fogão e manda a criada servir um caldo quente; quer saber das novidades. Maria Joaquina relata os fatos e acrescenta sua opinião: a revolução está sangrenta demais, meu marido. O pior é que começam atacar até estâncias, granjas e casas de campo. Não existem mais limites. Estou preocupada com o forte contingentes de rebeldes sob a liderança de Joca Tavares. Davi, o italiano sentencia: bem, sou estrangeiro não devo me meter muito em política, apesar de ter me naturalizado brasileiro, mas penso que o objetivo desta revolução é simplesmente uma troca de oligarquia. E segue preocupado de cabeça baixa. Nunca atacaram São Braz; tudo volta à tranquilidade depois que a paz é definitivamente assinada. Quando me casei, minha sogra já não era tão audaciosa. Mas mesmo quando envelheceu manteve o temperamento briguento e o gênio irascível. Meu sogro se fingia até de surdo para ignorar as rabugices da mulher. Não foi fácil, para mim, a 200


convivência com ela, mas como meu marido era muito chegado à mãe, e por amor a ele, fui tolerante com as implicâncias de Maria Joaquina. Quando passava muito tempo em nossa casa, eu andava pelos cômodos, depois que ela ia embora, reorganizando novamente a meu gosto, tudo que ela havia arrumado ao gosto dela. Não posso deixar de reconhecer, no entanto, a inteligência, a coragem e autenticidade dela. Sem dúvida, foi uma mulher muito adiante de seu tempo. Davi e eu vivemos na estância durante, aproximadamente, 10 anos, mas naquela casa parece metida toda minha vida. Nos primeiros dois anos, eu não consegui engravidar, o que era motivo de desprezo por parte de minha sogra. Para mim, que adorava crianças, era motivo de extrema tristeza. Já estava disposta a adotar, quando tive a certeza que seria mãe de Edith, nossa primogênita. Depois dela tive mais treze; ao todo foram 12 mulheres e dois homens. Todos nasceram vivos, mas perdemos duas recém-nascidas e uma filha já com pouco mais de 20 anos. Só nos mudamos para cidade quando as crianças precisaram ir para escola. No início, moramos com meus pais; só em 1938 compramos nossa casa, uma enorme e bela moradia, na Rua Marechal Floriano: o grande palco da família. No casarão, todas as peças tinham o pé-direito muito alto, portas grandes e pesadas, janelas largas e peças espaçosas. Em todos os quartos havia quadros pintados a óleo, com imagens de ninfas em bosques, ou em outros cenários. A saleta de entrada, onde tinha um piano, dava para o escritório, com a escrivaninha de meu avô, em madeira compacta, na parede um enorme quadro da fotografia do pai dele. Um homem belo de físico e de alma; gostava muito de meu sogro. Duas portas saíam do escritório: uma dava para a parte dos quartos, a outra para a sala de jantar. Lá havia um balcão de jacarandá, de ponta a ponta, com um grande espelho por cima, uma mesa escura da mesma madeira e cadeiras de espaldar alto. O relógio de parede, que badalava de hora em hora, se escutava em toda casa. 201


Da sala chegava-se a um grande e largo corredor, com lindo mosaico nas paredes e no piso. Este mesmo corredor dava para dois quartos: um era o dos meus avós, outro era o da minha filha Edith, que viveu com as filhas, quase a vida inteira, no Casarão, depois que se separou. Também do corredor se acessava um banheiro completo: na entrada um armário grande, onde eram guardados remédios, papel higiênico, toalhas e aventais, e a banheira enorme; era o sonho de minhas netas tomarem banho nela. No final, antes da saída, existiam duas portas: uma para cozinha, e, do lado oposto, outra para a copa, quase nunca usadas. Na copa, uma pequena escada de madeira levava para o porão. O imenso porão, com vários quartos, saletas, salas, copas, salas de almoço, banheiros, dispensa e cozinha ficava no mesmo piso do quintal e do jardim. Era no início deste, que saía uma escada de mármore, com corrimão de bronze; acesso da entrada principal da casa da Marechal Floriano. A escada iniciava em seguida ao portão prateado que separava o Casarão da calçada. Os degraus terminavam em pequeno patamar, onde havia duas enormes portas, uma dava acesso a sala do piano e a outra ao escritório de meu avô. No interior do porão, era na ampla cozinha que as criadas passavam o dia inteiro preparando refeições e massas, mas também passavam roupa enquanto conversavam e ouviam rádio. Era também o lugar onde meus netos faziam brincadeiras, travessuras e encenavam peças teatrais. Meus netos maiores: Lourdes, Mariza, Marlene, Danúbio e José Antônio armavam um palquinho onde eles mesmos se apresentavam ou davam papéis para os primos menores. Marilena, Cesar Tadeu e Vera Regina eram atores constantes; até os bem menores como Iza Lydia e Paulo Antônio, às vezes, entravam na brincadeira. Minhas filhas, já casadas, vinham passar as férias e se dividiam entre temporadas na Estância de São Braz e no Casarão. Elas gostavam de contar as novidades encerradas no banheiro, do piso superior, costume que fez um dos meus genros, Rubens Osório, casado com minha filha Egydia, que nessa 202


época morava comigo, apelidar aquele quarto de banho como o escritório das Mazzini. Saudades daqueles tempos vividos no Casarão. Tempo e dias que não voltam mais...

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Epílogo Floriana Danesi Breyer (...) fogo eterno (...)

Helena desperta da sesta; o sol já está se pondo e Florência não chega. A vó já estava acostumada com a penosa1 que sempre desaparecia. Mas, diferente de outras vezes, Helena não fica preocupada. Sente no ar daquele entardecer uma calma profunda. Florência se aproxima da casa amarela esbaforida. – Onde você estava? – Fui dar uma banda, vó, responde a neta, rapidinho, sem contar as peripécias pelas quais havia passado na sanga. – Vó, vamos fazer uma fogueira hoje? – Mas não temos lenha. – A gente cata no mato. – Tá; mas vamos logo antes que anoiteça. As duas saem estância afora, catando lenha. Helena, voltando à infância, olha para a neta e lembra-se das primas Marisa, Lourdes e do primo José Antônio, com os quais tanto brincara naqueles muros de pedra, nos trotes a cavalo, nos banhos de sanga. Vó e neta estão felizes passeando por aquelas terras cheias de encantos e memórias vivas. Puderam catar um pouco de lenha, não muito, mas o suficiente para começar a fogueira. Escolhem fazer o fogo embaixo do cinamomo. Florência corre até o muro de pedra, pega algumas e leva-as até o cinamomo e faz um círculo. Glossário da baiana: Penosa ou Penoso aquele ou aquela que apronta.

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– Vó, este vai ser nosso círculo de poder. É para nos proteger. Vou fazê-lo com as pedras do muro, pois elas são as protetoras da Fazenda de São Braz. E continua indo e voltando do muro até finalizar o círculo de pedras. Enquanto isso, a avó se ajeita no trono esculpido pelo tempo, num galho velho caído do cinamomo. E dali ordena: – Acende duma vez esta fogueira, Flor, antes que a cerração baixe! Florência ajeita a lenha, acomoda os gravetos e as folhas secas. Quando vai acender o fogo, percebe que sua caixa de fósforos tinha molhado na sanga. Abre a caixinha e só há um fósforo seco. Olha para a avó, que já está começando a ficar com frio, e para o oeste, onde o sol acaba de sumir deixando seu rastro escandalosamente rosa choque. Florência percorre com o olhar aquele degradê multicolor até avistar a primeira estrela. Olha fixamente para a ela, olha para o fósforo na sua mão e pede um pouquinho da sua luz para acender a fogueira. Respira fundo, risca o fósforo em uma das pedras do círculo de poder e ele acende. Cuidadosamente, aproxima a outra mão e o protege, levando sua estrela luminosa até os gravetos. Os primeiros estalos não tardam e, em seguida, um vento começa a soprar. – É o Minuano, diz a avó ajeitando o poncho. Florência se concentra no vento pedindo-lhe que sopre o fogo e ajude a acender a fogueira. E ele foi soprando de mansinho. A avó fica maravilhada com a habilidade da neta. Florência agradece a estrela e ao Minuano, que imediatamente lhe responderam: uma piscando de volta e o outro rodopiando em volta da fogueira fazendo subir salamandras e labaredas. Helena e Florência ficam em silêncio olhando através daquele fogo... – Estou com sede – disse a vó. – Tenho água fresquinha aqui. Desatando da bombacha o cantil do bisa Edil e alcançando-o para Helena que o 206


agarra e dá um belo gole. – Que gosto de infância! E sorrindo dá outro gole. Devolvendo o cantil para a neta, seus olhos se cruzam, e Florência pode ver-se refletida nos olhos da avó, e verse através dos tempos. Como eram parecidas! Em peso, medidas, boca, bunda e a mesma cinturinha fina. Agarra o cantil sem desviar a mirada do espelho e bebe um gole de água da fonte. Neste instante, sentem o Minuano soprar novamente trazendo uma cerração impressionante. As duas ficam ali, testemunhando aquela névoa se aproximar, que chega e se instala envolta do círculo que Flor havia demarcado com as pedras protetoras. Foi quando, do meio daquela bruma, eclode uma voz rouca e firme se aproximando: – Cerração baixa, Sol que racha! Helena reconhece aquela voz e vê um vulto puxando um carro de boi, parando ao lado do círculo de pedras e estendendo a mão preta e enrugada que segura um canecão de alumínio. – Santinha, você pode colocar na brasa para mim? Mas não se preocupe, não é leite, viu?! É água da sanga pro chimarrão da madrugada. Helena, em absoluto silêncio, pensa como é possível que Tio Preto esteja ali depois de todos esses anos? Neste mesmo instante, ao longe, ouve a melodia harmônica do piano Bösendorfe, do vovô David, e os dissonantes gritos do primo Léo. A música do piano continua e aumenta; em seguida, ouvem-se os galopes, o mugir do boi e o chicote do cocheiro misterioso. Outro carro de boi se aproxima da fogueira; dirigindo-o está o belo Italiano Mazzini e, a seu lado, a valente Maria Joaquina com os gêmeos nos braços; aproximam-se do círculo de pedras, e o cocheiro diz:

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– Ainda bem que tu foste valente, Maria. Enfrentaste teu pai e inventaste esta frota de carros de boi, e me aceitaste como empregado. – Valente fui de casar com o cocheiro. Responde Maria Joaquina dando uma gargalhada. A cavalo se aproxima Francisco de Brito Peixoto e traz em suas mãos seu caderno de viagens no qual tinha escrito suas confidências em todos esses anos de conquistas e aventuras amorosas. – Integro-me a este círculo e entrego-lhes minha sede de vingança, minha fome por novas terras e mulheres, e deixo-lhes meu legado, meus erros e sigo em paz. E joga seu caderno ao fogo. Aos poucos, de mansinho, escuta-se o arrastar de chinelas, e um cantarolar e aproxima-se da fogueira: Maria de Lourdes Ribeiro da Silva, ou simplesmente Baiana. – Estes pura bucha ainda estão acordados? Dona Maulene2 ainda tá queimando óleo a estas horas? E cadê o Fafinho3, a Boliz4 e o ItuItu5? Num vieram para fora desta vez? Florisbela6 das calça amarela vejo que tá aqui voando as tranças no São Braz e tá cada dia mais igual ao Sr. Lácio7. Julia deve estar em algum lugar desenhando tudo isto, o Felipe nos espionando atrás de alguma porta, enquanto o Frederico deve estar mandando uma e fabricando o primeiro bisneto. Já o Giuli deve estar desmaiando os pacientes. Ave, Maria, até as almas penadas vieram para esta fogueira. Só ta faltando as mucas8. Neste instante foi possível escutar o chacoalhar do molho de chaves (de todas as chaves de São Braz) guardadas nos bolsos do avental da generosa e audaciosa Tetéia; ela tinha um longo cabelo negro e liso que sempre 2   3 4 5 6 7 8   Glossário da Baiana: Dona Maulene é Dona Marlene, Fafinho é Fernando, Boliz é Carla, Ituitu é Sérgio, Florisbela é Floriana, Sr, Lácio é Lacê. As mucas são as empregadas.

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usava enrolado num coque. Ela vem chegando com as tetas cheia de leite, tal qual quando chegou em São Braz para ser ama de leite das filhas de Lyndoca. Tetéia chega à fogueira com as duas crias nos braços: Edith e Zola, que nem piavam deliciando-se com o leite indígena daquelas tetas volumosas. Tetéia olhou para Helena e disse: – Soube que nasceu teu bisneto Inácio; se precisarem de leite posso amamentá-lo também. – Grata, Tetéia, mas a Natália, mãe do guri, tá dando conta do recado. De repente, dos céus se escuta o grito agudo de um gavião sobrevoando a Fazenda de São Braz, e chega dando rasantes na fogueira. Helena se assusta e protege-se com o poncho. O gavião pousa em uma das pedras do círculo. Olha para cada um dos presentes, com aquele olhar fundo e preciso de uma ave de rapina. E volta seu olhar para o centro do fogo, abre as asas e começa a transformar-se numa linda mulher, de cabelos negros e lisos, desnuda e jovem. – Há quanto tempo os esperava! Estive-os observando dos céus, das copas das árvores, nos raios de sol e no soprar dos ventos. Eu sou Kauany, o espírito de Moyarû, que mais tarde foi chamada de Severina, sou a raiz de vocês com esta terra Brasil. Vim até aqui, hoje, celebrar esta mistura de raças e entregar meus pesares nesta fogueira. Muitos tiveram que morrer e se sacrificar para estarmos aqui hoje, encontros e desencontros, amores e temores que nos constituem tal qual somos: herdeiros das composições. E assim seguimos através dos séculos: eternos… Eternidade é tudo aquilo que cabe num instante e onde todos seguem sendo juntos. O aqui e agora é mais que consequência de tudo que passou: é junto com o que está sendo simultaneamente entre o que classificamos como passado e futuro. Somos neste aqui e agora parte deste mosaico de instantes no Universo. Somos eternos… E há perguntas que não calam. Padrões que seguem repetindo-se de geração 209


a geração. Até que algum de nós, em algum dos tempos, que seguem sendo, os reconheçam e os transformem em perdões, em celebrações de tudo que são e de tudo que nos ensinam. Gratidão é integrar tudo que é. Escutar as vozes e ecos e deixar que vibrem e ressoem no que somos hoje e agradecer. Ser é manifestar a composição desta sinfonia que é a vida e todas as suas relações. Eu venho aqui hoje celebrar e honrar cada um de vocês, meus descendentes, e entregar minhas mágoas neste fogo para deixar limpo o caminho de vocês e dos que vierem... E assim abre os braços, torna-se gavião e alça voo no vazio noite. Na fogueira só restam brasas, quando um galope aproxima-se no ritmo do pulsar do coração de Helena. Ela olha rapidamente ao redor, levanta os olhos e reconhece aquele galope inconfundível: o domador de cavalos! Surge das brumas, Jonas, o indígena charrua que lhe ensinara a montar. – Trouxe mais lenha para alimentar esta fogueira. Diz Jonas acrescentando madeira nas brasas e renovando o fogo. Os olhos de Helena e Jonas se entrecruzam e os dois voltam ao verão de 1941. Jonas se aproxima de Helena, lhe dá a mão, ela aceita, convidando-a para levantar- se, levando-a até o cavalo Faceiro; segura a sua cinturinha fina ajudando-a a montar. Helena, hábil cavaleira, monta na cela e estende a mão convidando-o a montar com ela. Jonas, rapidamente, põe o pé esquerdo no estribo e salta no pelego atrás de Helena. O cavalo xucro se agita; Helena segura as rédeas esperando Jonas se ajeitar. Ela olha para todos os antepassados com olhar terno e sorri para sua neta, deixando escapar uma lágrima. Helena sente a terra naqueles estribos, sente a proteção do céu nas estrelas e, num gesto preciso, inicia o galope que corta e desvanece a cerração. Com ela se vão todos os vultos. 210


Florência vê aproximar-se um lenhador trazendo lenha de quebracho das terras do Sul. O lenhador se aproxima, oferece mais lenha para a fogueira e seu poncho argentino para aquecer a menina. Florência esvazia o cantil do bisa Edil no canecão de alumínio do Tio Preto e prepara um chimarrão. No roncar do mate os dois olham para o horizonte e avistam Helena sumir na alvorada a galope com o domador de cavalos...

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A longevidade dos Guterres: em 13 de outubro de 2018 Aurélia Mazzini Pereira (a direita) comemorou 100 anos de completa lucidez, ao lado a irmã Egydia Mazzini Osorio (a esquerda) que completará um século de existência em 2020. 212


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